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Representação democrática em Condorcet

2018, Justiça, teoria crítica e democracia: volume II

Justiça, Teoria Crítica e Democracia 1 4 Justiça, Teoria Crítica e Democracia Justiça, Teoria Crítica e Democracia Volume II Denílson Luís Werle Diana Piroli Eduardo de Borba Jorge Armindo Sell Nunzio Ali Raquel Cipriani Xavier (Orgs.) NEFIPO Florianópolis 2018 Justiça, Teoria Crítica e Democracia Universidade Federal de Santa Catarina Reitor: Ubaldo César Balthazar Departamento de Filosofia Chefe: Jaimir Conte Programa de Pós-Graduação em Filosofia Coordenador: Roberto Wu NEFIPO – Núcleo de Ética e Filosofia Política Coordenador: Denilson Luís Werle Conselho Editorial Corpo Editorial da NéfipOnline Alessandro Pinzani Aylton Barbieri Durão Darlei Dall’Agnol Delamar Dutra Denilson Luís Werle Franciele Petry Janyne Sattler Joel T. Klein Maria de Lourdes Borges Milene Tonetto Alberto Pirni Amandine Catala Amaro Fleck Cristina Foroni Consani Felipe Gonçalves Silva Fernando Costa Matos Fred Rauscher Jorge Sell Luiz Repa Maria Clara Dias Monique Hulshof Nathalie Bressiani Nunzio Ali Nuria Sanchez Madrid Nythamar Oliveira Robson dos Santos Rurion Melo Thomas Mertens Vilmar Debona Yara Frateschi 5 6 Justiça, Teoria Crítica e Democracia NÉFIPO Núcleo de Ética e Filosofia Política Coordenador: Denílson Luís Werle Vice-coordenador: Delamar J. Volpato Dutra Campus Universitário – Trindade – Florianópolis Caixa Postal 476 Departamento de Filosofia – UFSC CEP: 88040-900 http://www.nefipo.ufsc.br/ Capa: Eduardo de Borba Foto: Alessandro Pinzani Editoração: Diana Piroli, Raquel Cipriani Xavier e Eduardo de Borba Catalogação na fonte pela Biblioteca Universitária da Universidade Federal de Santa Catarina Licença de uso Creative Commons: (http://creativecommons.org/licenses/by-nc/3.0/deed.pt) 242 Justiça, Teoria Crítica e Democracia Representação democrática em Condorcet: uma resposta às críticas de Vladimir Safatle? Gustavo Hessmann Dalaqua1 Vladmir Safatle, um dos grandes pensadores políticos da filosofia brasileira contemporânea, há anos vem criticando a noção de representação como falseamento da democracia.2 Com efeito, não seria exagero afirmar que Safatle se consolidou como um dos maiores críticos da representação política entre nós. O objetivo desse texto, em um primeiro momento, será compreender a crítica à representação política presente em Só mais um esforço, último livro que Safatle publicou sobre o assunto. Feito isso, passaremos em revista a concepção de representação democrática elaborada no “Plano de constituição” apresentado por Condorcet, em 1793, à Convenção Nacional francesa. À guisa de conclusão, justaporemos nossos apontamentos sobre Safatle e Condorcet, a fim de mostrar como a concepção de representação democrática esposada por este põe em questão as críticas daquele. 1 Universidade de São Paulo / Fapesp. O autor agradece Maria Isabel Limongi pelos comentários feitos em uma versão preliminar do texto. Eventuais erros que constarem são de responsabilidade do autor. 2 Justiça, Teoria Crítica e Democracia I - A crítica de Safatle à representação política Embora há anos escreva sobre o assunto, é apenas em um de seus últimos livros que Safatle3 elabora a contento sua crítica à representação política.4 No capítulo seis de Só mais um esforço, o filósofo clama pela “instauração de uma verdadeira democracia direta, algo que ainda não conhecemos”5. Segundo Safatle a representação configura uma “sabotagem contínua da soberania popular”: Insistamos no ponto que a esquerda do final do século XX fez questão de esquecer, a saber, que a soberania popular não se representa. Um povo livre nunca delega sua soberania para quem quer que seja. Ele a conserva sempre junto de si. Passar sua soberania para outro é perdê-la. É como passar minha vontade a outro e esperar que a vontade de outro tenha alguma forma de identidade absoluta com a minha vontade.6 Como o próprio Safatle reconhece na continuação da passagem, a crítica segundo a qual a soberania popular é irrepresentável remonta a Rousseau. De fato, no seu repúdio à representação, Safatle endossa duas teses centrais do Contrato social: a soberania 1) restringese à vontade e, como tal, 2) não se representa. Conforme aponta Rousseau, a vontade não é algo que se transmite.7 Não faz sentido falar que nós passamos nossa vontade a outrem, tampouco que vamos 3 Safatle (2017). O artigo “Democracia real” é um dos primeiros textos em que Safatle (2011) identifica a representação como nêmesis da democracia. O repúdio do autor à representação descende de uma avaliação negativa do caráter não-democrático das instituições políticas brasileiras. Nossa leitura crítica da teoria da representação de Safatle, cabe apontar, não tem a intenção de desqualificar a avaliação negativa que o autor faz do papel oligárquico das instituições políticas brasileiras ao longo da história. 4 5 Safatle (2017, p. 125). Ibidem. 7 Rousseau (1973, p. 49-50). 6 243 244 Justiça, Teoria Crítica e Democracia reparti-la com alguém. A vontade, componente único da soberania, não é algo que se incute a um terceiro – é algo que se tem. Sendo inalienável e indivisível, conclui Rousseau, não é passível de representação. Dando prosseguimento à argumentação, Safatle exacerba a polarização entre representação e democracia para, em seguida, apresentar o lado propositivo de sua análise: No entanto, a representação é hoje um arcaísmo político que visa apenas nos afastar de uma democracia real. Na verdade, quem defende a representação, seja a direita, seja a esquerda, encontra nela um bom álibi para esconder seus desejos de controle, para filtrar a sociedade construindo uma imagem da emergência popular mais fácil de controlar. [...] temos atualmente todas as condições técnicas para criar uma sociedade de deliberação contínua baseada em uma democracia digital. Em sociedades que têm nível quase total de conexão virtual, não há mais dificuldades técnicas em imaginar processos decididos através de uma espécie de ágora virtual. Dessa forma, o Estado pode paulatinamente deixar de ser um Estado cuja função é a deliberação para ser um cuja função central serão o reconhecimento e a implementação de processos decisórios que se dão no seu exterior.8 A representação é um arcaísmo que apenas serve para nos afastar da democracia, um mecanismo de controle que deve ser substituído por aquilo que Safatle chama de “democracia digital”. Nesta, o âmbito da decisão política passaria a se dar online, em uma espécie de “ágora virtual” onde qualquer cidadão com acesso à internet poderia participar em pé de igualdade na formulação das políticas públicas.9 O papel do Estado seria, então, o de apenas executar as Safatle (2017, p. 127-8). Safatle não explica como cidadãos sem acesso à internet participariam da democracia digital que defende. 8 9 Justiça, Teoria Crítica e Democracia políticas públicas formuladas por essa multidão de indivíduos que se reuniriam pelas redes digitais. Após apresentar sua proposta de democracia nãorepresentativa, Safatle responde a apenas uma objeção que se poderia levantar contra a implementação de uma democracia direta via internet. Trata-se do que ele chama de objeção tecnocrática: “sempre há os que dizem [contra a democracia digital]: mas como passar decisões técnicas sobre orçamento gastos etc. para um povo despreparado e desinteressado?”10 Safatle sustenta que a apatia política e a consequente desinformação que dela se segue são frutos da própria lógica da representação, que veda ao povo a participação política. Tão logo a representação desvaneça e, por conseguinte, a soberania popular apareça, o povo, ao participar da política, ganhará interesse público e tornar-se-á mais informado sobre as questões coletivas.11 Em suma, representação política e participação popular são termos antitéticos. Por isso mesmo, afirma Safatle, nada mais natural que constatar a existência de “desinteresse popular” pela política em um regime representativo.12 II - Representação democrática em Condorcet A polarização feita por Safatle entre representação e participação não é nova e predominou por boa parte da filosofia política no século XVIII. Nos dois lados do Atlântico, a visão mainstream entre os pensadores políticos setecentistas era a de que o governo representativo se opunha à democracia.13 No final do século XVIII, contudo, uma visão concorrente da representação despontou no plano Safatle (2017, p. 128). Poder-se-ia dizer que, aqui, Safatle mais uma vez dialoga com Rousseau, filósofo que também atribuía caráter pedagógico à participação política. Sobre os benefícios psicológicos e pedagógicos da participação política em Rousseau, ver Carole Pateman (1970, cap. 2). 10 11 12 13 Ibidem. Rosanvallon (2008, p. 107-13). 245 246 Justiça, Teoria Crítica e Democracia constitucional que, em fevereiro de 1793, Condorcet apresentou perante a Convenção Nacional. Com o seu plano, Condorcet “redefiniu a relação entre democracia e representação” e sustentou que, longe de antitéticas, ambas poderiam ser complementares.14 Condorcet inicia o “Plano de constituição” sublinhando que a representação pode ser pensada de dois modos. À maneira de Rousseau, pode-se pensar que, em um governo representativo, os cidadãos comuns abdicam da participação política porque o voto é a única atividade que lhes é reservada.15 É sobretudo nessa primeira acepção que a representação é repudiada por Safatle. Todavia, do fato de que a representação possa operar de modo não democrático, Condorcet não haure que o governo representativo jamais possa ser democratizado. Logo após constatar que o governo representativo pode servir como meio de contenção da participação democrática, ele ressalta que as instituições representativas podem dar guarida à democracia se mantiverem uma relação circular entre os que estão fora delas. A representação opera democraticamente quando o lado de dentro e o lado de fora das instituições governamentais mantêm uma relação dialógica entre si – o que, por seu turno, compele os representantes a portar-se de modo responsivo perante os eleitores. “[M]esmo sob uma Constituição representativa, talvez seja útil que um exercício imediato [do poder político] chame os cidadãos à existência e à realidade”.16 O acréscimo do advérbio “talvez” reflete a consciência que Condorcet tinha da excentricidade de sua proposta. A visão predominante no pensamento político de então, como se afirmou, era a de que a representação excluiria por completo a participação direta dos cidadãos na política. Visando contrariá-la, Condorcet aposta em uma concepção democrática da representação. Condorcet deixa claro que o mecanismo eleitoral é insuficiente para gerar uma representação democrática. Além do sufrágio, ele propõe a criação de “Assembleias Primárias”, espaços de discussão 14 Urbinati (2006, p. 176). Cf. também Cristina Foroni Consani (2014, p. 138). A tese de que representação e democracia seriam complementares fora apresentada, alguns meses antes, por um filósofo muito próximo de Condorcet, qual seja, Thomas Paine (1989 [1792]). 15 Condorcet (2013, p. 67). 16 Ibid., p. 68. Justiça, Teoria Crítica e Democracia pública localizados no âmbito de uma vizinhança que funcionariam sete dias por semana, em especial aos domingos, de modo que eleitores trabalhadores também pudessem participar. Responsável pela mediação entre o lado de dentro e o lado de fora das instituições representativas, as Assembleias Primárias forneceriam aos cidadãos comuns uma lista dos temas que estariam sendo debatidos, dentro das assembleias representativas, pelos representantes eleitos, e disponibilizariam procedimentos que permitiriam a qualquer cidadão propor a feitura de novas leis e a revisão – ou quiçá exclusão – de leis já existentes: Qualquer cidadão pode propor à sua Assembleia Primária para esta demandar que uma lei seja submetida a um novo exame ou exprimir o desejo de ser assegurado, por uma lei nova, contra uma desordem pela qual ele é golpeado. Exige-se somente que mais 50 cidadãos assinem com ele (CONDORCET, 2013, p. 76). Uma vez que ao menos cinquenta cidadãos residentes sob a jurisdição de uma Assembleia Primária apresentassem sua queixa, as outras Assembleias Primárias contidas na região avaliariam se a mesma era procedente.17 Se a maioria destas julgar que sim, então “todas as assembleias de uma divisão [territorial] mais extensa são convocadas” a examinar a proposição em questão (ibidem). Se a maioria destas também decidir que a proposição deve ser avaliada pelo Legislativo nacional, “a assembleia dos representantes do povo é obrigada a examinar não a proposição nela mesma, mas somente se ela crê dever ocupar-se disso”18 Se ela se recusa a fazê-lo, todas as Embora não determine quantas Assembleias Primárias uma democracia representativa deveria ter, no “Projeto de constituição francesa”, Condorcet (2013, p. 130) declara que as Assembleias Primárias serão subdivisões dos munícipios. No caso específico da França de 1793, Condorcet (2013, p. 132) estabelece que a jurisdição territorial de cada Assembleia Primária deveria abranger, no mínimo, 450 cidadãos, e no máximo, 900. 17 18 Ibidem. 247 248 Justiça, Teoria Crítica e Democracia Assembleias Primárias da nação são convocadas a avaliar a queixa. Se a maioria destas concordar com os representantes, a queixa inicial é, finalmente, rejeitada. Mas se a maioria das Assembleias Primárias discordar deles, “a assembleia [nacional dos representantes], que parece desde então ter perdido a confiança nacional, deve ser renovada” 19 Há, portanto, um incentivo enorme para que os representantes do Legislativo nacional avaliem as reclamações que recebem das Assembleias Primárias. Caso se recusem a avaliar as queixas enviadas pelos representados, os representantes correm o risco de ter seu mandado cassado, haja vista Condorcet conceder ao povo o direito de destituir imediatamente os representantes que se recusam “a escutar a voz” do povo.20 A sustentação de uma representação democrática exige que representantes contrários à manutenção de uma relação dialógica com os representados abdiquem do poder. Poder-se-ia objetar que a criação de espaços públicos onde o povo pudesse se reunir para reclamar do governo “causar[ia] perturbações”.21 Lançando mão de um argumento que evoca Maquiavel,22 Condorcet desqualifica a objeção sublinhando que, longe de gerar instabilidade, dar vazão institucional às queixas populares diminui a probabilidade de derrubada do governo instituído. “A reunião dos cidadãos nas Assembleias Primárias deve ser considerada antes um meio de conciliar a paz com a liberdade do que um perigo para a tranquilidade pública”.23 A defesa da democracia representativa em Condorcet é também uma tentativa de institucionalizar os ímpetos revolucionários do povo, que, na visão do autor, sempre tendem a emergir.24 Ao criar um canal institucional para a expressão do descontentamento popular, as Assembleias Primárias contribuiriam para a estabilidade do governo representativo. A complexidade do arranjo operacional das Assembleias Primárias revela dois apanágios centrais da democracia representativa condorcetiana: “a multiplicação dos espaços de debate e um sistema complexo Ibidem. Ibid., p. 80 21 Ibid., p. 68 22 Maquiavel (2008, p. 41-3). 23 Ibid., p. 73 24 Ibid., p. 74 19 20 Justiça, Teoria Crítica e Democracia de alongamentos temporais.”25 Juntas, essas duas características tornariam a democracia representativa preferível à democracia direta. Para Condorcet, a democracia representativa não é um sucedâneo inferior da democracia direta. Esse ponto é digno de nota porque quem lê, no início do “Plano de constituição”, que a “extensão da República [francesa] permite propor apenas uma Constituição representativa” pode ficar com a impressão de que Condorcet26 concebia a representação como um mal necessário. Como se o ideal fosse viver em uma cidade-Estado pequena, onde a democracia direta pudesse ser aplicada. Porém, como o Estadonação moderno é populacional e territorialmente muito grande, a representação, infelizmente, seria necessária. Uma inspeção mais aprofundada do texto, contudo, revela a impropriedade de semelhante impressão. De fato, Condorcet pode ser considerado um dos antecessores intelectuais da “virada representativa” – corrente de teóricos e teóricas que, desde meados da década de 1990, afirma que a democracia representativa é um regime válido em si mesmo – na medida em que mostra que a democracia representativa constitui um regime de governo superior à democracia direta.27 Ao multiplicar os espaços de deliberação e instituir alongamentos temporais, a representação tende a evitar a imprudência que decisões apressadas costumam ter. A pressuposição de Condorcet é a de que a exigência de várias deliberações, que se dão em um longo espaço de tempo, diminui as chances de que uma proposta política ruim se torne lei. A distensão temporal incluída na representação, de acordo com Condorcet, minimiza a influência de paixões violentas e potencializa o efeito da razão sobre a política.28 25 Urbinati (2006, p. 196). Condorcet (2013, p. 67). 27 Para uma boa reconstrução histórica da virada representativa na teoria democrática contemporânea, ver a introdução de Mónica Brito Vieira (2017). 28 Condorcet (2013, p. 123) pensava ser melhor reduzir a influência das paixões no jogo político e aumentar aquela exercida pela razão. Como uma parte significativa dos filósofos do seu tempo, Condorcet concebia paixão e razão como termos dicotômicos. A oposição entre os termos levou o filósofo a criticar os partidos políticos, haja vista estes trazerem as paixões para dentro 26 249 250 Justiça, Teoria Crítica e Democracia O esquema representativo condorcetiano tem como um de seus objetivos refinar o juízo político dos cidadãos. “A percepção teórica do plano constitucional [de Condorcet] é a de que a política é um trabalho de interpretação do juízo político”29. Para Condorcet, a representação política acentua o caráter compósito da soberania política, pois põe em relevo o fato de que ela envolve não apenas a vontade, mas também o juízo dos cidadãos30. Conforme minudencia Nadia Urbinati31 a filosofia de Condorcet nos permite perceber que, em uma democracia representativa, a soberania popular configura uma diarquia: de um lado, é composta pela vontade (manifesta na decisão tomada no interior da assembleia representativa e no exercício do sufrágio de cada eleitor no momento das eleições); de outro, pelo juízo das pessoas que deliberam em espaços como as Assembleia Primárias, a imprensa etc.32 A instanciação da vontade se dá no momento do voto, não é passível de representação e seu exercício político, ao menos para os que não foram eleitos, se dá geralmente em intervalos de tempo consideráveis.33 Para Condorcet, a vontade é um polo da soberania que, à exceção do momento eleitoral, permanece prerrogativa da assembleia representativa. Mas daqui não se segue, entretanto, que o povo deixe de participar do poder soberano só porque está fora da assembleia da política (ibid., p. 121-3). Sobre a ojeriza de Condorcet aos partidos políticos, ver Nancy Rosenblum (2008, p. 145). Sobre a importância da razão para a democracia representativa condorcetiana, cf. Hélène Landemore (2013, p. 70-5). 29 Urbinati (2006, p. 191) 30 Rosanvallon (2006, p. 200). 31 Urbinati (2006, cap. 6). 32 Conforme explica Hubertus Buchstein, “diarquia” é uma palavra composta por dois termos gregos: dis, adjetivo que significa “duplo”, e arché, sufixo que pode ser traduzido como “poder” (apud ACCETTI et al., 2016, p. 209). Afirmar que a soberania em uma democracia representativa é diárquica significa, pois, afirmar que ela se exerce por meio de dois poderes. Para uma explanação mais detalhada do aspecto diárquico da democracia representativa, ver também Urbinati (2014, cap. 1). 33 Dizemos geralmente porque, para Condorcet, as eleições poderiam ser antecipadas caso os representantes eleitos desrespeitassem os juízos populares. Justiça, Teoria Crítica e Democracia representativa. Os cidadãos que não foram eleitos para a assembleia permanecem “membros do soberano” porque o exercício do juízo é um polo de poder da soberania que, em uma democracia representativa, poderia ser exercitado sempre que eles quisessem.34 Não só poderia como deveria ser exercitado. Afinal, é o exercício do juízo que salvaguarda o aspecto democrático da representação no intervalo entre as eleições populares para representantes. O Estado deve, portanto, esmerar-se para garantir que os cidadãos exerçam seu juízo constantemente. Mais ainda, deve esmerar-se para que o juízo popular influa sobre os processos decisórios que se desdobram no interior da assembleia representativa. Condorcet foi um dos primeiros filósofos a entender que o que torna a representação democrática é justamente a preservação de uma relação circular entre o juízo dos cidadãos na esfera pública e a vontade decisória dos representantes na assembleia. É nessa perspectiva que se insere sua proposta de criar vínculos comunicativos entre as decisões promulgadas pela assembleia representativa nacional (vontade) e as opiniões dos cidadãos na sociedade civil (juízo) por meio de espaços como as Assembleias Primárias. III - Conclusão: desfazendo a antítese representação vs . participação A concepção de representação democrática em Condorcet põe em questão as duas principais críticas que Safatle dirige à representação. Para Safatle, vale lembrar, a representação nos afasta da democracia por dois motivos: primeiro, porque sabota a soberania popular, haja vista a soberania se resumir à vontade, faculdade que não tem como ser representada; segundo, porque inviabiliza a participação popular, que só pode se instanciar em um regime político como o da “democracia digital”, no qual o demos exerce sua vontade soberana imediatamente.35 34 35 Condorcet (2013, p. 73). Safatle (2017, p. 128). 251 252 Justiça, Teoria Crítica e Democracia Safatle decerto tem razão quando afirma que a vontade não se representa. Porém, uma vez que justapomos sua filosofia à de Condorcet, podemos redarguir que o fato de a vontade não poder ser representada não significa que a representação política sempre vai contra a soberania popular. Deve-se reconhecer, com efeito, que a soberania em uma democracia representativa extravasa as instituições estatais e abarca também o fórum público das opiniões, âmbito no qual os cidadãos e cidadãs permanecem membros do soberano, na medida em que exercitam seu juízo político. A existência de uma representação democrática põe em marcha uma soberania diárquica, a partir da qual o poder soberano passa a se exercer não só pela vontade, como também pelo juízo das pessoas. Por isso mesmo, a filosofia de Condorcet torna duvidosa a segunda crítica de Safatle, a saber, a de que participação popular só se exerce imediatamente, tal como ocorreria numa democracia digital. Se o processo de refinamento do juízo também faz parte do exercício do poder soberano, podemos, por conseguinte, sustentar que o alongamento temporal envolvido no mecanismo representativo é conducente à soberania popular. A ânsia de querer que o povo vote aqui e agora pode gerar uma participação individualizada que, ao fim e ao cabo, destrói a soberania popular. Daí o alerta que Dominique Cardon faz aos entusiastas da democracia digital: quando a participação política se restringe a uma massa de indivíduos que, por meio das redes digitais, vota incessantemente sobre as mais variadas questões, a própria noção de coletividade se torna problemática. O que temos, então, é uma série de “indivíduos singularizados”, presos à perspectiva de um presente absoluto, que é incapaz de apreender a trama temporal das questões coletivas.36 O povo, enquanto sujeito político coletivo, é ele próprio uma figura do tempo e, portanto, necessita do mecanismo representativo para afigurar- Cardon (2016, p. 297). Para uma crítica do “presentismo” implícito na democracia direta, ver também Íñigo Errejón e Chantal Mouffe (2015, p. 102). 36 Justiça, Teoria Crítica e Democracia se.37 O aspecto histórico-temporal, constitutivo da política, se esvai na ausência da representação. Sendo assim, não surpreende que, na prática, a exigência de que a participação das pessoas se exerça apenas online e imediatamente gere não o empoderamento do povo, mas sim o que Cardon chama de “despolitização”.38 Em suma, o conceito de representação democrática apresentado por Condorcet lança dúvidas quanto à propriedade das críticas que Safatle dirige à representação política. De fato, a teoria democrática condorcetiana parece corroborar os apontamentos de Ernesto Laclau: a resposta para o déficit democrático que assola os governos atuais não reside no clamor pelo fim da representação.39 Reside, antes, no clamor por mais representação, uma vez que apenas os interesses de grupos poderosos se fazem representar nos dias de hoje. Longe de insistir em um suposto antagonismo inelidível entre participação e representação e conclamar pela inauguração de uma democracia digital imediata, talvez seja melhor lutar pela instauração de 37 Rosanvallon (2000, p. 409-10). 38 Cardon (2016, p. 301). Carl Schmitt oferece uma crítica similar quando afirma que a criação de máquinas que permitissem aos eleitores votar sem sair de casa provocaria a privatização da política (BUCHSTEIN, 2015, p. 41). Seja como for, no caso contemporâneo, convém ressaltar que a tecnologia digital, em si mesma, não é o problema. Ainda que seja prejudicial quando provoca uma participação política imediatista e individualizada, a tecnologia digital pode revigorar a democracia se operar ao lado, e não ao largo, da representação (DISCH, OUZIEL, LAWSON et al., 2016, p. 443). Tal não é, contudo, a proposta de Safatle, visto que a ideia de que a representação permeie mecanismos de participação direta lhe é inconcebível. No entanto, conforme destaca Robert Dahl (2000, p. 108), a representação permanece operante mesmo em assembleias políticas presenciais. Quando, por exemplo, uma trabalhadora participa de um conselho de saúde para exigir que o posto de saúde do seu bairro funcione aos domingos, ela age como uma representante das trabalhadoras. Nas assembleias presenciais ou arenas digitais em que as pessoas participam diretamente, a representação permanece em operação sempre que as pautas que se discutem são abordadas sob uma perspectiva coletiva, e não meramente idiossincrática. 39 Laclau (1996, p. 99). 253 254 Justiça, Teoria Crítica e Democracia uma representação genuinamente democrática, tal qual aquela esboçada por Condorcet. Referências bibliográficas ACCETTI, Carlo Invernizzi et al. representative democracy. Contemporary Theory, v. 15, n. 2, pp. 205–242, 2016. Debating Political BUCHSTEIN, Hubertus. Public voting and political modernization: Different views from the nineteenth century and new ideas to modernize voting procedure. In: ELSTER, Jon (org.). Secrecy and Publicity in Votes and Debates. Cambridge: Cambridge University Press, 2015, pp. 15-51. CARDON, Dominique. As mobilizações de indivíduos na internet. In: MENDONÇA, Ricardo Fabrino; PEREIRA, Marcus Abílio; FILGUEIRAS, Fernando (orgs.). 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