Justiça, Teoria Crítica e Democracia
1
4
Justiça, Teoria Crítica e Democracia
Justiça, Teoria
Crítica e
Democracia
Volume II
Denílson Luís Werle
Diana Piroli
Eduardo de Borba
Jorge Armindo Sell
Nunzio Ali
Raquel Cipriani Xavier
(Orgs.)
NEFIPO
Florianópolis
2018
Justiça, Teoria Crítica e Democracia
Universidade Federal de Santa Catarina
Reitor: Ubaldo César Balthazar
Departamento de Filosofia
Chefe: Jaimir Conte
Programa de Pós-Graduação em Filosofia
Coordenador: Roberto Wu
NEFIPO – Núcleo de Ética e Filosofia Política
Coordenador: Denilson Luís Werle
Conselho Editorial
Corpo Editorial da
NéfipOnline
Alessandro Pinzani
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Darlei Dall’Agnol
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Denilson Luís Werle
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Milene Tonetto
Alberto Pirni
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Amaro Fleck
Cristina Foroni Consani
Felipe Gonçalves Silva
Fernando Costa Matos
Fred Rauscher
Jorge Sell
Luiz Repa
Maria Clara Dias
Monique Hulshof
Nathalie Bressiani
Nunzio Ali
Nuria Sanchez Madrid
Nythamar Oliveira
Robson dos Santos
Rurion Melo
Thomas Mertens
Vilmar Debona
Yara Frateschi
5
6
Justiça, Teoria Crítica e Democracia
NÉFIPO
Núcleo de Ética e Filosofia Política
Coordenador: Denílson Luís Werle
Vice-coordenador: Delamar J. Volpato Dutra
Campus Universitário – Trindade – Florianópolis
Caixa Postal 476 Departamento de Filosofia – UFSC
CEP: 88040-900
http://www.nefipo.ufsc.br/
Capa: Eduardo de Borba
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Editoração: Diana Piroli, Raquel Cipriani Xavier e Eduardo de Borba
Catalogação na fonte pela Biblioteca Universitária da Universidade Federal de Santa
Catarina
Licença de uso Creative Commons:
(http://creativecommons.org/licenses/by-nc/3.0/deed.pt)
242
Justiça, Teoria Crítica e Democracia
Representação democrática em Condorcet:
uma resposta às críticas de Vladimir Safatle?
Gustavo Hessmann Dalaqua1
Vladmir Safatle, um dos grandes pensadores políticos da
filosofia brasileira contemporânea, há anos vem criticando a noção de
representação como falseamento da democracia.2 Com efeito, não
seria exagero afirmar que Safatle se consolidou como um dos maiores
críticos da representação política entre nós. O objetivo desse texto, em
um primeiro momento, será compreender a crítica à representação
política presente em Só mais um esforço, último livro que Safatle publicou
sobre o assunto. Feito isso, passaremos em revista a concepção de
representação democrática elaborada no “Plano de constituição”
apresentado por Condorcet, em 1793, à Convenção Nacional francesa.
À guisa de conclusão, justaporemos nossos apontamentos sobre
Safatle e Condorcet, a fim de mostrar como a concepção de
representação democrática esposada por este põe em questão as
críticas daquele.
1
Universidade de São Paulo / Fapesp.
O autor agradece Maria Isabel Limongi pelos comentários feitos em
uma versão preliminar do texto. Eventuais erros que constarem
são de responsabilidade do autor.
2
Justiça, Teoria Crítica e Democracia
I - A crítica de Safatle à representação política
Embora há anos escreva sobre o assunto, é apenas em um de
seus últimos livros que Safatle3 elabora a contento sua crítica à
representação política.4 No capítulo seis de Só mais um esforço, o filósofo
clama pela “instauração de uma verdadeira democracia direta, algo que
ainda não conhecemos”5. Segundo Safatle a representação configura
uma “sabotagem contínua da soberania popular”:
Insistamos no ponto que a esquerda do final do
século XX fez questão de esquecer, a saber, que a
soberania popular não se representa. Um povo
livre nunca delega sua soberania para quem quer
que seja. Ele a conserva sempre junto de si. Passar
sua soberania para outro é perdê-la. É como
passar minha vontade a outro e esperar que a
vontade de outro tenha alguma forma de
identidade absoluta com a minha vontade.6
Como o próprio Safatle reconhece na continuação da
passagem, a crítica segundo a qual a soberania popular é irrepresentável
remonta a Rousseau. De fato, no seu repúdio à representação, Safatle
endossa duas teses centrais do Contrato social: a soberania 1) restringese à vontade e, como tal, 2) não se representa. Conforme aponta
Rousseau, a vontade não é algo que se transmite.7 Não faz sentido falar
que nós passamos nossa vontade a outrem, tampouco que vamos
3
Safatle (2017).
O artigo “Democracia real” é um dos primeiros textos em que Safatle (2011)
identifica a representação como nêmesis da democracia. O
repúdio do autor à representação descende de uma avaliação negativa
do caráter não-democrático das instituições políticas brasileiras. Nossa
leitura crítica da teoria da representação de Safatle, cabe apontar, não
tem a intenção de desqualificar a avaliação negativa que o
autor faz do papel oligárquico das instituições políticas brasileiras ao
longo da história.
4
5
Safatle (2017, p. 125).
Ibidem.
7
Rousseau (1973, p. 49-50).
6
243
244
Justiça, Teoria Crítica e Democracia
reparti-la com alguém. A vontade, componente único da soberania, não
é algo que se incute a um terceiro – é algo que se tem. Sendo inalienável
e indivisível, conclui Rousseau, não é passível de representação.
Dando prosseguimento à argumentação, Safatle exacerba a
polarização entre representação e democracia para, em seguida,
apresentar o lado propositivo de sua análise:
No entanto, a representação é hoje um arcaísmo
político que visa apenas nos afastar de uma
democracia real. Na verdade, quem defende a
representação, seja a direita, seja a esquerda,
encontra nela um bom álibi para esconder seus
desejos de controle, para filtrar a sociedade
construindo uma imagem da emergência popular
mais fácil de controlar. [...] temos atualmente
todas as condições técnicas para criar uma
sociedade de deliberação contínua baseada em
uma democracia digital. Em sociedades que têm
nível quase total de conexão virtual, não há mais
dificuldades técnicas em imaginar processos
decididos através de uma espécie de ágora virtual.
Dessa forma, o Estado pode paulatinamente
deixar de ser um Estado cuja função é a
deliberação para ser um cuja função central serão
o reconhecimento e a implementação de
processos decisórios que se dão no seu exterior.8
A representação é um arcaísmo que apenas serve para nos
afastar da democracia, um mecanismo de controle que deve ser
substituído por aquilo que Safatle chama de “democracia digital”.
Nesta, o âmbito da decisão política passaria a se dar online, em uma
espécie de “ágora virtual” onde qualquer cidadão com acesso à internet
poderia participar em pé de igualdade na formulação das políticas
públicas.9 O papel do Estado seria, então, o de apenas executar as
Safatle (2017, p. 127-8).
Safatle não explica como cidadãos sem acesso à internet participariam da
democracia digital que defende.
8
9
Justiça, Teoria Crítica e Democracia
políticas públicas formuladas por essa multidão de indivíduos que se
reuniriam pelas redes digitais.
Após apresentar sua proposta de democracia nãorepresentativa, Safatle responde a apenas uma objeção que se poderia
levantar contra a implementação de uma democracia direta via internet.
Trata-se do que ele chama de objeção tecnocrática: “sempre há os que
dizem [contra a democracia digital]: mas como passar decisões técnicas
sobre orçamento gastos etc. para um povo despreparado
e desinteressado?”10 Safatle sustenta que a apatia política e a
consequente desinformação que dela se segue são frutos da
própria lógica da representação, que veda ao povo a
participação política. Tão logo a representação desvaneça e,
por conseguinte, a soberania popular apareça, o povo, ao
participar da política, ganhará interesse público e tornar-se-á mais
informado sobre as questões coletivas.11 Em suma, representação
política e participação popular são termos antitéticos. Por isso
mesmo, afirma Safatle, nada mais natural que constatar a existência
de “desinteresse popular” pela política em um regime representativo.12
II - Representação democrática em Condorcet
A polarização feita por Safatle entre representação e
participação não é nova e predominou por boa parte da filosofia política
no século XVIII. Nos dois lados do Atlântico, a visão mainstream entre
os pensadores políticos setecentistas era a de que o governo
representativo se opunha à democracia.13 No final do século XVIII,
contudo, uma visão concorrente da representação despontou no plano
Safatle (2017, p. 128).
Poder-se-ia dizer que, aqui, Safatle mais uma vez dialoga com Rousseau,
filósofo que também atribuía caráter pedagógico à participação política. Sobre
os benefícios psicológicos e pedagógicos da participação política em Rousseau,
ver Carole Pateman (1970, cap. 2).
10
11
12
13
Ibidem.
Rosanvallon (2008, p. 107-13).
245
246
Justiça, Teoria Crítica e Democracia
constitucional que, em fevereiro de 1793, Condorcet apresentou
perante a Convenção Nacional. Com o seu plano, Condorcet
“redefiniu a relação entre democracia e representação” e sustentou que,
longe de antitéticas, ambas poderiam ser complementares.14
Condorcet inicia o “Plano de constituição” sublinhando que a
representação pode ser pensada de dois modos. À maneira de Rousseau,
pode-se pensar que, em um governo representativo, os cidadãos comuns
abdicam da participação política porque o voto é a única atividade que
lhes é reservada.15 É sobretudo nessa primeira acepção que a
representação é repudiada por Safatle. Todavia, do fato de que a
representação possa operar de modo não democrático, Condorcet não
haure que o governo representativo jamais possa ser democratizado.
Logo após constatar que o governo representativo pode servir como
meio de contenção da participação democrática, ele ressalta que as
instituições representativas podem dar guarida à democracia se
mantiverem uma relação circular entre os que estão fora delas. A
representação opera democraticamente quando o lado de dentro e o
lado de fora das instituições governamentais mantêm uma relação
dialógica entre si – o que, por seu turno, compele os representantes a
portar-se de modo responsivo perante os eleitores.
“[M]esmo sob uma Constituição representativa, talvez seja útil
que um exercício imediato [do poder político] chame os cidadãos à
existência e à realidade”.16 O acréscimo do advérbio “talvez” reflete a
consciência que Condorcet tinha da excentricidade de sua proposta. A
visão predominante no pensamento político de então, como se afirmou,
era a de que a representação excluiria por completo a participação direta
dos cidadãos na política. Visando contrariá-la, Condorcet aposta em
uma concepção democrática da representação.
Condorcet deixa claro que o mecanismo eleitoral é insuficiente
para gerar uma representação democrática. Além do sufrágio, ele
propõe a criação de “Assembleias Primárias”, espaços de discussão
14
Urbinati (2006, p. 176). Cf. também Cristina Foroni Consani (2014, p.
138). A tese de que representação e democracia seriam complementares fora
apresentada, alguns meses antes, por um filósofo muito próximo de
Condorcet, qual seja, Thomas Paine (1989 [1792]).
15
Condorcet (2013, p. 67).
16
Ibid., p. 68.
Justiça, Teoria Crítica e Democracia
pública localizados no âmbito de uma vizinhança que funcionariam sete
dias por semana, em especial aos domingos, de modo que
eleitores trabalhadores também pudessem participar. Responsável pela
mediação entre o lado de dentro e o lado de fora das
instituições representativas, as Assembleias Primárias forneceriam
aos cidadãos comuns uma lista dos temas que estariam sendo
debatidos, dentro das assembleias
representativas,
pelos
representantes
eleitos,
e disponibilizariam procedimentos que
permitiriam a qualquer cidadão propor a feitura de novas leis e a
revisão – ou quiçá exclusão – de leis já existentes:
Qualquer cidadão pode propor à sua Assembleia
Primária para esta demandar que uma lei seja
submetida a um novo exame ou exprimir o desejo
de ser assegurado, por uma lei nova, contra uma
desordem pela qual ele é golpeado. Exige-se
somente que mais 50 cidadãos assinem com ele
(CONDORCET, 2013, p. 76).
Uma vez que ao menos cinquenta cidadãos residentes sob a
jurisdição de uma Assembleia Primária apresentassem sua queixa,
as outras Assembleias Primárias contidas na região avaliariam se a
mesma era procedente.17 Se a maioria destas julgar que sim, então
“todas as assembleias de uma divisão [territorial] mais extensa são
convocadas” a examinar a proposição em questão (ibidem). Se a maioria
destas também decidir que a proposição deve ser avaliada pelo
Legislativo nacional, “a assembleia dos representantes do povo é
obrigada a examinar não a proposição nela mesma, mas somente se ela
crê dever ocupar-se disso”18 Se ela se recusa a fazê-lo, todas as
Embora não determine quantas Assembleias Primárias uma democracia
representativa deveria ter, no “Projeto de constituição francesa”, Condorcet
(2013, p. 130) declara que as Assembleias Primárias serão subdivisões dos
munícipios. No caso específico da França de 1793, Condorcet (2013, p. 132)
estabelece que a jurisdição territorial de cada Assembleia Primária
deveria abranger, no mínimo, 450 cidadãos, e no máximo, 900.
17
18
Ibidem.
247
248
Justiça, Teoria Crítica e Democracia
Assembleias Primárias da nação são convocadas a avaliar a queixa. Se a
maioria destas concordar com os representantes, a queixa inicial é,
finalmente, rejeitada. Mas se a maioria das Assembleias Primárias
discordar deles, “a assembleia [nacional dos representantes], que parece
desde então ter perdido a confiança nacional, deve ser renovada” 19
Há, portanto, um incentivo enorme para que os representantes
do Legislativo nacional avaliem as reclamações que recebem das
Assembleias Primárias. Caso se recusem a avaliar as queixas enviadas
pelos representados, os representantes correm o risco de ter seu
mandado cassado, haja vista Condorcet conceder ao povo o direito de
destituir imediatamente os representantes que se recusam “a escutar a
voz” do povo.20 A sustentação de uma representação democrática exige
que representantes contrários à manutenção de uma relação dialógica
com os representados abdiquem do poder.
Poder-se-ia objetar que a criação de espaços públicos onde o
povo pudesse se reunir para reclamar do governo
“causar[ia] perturbações”.21 Lançando mão de um argumento
que evoca Maquiavel,22 Condorcet desqualifica a objeção sublinhando
que, longe de gerar instabilidade, dar vazão institucional às queixas
populares diminui a probabilidade de derrubada do governo instituído.
“A reunião dos cidadãos nas Assembleias Primárias deve ser
considerada antes um meio de conciliar a paz com a liberdade do que um
perigo para a tranquilidade pública”.23 A defesa da democracia
representativa em Condorcet é também uma tentativa de
institucionalizar os ímpetos revolucionários do povo, que, na visão do
autor, sempre tendem a emergir.24 Ao criar um canal institucional para
a expressão do descontentamento popular, as Assembleias
Primárias contribuiriam para a estabilidade do governo representativo.
A complexidade do arranjo operacional das Assembleias
Primárias revela dois apanágios centrais da democracia representativa
condorcetiana: “a multiplicação dos espaços de debate e um sistema complexo
Ibidem.
Ibid., p. 80
21
Ibid., p. 68
22
Maquiavel (2008, p. 41-3).
23
Ibid., p. 73
24
Ibid., p. 74
19
20
Justiça, Teoria Crítica e Democracia
de alongamentos temporais.”25 Juntas, essas duas características tornariam
a democracia representativa preferível à democracia direta. Para
Condorcet, a democracia representativa não é um sucedâneo
inferior da democracia direta. Esse ponto é digno de nota porque
quem lê, no início do “Plano de constituição”, que a “extensão
da
República
[francesa]
permite
propor
apenas
uma
Constituição representativa” pode ficar com a impressão de
que Condorcet26 concebia a representação como um mal necessário.
Como se o ideal fosse viver em uma cidade-Estado pequena, onde a
democracia direta pudesse ser aplicada. Porém, como o Estadonação moderno é populacional e territorialmente muito grande,
a representação, infelizmente, seria necessária.
Uma inspeção mais aprofundada do texto, contudo, revela a
impropriedade de semelhante impressão. De fato, Condorcet pode ser
considerado um dos antecessores intelectuais da “virada
representativa” – corrente de teóricos e teóricas que, desde meados da
década de 1990, afirma que a democracia representativa é um
regime válido em si mesmo – na medida em que mostra que a
democracia representativa constitui um regime de governo superior
à democracia direta.27 Ao multiplicar os espaços de deliberação
e instituir alongamentos temporais, a representação tende a evitar a
imprudência que decisões apressadas costumam ter. A pressuposição
de Condorcet é a de que a exigência de várias deliberações, que se
dão em um longo espaço de tempo, diminui as chances de que uma
proposta política ruim se torne lei. A distensão temporal incluída na
representação, de acordo com Condorcet, minimiza a influência de
paixões violentas e potencializa o efeito da razão sobre a política.28
25
Urbinati (2006, p. 196).
Condorcet (2013, p. 67).
27
Para uma boa reconstrução histórica da virada representativa na teoria
democrática contemporânea, ver a introdução de Mónica Brito Vieira (2017).
28 Condorcet (2013, p. 123) pensava ser melhor reduzir a influência das
paixões no jogo político e aumentar aquela exercida pela razão. Como uma
parte significativa dos filósofos do seu tempo, Condorcet concebia paixão e
razão como termos dicotômicos. A oposição entre os termos levou o filósofo a
criticar os partidos políticos, haja vista estes trazerem as paixões para dentro
26
249
250
Justiça, Teoria Crítica e Democracia
O esquema representativo condorcetiano tem como um de seus
objetivos refinar o juízo político dos cidadãos. “A percepção teórica
do plano constitucional [de Condorcet] é a de que a política é um
trabalho de interpretação do juízo político”29. Para Condorcet, a
representação política acentua o caráter compósito da soberania
política, pois põe em relevo o fato de que ela envolve não apenas
a vontade, mas também o juízo dos cidadãos30. Conforme
minudencia Nadia Urbinati31 a filosofia de Condorcet nos permite
perceber que, em uma democracia representativa, a soberania popular
configura uma diarquia: de um lado, é composta pela vontade
(manifesta na decisão tomada no interior da assembleia
representativa e no exercício do sufrágio de cada eleitor no
momento das eleições); de outro, pelo juízo das pessoas que deliberam
em espaços como as Assembleia Primárias, a imprensa etc.32
A instanciação da vontade se dá no momento do voto, não é
passível de representação e seu exercício político, ao menos para os que
não foram eleitos, se dá geralmente em intervalos de tempo
consideráveis.33 Para Condorcet, a vontade é um polo da soberania que,
à exceção do momento eleitoral, permanece prerrogativa da assembleia
representativa. Mas daqui não se segue, entretanto, que o povo deixe de
participar do poder soberano só porque está fora da assembleia
da política (ibid., p. 121-3). Sobre a ojeriza de Condorcet aos partidos
políticos, ver Nancy Rosenblum (2008, p. 145). Sobre a importância da razão
para a democracia representativa condorcetiana, cf. Hélène Landemore
(2013, p. 70-5).
29
Urbinati (2006, p. 191)
30
Rosanvallon (2006, p. 200).
31
Urbinati (2006, cap. 6).
32
Conforme explica Hubertus Buchstein, “diarquia” é uma palavra composta
por dois termos gregos: dis, adjetivo que significa “duplo”, e arché, sufixo que
pode ser traduzido como “poder” (apud ACCETTI et al., 2016, p. 209).
Afirmar que a soberania em uma democracia representativa é diárquica
significa, pois, afirmar que ela se exerce por meio de dois poderes. Para
uma explanação mais detalhada do aspecto diárquico da democracia
representativa, ver também Urbinati (2014, cap. 1).
33
Dizemos geralmente porque, para Condorcet, as eleições poderiam ser
antecipadas caso os representantes eleitos desrespeitassem os juízos populares.
Justiça, Teoria Crítica e Democracia
representativa. Os cidadãos que não foram eleitos para a assembleia
permanecem “membros do soberano” porque o exercício do juízo é um
polo de poder da soberania que, em uma democracia representativa,
poderia ser exercitado sempre que eles quisessem.34
Não só poderia como deveria ser exercitado. Afinal, é o
exercício do juízo que salvaguarda o aspecto democrático da
representação no intervalo entre as eleições populares
para representantes. O Estado deve, portanto, esmerar-se para
garantir que os cidadãos exerçam seu juízo constantemente. Mais
ainda, deve esmerar-se para que o juízo popular influa sobre os
processos decisórios que se desdobram no interior da assembleia
representativa. Condorcet foi um dos primeiros filósofos a entender
que o que torna a representação democrática é justamente a
preservação de uma relação circular entre o juízo dos cidadãos na
esfera pública e a vontade decisória dos representantes na
assembleia. É nessa perspectiva que se insere sua proposta de criar
vínculos comunicativos entre as decisões promulgadas pela
assembleia representativa nacional (vontade) e as opiniões dos
cidadãos na sociedade civil (juízo) por meio de espaços como
as Assembleias Primárias.
III - Conclusão: desfazendo a antítese representação
vs . participação
A concepção de representação democrática em Condorcet
põe em questão as duas principais críticas que Safatle dirige à
representação. Para Safatle, vale lembrar, a representação nos afasta da
democracia por dois motivos: primeiro, porque sabota a soberania
popular, haja vista a soberania se resumir à vontade, faculdade que
não tem como ser representada; segundo, porque inviabiliza a
participação popular, que só pode se instanciar em um regime
político como o da “democracia digital”, no qual o demos exerce sua
vontade soberana imediatamente.35
34
35
Condorcet (2013, p. 73).
Safatle (2017, p. 128).
251
252
Justiça, Teoria Crítica e Democracia
Safatle decerto tem razão quando afirma que a vontade não se
representa. Porém, uma vez que justapomos sua filosofia à de
Condorcet, podemos redarguir que o fato de a vontade não poder ser
representada não significa que a representação política sempre vai
contra a soberania popular. Deve-se reconhecer, com efeito, que a
soberania em uma democracia representativa extravasa as instituições
estatais e abarca também o fórum público das opiniões, âmbito no
qual os cidadãos e cidadãs permanecem membros do soberano, na
medida em que exercitam seu juízo político. A existência de
uma representação democrática põe em marcha uma soberania diárquica, a
partir da qual o poder soberano passa a se exercer não só pela vontade,
como também pelo juízo das pessoas.
Por isso mesmo, a filosofia de Condorcet torna duvidosa a
segunda crítica de Safatle, a saber, a de que participação popular só se
exerce imediatamente, tal como ocorreria numa democracia digital. Se
o processo de refinamento do juízo também faz parte do exercício do
poder soberano, podemos, por conseguinte, sustentar que o
alongamento temporal envolvido no mecanismo representativo é
conducente à soberania popular. A ânsia de querer que o povo vote aqui
e agora pode gerar uma participação individualizada que, ao fim e ao
cabo, destrói a soberania popular. Daí o alerta que Dominique
Cardon faz aos entusiastas da democracia digital: quando a
participação política se restringe a uma massa de indivíduos que,
por meio das redes digitais, vota incessantemente sobre as mais
variadas questões, a própria noção de coletividade se torna
problemática. O que temos, então, é uma série de “indivíduos
singularizados”, presos à perspectiva de um presente absoluto, que é
incapaz de apreender a trama temporal das questões coletivas.36 O
povo, enquanto sujeito político coletivo, é ele próprio uma figura do
tempo e, portanto, necessita do mecanismo representativo para afigurar-
Cardon (2016, p. 297). Para uma crítica do “presentismo” implícito
na democracia direta, ver também Íñigo Errejón e Chantal Mouffe (2015,
p. 102).
36
Justiça, Teoria Crítica e Democracia
se.37 O aspecto histórico-temporal, constitutivo da política, se esvai na
ausência da representação. Sendo assim, não surpreende que, na
prática, a exigência de que a participação das pessoas se exerça apenas
online e imediatamente gere não o empoderamento do povo, mas sim o
que Cardon chama de “despolitização”.38
Em suma, o conceito de representação democrática
apresentado por Condorcet lança dúvidas quanto à propriedade
das críticas que Safatle dirige à representação política. De fato, a teoria
democrática condorcetiana parece corroborar os apontamentos de
Ernesto Laclau: a resposta para o déficit democrático que assola os
governos atuais não reside no clamor pelo fim da representação.39
Reside, antes, no clamor por mais representação, uma vez que apenas os
interesses de grupos poderosos se fazem representar nos dias de hoje.
Longe de insistir em um suposto antagonismo inelidível entre
participação e representação e conclamar pela inauguração de uma
democracia digital imediata, talvez seja melhor lutar pela instauração de
37
Rosanvallon (2000, p. 409-10).
38 Cardon (2016, p. 301). Carl Schmitt oferece uma crítica similar quando
afirma que a criação de máquinas que permitissem aos eleitores votar sem sair
de casa provocaria a privatização da política (BUCHSTEIN, 2015, p. 41). Seja
como for, no caso contemporâneo, convém ressaltar que a tecnologia digital,
em si mesma, não é o problema. Ainda que seja prejudicial quando provoca
uma participação política imediatista e individualizada, a tecnologia digital
pode revigorar a democracia se operar ao lado, e não ao largo, da
representação (DISCH, OUZIEL, LAWSON et al., 2016, p. 443). Tal não é,
contudo, a proposta de Safatle, visto que a ideia de que a representação
permeie mecanismos de participação direta lhe é inconcebível. No entanto,
conforme destaca Robert Dahl (2000, p. 108), a representação permanece
operante mesmo em assembleias políticas presenciais. Quando, por exemplo,
uma trabalhadora participa de um conselho de saúde para exigir que
o posto de saúde do seu bairro funcione aos domingos, ela age como
uma representante das trabalhadoras. Nas assembleias presenciais ou arenas
digitais em que as pessoas participam diretamente, a representação
permanece em operação sempre que as pautas que se discutem são
abordadas sob uma perspectiva coletiva, e não meramente idiossincrática.
39
Laclau (1996, p. 99).
253
254
Justiça, Teoria Crítica e Democracia
uma representação genuinamente democrática, tal qual aquela
esboçada por Condorcet.
Referências bibliográficas
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