Paisagem Cultural
A QUESTÃO DA TRADIÇÃO: Algumas considerações preliminares
para se investigar o saber-fazer tradicional1
CASTRIOTA, Leonardo Barci (1)
Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Mestrado em Ambiente Construído e Patrimônio
Sustentável (MACPS)
Rua Paraíba, 697 – Funcionários, Belo Horizonte, Minas Gerais. CEP. 30130-140
[email protected]
RESUMO
À luz de uma pesquisa que se propunha a identificar e documentar os saberes tradicionais de
mestres artífices da construção e da arquitetura no Vale do São Francisco, no Estado de Minas
Gerais, este texto se debruça sobre a questão teórica da tradição. Recorrendo a vários autores,
principalmente do campo da Antropologia, procura-se definir a tradição e entender o seu
funcionamento, bem como aos mecanismos de sua transmissão. O texto vai mostrar que,
diferentemente de uma visão corrente, que vê a tradição como uma dimensão estática da cultura, ela
vai ser, como aponta Raymond Williams, sempre seletiva, constituindo uma versão intencionalmente
seletiva de um passado modelador e de um presente pré-modelado. Com isso, ela pode se constituir
numa força ativa na contemporaneidade, o que fica patente quando, através desse conceito, se
analisa, por exemplo, o saber-fazer tradicional.
Palavras-chave: tradição, transmissão, invenção, saber-fazer, Rio São Francisco
Entre 2011 e 2014, estivemos desenvolvendo o projeto de pesquisa “Mestres Artífices da
Construção Tradicional no Vale do São Francisco: Os Desafios da Preservação do SaberFazer”, com o patrocínio da Fundação de Amparo à Pesquisa de Minas Gerais (FAPEMIG).
Este projeto de pesquisa identificou e documentou os saberes tradicionais de mestres
artífices da construção e da arquitetura no Vale do São Francisco, no Estado de Minas
Gerais, desenvolvendo metodologia proposta pelo Instituto do Patrimônio Histórico e
Artístico Nacional (IPHAN) e realizando uma reflexão sobre a permanência e a
transformação dessas técnicas. Tratava-se de se dar sequência a uma pesquisa anterior,
1
Este texto é derivado da pesquisa “Mestres Artífices da Construção Tradicional no Vale do São Francisco: Os
Desafios da Preservação do Saber-Fazer”, que teve o patrocínio da Fundação de Amparo à Pesquisa de Minas
Gerais (FAPEMIG)
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realizada com o patrocínio do IPHAN, onde havia se mapeado os mestres artífices das
regiões Central, do Campo das Vertentes e do Vale do Jequitinhonha no Estado, nos anos
de 2009 e 2010.
Desta vez, o grupo interdisciplinar envolvido tomava uma região
significativa de Minas Gerais, o Vale do São Francisco, que teve um importante papel na
formação histórica do Estado e que apresenta hoje um importante acervo relativo ao saber
fazer tradicional da construção, a ser registrado e analisado.
Ao se iniciar o processo, pareceu-nos necessário se investigar preliminarmente uma
questão teórica subjacente à nossa pesquisa: a questão da tradição, que perpassava as
demais questões investigadas. Afinal de contas, cabia se interrogar sobre o que viria, de
fato, a ser a tradição, questão fundamental da qual derivavam outras questões, que
apareciam ao longo do nosso trabalho. Qual seria, por exemplo, a relação entre tradição e
cultura e como funcionaria o processo de transmissão pressuposto nesta ideia? Qual seria
o papel da tradição no mundo contemporâneo, marcado pela globalização e pela extrema
volatilidade de todas as referências?
E finalmente, caberia falarmos de um
desaparecimento da tradição? Se a tradição está, de fato, como apontam muitos autores,
desaparecendo – ou se transformando profundamente – frente ao avanço inexorável do
processo de modernização, parecia-nos necessário um esforço suplementar no sentido de
definir a tradição e entender o seu funcionamento.
Tradição e mudanças culturais
Paul Oliver, no verbete “Tradição e transmissão” da Encyclopedia of vernacular architecture,
enuncia que se consideram tradicionais “aqueles aspectos do comportamento, dos
costumes, do ritual ou do uso de artefatos que foram herdados das gerações anteriores”.
Assim, poderíamos denominar como traditum os exemplos mais distintos dentro uma
tradição, de um “soneto” a uma “insígnia”; nesse raciocínio, o campo da arquitetura seria
marcado intrinsecamente pela tradição, na medida em que todas as tipologias, tecnologias e
ofícios edilícios do passado que persistem até o presente poderiam ser considerados como
tradita.
A tradição teria, então, uma dimensão necessariamente conservadora: o presente
repetiria o passado através daquilo que dele herdou.
Neste sentido, a tradição foi
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comumente entendida como um segmento relativamente inerte de uma estrutura social, uma
“sobrevivência do passado”, não sendo de se estranhar, portanto, que ela seja vista, muitas
vezes, como uma dimensão cristalizada, imóvel, da cultura.
No entanto, a ligação que a tradição estabelece entre o passado e o presente é mais
complexa do que poderia parecer à primeira vista: se as tradita são permanências do
passado, elas existem no presente, onde desempenham normalmente a função de
emprestar sua chancela de autoridade a atos do presente. Para cumprir tal função, a
tradição
será,
como
aponta
Raymond
Williams,
sempre
seletiva,
“uma
versão
intencionalmente seletiva de um passado modelador e de um presente pré-modelado, que
se torna poderosamente operativa no processo de definição e identificação social e cultural”.
(WILLIAMS, 1979, p. 118.) É neste sentido que Oliver denomina tradicional uma sociedade
“que depende da autoridade de suas tradições para afirmar pensamentos e ações do
presente”.2 Desta forma, a despeito de seu viés eminentemente conservador, poderíamos
ver sempre se manifestando na tradição uma “força ativamente modeladora”, uma dimensão
que em última instância, vai lhe garantir uma certa plasticidade.
A Antropologia reforça essa perspectiva ao apontar para o fato de que todos os sistemas
culturais, mesmo aqueles tradicionais, estão em contínuo processo de modificação. Não
haveria, assim, uma cultura estática, e o próprio processo de transmissão incorporaria
possibilidades de mudanças, através das quais as culturas se mantêm flexíveis e podem
absorver as inevitáveis variações trazidas pelo tempo. Neste aspecto, cabe distinguir, no
entanto, entre dois tipos de transformações da cultura: aquelas mudanças internas, que
resultam da própria dinâmica do grupo, e aquelas mudanças, usualmente bruscas e rápidas,
trazidas pelo contato de um sistema cultural com outro. (LARAIA, 1988). O primeiro tipo de
transformação é o resultado de um desenvolvimento interno do grupo, quando, por exemplo,
se consegue resolver um problema colocado, ou se atinge um novo estado cultural. O
grande motor aqui vai ser, como aponta Ronald Lewcock, “o desejo de novidade e o instinto
2
ENCYCLOPEDIA, 1997, p. 117. O autor continua: “Tradições são manifestas na organização e orientação do
assentamento, nos ritos de consagração, nos tipos construtivos, sistemas estruturais e formas de telhado,
tecnologias e técnicas de construção, especialização e papeis de gênero dos construtores, na relação de
espaços significativos, e nos elementos que são decorativos ou que têm valor simbólico. Edificações
representam a síntese de muitas tradita. ” (Tradução do autor)
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humano fundamental ligado à curiosidade”.3 No que concerne à arquitetura vernacular, o
autor observa que “dentro de uma tradição, o desenvolvimento e a aceitação de uma
mudança física pode acontecer através da resolução de um problema que é inerente à
ordem existente”.
Já o segundo tipo de transformação – através de contato intercultural – este será, de fato,
como demonstra Claude Lévi-Strauss, o grande motor do avanço das culturas, que, em
diálogo, conseguiriam incorporar elementos trazidos da outra cultura. A própria diversidade
das culturas seria, assim, muitas vezes, um impulso para avanços internos: “Muitos
costumes nasceram, não de qualquer necessidade interna ou acidente favorável, mas
apenas da vontade de não permanecerem atrasados em relação a um grupo vizinho que
submetia a um uso preciso um domínio em que nem sequer se havia sonhado estabelecer
leis”. (LÉVI-STRAUSS, 1985, p. 51) Para o antropólogo francês, o grande mecanismo que
permitiria o avanço das culturas residiria justamente na colaboração entre elas: “A
possibilidade que uma cultura tem de totalizar este conjunto complexo de invenções de
todas as ordens a que nós chamamos civilização é função do número e da diversidade das
culturas com as quais participa na elaboração – a maior parte das vezes involuntária – de
uma estratégia comum.”(LÉVI-STRAUSS, 1985, p. 51) Assim, as “formas da história mais
cumulativas” nunca seriam resultado de culturas isoladas, “mas sim de culturas que
combinam, voluntária ou involuntariamente, os seus jogos respectivos e realizam por meios
variados (migrações, empréstimos, trocas comerciais, guerras) estas coligações (...)”.
No entanto, este processo, denominado por Claude Lévi-Strauss de “colaboração entre
culturas” – que o considerava como levando a avanços civilizatórios –, pode, às vezes, se
mostrar catastrófico, com a destruição e o apagamento de uma cultura pela outra. Neste
ponto, parece-nos necessário considerar a distinção, proposta por Ronald Lewcock, que
separa as transformações trazidas pelas influências externas em duas espécies,
distinguíveis uma da outra pela extensão pela qual são assimiláveis pela cultura existente:
segundo ele, poderíamos falar de “influências transculturais” “se as influências são
3
LEWCOCK, Ronald. “Westernization and cultural interaction”. ENCYCLOPEDIA, 1997, p. 121. No que se refere
à arquitetura vernacular, o autor observa que “dentro de uma tradição, o desenvolvimento e a aceitação de uma
mudança física pode ocorrer através da resolução de um problema que é inerente à ordem existente.”(Idem)
(tradução do autor)
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relativamente assimiláveis com facilidade”, e de uma “cultura externa impactante” se elas
não o são.4 Alain Gheerbrant vai nos fornecer um exemplo elucidativo desta diferença ao
comparar o encontro dos índios Ianomâmis, do Norte do Brasil e Venezuela, com a tribo
Yekuna e com a civilização branca:
De qualquer forma, sabemos com certeza que o povo ianomâmi ainda
estava florescendo até há alguns anos atrás. Mas eles não estavam
vivendo em isolamento total. Na Venezuela, a cultura material dos
ianomâmis estava evoluindo – sem, no entanto, tomar nada emprestado do
“mundo dos brancos”. No último quarto de século, eles vêm adotando
alguns avanços – canoas, redes de algodão fiado, plantação de pequenas
bananas e mandioca – provavelmente como resultado da interação com os
Yekuana, uma tribo de agricultores sedentários. Cansado de guerras, eles
têm estado trocando mais que tradições; eles têm casado entre si. Esta
transformação poderia ter acontecido suavemente, não tivesse sido pela
intromissão dos brancos, em busca de ouro e diamante. (GHEERBRANT,
1992, p. 14-115)
Enquanto conseguiam assimilar traços de outra cultura indígena, o encontro dos Ianomâmis
com os brancos vai ser devastador. Nas palavras do antropólogo Darcy Ribeiro:
Quando a civilização chegou, foi como a praga. Os indígenas pensaram que
estavam lidando com uma tribo que estava no mesmo nível deles, mas logo
descobriram que eles eram infinitos em número. Um dia, um índio, que
queria visitar uma cidade comigo, disse: ‘É assustador; eles parecem
formigas’. A chegada dos brancos pôs seus valores de ponta-cabeça. Elas
se viam como uma tribo amada pelos seus deuses, e, então, subitamente,
apareceu essa tribo muito maior, muito mais poderosa.
Isto resultou em disputa com seus deuses, com os seus pajés. Eles não
sabiam mais em que pé estavam. O mesmo se deu em relação aos aviões.
Assim que se deram conta de que seus inimigos eram os senhores desses
pássaros com asas rígidas, eles ficaram completamente atônitos. Com a
chegada do branco, os índios tiveram que se colocar uma série de questões
sérias sobre o seu lugar num esquema mutável de coisas. (Darcy Ribeiro, in
GHEERBRANT, 1992, p. 176-177)
4
Influências transculturais acontecem se duas culturas têm base comum suficiente para que as ideias possam
se deslocar facilmente de uma sociedade para outra. Isso não acontece se duas sociedades têm paradigmas, ou
visões de mundo, completamente diferentes. Em lugar de interagir através de mistura, um conjunto de
ideologias termina por destruir o outro, com os “efeitos correspondentes nas 'representações coletivas' da
cultura, incluindo aí sua arquitetura vernacular.” (LÉVI-STRAUSS, 1985, p. 82)
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Continuando com o exemplo dos indígenas brasileiros, e seu contato com a cultura branca,
cabe enfatizar que se trata de um caso extremo: o desaparecimento cultural é seguido aqui
pelo extermínio físico, com as terras indígenas sendo ocupadas pelos fazendeiros,
mineradores, estradas, usinas hidrelétricas e cidades. O contato brusco entre duas culturas
com perspectivas e visões de mundo completamente diferentes poucas vezes mantém
algum lugar para influências transculturais: ao verem seu mundo desaparecer com extrema
rapidez, aos indígenas resta somente a luta pela sobrevivência, pelo não desaparecimento.5
Os múltiplos significados da tradição
Outra abordagem importante sobre a tradição é a do sociólogo americano Edward Shils,
que, na obra Tradition (1981) mostra que o termo tem, de fato, uma série difusa, e muitas
vezes contraditória, de significados. A sua definição de "tradição" é muito ampla: a tradição
seria um tractitum “qualquer coisa que é transmitida ou passada do passado para o presente
... tendo sido criada através de ações humanas ... [de] pensamento e da imaginação, ela é
passada de uma geração para a próxima "(SHILS, 1981, p. 12). Essa definição inclui tanto a
substância que está sendo transmitida quanto o processo de transmissão; não contém, no
entanto, os aspectos relacionados ao "como" e ao "porquê": como se dá o processo de
transmissão e porque ele se comporta dessa forma. No restante do livro, Shils vai discutir,
então, principalmente o "como", deixando o "porquê" para pesquisas posteriores. É
interessante percebermos que a definição de Shils é um pouco mais ampla do que estamos
acostumados; no entanto, ela responde bem ao velho problema da "cultura tradicional rural"
versus "cultura não tradicional moderna urbana": ambas seriam construídas por "complexos
de tradição"; no entanto, esses complexos difeririam quanto ao seu tipo.
Qual seria, então, para ele a substância da tradição? Shils responde:
Todos os padrões consolidados da mente humana, todos os padrões de
crença ou modos de pensar, todos os padrões consolidados das relações
sociais, todas as práticas técnicas e todos os artefatos físicos ou objetos
5
Leonardo Castriota apresenta um interessante estudo de caso, concernente aos índios Cinta-Larga, que
habitam o Noroeste do Brasil, e o efeito do encontro dessa cultura com a dos brancos, bem como tentativas de
recriação de sua cultura, com a colaboração de uma arquiteta mineira, que residiu entre eles. (CASTRIOTA,
2009, p. 21-38)
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naturais [que] são suscetíveis a se tornarem objetos de transmissão; cada
um deles é capaz de se tornar uma tradição (SHILS,1981, p. 16).
Isso equivaleria, então, como podemos perceber, a uma espécie de catálogo completo da
cultura humana: trabalhar esse catálogo em detalhes, a enumeração e descrição das
classes de entidades que formam a substância da tradição e de suas qualidades, esta seria,
a seu ver, a tarefa do etnólogo. O que faz, então, qualquer dessas substâncias se tornar
uma "tradição"? Para ele, ela teria que se tornar objeto do processo de transmissão em pelo
menos dois atos de transmissão, isto é, tem que ser praticada por pelo menos três
"gerações de praticantes" ("geração" não significa necessariamente uma sucessão
biológica) e "para se tornar uma tradição, e para continuar a ser uma tradição, um padrão ou
uma ação tem que ter entrado na memória." (SHILS,1981, p. p. 167).
Aqui é importante acrescentar ainda que, os dois elementos – a substância e o processo de
transmissão, que formariam a definição mínima da tradição - deve-se adicionar o valor que
se atribui à tradição pela sociedade: a tradição vai ser sempre considerada plena de
autoridade, normativa ou prescritiva (SHILS,1981, p. 23-25), devendo, além disso, haver
consenso na sociedade sobre esse ponto (p. 161). Esse vai ser o caso, para ele, não
apenas das tradições "tradicionais" ("nós fazemos isso porque nossos antepassados
faziam", "se era bom para os nossos pais, é bom para nós"," o pecado (= desvio) é punido"),
mas isso também se aplica às tradições modernistas "antitradicionais" (por exemplo, as
tradições do liberalismo, socialismo, ou revolutionarismo, como também as tradições da
filosofia analítica ou de investigação científica).
São esses dois elementos, então, a substância e o processo de transmissão, que definiriam
nosso objeto com bastante clareza, delimitando-o imediatamente em relação às "nãotradições", como por exemplo, hábitos (pessoais), moda (social) (SHILS,1981, p. 307), e de
categorias mais gerais, como, por exemplo, circunstâncias sociais e econômicas
(SHILS,1981, p. 306-307), ou sentimentos pessoais (SHILS,1981, p. 31), etc. Para o autor,
as tradições têm limites, sejam esses claros ou vagos.
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Seguindo a argumentação de Sihls, a questão seguinte que se coloca, numa ordem lógica,
se relaciona aos critérios de classificação para as classes de substâncias que fazem parte
da tradição: o próximo passo seria a realização de uma espécie de "catálogo de tradições"
(que se contraporiam às "não-tradições"), apresentando-se com clareza os princípios da sua
classificação e uma descrição das suas fronteiras, tanto em nível de unidades sociais ou
culturais concretas quanto no da teoria abstrata. Um bom exemplo disso seria a questão
concernente à chamada "literatura popular", sobre a qual se poderia perguntar inicialmente o
que ela seria. Quais tipos de textos ficam dentro e fora do alcance da "literatüra popular"
numa dada sociedade em um dado período. Quais são as qualidades que definem cada
grupo de textos e traçar os limites entre eles? Será que, por exemplo, a "narrativa pessoal"
pertence à classe da "literatura popular" em uma determinada sociedade em um
determinado momento, ou não pertence, e, em caso afirmativo, com que base?3
Shils nos mostra como as conquistas da geração passada vivem na geração do "presente" –
cada geração sendo o seu próprio "presente", e como as tradições - cuja essência parece
ser a estabilidade –, de fato, mudam, crescem e diminuem. Ele também descreve as
circunstâncias gerais que fazem as tradições "nascer", "morrer" (SHILS,1981, p. 283-285) e
ser "revividas" (SHILS, 1981, p. 285-286). Como as tradições se comportam numa
determinada sociedade, numa vila, numa instituição, numa família: essa vai ser a tarefa do
etnólogo, tarefa para a qual Shils fornece um importante referencial teórico.
Não há novidade quando Shils fala da existência de diferentes tradições: uma cultura é
necessariamente composta de diversas tradições que podem ser classificado de diversas
formas; assim, por exemplo, há tradições primárias e derivadas (SHILS,1981, p. 17) ou
complementares (SHILS, 1981, p. 135); tradições de crença e tradições técnicas; tradições
que defendem um apego ao passado (ou seja, às próprias tradições) e aquelas que,
paradoxalmente, advogam o desmantelamento de tradições (por exemplo, as tradições de
modernização, a tradição liberal, a tradição de investigação científica). Algumas tradições
seriam, por sua própria natureza, estagnadas, enquanto outras são essencialmente
dinâmicas (SHILS,1981, p. 81).
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As diversas tradições que compõem uma cultura e nas quais a sociedade se baseia,
existem em diversas inter-relações (SHILS,1981, p. 273-283). Assim, elas poderiam se
apoiar umas às outras, ou, alternativamente, elas poderiam estar em conflito umas com as
outras (SHILS,1981, p. 159; 279-280); elas poderiam estar em contato e mesmo se
sobrepor, ou poderiam estar completamente separadas e não se interpenetrarem
(SHILS,1981, p. 57). As tradições também poderiam existir em paralelo umas com as outras
ou poderiam estar em hierarquias (SHILS,1981, p, 159; 268). As tradições podem formar
"famílias de dependentes" (SHILS,1981, p. 44), ou, alternativamente, "conjuntos de fluxos
paralelos" (SHILS,1981, p. 159). As tradições também podem variar quanto à sua posição
na sociedade: centrais versus periféricas, tema que é tratado no Capítulo 6 da obra.
As tradições de uma sociedade podem ainda ser consideradas no contexto de seu confronto
com as tradições de outras sociedades. Cada unidade cultural e social, da comunidade de
base celular da família e da aldeia até um estado inteiro, terá o seu próprio conjunto de
tradições e subtradições. Uma questão que aguarda mais investigação é se elas formam um
sistema e de que tipo e de complexidade é esse sistema. Exemplos: Até que ponto estão as
tradições literárias escritas e orais em contato em uma aldeia num determinado momento?
De que forma elas interagem? Com quais quadros mais amplos elas interagem? Como eles
fazem isso e em que grau? Como funciona essa interação nos diversos gêneros em que a
literatura popular se manifesta? Quais são as inter-relações das atividades literárias escritas
e orais com a literatura popular? Como a literatura popular "morre" (SHILS,1981, p. 283-286)
- ou seja, quais são os processos que levam ao empobrecimento e à transformação de uma
tradição literária popular?
Essas são apenas algumas sugestões das muitas potencialidades que o livro de Shils nos
oferece, ao analisar a complexa questão da tradição, fornecendo-nos um quadro geral
teórico consistente e amplo. Shils, sendo um sociólogo teórico, escreve sobre o nível macro,
sobre aquilo que R. Redfield chamou de "a grande tradição"; caberia, então, às ciências que
examinam a tradição colocar este quadro referencial em funcionamento, aplicando-o
concretamente à análise da tradição ao nível da pequena unidade social e cultural, a
"pequena tradição ", que é o nosso campo de investigação.
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A invenção da tradição
Outra ideia importante nessa abordagem é aquela da "invenção da tradição", conceito de
destaque no livro homônimo de 1983, editado por Eric Hobsbawm e Terence Ranger, que
argumentam que muitas "tradições" que parecem ou que pretendem ser antigas, têm, muitas
vezes, uma origem bastante recente, sendo, muitas vezes, inventadas. (É importante anotar
que naquele texto, os autores distinguem a "invenção" de uma tradição no sentido em que
apontam do ato de se iniciar uma tradição que não reivindique ser antiga.) A “tradição
inventada” poderia, assim, significar uma série de práticas, normalmente governada por
regras abertamente ou tacitamente aceitas e de um ritual de natureza simbólica, que
pretendem inculcar certos valores e normas de comportamento pela repetição, que
automaticamente implica em continuidade com o passado. De fato, onde é possível, elas
normalmente tentam estabelecer continuidade com um passado histórico aceitável.
(HOBSBAWM; RANGER, 1984, p. 1) Esse fenômeno seria particularmente claro, a seu ver,
no desenvolvimento moderno da "nação" e do "nacionalismo". Um bom exemplo
apresentado por Hobsbawn e Ranger é a reconstrução do edifício do parlamento inglês, que
invocava o ambiente construído e sua suposta continuidade com o passado como uma
"tradição inventada". Naquele caso, retomar-se o estilo gótico em pleno século XIX
significava reforçar a ideia de uma nação inglesa, que teria sua origem na Idade Média.
A ideia da “invenção da tradição” tem sido amplamente usada na análise de fenômenos
culturais os mais diversos, tais como, por exemplo, a Bíblia e o sionismo (MASALHA, 2007),
o mito das "terras altas" na Escócia (SIEVERS,2007) e as tradições das principais religiões
(TOMOKO, 2005), apenas para mencionar alguns usos. Esse conceito também foi muito
influente no uso de ideias relacionadas, tais como a ideia de "comunidades imaginadas"
(imagined communities) de Benedict Anderson5 e do "efeito pizza" (pizza efect)6, ideias que
também nos parecem particularmente importantes ao se abordar o tema da tradição.
Uma das implicações mais importantes da ideia da “invenção da tradição” é que, de acordo
com ele, a distinção nítida entre "tradição" e "modernidade" seria muitas vezes, ela própria,
inventada. O conceito vai ser, de fato, como sabemos, "altamente relevante para aquela
inovação histórica relativamente recente, a "nação", com seus fenômenos associados: o
nacionalismo, o Estado-nação, os símbolos nacionais, as histórias e todo o resto".
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Hobsbawm e Ranger observam bem, a nosso ver, o "paradoxo curioso, mas compreensível:
as nações modernas e todos os seus apetrechos geralmente afirmam ser o oposto da
ficção, ou seja, afirmam estar enraizadas na mais remota antiguidade, e o oposto do
construído, a saber, comunidades humanas tão 'naturais' que não requerem qualquer
definição diferente da autoafirmação." (HOBSBAWM; RANGER,2006, p. 14) Uma outra
implicação dessa ideia é que o conceito de "autenticidade" – muito importante para a
discussão na área do patrimônio – também passa a ser questionado6.
É interessante perceber que, na mesma linha que outros pesquisadores, principalmente
aqueles advindos da Antropologia, Hobsbawm introduz os conceitos de "novidade" e de
"bricolage" como sendo fundamentais para a tradição, mostrando como ela envolve muitas
vezes a adaptação e o "re-enxertamento" (regrafting) de velhos conteúdos em novos. No
quadro que traça, Hobsbawm propõe três categorias de "tradições inventadas": (a) aquelas
que estabelecem ou simbolizam a coesão social ou o pertencimento a grupos e
comunidades reais ou artificiais; (b) aquelas que estabelecem ou legitimam instituições,
status ou relações de autoridade, e (c) aquelas cujo principal objetivo seria a socialização, a
inculcação
de
crenças,
sistemas de
valores
e
convenções
de comportamento.
(HOBSBAWM; RANGER,2006, p. 9)
Finalizando esse tópico, cabe anotar que, apesar de toda sua importância, a ideia de uma
"tradição inventada" não deixa de ser questionada: Peter Burke escreve que apesar da
"invenção da tradição" ser uma "frase esplendidamente subversiva", ela esconderia "sérias
ambiguidades". Para ele, Hobsbawm contrastaria as tradições inventadas com a "força e
adaptabilidade" das tradições genuínas, o que parece legítimo. No entanto, deveríamos nos
perguntar onde, de fato, terminaria a sua "adaptabilidade" (ou a "flexibilidade" de Ranger) e
começaria a invenção? Considerando que todas as tradições se modificam, seria possível
ou útil tentar se discriminar as tradições "genuínas" das "falsas"? Richard Handler, por sua
vez, também critica o conceito, apontando que essa distinção (entre as tradições
"inventadas" e "autênticas") se traduziria, na verdade, na distinção mais profunda entre o
"genuíno" e o espúrio", "urna distinção que pode ser insustentável, "porque todas as
6
A esse respeito, confira JOKILEHTO, 2006.
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tradições (como todos os fenômenos simbólicos) são criadas ("espúria") pelo homem ao
invés de naturalmente dadas ("genuínas")."
Questões teóricas subjacentes a uma investigação sobre a tradição
Ao se iniciar uma pesquisa sobre a tradição, há vários pontos advindos dessas reflexões
que nos parecem pertinentes. Em primeiro lugar, aqueles que se referem ao próprio
conceito de tradição, parecendo-nos muito apropriada a definição fornecida por Sihls,
segundo a qual um tractitum poderia ser “qualquer coisa que é transmitida ou passada do
passado para o presente ... tendo sido criada através de ações humanas ... [de] pensamento
e da imaginação, ela é passada de uma geração para a próxima "(SHILS, 1981, p. 12). Os
três elementos apontados por ele parecem-nos importantes aqui, no caso da investigação
sobre os mestres artífices: a substância, o processo de transmissão e o valor que se atribui
à tradição pela sociedade: ao longo de nossas pesquisas vimos que o saber fazer
transmitido pelos mestres vai ser, de fato, considerado plena de autoridade, normativa ou
prescritiva (SHILS,1981, p. 23-25), havendo, aliás, consenso na sociedade sobre esse ponto
(p. 161).7
No que se refere às técnicas da construção tradicional, podemos perceber, como o faz Paul
Oliver na Encyclopaedia que as tradições se manifestam, de fato, em diversos de seus
elementos: na organização e orientação do assentamento, nos ritos de consagração, nos
tipos construtivos, sistemas estruturais e formas de telhado, tecnologias e técnicas de
construção, especialização e papeis de gênero dos construtores, na relação de espaços
significativos, e nos elementos que são decorativos ou que têm valor simbólico. Assim, as
edificações vão representar a síntese de muitas tradita. Neste ponto, podemos observar
ainda que a metodologia prescrita pelo Inventário Nacional de Referências Culturais (INRC),
do IPHAN, que foi utilizado por nós, é bastante precisa, estando atenta para essa variedade
de elementos.
7
É interessante perceber que um dos métodos utilizados para se localizar os mestres artífices da construção e
da arquitetura tradicional foi se perguntar à própria comunidade, que não tinha dúvida em indicar esses
indivíduos reconhecidos socialmente por seu saber.
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Um segundo ponto, sublinhado pelos diferentes autores, refere-se à inserção temporal
desse saber fazer investigado: se as tradita são permanências do passado, elas vão existir
no presente, como aponta, por exemplo, Raymond Williams. (WILLIAMS, 1979, p. 118)8
Edward Shils nos mostra como as conquistas da geração passada vivem na geração do
"presente" - cada geração sendo o seu próprio "presente", e como as tradições - cuja
essência parece ser a estabilidade -, de fato, mudam, crescem e diminuem. Nesse sentido,
um projeto como o Mestres Artífices trata de realizar uma espécie de “instantâneo” do
estado da tradição construtiva, documentando e analisando como ela existe no presente em
uma determinada região. Para isso, uma metodologia como a proposta pelo Inventário
Nacional de Referências Culturais (INRC), do IPHAN, também nos parece muito adequada,
na medida em que permite um registro bastante minucioso não só das técnicas em si, mas
de suas circunstâncias, aí se incluindo a localidade em que elas são exercidas e as
condições materiais para a sua execução. Além disso, o INRC, apesar de se referenciar ao
presente, num registro sincrônico, também nos induz a promover um mergulhar diacrônico,
ao pressupor também alguma pesquisa histórica sobre o desenvolvimento dessas técnicas
ao longo do tempo, o que é feito através de entrevistas e pesquisas documentais. Trata-se,
na verdade, de se perceber aquilo que é apontado por Katharina Weiler, ao analisar o
processo de avaliação e transmissão das técnicas artesanais na Índia:
Tradições estão intimamente ligados com a continuidade e a natureza
processual da cultura, sendo que por trás do conceito de tradição escondese tanto a ideia de passagem e da aceitação de formas culturais. As
tradições conectam passado e presente, elas descrevem os processos de
aprendizagem nos quais as formas (trans) culturais podem ser recebidas e
transformadas, para, mais uma vez, ser aprendidas, testadas e corrigidas.
(WEILER, Katharina. 'Lebendige Handwerkstraditionen' – ein transkultureller
Mythos am Beispiel Indiens. In: FALSER; JUNEJA, 2013. p. 247.)
Finalmente, parece-nos importante considerar aquela dimensão da "invenção da tradição",
conceito de destaque no livro de Eric Hobsbawm e Terence Ranger, que apontam para o
fato de que muitas "tradições" que parecem ou que pretendem ser antigas, têm, muitas
vezes, uma origem bastante recente, sendo, muitas vezes, inventadas. Se os autores se
8
Como já anotamos, a tradição será, como aponta Raymond Williams, sempre seletiva, “uma versão
intencionalmente seletiva de um passado modelador e de um presente pré-modelado, que se torna
poderosamente operativa no processo de definição e identificação social e cultural”. (WILLIAMS, 1979, p. 118)
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referem primordialmente à invenção de tradições nacionais, a noção que introduzem tem
sido muitas vezes usada para analisar outros fenômenos do campo da cultura, como vimos.
No caso específico das técnicas construtivas tradicionais investigadas por este projeto, este
conceito parece-se se aplicar à perfeição, o que já foi mostrado por nós em trabalho
anterior, principalmente tomando a situação da região de Ouro Preto, onde pudemos
constatar uma ação institucional do IPHAN na manutenção e/ou reintrodução dessas
técnicas, ao realizar oficinas para capacitação de mão de obra9. Além disso, é digno de
menção o caso paradigmático do Mestre Juca, em Ouro Preto, reinventor da tradição da
cantaria naquela região: depois de ter trabalhado por décadas como parte da equipe técnica
do IPHAN, utilizando técnicas modernas para o restauro, aquele artífice resolve redescobrir
as técnicas utilizadas pelo seu antepassado, o que logra fazer depois de várias tentativas
frustradas. No caso da presente pesquisa, encontramos essa mesma dimensão, ao nos
depararmos com a reinvenção da técnica da construção em pedra, no Alto São Francisco,
onde essa serve para reforçar um caráter de localidade e unicidade, sendo muito utilizada,
por exemplo, na construção de novas pousadas e estabelecimentos turísticos10.
Referências
CASTRIOTA, Leonardo Barci. Patrimônio Cultural: conceitos, políticas, instrumentos. São
Paulo; Belo Horizonte: Annablume; IEDS, 2009.
9
Katharina Weiler anota, a esse respeito: “Na busca de dar sentido ao passado com a ajuda de bens culturais,
essa se torna uma área que é objto de intensa luta, com o patrimônio fornecendo a governos e às ciências
históricas, bem como a grupos ou pessoas comuns o potencial para moldar as suas próprias memórias.”
(WEILER, Katharina. 'Lebendige Handwerkstraditionen' – ein transkultureller Mythos am Beispiel Indiens. In:
FALSER; JUNEJA, 2013. p. 247.) Por isso, segundo ela, uma pesquisa “transcultural” do conceito de tradição no
contexto do artesanato e do património cultural da Índia vai requerer em primeiro lugar “uma história cuja
metodologia vá além dos limites tradicionais de pesquisa historiográfica”, questionando tanto as “metanarrativas
dominantes” quanto os mitos em questão.
10
Citando novamente Katharina Weiler, cabe lembrar que ela, no texto já citado sobre as técnicas tradicionais na
Índia, mostra, apoiando-se em trabalho de Bernardo S. Cohn, que sob o imperialismo britânico, as tradições
apresentam não apenas transformações, que se deram durante o processo de transmissão, mas também,
algumas vezes, foram sempre negociadas, conscientemente inventadas, reinventadas e autenticadas
contextualmente, e sempre reavaliadas e instrumentalizadas de novo. (WEILER, Katharina. 'Lebendige
Handwerkstraditionen' – ein transkultureller Mythos am Beispiel Indiens. In: FALSER; JUNEJA, 2013. p. 248.)
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