Reflexões sobre a chancela da Paisagem Cultural Brasileira
Instituída desde 2009, a chancela da Paisagem Cultural Brasileira instiga inúmeras
reflexões quanto à sua aplicação e ao próprio conceito. A Coordenação de Paisagem Cultural do
Iphan, criada no mesmo ano, vem atuando no desenvolvimento das primeiras proposições para
chancela, com vistas à consolidação do instrumento e sua aplicação prática.
Ação e reflexão constituem, dessa forma, os dois lados de uma mesma moeda. Nem a
Portaria Iphan 187/2009 instituiu mecanismos, estratégias ou definições detalhadas sobre a
aplicação da chancela, como um passo a passo ou uma receita a seguir, nem se está
trabalhando aleatoriamente, sem fundamentos e reflexões mais profundas.
Por isso, neste momento de amadurecimento institucional, onde a chancela da
paisagem cultural figura como instrumento atualizado de preservação do patrimônio cultural,
inserida num contexto de ampliação da ação do Iphan no território nacional, de revisão
metodológica e conceitual, de inovação técnica e instrumental, trazemos ao conhecimento de
todos as reflexões e convencimentos acerca da Paisagem Cultural Brasileira, buscando o
estabelecimento de entendimentos – dados a partir de experiências concretas – e de uma
estratégia de atuação para o futuro.
O texto divide-se em três partes. A primeira, traz considerações a respeito da aplicação
do próprio instrumento da chancela; a segunda, busca propor uma estratégia para a preservação
das paisagens culturais brasileiras; e a terceira trata, brevemente, dos conceitos de territórios e
itinerários culturais, que não devem ser confundidos com o de paisagem cultural.
Boa leitura!
Trapiche de Camocim (CE). Foto: Maria Regina Weissheimer
Coordenação de Paisagem Cultural
Brasília, março de 2011.
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1. Elementos básicos para instrução de um processo de
chancela da Paisagem Cultural Brasileira
Jangadeiros de Fortaleza (CE). Foto: Maria Regina Weissheimer
Com o intuito de orientar estudos e proposições de Paisagem Cultural Brasileira,
apresentamos algumas diretrizes e recomendações a partir do que dispõe a Portaria Iphan
127/2009, que estabeleceu a chancela como instrumento de preservação desta “nova categoria
do patrimônio cultural”. Para ilustrar sua aplicação, abordaremos alguns estudos que vêm sendo
empreendidos, pioneiramente, pelo Iphan. Ao final, apresentaremos uma breve síntese sobre os
principais desafios e uma proposta de ação, no âmbito do Iphan – e que deverá ser extrapolada
para todos os demais parceiros do Sistema Nacional de Patrimônio Cultural – com vistas à
consolidação da chancela e à preservação das paisagens culturais brasileiras.
O que é Paisagem Cultural Brasileira
Conforme o artigo 1º da referida Portaria, constitui Paisagem Cultural Brasileira “uma
porção peculiar do território nacional, representativa do processo de interação do homem com o
meio natural, à qual a vida e a ciência humana imprimiram marcas ou atribuíram valores”.
Assim, para que se principie um processo de chancela, é necessário definir,
primeiramente, o recorte territorial que será trabalhado e, em seguida, a abordagem que será
dada a este recorte de forma que passe a ser compreendido como “uma porção peculiar do
território”.
Do dicionário Aurélio, extraímos a definição do termo peculiar:
Adjetivo
[Do lat. peculiare.]
Que é atributo particular de uma pessoa ou coisa; especial, próprio
Ou seja, é a partir da qualificação dada pelo adjetivo peculiar que se diferencia, se
ressalta ou se particulariza a porção do território que será alvo da chancela.
A existência e a compreensão desta diferenciação são necessárias para que não se caia
no generalismo de que “tudo é paisagem cultural” e, portanto, passível de chancela pelo Iphan.
Cabe lembrar que, assim como o tombamento e o registro, a chancela da Paisagem Cultural
integra o rol de instrumentos de preservação do patrimônio cultural, sendo a ela igualmente
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aplicados os conceitos de excepcionalidade, exemplaridade e singularidade, que costumam ser
a base para a diferenciação de um bem cultural patrimonializável de outro que não o é. Portanto,
pode-se concluir que determinada porção do território nacional pode ser peculiar devido às
qualidades excepcionais, exemplares e/ou singulares que guarda nas relações diretas, que
implicam em intervenções materiais – “à qual a vida ou a ciência humana imprimiram marcas”;
ou indiretas, calcadas nas relações simbólicas e afetivas – “ou atribuíram valores”, estabelecidas
entre homem e natureza.
O que se quer dizer é que, para fins do estabelecimento de uma política ou uma
estratégia de preservação das paisagens culturais brasileiras, nem todas as porções do território
nacional poderão (nem deverão) ser passíveis de chancela, sob pena de esvaziar-se o conceito,
tornando o instrumento ineficaz e, principalmente, inócuas suas conseqüências, fracassando a
estratégia.
Importante destacar que chancela não se aplica a todos os sítios excepcionais ou
singulares. Se os fatores preponderantes que singularizam o sítio forem materiais é possível que
o tombamento seja o instrumento de proteção mais adequado. Se os elementos materiais forem
secundários ou acessórios, o registro será possivelmente o instrumento indicado. Nos sítios
onde são constatadas as singularidades materiais de determinada área, somadas à sua relação
intrínseca com a natureza e ao caráter dinâmico no convívio com o elemento humano, aí então
caberá a chancela da Paisagem Cultural.
Por isso, o passo mais importante para dar início a um estudo com vistas à chancela da
Paisagem Cultural Brasileira, é a definição do recorte territorial e a abordagem a ser aplicada
sobre este território, caracterizando ou não sua condição de peculiar se comparado com o
restante do território nacional ou às demais porções do território passíveis ou não de serem
classificados como paisagem cultural.
Neste sentido, várias reflexões iniciais podem contribuir para o melhor enquadramento
ou mesmo o descarte da proposta, sempre tendo em vista que, um dos motivadores para a
institucionalização do instrumento da chancela da paisagem cultural, foi a constatação de que
“os fenômenos de expansão urbana, globalização e massificação das paisagens urbanas e
rurais colocam em risco contextos de vida e tradições locais em todo o planeta”. Ou seja, uma
das premissas para a aplicação do conceito de Paisagem Cultural Brasileira é a busca pela
preservação da diversidade e riqueza dos cenários, urbanos e rurais, tendo em vista que os
processos de massificação da vida e das paisagens têm colocado em risco e mesmo provocado
o desaparecimento de contextos de vida e tradições culturais que, a rigor, não deveriam ser
perdidas, sob pena do empobrecimento do próprio espírito e da ciência humana. Em tempos de
“globalização” e pasteurização das culturas, é saudável que possamos resguardar e valorizar
contextos de vida singulares, que se traduzam na relação harmônica do homem com a natureza
e, consequentemente, em maior qualidade de vida.
Estabelecido o recorte territorial e a definição da abordagem que o particulariza, na
seqüência, é preciso ter em vista qual será a eficácia da chancela. Ou seja, que medidas
deverão ser tomadas, pelos diversos agentes que atuam na área, para que possam ser mantidas
as características que definem a paisagem cultural e, conseqüentemente, justificam a chancela?
Neste ponto, importa ressaltar que a chancela não é um instrumento de proteção, tal
como o tombamento. Sobre a porção do território chancelada como paisagem cultural não
recairão sanções ou restrições administrativas e/ou jurídicas que impeçam sua transformação.
Se for o caso (e em muitas vezes será) a chancela deverá ser acompanhada, antecedida ou
complementada pelo tombamento, pelo registro e/ou por outras formas de proteção, incluindo os
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mecanismos disponíveis em outras esferas (instrumentos de proteção ambiental, de
planejamento urbano, de fomento e outros). Tal entendimento encontra respaldo nos artigos 2
(da finalidade) e 3 (da eficácia) da Portaria 127/2009:
“Art. 2º. A chancela da Paisagem Cultural Brasileira tem por finalidade
atender ao interesse público e contribuir para a preservação do
patrimônio cultural, complementando e integrando os instrumentos de
promoção e proteção existentes, nos termos preconizados na
Constituição Federal”
“Art. 3º. A chancela da Paisagem Cultural Brasileira considera o caráter
dinâmico da cultura e da ação humana sobre as porções do território a
que se aplica, convive com transformações inerentes ao
desenvolvimento econômico e social sustentáveis e valoriza a
motivação responsável pela preservação do patrimônio.”
A chancela como instrumento de gestão do território – o pacto
Para que a chancela não resulte em mera declaração ou título e possa integrar-se no rol
de instrumentos de preservação, torna-se necessária a definição prévia de um pacto de gestão
entre os diversos agentes que atuam – com maior ou menor ênfase – na porção do território a
ser chancelada. O pacto tem como objetivo traçar, minimamente, um plano de atuação de curto,
médio e longo prazo, nunca deixando de considerar “o caráter dinâmico da cultura e da ação
humana sobre as porções do território a que se aplica”, buscando a convivência harmoniosa com
“as transformações inerentes ao desenvolvimento econômico e social sustentáveis” e
valorizando a “motivação responsável pela preservação do patrimônio”.
Lençóis Maranhenses (MA) e boiada na região pantaneira (MS). Fotos: Maria Regina Weissheimer
Por isso, para que possam ser estabelecidas ações de planejamento, ordenamento
territorial, gestão e fomento da porção do território a ser chancelada e das práticas culturais que
a particularizam como paisagem cultural, é necessário o estabelecimento do “pacto de gestão”.
“Art. 4º. A chancela da Paisagem Cultural Brasileira implica no
estabelecimento de pacto que pode envolver o poder público, a
sociedade civil e a iniciativa privada, visando a gestão compartilhada da
porção do território nacional assim reconhecida”.
Mais uma vez, para o estabelecimento do pacto, é preciso ter clareza de quais são os
atributos e as qualidades que particularizam aquela porção do território, tornando-a diferente das
demais e, por sua importância e singularidade, passível de ser reconhecida como Paisagem
Cultural Brasileira.
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Importante ressaltar que o pacto precede a chancela, cuja proposta será avaliada e
julgada pelo Conselho Consultivo do Patrimônio Cultural, que emitirá parecer final sobre sua
aprovação ou não. Cabe ainda chamar atenção de que o rol de signatários do pacto dependerá
de cada realidade e, por isso, estabeleceu-se a participação do poder público, sociedade civil e
iniciativa privada como possibilidade, e não como obrigação. Em determinados casos, o pacto
pode ser efetivado apenas no âmbito do poder público, ou deste com a sociedade civil, ou
apenas entre a iniciativa privada, desde que este arranjo seja capaz de garantir a preservação
da paisagem cultural através de ações que se encontrem dentro da alçada de competência dos
pactuantes.
Em geral, o pacto nunca deveria prescindir, por exemplo, da participação do poder
público municipal, especialmente por tratar-se de “porções territoriais” cuja gestão sempre fará
parte da competência do município. O próprio Plano Diretor pode ser entendido como pacto,
dispensando qualquer nova negociação, desde que contemple as medidas necessárias à
preservação da paisagem cultural que se deseja chancelar.
O ponto principal, nesta etapa, é ter clareza de quais serão as medidas necessárias que
devem ser adotadas pelos pactuantes (em curto, médio e longo prazo) de forma a garantir (ou ao
menos possibilitar) a efetiva preservação da paisagem cultural que se enseja chancelar,
considerando suas características peculiares, ressaltadas e minuciosamente descritas na etapa
inicial do trabalho (de definição do território e da abordagem). Caso contrário, a possibilidade da
chancela tornar-se inócua é grande e, desaparecidos os fatores que motivaram o
reconhecimento daquela porção peculiar do território como Paisagem Cultural Brasileira, a
chancela poderá ser cancelada num prazo máximo de dez anos (artigos 15 e 17 da Portaria
Iphan 127/2009).
No fundo, para se estabelecer o pacto, é de suma importância ter clareza de quais são
as medidas e ações que devem ser acordadas porque estimulam, garantem ou possibilitam a
preservação da paisagem cultural, sem que, usando como justificativa a chancela da Paisagem
Cultural Brasileira, se pretenda resolver todos os problemas daquela porção do território. Neste
sentido, caberá também uma priorização das ações e linhas de atuação acordadas quando da
construção e assinatura do pacto.
Estudo de caso: Vila de Elesbão (AP)
Um dos exemplos que se pode mencionar sobre este processo – de definição e
caracterização de uma proposta de chancela e conseqüente elaboração do pacto – e que integra
o rol dos primeiros estudos que o Iphan vem realizando para fins de chancela da paisagem
cultural, é o da Vila de Elesbão, no Amapá.
O estudo sobre a paisagem cultural de Elesbão enquadra-se no rol das ações
integrantes do projeto Barcos do Brasil que tem como foco o estudo, a preservação e a
valorização dos principais contextos do patrimônio naval brasileiro.
A vila está assentada sobre palafitas, às margens do Rio Amazonas, no que poderíamos
considerar o subúrbio da região metropolitana de Macapá, no município vizinho de Santana. O
núcleo é composto, basicamente, por edificações térreas de madeira – com raras unidades de
um, dois ou até três pavimentos – construídas sobre palafitas e ligadas entre si por passarelas
de madeira. Esta tipologia, muito comum em diversos pontos da Amazônia, é um dos melhores
exemplos representativos da adaptação dos agrupamentos humanos locais às condições
naturais da região, especialmente ao regime dos rios e do acesso aos recursos naturais (sejam
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terrestres ou fluviais). Apesar da sua configuração peculiar, a Vila de Elesbão destaca-se no
contexto nacional não apenas pelas características da sua implantação sobre palafitas (que,
como dissemos, é bastante comum na região Amazônica e talvez não encontre no Elesbão o
seu maior expoente), mas por somar a esta singularidade outros dois aspectos: o principal deles
é a alta concentração de estaleiros navais tradicionais, cuja produção de barcos de madeira para
transporte de cargas e passageiros representa parcela significativa das embarcações
construídas e em atividade na foz do Rio Amazonas. Outro aspecto é a sua localização, a 12
quilômetros de Macapá que, como diversas outras cidades do país, é caracterizada pela baixa
qualidade da ambiência urbana e pela predominância de arquitetura incógnita, produzida pelo
acelerado processo de expansão e descaracterização urbana pela qual passam as principais
áreas urbanizadas do país.
Por isso, um dos fatores que mais chamam atenção na Vila de Elesbão, é o extremo
apego, identidade e sentimento de pertencimento que os moradores possuem com o lugar. A
população de Elesbão, que não chega a mil habitantes, reconhece e valoriza a qualidade de vida
da comunidade, especialmente quando comparada às outras áreas urbanas adjacentes – em
geral, de baixa renda. São inúmeros os relatos de moradores que, por diversas ocasiões,
tentaram morar em outros bairros de Santana ou de Macapá, e sempre retornaram para o
Elesbão, pois lá encontram possibilidade de viver com melhor qualidade e em melhores
condições.
Fotos: Acervo Iphan-AP.
Apesar deste reconhecimento, a Vila de Elesbão sofre, como a grande maioria das
áreas suburbanas brasileiras, com a deficiência de infra-estrutura básica. Não existe sistema de
saneamento e todo o esgoto doméstico é jogado no rio, na mesma água que muitas vezes
abastece as casas e serve de lazer para os próprios moradores, especialmente as crianças. O
sistema de coleta de lixo é deficitário, assim como a saúde pública e o sistema educacional.
A economia básica da Vila de Elesbão é a carpintaria naval e é esta atividade que mais
a singulariza dentre as centenas (ou milhares) de “cidades sobre palafitas” da Amazônia. Entre
15 e 20% da população de Elesbão tem como profissão alguma atividade diretamente
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relacionada à construção de barcos (mestres carpinteiros, calafates, pintores e marceneiros). A
carpintaria naval está fortemente imbricada à vida local e reflete-se na própria arquitetura, cujos
detalhes nos remetem automaticamente às embarcações e às suas técnicas construtivas. O
conhecimento é passado de pai para filho, que cedo aprendem o ofício. A participação de jovens
e adolescentes nas atividades desenvolvidas pelos estaleiros navais de Elesbão é um dos
pontos críticos a serem abordados pelo pacto para chancela da paisagem cultural, pois o que até
pouco tempo seria classificado como simples processo de transmissão de conhecimento e
aprendizado de uma profissão, passou a ser enquadrado como “trabalho infantil”, colocando os
estaleiros em condições de violadores dos direitos das crianças e dos adolescentes. A
continuidade do processo de transmissão do conhecimento aos mais jovens é fundamental para
a preservação dos diversos contextos navais brasileiros, onde é cada vez mais comum o
desinteresse pela profissão e o desaparecimento das tradições junto com a morte dos últimos
mestres carpinteiros. Um mecanismo capaz de garantir esta continuidade, sem que implique em
violação da atual legislação de proteção dos direitos da criança e do adolescente, é de suma
importância para o sucesso, não apenas da chancela da paisagem cultural de Elesbão, mas de
ações que busquem a preservação deste conhecimento na maioria dos contextos navais
tradicionais brasileiros.
Outras questões diretamente vinculadas à regulamentação do funcionamento dos
estaleiros de Elesbão e que, por isso, são pontos cruciais para o pacto de gestão, referem-se às
condições de segurança no trabalho, à obtenção de matéria-prima (a madeira) e ao tratamento
dos resíduos sólidos (especialmente a serragem).
Assim, considerando que sua principal especificidade reside na grande concentração de
estaleiros navais em contexto singular de cidade de madeira sobre palafitas, medidas de curto,
médio e longo prazo que garantam a sobrevivência desta atividade econômica são prioritárias
dentre o rol de ações que devem compor o pacto para chancela da Paisagem Cultural de
Elesbão.
Fotos: Dalmo Vieira Filho.
Mencionando novamente o texto a Portaria Iphan 127/2009, que considera que “a
chancela da Paisagem Cultural Brasileira valoriza a relação harmônica com a natureza,
estimulando a dimensão afetiva com o território e tendo como premissa a qualidade de vida da
população”, parte-se para outras ações complementares, de extrema importância, no contexto
de Elesbão: compreendendo a importância da valorização do modo de vida local, especialmente
se considerarmos a atração que poderiam exercer sobre sua população os modernos ideais
urbanos (ruas asfaltadas, automóveis e construções de alvenaria) que, a rigor, são encontrados
a poucas centenas de metros da Vila de Elesbão, é necessário pensar em medidas estruturantes
para a melhoria desta qualidade de vida. Neste aspecto, a implantação de um sistema de
saneamento compatível é ação emergencial, seguida da manutenção e adaptação das
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passarelas (que são as ruas e as calçadas de Elesbão) aos seus diversos usuários, com atenção
para os idosos, portadores de necessidades especiais e crianças. A melhoria dos serviços
básicos de saúde, educação e segurança acompanham a seqüência das medidas a serem
pactuadas entre os diversos agentes.
O que tecemos foi apenas um apanhado geral do modo de vida e da atividade da
carpintaria naval, bem como dos problemas que fazem parte do cotidiano da população da Vila
de Elesbão, suficientes para ilustrar o processo de caracterização desta porção peculiar do
território nacional e as medidas que precisarão ser adotadas com vistas à preservação dos
valores reconhecidos por meio da chancela da Paisagem Cultural.
Uma das medidas de gestão mais importantes para a preservação da paisagem cultural
de Elesbão será a revisão do Plano Diretor de Santana. Atualmente, a localidade está
enquadrada como Zona de Interesse Portuário – ZIP (Lei Municipal 002/2006), cujos parâmetros
para ocupação em nada correspondem à sua atual condição de bairro residencial sobre
palafitas, com alta concentração de estaleiros navais tradicionais.
Por outro lado, toda a Vila de Elesbão é considerada área de Marinha, abarcando a faixa
costeira de 33 metros a partir da linha de maré mais alta. Neste sentido, a Gerência Regional de
Patrimônio da União (GRPU) tem realizado cadastramento de toda a faixa costeira do Estado do
Amapá e, segundo as informações coletadas, tem autorizado o desenvolvimento de atividades
que não agridam o ecossistema local.
A Prefeitura Municipal de Santana e a GRPU são dois dos parceiros mais importantes a
integrarem o rol de signatários do pacto para chancela da Paisagem Cultural, juntamente com o
Ministério do Trabalho ou outra secretaria responsável pela regulação da atividade dos
estaleiros. Mas, e se algum dos parceiros identificados como fundamentais para a preservação
desta paisagem cultural não se dispuserem a pactuar, uma possível chancela perderá a sua
eficácia? A instrução do processo deveria ser interrompida, sem que fosse levada à apreciação
do Conselho Consultivo do Iphan?
No capítulo que trata sobre a instrução do processo de chancela, a Portaria Iphan
127/2009 no seu artigo 9º diz que:
“Para a instrução do processo administrativo poderão ser consultados
os diversos setores internos do Iphan que detenham atribuições na
área, as entidades, órgãos e agentes públicos e privados envolvidos,
com vistas à celebração de um pacto de gestão da Paisagem Cultural
Brasileira a ser chancelada.”
Portanto, a rigor, se não houver possibilidade de pacto não haverá chancela. Por outro
lado, não há um elenco pré-estabelecido e imutável de parceiros, mas sim um leque de
possibilidades que, dentre outros, busca valorizar sempre a comunidade envolvida. Se, ao se
iniciar o trabalho em Elesbão, o Iphan tivesse detectado desprezo e desvalorização, por parte
dos moradores e dos carpinteiros navais, do lugar onde moram e da atividade que
desempenham, a principal fonte de motivação para a chancela deixaria de existir e o processo
seria inócuo, já que não há mecanismos que obriguem alguém a continuar adotando um
determinado modo de vida ou desempenhando uma profissão indesejada. Por isso, se
aprofundarmos a reflexão, mais importante que uma prefeitura, um órgão regulador ou outra
entidade externa, é a participação e o desejo do grupo social envolvido em obter reconhecimento
e lutar pela preservação de seu modo de vida e de seu território que constitui o fator
determinante e condição sine qua non para a proposição da chancela.
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Assim, mesmo como medida simbólica ou como primeiro passo de um processo maior
de reconhecimento, se for o desejo ou obtiver a aprovação da população envolvida, a chancela
da Paisagem Cultural Brasileira deveria ser sempre considerada e o processo levado adiante,
mesmo se num primeiro momento não encontrar parceiros e pactuantes dentre outros órgãos
públicos.
Ainda que todos os órgãos e entidades possíveis concordem em fazer parte do pacto, a
chancela terá poucas chances de sucesso se não contar com a participação ou, minimamente,
com a aprovação do grupo social diretamente envolvido. Se, por alguma razão, os carpinteiros
navais de Elesbão perdessem o interesse pela profissão e resolvessem fechar os estaleiros, não
haveria qualquer mecanismo capaz de impedi-los. Por outro lado, o que se aposta no momento,
é na criação de regulamentações e mecanismos de fomento capazes de reverter um quadro que
tende à marginalização e ao abandono da profissão e, por isso, a pactuação com agentes
públicos envolvidos com a questão torna-se tão importante.
O que pode ser Paisagem Cultural?
E as outras centenas, milhares talvez, de “cidades sobre palafitas” da região
Amazônica? Estariam representadas através do exemplo de Elesbão? Ou sobre elas também
recairia o conceito de paisagem cultural e o instrumento da chancela?
A resposta é não, as cidades sobre palafitas da Amazônia não estariam todas
representadas por Elesbão por duas razões principais: (1) a peculiaridade de Elesbão, como já
se mencionou, não se dá pelo fato de estar assentada sobre palafitas, mas em razão da alta
concentração de estaleiros navais tradicionais conjugado com sua tipologia urbana, configurando
uma maneira peculiar de habitar e trabalhar; (2) considerando a vida sobre palafitas na
Amazônia um modo peculiar de convivência harmônica com a natureza, só encontrada nesta
região do Brasil e posta em xeque em muitos contextos urbanos como Manaus e Belém (que
promoveram o aterramento dos seus igarapés, a supressão das palafitas e a conseqüente
mudança radical no modo de viver e de habitar das populações), esta é um forma de
assentamento humano sobre a qual o conceito de paisagem cultural enquadra-se amplamente e
que, no desenrolar da ação do Iphan e demais órgãos de preservação do patrimônio cultural
poderia ser considerada Paisagem Cultural Brasileira em todos, ou quase todos, os rincões da
Amazônia. Destaca-se aqui que qualquer órgão estadual ou municipal pode, independentemente
de uma ação do Iphan, estabelecer mecanismos de reconhecimento e chancela das paisagens
culturais em nível local. De toda forma, se o Iphan se propusesse a estudar a possibilidade de
uma chancela ampla, cujo objetivo seria o reconhecimento e a preservação da vida sobre
palafitas na Amazônia, seria necessário uma medida mais ampla, implicando em parceria com
órgãos federais como a Secretaria de Patrimônio da União (SPU) e respectivas GRPU’s,
Ministério do Meio Ambiente, das Cidades, dentre outros. Por outro lado, seria viável ou eficaz
este tipo de abordagem?
Esta reflexão traz à tona outra questão relativa à aplicação da chancela da Paisagem
Cultural Brasileira: a escala. Para um conceito tão amplo como o da paisagem cultural, foi
preciso pensar em um instrumento igualmente abrangente, suficientemente flexível para adaptarse a contextos tão variados e distintos quanto a cidade do Rio de Janeiro e as palafitas da
Amazônia, o Mercado Ver-o-Peso de Belém e as pequenas propriedades rurais de imigrantes no
sul do Brasil. Flexível também para adaptar-se a condições diferenciadas de gestão e motivação.
Os estudos que por ora se desenvolvem, pioneiramente, no âmbito do Iphan, são apenas alguns
poucos exemplos dos potenciais que o instrumento possui e do quanto há para se avançar. Não
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existe uma “receita de bolo”, ao contrário, existe um universo de possibilidades e combinações a
se descortinar. Apenas a aplicação, na prática, da chancela, é que nos dará condições de, na
seqüência, avançar.
Casa de farinha nos Lençóis Maranhenses, Santo Amaro (MA). Fotos: Maria Regina Weissheimer
A grande inovação da chancela da Paisagem Cultural Brasileira é a possibilidade de se
trabalhar de forma conjugada com manifestações culturais dinâmicas, de diversas naturezas,
tangíveis e intangíveis, e com forte correlação com uma determinada porção territorial. A medida
dos ingredientes, porém, dependerá muito mais de cada realidade do que de uma matriz prédefinida de causa e conseqüência.
Assim, por ora, consideramos serem estes os pontos centrais que, quase sempre,
nortearão os estudos e as propostas para chancela de Paisagem Cultural Brasileira em
gestação.
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2. Construção de uma estratégia de atuação nacional para uma
política de preservação das Paisagens Culturais Brasileiras
Paisagem rural de Santa Tereza (RS). Foto: Maria Regina Weissheimer
Nascido junto com o Iphan (o antigo SPHAN), o Decreto Lei 25/37 tem sido,
constantemente reverenciado por sua eficácia e atualidade, mesmo após mais de 70 anos de
aplicação. De fato, a legislação que instituiu o tombamento como forma de proteção do
patrimônio cultural brasileiro, definido como “o conjunto dos bens móveis e imóveis existentes no
país e cuja conservação seja de interesse público, quer por sua vinculação a fatos memoráveis
da história do Brasil, quer por seu excepcional valor arqueológico ou etnográfico, bibliográfico ou
artístico”, consolidou-se cada vez mais como instrumento eficaz e estratégico para a
preservação do patrimônio cultural brasileiro, sendo hoje considerado como um dos mais
importantes instrumentos não só de proteção, mas de planejamento urbano e regional que o
Brasil dispõe.
Todas as manifestações do patrimônio cultural de natureza material encontram abrigo no
Decreto Lei 25 e, atualmente, o Brasil só não conta com número maior de bens tombados em
nível federal mais por força do processo histórico que passou a própria política de preservação
do patrimônio cultural brasileiro do que em virtude das alternativas de aplicabilidade do
instrumento.
No que tange ao patrimônio natural, o Decreto Lei 25 também foi feliz na sua definição
ao declarar que “equiparam-se aos bens a que se refere o presente artigo [no caso, o artigo 1º] e
são também sujeitos a tombamento os monumentos naturais, bem como os sítios e paisagens
que importe conservar e proteger pela feição notável com que tenham sido dotados pela
natureza ou agenciados pelo indústria humana.” Mesmo não incorporando abertamente o
conceito de paisagem cultural, o texto do Decreto Lei não era impeditivo ao seu uso para os
casos onde importasse proteger a relação estabelecida entre homem e natureza, entendidas
como “paisagens agenciadas pela indústria humana.”
Interessante notar, entretanto, que, tanto o conceito de patrimônio imaterial (para o qual
se instituiu, no ano de 2000, o registro como nova categoria de preservação) como de paisagem
cultural brasileira já faziam parte do repertório dos especialistas do patrimônio e constituíam a
base da própria política de construção de uma identidade nacional, adotada desde o Estado
Novo e que subsidiou o início dos trabalhos do SPHAN. Esta constatação é comprovada pelo
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próprio projeto de Mário de Andrade para o SPHAN (com registros de manifestações culturais
das mais diversas regiões do Brasil, à época trabalhada a partir do conceito de folclore) e nos
famosos artigos, posteriormente compilados em publicações, da Revista Brasileira de Geografia
que, de 1939 a meados da década de 1960, destinou espaço especial para a difusão dos “tipos e
aspectos do Brasil”. Os dois primeiros parágrafos da nota explicativa da 5ª edição da coletânea,
publicada em 1949, trazem a seguinte apresentação:
“A ‘Revista Brasileira de Geografia’, conseqüente com seus fins de
divulgar estudos originais sobre a realidade geográfica brasileira,
iniciou, a partir de seu nº 4, ano I (1939), a publicação de uma secção
intitulada ‘Tipos e Aspectos do Brasil’.
Desfilou, assim, pelas páginas da ‘Revista’ uma longa série de quadros
que a magnificiência e prodigalidade da paisagem cultural brasileira
tornam inesgotável.” (grifo nosso)
Na época, o debate sobre os tipos humanos e as paisagens do Brasil constituía um dos
focos primordiais de discussão e desenvolvimento de estudos no âmbito da geografia – não
apenas no contexto nacional, mas mundial – e relacionava-se diretamente com o processo de
constituição de uma narrativa sobre a nação brasileira, fazendo parte do mesmo movimento do
qual o Iphan também era parte pelo viés do patrimônio cultural e do tombamento. A Revista
Brasileira de Geografia era editada pelo então Instituto Nacional de Estatística (atual IBGE),
criado em 1934, significando importante meio de difusão do conhecimento e publicação de
estudos e artigos produzidos, especialmente, por pesquisadores e profissionais da área de
ciências sociais, com destaque para a geografia.
Dentro do Iphan, que muito raramente contou com geógrafos no seu quadro profissional,
a aplicação do tombamento a paisagens (naturais ou agenciadas pela indústria humana) nem
sempre encontrou eco dentro da instituição. Atualmente, são 24 os bens protegidos que se
enquadram na categoria de paisagem natural – representando pouco menos de 2% do total de
bens tombados – e praticamente metade deles corresponde a formações naturais do Rio de
Janeiro (Pão de Açúcar, Corcovado, Pedra da Gávea, Floresta da Tijuca...). Reconhecendo que
muito há que se avançar nesta temática, em 2009, após o último processo de reestruturação
interna pelo qual passou o Iphan, foi criada a Coordenação-Geral de Patrimônio Natural,
Paisagem Cultural e Jardins Históricos, propiciando uma estrutura técnica mínima para se traçar
uma nova estratégia de atuação nesta temática. Nesta mesma estrutura, foi igualmente criada a
Coordenação de Paisagem Cultural, dando destaque para o também recém lançado instrumento
da chancela da Paisagem Cultural Brasileira.
Desafios
Nas duas décadas iniciais de atuação, o Iphan tombou mais da metade dos bens que
integram, atualmente, o rol dos bens protegidos em nível federal. Entre 1938 e 1959 foram
tombados 627 bens (51,5% do total atual), afirmando o tombamento como principal instrumento
de proteção do patrimônio cultural brasileiro. No ano 2000, após a instituição, do registro como
instrumento de reconhecimento do patrimônio imaterial, inúmeras vezes ouvimos falar, de forma
equivocada, em “tombamento” do patrimônio imaterial, quase como um ato falho, atestando, de
qualquer forma, a força que tomou o instrumento do tombamento como mecanismo de proteção
do patrimônio cultural.
Certamente não se pode desconsiderar as mais de sete décadas de atuação do Iphan e
os mais de sessenta anos em que o tombamento figurou como o único instrumento legal de
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proteção das diversas categorias de patrimônio cultural de natureza material em nível federal.
Contudo, os primeiros anos parecem ter sido decisivos na afirmação do tombamento como
instrumento de proteção. Da década de 1980 (caracterizada pela reabertura política, renovação
da política de preservação do patrimônio marcada pela criação da Fundação Nacional PróMemória e do Centro Nacional de Folclore e Cultura Popular) até o presente, os tombamentos
representaram pouco mais que 25% do total de bens protegidos pelo Iphan e ainda há muito por
fazer em termos de preservação dos bens culturais brasileiros.
No momento atual, a chancela da Paisagem Cultural Brasileira figura como novidade no
rol dos instrumentos de preservação, partindo-se da constatação de que era necessário trabalhar
a preservação do patrimônio a partir de uma nova abordagem, buscando atuar sobre os
aspectos dinâmicos que estão implicados na relação entre natureza e cultura, cujo resultado se
evidencia através de manifestações materiais e imateriais e sobre as quais não basta a
aplicação de um instrumento apenas, mas onde, para se obter sucesso, é preciso o
estabelecimento de um pacto. Desta forma, a chancela da Paisagem Cultural Brasileira deve
funcionar muito mais como um instrumento catalisador de um processo planejado e integrado de
proteção e gestão territorial do que propriamente de um novo instrumento de proteção. Assim,
qual será a melhor estratégia para consolidação da chancela como instrumento e da Paisagem
Cultural Brasileira como nova categoria do patrimônio cultural no Brasil?
Os estudos pioneiros que visam à chancela das primeiras paisagens culturais brasileiras
e que vêm sendo levados a cabo pelo Iphan, decorrem de um sentido inicial de oportunidade e
premência, onde imigração e patrimônio naval foram algumas das temáticas que primeiro
despontaram para o exercício do novo instrumento.
Imigração e Paisagem Cultural
Propriedades rurais da região de imigrantes em Santa Catarina tombadas pelo Iphan. Fotos: Acervo Iphan-SC.
A primeira proposta, referente à paisagem cultural da imigração em Santa Catarina,
derivou de projeto igualmente pioneiro no Iphan: os Roteiros Nacionais de Imigração. O projeto
se desenvolveu a partir de um inventário de conhecimento, iniciado em 1983 (no âmbito da
Fundação Nacional Pró-Memória), interrompido na década de 1990 (especialmente a partir do
governo Collor) e finalmente retomado em 2003/4, quando se finalizou uma etapa importante do
mapeamento. Já na sua concepção, a idéia era não apenas inventariar e tombar um número
determinado de bens, mas estabelecer linhas de promoção e fomento daquele patrimônio que
possibilitasse, especialmente, a preservação das paisagens rurais, constituídas não apenas pela
arquitetura dos imigrantes, mas resultante dos hábitos e costumes ainda vivos no cotidiano da
região. Desde o princípio, imaginava-se trabalhar com a constituição de rotas, caminhos,
roteiros, buscando promover uma maior integração entre os diversos bens (que estão
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localizados em áreas rurais de distintos municípios, em várias regiões do Estado) e proporcionar
alternativas de sobrevivência às famílias de agricultores e pequenos produtores rurais,
considerando as pressões que desde então vêm sofrendo pelo acelerado processo de
urbanização e industrialização dessas regiões.
A proposta de reconhecimento da paisagem cultural da Imigração em Santa Catarina foi
levada ao Conselho Consultivo do Iphan em dezembro de 2007, e fazia parte do processo que
propõe o tombamento de 63 bens (dentre pequenas propriedades rurais, um conjunto urbano e
um conjunto rural) representativos da imigração no Estado. Em virtude da inexistência, à época,
de uma forma previamente estabelecida para avaliação da proposta da paisagem cultural, o
Conselho optou pelo tombamento dos bens já notificados e pela prorrogação da decisão sobre a
paisagem, até que o Iphan desenvolvesse um instrumento à luz do qual a proposição deveria ser
analisada. Hoje, com a chancela instituída, a proposta passa por revisão, devendo resultar em
proposição mais abrangente que aquela inicialmente encaminhada ao Conselho Consultivo,
além de constituir-se em outro processo, considerando a existência de um procedimento
legalmente estabelecido e de implicações diferenciadas entre o tombamento e a chancela.
Patrimônio Naval e Paisagem Cultural
Paisagem pesqueira de Camocim (CE) e estaleiro artesanal em Maragogipe (BA). Fotos: Dalmo Vieira Filho e Acervo ICMBio.
A partir de uma primeira varredura do litoral, iniciada em 2005, foi possível identificar os
lugares e contextos litorâneos que ainda guardam preservadas, em maior ou menor grau, alguns
dos principais elementos que singularizam o patrimônio naval brasileiro: a utilização de
embarcações tradicionais de madeira e da vela como principal elemento propulsor, a existência
de carpintaria naval e outros ofícios correlatos ativos, a pesca artesanal, a ocorrência de
celebrações marítimas e outras manifestações intangíveis.
Dado a extensão de seu território, à diversidade de seus contextos naturais e
geográficos, a participação de diversos grupos culturais em diversos momentos da sua formação
histórica, o Brasil é considerado um dos países de maior riqueza e diversidade de embarcações
tradicionais do mundo. As embarcações fizeram e fazem parte importante das comunidades
ribeirinhas e litorâneas, utilizadas, principalmente, para pesca e transporte, de mercadorias e de
pessoas.
A partir de finais do século XIX e início do XX, com a mudança radical no sistema de
transportes (primeiro o ferroviário e depois o rodoviário) e, mais tarde, a substituição do uso da
madeira por matérias-prima industrializadas como a fibra de vidro e o alumínio, inúmeras
tipologias de embarcações tradicionais desapareceram, especialmente as de grande porte,
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restando apenas alguns poucos exemplares de canoas, jangadas e barcos de pequeno e médio
porte.
Atualmente, parcela significativa do patrimônio naval em atividade relaciona-se com
contextos pesqueiros, fundamentalmente a pesca artesanal que, apesar dos atuais incentivos
possibilitados pelo Ministério da Pesca e Aqüicultura, enfrenta sérias dificuldades de
sobrevivência. Em geral, os pescadores artesanais que utilizam embarcações tradicionais
convivem com problemas de duas ordens: o primeiro, relacionado exclusivamente à atividade
pesqueira, é a concorrência com a pesca industrial (que interfere desde a obtenção na matériaprima – verificando-se a paulatina escassez dos recursos pesqueiros – até a comercialização do
pescado – dificuldade de ampliação do mercado consumidor e baixo valor do pescado); o
segundo, que se relaciona mais diretamente com a preservação de tipologias de embarcações
tradicionais, é a dificuldade na obtenção da matéria-prima – especialmente a madeira – para
conservação e construção de embarcações tradicionais e, conseqüentemente, o declínio dos
ofícios ligados à carpintaria naval. Quanto ao segundo item, que é igualmente válido para
contextos onde as embarcações são utilizadas para o transporte, seja de cargas ou de
passageiros, temos ainda um segundo desdobramento: nas últimas décadas, cunhou-se o
entendimento (genérico) de que, por um lado, era preciso substituir a madeira pelo uso de outros
materiais que não implicassem em corte de árvores e, por outro, de que as embarcações
motorizadas, de fibra de vidro, alumínio ou outro material industrial, são mais rentáveis e
eficientes do que os tradicionais barcos e canoas de madeira. Assim, alguns processos de
renovação de frota em curso têm acelerado ainda mais a descaracterização e mesmo o
desaparecimento de algumas tipologias tradicionais de embarcações.
Assim, não apenas a realização de um inventário (que identifique lugares, caracterize e
colecione tipologias), mas de um diagnóstico preciso sobre as atuais condições de sobrevivência
dos contextos navais brasileiros, é ação crucial para a implantação de linhas para preservação e
valorização do patrimônio naval, incluindo ações de acautelamento, registro e/ou chancela da
paisagem cultural. A rigor, para todos os contextos do patrimônio naval seria possível aplicar o
conceito de paisagem cultural, pois sempre traduzem uma forma de interação do homem com a
natureza. Cada tipo de embarcação é resultado do aperfeiçoamento da arte de construir,
navegar e pescar e sua adaptação a contextos históricos e geográficos específicos. Mas, para
que o instrumento seja eficaz e a política efetiva, torna-se necessário fazer uma seleção de
lugares onde a chancela deverá ser aplicada, tomando-se como base o entendimento de quais
são os recortes mais peculiares no contexto do patrimônio naval brasileiro.
Assim é que foram definidos os recortes para os primeiros estudos de paisagem cultural
vinculadas ao patrimônio naval. Pitimbu (PB), Valença (BA), Elesbão (AP) e Camocim (CE) são
os lugares onde, pioneiramente, o Iphan vem estudando e aplicando o conceito de paisagem
cultural brasileira com vistas à chancela. Cada um deles guarda peculiaridades ou mesmo
elementos de excepcionalidade se comparados com outros contextos do patrimônio naval
similares.
De maneira simplificada, pode-se caracterizar cada uma destas paisagens culturais da
seguinte forma:
Pitimbu é o único ponto do litoral brasileiro onde se verifica a ocorrência da jangada
de dois mastros. A jangada tradicional é constituída de um mastro apenas, porém,
em Pitimbu, em razão de condições geográficas específicas e do regime constante
de ventos, foi possível a inserção de mais um mastro – e, portanto, mais uma vela –
possibilitando maior aproveitamento dos ventos, dando maior velocidade à
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embarcação e, ao mesmo tempo, tornando mais incrementada – mesmo difícil – a
arte de velejar.
Em Valença, identificou-se uma forma peculiar de venda de pescado: realizada direto
do pescador, que o faz dentro da canoa e no momento do retorno da pescaria – no
caso a canoa de calão, típica da região. O porto de Valença é caso único no Brasil
onde, em um contexto já bastante urbanizado, as últimas canoas de calão em
atividade tentam sobreviver em meio a um processo de massificação do comércio, de
expulsão dos pescadores do centro da cidade e de higienização dos processos de
obtenção, armazenamento e comercialização de peixes, moluscos e crustáceos.
Elesbão, como já se fez menção, é uma típica cidade sobre palafitas, bastante
comum em toda a região amazônica, que se singulariza pela alta concentração de
estaleiros navais, que abastecem parcela significativa da construção naval de
embarcações tradicionais da região. A carpintaria naval confunde-se, assim, com a
vida da vila que, por sua vez, convive em harmonia com o ritmo da natureza,
estabelecido pelas marés, pelo cultivo do açaí, pelo convívio com a mata.
Camocim singulariza-se pela presença dos botes bastardos, no que é considerado o
maior porto pesqueiro à vela do Brasil – e, possivelmente, do ocidente. Segundo
Dalmo Vieira Filho, “os botes de Camocim são, ao que se saiba, as últimas
embarcações do ocidente a preservarem as técnicas de uso e manufatura de
mastros, vergas e velas bastardas na escala das caravelas portuguesas do período
do Descobrimento – preservando assim, as técnicas de confecção e uso de um dos
equipamentos mais importantes da história da navegação mundial”.
Proposta de ação para a consolidação da chancela e a preservação das
paisagens culturais brasileiras
Estabelecido o instrumento e modelos para o procedimento – a partir de experiências
concretas em fase final de conclusão – quais deverão ser, na seqüência, as paisagens culturais
brasileiras a serem chanceladas? Como representar, condignamente, a diversidade e a riqueza
de paragens do Brasil? Como dar escala à ação e tornar mais aplicável o conceito e o
instrumento? Como, ainda, ser eficaz e ágil o suficiente para frear o processo de transformação
e desaparecimento de paisagens significativas para a compreensão do processo histórico de
formação do Brasil?
Mercado Ver-o-Peso em Belém (PA) e a Vila de Elesbão (AP). Fotos: Maria Regina Weissheimer e Dalmo Vieira Filho.
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Importante refletir que, na ação de preservação do patrimônio cultural, não há como
evitar de trabalhar com a iminência da perda e a premência de atuação, especialmente num país
como o Brasil, onde os processos de crescimento econômico, desenvolvimento industrial e
explosão urbana vêm, desde a década de 1970, transformando radicalmente o quadro sóciodemográfico e paisagístico do país.
É neste contexto que o Iphan vem repensando e reformulando sua política de proteção
do patrimônio cultural, ampliando o número de bens tombados em todo o país, extrapolando e
mesmo enfatizando sua atuação em regiões que historicamente ficaram em “segundo plano” da
política nacional – especialmente as regiões norte e centro-oeste. É neste contexto também que
se enquadra a formatação da chancela da paisagem cultural brasileira como um novo
mecanismo de preservação, viabilizando a ampliação do repertório instrumental e conceitual do
Iphan. Sendo assim, caberá como desafio para os próximos anos, a realização de estudos e
ações de chancela que possibilitem – sempre que sua ocorrência sintonizar-se com padrões de
qualidade de vida – a preservação dos cenários de vida peculiares e dos tipos humanos do
Brasil, associados a biomas, ecossistemas e regiões geomorfológicas específicas, como o
Pantanal, a Amazônia, a Mata Atlântica, as zonas costeiras, as planícies ribeirinhas, os vales e
montanhas, os planaltos, o sertão, o agreste, a caatinga, o cerrado e até mesmo a selva de
pedra das grandes cidades.
Para instigar a criatividade e dar vazão à reflexão, sugere-se que as superintendências
do Iphan interessadas elaborem, com liberdade, um esboço do que poderia ser um “mapa das
paisagens culturais brasileiras” em cada estado, como uma primeira introspecção entre técnicos.
O exercício também pode contar com a participação ou mesmo partir da iniciativa dos órgãos
estaduais de preservação, universidades, ou outros. A reflexão nunca deverá, contudo, ser mero
exercício filosófico, devendo sempre imbuir-se de caráter realístico e concreto, onde as
proposições de paisagem cultural coadunar-se-ão com outros estudos e ações de proteção,
preocupando-se também com as implicações da chancela, os parceiros envolvidos e sua
eficácia. A chancela da paisagem cultural nunca deverá ser tratada como mero ato declaratório
e, por isso, o pacto a ser proposto como base para sua consecução deve basear-se em
parceiros e medidas estratégicos para a sua preservação.
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3. Territórios e Itinerários Culturais
Caminho das Tropas (SC). Foto: Acervo Iphan-SC.
Os conceitos de territórios e de itinerários culturais fazem parte, juntamente com as
paisagens culturais, de um esforço mundial de ampliação do próprio conceito de patrimônio
cultural que, há muito tempo deixou de restringir-se apenas aos monumentos e cidades
históricas e passou a ser compreendido a partir de uma noção territorial mais ampla.
No contexto nacional, o lançamento da chancela da Paisagem Cultural Brasileira como
novo instrumento de preservação do patrimônio cultural deu-se no mesmo momento em que se
repensa a própria missão do Iphan enquanto órgão responsável, em nível federal, pelo
estabelecimento das diretrizes gerais de preservação do patrimônio cultural brasileiro e sua
gestão. A noção de que é preciso incrementar a importância e a significância do patrimônio
cultural brasileiro dentre o rol dos assuntos importantes para o desenvolvimento sócioeconômico do país, apesar de uma certa obviedade, é relativamente recente no âmbito dos
órgãos de preservação no Brasil. O Iphan tem empreendido importante esforço no sentido de se
re-posicionar no quadro nacional, deixando de ser uma instituição taxada de acadêmica, elitista e
burocrática para reassumir um papel pró-ativo na política de preservação do patrimônio cultural.
Esta visão vem, assim, ao encontro de um movimento internacional, onde órgãos como a
UNESCO e o ICOMOS já vinham cunhando entendimentos e trabalhando com conceitos como
de paisagem cultural, itinerários e territórios culturais e espírito dos lugares.
Assim, tem-se buscado a atuação em todas as regiões do país, preenchendo lacunas,
ampliando o número de bens tombados em todos os Estados, promovendo inventários temáticos
e territoriais com o objetivo de sintonizar os bens culturais com processos econômicos, fatos
históricos e regiões geográficas que fizeram a fazem parte da história de construção do Brasil.
Nesse cenário está também a proposta de constituição de uma rede de proteção do patrimônio
em cada unidade federativa, baseada no compartilhamento entre governo federal, estados e
municípios da atribuição de proteção e gestão do patrimônio cultural, conforme preconiza a
Constituição Federal de 1988.
Para tanto, apesar de não se constituírem em formas institucionalizadas de preservação
ou gestão – como a paisagem cultural o foi através da Portaria Iphan 187/2009 – a utilização
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dos conceitos de território e de itinerário cultural para o estabelecimento de estratégicas e ações
de preservação do patrimônio cultural brasileiro, deve fazer parte desse processo.
Territórios Culturais
Entende-se como território cultural uma porção territorial ampla, definida por um recorte
político e/ou geográfico pré-estabelecido – um bioma, um ecossistema, uma bacia hidrográfica,
um acidente geográfico, um estado, um município, uma microrregião... – a partir do qual é
possível, através de um mapeamento, identificar as diversas manifestações do patrimônio
cultural, tangível ou intangível, compondo uma espécie de raio-x da região. Os territórios
culturais são caracterizados pela multiplicidade e também pela densidade das ocorrências
culturais – arqueológicas, arquitetônicas, paisagísticas, artísticas, simbólicas... – compondo-se
como um verdadeiro mosaico do patrimônio cultural. A preservação e a gestão de um território
cultural estão diretamente ligadas à noção de rede do patrimônio.
No âmbito do Iphan, os recentes mapeamentos realizados ao longo do Rio São
Francisco (o “rio da integração nacional”) e no Vale do Rio Ribeira, em São Paulo, trouxeram à
tona uma gama significativa de informações a respeito da riqueza e diversidade do patrimônio
cultural existente da nascente à foz, da várzea à montanha, dessas duas bacias hidrográficas.
Reunidas as informações, caracterizada a importância do patrimônio cultural do território
selecionado, cabe ao poder público, “com a colaboração da comunidade”, definir linhas de
atuação que permitam a proteção e a conservação desse patrimônio, seja através do
tombamento, do registro, da chancela, do cadastro ou de outros mecanismos de valoração e
fomento. Para um território cultural nunca caberá apenas um mecanismo de proteção, mas antes
uma miríade de medidas que garantam a preservação da multiplicidade de manifestações
culturais nele expressas.
Fotos do inventário do Rio São Francisco. Paisagens urbanas e rurais, naturais e culturais, e manifestações diversas do patrimônio fazem parte deste
território cultural. Fotos: Acervo Depam/Iphan.
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Itinerários Culturais
Segundo a Carta dos Itinerários Culturais (ICOMOS, 2008),
“O entendimento dos Itinerários Culturais como uma categoria
patrimonial se harmoniza com outras categorias e tipos de Patrimônio
Cultural: monumentos, cidades, paisagens culturais e patrimônios
industriais consagrados e reconhecidos.
[...]
Os Itinerários Culturais e seus meios incluem diferentes paisagens
naturais e culturais que não são apenas uns de seus numerosos
componentes e que não devem ser confundidos com eles. As diferentes
paisagens que apresentam características específicas e distintas
conforme as diferentes zonas e regiões, contribuem para caracterizar
os diferentes trechos do conjunto do Itinerário, enriquecendo-o com sua
diversidade.”1
Assim como a paisagem e o território cultural, o conceito de itinerário cultural
complementa o leque de categorias patrimoniais mais amplas, trabalhadas a partir de recortes
geográficos abrangentes e que, além de interpretar de forma diferenciada as múltiplas
ocorrências do patrimônio, sejam materiais ou imateriais, dando-lhes maior coesão e significação
histórica, conduzem diretamente a um modelo de gestão compartilhada.
Em 2009, o Iphan realizou o primeiro encontro sobre Caminhos Históricos, enfatizando a
necessidade de se estruturar estudos mais aprofundados sobre o tema, bem como mecanismos
que possibilitem a preservação e a promoção de caminhos e itinerários vinculados aos
processos históricos do Brasil. Estudos e propostas de preservação do caminho das tropas, da
estrada real ou caminho do ouro, da rota das monções, dos caminhos dos Peabirus, dos
Roteiros Nacionais de Imigração, das rotas da alforria, a Coluna Prestes, a Comissão Rondon,
fazem parte do leque de temas que constituem os itinerários culturais do Brasil e que devem ser
igualmente conduzidos pelo Iphan e demais órgãos de preservação com vistas à consolidação
de um quadro abrangente sobre o patrimônio cultural brasileiro.
1
Tradução, do original em francês, de Carlos Fernando de Moura Delphim.
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