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Ciência: lugar da crença e da imaginação?

Resumo: A Ciência avança continuamente e tem como ponto de partida as adversidades que emergem continuamente. A partir destas, são elaboradas pelos cientistas teorias que visam transpor tais obstáculos. Os cientistas, para construir novas teorias e novos conhecimentos, utilizam-se de elementos que lhe são inerentes, e, diante disso, o presente artigo aborda a crença e a imaginação, levantando a hipótese de que estas podem ser entendidas como partícipes da elaboração de tal processo. Nesse contexto, questiona-se: é viável para a Ciência, diante da incessante demanda de elaboração de novas teorias científicas, bem como de revisão de teorias já descobertas, utilizar-se concomitantemente da crença e da imaginação, havendo lugar para ambas? Buscando responder à referida indagação, analisa-se a importância do critério da refutação, identificam-se os tipos de crença e explana-se sobre as modalidades da imaginação, com enfoque na imaginação científica e como esta se coaduna com a Ciência. Por fim, entende-se que há, na Ciência, um lugar onde a crença e a imaginação devem fazer morada, sendo não só plenamente possível tal combinação como também necessária ao desvendar dos imbróglios que se apresentam à Ciência, pois ambas constituem pilares em que se apoiam os cientistas. Abstract: Science advances continually and has as its starting point the adversities that emerge continually. Theories that aim to overcome such obstacles are elaborated by the scientists. In order to construct new theories and new scientific knowledge, scientists use their inherent elements, and in this way the present article approaches belief and imagination, raising the hypothesis that they can be understood as participants in the elaboration of such a process. In this context, it is questionable: is it feasible for Science, in face of the incessant demand for the development of new scientific theories, as well as for the revision of theories already discovered, the concomitantly use of belief and imagination, having room for both? Seeking to answer this question, the importance of the refutation criterion is analyzed, the types of belief are identified and the modalities of the imagination are explored, with a focus on the scientific imagination and how it fits with Science. Finally, it is understood that there is in Science a place where belief and imagination must dwell, not only being fully possible but also necessary to unravel the imbroglios presented to Science, since both are pillars in which scientists rely on.

Ciência: lugar da crença e da imaginação? BIANCA DE SOUZA SALDANHA* Resumo: A Ciência avança continuamente e tem como ponto de partida as adversidades que emergem continuamente. A partir destas, são elaboradas pelos cientistas teorias que visam transpor tais obstáculos. Os cientistas, para construir novas teorias e novos conhecimentos, utilizam-se de elementos que lhe são inerentes, e, diante disso, o presente artigo aborda a crença e a imaginação, levantando a hipótese de que estas podem ser entendidas como partícipes da elaboração de tal processo. Nesse contexto, questiona-se: é viável para a Ciência, diante da incessante demanda de elaboração de novas teorias científicas, bem como de revisão de teorias já descobertas, utilizar-se concomitantemente da crença e da imaginação, havendo lugar para ambas? Buscando responder à referida indagação, analisa-se a importância do critério da refutação, identificam-se os tipos de crença e explana-se sobre as modalidades da imaginação, com enfoque na imaginação científica e como esta se coaduna com a Ciência. Por fim, entende-se que há, na Ciência, um lugar onde a crença e a imaginação devem fazer morada, sendo não só plenamente possível tal combinação como também necessária ao desvendar dos imbróglios que se apresentam à Ciência, pois ambas constituem pilares em que se apoiam os cientistas. Palavras-chave: Ciência moderna; Refutação; Teoria científica. Science: place of belief and imagination? Abstract: Science advances continually and has as its starting point the adversities that emerge continually. Theories that aim to overcome such obstacles are elaborated by the scientists. In order to construct new theories and new scientific knowledge, scientists use their inherent elements, and in this way the present article approaches belief and imagination, raising the hypothesis that they can be understood as participants in the elaboration of such a process. In this context, it is questionable: is it feasible for Science, in face of the incessant demand for the development of new scientific theories, as well as for the revision of theories already discovered, the concomitantly use of belief and imagination, having room for both? Seeking to answer this question, the importance of the refutation criterion is analyzed, the types of belief are identified and the modalities of the imagination are explored, with a focus on the scientific imagination and how it fits with Science. Finally, it is understood that there is in Science a place where belief and imagination must dwell, not only being fully possible but also necessary to unravel the imbroglios presented to Science, since both are pillars in which scientists rely on. BIANCA DE SOUZA SALDANHA é Mestra em Direito Constitucional pela Universidade de Fortaleza (UNIFOR). * Página 86 Key words: Modern Science; Refutation; Scientific theory. Salvador Dali. Menino geopolítico observando o nascimento do Novo Homem, de 1943. Fonte: Internet, divulgação. Os cientistas, para construir teorias inéditas e novos conhecimentos científicos, utilizam-se de elementos que lhe são inerentes, e, diante disso, o presente estudo se debruça sobre a crença e a imaginação, levantando a hipótese de que estas podem ser entendidas como partícipes da elaboração de tal processo. Nesse contexto, propõe-se o seguinte questionamento: é viável para a Ciência, diante da incessante demanda de elaboração de novas teorias científicas, bem como de revisão de teorias já descobertas, utilizar-se A justificativa para essa pesquisa, de clara veia epistemológica, decorre da necessidade de instrução e esclarecimento sobre a (im)possibilidade da Ciência de conciliar a efetiva convivência entre a crença e a imaginação. Este estudo descritivo-analítico, quanto aos aspectos metodológicos, identificase como bibliográfico, sendo desenvolvido por meio de referências teóricas embasadas em livros, artigos científicos, publicações especializadas, quando identificado que abordam direta ou indiretamente o tema em análise; quanto à utilização e à abordagem dos resultados é puro, por se tratar de estudo que visa a ampliação dos conhecimentos de forma a conduzir a um novo posicionamento acerca do 87 A Ciência avança continuamente e tem como ponto de partida as adversidades que emergem a cada dia incessantemente. A partir destas, são elaboradas pelos cientistas, teorias que visam transpor tais obstáculos. concomitantemente da crença e da imaginação, havendo lugar para ambas? Página Introdução assunto, e também qualitativa, posto que buscará o entendimento dos fenômenos da realidade epistemológica. No tocante aos objetivos, a pesquisa é descritiva, e também exploratória, com o intuito de promover o refinamento das ideias por meio das informações acrescidas sobre o tema supracitado. pode atuar quando encontramos provas mais adequadas. Mas é preciso notar que a dúvida e a correção são compatíveis com os cânones do método científico, de tal modo que a correção é o seu elo de continuidade. (COHEN, 1949 apud ABBAGNANO, 2007, p. 160) (grifo do autor) Nesse contexto, pretende-se analisar a importância para a Ciência do critério da refutação, identificar os tipos de crença e como esta se liga à Ciência e, por fim, compreender as modalidades da imaginação, com enfoque na imaginação científica e como esta se coaduna com a Ciência. A concepção supracitada de Ciência concebe a autocorregibilidade como garantia única da validade da Ciência, e por essa razão é tida como uma concepção mais crítica ou menos dogmática, sendo significativa por desistir, como já dito, das certezas incontestáveis e por estimular o desenvolvimento de novas interpretações através das ferramentas disponibilizadas pela Ciência. (ABBAGNANO, 2007, p. 159) metamorfose Etimologicamente Ciência vem do latim scientia, e significa saber, conhecimento. Ao buscarmos uma definição de Ciência, deparamo-nos com plúrimas definições, de todas as ordens e tipos, proferidas por uma gama de autores de diversas áreas do conhecimento, o que nos revela uma parcial confusão estabelecida na comunidade que pesquisa sobre o tema desde os pré-socráticos. Para o presente estudo, consideramos a definição de Nicola Abbagnano (2007, p. 157) que a conceitua como “Conhecimento que inclua, em qualquer forma ou medida, uma garantia da própria validade.” E o mesmo complementa que esta definição é plenamente aplicável “a Ciência moderna, que não tem pretensões ao absoluto.” Podemos definir a Ciência como um Sistema autocorretivo. (...) A Ciência convida à dúvida. Pode desenvolver-se ou progredir não só porque é fragmentária, mas também porque nenhuma proposição sua é, em si mesma, absolutamente certa, e assim o processo de correção Há que se considerar, contudo, que outrora já foi admitido que para que, se chegasse ao patamar de Ciência, uma proposição haveria de ser completamente indispensável e indubitavelmente correta (NAGEL, 1975, p. 16). Corroborando com tal premissa, tem-se que, até os dias atuais, o senso comum ainda associa a Ciência à ideia de um conhecimento que, por ter sido comprovado (por meio de fórmulas, números, experimentos etc.), tornou-se uma certeza incontestável e, por essa razão, goza de confiabilidade. (SILVA, 2009, p. 185) Ocorre que não existe esta Ciência que, em todos os seus ramos, alcance verdadeiramente a auto-evidência e a evolução da investigação. Assim, tal ideal clássico da Ciência sucumbiu por ser tido como uma concepção desprovida de sustentação, dando espaço à ascendente Ciência moderna que prevalece até os dias atuais (NAGEL, 1975, p. 17). “O cientista contemporâneo sabe bem que nada há de definitivo e indiscutível que tenha 88 como Página A Ciência constante sido assentado por homens.” (MORAIS, 1988, p. 24) científicas ou não científicas. (POPPER, 2008, p. 7) A esse respeito, explana Karl Popper (2001, p. 280) que “O velho ideal científico da episteme, do conhecimento absolutamente certo e demonstrável, revelou-se um mito. A exigência de objetividade científica torna inevitável que qualquer asserção científica seja sempre provisória.” (grifo do autor). Restando pacífico que “nenhuma teoria é final ou completa, visto que novas situações extremas (ou imprevistas) requerem novas ideias que, com frequência, levam a novas teorias.” (GLEISER, 2014, p. 102) Nesse contexto, Arnaldo Vasconcelos (2000, p. 32), que concebe a Ciência como atividade e a ramifica em quatro etapas (1 - etapa de qualificação e reunião de dados; 2 - etapa de construção de teorias; 3 - etapa de refutação; 4 - etapa de desfecho, com consequente concepção de normas ou leis), salienta que a etapa da refutação, etapa 3, é a mais extensa. Há de ser esta a mais longa, pois é nela que nascem os conflitos, as observações, as falibilidades, as soluções e nela são buscadas as certezas. Karl Popper (2008, p. 4 - 5) traz à tona a imprescindibilidade da refutação, e considera que é a refutabilidade que confere a uma teoria seu status científico, logo “a teoria que não for refutada por qualquer acontecimento concebível não é científica”. Nesse mesmo sentido, Nicola Abbagnano (2007, p. 988) depreende a refutação como O viés de refutabilidade da Ciência não mina, contudo, a confiabilidade da Ciência, como elucida Ernst Nagel (1975, p. 18): A Ciência, logo, é composta de infinitas teorias e estas são simples conjecturas 89 A refutação foi, desse modo, o parâmetro adotado por Karl Popper por ser capaz de sanar o problema da demarcação. O problema da demarcação consistia no traçar de linhas entre o sistema de afirmações das Ciências empíricas e todas as demais afirmações (de caráter metafísico, religioso ou pseudocientífico) e que, passando pelo crivo da refutação, tais assertivas ou sistema de assertivas seriam classificados como teorias Na contramão da teoria psicológica da indução de Hume, que se baseava nas regularidades advindas da passiva espera de repetições, Karl Popper alavanca a concepção de Ciência como conjectura, que se perfaz com uma postura ativa, buscando identificar similaridades, bem como interpretá-las de modo a construir teorias científicas compostas não mais de observações, e sim de ousadas invenções – conjecturas, estando estas de todo suscetíveis à eliminação na hipótese de não adequabilidade (POPPER, 2008, p. 14). “O homem não pode conhecer, mas só conjecturar.” (POPPER, 2008, p. 14) Página Método adotado por Sócrates, que consiste em evidenciar a contradição à qual leva a asserção do interlocutor, permitindo, pois, isentar o próprio interlocutor da presunção de saber. Platão sempre considerou esse procedimento como a propedêutica indispensável da investigação científica. (...) embora sejam passíveis de correção, as descobertas científicas, o conteúdo da Ciência não é um fluxo instável de opiniões, mas, ao contrário, a Ciência pode alcançar êxito no seu propósito de fornecer explicações dignas de confiança, bem fundadas e sistemáticas para numerosos fenômenos. Do latim credere, a crença, no seu sentido mais amplo, significa a postura atitudinal de quem reconhece uma proposição como verdadeira, sendo abrangidas as crenças advindas das convicções científicas bem como das religiosas. (ABBAGNANO, 2007, p. 254) Platão chamou de crença a forma ou o grau de conhecimento que tem por objeto as coisas sensíveis, pois que ela contém uma adesão à realidade dessas coisas, ao contrário da conjectura, que, tendo por objeto as imagens, as sombras etc., não contém essa adesão. (...) Aristóteles julga que a crença não é eliminável da opinião. Não é possível, diz ele, que quem tenha uma opinião não creia no que pensa. (ABBAGNANO, 2007, p. 254) (grifo do autor) David Hume (2004, p. 82 - 83), repleto de ceticismo, por sua vez, inaugura uma concepção de crença no sentido de identificar que “crença nada mais é que uma concepção de um objeto mais vívida, vigorosa, enérgica, firme e constante do que jamais seria possível obter apenas pela imaginação”, ou seja, é um “ato mental que torna as realidades – ou o que se considera como tais - mais presentes para nós do que as ficções, que lhes dão um peso maior junto ao pensamento e uma influência superior sobre as paixões e a imaginação”, e prossegue “crença é algo sentido pela mente que distingue entre as ideias provindas do julgamento e as ficções da imaginação. Ela lhes dá mais peso e influência, faz que se mostrem Não se pode negar que previamente a quaisquer pesquisas científicas os homens faziam uso de conhecimentos razoavelmente aceitáveis sobre inúmeros elementos que os circundavam (ambiente biológico, físico e social), provenientes de observação e práticas. Até os dias atuais, inclusive, uma ampla gama de informações que a sociedade utiliza para a orientação normal de sua rotina não foi trazida pela investigação científica sistemática, e sim pelo conhecimento derivado do bom senso. (NAGEL, 1975, p. 15) Ocorre que as crenças baseadas no bom senso, por sua vez, trazem consigo um lastro de imprecisão, já que, em grande parte, são “miopemente utilitaristas”, tendo seu foco nos interesses práticos imediatos e na aplicabilidade rotineira, como afirma Ernst Nagel (1975, p. 1516): (...) as crenças baseadas no bom senso desprezam possibilidades outras para enfrentar problemas concretos, mantendo vigência por força da autoridade conferida por um costume que não se critica e que, portanto, não pode ser prontamente modificado de modo a tornar as crenças guias seguros para enfrentar situações novas. Assim, tem-se como certo que as pesquisas científicas em sua totalidade partem de crenças, porém cabe à Ciência, utilizando-se das ferramentas que lhe sãos disponíveis, ir além e convergir a descobertas e resultados que sejam desprendidos das amarras deficientes do senso comum. (NAGEL, 1975, p. 16) A crença religiosa é a crença originária da religião, segundo a qual quem crê acata o que é elaborado e estabelecido 90 A crença mais importantes, impõe-nas à consideração da mente e torna-as o princípio diretor de nossas ações.” Página (ou hipóteses) que são dispostas pelos cientistas em conformidade com o seu tempo e que ofertam o caráter contínuo de submissão a novas descobertas, podendo acarretar a derrubada de antigas certezas. Karl Popper (2008, p. 17) enuncia a existência da “crença vigorosa” e da “crença mais fraca” e traz à tona o entendimento de como tais crenças desembocam na dimensão atitudinal. Assim, a crença vigorosa nos leva a guardar fidelidade às primeiras impressões perfazendo a atitude dogmática em que somos fiéis a nossas expectativas mesmo quando elas são inadequadas; a crença mais fraca, por sua vez, admite dúvidas e exige testes com disponibilidade de alteração de padrões, construindo uma atitude crítica, que tem por tradição livres debates sobre as teorias para detectar seus pontos fracos com o intento de aperfeiçoá-las, engendrando uma atitude razoável e racional. A crença vigorosa direciona o cientista por meio do pensamento dogmático, influenciando-o a realizar testes voltados a impor regularidades, distanciando-se da refutabilidade; em contrapartida, a crença mais fraca, que conduz ao pensamento crítico, motiva o cientista à prudente execução de testes, perpassando pela refutabilidade, Com efeito, a atitude dogmática está claramente relacionada com a tendência para verificar nossas leis e esquemas, buscando aplicá-los e confirmá-los sempre, a ponto de afastar as refutações, enquanto a atitude crítica é feita de disposição para modificá-los a inclinação no sentido de testá-los, refutando-os se isso for possível. O que sugere a identificação da atividade crítica com a atitude científica e a atitude dogmática com a que descrevi qualificando-a de pseudociência. A atitude crítica e a atitude dogmática, contudo, não são de todo antagônicas, e sim a primeira sobrepõe à segunda, pois “a crítica deve dirigir-se contra as crenças prevalecentes, que exercem grande influência e que necessitam de uma visão crítica – em outras palavras, ela se dirige contra as crenças dogmáticas”, posto que “a atitude crítica requer – como ‘matéria prima’, por assim dizer – teorias ou crenças aceitas mais ou menos dogmaticamente.” (POPPER, 2008, p. 18-19) As crenças podem, ainda, ser obstáculos epistemológicos, no sentido de crenças já postas figurarem como atravancos a novas buscas ou entendimentos sobre determinada questão. É o caso de cientistas que elevam suas descobertas a um patamar tal que não admitem novas proposituras. Estes, vaidosos com suas “eurekas”, e seguramente agarrados aos anos de pesquisa que vivenciaram para chegar até elas, não aceitam novas teorias sobre a matéria e permanecem apegados às suas crenças, resistindo a um movimento que é natural e pertencente à Ciência. A ciência não se constitui um aparato de busca de verdade; antes disso, ela amplia nossa capacidade de reconhecer o falso. (...) Isso situa 91 Concretamente, o pesquisador é um sujeito tão condicionado por crenças e emoções quanto qualquer ser humano, frequentemente forçado a seguir seus próprios instintos e correr o risco de amargar demasiadas decepções. (CUSTÓDIO; REZENDE JUNIOR, 2003, p. 1) visando à descoberta científica, como bem clarifica Karl Popper (2008, p. 18): Página por esta como verdade indiscutível e tem fé no que está posto, não necessitando de prova empírica ou explicação racional. A definição da crença religiosa foi minimamente tratada no presente trabalho, pois esse tipo de crença não é o foco do mesmo, porém é inimaginável tratar sobre crença e Ciência e se abster dos óbices colocados pela crença religiosa, pela fé e pelos dogmas à pesquisa científica. A imaginação científica O homem é movido pelas ideias. E essas ideias nascem no plano metafísico, local onde a imaginação é o combustível para alçar voos mais altos. A imaginação é elemento atemporal e por isso tem o condão de viajar pelo passado e pelo futuro, desembocando na construção de teias de informações mescladas de novas ideias, expectativas para o futuro, experiências passadas e anseios presentes. A imaginação pode ser entendida como o encadeamento mental, proveniente do instinto natural criador, pelo qual são alcançadas as imagens, chegando a tocar o fantástico. Sem as amarras físicas, a imaginação se utiliza em livre demanda da intuição e do conhecimento inconsciente do homem, ferramentas estas que ativam a criatividade e possibilitam plasmar, no campo das ideias, invenções com uma ilimitada riqueza de detalhes. A esse A imaginação tem o comando sobre todas as suas ideias e pode juntálas, misturá-las e modificá-las de todas as maneiras possíveis. Pode conceber objetos fictícios com todas as circunstâncias de tempo e lugar. Pode dispô-los, por assim dizer, diante de nossos olhos em suas verdadeiras cores, exatamente como poderiam ter existido. A imaginação permite ao homem a criação e recriação do que o cerca, de modo que os empecilhos que surgem rotineiramente em sua vida constituem um terreno fértil para a imaginação, como bem coloca Albert Einstein (1981, p. 12): Todas as ações e as imaginações humanas têm em vista satisfazer as necessidades dos homens e trazer lenitivo às suas dores. Recusar essa evidência é não compreender a vida do espírito e seu progresso. Porque experimentar e desejar constituem impulsos primários do ser antes mesmo de considerar a majestosa criação desejada. E é a partir dessa demanda de mudar os hábitos que lhe incomodam e transformar os objetos que lhe cercam e carecem de melhoria, que a “a imaginação do homem é naturalmente atraída para o sublime”, acessando os campos do extraordinário e do remoto, rompendo quaisquer barreiras espaciais e temporais. (HUME, 2004, p. 218) Immanuel Kant (2001, p. 62), define a imaginação como “a faculdade de representar na intuição um objeto embora não esteja presente”, e pondera que “a imaginação pertence à sensibilidade em virtude desta condição subjetiva” que lhe é intrínseca. De modo que, em se tratando de uma “síntese transcendental”, pode ser classificada como imaginação 92 Quando um cientista acredita em uma teoria, a mesma ganha sua convicção, e, por conseguinte, desencadeia o investimento de tempo e de pesquisa do mesmo, resultando no conhecimento científico (teorias científicas). Tal conhecimento científico está temporariamente posto e deve ser submetido a sucessivas refutações, sendo claro ao cientista que suas crenças não podem ser impedimentos para o alavancar de suas pesquisas e que estas podem convergir até para sua não aceitação, situação em que devem se iniciar novos estudos e pesquisas. respeito, David Hume (2004, p. 82) indica que Página a ciência como uma forma especial de empregar a inteligência, de tomada de consciência de quão enganosas podem ser nossas convicções quando não submetidas constantemente à prova, ao confronto do mundo exterior. (RUIZ, 2005, p. 325) A imaginação passiva não precisa da ajuda da nossa vontade, quer no sono, quer na vigília. Malgrado nós próprios, pinta o que os olhos viram, os ouvidos ouviram, o tato tocou. Acrescenta ou diminui. É um sentido interior, que age necessariamente e por isso é tão frequente dizer-se: “Não se é o senhor de sua imaginação.” (...) A imaginação ativa é aquela que une a reflexão, a combinação e a memória. Aproxima vários objetos distantes, separa aqueles que se misturam, compõe e modifica. (VOLTARIE, 1973, p. 225) É fundamental, na presente pesquisa, voltar olhares para a imaginação científica e, para tal, há que se esclarecer que, como bem elaborado por Marcia Pereira (2009, p. 150), não é o caso de “distinguir um tipo específico de imaginação que atue na ciência” e sim, de ir além, e “admitir a ciência Albert Einstein se destaca no estudo da imaginação científica porque apresenta, até para os dias atuais, um olhar inovador sobre a mesma. Ele entende que é plenamente possível conciliar, no trabalho de criação da Ciência, a dimensão da imaginação com a dimensão da racionalidade, de modo a dispor a imaginação a serviço da criação de ideias novas. (GURGEL; PIETROCOLA, 2001, p. 103) Partindo da premissa de que a Ciência é um modo de pensar que tem como base o senso comum, mas que vai além dele, pois refina tal pensar acessando uma realidade desconhecida, Albert Einstein (1994, p. 65 - 66), aponta a intuição como o agente capaz de interligar o mundo sensorial (complexos de experiências sensoriais) e o mundo racional (conceitos básicos do pensamento comum). Mesmo ciente de que a intuição não seja concebida como categoria científica, o mesmo entende que tal conexão não se presta a uma determinação cientificamente lógica. No campo da imaginação científica, Albert Einstein (1994, p. 68) realça, ainda, sua substancial função de resolver charadas, de maneira que o cientista, debruçado sobre uma questão e com o ímpeto de solucioná-la, adentra a “multiplicidade de conceitos e posições próximos da experiência com teoremas, logicamente deduzidos e pertencentes a uma base”, perpassa pela construção subjetiva do conhecimento e finda em uma escolha livre para propor a resposta almejada. Marcelo Gleiser (2014, p. 48) considera que todo o conhecimento científico e tecnológico que se acumula na mente 93 Acerca do tema, Voltaire (1973, p. 224) explicita que a imaginação é “o poder que tem cada ser sensível para representar as coisas sensíveis no seu cérebro. Depende da memória. Veem-se as coisas pelos sentidos, a memória as retém e a imaginação as compõe”, e divide-as em imaginação passiva, que equivale à simples fixação da percepção das coisas e em imaginação ativa, que, de maneira transcendental, “arranja as imagens recebidas, compondo-as de mil maneiras”. como um dos modos interpretativos possíveis, onde a imaginação humana atua ativamente”. (PEREIRA, 2009, p. 150) Página produtora, que é “o poder de representação originária do objeto”, precedendo a experiência, edificando uma ponte entre a razão e os sentidos e interligando informações, estruturas e imagens e como imaginação reprodutora, que “traz de volta ao espírito uma intuição empírica anterior”, concernindo na habilidade de evidenciar imagens mentais na inexistência da coisa. humana constitui uma ilha, que ele denomina de “Ilha do Conhecimento”. Essa ilha, por sua vez, cresce a cada nova descoberta sobre o mundo, de maneira que o cientista pode, por meio da sua embarcação (imaginação) sair do conhecido e atravessar a fronteira do desconhecido, como segue: Uma ciência saudável combina humildade com esperança: humildade para aceitar a extensão de nossa ignorância; e esperança de que novas descobertas irão expandir a Ilha do Conhecimento. Porém, quando nos encontramos nas margens da Ilha e não podemos contar com dados experimentais, a única estratégia à nossa disposição é a especulação bem fundamentada. Sem ela, sem o uso da imaginação, a ciência não pode avançar. (GLEISER, 2014, p. 135) Por fim, ratificando a imensurável importância da imaginação para a Ciência, Marilena Chauí (2000:168 169), coloca que “graças à imaginação, abre-se para nós o tempo futuro e o campo dos possíveis”, uma vez que esta tem “uma força prospectiva, isto é, consegue inventar o futuro”, convergindo para a “invenção de uma teoria científica ou de um objeto técnico”. “Todos os grandes avanços da Ciência nasceram de uma nova audácia da imaginação.” (DEWEY, 1929, p. 294) (tradução nossa) se essas certezas estivessem intocadas e estagnadas. A crença do cientista é imprescindível para a sua tomada de decisão, sendo o primeiro passo para o início da pesquisa e combustível para a investigação da veracidade, porém esta não pode, ao obter uma hipótese ou teoria, se esquivar da atitude crítica que rondará suas certezas, sendo necessário dos cientistas uma postura reflexiva e o abandono da postura dogmática, para só assim contemplar o critério de cientificidade, em que nada é indiscutível, devendo ser refutado. Verifica-se que a imaginação é uma etapa do desenvolvimento científico, configurando elemento de expansão dos processos cognitivos e dos limites do conhecimento científico, por ser capaz de interligar desde elementos primordiais até as mais elaboradas proposituras, visando à renovação e à melhoria dos processos, dos objetos, dos procedimentos, dos teoremas e da sociedade como um todo. Depreende-se da pesquisa realizada que há, na Ciência, um lugar onde a crença e a imaginação devem fazer morada, sendo não só plenamente possível tal combinação como também necessária ao desvendar dos imbróglios que se apresentam à Ciência, pois ambas constituem pilares em que se apoiam os cientistas. Considerações finais Referências ABBAGNANO, Nicola. Dicionário filosofia. São Paulo: Mantis Fontes, 2007. de CUSTÓDIO, José Francisco; REZENDE JUNIOR, Mikael Frank. As dimensões da imaginação científica e suas implicações educacionais. Anais do IV Encontro Nacional de Pesquisa em Educação em Ciências. Bauru – SP, 2003. Disponível em 94 CHAUÍ, Marilena. Convite à filosofia. São Paulo: Ática, 2000. Página No conhecimento humano nada está definitivamente posto, tudo está sujeito a mudanças. E assim se perfaz a construção da Ciência moderna, de modo que esta nunca termina, e sempre se refaz, quedando certezas e fazendo emergir novas teorias. Submeter as teorias científicas a refutações faz a Ciência avançar, alcançando novos universos que nunca seriam descobertos EINSTEIN, Albert. Como vejo o mundo. Tradução H. P. de Andrade. 11. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1981. ______. Escritos da maturidade. Rio de Janeiro: Editora nova fronteira, 1994. GLEISER, Marcelo. A ilha do conhecimento: os limites da ciência e a busca por sentido. Rio de Janeiro: Record, 2014. GURGEL, Ivã; PIETROCOLA, Maurício. O papel da imaginação no pensamento científico: análise da criação científica de estudantes em uma atividade didática sobre o espalhamento de Rutherford. Cad. Brasileiro de Ensino de Física. Florianópolis, v. 28, n. 1, p. 91 – 122, 2011. Disponível em https://periodicos.ufsc.br/index.php/fisica/article /view/2175-7941.2011v28n1p91/18167. Acesso em 01.05.2018. HUME, David. Investigações sobre o entendimento humano e sobre os princípios da moral. Tradução José Oscar de Almeida Marques. São Paulo: Editora UNESP, 2004. 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