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GÊNESIS 1 E A TEOLOGIA ADVENTISTA 2

2018, NEUMARK COSTA

RESUMO O objetivo deste artigo é propor uma interpretação do relato bíbli-co da criação apresentado em Gênesis 1, partindo do pressuposto de que a Bíblia merece confi ança em face de sua unidade e autoridade divina. Dessa forma, analisa-se a intenção original do relato contido em Gênesis 1 e sua relevância teológica como também as implicações teológicas da interpretação simbólica do relato bíblico da criação, tal como propõem os teólogos de orientação liberal. ABSTRACT The objective of this article is to propose an interpretation of the biblical story of creation presented in Genesis 1, and takes the assumption that the Bible deserves confi dence because of its unity and divine authority. Therefore, we analyze the original intention presented in Genesis 1 and its theological relevance as well as the theological implications of the symbolic interpretation of the biblical account of creation, such as proposed by theologians of liberal orientation.

Elias Brasil de Souza1 GÊNESIS 1 E A TEOLOGIA ADVENTISTA2 RESUMO O objetivo deste artigo é propor uma interpretação do relato bíblico da criação apresentado em Gênesis 1, partindo do pressuposto de que a Bíblia merece con•ança em face de sua unidade e autoridade divina. Dessa forma, analisa-se a intenção original do relato contido em Gênesis 1 e sua relevância teológica como também as implicações teológicas da interpretação simbólica do relato bíblico da criação, tal como propõem os teólogos de orientação liberal. Palavras-chave: Gênesis. Criação. Teologia ABSTRACT The objective of this article is to propose an interpretation of the biblical story of creation presented in Genesis 1, and takes the assumption that the Bible deserves con•dence because of its unity and divine authority. Therefore, we analyze the original intention presented in Genesis 1 and its theological relevance as well as the theological implications of the symbolic interpretation of the biblical account of creation, such as proposed by theologians of liberal orientation. Keywords: Genesis. Creation. Theology INTRODUÇÃO Num esforço para alinhar o relato bíblico das origens com a compreensão cientí•ca da realidade, vários estudiosos têm proposto interpretações simbólicas, espiritualizantes ou metafóricas3 de Gênesis 1.4 Sugere-se, por exemplo, que os dias da criação não teriam sido dias literais de 24 horas, mas longos períodos de tempo ou dias de revelação.5 1 Ph.D Antigo Testamento, professor e coordenador do SALT/IAENE Artigo já publicado na Revista Ministério, ano 2008, nov/dez, p. 17-20, 2008 3 GOODMAN, Marvin L. Non-literal interpretations of Genesis creation. Grace Journal. v. 144, n. 1, p. 25-38, 1973. 4 Neste artigo, Gênesis 1 refere-se ao relato geral da criação que se estende até Gn 2:3. Note-se, ainda, que as implicações teológicas de Gn 1:1-2:3 são relevantes para a criação especial do ser humano em Gn 2:4-28. 5 Tem sido proposto também que o relato da criação especial do ser humano em Gn 2:4-24 provém de outra fonte literária. Assim, atribui-se Gn 2:4-24 a uma suposta 2 GÊNESIS 1 E A TEOLOGIA ADVENTISTA Tais posicionamentos exegéticos, em relação a Gênesis 1, têm exercido certa in!uência no debate entre criação e evolução. Os estudiosos evangélicos que interpretam o texto bíblico de uma perspectiva históricocrítica - incluindo-se, aqui, católico romanos e protestantes liberais normalmente adotam uma postura "losó"ca denominada criacionismo progressivo6 ou evolucionismo teísta. 7 Mais recentemente o assim chamado “desígnio inteligente”8 tem recebido muita aceitação em alguns círculos. Tais tentativas eruditas de lidar com os aspectos cientí"cos e teológicos das origens suscitam questões relacionadas com a coerência e consistência da revelação bíblica como um todo. Neste artigo, focalizam-se dois aspectos desta problemática mais ampla, desde o ponto de vista de uma visão elevada das Escrituras.9 Em primeiro lugar analisa-se o propósito do relato da criação em Gênesis, para determinar se o mesmo deve ser interpretado literalmente, como um relato factual, ou se pode ser entendido em termos simbólico-metafóricos, como sugerem alguns pesquisadores. Em seguida, são consideradas algumas implicações de uma interpretação não literal de Gênesis 1 para algumas doutrinas bíblicas tais como compreendidas pelos cristãos conservadores, em geral, e pelos adventistas em particular. INTENÇÃO ORIGINAL E RELEVÂNCIA TEOLÓGICA DE GÊNESIS 1 A discussão sobre a interpretação de Gênesis 1 toca em dois ponfonte J (X séc. a.C.), enquanto que Gn 1:1-2:3 pertenceria a uma hipotética fonte P (V séc. a.C.). 6 Criacionismo progressivo é de"nido como a teoria segundo a qual Deus criou começando de novo muitas vezes e em intervalos amplamente separados. TIDMORE, Hollis D. Progressive creationism versus theistic evolution as a christian worldview. Faith and Missions. v.17, n. 3, p 79, 2000. 7 “O evolucionismo teísta ensina que enquanto as várias espécies surgiram através de um processo evolutivo, Deus supervisionou o desenvolvimento da vida” (GRENZ, Stanley; GURETZKI, David; NORDLING, Cherith Fee. Pocket dictionary of theological terms. Downers Grove, IL: InterVarsity Press, 1999. p. 112. 8 Veja-se L. James Gibson, “Intelligent Design, Natural Selection, and God, Origins 25:2 (1998): 51–54. 9 Este artigo adota a de"nição de John T. Baldwin, segundo o qual “uma visão elevada da Escritura aceita a unidade, con"abilidade e autoridade da Bíblia inteira como divinamente revelada, revelação proposicional. Nesta visão, por exemplo, presume-se que os capítulos 1–11 de Gênesis são narrrativas factuais de eventos históricos concernentes à maneira pela qual Deus criou este mundo como um habitat sustentador de vida, à entrada do pecado e morte no mundo, e à modi"cação catastró"ca do habitat original” (Progressive Creation and biblical revelation: some theological implications. Origins. v.18, n. 2, p. 53-65, 1991. 66 P RÁXIS TEOLÓGICA | CEPLIB | V. 1 | P. 65-76 ELIAS BRASIL DE SOUZA tos fundamentais. O primeiro relaciona-se com a intenção primária do autor bíblico. É preciso determinar, portanto, se os vários elementos contidos em Gênesis 1 visam comunicar informações factuais sobre a criação ou se intencionam apenas expressar uma verdade geral sobre Deus, como Criador, em termos simbólicos ou metafóricos. O segundo ponto concerne a questões hermenêuticas e teológicas mais amplas incidindo sobre como o relato deve ser interpretado, bem como suas implicações teológicas. Alguns eruditos defendem que o relato da criação em Gênesis 1não intenciona comunicar informações factuais sobre as origens, mas expressa como parábola ou metáfora uma con!ssão de fé em Deus como criador.10Sugere-se, assim, que o relato bíblico da criação, destituído de qualquer preocupação cientí!ca, se preocupa apenas com o “quem” e o “porquê” da criação; cabe então à ciência investigar o “como” da criação. Na opinião do teólogo evangélico Clark Pinnock, o propósito central do relato da criação “é ensinar certas verdades teológicas subjacentes ao concerto de Deus com Abraão e sua semente.”11 Há todavia notáveis eruditos críticos que a!rmam que Gênesis 1 originalmente também intencionou comunicar conhecimento factual ou cientí!co na linguagem da época. Gerhard von Rad, erudito alemão, em seu comentário do livro de Gênesis, sustenta que o autor bíblico intencionou que seu relato fosse entendido literalmente.12 Mais recentemente Terence Fretheim, observou que os escritores bíblicos se utilizaram de conhecimento do mundo natural que lhes era disponível em sua cultura.13 Fretheim ainda declarou que “apesar de alegações em contrário (frequentmente no interesse de combater o fundamentalismo), estes textos indicam que os pensadores de Israel perseguiram cuidadosamente questões a respeito do como da criação, e não apenas questões de quem e por quê.”14 Note-se que tanto von Rad como Fretheim são eruditos histórico-críticos e que, portanto, não teriam qualquer problema em aceitar uma posição evolucionista a respeito das origens. Porém, ao se defrontarem com o relato da criação em Gênesis, honestamente reconhecem que o autor bíblico intencionou que seu relato fosse entendido factualmente ou literalmente. 10 GIBSON, John C. L. Genesis: volume 1. The Daily study Bible Series. Louisville: Westminster John Knox Press, 1981. 55ss. 11 PINNOCK, Clark H. Climbing out of a swamp: the evangelical struggle to understand the creation texts. Interpretation. v. 43, n. 2 p. 148, 1989. 12 RAD, Gerhard von. Genesis: a commentary. Philadelphia: Westminster Press, 1972. p. 65. 13 FRETHEIM, Terence E. God and world in the Old Testament: a relational theology of creation. Abingdon Press, 2005. p. 27. 14 Ibid., 28. PRÁXIS TEOLÓGICA | CEPLIB | V. 1 | P. 65-76 67 GÊNESIS 1 E A TEOLOGIA ADVENTISTA Um exame detalhado de alguns aspectos de Gênesis 1 indicam a intenção de comunicar informação factual. Os dias da criação, por exemplo, contêm várias evidências de que devem ser entendidos literalmente.15 Com base em argumentos lexicais, semânticos, gramaticais e contextuais, Gerhard F. Hasel mencionou várias linhas de evidência que corroboram uma interpretação literal dos dias da criação.16 O fato de o lapso de tempo indicado por “dia” (yôm) em Gênesis 1 ser divido em tarde e manhã, juntamente com a quali!cação deste termo por numeral - o que na Bíblia Hebraica indica um dia de vinte e quatro horas - implica que o autor bíblico inequivocamente intencionou que seu relato fosse entendido literalmente. Cabe ressaltar também que textos subsequentes do cânon bíblico presumem uma criação em dias literais de vinte e quatro horas. As instruções quanto à guarda do sábado em Ex 20:9-11 e 31:15–17, por exemplo, interpretam os seis dias da criação como sequenciais, cronológicos e literais.17 Argumentando contra a interpretação factual do relato da criação, alguns estudiosos sugerem que a estrutura literária de Gênesis 1 revela um propósito artístico que excluiria ou, na melhor da hipóteses, reduziria bastante o teor factual ou histórico do relato das origens.18 Tal posicionamento re"ete a tendência de alguns estudiosos de tratar a literatura bíblica como !cção. Contudo, cabe notar que nem todos os críticos literários concordam com tal dicotomia.19 Meir Sternberg, por exemplo, nota que “não há universais de formas históricas vs. !ccionais”20 e reconhece a “determinação da Bíblia em santi!car e compelir a crença literal no passado.”21 15 Os dias da criação em Gn 1 têm sido intepretados por alguns estudiosos como referindo-se a longas eras, períodos inde!nidos ou !gurados de tempo, ou ainda como períodos de tempo intermitentes ao longo de um processo criativo/evolutivo de milhões de anos. 16 HASEL, Gerhard F. The ‘days’ of creation in Genesis 1: literal ‘days’ or !gurative ‘periods/epochs’ of time.” Origins. v. 21, n. 1, p. 5-38, 1994. 17 Ibid. 18 Hasel observou que a “‘rede!nição do gênero’ do relato da criação intenciona impedir o relato da criação de informar aos leitores modernos sobre o ‘como’ e ‘de que maneira’ e quando Deus criou o mundo. Quer simplesmente a!rmar minimalisticamente que Deus é criador. E essa a!rmação signi!ca uma declaração teológica, não cientí!ca, destituída de qualquer impacto sobre como o mundo e o universo vieram à existência e posteriormente se desenvolveram” (Ibid.). 19 Ver OSBORNE, Grant R. The hermeneutical spiral: a comprehensive introduction to biblical interpretation. Rev. and expanded, 2nd ed. Downers Grove, IL: InterVarsity, 2006. p. 200, n. 1. 20 STERNBERG, Meir. The poetics of biblical narrative. Ed. Herbert Marks and Robert Polzin, Indiana Studies in Biblical Literature. Blomington, IN: Indiana University Press, 1987. p. 30. 21 Ibid., 32. 68 P RÁXIS TEOLÓGICA | CEPLIB | V. 1 | P. 65-76 ELIAS BRASIL DE SOUZA Feitas estas considerações, podem-se observar alguns aspectos estruturais do relato da criação bem como suas implicações teológicas. Percebe-se que o texto se move do que está mais distante para o que está mais próximo e mais semelhante a Deus (Gn 1:26). Há um movimento das coisas inanimadas para as animadas, da terra “sem forma e vazia” para o descanso do sábado.22 Reforçando a beleza estrutural do texto, há duas tríades que formam os seis dias da criação. A primeira tríade revela que Deus realiza uma obra de divisão e separação criando os vários espaços e regiões que serão preenchidos na segunda tríade. Três painéis conectam as duas tríades de tal forma que os elementos criados no primeiro dia correspondem aos elementos do quarto dia, o segundo dia ao quinto, e o terceiro ao sexto dia. Cada tríade começa com a luz e termina com uma dupla criação.23 E os três painéis apresentam uma progressão espacial do céu (primeiro e quarto dia) para as águas (segundo e quinto dia) e para a terra (terceiro e sexto dia). Finalmente, a semana da criação se conclui com o sétimo dia que, não tendo outro dia que lhe corresponda, permance distinto dos demais como dia santi!cado e abençoado para descanso. TABELA A Separação Preenchimento 1. Luz e trevas 4. Luminares 2. Firmamento e águas 5. Aves e peixes 3. Terra e vegetação 6. Animais e seres humanos 7. Sábado Note-se, ainda, que a regularidade e a simetria da estrutura literária de Gênesis 1 utiliza uma fórmula padrão que descreve a ação realizada em cada dia, conforme a seguinte tabela elaborada por William David Reyburn and Euan McG. Fry.24 22 Pinnock: 149. WHITELAW, Thomas. The pulpit commentary: Genesis. Ed. H. D. M. SpenceJones. Bellingham, WA: Logos Research Systems, 2004. p. 9. 24 A HANDBOOK on Genesis. New York: United Bible Societies, 1997. p. 26. 23 PRÁXIS TEOLÓGICA | CEPLIB | V. 1 | P. 65-76 69 GÊNESIS 1 E A TEOLOGIA ADVENTISTA TABELA B Primeiro Dia (3–5) Introdução 3 Comando 3 Execução 3 Avaliação 4 Ação 4 Designação 5 Tempo 5 Segundo Dia (6–8) Introdução 6 Comando 6 Execução 7 Avaliação Ação 7 Designação 8 Tempo 8 Terceiro Dia (9–13) Introdução 9 Comando 9, 11 Execução 9, 11 Avaliação 10, 12 Ação 12 Designação 10 Tempo 13 Quarto Dia (14-19) Introdução 14 Comando 14, 15 Execução 15 Avaliação 19 Ação 16-18 Designação Tempo 19 Quinto Dia (20-23) Introdução 20 Comando 20, 22 Execução Avaliação 21 Ação 22 Designação Tempo 23 Sexto Dia (24–31) Introdução 24, 26 Comando 24, 26, 28, 29 Execução 24, 30 Avaliação 25, 31 Ação 25, 26, 27, 28, 30 Designação Tempo 31 Re!etindo sobre a simetria e a beleza poética da narrativa da criação, Richard Davidson declarou: “De acordo com Gênesis 1, a obra de Deus representa nada menos do que um poema divino escrito na estrutura do espaço. Assim como Deus fala em poesia na Escritura, assim no princípio Ele criou em beleza poética.”25 É interessante notar, no entanto, que a precisão estrutural do relato não segue uma predeterminção mecanicista.26 Em vários lugares surgem elementos imprevisíveis que violam a lógica estrutural da narrativa. Em primeiro lugar, nota-se que o texto narra dois tipos de ação. O primeiro tipo simplesmente declara: “e assim se fez,” ou então: “e houve luz.” O segundo tipo é mais extenso e relata alguma ação especí"ca de Deus em fazer, criar ou separar. Este 25 DAVIDSON, Richard M. A love song for the sabbath. Washington: Review And Herald Publishing Association, 1988. p. 26. 26 Os argumentos empregados nesta seção se fundamentam em MIDDLETON, J. Richard. Creation founded in love: breaking rhetorical expectations in Genesis 1:12:3. Sacred text, secular times: the hebrew Bible in the modern world. Ed. Leonard Jay Greenspooon and Bryan F. LeBeau, Studies in Jewish Civilization, 10. Omaha, NE: Creighton University Press, 2000. p. 47-85. 70 P RÁXIS TEOLÓGICA | CEPLIB | V. 1 | P. 65-76 ELIAS BRASIL DE SOUZA tipo ocorre em lugar do primeiro ou então simplesmente o complementa. Em segundo lugar, percebe-se que alguns elementos estão faltando em alguns dias. Apenas o primeiro e o terceiro dia contêm todos os elementos estruturais. O segundo dia não contém avaliação, o quarto dia não contém designação. Execução e designação estão ausentes do quinto dia, sendo que a última também falta ao sexto dia. Em terceiro lugar, observando-se as duas tríades, nota-se que a distinção “separação versus preenchimento” não é absoluta, pois os vegetais (preenchimento) pertencem à primeira, enquanto os luminares (separação) estão localizados na segunda. Em quarto lugar, percebe-se uma complexidade adicional no fato de que o relato da criação em seis dias contém oito obras criacionais. Analisando-se a estrutura descritiva de cada uma, chega-se ao seguinte quadro elaborado por Middleton:27 27 Middleton, 68. PRÁXIS TEOLÓGICA | CEPLIB | V. 1 | P. 65-76 71 RÁXIS TEOLÓGICA | CEPLIB | V. 1 | P. 65-76 II Firmamento III Terra IV Vegetais V Luminares VI Aves e Peixes VII Animais Terrestres VIII Humanidade 1 1 1 1 1 1 1 1 2 4 2 2 2 4 2 4 3 2 3 4a 4b 3 4 2x 4 x x 3 3 x 3 3x 1 = Comando (“e haja . . .) 2 = Execução (“e houve luz,” “e assim se fez”) 3 = Avaliação (“e viu Deus que . . . era boa/bom) 4 = Ação (“e fez separação entre a luz e as trevas”) x = Elemento ausente ou deslocado a, b = variação interna dentro de um elemento do padrão GÊNESIS 1 E A TEOLOGIA ADVENTISTA 72 P I Luz ELIAS BRASIL DE SOUZA Observam-se várias irregularidades nesta estrutura. Enquanto a ordem dos elementos está invertida em alguns casos, em outros está ausente ou modi!cada. O relato da quarta obra não registra uma ação de Deus, e sim de uma criatura, a Terra. No nível gramatical, também aparecem algumas variações não predizíveis. Assim, o primeiro dia da criação é quali!cado por um numeral cardinal, ao contrário dos outros seis dias. O sexto e sétimo dias estão acompanhados de artigo (o sexto dia, o sétimo dia). Ademais, a distribuição dos verbos bara’ e ’asah no relato parece ser aleatória. Assim, à medida que se analisa o relato da criação em Gn 1:1-2:3, percebe-se que uma série de complexidades vai surgindo. Os vários elementos que formam a estrutura narrativa, embora predizíveis em um primeiro nível de leitura, tornam-se mais e mais complexos em seus detalhes, apresentando anomalias não predizíveis. Um exame atento do relato em seus detalhes revela que o universo da predizibilidade newtoniana, aparente na superfície da narrativa, cede lugar a uma percepção mais em consonância com o princípio da indeterminação postulado pela física moderna. Assim, o relato da criação em Gênesis 1 parece re"etir um universo dinâmico em consonância com alguns postulados da nova física.28 O relato formal e estilizado na superfície torna-se complexo e impredizível nos detalhes, em uma combinação que de forma alguma parece depor contra sua factualidade. Ao contrário, longe de serem contraditórias, as dimensões estéticas e as complexidades de Gênesis 1 se combinam para reforçar e enriquecer o relato da criação, sugerindo a factualidade e singularidade da obra criacional de Deus. A dimensão estética provê percepções teológicas e artísticas da sinfonia cósmica da criação e do caráter do Criador. Ao mesmo tempo, as complexidades do relato sugerem sua factualidade ou historicidade e fundamentam as percepções estéticas e teológicas no chão da realidade. Um relato !ccional não teria legitimidade para nos informar de onde viemos, nem autoridade para determinar que rumo devemos seguir e careceria de credibilidade para revelar aonde vamos. IMPLICAÇÕES TEOLÓGICAS DA INTERPRETAÇÃO SIMBÓLICA Para extrair as implicações teológicas de uma interpretação simbólica de Gênesis 1 para a teologia adventista, escolheuse como amostragem os seguintes tópicos ou temas doutrinários: 28 BROWN, William E. Quantum theology: christianity and the new physics. Journal of the evangelical Theological Society. v.33, p. 477-487, 1990. PRÁXIS TEOLÓGICA | CEPLIB | V. 1 | P. 65-76 73 GÊNESIS 1 E A TEOLOGIA ADVENTISTA matrimônio, sábado, salvação e escatologia. Sugere-se que as conclusões a respeito destes tópicos se aplicam a outros aspectos da teologia adventista, inclusive às vinte e oito crenças fundamentais. MATRIMÔNIO. A visão bíblico-cristã de uma união matrimonial monogâmica, heterossexual, permanente e exclusiva se apoia na historicidade de Gn 1 e 2. Em confronto com os fariseus, Jesus declarou: “Por causa da dureza do vosso coração é que Moisés vos permitiu repudiar vossa mulher; entretanto, não foi assim desde o princípio” (Mt 19:8). Ao fundamentar seu argumento de que a permanência da união matrimonial remontava ao “princípio,” Jesus remete seus interlocutores ao relato das origens e ao mesmo tempo presume a con!abilidade histórica do mesmo. Uma interpretação não factual e histórica de Gn 1 (e 2) destrói o argumento de Jesus e abre as portas para uma visão relativista do matrimônio.29 SÁBADO. O mandamento do sábado ancora-se na realidade de uma criação em sete dias literais. Renunciando-se uma interpretação factual de Gn 2:1-3, desaparece a motivação para guardar o sábado expressa em Ex 20:9-11. Como a!rmou Richard Davidson: “A criação provê o supremo fundamento para a observância universal e eterna do sábado em nosso planeta. O sábado é um memorial da criação e o seu signi!cado está ligado à criação.”30 Todavia, não é somente a legitimidade do quarto mandamento que deriva da ordem da criação, os demais mandamentos da lei de Deus com suas demandas morais e éticas se fundamentam no fato de que Deus é o Criador e de que o ser humano foi criado à sua imagem e semelhança. Se o mundo veio à existência mediante um processo evolutivo que levou milhões ou bilhões de anos, desmorona-se o fundamento bíblico para a santi!cação do sétimo dia da semana. Assim, não seria mais possível recorrer a Gn 2:1-3 para sustentar a importância do sábado com base na ordem da criação. O sábado e os demais mandamentos da lei de Deus tornam-se mero produto de convenções religiosas e sociais, apoiadas não mais pela autoridade da revelação divina, mas pela tradição e conveniências humanas. SALVAÇÃO. A doutrina bíblica da salvação pressupõe a queda do ser humano em pecado e a consequente entrada da morte nas esferas da criação. O plano da salvação consiste na obra de Deus em restaurar e redimir os seres humanos e a natureza à sua condição original, culminando na erradicação da morte. Tal visão do plano salví!co de Deus é consistente com o relato de Gênesis, que retrata o mundo, conforme saiu das mãos do criador, como isento de morte, tanto de animais como 29 30 74 P Baldwin,53-65. Davidson, 46. RÁXIS TEOLÓGICA | CEPLIB | V. 1 | P. 65-76 ELIAS BRASIL DE SOUZA de seres humanos. Note-se que a alimentação provida aos animais e seres humanos era vegetariana, indicando, com isso, que até mesmo o reino animal estava livre da morte. A intenção divina, portanto, revelada nas Escrituras é a restauração desta condição original. Em contraste, o criacionismo progressivo e o evolucionismo teísta adotam a pressuposição de que a morte - de criaturas inferiores ou seres humanos - é parte do próprio processo mediante o qual Deus, ou uma inteligência superior, trouxe o mundo à existência. Não é difícil notar o impacto desta visão sobre a doutrina bíblica da salvação e da redenção. Se a morte é o instrumento para os processos evolutivos empregados por Deus, é difícil entender como Paulo pôde declarar que a morte é o último inimigo a ser destruído (1 Co 15:26). Ainda, como disse Baldwin, “se a morte existiu antes de Adão, então Cristo, em última instância, não redime ninguém de um destino que não era um aspecto da vida antes do pecado de Adão.”31 ESCATOLOGIA. A escatologia retratada nas Escrituras sustenta que Jesus vai voltar em breve para buscar os salvos e Deus vai recriar esta Terra para ser a morada eterna dos remidos em uma condição em que pecado e morte não mais existirão. A primeira criação fornece a linguagem e a base teológica para a certeza de uma nova criação, como indicado pelos paralelos entre, por exemplo, Gn 1-2 e Ap 21-22. Diante disto, se poderia inquirir como uma visão evolucionista explicaria a nova criação. Se foram necessários bilhões de anos para produzir a primeira criação, a qual segundo alguns, ainda está em evolução, de quantos bilhões de anos Deus vai necessitar para criar os novos céus e a nova terra? É difícil imaginar como a segunda vinda de Jesus poderia se enquadrar dentro de uma cosmovisão evolucionista. CONCLUSÕES E IMPLICAÇÕES Com base nas considerações acima, este trabalho argumenta que o autor bíblico intencionou que seu relato fosse entendido como uma descrição real, factual e histórica das origens, no que foi seguido pelos demais escritores bíblicos, os quais, quando citaram ou aludiram ao relato da criação, presumiram uma interpretação literal/factual do mesmo. Sendo assim, interpretações que não sejam histórico-factuais dos dois primeiros capítulos da Bíblia exigiriam, por questão de consistência, uma reinterpretação de doutrinas fundamentais do cristianismo e, por conseguinte, da IASD. Como exempli!cado acima, o matrimônio, o sábado, a salvação e a escatologia perderiam totalmente legitimidade bíblica. 31 Baldwin, 53-65. PRÁXIS TEOLÓGICA | CEPLIB | V. 1 | P. 65-76 75 GÊNESIS 1 E A TEOLOGIA ADVENTISTA Do ponto de vista deste artigo, há somente duas alternativas mutuamente excludentes: Ou se aceita o relato da criação de acordo com sua intenção original, como revelação factual, história de algo que ocorreu como está escrito, assim como aceito por Jesus e os demais escritores bíblicos, ou então desconta-se a factualidade da narrativa da criação e, a exemplo das denominações liberais e eruditos críticos, mergulha-se num mar de relativismo. Considerando-se que aquilo que se faz com o primeiro capítulo da Bíblia determimna o que será feito com o restante dela; para a teologia adventista, a única opção viável é entender Gênesis 1 como Jesus e os apóstolos o !zeram. 76 P RÁXIS TEOLÓGICA | CEPLIB | V. 1 | P. 65-76