ISSN: 2179-3786
DOI: 10.5902/2179378633636
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O paradoxo da dupla nulidade do mundo1
Fabio Ciracì
Professor da Università degli Studi del Salento (Lecce – Itália)
Secretário do Centro Interdipartimentale di ricerca su A. Schopenhauer e la sua Scuola
E-mail:
[email protected]
Resumo: Tentarei demonstrar que Schopenhauer sustenta, por um lado, a ideia de que o mundo dos
fenômenos é pura aparência (nada fenomênico), e, por outro lado, que a sua essência deve ser
aniquilada (nada numênico). A consequência que se segue é a de que no caso do santo existe uma
oposição relativa (nihil privativum) à vontade através da noluntas, enquanto que no caso do gênio existe
uma oposição absoluta entre fenômeno e númeno. Disso se segue um paradoxo incontornável que
discutirei durante a minha investigação.
Palavras-chave: Nada; Nada fenomênico; Nada numênico; Paradoxo.
Antes, reconhecemos: para todos aqueles que
ainda estão cheios de vontade, o que resta
após a completa supressão da vontade é, de
fato, o nada. Mas, inversamente, para aqueles
nos quais a vontade virou e se negou, este
nosso mundo tão real com todos os seus sóis e
via lácteas é – Nada2.
1. Schopenhauer e a dupla nulidade do mundo
S
e for analisado com atenção o léxico de O mundo como vontade e
representação, será possível examinar minuciosamente o uso que
Schopenhauer faz do conceito de nada por meio da ocorrência dos
substantivos Nichtsein (mais empregado em sua forma arcaica Nichtseyn)
e Nichts (mais raro). Escolhendo entre as numerosas citações, uma primeira ocorrência
interessante dos termos pode ser encontrada no Livro IV, § 59:
Naquilo que concerne à vida do indivíduo, cada história de vida é uma
história de sofrimento: cada decurso de vida é, via de regra, uma série
contínua de pequenos e grandes acidentes, ocultados tanto quanto
1
Tradução de Felipe Durante.
SCHOPENHAUER, A. MVR I, p. 519; p. 487. As citações de MVR são seguidas da paginação da edição
brasileira e da edição alemã.
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possível pela pessoa, porque sabe que os outros raramente sentirão
empatia ou compaixão, mas quase sempre contentamento pela
representação dos suplícios dos quais exatamente agora se isentam; – uma
pessoa, ao fim de sua vida, se fosse igualmente sincera e clarividente, talvez
jamais a desejasse de novo, preferindo antes a total não existência [viellieber
gänzliches Nichtsein erwählen]3.
No texto original, Schopenhauer recorre ao adjetivo gänzliches (completo) para
indicar um Nichtsein total. O filósofo de O mundo não utiliza o adjetivo absolut, como
faz, ao contrário, em outros casos (por exemplo, absolute Freiheit des Willens, absolute
Vernichtung) uma vez que, como explica no § 71 de MVR, para o homem não é possível
atingir o absolutes Nichts.
Adiante, em uma passagem do § 61, trecho extraído mais uma vez do Livro IV
de O mundo, lemos:
Acresce ao dito o fato de que, no ser cognoscente, o indivíduo é
sustentáculo do sujeito que conhece e este é sustentáculo do mundo.
Noutros termos, toda a natureza exterior ao sujeito que conhece, portanto,
todos os demais indivíduos, existem apenas em sua representação: sempre
está cosciente deles apenas como sua representação, portanto de maneira
meramente mediata, como algo dependente de seu próprio ser e
existência, pois, se sua consciência sucumbisse, o mundo também
sucumbiria necessariamente, isto é, a existência ou inexistência dos demais
indivíduos ser-lhe-iam indiferentes e indistinguíveis (grifo nosso). Em verdade,
todo indivíduo que conhece é e encontra a si mesmo como a Vontade de
vida em sua totalidade, come o em-si mesmo do mundo, portanto, como
a condição complementar do mundo como representação,
consequentemente como um microcosmo equivalente ao macrocossmo4.
Nesta passagem, Schopenhauer mostra com clareza a relatividade do conceito
de não-ser, isto é, a sua correlação intrínseca com o princípio de consciência: algo é
ou não é apenas em relação à consciência, ao sujeito cognoscente. Do mesmo modo,
o nada também é um conceito relativo e possui uma natureza gnosiológica. Esse é um
ponto fundamental que será necessário recordar também a seguir.
No capítulo 41 dos Suplementos ao Livro IV de O mundo, Schopenhauer se detém,
entretanto, no conceito de não-ser em relação ao seu significado ético para o indivíduo:
Se o que fizesse a morte aparecer-nos como tão terrível fosse o
pensamento do não-ser, então teríamos de pensar, com calafrio igual, no
tempo em que ainda não éramos. Pois é incontestavelmente certo que o
não-ser após a morte não pode ser diferente daquele anterior ao
nascimento, consequentemente, também não é lastimável. Uma infinidade
inteira fluiu, quando ainda não éramos: mas isto não nos aflige de modo
3
4
SCHOPENHAUER, A. MVR I, p. 417; pp. 382-383, grifo nosso.
Idem, p. 426; pp. 391-392.
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algum. Ao contrário, o fato de que após o intermezzo momentâneo de uma
existência efêmera deva seguir-se uma segunda infinitude, na qual não mais
seremos, achamos duro, sim, insuportável. Deveria então essa sede de
existência ter nascido do fato de que nós agora a degustamos e a achamos
deveras adorável? Como já foi acima abordado de passagem: com certeza
não; antes, a experiência que foi ganha poderia muito bem ter despertado
um anelo infinito pelo paraíso perdido do não-ser5.
Também nessa passagem de ecos fortemente românticos e miltonianos, a
unendliche Sehnsucht nach Nichtseyn (a saudade sem fim do não-ser) assume um valor
ético: a infinidade do não ser, que precede e segue a vida dos indivíduos singulares,
possui o poder de dissolver os encadeamentos com os quais a vontade nos vincula à
existência. Para além de cada compaixão milagrosa ou ascética negação da vontade,
existe para Schopenhauer uma “justiça eterna” que reconduz cada existência
individual ao todo (ou talvez devêssemos dizer, ao nada?) do qual provém, como é
ensinado de forma dogmática e mitológica a partir da ressureição, para os cristãos, e
do karma bramânico para os budistas.
Mas, que o problema do nada seja diretamente relacionado ao problema ético
do mal é amplamente comprovado pelo próprio Schopenhauer, cujo pessimismo
metafísico é de algum modo abrandado (suavizado) a partir da certeza, quase
escatológica, de uma redenção final para os indivíduos na “tranquilidade infinitamente
preferível do nada abençoado (die unendlich vorzuziehende Ruhe des saligen Nichts)”6, com
a promessa da sua dissolução na unidade primeva do Wille e, com ela, da dor
constituinte da existência:
Se, portanto, os padecimentos fossem cem vezes menores do que são hoje
sobre o mundo, ainda assim a mera existência deles seria suficiente para
fundamentar uma verdade que encontra variadas expressões, embora
todas um tanto quanto indiretas, a saber, que não temos em nada que nos
alegrar sobre a existência do mundo, mas antes nos entristecer; – que a sua
inexistência seria preferível à sua existência; – que ele é algo que, no fundo, não
deveria ser; e assim por diante7.
Eis o postulado fundamental de todo pessimismo metafísico: o não ser é preferível
ao ser. E é sobre a base do cálculo, primeiro metafísico (o ser é pior que o não ser) e,
depois, eudemonológico (“a vida é um negócio cujos custos não cobrem o
investimento”)8, que Schopenhauer traça uma direção de sentido à existência humana,
o que a irracionalidade da vontade metafísica havia em princípio negado: se de um
lado Schopenhauer afirma que a vida é sinnlos, sem sentido, porque não existe
nenhuma finalidade teleológica e escatológica, por outro lado, exatamente porque a
5
SCHOPENHAUER, A. MVR II, p. 559; p. 531, grifo nosso.
Idem, p. 763; p. 734, Cap. 50, Epifilosofia.
7 Idem, pp. 687-688; p. 659, grifo nosso.
8 Idem, p. 684; p. 656.
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vida é dor, porque perturbada pelo querer e pelo tédio, precisamente porque não tem
sentido, já que a sua única finalidade é afirmar a si mesma e perdurar no tempo através
da procriação, ao homem não resta senão sair do círculo de nascimentos, por meio
daquilo que Schopenhauer indica como as vias de redenção: a arte, a moral da
compaixão e a prática das virtudes ascéticas (jejum, pobreza e castidade). Desse modo,
o ser não possui sentido em si, no seu interior, mas o seu fim é o não ser, a sua
superação entendida como negação.
Pareceria, dessa forma, que Schopenhauer afirma um “duplo nada” do mundo:
do lado empírico, o nada fenomênico dos indivíduos, como evidenciam a sua
fragilidade e ilusão no tempo9; do lado metafísico, com a noluntas, a possibilidade da
negação da vontade, que tem lugar como inversão e conversão 10 da vontade de vida.
Nesse sentido, o mundo possui uma “dupla inconsistência”: é um nada fenomênico que
aspira o nada metafísico.
2. A patodiceia e o nada riscado
Não é por acaso, a propósito de Schopenhauer, que o grande Ludger
Lütkehaus apresentou uma forma de ontologia negativa11, verificando na filosofia
schopenhaueriana o recurso a esquemas e conceitos da tradição mística e gnóstica, o
emprego de uma classe de teofania negativa do Wille, cujos contributos são obtidos
também ex contrario em respeito às características do mundo fenomênico e aos quais
se acrescenta somente como conceito relativo. O nada, nesse sentido, seria uma
espécie de Ab e Urgrund (abismo e base originária) romântico dotado de uma atividade
própria, a qual, contudo, não gera a teodiceia dos místicos medievais, mas conduz, ao
invés, a uma patodiceia do mal12: em lugar de um deus providencial e benévolo,
Schopenhauer apresenta o ogro cego e insaciável do Wille. Segundo esta perspectiva,
o filósofo de O mundo aparece quase como um neo-gnóstico adorador de um malvado
9 Cf. Idem, p. 684; p. 656, Cap. 46: “Da Vaidade e do sofrimento da vida”: “O modo pelo qual essa vaidade, de
todos os objetos da vontade [Nichtigkeit aller Objekte des Willens], faz-se conhecida e apreensível ao intelecto
inerente ao indivíduo é antes de tudo o tempo. Este é a forma pela qual aquela vaidade das coisas aparece como
transitoriedade delas; na medida em que, em virtude do tempo, todos os nossos gozos e todas as nossas alegrias
tornam-se vãos em nossas mãos, enquanto nos perguntamos atônitos onde forma parar. Aquela vaidade mesma
é, por conseguinte, o único elemento objetivo do tempo, isto é, o que corresponde a ele no ser em si das coisas,
portanto, aquilo de que é a expressão”.
10 Veja-se o que afirma Schopenhauer nos Parerga e Paralipomena (P, pp. 338-339): “Do nolle podemos
simplesmente dizer que a sua aparência não pode ser aquela do vele, mas não sabemos se em geral apareça, se
receberia uma existência secundária por um intelecto, que, contudo, deveria ele antes de tudo produzir. Ora,
nós, conhecendo o intelecto somente como órgão da vontade em sua afirmação, não vemos porque, depois
que a afirmação seja anulada, o nolle deveria produzir o intelecto; mas não possamos dizer nada nem mesmo do
sujeito do nolle porque o conhecemos positivamente apenas no seu oposto, no velle, como coisa em si do seu
mundo fenomênico”.
11 Cf. LÜTKEHAUS, L. Nichts, pp. 165-222.
12 Idem, p. 185, Pathodizee.
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demiurgo do mundo13. Seria possível talvez acrescentar o fato de que, na tentativa de
fundar uma filosofia sistemática, Schopenhauer radicaliza de modo irremediável a
fratura entre metafísica (entendida como doutrina dos princípios últimos e das
essências) e ontologia (entendida como o estudo dos entes reais), uma cisão que já
Kant, com sua “metafísica crítica”, havia traçado ao colocar na Estética um limite
insuperável entre númeno e fenômeno, sem, no entanto, separar os dois reinos.
Schopenhauer escava profundamente a fenda aberta por Kant, ampliando o hiato
criado entre essência e aparência. Ele reconhece os indivíduos (isto é, todos os entes
que estão enveredados no principium individuationis) a partir de um ponto de vista
ontológico, enquanto entes fenomênicos, mas atribui a eles uma essência metafísica,
o Wille, que, de um lado, para Schopenhauer, manifesta-se na natureza, “objetiva-se”
(objektivirt), e por outro lado, é toto coelo diverso daquela, como escreve o filósofo em
várias ocasiões, utilizando-se das palavras de Aristóteles. Evidencio como para
Schopenhauer o plano ontológico coincide com o plano fenomênico, assim como o
plano metafísico equivale ao plano númenico, assim como para Kant a substância era
uma categoria relativa ao mundo dos fenômenos, mas a essência númenica das coisas
pertencia à assim chamada metafísica crítica, que conduzia ao incondicionado da
razão prática.
Seria, portanto, uma rejeição, uma diferença em relação ao que resta, entre o
mundo como vontade e representação e a Vontade em si – que, ao contrário, o
compreende e o transborda. A vontade de vida é mais que o mundo enquanto vontade
e representação. Para maior clareza, citemos o que Schopenhauer escreve em sua
Epifilosofia: „bei mir ausfüllt die Welt nicht die ganze Möglichkeit alles Seyns, sondern
in dieser noch viel Raum bleibt für Das, was wir nur negativ bezeichnen als die
Veneinung des Willens zum Leben“14. Em tal perspectiva, a noluntas abriria as portas
a uma dimensão alternativa, dilacerando o Véu de Maia sobre uma região que
Schopenhauer não conhece e não pode dar nome, como escreve no último parágrafo
do primeiro tomo do Mundo:
[…] então, de modo algum fugiremos da consequência de que, com a livre
negação e supressão da vontade também são suprimidas todos os
fenômenos. Os contínuos ímpetos e esforços sem alvo, sem repouso em
todos os graus de objetidade nos quais e através dos quais o mundo
subsiste, as multifacetadas formas seguindo-se uma à outra em gradação,
todo o fenômeno da vontade, por fim até mesmo as formas universais do
fenômeno, tempo e espaço, e também a última forma dela, sujeito e
objeto: tudo isso é suprimido com a vontade. Nenhuma vontade:
nenhuma representação, nenhum mundo15.
13
Idem, p. 218.
SCHOPENHAUER, A. MVR II, p. 767; p. 738: “Na minha filosofia o mundo não esgota a possibilidade de
todo ser, mas neste mundo ainda permanece muito espaço para aquilo que descrevemos só negativamente
como a negação da Vontade de vida”.
15 SCHOPENHAUER, A. MVR I, p. 518; p. 486.
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Todavia, essa inatingível alteridade o homem alcança apenas per via negationis,
isto é, nas palavras de Schopenhauer, “[…] temos aqui de nos contentar com o
conhecimento negativo, satisfeitos por ter alcançado o último marco-limite do
conhecimento positivo”16. Trata-se, portanto, de um “nada negativo”, uma subtração,
por assim dizer, da nossa expressão individual do todo do mundo que, contudo, nos
escapa e à qual damos o nome de vontade metafísica.
Ora, como é possível verificar a partir da análise das poucas ocorrências
tomadas aqui em consideração, os termos nada e não ser (Nichts, Nichtsein), que
Schopenhauer utiliza muitas vezes de modo intercambiável, carregam uma série de
significados que preveem deslizamentos de um plano teórico a outro: 1. Não ser é o
estado ilusório do mundo dos fenômenos, os quais Schopenhauer assume como mera
e efêmera aparência (nada relativo no plano empírico); 2. Não ser é também a
suspensão alcançada pelo gênio na contemplação estética, uma vez que ele anula todas
as ligações com o mundo aparente dos fenômenos e se coloca como um espelho em
face da vontade, subtraindo-se na qualidade de sujeito absoluto do conhecimento
(nada no plano metafísico como fenômeno absoluto); 3. Ao não ser chega enfim o
asceta, através da conversão da vontade em noluntas, a qual, contudo, é a subtração da
própria individualidade do resto do mundo, alcançando o nirvana (o nada relativo no
plano metafísico como Wille).
Existe ainda uma última passagem: ao duplo nada do mundo se adiciona um
desdobramento, no plano metafísico, em duas figuras que percorrem estradas
diversas: a primeira, a via estética do sujeito do conhecimento, com base na qual o
gênio coincide com a Ideia arquetípica que ele contempla na obra de arte. Tal figura
desfruta o antagonismo17 existente entre vontade e conhecimento às custas da
primeira, para transformar-se em “puro sujeito do conhecimento”, límpido olho do
mundo18. A segunda via, aquela mística do asceta, alcançada através da prática da
castidade, do jejum e da pobreza, de modo a debilitar a vontade de vida até a sua
extinção (Erlöschung), em uma espécie de união mística com o todo, uma vez que,
desaparecida a vontade individual e, com ela, a consciência individual, cessa também
o princípio de determinação. Se o gênio anula a vontade através das Ideias que são
“aparência completa e perfeita (die vollständige und vollkommene Erscheinung)”19, o asceta a
suprime através da noluntas, que Schopenhauer entende até mesmo como uma
mutação da natureza do indivíduo.
16
Idem, p. 518; p. 486.
SCHOPENHAUER, A. MVR II, pp. 440-442; pp. 419-420.
18 SCHOPENHAUER, A. MVR I, pp. 411-412; p. 377.
19 SCHOPENHAUER, A. MVR II, p. 436; pp. 414-415.
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Para explicar a que tipo de nada se refere quando fala do gênio, Schopenhauer
recorre à terminologia utilizada por Kant em chave crítica20, distinguindo um nihil
privativum, isto é, relativo, de um nihil negativium, isto é, absoluto, afirmando que para o
asceta ou para o gênio é possível atingir somente o primeiro, aquele privado e relativo:
Mas sobre isso, tenho antes de observar que o conceito de nada é
essencialmente relativo e sempre se refere a algo determinado, que ele
nega. Essa qualidade foi atribuída (especialmente por Kant) apenas ao nihil
privativum que, sinalizado como “-” em oposição a “+”, podia, de um
ponto de vista invertido, tornar-se “+”. Ora, em oposição ao nihil privitivum
foi estabelecido o nihil negativum, o qual em toda relação sempre seria nada,
utilizando-se como exemplo a contradição lógica que suprime a si mesma.
Porém, numa consideração mais acurada, não existe o nada absoluto, não
existe nihil negativum propriamente dito, nem sequer ele é pensável; […]
Segue-se de tudo o que foi dito que todo nihil negativum ou nada absoluto,
se subordinado a um conceito mais elevado, aparece come mero nihil
priviativum, ou nada relativo, o qual, portanto, sempre pode trocar o sinal
com aquilo que ele nega; de tal maneira que isto é pensado como negação,
e o nada mesmo, entretanto, como posição21.
Com tal explicação, Schopenhauer intenta defender-se da possível acusação –
que ele mesmo move muitas vezes contra Fichte, Schelling e particularmente Hegel –
de ter feito de uma abstração conceitual, o ser e o não ser, uma entidade autônoma.
Se, contudo, tentarmos seguir o raciocínio schopenhaueriano em sua completude,
para dizer a verdade, o filósofo do Mundo parece violar o seu próprio pressuposto,
levando-nos, assim, a um paradoxo. Por meio da contemplação, de fato, o gênio
consegue fazer-se inteiramente fenômeno em sua forma mais geral (Vorstellung
überhaupt, allgemeinste Form) e perfeita (Ideia platônica)22, de modo que na
contemplação desaparece o indivíduo e permanece uma forma de conhecimento
indeterminada, positiva, absoluta e objetiva. Trata-se de um conhecimento, por assim
dizer, “suspenso”, o fenômeno em geral. Já nesse caso, para Schopenhauer, a vontade
desaparece. O ponto agora é: qual vontade? Se na contemplação o gênio coincide com
a Ideia, a qual não é absolutamente determinada, mas, ao contrário, indeterminada, e
se a Ideia é a única coisa que subsiste, então o que deveria desaparecer seria a vontade
universal que está de frente a ele, e da qual as Ideias são espelho, expressão direta 23.
Ou seja, na contemplação estética deveria desaparecer nada menos que a inteira
20
KANT, I. KrV, B 347-348.
SCHOPENHAUER, A. MVR I, p. 516; p. 484.
22 Idem, p. 242; p. 206: “A Ideia platônica […] é necessariamente objeto, algo conhecido, uma representação, e
justamente por isso, e apenas por isso, diferente da coisa em si. A Ideia simplesmente se despiu das formas
subordinadas do fenômeno concebidas sob o princípio de razão; ou, antes, ainda não entrou em tais formas.
Porém, a forma primeira e mais universal ela conservou, a da representação em general, a do ser-objeto para
um sujeito. Essas formas subordinadas (cuja expressão geral é o princípio de razão) são as que pluralizam a
Ideia em indivíduos particulares e efêmeros, cujo número, em relação a ela, é completamente indiferente”.
23 Sobre o tema, Cf. CIRACÌ, F, Il mondo come volontà, idee e rappresentazione. Per una possibile lettura in senso illuministico
della dottrina delle Idee (Revista Voluntas, vol. 1, n. 1, 1° semestre de 2010, pp. 71-115).
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vontade universal24, de maneira absoluta. A consequência dessas premissas é um
paradoxo: a contemplação estética, suspendendo a vontade em si, determina, de um
lado, um nada absoluto, e, de outro, um fenômeno absoluto.
É diferente o caso do santo-asceta: através da noluntas ocorre a extinção da
vontade individual. Do ponto de vista do indivíduo, trata-se de uma subtração da sua
vontade com a dissolução da individualidade em relação ao todo, isto é, um nada
relativo (o conceito kantiano “da falta ou privação de um objeto”). Em relação ao
Wille, a negação da vontade do asceta, a questão é bem mais problemática: a vontade
universal é impossível de ser extinta, eterna, porque é a essência da realidade mesma.
A extinção da vontade individual então pode apenas significar o fim da sua existência
em relação à consciência de um indivíduo com o desaparecimento desta última: se
não há mais consciência individual, não há mais uma vontade em relação ao indivíduo,
uma vez que, como já recordamos, “com a sua consciência perece para ele
necessariamente também o mundo, isto é, o ser e o não ser”25.
Sendo assim, no caso do santo teremos então a realização daquele nihil negativum
sustentado por Schopenhauer no § 71 do Mundo; no caso do gênio estético, contudo, a
questão é mais obscura: não há mais uma oposição parcial, relativa, de um indivíduo
em relação ao todo, no qual a vontade individual e vontade universal são, por assim
dizer, grandezas homogêneas. Na contemplação estética, o gênio torna-se puro olho do
mundo, se dissolve de todos os vínculos com o mundo. A contemplação estética é,
portanto, principium indeterminationis do gênio-artista, porque subtrai o gênio do espaço,
do tempo e das relações causais, o des-individualiza, de modo que ele se torna um “rein
erkennendes Subjekt, klares Weltauge”, puro sujeito que conhece, claro olho cósmico:
Quando, por assim dizer, o objeto é separado de toda relação com algo
exterior a ele e o sujeito de sua relação com a vontade, o que é conhecido
não é mais a coisa particular enquanto tal, mas a Idéia, a forma eterna, a
objetidade imediata [unmittelbar] da vontade nesse grau. Justamente por aí,
ao mesmo tempo, aquele que concebe na intuição não é mais indivíduo,
visto que o indivíduo se perdeu nessa intuição, e sim o atemporal puro
sujeito do conhecimento destituído de vontade e sofrimento26.
Entre a Ideia (ou seja, fenômeno na forma geral) e a vontade em si é instituída
uma oposição absoluta, uma vez que númeno e fenômeno são toto coelo diversos. O
gênio não anula todo o mundo como vontade, mas, coincidindo com a Ideia e, por
24
Reflita-se também sobre o fato de que na contemplação é dada a possibilidade de a Ideia, enquanto forma
geral do fenômeno, sobreviver autonomamente no desaparecimento da vontade, que é extinta. Além disso,
para Schopenhauer, a contemplação tem uma vida curta, levando apenas alguns poucos instantes, mas em
realidade, não deveria se dar fora do tempo, e assim ser uma destruição eterna, uma espécie de kairòs grego?
25 SCHOPENHAUER, A. MVR I, p. 426; p. 391. Tradução ligeiramente alterada.
26 Idem, p. 246; pp. 210-211.
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isso, com o fenômeno na sua forma mais geral27, deveria anular a Vontade em si, na
sua totalidade.
Se quiséssemos utilizar a linguagem cara à Existenzphilosophie (Existencialismo),
poderíamos dizer que na contemplação estética o Wille é “riscado”(
) porque
negado em absoluto. Todavia, enquanto no caso de Heidegger se trata do Ser
inatingível, que se revela e se esconde nas dobras da temporalidade, um ser que é riscado
(
) porque inadequado em ser representado nos termos da linguagem metafísica
ocidental, no caso de Schopenhauer, o Wille, que, mesmo fora do tempo e escapando
ao conceito humano e à sua representação linguística, trata-se da essência metafísica do
mundo, uma essência inefável que não se pode definir em termos de ser e de não ser,
porque esses referem-se sempre a uma consciência e possuem conotação gnosiológica.
O problema é determinar se e como uma negação absoluta seja possível, ou mesmo
uma oposição absoluta. Eis aqui o paradoxo gerado pelo duplo nada do mundo.
Em realidade, as dificuldades interpretativas acerca da natureza do nada
nascem justamente da utilização ambígua, isto é, do emprego anfibológico por parte
de Schopenhauer do conceito de nada, às vezes em sentido gnosiológico, às vezes em
sentido metafísico: de fato, de maneira explícita, Schopenhauer refere-se a Kant,
sustentando um nada relativo que é tal porque referido à consciência do indivíduo,
movendo-se, portanto, sobre uma fronteira gnosiológica. Todavia, a propósito dos
ascetas e do budismo, o filósofo do Mundo se refere ao Nada como reino de paz e de
tranquilidade, no sentido positivo e com um fim ético, de modo que sucede uma
mudança de perspectiva, da qual o referimento implícito é Platão, que intervém subrepticiamente, como uma veia subterrânea, fazendo do nada mais que um simples
correlato da consciência, mas uma essência metafísica.
3. Vacuidade e fascinação do nada
Como nota Riconda, no segundo livro do Mundo
Existe […] em Schopenhauer uma dupla tendência: de um lado ele dá
plena consistência à vontade de viver – impelido a isso, tanto do senso
profundo da vida que é característica saliente do seu pensamento, quanto
do fato que de outra forma os grandes temas da culpa e da dor não
assumiriam aquele caráter autenticamente trágico que mesmo ele pretende
conferir a eles – por outro lado, ele a tira essa plena consistência da
vontade de viver em face à Nouluntas [...], desdobra-se então na coisa em
si como vontade de viver, por si só conhecível, mas axiologicamente
27
A Ideia é a vontade no espelho, porque lhe está de frente, e se opõe a ela. Na contemplação estética do gênio,
o fenômeno subsiste por si mesmo, autonomamente, como elemento positivo, suspenso em uma espécie de
limbo estabelecido pela contemplação estética e no qual a vontade desaparece. Essa oposição determina que o
fenômeno em geral deve se opor à vontade em geral, isto é, uma oposição no sentido absoluto.
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negativa, e no Nada que controla a vontade de viver, a qual, do ponto de
vista axiológico, configura-se como positivo, mas que, como dissemos,
escapa ao conhecimento filosófico que sobre esse ponto encontra o seu
suplemento na mística28.
As contínuas oscilações semânticas do conceito de nada e o mistério com o
qual muitas vezes Schopenhauer encobre o processo da Verneigung des Willens (negação
da vontade) levantou mais do que algumas perplexidades já nos primeiros seguidores
e estudantes de Schopenhauer. Isso se vê também na correspondência do filósofo do
Mundo com Julius Frauenstädt. Riconda aponta que, em uma carta, Schopenhauer
tenta proteger a sua demonstração da noluntas, apelando à impossibilidade de objetar
a natureza da vontade em um plano transcendente, sustentando que a sua doutrina se
esforça para permanecer imanente, para atentar-se aos dados da experiência externa
(fenômenos) e interna (vontade):
A minha filosofia em momento algum fala do reino da nefelococigia
[mundo de fábulas em grego], mas deste mundo, ou seja, ela é imanente,
não transcendente. Lê o mundo dado como uma tábua de hieróglifos (cuja
chave para decifração eu encontrei na vontade) e se mostra em toda parte
coerente. Ela ensina o que é o fenômeno e o que é a coisa em si. A última,
no entanto, é coisa em si apenas relativamente, isto é, na sua relação com
o fenômeno. Além disso, é um fato cerebral. Que coisa seja a coisa-em-si
fora dessa relação eu não disse nada, porque eu não sei: mas essa é em seu
interior a vontade de viver. Que ela possa ser anulada, tentei
empiricamente e deduzi que juntamente com a coisa-em-si se deve
desaparecer o seu fenômeno. A negação da vontade de viver não é o
aniquilamento de um objeto ou de um ser, mas simplesmente não-querer
como consequência de um quietivo [...] no final do quarto livro eu escrevi
[...], que para nós a eliminação da vontade é uma passagem para o nada.
Portanto, que coisa poderia ser isso que nós conhecemos apenas como
vontade de viver e como núcleo desse fenômeno fora desse âmbito, isto
é, quando não puder ser mais ou não o for ainda, é um problema
transcendente, cuja solução as formas do nosso intelecto, que são meras
funções de um determinado cérebro destinado ao serviço de um
fenômeno individual da vontade, não sendo adequados nem capazes de
compreender e de pensar. De tal modo que, se nos fosse revelada, não
entenderíamos nada29.
Em uma outra carta, endereçada mais uma vez ao “arque evangelista”
Frauenstädt30, Schopenhauer aventura-se a fazer afirmações bem mais fortes, as quais,
RICONDA, G. La “Noluntas” e la riscoperta della mistica nella filosofia di Schopenhauer, p. 81.
Carta de Schopenhauer a Frauenstädt de 21 de Agosto de 1852.
30 Sobre a categoria historiográfica da Schopenhauer-Schule, a sua articulação interna e os seus expoentes, cf.
FAZIO, D. M. La scuola di Schopenhauer: testi e contesti. Sobre o pessimismo alemão do século XIX, cf.
INVERNIZZI, G. Il pessimismo tedesco dell’Ottocento: Schopenhauer, Hartmann, Bahnsen e Mainländer e i loro avversari.
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ao invés de esclarecerem as dúvidas, trazem novas questões relativas ao conceito de
negação da vontade e a sua coerência interna no sistema:
A afirmação e a negação da vontade de viver é um puro Velle e Nolle. O
sujeito de ambos é um e o mesmo. Como tal, ele não pode ser extinto e
anulado com o seu ato. Ele é conhecido apenas através os seus atos. O seu
Velle manifesta-se nesse mundo empírico, que exatamente por isso é a
aparência da sua coisa em si. Do Nolle, ao contrário, conhecemos apenas
a aparência do seu ingresso, que pode acontecer somente no indivíduo: esse,
porém, pertence em primeiro lugar à aparência do Velle. Por isso vemos o
Nolle aparecer sempre em luta com o Velle, enquanto o indivíduo dura. Se
nele o Nolle venceu e o indivíduo pereceu, então existe uma pura
manifestação do Nolle. Desse mesmo não podemos dizer nada de mais,
apenas que a sua aparência não pode ser aquela do Velle (o mundo
superado); não sabemos, contudo, se em geral ele aparece, isto é, se ele
possui uma existência secundária por um intelecto que antes deveria
produzir (e à propos de quoi?), e não podemos nem mesmo dizer algo do
sujeito desse Nolle; ao invés, no seu ato contrário, como aquele que
também produz o intelecto, temos um conhecimento positivo dele como
da coisa em si da sua aparência31.
O texto da carta de Schopenhauer é quase idêntico àquele utilizado no capítulo
14, Adendos às doutrinas da afirmação e negação da vontade de vida, dos Parerga e Paralipomena32
e é, então, um escrito ao qual Schopenhauer atribuiu uma certa importância. Ou seja,
o “idêntico objeto do Velle e do Nolle”, sobre os quais Schopenhauer escreve a
Frauenstädt, não é compreensível a nós pobres mortais. Certo é que chama-lo
“sujeito” não somente implica em graves problemas orgânicos ao sistema (existe um
sujeito apenas em relação ao objeto, isto é, no interior da representação), mas
implicaria também em considerar a origem do velle e do nolle como uma entidade
transcendente, o que é completamente incompatível com as premissas imanentes
schopenhauerianas - a menos para não se fazer de Schopenhauer, como também
propõe ironicamente Lütkehaus, um neo-gnóstico, adorador de Mefistófeles, cujo
sistema filosófico dominado pelo irracional assumiria a aparência de um tipo de
pansatanismo33, para dizer com Liebmann, ou de um pandiabolismo, para utilizarmos as
palavras de Nietzsche34.
Com Schopenhauer se poderia responder às críticas cruzadas de seus alunos
com as afirmações contidas em sua Epifilosofia, na qual o filósofo do Mundo faz uma
31
Carta de Schopenhauer a Frauenstädt de 24 de Agosto de 1852.
Cf. SCHOPENHAUER, A. P II, p. 408-409.
33 Cf. LIEBMANN, O. Analysis der Wirklichkeit, p. 248; Cf. CIRACÌ, F. Schopenhauer e le filosofie del “ritorno a Kant”:
Otto Liebmann, p. 497-509.
34 “Schopenhauer concebe o mundo como um homem imenso, de quem vemos as ações, e o caráter dele é
coisa imutável; isso pode ser deduzido dessas ações. Nisso, sua filosofia é um panteísmo ou talvez um
pandiabolismo” (NIETZSCHE, F. Werke, IV/II, fragmento 24 [21], p. 436).
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substancial retratação acerca da coincidência da coisa em si com o Wille35. O Sábio de
Frankfurt afirma, insinuando que as raízes da individualidade “descem tão fundo até
onde alcançam a afirmação da Vontade de vida. Onde a negação da vontade entra em
cena, elas param: pois elas brotaram com a afirmação”36 e, portanto, apresentando
questões sobre aquilo que ultrapassa a experiência possível “topamos em toda parte
contra problemas insolúveis, como contra os muros da nossa prisão”37 com o nosso
intelecto, este mero instrumento da vontade.
Em realidade, Schopenhauer transgrediu repetidas vezes o princípio de
imanência, fundando a experiência exterior (a intuição dos fenômenos) e interior (a
intuição da vontade) sobre o pressuposto de uma essência da realidade, o Wille, ao
qual não se pode atribuir predicado algum porque esse escapa ao intelecto humano.
Assim como sobre o Wille, também sobre o Nichts – do qual precisamente nada se
deveria dizer – Schopenhauer continua a escrever e a descrever as características,
imaginando-o como um paraíso beato a ser alcançado ascendendo a escala da negação
da vontade, na saída ascética em direção à pureza do não ser que santifica e redime o
homem da inconveniência de ter nascido, para se expressar com Emil Cioran. É a partir da
prática ascética que Schopenhauer conjuga a sua filosofia às doutrinas orientais do
Budismo e do Bramanismo (mas também ao Cristianismo primitivo), preparando
aquele deslizamento dos planos aos quais nos referimos:
Serena e tranquila é, via de regra, a morte de todo bom humano: mas o
morrer voluntariamente, morrer de bom grado, morrer alegre, é
prerrogativa do resignado, daquele que renuncia e nega a Vontade de vida.
Pois apenas ele quer morrer realmente e não só aparentemente,
conseguintemente não precisa me, deseja permanência alguma da sua
pessoa. Renuncia voluntariamente à existência tal como a conhecemos: o
que lhe ocorre é aos nossos olhos nada; porque a nossa existência nada é
em referência ao que lhe ocorre. É a isto o que a crença buddhista chama
nirvana, isto é, extinção38.
Schopenhauer considera a religião como a metafísica do povo39, pela qual é
mais simples compreender a verdade sobre a essência do mundo em forma alegórica
35 “[...] a percepção interna que temos de nossa própria vontade de maneira alguma fornece um conhecimento
pleno e adequado da coisa em si” (SCHOPENHAUER, A. MVR II, p. 237; p. 220).
36 SCHOPENHAUER, A. MVR II, p. 764; p. 734.
37 Idem, p. 765; p. 735.
38 SCHOPENHAUER, A. MVR II, p. 607; p. 580.
39 Conforme Schopenhauer, “A religião é a metafísica do povo, que deve ser absolutamente deixada para ele,
e, portanto, deve ser respeitada exteriormente, uma vez que desacreditá-la significa retirá-la das pessoas. Como
existe uma poesia do povo e, nos provérbios, também uma sabedoria do povo, assim também deve existir uma
metafísica do povo, [uma vez que os seres humanos precisam absolutamente de uma interpretação da vida, e essa
deve ser adequada a sua capacidade de compreensão]. Portanto, a religião é sempre um revestimento alegórico
da verdade, adequado à capacidade de compreensão do povo e consegue fazer, do ponto de vista prático e
sentimental, isto é, a título de uma diretiva para o agir e um calmante e consolação no sofrimento e na morte,
talvez exatamente como a verdade em si mesma poderia alcançar se estivéssemos na posse dela”
(SCHOPENHAUER, A. P, p. 424).
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e dogmática do que através da filosofia. Eis o motivo de o filósofo do Mundo aderir à
doutrina pessimista do cristianismo, acompanhada da ideia de um pecado originário
do homem e de uma vida como queda e “vale de lágrimas”. A ética schopenhaueriana
coincide no plano prático com a conduta de vida dos grandes eremitas e dos místicos
cristãos. Do mesmo modo, a adesão ao budismo é motivada seja pela convicção que
do Oriente provém a fonte da verdadeira sabedoria40, ainda não contaminada pelo
otimismo semita, seja da aprovação de uma visão do mundo que encara a existência
como uma ilusão e o nirvana como a possibilidade de saída do círculo da vida e,
portanto, do sofrimento.
A compaixão e o nirvana ensinados por Schopenhauer pareceriam excluíremse mutuamente: se, de um lado, Schopenhauer pede ao indivíduo para agir em favor
do próximo, evitando causar danos e ofensas, e para aliviá-lo do peso da vida (neminem
laede, imo omnes, quantum potes, iuva), reconhecendo nele a mesma unidade metafísica
(tat twam asi, isto és tu!), por outro lado, o êxito niilista da noluntas abre caminho a uma
interpretação quietista da ética schopenhaueriana, que teve amplo sucesso. A vida de
negação da vontade, contudo, não é uma alternativa à via da Mitleid, ambas são
indicadas por Schopenhauer como percorríveis pelo indivíduo. A via da redenção
moral da compaixão corre paralela àquela ascética da noluntas, de modo que ao filósofo
iluminado, que fundou a primeira ética da história do pensamento humano em um
sentido laico e solidário, avizinha-se o místico do Nada. Em conjunto com o moralista
iluminado, mestre do desencanto e do desengano, procede o pensador romântico que
cede à tentação do infinito e da pureza do não ser. E, todavia, o misticismo niilista
schopenhaueriano parece ser corrigido de alguma forma pelo exercício da razão que,
mesmo apresentando-se como simples fluorescência da vontade, lança a sua luz fraca
sobre o indivíduo e faz da consciência o quietivo da vontade, elemento de liberação e
de redenção do Wille.
Parece, então, que uma vez fundada a metafísica sobre uma vontade cega e
universal, refutada a ideia de um deus providencial e benévolo com a imanência do
mal, despojado o mundo de todo elemento romântico e de toda faísca divina,
Schopenhauer não pretende lançar o homem na mais sombria desesperação, mas
abrir-lhe uma esperança de redenção no fogo purificador do não ser.
É justamente assim que o Nada permanece, talvez, como a última divindade
deixada viva pela terrível vontade de vida, a última divindade da qual Schopenhauer
não consegue se libertar.
40
Quanto à visão do Oriente como fonte originária do saber, Schopenhauer se relaciona harmonicamente com
uma certa tradição do pensamento alemão do século XIX, que parte de Herder e chega a Schelling. Sobre esse
tema, permito-me remontar a CIRACÌ, F. La filosofia tedesca e il pensiero orientale.
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Referências bibliográficas
CIRACÌ, F. Schopenhauer e le filosofie del “ritorno a Kant”: Otto Liebmann. In:
Archivio di Storia della cultura. Napoli: Liguori, 2014, pp. 497-509.
CIRACÌ, F. La filosofia tedesca e il pensiero orientale. In: U. Eco e R. Fedriga (a cura
di). Storia della Filosofia vol. 3: Ottocento e Novecento. Milano-Bari: Laterza-Encyclomedia,
2014, pp. 67-68.
FAZIO, D. M. (a cura di). La scuola di Schopenhauer: testi e contesti. Lecce: Pensa
MultiMedia, 2009.
INVERNIZZI, G. Il pessimismo tedesco dell’Ottocento: Schopenhauer, Hartmann, Bahnsen e
Mainländer e i loro avversari. Firenze: La Nuova Italia, 1994.
KANT, I. Kants Werke: Akademie-Textausgab. Unveranderter photomechanischer
Abdruck des Textes der von der Prenssischen Akademie der Wissenschaften 1902
begonnenen Ausgabe von Kantsgesammelten Schriften. Berlin: W. de Gruyter, 1968.
LIEBMANN, O. Analysis der Wirklichkeit (1876). 3ª ed. revista e ampliada. Trünberg:
Straßburg, 1900.
LÜTKEHAUS, Ludger. Nichts. Zürich: Haffmans, 1999.
NIETZSCHE, F. Opere di F. Nietzsche. Edizione italiana condotta sul testo critico
stabilito da Giorgio Colli e Mazzino Montinari, vol 4/tomo II, Umano, troppo umano,
I e Frammenti postumi (1876-1878), versione di Sossio Giametta e Mazzino Montinari.
Milano: Adelphi, 1965, frammento 24 [21], estate 1877.
RICONDA, G. La “Noluntas” e la riscoperta della mistica nella filosofia di
Schopenhauer. Schopenhauer-Jahrbuch, 53 (1972), pp. 80-87.
SCHOPENHAUER, A. Arthur Schopenhauers Sämtliche Werke. Hrsg. von Paul Deussen.
München: R. Piper, 1911-1942.
SCHOPENHAUER, A. Der Briefwechsel. In: Arthur Schopenhauers Sämtliche Werke,
14., 15. und 16. Hrsg. von Paul Deussen. München: R. Piper, 1911-1942.
SCHOPENHAUER, A. O mundo como vontade e como representação. Tomo I. Tradução,
apresentação, notas e índices de Jair Barboza. São Paulo: Editora UNESP, 2005.
SCHOPENHAUER, A. O mundo como vontade e como representação. Tomo II. Tradução,
apresentação, notas e índices de Jair Barboza. São Paulo: Editora UNESP, 2015.
Recebido: 19/11/17
Received: 11/19/17
Aprovado: 15/03/18
Approved: 03/15/18
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