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O paradoxo da dupla nulidade do mundo (BRA version)

2018

https://doi.org/10.5902/2179378633636

Resumo: Tentarei demonstrar que Schopenhauer sustenta, por um lado, a ideia de que o mundo dos fenômenos é pura aparência (nada fenomênico), e, por outro lado, que a sua essência deve ser aniquilada (nada numênico). A consequência que se segue é a de que no caso do santo existe uma oposição relativa (nihil privativum) à vontade através da noluntas, enquanto que no caso do gênio existe uma oposição absoluta entre fenômeno e númeno. Disso se segue um paradoxo incontornável que discutirei durante a minha investigação. "Voluntas: Revista Internacional de Filosofia", periodicos.ufsm.br/voluntas - Santa Maria - Vol. 9, n. 1, jan.-jun. 2018, pp. 79-92, DOI 10.5902/2179378633636, versione italiana ITA; Atti do VIII Colóquio Internacional, 2017, Curitiba.

ISSN: 2179-3786 DOI: 10.5902/2179378633636 _____________________________________________________________________________ O paradoxo da dupla nulidade do mundo1 Fabio Ciracì Professor da Università degli Studi del Salento (Lecce – Itália) Secretário do Centro Interdipartimentale di ricerca su A. Schopenhauer e la sua Scuola E-mail: [email protected] Resumo: Tentarei demonstrar que Schopenhauer sustenta, por um lado, a ideia de que o mundo dos fenômenos é pura aparência (nada fenomênico), e, por outro lado, que a sua essência deve ser aniquilada (nada numênico). A consequência que se segue é a de que no caso do santo existe uma oposição relativa (nihil privativum) à vontade através da noluntas, enquanto que no caso do gênio existe uma oposição absoluta entre fenômeno e númeno. Disso se segue um paradoxo incontornável que discutirei durante a minha investigação. Palavras-chave: Nada; Nada fenomênico; Nada numênico; Paradoxo. Antes, reconhecemos: para todos aqueles que ainda estão cheios de vontade, o que resta após a completa supressão da vontade é, de fato, o nada. Mas, inversamente, para aqueles nos quais a vontade virou e se negou, este nosso mundo tão real com todos os seus sóis e via lácteas é – Nada2. 1. Schopenhauer e a dupla nulidade do mundo S e for analisado com atenção o léxico de O mundo como vontade e representação, será possível examinar minuciosamente o uso que Schopenhauer faz do conceito de nada por meio da ocorrência dos substantivos Nichtsein (mais empregado em sua forma arcaica Nichtseyn) e Nichts (mais raro). Escolhendo entre as numerosas citações, uma primeira ocorrência interessante dos termos pode ser encontrada no Livro IV, § 59: Naquilo que concerne à vida do indivíduo, cada história de vida é uma história de sofrimento: cada decurso de vida é, via de regra, uma série contínua de pequenos e grandes acidentes, ocultados tanto quanto 1 Tradução de Felipe Durante. SCHOPENHAUER, A. MVR I, p. 519; p. 487. As citações de MVR são seguidas da paginação da edição brasileira e da edição alemã. _____________________________________________________________________________________ 2 Voluntas: Revista Internacional de Filosofia – periodicos.ufsm.br/voluntas - Santa Maria - Vol. 9, n. 1, jan.-jun. 2018, pp. 79-92 CIRACÌ, Fabio| 80 possível pela pessoa, porque sabe que os outros raramente sentirão empatia ou compaixão, mas quase sempre contentamento pela representação dos suplícios dos quais exatamente agora se isentam; – uma pessoa, ao fim de sua vida, se fosse igualmente sincera e clarividente, talvez jamais a desejasse de novo, preferindo antes a total não existência [viellieber gänzliches Nichtsein erwählen]3. No texto original, Schopenhauer recorre ao adjetivo gänzliches (completo) para indicar um Nichtsein total. O filósofo de O mundo não utiliza o adjetivo absolut, como faz, ao contrário, em outros casos (por exemplo, absolute Freiheit des Willens, absolute Vernichtung) uma vez que, como explica no § 71 de MVR, para o homem não é possível atingir o absolutes Nichts. Adiante, em uma passagem do § 61, trecho extraído mais uma vez do Livro IV de O mundo, lemos: Acresce ao dito o fato de que, no ser cognoscente, o indivíduo é sustentáculo do sujeito que conhece e este é sustentáculo do mundo. Noutros termos, toda a natureza exterior ao sujeito que conhece, portanto, todos os demais indivíduos, existem apenas em sua representação: sempre está cosciente deles apenas como sua representação, portanto de maneira meramente mediata, como algo dependente de seu próprio ser e existência, pois, se sua consciência sucumbisse, o mundo também sucumbiria necessariamente, isto é, a existência ou inexistência dos demais indivíduos ser-lhe-iam indiferentes e indistinguíveis (grifo nosso). Em verdade, todo indivíduo que conhece é e encontra a si mesmo como a Vontade de vida em sua totalidade, come o em-si mesmo do mundo, portanto, como a condição complementar do mundo como representação, consequentemente como um microcosmo equivalente ao macrocossmo4. Nesta passagem, Schopenhauer mostra com clareza a relatividade do conceito de não-ser, isto é, a sua correlação intrínseca com o princípio de consciência: algo é ou não é apenas em relação à consciência, ao sujeito cognoscente. Do mesmo modo, o nada também é um conceito relativo e possui uma natureza gnosiológica. Esse é um ponto fundamental que será necessário recordar também a seguir. No capítulo 41 dos Suplementos ao Livro IV de O mundo, Schopenhauer se detém, entretanto, no conceito de não-ser em relação ao seu significado ético para o indivíduo: Se o que fizesse a morte aparecer-nos como tão terrível fosse o pensamento do não-ser, então teríamos de pensar, com calafrio igual, no tempo em que ainda não éramos. Pois é incontestavelmente certo que o não-ser após a morte não pode ser diferente daquele anterior ao nascimento, consequentemente, também não é lastimável. Uma infinidade inteira fluiu, quando ainda não éramos: mas isto não nos aflige de modo 3 4 SCHOPENHAUER, A. MVR I, p. 417; pp. 382-383, grifo nosso. Idem, p. 426; pp. 391-392. _____________________________________________________________________________ ________ Voluntas: Revista Internacional de Filosofia – periodicos.ufsm.br/voluntas - Santa Maria - Vol. 9, n. 1, jan.-jun. 2018, pp. 79-92 81 | O paradoxo da dupla nulidade do mundo algum. Ao contrário, o fato de que após o intermezzo momentâneo de uma existência efêmera deva seguir-se uma segunda infinitude, na qual não mais seremos, achamos duro, sim, insuportável. Deveria então essa sede de existência ter nascido do fato de que nós agora a degustamos e a achamos deveras adorável? Como já foi acima abordado de passagem: com certeza não; antes, a experiência que foi ganha poderia muito bem ter despertado um anelo infinito pelo paraíso perdido do não-ser5. Também nessa passagem de ecos fortemente românticos e miltonianos, a unendliche Sehnsucht nach Nichtseyn (a saudade sem fim do não-ser) assume um valor ético: a infinidade do não ser, que precede e segue a vida dos indivíduos singulares, possui o poder de dissolver os encadeamentos com os quais a vontade nos vincula à existência. Para além de cada compaixão milagrosa ou ascética negação da vontade, existe para Schopenhauer uma “justiça eterna” que reconduz cada existência individual ao todo (ou talvez devêssemos dizer, ao nada?) do qual provém, como é ensinado de forma dogmática e mitológica a partir da ressureição, para os cristãos, e do karma bramânico para os budistas. Mas, que o problema do nada seja diretamente relacionado ao problema ético do mal é amplamente comprovado pelo próprio Schopenhauer, cujo pessimismo metafísico é de algum modo abrandado (suavizado) a partir da certeza, quase escatológica, de uma redenção final para os indivíduos na “tranquilidade infinitamente preferível do nada abençoado (die unendlich vorzuziehende Ruhe des saligen Nichts)”6, com a promessa da sua dissolução na unidade primeva do Wille e, com ela, da dor constituinte da existência: Se, portanto, os padecimentos fossem cem vezes menores do que são hoje sobre o mundo, ainda assim a mera existência deles seria suficiente para fundamentar uma verdade que encontra variadas expressões, embora todas um tanto quanto indiretas, a saber, que não temos em nada que nos alegrar sobre a existência do mundo, mas antes nos entristecer; – que a sua inexistência seria preferível à sua existência; – que ele é algo que, no fundo, não deveria ser; e assim por diante7. Eis o postulado fundamental de todo pessimismo metafísico: o não ser é preferível ao ser. E é sobre a base do cálculo, primeiro metafísico (o ser é pior que o não ser) e, depois, eudemonológico (“a vida é um negócio cujos custos não cobrem o investimento”)8, que Schopenhauer traça uma direção de sentido à existência humana, o que a irracionalidade da vontade metafísica havia em princípio negado: se de um lado Schopenhauer afirma que a vida é sinnlos, sem sentido, porque não existe nenhuma finalidade teleológica e escatológica, por outro lado, exatamente porque a 5 SCHOPENHAUER, A. MVR II, p. 559; p. 531, grifo nosso. Idem, p. 763; p. 734, Cap. 50, Epifilosofia. 7 Idem, pp. 687-688; p. 659, grifo nosso. 8 Idem, p. 684; p. 656. _____________________________________________________________________________________ 6 Voluntas: Revista Internacional de Filosofia – periodicos.ufsm.br/voluntas - Santa Maria - Vol. 9, n. 1, jan.-jun. 2018, pp. 79-92 CIRACÌ, Fabio| 82 vida é dor, porque perturbada pelo querer e pelo tédio, precisamente porque não tem sentido, já que a sua única finalidade é afirmar a si mesma e perdurar no tempo através da procriação, ao homem não resta senão sair do círculo de nascimentos, por meio daquilo que Schopenhauer indica como as vias de redenção: a arte, a moral da compaixão e a prática das virtudes ascéticas (jejum, pobreza e castidade). Desse modo, o ser não possui sentido em si, no seu interior, mas o seu fim é o não ser, a sua superação entendida como negação. Pareceria, dessa forma, que Schopenhauer afirma um “duplo nada” do mundo: do lado empírico, o nada fenomênico dos indivíduos, como evidenciam a sua fragilidade e ilusão no tempo9; do lado metafísico, com a noluntas, a possibilidade da negação da vontade, que tem lugar como inversão e conversão 10 da vontade de vida. Nesse sentido, o mundo possui uma “dupla inconsistência”: é um nada fenomênico que aspira o nada metafísico. 2. A patodiceia e o nada riscado Não é por acaso, a propósito de Schopenhauer, que o grande Ludger Lütkehaus apresentou uma forma de ontologia negativa11, verificando na filosofia schopenhaueriana o recurso a esquemas e conceitos da tradição mística e gnóstica, o emprego de uma classe de teofania negativa do Wille, cujos contributos são obtidos também ex contrario em respeito às características do mundo fenomênico e aos quais se acrescenta somente como conceito relativo. O nada, nesse sentido, seria uma espécie de Ab e Urgrund (abismo e base originária) romântico dotado de uma atividade própria, a qual, contudo, não gera a teodiceia dos místicos medievais, mas conduz, ao invés, a uma patodiceia do mal12: em lugar de um deus providencial e benévolo, Schopenhauer apresenta o ogro cego e insaciável do Wille. Segundo esta perspectiva, o filósofo de O mundo aparece quase como um neo-gnóstico adorador de um malvado 9 Cf. Idem, p. 684; p. 656, Cap. 46: “Da Vaidade e do sofrimento da vida”: “O modo pelo qual essa vaidade, de todos os objetos da vontade [Nichtigkeit aller Objekte des Willens], faz-se conhecida e apreensível ao intelecto inerente ao indivíduo é antes de tudo o tempo. Este é a forma pela qual aquela vaidade das coisas aparece como transitoriedade delas; na medida em que, em virtude do tempo, todos os nossos gozos e todas as nossas alegrias tornam-se vãos em nossas mãos, enquanto nos perguntamos atônitos onde forma parar. Aquela vaidade mesma é, por conseguinte, o único elemento objetivo do tempo, isto é, o que corresponde a ele no ser em si das coisas, portanto, aquilo de que é a expressão”. 10 Veja-se o que afirma Schopenhauer nos Parerga e Paralipomena (P, pp. 338-339): “Do nolle podemos simplesmente dizer que a sua aparência não pode ser aquela do vele, mas não sabemos se em geral apareça, se receberia uma existência secundária por um intelecto, que, contudo, deveria ele antes de tudo produzir. Ora, nós, conhecendo o intelecto somente como órgão da vontade em sua afirmação, não vemos porque, depois que a afirmação seja anulada, o nolle deveria produzir o intelecto; mas não possamos dizer nada nem mesmo do sujeito do nolle porque o conhecemos positivamente apenas no seu oposto, no velle, como coisa em si do seu mundo fenomênico”. 11 Cf. LÜTKEHAUS, L. Nichts, pp. 165-222. 12 Idem, p. 185, Pathodizee. _____________________________________________________________________________ ________ Voluntas: Revista Internacional de Filosofia – periodicos.ufsm.br/voluntas - Santa Maria - Vol. 9, n. 1, jan.-jun. 2018, pp. 79-92 83 | O paradoxo da dupla nulidade do mundo demiurgo do mundo13. Seria possível talvez acrescentar o fato de que, na tentativa de fundar uma filosofia sistemática, Schopenhauer radicaliza de modo irremediável a fratura entre metafísica (entendida como doutrina dos princípios últimos e das essências) e ontologia (entendida como o estudo dos entes reais), uma cisão que já Kant, com sua “metafísica crítica”, havia traçado ao colocar na Estética um limite insuperável entre númeno e fenômeno, sem, no entanto, separar os dois reinos. Schopenhauer escava profundamente a fenda aberta por Kant, ampliando o hiato criado entre essência e aparência. Ele reconhece os indivíduos (isto é, todos os entes que estão enveredados no principium individuationis) a partir de um ponto de vista ontológico, enquanto entes fenomênicos, mas atribui a eles uma essência metafísica, o Wille, que, de um lado, para Schopenhauer, manifesta-se na natureza, “objetiva-se” (objektivirt), e por outro lado, é toto coelo diverso daquela, como escreve o filósofo em várias ocasiões, utilizando-se das palavras de Aristóteles. Evidencio como para Schopenhauer o plano ontológico coincide com o plano fenomênico, assim como o plano metafísico equivale ao plano númenico, assim como para Kant a substância era uma categoria relativa ao mundo dos fenômenos, mas a essência númenica das coisas pertencia à assim chamada metafísica crítica, que conduzia ao incondicionado da razão prática. Seria, portanto, uma rejeição, uma diferença em relação ao que resta, entre o mundo como vontade e representação e a Vontade em si – que, ao contrário, o compreende e o transborda. A vontade de vida é mais que o mundo enquanto vontade e representação. Para maior clareza, citemos o que Schopenhauer escreve em sua Epifilosofia: „bei mir ausfüllt die Welt nicht die ganze Möglichkeit alles Seyns, sondern in dieser noch viel Raum bleibt für Das, was wir nur negativ bezeichnen als die Veneinung des Willens zum Leben“14. Em tal perspectiva, a noluntas abriria as portas a uma dimensão alternativa, dilacerando o Véu de Maia sobre uma região que Schopenhauer não conhece e não pode dar nome, como escreve no último parágrafo do primeiro tomo do Mundo: […] então, de modo algum fugiremos da consequência de que, com a livre negação e supressão da vontade também são suprimidas todos os fenômenos. Os contínuos ímpetos e esforços sem alvo, sem repouso em todos os graus de objetidade nos quais e através dos quais o mundo subsiste, as multifacetadas formas seguindo-se uma à outra em gradação, todo o fenômeno da vontade, por fim até mesmo as formas universais do fenômeno, tempo e espaço, e também a última forma dela, sujeito e objeto: tudo isso é suprimido com a vontade. Nenhuma vontade: nenhuma representação, nenhum mundo15. 13 Idem, p. 218. SCHOPENHAUER, A. MVR II, p. 767; p. 738: “Na minha filosofia o mundo não esgota a possibilidade de todo ser, mas neste mundo ainda permanece muito espaço para aquilo que descrevemos só negativamente como a negação da Vontade de vida”. 15 SCHOPENHAUER, A. MVR I, p. 518; p. 486. _____________________________________________________________________________________ 14 Voluntas: Revista Internacional de Filosofia – periodicos.ufsm.br/voluntas - Santa Maria - Vol. 9, n. 1, jan.-jun. 2018, pp. 79-92 CIRACÌ, Fabio| 84 Todavia, essa inatingível alteridade o homem alcança apenas per via negationis, isto é, nas palavras de Schopenhauer, “[…] temos aqui de nos contentar com o conhecimento negativo, satisfeitos por ter alcançado o último marco-limite do conhecimento positivo”16. Trata-se, portanto, de um “nada negativo”, uma subtração, por assim dizer, da nossa expressão individual do todo do mundo que, contudo, nos escapa e à qual damos o nome de vontade metafísica. Ora, como é possível verificar a partir da análise das poucas ocorrências tomadas aqui em consideração, os termos nada e não ser (Nichts, Nichtsein), que Schopenhauer utiliza muitas vezes de modo intercambiável, carregam uma série de significados que preveem deslizamentos de um plano teórico a outro: 1. Não ser é o estado ilusório do mundo dos fenômenos, os quais Schopenhauer assume como mera e efêmera aparência (nada relativo no plano empírico); 2. Não ser é também a suspensão alcançada pelo gênio na contemplação estética, uma vez que ele anula todas as ligações com o mundo aparente dos fenômenos e se coloca como um espelho em face da vontade, subtraindo-se na qualidade de sujeito absoluto do conhecimento (nada no plano metafísico como fenômeno absoluto); 3. Ao não ser chega enfim o asceta, através da conversão da vontade em noluntas, a qual, contudo, é a subtração da própria individualidade do resto do mundo, alcançando o nirvana (o nada relativo no plano metafísico como Wille). Existe ainda uma última passagem: ao duplo nada do mundo se adiciona um desdobramento, no plano metafísico, em duas figuras que percorrem estradas diversas: a primeira, a via estética do sujeito do conhecimento, com base na qual o gênio coincide com a Ideia arquetípica que ele contempla na obra de arte. Tal figura desfruta o antagonismo17 existente entre vontade e conhecimento às custas da primeira, para transformar-se em “puro sujeito do conhecimento”, límpido olho do mundo18. A segunda via, aquela mística do asceta, alcançada através da prática da castidade, do jejum e da pobreza, de modo a debilitar a vontade de vida até a sua extinção (Erlöschung), em uma espécie de união mística com o todo, uma vez que, desaparecida a vontade individual e, com ela, a consciência individual, cessa também o princípio de determinação. Se o gênio anula a vontade através das Ideias que são “aparência completa e perfeita (die vollständige und vollkommene Erscheinung)”19, o asceta a suprime através da noluntas, que Schopenhauer entende até mesmo como uma mutação da natureza do indivíduo. 16 Idem, p. 518; p. 486. SCHOPENHAUER, A. MVR II, pp. 440-442; pp. 419-420. 18 SCHOPENHAUER, A. MVR I, pp. 411-412; p. 377. 19 SCHOPENHAUER, A. MVR II, p. 436; pp. 414-415. _____________________________________________________________________________ ________ 17 Voluntas: Revista Internacional de Filosofia – periodicos.ufsm.br/voluntas - Santa Maria - Vol. 9, n. 1, jan.-jun. 2018, pp. 79-92 85 | O paradoxo da dupla nulidade do mundo Para explicar a que tipo de nada se refere quando fala do gênio, Schopenhauer recorre à terminologia utilizada por Kant em chave crítica20, distinguindo um nihil privativum, isto é, relativo, de um nihil negativium, isto é, absoluto, afirmando que para o asceta ou para o gênio é possível atingir somente o primeiro, aquele privado e relativo: Mas sobre isso, tenho antes de observar que o conceito de nada é essencialmente relativo e sempre se refere a algo determinado, que ele nega. Essa qualidade foi atribuída (especialmente por Kant) apenas ao nihil privativum que, sinalizado como “-” em oposição a “+”, podia, de um ponto de vista invertido, tornar-se “+”. Ora, em oposição ao nihil privitivum foi estabelecido o nihil negativum, o qual em toda relação sempre seria nada, utilizando-se como exemplo a contradição lógica que suprime a si mesma. Porém, numa consideração mais acurada, não existe o nada absoluto, não existe nihil negativum propriamente dito, nem sequer ele é pensável; […] Segue-se de tudo o que foi dito que todo nihil negativum ou nada absoluto, se subordinado a um conceito mais elevado, aparece come mero nihil priviativum, ou nada relativo, o qual, portanto, sempre pode trocar o sinal com aquilo que ele nega; de tal maneira que isto é pensado como negação, e o nada mesmo, entretanto, como posição21. Com tal explicação, Schopenhauer intenta defender-se da possível acusação – que ele mesmo move muitas vezes contra Fichte, Schelling e particularmente Hegel – de ter feito de uma abstração conceitual, o ser e o não ser, uma entidade autônoma. Se, contudo, tentarmos seguir o raciocínio schopenhaueriano em sua completude, para dizer a verdade, o filósofo do Mundo parece violar o seu próprio pressuposto, levando-nos, assim, a um paradoxo. Por meio da contemplação, de fato, o gênio consegue fazer-se inteiramente fenômeno em sua forma mais geral (Vorstellung überhaupt, allgemeinste Form) e perfeita (Ideia platônica)22, de modo que na contemplação desaparece o indivíduo e permanece uma forma de conhecimento indeterminada, positiva, absoluta e objetiva. Trata-se de um conhecimento, por assim dizer, “suspenso”, o fenômeno em geral. Já nesse caso, para Schopenhauer, a vontade desaparece. O ponto agora é: qual vontade? Se na contemplação o gênio coincide com a Ideia, a qual não é absolutamente determinada, mas, ao contrário, indeterminada, e se a Ideia é a única coisa que subsiste, então o que deveria desaparecer seria a vontade universal que está de frente a ele, e da qual as Ideias são espelho, expressão direta 23. Ou seja, na contemplação estética deveria desaparecer nada menos que a inteira 20 KANT, I. KrV, B 347-348. SCHOPENHAUER, A. MVR I, p. 516; p. 484. 22 Idem, p. 242; p. 206: “A Ideia platônica […] é necessariamente objeto, algo conhecido, uma representação, e justamente por isso, e apenas por isso, diferente da coisa em si. A Ideia simplesmente se despiu das formas subordinadas do fenômeno concebidas sob o princípio de razão; ou, antes, ainda não entrou em tais formas. Porém, a forma primeira e mais universal ela conservou, a da representação em general, a do ser-objeto para um sujeito. Essas formas subordinadas (cuja expressão geral é o princípio de razão) são as que pluralizam a Ideia em indivíduos particulares e efêmeros, cujo número, em relação a ela, é completamente indiferente”. 23 Sobre o tema, Cf. CIRACÌ, F, Il mondo come volontà, idee e rappresentazione. Per una possibile lettura in senso illuministico della dottrina delle Idee (Revista Voluntas, vol. 1, n. 1, 1° semestre de 2010, pp. 71-115). _____________________________________________________________________________________ 21 Voluntas: Revista Internacional de Filosofia – periodicos.ufsm.br/voluntas - Santa Maria - Vol. 9, n. 1, jan.-jun. 2018, pp. 79-92 CIRACÌ, Fabio| 86 vontade universal24, de maneira absoluta. A consequência dessas premissas é um paradoxo: a contemplação estética, suspendendo a vontade em si, determina, de um lado, um nada absoluto, e, de outro, um fenômeno absoluto. É diferente o caso do santo-asceta: através da noluntas ocorre a extinção da vontade individual. Do ponto de vista do indivíduo, trata-se de uma subtração da sua vontade com a dissolução da individualidade em relação ao todo, isto é, um nada relativo (o conceito kantiano “da falta ou privação de um objeto”). Em relação ao Wille, a negação da vontade do asceta, a questão é bem mais problemática: a vontade universal é impossível de ser extinta, eterna, porque é a essência da realidade mesma. A extinção da vontade individual então pode apenas significar o fim da sua existência em relação à consciência de um indivíduo com o desaparecimento desta última: se não há mais consciência individual, não há mais uma vontade em relação ao indivíduo, uma vez que, como já recordamos, “com a sua consciência perece para ele necessariamente também o mundo, isto é, o ser e o não ser”25. Sendo assim, no caso do santo teremos então a realização daquele nihil negativum sustentado por Schopenhauer no § 71 do Mundo; no caso do gênio estético, contudo, a questão é mais obscura: não há mais uma oposição parcial, relativa, de um indivíduo em relação ao todo, no qual a vontade individual e vontade universal são, por assim dizer, grandezas homogêneas. Na contemplação estética, o gênio torna-se puro olho do mundo, se dissolve de todos os vínculos com o mundo. A contemplação estética é, portanto, principium indeterminationis do gênio-artista, porque subtrai o gênio do espaço, do tempo e das relações causais, o des-individualiza, de modo que ele se torna um “rein erkennendes Subjekt, klares Weltauge”, puro sujeito que conhece, claro olho cósmico: Quando, por assim dizer, o objeto é separado de toda relação com algo exterior a ele e o sujeito de sua relação com a vontade, o que é conhecido não é mais a coisa particular enquanto tal, mas a Idéia, a forma eterna, a objetidade imediata [unmittelbar] da vontade nesse grau. Justamente por aí, ao mesmo tempo, aquele que concebe na intuição não é mais indivíduo, visto que o indivíduo se perdeu nessa intuição, e sim o atemporal puro sujeito do conhecimento destituído de vontade e sofrimento26. Entre a Ideia (ou seja, fenômeno na forma geral) e a vontade em si é instituída uma oposição absoluta, uma vez que númeno e fenômeno são toto coelo diversos. O gênio não anula todo o mundo como vontade, mas, coincidindo com a Ideia e, por 24 Reflita-se também sobre o fato de que na contemplação é dada a possibilidade de a Ideia, enquanto forma geral do fenômeno, sobreviver autonomamente no desaparecimento da vontade, que é extinta. Além disso, para Schopenhauer, a contemplação tem uma vida curta, levando apenas alguns poucos instantes, mas em realidade, não deveria se dar fora do tempo, e assim ser uma destruição eterna, uma espécie de kairòs grego? 25 SCHOPENHAUER, A. MVR I, p. 426; p. 391. Tradução ligeiramente alterada. 26 Idem, p. 246; pp. 210-211. _____________________________________________________________________________ ________ Voluntas: Revista Internacional de Filosofia – periodicos.ufsm.br/voluntas - Santa Maria - Vol. 9, n. 1, jan.-jun. 2018, pp. 79-92 87 | O paradoxo da dupla nulidade do mundo isso, com o fenômeno na sua forma mais geral27, deveria anular a Vontade em si, na sua totalidade. Se quiséssemos utilizar a linguagem cara à Existenzphilosophie (Existencialismo), poderíamos dizer que na contemplação estética o Wille é “riscado”( ) porque negado em absoluto. Todavia, enquanto no caso de Heidegger se trata do Ser inatingível, que se revela e se esconde nas dobras da temporalidade, um ser que é riscado ( ) porque inadequado em ser representado nos termos da linguagem metafísica ocidental, no caso de Schopenhauer, o Wille, que, mesmo fora do tempo e escapando ao conceito humano e à sua representação linguística, trata-se da essência metafísica do mundo, uma essência inefável que não se pode definir em termos de ser e de não ser, porque esses referem-se sempre a uma consciência e possuem conotação gnosiológica. O problema é determinar se e como uma negação absoluta seja possível, ou mesmo uma oposição absoluta. Eis aqui o paradoxo gerado pelo duplo nada do mundo. Em realidade, as dificuldades interpretativas acerca da natureza do nada nascem justamente da utilização ambígua, isto é, do emprego anfibológico por parte de Schopenhauer do conceito de nada, às vezes em sentido gnosiológico, às vezes em sentido metafísico: de fato, de maneira explícita, Schopenhauer refere-se a Kant, sustentando um nada relativo que é tal porque referido à consciência do indivíduo, movendo-se, portanto, sobre uma fronteira gnosiológica. Todavia, a propósito dos ascetas e do budismo, o filósofo do Mundo se refere ao Nada como reino de paz e de tranquilidade, no sentido positivo e com um fim ético, de modo que sucede uma mudança de perspectiva, da qual o referimento implícito é Platão, que intervém subrepticiamente, como uma veia subterrânea, fazendo do nada mais que um simples correlato da consciência, mas uma essência metafísica. 3. Vacuidade e fascinação do nada Como nota Riconda, no segundo livro do Mundo Existe […] em Schopenhauer uma dupla tendência: de um lado ele dá plena consistência à vontade de viver – impelido a isso, tanto do senso profundo da vida que é característica saliente do seu pensamento, quanto do fato que de outra forma os grandes temas da culpa e da dor não assumiriam aquele caráter autenticamente trágico que mesmo ele pretende conferir a eles – por outro lado, ele a tira essa plena consistência da vontade de viver em face à Nouluntas [...], desdobra-se então na coisa em si como vontade de viver, por si só conhecível, mas axiologicamente 27 A Ideia é a vontade no espelho, porque lhe está de frente, e se opõe a ela. Na contemplação estética do gênio, o fenômeno subsiste por si mesmo, autonomamente, como elemento positivo, suspenso em uma espécie de limbo estabelecido pela contemplação estética e no qual a vontade desaparece. Essa oposição determina que o fenômeno em geral deve se opor à vontade em geral, isto é, uma oposição no sentido absoluto. _____________________________________________________________________________________ Voluntas: Revista Internacional de Filosofia – periodicos.ufsm.br/voluntas - Santa Maria - Vol. 9, n. 1, jan.-jun. 2018, pp. 79-92 CIRACÌ, Fabio| 88 negativa, e no Nada que controla a vontade de viver, a qual, do ponto de vista axiológico, configura-se como positivo, mas que, como dissemos, escapa ao conhecimento filosófico que sobre esse ponto encontra o seu suplemento na mística28. As contínuas oscilações semânticas do conceito de nada e o mistério com o qual muitas vezes Schopenhauer encobre o processo da Verneigung des Willens (negação da vontade) levantou mais do que algumas perplexidades já nos primeiros seguidores e estudantes de Schopenhauer. Isso se vê também na correspondência do filósofo do Mundo com Julius Frauenstädt. Riconda aponta que, em uma carta, Schopenhauer tenta proteger a sua demonstração da noluntas, apelando à impossibilidade de objetar a natureza da vontade em um plano transcendente, sustentando que a sua doutrina se esforça para permanecer imanente, para atentar-se aos dados da experiência externa (fenômenos) e interna (vontade): A minha filosofia em momento algum fala do reino da nefelococigia [mundo de fábulas em grego], mas deste mundo, ou seja, ela é imanente, não transcendente. Lê o mundo dado como uma tábua de hieróglifos (cuja chave para decifração eu encontrei na vontade) e se mostra em toda parte coerente. Ela ensina o que é o fenômeno e o que é a coisa em si. A última, no entanto, é coisa em si apenas relativamente, isto é, na sua relação com o fenômeno. Além disso, é um fato cerebral. Que coisa seja a coisa-em-si fora dessa relação eu não disse nada, porque eu não sei: mas essa é em seu interior a vontade de viver. Que ela possa ser anulada, tentei empiricamente e deduzi que juntamente com a coisa-em-si se deve desaparecer o seu fenômeno. A negação da vontade de viver não é o aniquilamento de um objeto ou de um ser, mas simplesmente não-querer como consequência de um quietivo [...] no final do quarto livro eu escrevi [...], que para nós a eliminação da vontade é uma passagem para o nada. Portanto, que coisa poderia ser isso que nós conhecemos apenas como vontade de viver e como núcleo desse fenômeno fora desse âmbito, isto é, quando não puder ser mais ou não o for ainda, é um problema transcendente, cuja solução as formas do nosso intelecto, que são meras funções de um determinado cérebro destinado ao serviço de um fenômeno individual da vontade, não sendo adequados nem capazes de compreender e de pensar. De tal modo que, se nos fosse revelada, não entenderíamos nada29. Em uma outra carta, endereçada mais uma vez ao “arque evangelista” Frauenstädt30, Schopenhauer aventura-se a fazer afirmações bem mais fortes, as quais, RICONDA, G. La “Noluntas” e la riscoperta della mistica nella filosofia di Schopenhauer, p. 81. Carta de Schopenhauer a Frauenstädt de 21 de Agosto de 1852. 30 Sobre a categoria historiográfica da Schopenhauer-Schule, a sua articulação interna e os seus expoentes, cf. FAZIO, D. M. La scuola di Schopenhauer: testi e contesti. Sobre o pessimismo alemão do século XIX, cf. INVERNIZZI, G. Il pessimismo tedesco dell’Ottocento: Schopenhauer, Hartmann, Bahnsen e Mainländer e i loro avversari. _____________________________________________________________________________ ________ 28 29 Voluntas: Revista Internacional de Filosofia – periodicos.ufsm.br/voluntas - Santa Maria - Vol. 9, n. 1, jan.-jun. 2018, pp. 79-92 89 | O paradoxo da dupla nulidade do mundo ao invés de esclarecerem as dúvidas, trazem novas questões relativas ao conceito de negação da vontade e a sua coerência interna no sistema: A afirmação e a negação da vontade de viver é um puro Velle e Nolle. O sujeito de ambos é um e o mesmo. Como tal, ele não pode ser extinto e anulado com o seu ato. Ele é conhecido apenas através os seus atos. O seu Velle manifesta-se nesse mundo empírico, que exatamente por isso é a aparência da sua coisa em si. Do Nolle, ao contrário, conhecemos apenas a aparência do seu ingresso, que pode acontecer somente no indivíduo: esse, porém, pertence em primeiro lugar à aparência do Velle. Por isso vemos o Nolle aparecer sempre em luta com o Velle, enquanto o indivíduo dura. Se nele o Nolle venceu e o indivíduo pereceu, então existe uma pura manifestação do Nolle. Desse mesmo não podemos dizer nada de mais, apenas que a sua aparência não pode ser aquela do Velle (o mundo superado); não sabemos, contudo, se em geral ele aparece, isto é, se ele possui uma existência secundária por um intelecto que antes deveria produzir (e à propos de quoi?), e não podemos nem mesmo dizer algo do sujeito desse Nolle; ao invés, no seu ato contrário, como aquele que também produz o intelecto, temos um conhecimento positivo dele como da coisa em si da sua aparência31. O texto da carta de Schopenhauer é quase idêntico àquele utilizado no capítulo 14, Adendos às doutrinas da afirmação e negação da vontade de vida, dos Parerga e Paralipomena32 e é, então, um escrito ao qual Schopenhauer atribuiu uma certa importância. Ou seja, o “idêntico objeto do Velle e do Nolle”, sobre os quais Schopenhauer escreve a Frauenstädt, não é compreensível a nós pobres mortais. Certo é que chama-lo “sujeito” não somente implica em graves problemas orgânicos ao sistema (existe um sujeito apenas em relação ao objeto, isto é, no interior da representação), mas implicaria também em considerar a origem do velle e do nolle como uma entidade transcendente, o que é completamente incompatível com as premissas imanentes schopenhauerianas - a menos para não se fazer de Schopenhauer, como também propõe ironicamente Lütkehaus, um neo-gnóstico, adorador de Mefistófeles, cujo sistema filosófico dominado pelo irracional assumiria a aparência de um tipo de pansatanismo33, para dizer com Liebmann, ou de um pandiabolismo, para utilizarmos as palavras de Nietzsche34. Com Schopenhauer se poderia responder às críticas cruzadas de seus alunos com as afirmações contidas em sua Epifilosofia, na qual o filósofo do Mundo faz uma 31 Carta de Schopenhauer a Frauenstädt de 24 de Agosto de 1852. Cf. SCHOPENHAUER, A. P II, p. 408-409. 33 Cf. LIEBMANN, O. Analysis der Wirklichkeit, p. 248; Cf. CIRACÌ, F. Schopenhauer e le filosofie del “ritorno a Kant”: Otto Liebmann, p. 497-509. 34 “Schopenhauer concebe o mundo como um homem imenso, de quem vemos as ações, e o caráter dele é coisa imutável; isso pode ser deduzido dessas ações. Nisso, sua filosofia é um panteísmo ou talvez um pandiabolismo” (NIETZSCHE, F. Werke, IV/II, fragmento 24 [21], p. 436). _____________________________________________________________________________________ 32 Voluntas: Revista Internacional de Filosofia – periodicos.ufsm.br/voluntas - Santa Maria - Vol. 9, n. 1, jan.-jun. 2018, pp. 79-92 CIRACÌ, Fabio| 90 substancial retratação acerca da coincidência da coisa em si com o Wille35. O Sábio de Frankfurt afirma, insinuando que as raízes da individualidade “descem tão fundo até onde alcançam a afirmação da Vontade de vida. Onde a negação da vontade entra em cena, elas param: pois elas brotaram com a afirmação”36 e, portanto, apresentando questões sobre aquilo que ultrapassa a experiência possível “topamos em toda parte contra problemas insolúveis, como contra os muros da nossa prisão”37 com o nosso intelecto, este mero instrumento da vontade. Em realidade, Schopenhauer transgrediu repetidas vezes o princípio de imanência, fundando a experiência exterior (a intuição dos fenômenos) e interior (a intuição da vontade) sobre o pressuposto de uma essência da realidade, o Wille, ao qual não se pode atribuir predicado algum porque esse escapa ao intelecto humano. Assim como sobre o Wille, também sobre o Nichts – do qual precisamente nada se deveria dizer – Schopenhauer continua a escrever e a descrever as características, imaginando-o como um paraíso beato a ser alcançado ascendendo a escala da negação da vontade, na saída ascética em direção à pureza do não ser que santifica e redime o homem da inconveniência de ter nascido, para se expressar com Emil Cioran. É a partir da prática ascética que Schopenhauer conjuga a sua filosofia às doutrinas orientais do Budismo e do Bramanismo (mas também ao Cristianismo primitivo), preparando aquele deslizamento dos planos aos quais nos referimos: Serena e tranquila é, via de regra, a morte de todo bom humano: mas o morrer voluntariamente, morrer de bom grado, morrer alegre, é prerrogativa do resignado, daquele que renuncia e nega a Vontade de vida. Pois apenas ele quer morrer realmente e não só aparentemente, conseguintemente não precisa me, deseja permanência alguma da sua pessoa. Renuncia voluntariamente à existência tal como a conhecemos: o que lhe ocorre é aos nossos olhos nada; porque a nossa existência nada é em referência ao que lhe ocorre. É a isto o que a crença buddhista chama nirvana, isto é, extinção38. Schopenhauer considera a religião como a metafísica do povo39, pela qual é mais simples compreender a verdade sobre a essência do mundo em forma alegórica 35 “[...] a percepção interna que temos de nossa própria vontade de maneira alguma fornece um conhecimento pleno e adequado da coisa em si” (SCHOPENHAUER, A. MVR II, p. 237; p. 220). 36 SCHOPENHAUER, A. MVR II, p. 764; p. 734. 37 Idem, p. 765; p. 735. 38 SCHOPENHAUER, A. MVR II, p. 607; p. 580. 39 Conforme Schopenhauer, “A religião é a metafísica do povo, que deve ser absolutamente deixada para ele, e, portanto, deve ser respeitada exteriormente, uma vez que desacreditá-la significa retirá-la das pessoas. Como existe uma poesia do povo e, nos provérbios, também uma sabedoria do povo, assim também deve existir uma metafísica do povo, [uma vez que os seres humanos precisam absolutamente de uma interpretação da vida, e essa deve ser adequada a sua capacidade de compreensão]. Portanto, a religião é sempre um revestimento alegórico da verdade, adequado à capacidade de compreensão do povo e consegue fazer, do ponto de vista prático e sentimental, isto é, a título de uma diretiva para o agir e um calmante e consolação no sofrimento e na morte, talvez exatamente como a verdade em si mesma poderia alcançar se estivéssemos na posse dela” (SCHOPENHAUER, A. P, p. 424). _____________________________________________________________________________ ________ Voluntas: Revista Internacional de Filosofia – periodicos.ufsm.br/voluntas - Santa Maria - Vol. 9, n. 1, jan.-jun. 2018, pp. 79-92 91 | O paradoxo da dupla nulidade do mundo e dogmática do que através da filosofia. Eis o motivo de o filósofo do Mundo aderir à doutrina pessimista do cristianismo, acompanhada da ideia de um pecado originário do homem e de uma vida como queda e “vale de lágrimas”. A ética schopenhaueriana coincide no plano prático com a conduta de vida dos grandes eremitas e dos místicos cristãos. Do mesmo modo, a adesão ao budismo é motivada seja pela convicção que do Oriente provém a fonte da verdadeira sabedoria40, ainda não contaminada pelo otimismo semita, seja da aprovação de uma visão do mundo que encara a existência como uma ilusão e o nirvana como a possibilidade de saída do círculo da vida e, portanto, do sofrimento. A compaixão e o nirvana ensinados por Schopenhauer pareceriam excluíremse mutuamente: se, de um lado, Schopenhauer pede ao indivíduo para agir em favor do próximo, evitando causar danos e ofensas, e para aliviá-lo do peso da vida (neminem laede, imo omnes, quantum potes, iuva), reconhecendo nele a mesma unidade metafísica (tat twam asi, isto és tu!), por outro lado, o êxito niilista da noluntas abre caminho a uma interpretação quietista da ética schopenhaueriana, que teve amplo sucesso. A vida de negação da vontade, contudo, não é uma alternativa à via da Mitleid, ambas são indicadas por Schopenhauer como percorríveis pelo indivíduo. A via da redenção moral da compaixão corre paralela àquela ascética da noluntas, de modo que ao filósofo iluminado, que fundou a primeira ética da história do pensamento humano em um sentido laico e solidário, avizinha-se o místico do Nada. Em conjunto com o moralista iluminado, mestre do desencanto e do desengano, procede o pensador romântico que cede à tentação do infinito e da pureza do não ser. E, todavia, o misticismo niilista schopenhaueriano parece ser corrigido de alguma forma pelo exercício da razão que, mesmo apresentando-se como simples fluorescência da vontade, lança a sua luz fraca sobre o indivíduo e faz da consciência o quietivo da vontade, elemento de liberação e de redenção do Wille. Parece, então, que uma vez fundada a metafísica sobre uma vontade cega e universal, refutada a ideia de um deus providencial e benévolo com a imanência do mal, despojado o mundo de todo elemento romântico e de toda faísca divina, Schopenhauer não pretende lançar o homem na mais sombria desesperação, mas abrir-lhe uma esperança de redenção no fogo purificador do não ser. É justamente assim que o Nada permanece, talvez, como a última divindade deixada viva pela terrível vontade de vida, a última divindade da qual Schopenhauer não consegue se libertar. 40 Quanto à visão do Oriente como fonte originária do saber, Schopenhauer se relaciona harmonicamente com uma certa tradição do pensamento alemão do século XIX, que parte de Herder e chega a Schelling. Sobre esse tema, permito-me remontar a CIRACÌ, F. La filosofia tedesca e il pensiero orientale. _____________________________________________________________________________________ Voluntas: Revista Internacional de Filosofia – periodicos.ufsm.br/voluntas - Santa Maria - Vol. 9, n. 1, jan.-jun. 2018, pp. 79-92 CIRACÌ, Fabio| 92 Referências bibliográficas CIRACÌ, F. Schopenhauer e le filosofie del “ritorno a Kant”: Otto Liebmann. In: Archivio di Storia della cultura. Napoli: Liguori, 2014, pp. 497-509. CIRACÌ, F. La filosofia tedesca e il pensiero orientale. In: U. Eco e R. Fedriga (a cura di). Storia della Filosofia vol. 3: Ottocento e Novecento. Milano-Bari: Laterza-Encyclomedia, 2014, pp. 67-68. FAZIO, D. M. (a cura di). La scuola di Schopenhauer: testi e contesti. Lecce: Pensa MultiMedia, 2009. INVERNIZZI, G. Il pessimismo tedesco dell’Ottocento: Schopenhauer, Hartmann, Bahnsen e Mainländer e i loro avversari. Firenze: La Nuova Italia, 1994. KANT, I. Kants Werke: Akademie-Textausgab. Unveranderter photomechanischer Abdruck des Textes der von der Prenssischen Akademie der Wissenschaften 1902 begonnenen Ausgabe von Kantsgesammelten Schriften. Berlin: W. de Gruyter, 1968. LIEBMANN, O. Analysis der Wirklichkeit (1876). 3ª ed. revista e ampliada. Trünberg: Straßburg, 1900. LÜTKEHAUS, Ludger. Nichts. Zürich: Haffmans, 1999. NIETZSCHE, F. Opere di F. Nietzsche. Edizione italiana condotta sul testo critico stabilito da Giorgio Colli e Mazzino Montinari, vol 4/tomo II, Umano, troppo umano, I e Frammenti postumi (1876-1878), versione di Sossio Giametta e Mazzino Montinari. 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Recebido: 19/11/17 Received: 11/19/17 Aprovado: 15/03/18 Approved: 03/15/18 _____________________________________________________________________________ ________ Voluntas: Revista Internacional de Filosofia – periodicos.ufsm.br/voluntas - Santa Maria - Vol. 9, n. 1, jan.-jun. 2018, pp. 79-92