Elias Brasil de Souza1
GÊNESIS 1 E A TEOLOGIA ADVENTISTA2
RESUMO
O objetivo deste artigo é propor uma interpretação do relato bíblico da criação apresentado em Gênesis 1, partindo do pressuposto de que
a Bíblia merece con•ança em face de sua unidade e autoridade divina.
Dessa forma, analisa-se a intenção original do relato contido em Gênesis
1 e sua relevância teológica como também as implicações teológicas da
interpretação simbólica do relato bíblico da criação, tal como propõem
os teólogos de orientação liberal.
Palavras-chave: Gênesis. Criação. Teologia
ABSTRACT
The objective of this article is to propose an interpretation of the
biblical story of creation presented in Genesis 1, and takes the assumption that the Bible deserves con•dence because of its unity and divine authority. Therefore, we analyze the original intention presented in Genesis
1 and its theological relevance as well as the theological implications of
the symbolic interpretation of the biblical account of creation, such as
proposed by theologians of liberal orientation.
Keywords: Genesis. Creation. Theology
INTRODUÇÃO
Num esforço para alinhar o relato bíblico das origens com a compreensão cientí•ca da realidade, vários estudiosos têm proposto interpretações simbólicas, espiritualizantes ou metafóricas3 de Gênesis 1.4
Sugere-se, por exemplo, que os dias da criação não teriam sido dias literais de 24 horas, mas longos períodos de tempo ou dias de revelação.5
1
Ph.D Antigo Testamento, professor e coordenador do SALT/IAENE
Artigo já publicado na Revista Ministério, ano 2008, nov/dez, p. 17-20, 2008
3
GOODMAN, Marvin L. Non-literal interpretations of Genesis creation. Grace
Journal. v. 144, n. 1, p. 25-38, 1973.
4
Neste artigo, Gênesis 1 refere-se ao relato geral da criação que se estende até Gn
2:3. Note-se, ainda, que as implicações teológicas de Gn 1:1-2:3 são relevantes para a
criação especial do ser humano em Gn 2:4-28.
5
Tem sido proposto também que o relato da criação especial do ser humano em Gn
2:4-24 provém de outra fonte literária. Assim, atribui-se Gn 2:4-24 a uma suposta
2
GÊNESIS 1 E A TEOLOGIA ADVENTISTA
Tais posicionamentos exegéticos, em relação a Gênesis 1, têm exercido
certa in!uência no debate entre criação e evolução. Os estudiosos evangélicos que interpretam o texto bíblico de uma perspectiva históricocrítica - incluindo-se, aqui, católico romanos e protestantes liberais normalmente adotam uma postura "losó"ca denominada criacionismo
progressivo6 ou evolucionismo teísta. 7
Mais recentemente o assim chamado “desígnio inteligente”8 tem
recebido muita aceitação em alguns círculos. Tais tentativas eruditas
de lidar com os aspectos cientí"cos e teológicos das origens suscitam
questões relacionadas com a coerência e consistência da revelação bíblica como um todo.
Neste artigo, focalizam-se dois aspectos desta problemática mais
ampla, desde o ponto de vista de uma visão elevada das Escrituras.9 Em
primeiro lugar analisa-se o propósito do relato da criação em Gênesis,
para determinar se o mesmo deve ser interpretado literalmente, como
um relato factual, ou se pode ser entendido em termos simbólico-metafóricos, como sugerem alguns pesquisadores. Em seguida, são consideradas algumas implicações de uma interpretação não literal de Gênesis
1 para algumas doutrinas bíblicas tais como compreendidas pelos cristãos conservadores, em geral, e pelos adventistas em particular.
INTENÇÃO ORIGINAL E RELEVÂNCIA TEOLÓGICA DE
GÊNESIS 1
A discussão sobre a interpretação de Gênesis 1 toca em dois ponfonte J (X séc. a.C.), enquanto que Gn 1:1-2:3 pertenceria a uma hipotética fonte P
(V séc. a.C.).
6
Criacionismo progressivo é de"nido como a teoria segundo a qual Deus criou
começando de novo muitas vezes e em intervalos amplamente separados. TIDMORE,
Hollis D. Progressive creationism versus theistic evolution as a christian worldview.
Faith and Missions. v.17, n. 3, p 79, 2000.
7
“O evolucionismo teísta ensina que enquanto as várias espécies surgiram através de
um processo evolutivo, Deus supervisionou o desenvolvimento da vida” (GRENZ,
Stanley; GURETZKI, David; NORDLING, Cherith Fee. Pocket dictionary of theological terms. Downers Grove, IL: InterVarsity Press, 1999. p. 112.
8
Veja-se L. James Gibson, “Intelligent Design, Natural Selection, and God, Origins
25:2 (1998): 51–54.
9
Este artigo adota a de"nição de John T. Baldwin, segundo o qual “uma visão elevada
da Escritura aceita a unidade, con"abilidade e autoridade da Bíblia inteira como divinamente revelada, revelação proposicional. Nesta visão, por exemplo, presume-se que
os capítulos 1–11 de Gênesis são narrrativas factuais de eventos históricos concernentes à maneira pela qual Deus criou este mundo como um habitat sustentador de vida, à
entrada do pecado e morte no mundo, e à modi"cação catastró"ca do habitat original”
(Progressive Creation and biblical revelation: some theological implications. Origins.
v.18, n. 2, p. 53-65, 1991.
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tos fundamentais. O primeiro relaciona-se com a intenção primária do
autor bíblico. É preciso determinar, portanto, se os vários elementos
contidos em Gênesis 1 visam comunicar informações factuais sobre a
criação ou se intencionam apenas expressar uma verdade geral sobre
Deus, como Criador, em termos simbólicos ou metafóricos. O segundo ponto concerne a questões hermenêuticas e teológicas mais amplas
incidindo sobre como o relato deve ser interpretado, bem como suas
implicações teológicas.
Alguns eruditos defendem que o relato da criação em Gênesis
1não intenciona comunicar informações factuais sobre as origens, mas
expressa como parábola ou metáfora uma con!ssão de fé em Deus como
criador.10Sugere-se, assim, que o relato bíblico da criação, destituído de
qualquer preocupação cientí!ca, se preocupa apenas com o “quem” e
o “porquê” da criação; cabe então à ciência investigar o “como” da
criação. Na opinião do teólogo evangélico Clark Pinnock, o propósito
central do relato da criação “é ensinar certas verdades teológicas subjacentes ao concerto de Deus com Abraão e sua semente.”11
Há todavia notáveis eruditos críticos que a!rmam que Gênesis 1
originalmente também intencionou comunicar conhecimento factual ou
cientí!co na linguagem da época. Gerhard von Rad, erudito alemão, em
seu comentário do livro de Gênesis, sustenta que o autor bíblico intencionou que seu relato fosse entendido literalmente.12 Mais recentemente
Terence Fretheim, observou que os escritores bíblicos se utilizaram de
conhecimento do mundo natural que lhes era disponível em sua cultura.13
Fretheim ainda declarou que “apesar de alegações em contrário
(frequentmente no interesse de combater o fundamentalismo), estes
textos indicam que os pensadores de Israel perseguiram cuidadosamente questões a respeito do como da criação, e não apenas questões de
quem e por quê.”14 Note-se que tanto von Rad como Fretheim são eruditos histórico-críticos e que, portanto, não teriam qualquer problema
em aceitar uma posição evolucionista a respeito das origens. Porém, ao
se defrontarem com o relato da criação em Gênesis, honestamente reconhecem que o autor bíblico intencionou que seu relato fosse entendido
factualmente ou literalmente.
10
GIBSON, John C. L. Genesis: volume 1. The Daily study Bible Series. Louisville:
Westminster John Knox Press, 1981. 55ss.
11
PINNOCK, Clark H. Climbing out of a swamp: the evangelical struggle to understand the creation texts. Interpretation. v. 43, n. 2 p. 148, 1989.
12
RAD, Gerhard von. Genesis: a commentary. Philadelphia: Westminster Press, 1972.
p. 65.
13
FRETHEIM, Terence E. God and world in the Old Testament: a relational theology of creation. Abingdon Press, 2005. p. 27.
14
Ibid., 28.
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Um exame detalhado de alguns aspectos de Gênesis 1 indicam
a intenção de comunicar informação factual. Os dias da criação, por
exemplo, contêm várias evidências de que devem ser entendidos literalmente.15 Com base em argumentos lexicais, semânticos, gramaticais
e contextuais, Gerhard F. Hasel mencionou várias linhas de evidência
que corroboram uma interpretação literal dos dias da criação.16 O fato
de o lapso de tempo indicado por “dia” (yôm) em Gênesis 1 ser divido em tarde e manhã, juntamente com a quali!cação deste termo por
numeral - o que na Bíblia Hebraica indica um dia de vinte e quatro horas - implica que o autor bíblico inequivocamente intencionou que seu
relato fosse entendido literalmente. Cabe ressaltar também que textos
subsequentes do cânon bíblico presumem uma criação em dias literais
de vinte e quatro horas. As instruções quanto à guarda do sábado em Ex
20:9-11 e 31:15–17, por exemplo, interpretam os seis dias da criação
como sequenciais, cronológicos e literais.17
Argumentando contra a interpretação factual do relato da criação,
alguns estudiosos sugerem que a estrutura literária de Gênesis 1 revela
um propósito artístico que excluiria ou, na melhor da hipóteses, reduziria bastante o teor factual ou histórico do relato das origens.18 Tal posicionamento re"ete a tendência de alguns estudiosos de tratar a literatura
bíblica como !cção. Contudo, cabe notar que nem todos os críticos literários concordam com tal dicotomia.19 Meir Sternberg, por exemplo,
nota que “não há universais de formas históricas vs. !ccionais”20 e reconhece a “determinação da Bíblia em santi!car e compelir a crença
literal no passado.”21
15
Os dias da criação em Gn 1 têm sido intepretados por alguns estudiosos como
referindo-se a longas eras, períodos inde!nidos ou !gurados de tempo, ou ainda como
períodos de tempo intermitentes ao longo de um processo criativo/evolutivo de milhões de anos.
16
HASEL, Gerhard F. The ‘days’ of creation in Genesis 1: literal ‘days’ or !gurative
‘periods/epochs’ of time.” Origins. v. 21, n. 1, p. 5-38, 1994.
17
Ibid.
18
Hasel observou que a “‘rede!nição do gênero’ do relato da criação intenciona impedir o relato da criação de informar aos leitores modernos sobre o ‘como’ e ‘de que
maneira’ e quando Deus criou o mundo. Quer simplesmente a!rmar minimalisticamente que Deus é criador. E essa a!rmação signi!ca uma declaração teológica, não
cientí!ca, destituída de qualquer impacto sobre como o mundo e o universo vieram à
existência e posteriormente se desenvolveram” (Ibid.).
19
Ver OSBORNE, Grant R. The hermeneutical spiral: a comprehensive introduction to biblical interpretation. Rev. and expanded, 2nd ed. Downers Grove, IL: InterVarsity, 2006. p. 200, n. 1.
20
STERNBERG, Meir. The poetics of biblical narrative. Ed. Herbert Marks and
Robert Polzin, Indiana Studies in Biblical Literature. Blomington, IN: Indiana University Press, 1987. p. 30.
21
Ibid., 32.
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Feitas estas considerações, podem-se observar alguns aspectos
estruturais do relato da criação bem como suas implicações teológicas.
Percebe-se que o texto se move do que está mais distante para o que está
mais próximo e mais semelhante a Deus (Gn 1:26). Há um movimento
das coisas inanimadas para as animadas, da terra “sem forma e vazia”
para o descanso do sábado.22
Reforçando a beleza estrutural do texto, há duas tríades que formam os seis dias da criação. A primeira tríade revela que Deus realiza
uma obra de divisão e separação criando os vários espaços e regiões que
serão preenchidos na segunda tríade. Três painéis conectam as duas tríades de tal forma que os elementos criados no primeiro dia correspondem aos elementos do quarto dia, o segundo dia ao quinto, e o terceiro
ao sexto dia. Cada tríade começa com a luz e termina com uma dupla
criação.23 E os três painéis apresentam uma progressão espacial do céu
(primeiro e quarto dia) para as águas (segundo e quinto dia) e para a
terra (terceiro e sexto dia).
Finalmente, a semana da criação se conclui com o sétimo dia que,
não tendo outro dia que lhe corresponda, permance distinto dos demais
como dia santi!cado e abençoado para descanso.
TABELA A
Separação
Preenchimento
1. Luz e trevas
4. Luminares
2. Firmamento e águas
5. Aves e peixes
3. Terra e vegetação
6. Animais e seres humanos
7. Sábado
Note-se, ainda, que a regularidade e a simetria da estrutura literária de Gênesis 1 utiliza uma fórmula padrão que descreve a ação realizada em cada dia, conforme a seguinte tabela elaborada por William
David Reyburn and Euan McG. Fry.24
22
Pinnock: 149.
WHITELAW, Thomas. The pulpit commentary: Genesis. Ed. H. D. M. SpenceJones. Bellingham, WA: Logos Research Systems, 2004. p. 9.
24
A HANDBOOK on Genesis. New York: United Bible Societies, 1997. p. 26.
23
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TABELA B
Primeiro Dia (3–5)
Introdução 3
Comando 3
Execução 3
Avaliação 4
Ação 4
Designação 5
Tempo 5
Segundo Dia (6–8)
Introdução 6
Comando 6
Execução 7
Avaliação Ação 7
Designação 8
Tempo 8
Terceiro Dia (9–13)
Introdução 9
Comando 9, 11
Execução 9, 11
Avaliação 10, 12
Ação 12
Designação 10
Tempo 13
Quarto Dia (14-19)
Introdução 14
Comando 14, 15
Execução 15
Avaliação 19
Ação 16-18
Designação Tempo 19
Quinto Dia (20-23)
Introdução 20
Comando 20, 22
Execução Avaliação 21
Ação 22
Designação Tempo 23
Sexto Dia (24–31)
Introdução 24, 26
Comando 24, 26, 28, 29
Execução 24, 30
Avaliação 25, 31
Ação 25, 26, 27, 28, 30
Designação Tempo 31
Re!etindo sobre a simetria e a beleza poética da narrativa da criação, Richard Davidson declarou: “De acordo com Gênesis 1, a obra de
Deus representa nada menos do que um poema divino escrito na estrutura do espaço. Assim como Deus fala em poesia na Escritura, assim no
princípio Ele criou em beleza poética.”25
É interessante notar, no entanto, que a precisão estrutural do relato não segue uma predeterminção mecanicista.26
Em vários lugares surgem elementos imprevisíveis que violam
a lógica estrutural da narrativa. Em primeiro lugar, nota-se que o texto
narra dois tipos de ação. O primeiro tipo simplesmente declara: “e assim se fez,” ou então: “e houve luz.” O segundo tipo é mais extenso e
relata alguma ação especí"ca de Deus em fazer, criar ou separar. Este
25
DAVIDSON, Richard M. A love song for the sabbath. Washington: Review And
Herald Publishing Association, 1988. p. 26.
26
Os argumentos empregados nesta seção se fundamentam em MIDDLETON, J.
Richard. Creation founded in love: breaking rhetorical expectations in Genesis 1:12:3. Sacred text, secular times: the hebrew Bible in the modern world. Ed. Leonard
Jay Greenspooon and Bryan F. LeBeau, Studies in Jewish Civilization, 10. Omaha,
NE: Creighton University Press, 2000. p. 47-85.
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tipo ocorre em lugar do primeiro ou então simplesmente o complementa. Em segundo lugar, percebe-se que alguns elementos estão faltando
em alguns dias. Apenas o primeiro e o terceiro dia contêm todos os
elementos estruturais. O segundo dia não contém avaliação, o quarto
dia não contém designação. Execução e designação estão ausentes do
quinto dia, sendo que a última também falta ao sexto dia. Em terceiro
lugar, observando-se as duas tríades, nota-se que a distinção “separação
versus preenchimento” não é absoluta, pois os vegetais (preenchimento) pertencem à primeira, enquanto os luminares (separação) estão localizados na segunda. Em quarto lugar, percebe-se uma complexidade
adicional no fato de que o relato da criação em seis dias contém oito
obras criacionais. Analisando-se a estrutura descritiva de cada uma,
chega-se ao seguinte quadro elaborado por Middleton:27
27
Middleton, 68.
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II
Firmamento
III
Terra
IV
Vegetais
V
Luminares
VI
Aves e
Peixes
VII
Animais
Terrestres
VIII
Humanidade
1
1
1
1
1
1
1
1
2
4
2
2
2
4
2
4
3
2
3
4a
4b
3
4
2x
4
x
x
3
3
x
3
3x
1 = Comando (“e haja . . .)
2 = Execução (“e houve luz,” “e assim se fez”)
3 = Avaliação (“e viu Deus que . . . era boa/bom)
4 = Ação (“e fez separação entre a luz e as trevas”)
x = Elemento ausente ou deslocado
a, b = variação interna dentro de um elemento do padrão
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I
Luz
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Observam-se várias irregularidades nesta estrutura. Enquanto a
ordem dos elementos está invertida em alguns casos, em outros está
ausente ou modi!cada. O relato da quarta obra não registra uma ação
de Deus, e sim de uma criatura, a Terra. No nível gramatical, também
aparecem algumas variações não predizíveis. Assim, o primeiro dia da
criação é quali!cado por um numeral cardinal, ao contrário dos outros
seis dias. O sexto e sétimo dias estão acompanhados de artigo (o sexto
dia, o sétimo dia). Ademais, a distribuição dos verbos bara’ e ’asah no
relato parece ser aleatória.
Assim, à medida que se analisa o relato da criação em Gn 1:1-2:3,
percebe-se que uma série de complexidades vai surgindo. Os vários
elementos que formam a estrutura narrativa, embora predizíveis em um
primeiro nível de leitura, tornam-se mais e mais complexos em seus
detalhes, apresentando anomalias não predizíveis. Um exame atento do
relato em seus detalhes revela que o universo da predizibilidade newtoniana, aparente na superfície da narrativa, cede lugar a uma percepção
mais em consonância com o princípio da indeterminação postulado pela
física moderna. Assim, o relato da criação em Gênesis 1 parece re"etir
um universo dinâmico em consonância com alguns postulados da nova
física.28
O relato formal e estilizado na superfície torna-se complexo e
impredizível nos detalhes, em uma combinação que de forma alguma
parece depor contra sua factualidade. Ao contrário, longe de serem contraditórias, as dimensões estéticas e as complexidades de Gênesis 1 se
combinam para reforçar e enriquecer o relato da criação, sugerindo a
factualidade e singularidade da obra criacional de Deus. A dimensão
estética provê percepções teológicas e artísticas da sinfonia cósmica da
criação e do caráter do Criador. Ao mesmo tempo, as complexidades
do relato sugerem sua factualidade ou historicidade e fundamentam as
percepções estéticas e teológicas no chão da realidade. Um relato !ccional não teria legitimidade para nos informar de onde viemos, nem
autoridade para determinar que rumo devemos seguir e careceria de
credibilidade para revelar aonde vamos.
IMPLICAÇÕES TEOLÓGICAS DA INTERPRETAÇÃO
SIMBÓLICA
Para extrair as implicações teológicas de uma interpretação simbólica de Gênesis 1 para a teologia adventista, escolheuse como amostragem os seguintes tópicos ou temas doutrinários:
28
BROWN, William E. Quantum theology: christianity and the new physics. Journal of the evangelical Theological Society. v.33, p. 477-487, 1990.
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matrimônio, sábado, salvação e escatologia. Sugere-se que as conclusões a respeito destes tópicos se aplicam a outros aspectos da teologia
adventista, inclusive às vinte e oito crenças fundamentais.
MATRIMÔNIO. A visão bíblico-cristã de uma união matrimonial
monogâmica, heterossexual, permanente e exclusiva se apoia na historicidade de Gn 1 e 2. Em confronto com os fariseus, Jesus declarou:
“Por causa da dureza do vosso coração é que Moisés vos permitiu repudiar vossa mulher; entretanto, não foi assim desde o princípio” (Mt
19:8). Ao fundamentar seu argumento de que a permanência da união
matrimonial remontava ao “princípio,” Jesus remete seus interlocutores
ao relato das origens e ao mesmo tempo presume a con!abilidade histórica do mesmo. Uma interpretação não factual e histórica de Gn 1 (e 2)
destrói o argumento de Jesus e abre as portas para uma visão relativista
do matrimônio.29
SÁBADO. O mandamento do sábado ancora-se na realidade de uma
criação em sete dias literais. Renunciando-se uma interpretação factual
de Gn 2:1-3, desaparece a motivação para guardar o sábado expressa
em Ex 20:9-11. Como a!rmou Richard Davidson: “A criação provê o
supremo fundamento para a observância universal e eterna do sábado
em nosso planeta. O sábado é um memorial da criação e o seu signi!cado está ligado à criação.”30
Todavia, não é somente a legitimidade do quarto mandamento
que deriva da ordem da criação, os demais mandamentos da lei de Deus
com suas demandas morais e éticas se fundamentam no fato de que
Deus é o Criador e de que o ser humano foi criado à sua imagem e semelhança. Se o mundo veio à existência mediante um processo evolutivo que levou milhões ou bilhões de anos, desmorona-se o fundamento
bíblico para a santi!cação do sétimo dia da semana. Assim, não seria
mais possível recorrer a Gn 2:1-3 para sustentar a importância do sábado com base na ordem da criação. O sábado e os demais mandamentos
da lei de Deus tornam-se mero produto de convenções religiosas e sociais, apoiadas não mais pela autoridade da revelação divina, mas pela
tradição e conveniências humanas.
SALVAÇÃO. A doutrina bíblica da salvação pressupõe a queda do
ser humano em pecado e a consequente entrada da morte nas esferas
da criação. O plano da salvação consiste na obra de Deus em restaurar
e redimir os seres humanos e a natureza à sua condição original, culminando na erradicação da morte. Tal visão do plano salví!co de Deus
é consistente com o relato de Gênesis, que retrata o mundo, conforme
saiu das mãos do criador, como isento de morte, tanto de animais como
29
30
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Baldwin,53-65.
Davidson, 46.
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de seres humanos. Note-se que a alimentação provida aos animais e
seres humanos era vegetariana, indicando, com isso, que até mesmo o
reino animal estava livre da morte. A intenção divina, portanto, revelada nas Escrituras é a restauração desta condição original.
Em contraste, o criacionismo progressivo e o evolucionismo teísta adotam a pressuposição de que a morte - de criaturas inferiores ou
seres humanos - é parte do próprio processo mediante o qual Deus, ou
uma inteligência superior, trouxe o mundo à existência. Não é difícil
notar o impacto desta visão sobre a doutrina bíblica da salvação e da
redenção. Se a morte é o instrumento para os processos evolutivos empregados por Deus, é difícil entender como Paulo pôde declarar que a
morte é o último inimigo a ser destruído (1 Co 15:26). Ainda, como disse Baldwin, “se a morte existiu antes de Adão, então Cristo, em última
instância, não redime ninguém de um destino que não era um aspecto
da vida antes do pecado de Adão.”31
ESCATOLOGIA. A escatologia retratada nas Escrituras sustenta que
Jesus vai voltar em breve para buscar os salvos e Deus vai recriar esta
Terra para ser a morada eterna dos remidos em uma condição em que
pecado e morte não mais existirão. A primeira criação fornece a linguagem e a base teológica para a certeza de uma nova criação, como
indicado pelos paralelos entre, por exemplo, Gn 1-2 e Ap 21-22. Diante disto, se poderia inquirir como uma visão evolucionista explicaria
a nova criação. Se foram necessários bilhões de anos para produzir a
primeira criação, a qual segundo alguns, ainda está em evolução, de
quantos bilhões de anos Deus vai necessitar para criar os novos céus e
a nova terra? É difícil imaginar como a segunda vinda de Jesus poderia
se enquadrar dentro de uma cosmovisão evolucionista.
CONCLUSÕES E IMPLICAÇÕES
Com base nas considerações acima, este trabalho argumenta que
o autor bíblico intencionou que seu relato fosse entendido como uma
descrição real, factual e histórica das origens, no que foi seguido pelos
demais escritores bíblicos, os quais, quando citaram ou aludiram ao
relato da criação, presumiram uma interpretação literal/factual do mesmo. Sendo assim, interpretações que não sejam histórico-factuais dos
dois primeiros capítulos da Bíblia exigiriam, por questão de consistência, uma reinterpretação de doutrinas fundamentais do cristianismo e,
por conseguinte, da IASD. Como exempli!cado acima, o matrimônio,
o sábado, a salvação e a escatologia perderiam totalmente legitimidade
bíblica.
31
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Do ponto de vista deste artigo, há somente duas alternativas mutuamente excludentes: Ou se aceita o relato da criação de acordo com sua
intenção original, como revelação factual, história de algo que ocorreu
como está escrito, assim como aceito por Jesus e os demais escritores
bíblicos, ou então desconta-se a factualidade da narrativa da criação e,
a exemplo das denominações liberais e eruditos críticos, mergulha-se
num mar de relativismo. Considerando-se que aquilo que se faz com o
primeiro capítulo da Bíblia determimna o que será feito com o restante
dela; para a teologia adventista, a única opção viável é entender Gênesis
1 como Jesus e os apóstolos o !zeram.
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