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Metáfora e humor: uma abordagem cognitiva

Resumo. Este artigo se propõe a discutir o emprego de expressões metafóricas como recurso para a geração de humor nos quadrinhos da Mafalda de autoria do cartunista argentino Quino. A análise é conduzida sob o olhar cognitivista e aborda as relações híbridas entre os elementos verbais e imagéticos presentes no corpus selecionado – quatro tiras do Livro 1. Neste estudo, a metáfora é entendida como um processo cognitivo que determina o modo de pensar, agir e falar dos indivíduos e varia de acordo com a cultura na qual os sujeitos estão inseridos (LAKOFF; JOHNSON, 1980). Em relação à suscetibilidade da metáfora ser explorada na escritura humorística, Evrard (1996) aponta que ela pode levar à incongruência e à redundância -traços que podem provocar o efeito de humor. Os dados analisados apontam para a indissociabilidade entre os elementos imagéticos e verbais tanto para o estabelecimento metafórico quanto para a criação do humor. Ademais, o enunciado metafórico apresentou-se como um ele...

Anais do CELSUL 2008 Metáfora e humor: uma abordagem cognitiva Arlene Koglin1, Sila Marisa de Oliveira2 1 Pós-Graduação em Estudos da Tradução – Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) 2 Pós-Graduação em Estudos da Tradução – Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) [email protected], [email protected] Resumo. Este artigo se propõe a discutir o emprego de expressões metafóricas como recurso para a geração de humor nos quadrinhos da Mafalda de autoria do cartunista argentino Quino. A análise é conduzida sob o olhar cognitivista e aborda as relações híbridas entre os elementos verbais e imagéticos presentes no corpus selecionado – quatro tiras do Livro 1. Neste estudo, a metáfora é entendida como um processo cognitivo que determina o modo de pensar, agir e falar dos indivíduos e varia de acordo com a cultura na qual os sujeitos estão inseridos (LAKOFF; JOHNSON, 1980). Em relação à suscetibilidade da metáfora ser explorada na escritura humorística, Evrard (1996) aponta que ela pode levar à incongruência e à redundância - traços que podem provocar o efeito de humor. Os dados analisados apontam para a indissociabilidade entre os elementos imagéticos e verbais tanto para o estabelecimento metafórico quanto para a criação do humor. Ademais, o enunciado metafórico apresentou-se como um elemento central para geração do efeito humorístico. Abstract. This paper aims at discussing the use of metaphorical expressions as a mechanism to create humor in Mafalda comic strips, written and drawn by the Argentine cartoonist Quino. The analysis is carried out under the cognitivist theory of metaphor and it approaches the hybrid relations between verbal and visual elements of the selected corpus: four comic strips from Book 1. In this piece of research, metaphor is understood as a cognitive process that determines our way of thinking, acting and speaking. Besides that, it varies according to the culture which individuals belong to (LAKOFF; JOHNSON, 1980). Concerning the metaphor’s susceptibility to be explored in humor creation, Evrard (1996) postulates that it can lead to incongruence and redundance – characteristics that can evoke the humor effect. The analysed data have revealed an indissociability between the verbal and visual elements for both metaphoric constitution and humor creation. In addition, the metaphoric utterance emerged as a central factor for creating the humor effect. Palavras-chave: metáfora; quadrinhos; humor Anais do CELSUL 2008 1. Introdução Sob a ótica cognitivista, este artigo almeja investigar o papel da linguagem metafórica para a criação do efeito de humor nos quadrinhos da Mafalda. Pretende-se, também, discutir as relações de interdependência entre as linguagens verbal e visual. Optou-se por quadrinhos como objeto de análise por constituírem uma forma de comunicação compacta que utiliza a linguagem verbo-visual como meio de expressão. Ademais, texto e imagem desempenham cada qual o seu papel a fim de prender o leitor, fazer a história progredir e criar o efeito humorístico. Selecionaram-se quatro tiras da Mafalda da tradução brasileira (1982) do Livro 1 – publicado em 1972. Como critério seletivo, contemplou-se a riqueza de emprego da linguagem metafórica. As tiras que compõem tal livro foram publicadas de março a dezembro de 1965, nos jornais El Mundo e Cordoba. A opção pelos quadrinhos de Quino fundamentou-se na afirmativa de Baggio (2004), segundo a qual o livro do cartunista deveria ser referência bibliográfica para as disciplinas de Lingüística e Semiótica, visto que ele usa e abusa das possibilidades de significação oferecidas pelos recursos de texto e de traços. Quanto à organização, este artigo desenvolve-se com base em três seções centrais: pressupostos teóricos (metáfora, humor e quadrinhos) e análise das tiras selecionadas. Por fim, apresentam-se as considerações finais. 2. Pressupostos teóricos 2.1 Metáfora sob o prisma cognitivista A abordagem cognitivista de metáfora tem sido amplamente investigada no meio acadêmico e consolidou-se no início dos anos 80 com a publicação da obra Metaphors we live by, de autoria de Lakoff e Johnson, reconhecida como precursora dentro do paradigma cognitivista. Nessa perspectiva, a metáfora é vista como um processo cognitivo que permeia o modo como falamos, pensamos e agimos e baseia-se na experiência de cada indivíduo. De acordo com Lakoff e Johnson (1980)1, a metáfora (conceitual) é compreendida pela utilização de um domínio mental (domínio fonte) em termos de outro (domínio alvo). Há, também, a metáfora imagética, na qual o mapeamento conceitual ocorre de uma imagem convencional para outra. As expressões lingüísticas derivadas das metáforas conceituais são denominadas expressões metafóricas. A título de ilustração, apresenta-se um exemplo de metáfora conceitual: O AMOR É UMA VIAGEM (LAKOFF; JOHNSON, 2002). Neste caso, características de nossas experiências com base no domínio fonte (viagem) são mapeadas e atribuídas ao domínio alvo (amor). Assim, temos expressões metafóricas como: Veja a que ponto nós chegamos; Nós estamos numa encruzilhada. 1 Nas referências bibliográficas, embora seja citada a obra de Lakoff e Johnson traduzida para o português brasileiro em 2002, menciona-se, nesse caso, o ano de publicação da obra em língua inglesa Metaphors we live by. GT – Cognição, relevância e interface semântico-pragmática 2 Anais do CELSUL 2008 Lakoff e Johnson (2002) fazem a distinção entre três tipos de metáforas: estruturais, orientacionais e ontológicas. O exemplo supracitado enquadra-se na metáfora estrutural, pois há uma estruturação do conceito amor em termos de viagem. Já as metáforas orientacionais não estruturam um conceito em termos de outro, elas organizam um sistema de conceitos em relação a outro. A maioria delas relacionase à orientação espacial e surge a partir de nossas experiências física e cultural. Elas atribuem a um conceito uma orientação espacial, como em: BOM É PARA CIMA / MAU É PARA BAIXO; STATUS SUPERIOR É PARA CIMA / STATUS INFERIOR É PARA BAIXO; FELIZ É PARA CIMA / TRISTE É PARA BAIXO. E, por fim, têm-se as metáforas ontológicas, que nascem de nossas experiências com objetos físicos e nos permitem compreender coisas abstratas como entidades e substâncias em termos de coisas concretas e/ou convencionais. Os autores acrescentam que “talvez as metáforas ontológicas mais óbvias sejam aquelas nas quais os objetos físicos são concebidos como pessoas” (LAKOFF; JOHNSON, 2002, p.87). A atribuição de características humanas a entidades não-humanas gera casos de personificação por meio da qual coisas abstratas tornam-se mais palpáveis e/ou perceptíveis. Observe-se a seguinte expressão metafórica proveniente do objeto de estudo: [...] os países desenvolvidos são justamente os que vivem de cabeça para cima. Trata-se de um exemplo de personificação derivado da metáfora conceitual PAÍSES SÃO PESSOAS. Dentre os vários usos da metáfora na linguagem, seja cotidiana ou literária, destaca-se, neste estudo, o uso tanto como mecanismo para produção do efeito de humor, quanto de fornecimento de insights cognitivos acerca do funcionamento do efeito humorístico. 2.2. O humor metafórico Sob o prisma cognitivista, pode-se considerar que tanto a criação quanto a interpretação do humor dependem, de forma crucial, do emprego de metáforas em nível conceptual, para que se possa explorar as lacunas decorrentes dos graus de saliência entre o literal e o metafórico (GIORA, 1997), na escritura humorística. Uma das condições básicas do humor, segundo Aladro (2002), é que, em qualquer mensagem de cunho humorístico, há um plano de significação duplo ou múltiplo. É possível afirmar que, igualmente, na metáfora, tem-se essa duplicidade de planos - o literal e o metafórico -, embora nem sempre o primeiro deles seja acessado (GIORA, 1997). Ao mencionar a suscetibilidade da metáfora ser explorada na escritura humorística, Evrard (1996) postula que ela pode levar à incongruência e à redundância traços que podem provocar o efeito de humor. No contexto das histórias em quadrinhos, há uma relação muito estreita entre o material verbal e o visual, não só para a compreensão como também para a criação do efeito humorístico. Em vista disso, existe a possibilidade de que, em algumas situações, o humor resulte de uma incongruência entre o que é dito e o que é mostrado na imagem. Portanto, o humor no âmbito dos quadrinhos não é um fenômeno puramente lingüístico. Embora este estudo se proponha investigar o efeito de humor ocasionado a partir de expressões lingüísticas metafóricas, cabe salientar o valor da hibridização dos elementos verbais e imagéticos, tanto para compreensão como para criação do humor. GT – Cognição, relevância e interface semântico-pragmática 3 Anais do CELSUL 2008 Desde o século passado, pesquisas concernentes aos quadrinhos têm constatado que “o humor reina supremo: 64% do total contra 19,2% de aventura” (COUPERIE, 1970, p. 161). Em relação ao humor presente nas produções do cartunista Quino, salienta-se que, além de acessível, é familiar pelo seu conteúdo. O autor também utiliza elementos iconográficos da cultura popular e, talvez por isso, provoque uma identificação tão forte com o leitor (BAGGIO, 2004). 3. Quadrinhos: caracterização, enredo, personagens e análise 3.1. Caracterização do objeto de estudo A história em quadrinhos constitui-se com base nos elementos verbais e visuais. Além de a imagem ser primordial à constituição e compreensão do enredo, a separação destes dois elementos pode, inclusive, tornar-se um problema. Quanto a esse aspecto, Couperie (1970, p.201) menciona que: A história humorística propõe mais uma vez e de modo agudo o problema da relação texto-imagem, pois nesse caso o texto que pretende fazer um trocadilho ou uma piada é primordial, e o desenho usualmente serve só para reforçá-lo ou apoiá-lo; o melhor resultado é alcançado quando a piada pictórica e o texto combinam e se reforçam mutuamente. Cabe ainda dizer que as imagens das histórias em quadrinhos são frutos de uma escolha que permite ao leitor ver o que é fundamental e encobre o que não é necessário perceber. Quanto à narrativa, a história em quadrinhos apresenta eventos em uma seqüência lógica, dentro de um desenvolvimento temporal e tem suas próprias exigências. Particularmente, ela tende a se fechar dentro dos seus próprios quadrinhos, ou seja, a formar uma unidade em si mesma; em vista disso, não há necessidade de manter a seqüência de uma tira para outra. No caso das histórias em quadrinhos da Mafalda, embora existam algumas situações em que um mesmo assunto tem seqüência em tiras posteriores – como nos quadrinhos que se consideram na seção de análise - cada tira é independente, ou seja, o leitor não precisa obrigatoriamente conhecer o enredo da tira anterior para chegar à compreensão daquela que está lendo. Quella-Guyot (1994) menciona que talvez perdurem, até hoje, as histórias em quadrinhos devido a sua autenticidade e excepcionalidade no que concerne ao herói. O autor afirma que o herói é predominantemente do sexo masculino e feito à imagem do herói arquetípico: belo, inteligente, jovem, ativo, esportivo, corajoso; enfim, perfeito. Quino contraria tal representação, ou seja, a de que o herói deve ser um personagem masculino, pois Mafalda, além de ser a heroína, apresenta-se como uma menina com a maturidade e a perspicácia de um adulto inteligente. No que diz respeito à presença do elemento feminino nas histórias em quadrinhos (HQs), Quella-Guyot (1994, p.47-48) salienta que a figura da “mulher, apresentada facilmente em ambientes delicados, frágeis e infantis, mudou. Mas permanece verdadeiro o fato que, em inúmeras HQs, ela continua ‘sabiamente’ relegada GT – Cognição, relevância e interface semântico-pragmática 4 Anais do CELSUL 2008 ao seu papel de mãe, de esposa e de dona de casa”. Tais características não compõem a heroína dos quadrinhos de Quino, no entanto ficam relegadas a duas personagens secundárias da HQ: a mãe de Mafalda (Raquel) e Susanita (amiga de Mafalda) que almeja ter muitos filhos e ser dona de casa. Embora as duas personagens – Raquel e Susanita - sejam apresentadas sob forma estereotipada, pode-se considerar inovadora a opção de Quino por uma personagem feminina como protagonista, pois o fato de as HQs apresentarem uma heroína em detrimento de um herói é raro, visto que reproduzem a mentalidade dominante de que a mulher não possui liberdade, nem coragem (Quella-Guyot, 1994). 3.2. Personagens e tema Escritas e desenhadas pelo cartunista argentino Quino, as histórias em quadrinhos da Mafalda apareceram de 1964 a 1973. Embora elas tenham sido criadas há mais de trinta anos, muitas ainda continuam atuais quanto aos assuntos e temas abordados. Os personagens que compõem as tiras são: Mafalda, Mamá (Raquel), Papá (nome desconhecido), Felipe, Manolito, Susanita, Guille, Miguelito e Liberdad. Na seqüência, caracterizam-se individualmente apenas as personagens que aparecem nas tiras selecionadas para este estudo. Mafalda, uma garota de aproximadamente sete anos de idade, é a personagem principal e heroína. É caracterizada como uma menina precoce, politizada, conseqüentemente contestadora e rebelde com o estado atual do mundo, além de preocupada com a humanidade e a paz mundial. Ademais, ela odeia sopa e adora os Beatles. Mamá (Raquel) é dona de casa e abandonou os estudos quando Mafalda nasceu. Por essa razão é constantemente criticada por Mafalda. Entra em conflitos de opinião com a filha, especialmente quando lhe prepara sopas. Papá (nome desconhecido) trabalha em uma companhia de seguros, adora cultivar plantas no tempo livre e entra em crise quando se dá conta de sua idade. Mamá e Papá formam um típico casal de classe média que sofre com os questionamentos da filha Mafalda. Felipe é tímido e sonhador. Ele odeia a escola; em conseqüência disso, freqüentemente, trava intensas batalhas com sua consciência e seu senso nato da responsabilidade. Por fim, tem-se Manolito. Ele é filho de um comerciante, logo se preocupa com os negócios, além de ser ambicioso e materialista. Ele detesta os Beatles e freqüentemente tira notas baixas na escola. Quanto ao tema das histórias, Quino, normalmente, trata de assuntos do último momento, daquela época, relacionados aos problemas presentes nos cenários social, econômico e político do mundo. O autor também aborda problemas domésticos que se refletem nas relações familiares. GT – Cognição, relevância e interface semântico-pragmática 5 Anais do CELSUL 2008 3.3. Análise Para fins de análise, selecionaram-se as quatro tiras da Mafalda que compõem o corpus deste trabalho. Na tira a seguir, é possível observar a protagonista Mafalda questionando seu pai quanto ao local em que vivem no globo terrestre. Figura 1. Tira 1 O primeiro enunciado verbal “onde é que nós estamos” poderia abrir diferentes possibilidades de interpretação, se não fosse considerada a imagem. As possibilidades são direcionadas a um só sentido quando o pai diz “Aqui” e aponta para um determinado local no globo terrestre. Ao perceber que o lugar indicado por ele localizase no hemisfério Sul, Mafalda exibe uma fisionomia de espanto e surpresa. Como a localização está assentada na parte inferior do globo, ela entende que os habitantes daquele local andam de cabeça para baixo e mantêm-se presos a terra pelos pés por meio da força gravitacional. A personagem desconsidera o fato que o globo é apenas um recurso visual convencionalizado para o ensino de localizações geográficas e supõe que os moradores estão “presos pelos pés” e literalmente de cabeça para baixo. O efeito de humor inicia-se no terceiro quadrinho diante da imagem de surpresa da personagem associada ao enunciado “vivemos de cabeça para baixo”. Esses dois elementos conduzem o leitor a vislumbrar a interpretação literal do enunciado utilizado pela personagem. O sentido metafórico situa-se no emprego da expressão de cabeça para baixo que pode sugerir duas possíveis interpretações em português. Em O mundo está de cabeça para baixo, por exemplo, o sentido diz respeito à mudança de valores e costumes que fogem do usual, daquilo que se convencionou tradicionalmente como aceito e esperado. Outra possibilidade de sentido poderia ser ilustrada pelo exemplo Minha casa está de cabeça para baixo, em que de cabeça para baixo sugere desorganização, bagunça, coisas fora do lugar usual. No entanto, a personagem Mafalda interpretou o enunciado de cabeça para baixo literalmente. A interpretação literal do enunciado metafórico, no contexto do quadrinho, contribuiu para a criação do efeito humorístico inicial da tirinha. A metáfora convencional de cabeça para baixo, normalmente, não geraria humor, pois por ser convencional não apresenta o elemento surpresa – um recurso gerador do efeito humorístico. Porém, na tira analisada, mesmo uma expressão convencionalizada desencadeia o humor quando interpretada literalmente (ASIMAKOULAS, 2002). O efeito humorístico culmina, no último quadro da tirinha, com a utilização do vocábulo apego (Dios mío! Creio que a partir de hoje sentirei mais apego por este solo!) associado à inversão de posição da imagem. O termo apego é apresentado em negrito, provavelmente, a fim de chamar a atenção do leitor para um sentido específico ao GT – Cognição, relevância e interface semântico-pragmática 6 Anais do CELSUL 2008 contexto, pois seu significado, fora desse contexto, refere-se a afinco, afeição conforme o dicionário Aurélio. O contexto aliado à imagem propicia a criação de um novo sentido para apego. Tal sentido pode ser considerado metafórico, pois Mafalda refere-se a manter os pés ligados ao solo e não a nutrir inclinação afetuosa. Outra pista indicativa da alteração semântica do vocábulo apego concentra-se na imagem em que personagens aparecem de cabeça para baixo, ou seja, em sentido oposto ao do enunciado verbal. Desse modo, o efeito de humor culmina não só com a metaforização do vocábulo apego, mas também com a surpresa gerada pela inversão na posição da imagem. Tanto o recurso de inversão da imagem quanto a utilização da expressão metafórica de cabeça para baixo continuam sendo utilizados na tira subseqüente. Há a inserção de um novo personagem – Felipe - que questiona a posição de Mafalda sobre a sua teoria de que vivemos literalmente de cabeça para baixo. Figura 2. Tira 2 Ainda utilizando o globo terrestre como referência, a personagem Mafalda argumenta que os habitantes do hemisfério Norte vivem de cabeça para cima e os do Sul de cabeça para baixo. Mesmo assim, Felipe continua considerando o raciocínio dela absurdo. Ela, então, rebate que os países desenvolvidos são justamente os que vivem de cabeça para cima. Esta última dedução de Mafalda introduz três metáforas conceituais: PAÍSES SÃO PESSOAS, STATUS SUPERIOR É PARA CIMA, e STATUS INFERIOR É PARA BAIXO. Todas as metáforas emergem da expressão “os países desenvolvidos são justamente os que vivem de cabeça para cima”, em que uma parte integrante da anatomia humana (cabeça) é atribuída a países, que enquanto territórios delimitados geograficamente, são concebidos como uma pessoa. Além disso, a mesma expressão metafórica países desenvolvidos vivem de cabeça para cima remete às metáforas conceituais mencionadas por Lakoff e Johnson (2002): STATUS SUPERIOR É PARA CIMA; STATUS INFERIOR É PARA BAIXO. Os autores afirmam que estas metáforas possuem base física e social, a partir das quais o status relaciona-se ao poder social. No caso da tira, para Mafalda, o desenvolvimento é algo positivo e bom, portanto ela deduz que ele acontece nos países do hemisfério Norte, onde as pessoas vivem de cabeça para cima. Mesmo o terceiro argumento de Mafalda para convencer Felipe de que habitantes do hemisfério Sul vivem de cabeça para baixo não o convence. Como ele questiona a teoria, Mafalda apresenta uma nova explicação: Que, por viver de cabeça para baixo, nossas idéias caem! e, concomitantemente, indica com o dedo para o alto de GT – Cognição, relevância e interface semântico-pragmática 7 Anais do CELSUL 2008 sua cabeça, apontando para o sentido Sul (parte de baixo). Vale lembrar que as imagens encontram-se invertidas em relação ao enunciado verbal. A inserção de duas novas metáforas conceituais (IDÉIAS SÃO OBJETOS e MENTE É UM RECIPIENTE), além de sustentar o argumento de Mafalda, contribui para o desencadeamento do humor. Embora sejam metáforas convencionais, a expressão metafórica derivada delas (as idéias caem) é nova; portanto, surpreende o leitor e cria o efeito humorístico do quadrinho. Quanto ao desencadeamento do humor, pode-se afirmar que as histórias em quadrinhos possuem um trunfo particular para sua criação: a elipse entre as imagens. Esta característica permite a justaposição de cenas cuja aproximação provoca o humor, ou valoriza o efeito de surpresa (QUELLA-GUYOT, 1994). Voltando ao enredo dos quadrinhos, observa-se a inclusão de um novo personagem: Manolito. Felipe, que na seqüência anterior não havia se convencido da teoria de Mafalda (que os países do hemisfério Sul são subdesenvolvidos por viverem de cabeça para baixo), convida Manolito para juntos refutá-la. O argumento dos dois baseia-se no fato de que, se as idéias caíssem, o pai de Manolito, que vive no hemisfério Sul, não teria um armazém tão próspero. Mafalda justifica que é porque ele nasceu na Espanha, ou seja, no hemisfério Norte. Mais uma vez Felipe rebate, afirmando que Manolito nasceu no hemisfério Sul e nem por isso suas idéias caem. Mafalda, então, bate (toc toc) na cabeça de Manolito e comenta “Explica-se perfeitamente.”. Figura 3. Tira 3 Observa-se, nesta tira, que o efeito de humor tem seu ápice no último quadrinho. A base para sua criação é a incongruência entre o que a imagem revela e o que é expresso verbalmente pela personagem. De acordo com Quella-Guyot (1994, p.70-71), Muitas vezes fundada na comicidade da situação retratada, a HQ tem a vantagem de poder, ao mesmo tempo, mostrar a cena e fazer as personagens falar, pronta a fazer que o dito contrarie o mostrado. Para que o leitor entenda a incongruência entre o que é verbalizado e aquilo que a imagem mostra, é necessário que se considere toda a seqüência dos quadrinhos. Se considerada somente a mensagem verbal, parece que Mafalda aceita a refutação de sua teoria de que somos subdesenvolvidos por vivermos de cabeça para baixo. Porém, o leitor é conduzido a interpretar sua afirmativa “Explica-se perfeitamente” como uma discordância ao invés de aceitação, visto que a imagem associada ao contexto da tira insinua que o personagem Manolito não possui idéias desenvolvimentistas como seu pai. Nos quadrinhos analisados até agora, observou-se a utilização recorrente da metáfora conceitual STATUS SUPERIOR É PARA CIMA; STATUS INFERIOR É GT – Cognição, relevância e interface semântico-pragmática 8 Anais do CELSUL 2008 PARA BAIXO. Examina-se, a seguir, outra tira que, mesmo não pertencendo à seqüência desta história, apresenta metáforas conceituais de base orientacional, conforme pode ser observado a seguir. Figura 4. Tira 4 Já no primeiro quadrinho, Mafalda afirma estar com o ânimo no chão. A expressão é derivada da metáfora conceitual FELIZ É PARA CIMA, TRISTE É PARA BAIXO. Segundo a perspectiva cognitivista, tais orientações metafóricas não são arbitrárias e baseiam-se nas experiências físicas e culturais dos indivíduos (LAKOFF; JOHNSON, 2002). No decorrer da história, existe uma seqüência de três quadrinhos constituídos apenas de linguagem visual, porém primordiais para o desenvolvimento da tira. Esta, ao contrário das anteriormente analisadas, difere quanto à relação texto-imagem. Observase que a densidade textual é inferior ao volume de imagens, já que três do total de cinco quadrinhos apresentam apenas imagens. A seqüência de quadrinhos constituídos somente pelo conteúdo imagético pode conduzir o leitor à variadas interpretações, ou até mesmo parecer desconexo do primeiro. Isso porque, antes de se considerar o último quadrinho, as imagens de Mafalda observando a mãe varrendo o chão parecem não se relacionarem com a fala inicial “Estou com o ânimo no chão”, pelo fato de que a expressão inicial ânimo no chão é reconhecidamente metafórica. Todavia o texto do último quadrinho (Que triste destino para um ânimo!) tem um papel represivo em relação às imagens anteriores. Ao utilizar este recurso, o autor na verdade busca reduzir ou anular todos os riscos de ambigüidade (QUELLA-GUYOT, 1994). A partir desse momento, o leitor consegue estabelecer, por meio da relação textoimagem, que Mafalda se refere literalmente a estar com o ânimo no chão. Este recurso, por sua vez, ocasiona o efeito humorístico em razão da tensão semântica manifestada entre os planos literal e metafórico. 4. Considerações finais Neste artigo, investigou-se, sob o prisma cognitivista, a criação do efeito de humor a partir de enunciados metafóricos em quadrinhos da Mafalda. Por meio da análise, foi possível observar que, de modo geral, o efeito humorístico sustenta-se no aspecto da hibridização das linguagens verbal e imagética e tem o enunciado metafórico como fio condutor para sua criação. Ademais, pôde-se concluir que a imagem não apenas se constitui um elemento imprescindível para a compreensão das metáforas, mas, em alguns casos, é essencial para a identificação e constituição metafórica. Há as situações, ainda, em que o GT – Cognição, relevância e interface semântico-pragmática 9 Anais do CELSUL 2008 elemento imagético, associado ao enredo, propicia o reavivamento, ou conduz à interpretação literal de expressões metafóricas convencionais que, por sua vez, origina o humor. Para finalizar, cita-se a conclusão de (COUPERIE, 1970, p. 201), segundo o qual […] a afirmação do valor narrativo indiscutível da história em quadrinhos a serviço da qual técnicas complexas devem ser utilizadas para que ela possa ser o que em verdade é: uma arte completa e autêntica. Referências ALADRO, E. El humor como medio cognitivo. Cuadernos de Información y Comunicación. Madrid: UCM, 2002, v.7, p.317-325. Disponível em: <http://www.ucm.es>. Acesso em: 10 dezembro 2006. ALBERTI, V. O Riso e o Risível na História do Pensamento. Rio de Janeiro: Zahar, 1999. ASIMAKOULAS, D. Subtitling Humor and the Humor of Subtitling. In: HARVEY, K. (Org.). CTIS – Occasional Papers. Manchester: Centre for Translation and Intercultural Studies, 2002, v.2, p.71-84. BAGGIO, A. ¡Qué mala es la gente! Digestivo cultural, 2004. Disponível em: <http://www.digestivocultural.com/colunistas/imprimir.asp?codigo=1362> Acesso em: 03 agosto 2008. CHAVES, C. N. M. Metáfora e humor. In: BUSSONS, A. F.; MACEDO, A. 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