Cadernos do IPRI
A Repercussão do Tratado de Tordesilhas na Formação do Brasil
Palestra proferida por ocasião da II Jornada de cartografia Hispânica, Valladolid - Espanha
(07 a 09 de fevereiro de 1994)
“Aula Triste” - Palácio de Santa Cruz
Luiz Felipe de Seixas Corrêa
Caderno do IPRI
no 17
Fundação Alexandre de Gusmão/IPRI
Financiadora de Estudos e Projetos
Brasília, novembro/1994
A Repercussão do Tratado de Tordesilhas na Formação do Brasil
Palestra proferida por ocasião da II Jornada de cartografia Hispânica, Valladolid - Espanha,
(07 à 09 de fevereiro de 1994),
“Aula Triste” - Palácio de Santa Cruz
Luiz Felipe de Seixas Corrêa
Caderno do IPRI
no 17
Fundação Alexandre de Gusmão/IPRI
Financiadora de Estudos e Projetos
Brasília, novembro/1994
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Nota:
O presente trabalho representa a perspectiva do autor com relação ao tema
abordado e não corresponde necessariamente às posições do Ministério das Relações
Exteriores.
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SUMÁRIO
Introdução ............................................................................................................................
Tordesilhas e a Ideia do Brasil .............................................................................................
A União Ibérica ....................................................................................................................
O Extremo Sul: A Luta pelo Controle do Prata ...................................................................
A Extinção de Tordesilhas e suas Consequências para o Brasil ..........................................
Notas Bibliográficas .............................................................................................................
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A REPERCUSSÃO DO TRATADO DE TORDESILHAS
NA FORMAÇÃO DO BRASIL
Palestra pronunciada por ocasião da
II Jornada de Cartografia Hispânica
Valladolid - Espanha, (7, 8, 9 de fevereiro de
1994) “Aula Triste” - Palácio de Santa Cruz
Luiz Felipe de Seixas Corrêa
É com grande prazer que participo deste Seminário organizado pela Universidade
de Valladolid em comemoração ao V Centenário do Tratado de Tordesilhas. Ao se
solidificarem os vínculos políticos, sociais, econômicos e culturais entre os países iberoamericanos, a revalorização do Tratado de Tordesilhas constitui objetivo de particular
significação.
Originalmente concebida como um limite, ou seja, um fator de separação, a linha
imaginária de Tordesilhas foi superada na prática por impulsos de convergência e
aproximação. Estes mesmos impulsos hoje em dia adquirem crescente relevância como traços
distintivos da projeção internacional dos países que ora se organizam em “comunidade iberoamericana”.
Comemorar Tordesilhas, portanto, é comemorar a aproximação ibero-americana.
É buscar numa História que frequentemente nos separou os elementos que nos vinculam. E
deles extrair os valores e as experiências comuns que conferem a este nosso mundo iberoamericano importância e singularidade.
É sob esta perspectiva que me proponho a compartilhar com os Senhores algumas
ideias a respeito das repercussões do Tratado de Tordesilhas para a formação do Brasil.
O Tratado de Tordesilhas, cujo V Centenário celebra-se neste ano de 1994, é
responsável por uma característica sui-generis da História do Brasil. Descoberta em 1500, a
América lusitana já em 1494 possuía uma linha de demarcação de seus limites com a América
castelhana. Possivelmente, o Brasil terá sido o único país do mundo cujos limites foram
fixados antes que existisse.
Nasceu, pois, o Brasil com uma certidão previamente lavrada. Sem problemas de
legitimidade. Nasceu lusitano por direito de descobrimento e por papel passado, fruto da
antevisão histórica dos soberanos portugueses e castelhanos, D. João II e os Reis Católicos, e
do talento negociador dos Embaixadores que, reunidos em Tordesilhas, foram capazes de
impedir que a conquista e a exploração do Novo Mundo constituísse motivo de guerra entre as
duas grandes potências ibéricas que lideravam a expansão europeia.
Tordesilhas é paradigmático do sistema internacional do Século XV e estabeleceu
um modelo original de negociação diplomática. Fruto do equilíbrio de poder bipolar que se
caracterizou no Século XV com a expansão marítima e colonial de Castela e Portugal,
representou o instrumento reitor da competição entre ambas as potências, abrindo-lhes o
espaço de cooperação de que necessitavam para que, sob a aparência de um entendimento,
continuasse cada qual a perseguir os seus objetivos unilaterais.
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Em ocasiões subsequentes na História das relações internacionais este paradigma
veio a se reproduzir com diferentes matizes. Nos nossos dias, o período que se seguiu à II
Guerra Mundial obedeceu a uma lógica bipolar em certo sentido análoga à que deu origem a
Tordesilhas, ou seja, uma confrontação ordenada mediante a configuração de entendimentos
limitados e o estabelecimento de esferas de influência.
Modernamente, na verdade, é que se cunhou a expressão “esferas de influência”.
No Século XV, o que se dividia entre as Grandes Potências era mais do que influências;
dividia-se a soberania sobre o mundo que se pretendia incorporar ao sistema europeu.
Tordesilhas é nesse sentido o instrumento que consagra formalmente a vocação dominadora
do Ocidente sobre o mundo e, portanto, a expressão formal do eurocentrismo que viria a
dominar, por cinco séculos, o sistema internacional.
O país que hoje é o Brasil foi um dos resultados desse momento histórico.
Originalmente designado pelo sugestivo título de “Capitulação da Partição do Mar Oceano”, o
Tratado de Tordesilhas é o instrumento matricial da História do Brasil. Não seria, pois,
incorreto afirmar que a História do Brasil nasce em Castilla e Leon.
Hélio Vianna (1) julga que até 1750, ano em que se assinou o Tratado de Madri,
Tordesilhas é a peça mais importante da História Diplomática do Brasil. Seu estudo, portanto,
revela-se essencial para a compreensão das circunstâncias históricas que deram origem ao
Brasil e das características que assumiu a colonização do país nos Séculos XVI, XVII e XVIII.
Tordesilhas e a ideia do Brasil
Uma das questões interessantes e não totalmente dirimidas da História do Brasil
refere-se à intencionalidade ou casualidade do desconhecimento de Pedro Álvares Cabral. Os
historiadores brasileiros costumam examinar este curioso tema em suas vinculações com
Tordesilhas. Trata-se certamente de uma questão de substância. Determinar se Portugal já
tinha conhecimento da existência de terras na porção meridional da América, e se, como
acreditam muitos historiadores, navegantes lusos haviam chegado à América antes de
Cristóvão Colombo, é relevante para a reconstituição do quadro histórico da época dos
descobrimentos e para a compreensão das prioridades estratégicas lusitanas.
Para o Brasil, essa questão assume um interesse adicional que se situa, pode-se
assim dizer, no plano de psicologia coletiva. Subjacente a esse debate pode bem estar no
inconsciente dos autores brasileiros a preocupação de saber se fomos filhos desejados de
Portugal. Como um ser humano se preocupa em indagar se foi ou não desejado pelos pais, os
brasileiros se inquietam por saber se foram ou não fruto de mera casualidade. Tordesilhas
pode jogar alguma luz sobre este debate.
Capistrano de Abreu, (2) um dos maiores historiadores brasileiros do início do
Século, considera Tordesilhas como um arranjo meramente formal: “Ninguém sabia o que
dava ou recebia e se ganhava ou perderia no ajuste de contas”. Baseado na associação que faz
Pero Vaz de Caminha, o escrivão da frota de Cabral, entre o “achamento” do Brasil e um
“milagre da bandeira de Belém... uma obra não da humana mas da divina vontade”,
Capistrano qualifica o descobrimento como casual. Araújo Jorge (3) afirma que Tordesilhas é
um monumento modelar de ciência católica e trapalhona na Idade Média. Varnhagen (4) é
peremptório: “Da existência de uma grande terra, na extensão que lhe coubera em partilha em
Tordesilhas, só teve Portugal conhecimento seis anos depois do Tratado, em 1500”. Para estes
importantíssimos autores, o Brasil é efetivamente fruto do acaso.
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Já o igualmente importantíssimo Pandiá Calógeras (5) revela-se convencido de
que Portugal conhecia toda a América, mantendo, no entanto, política de segredo oficial
porque não possuía recursos materiais e humanos para contemplar outra empresa senão a da
abertura do caminho marítimo para as Índias.
Oliveira Lima, (6) por sua vez, assume posição intermediária que, como ele
próprio reconhece, é sempre a mais cômoda, frequentemente a mais justa e ocasionalmente a
mais estável: deduzia-se que existia alguma terra por onde hoje é o Brasil, mas não havia
certeza.
Sérgio Buarque de Hollanda, (7) no capítulo que escreveu sobre o descobrimento
para a sua monumental “História Geral da Civilização Brasileira”, não parece atribuir tanta
importância ao tema. Afirma que, no fundo, até que as riquezas reais ou imaginárias do
Oriente deixassem de entreter todas as imaginações, “Vera Cruz seria pouco mais do que uma
pousada no caminho da Índia”.
Um dia possivelmente virão à luz novos documentos diplomáticos ainda
encerrados em segredo que poderão dirimir esta dúvida tão cara às indagações metafísicas e à
sensibilidade dos brasileiros, divididos entre achar que resultaram de mero acidente na busca
do objetivo maior das Índias ou que, ao contrário, existem porque foram desejados e buscados
conscientemente.
Baseada ou não na existência de um “Brasil”, o certo é que a política de D. João II
revela clara consciência de objetivos e determinação de propósitos. Sua reação negativa aos
títulos de Castela sobre as terras achadas por Colombo é sintomática dos direitos de que se
acreditava imbuído. Seu gesto de armar uma esquadra para disputar pelas armas a posse das
terras atribuídas a Castela pelo feito colombiano é audacioso. Seguramente se baseava na
convicção de um direito esbulhado. Donde a indagação: não terá sido a percepção da justeza
das reivindicações lusitanas a razão pela qual os Reis Católicos logo se dispuseram a negociar
com Portugal e a flexibilizar, mediante barganha diplomática, os títulos com que as Bulas
Papais haviam passado a lhes favorecer a partir de 1492?
Araújo Jorge (8) diz, com muita felicidade, que a História Diplomática da
América é filha da dúvida de D. João II de Portugal quanto à propriedade do Novo Mundo
descoberto por Colombo. E de sua determinação de se opor à inclinação castelhana
manifestada por Alexandre VI na Bula Inter Coetera que, de ser aplicada, como assinala José
Carlos Macedo Soares, (9) teria encerrado o ciclo das navegações portuguesas.
Quanto aos brasileiros, ficaremos possivelmente sempre divididos em nossas
ambivalentes inquietações acerca da motivação original da titularidade de nossas terras.
Não é possível determinar com certeza as intenções dos descobridores, tanto como
é difícil dirimir controvérsias quanto, a saber, se foram efetivamente portugueses os primeiros
pés europeus que pisaram as terras hoje brasileiras. Existem teorias que dão essa primazia a
franceses de Dieppe, outras que falam nas viagens do alemão Martin Behaim. Mais sólidas,
porém, como reconhece Sérgio Buarque de Hollanda, (10) são as hipóteses que sustentam as
pretensões castelhanas ao descobrimento do Brasil antes de Cabral. Vicente Yáñez Pinzón
poderá ter estado em janeiro ou fevereiro de 1500 pelo Cabo de Santo Agostinho e pelo
Amazonas (o seu “mar dulce”) a caminho das Antilhas. Diego de Lepe, que comandou uma
expedição partida de Palos em dezembro de 1499, também pode ter tocado terra hoje
brasileira à frente da frota cabralina. Antes mesmo destes dois navegantes, Alonso de Hojeda
e/ou Américo Vespúcio, ambos participando da mesma expedição, podem ter estado no Brasil.
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Vespúcio refere-se à terra descoberta por Cabral com a mesma que ele antes havia descoberto
para o Rei de Castela, “salvo Che é più a levante”.
Se essas controvérsias permanecem ainda envoltas nas brumas das incertezas
históricas, um fato é indiscutível: o Brasil nasceu português porque português era o seu título
de propriedade obtido nas negociações de Tordesilhas. Franceses e castelhanos que por terras
brasileiras houvessem passado antes dos portugueses poderiam ter veleidades de primazia,
mas não teriam jamais os títulos de propriedade. Porque em Tordesilhas já se havia decidido
que eram portuguesas as terras que até então houvessem sido achadas ou descobertas ou que
dali em diante fossem achadas e descobertas a leste da linha imaginária traçada pelos
negociadores. Esta origem cartorial do Brasil é inequívoca.
A Demarcação do Tratado de Tordesilhas
Pelo Tratado de Tordesilhas, como se sabe, o mundo foi dividido em hemisférios
por um meridiano traçado a 370 léguas das ilhas de Cabo Verde, atribuindo-se a Castela tudo
o que ficasse ao Ocidente e a Portugal o que se contivesse no Oriente. Cedeu Castela em
relação ao que antes lhe fora reconhecido pelas Bulas Alexandrinas. Ganhou Portugal ao fazer
valer os seus títulos originalmente reconhecidos por Roma. Fez-se a paz entre as duas grandes
Potências. Ordenou-se a empresa das navegações. E, o que é extraordinário, tudo foi
alcançado com base em uma linha imaginária, que jamais foi demarcada...
O tratado fixava o prazo de dez meses, contados a partir do dia da data do Pacto,
para que o meridiano fosse demarcado. Nomearam-se de parte a parte os representantes.
Passou-se o prazo, porém, sem que se iniciassem os trabalhos. Acordada uma prorrogação de
novos dez meses, a mesma transcorreu sem que a demarcação pudesse ser contemplada.
Portugal e Castela deixavam tacitamente de lado a demarcação de Tordesilhas para se
concentrarem na empreitada que lhes absorvia: a conquista do Oriente. O importante de
Tordesilhas, como ficou demonstrado, não era aplicar na prática a letra do Tratado, mas sim
zelar para que o seu espírito continuasse a ser observado, de modo que se mantivesse a paz
entre as Potências da Península Ibérica, àquela altura senhoras de um mundo que se projetava
e se ampliava exponencialmente. Foi com esse espírito que se resolveu a questão das Molucas
na Capitulação de Saragoça em 1529.
A demarcação na prática do meridiano de Tordesilhas era impossível de realizar.
Como observa, com toda pertinência, Macedo Soares (11), ademais da imperfeição dos mapas
e instrumentos astronômicos da época, conspiravam contra a demarcação o fato de o Tratado
(a) não haver fixado a ilha de onde se deveria iniciar a contagem das 370 léguas, (b) não haver
determinado o paralelo entre o qual seria feita a contagem, e (c) não haver definido as
dimensões da légua adotada, dado que eram diferentes as medidas náuticas portuguesas e
castelhanas.
Em retrospecto, e com o benefício dos padrões de análise da moderna ciência
política, é de perguntar-se se era intenção dos negociadores do Tratado que o mesmo fosse
efetivamente demarcado ou se já então se aplicava a técnica da ambiguidade construtiva,
“constructive ambiguity”, como se descreve em inglês certo estilo diplomático muito usado
modernamente para resolver situações conflitivas mediante acordo cuja implementação se
processa antes no plano conceitual do que no terreno da realidade palpável.
No que diz respeito ao Brasil, verificam-se tentativas ou hipóteses de demarcação
de Tordesilhas até 1545. Hélio Vianna (12) registra as linhas decorrentes das interpretações
do catalão Jaime Ferrer (1495), do mapa português de Cantino (1502), de Enciso (1518), dos
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peritos de Badajoz (1524), de Diogo Ribeiro (1529) e de Oviedo (1545). Entre a mais
favorável e a mais desfavorável ao Brasil, mediariam milhares de quilômetros quadrados no
interior do continente sul-americano. Na verdade, reconhece Araújo Jorge (13), “o portentoso
meridiano continuou a ser riscado às cegas, à fantasia dos cartógrafos”.
Não deixou de existir, porém, respeito formal pelo Tratado. A divisão do Brasil
em Capitanias Hereditárias no ano de 1534 observa Tordesilhas, na medida em que deixa
indeterminados os limites do Norte e o Oeste. A linha imaginária ninguém sabia exatamente
por onde passava, mas não seria obstáculo à ocupação e à exploração do Brasil pelo sistema
das capitanias.
Tampouco o seria mais adiante, em 1548, quando, estimulado pelas notícias das
fantásticas descobertas das minas de ouro de Potosi três anos antes, Portugal resolve
centralizar e organizar melhor a exploração do Brasil mediante a implantação do primeiro
Governo-Geral na Bahia de Todos os Santos sob o mando de Tomé de Souza. Continuavam
os colonizadores portugueses concentrados na faixa litorânea do Brasil e regidos, como
observa Sérgio Buarque de Hollanda, (14) pela conveniência mercantil e por sua experiência
africana e asiática. Também pela preocupação em se proteger da cobiça francesa (não fora
Francisco I quem manifestara desejo de ver a cláusula do testamento de Adão em que se
teriam deixado todas as terras para Castela e Portugal?) os portugueses preferiram longamente
arranhar as costas do Brasil como caranguejos, na célebre expressão de Frei Vicente do
Salvador, a embrenhar-se pelo sertão desconhecido e hostil. Primeiro brasileiro autor de uma
História do Brasil em 1627, Frei Vicente do Salvador se recusa a tratar da extensão territorial
do Brasil para o interior porque, segundo afirma, até então ninguém por ali andava e isto conclui - era devido à negligência dos portugueses.
É de Capistrano de Abreu (15) a sugestiva afirmação de que durante muitos anos
no Século XVI, apesar do disposto em Tordesilhas, ficou indeciso se o Brasil pertenceria a
portugueses ou a franceses. Já na primeira metade do Século XVI, observam-se traficantes
franceses em vários pontos da costa brasileira, do Amazonas ao extremo sul. Em 1555,
desembarcaria no Rio de Janeiro, com o apoio da Coroa Francesa, Nicolas Durand de
Villegaignon, cuja missão era a de criar a “França Antártica”.
Desalojados em 1565 por Mem de Sá, os franceses, porém, não desistiram de suas
ambições sobre o Brasil, registrando-se seguidos incidentes. Por sua vez, a União Ibérica em
1580 trouxe para as costas brasileiras também os holandeses, figadais inimigos de Castela.
Não faltaram também os corsários ingleses, que frequentaram com assiduidade as costas
brasileiras em busca de pontos de apoio e de presas. Era, por conseguinte, natural que
Portugal concentrasse as suas energias e os seus recursos na fortificação e na ocupação do
litoral brasileiro. A exata demarcação de Tordesilhas pelo interior do país podia esperar.
Tanto mais porque, tendo achado ouro no Peru, os castelhanos não pareciam apressados em
desbravar o interior do Continente.
Registre-se, porém, que foi em virtude da necessidade de afastar as ambições
francesas que, em 1530, D. João III mandou aprestar uma armada sob o comando de Martim
Affonso de Sousa que percorreu o litoral brasileiro em missão de patrulha, havendo chegado
até o que hoje é a cidade de Maldonado, no Uruguai, e lá deixado um marco lusitano.
Antevendo o valor estratégico daquelas paragens, Martim Affonso fundou São Vicente no
litoral de São Paulo em 1532, dando origem ao que viria a ser o núcleo de onde partiriam anos
depois os impulsos mais vigorosos da expansão territorial do Brasil. Varnhagen (16) afirma
que Martim Affonso de Sousa tinha perfeita consciência de que colocava marcos portugueses
em terras que, por Tordesilhas, eram castelhanas. Daí terão partido decisões tomadas por
9
Castela de intensificar a sua presença no Prata e mais concretamente a primeira fundação do
porto de Buenos Aires em 1536. Hélio Vianna (17), com razão, observa que estas foram as
“bases de uma competição internacional que duraria pouco mais de três séculos, até a queda
do Ditador argentino Rosas, em 1852”.
A União Ibérica
Se as circunstâncias originais da colonização lusa do Brasil haviam tornado
secundária a demarcação do meridiano de Tordesilhas, em 1580, com a União Ibérica, a
questão tornou-se para todos os efeitos irrelevantes. E foi graças aos sessenta anos que durou
o “Período dos Felipes” ou “Período Filipino”, que o Brasil adquiriu as linhas gerais da
conformação que hoje ostenta e que o torna um dos maiores países do mundo em extensão
territorial. Foi, sem dúvida, um momento histórico fugaz, mas repleto de consequências
duradouras para o Brasil.
A consolidação e expansão territorial do Brasil no período filipino tornou-se
possível devido à circunstância de que, pelos arranjos negociados entre as Cortes, continuou a
ser portuguesa a administração da Colônia. Varnhagen (18) comenta que o Brasil mostrou-se
inteiramente alheio à questão dinástica: “indiferente lhe parecia que o Monarca fosse desta ou
daquela rama, e que morasse em Lisboa ou Madri, em Sintra e Almeirim, ou em Aranjuez e
no Escorial”. Independente ou autônoma na esfera jurídica, a administração portuguesa do
Brasil prevaleceu-se da União para penetrar por terras que Tordesilhas, embora sempre não
demarcado, atribuía a Castela.
O Tratado de Tordesilhas na realidade, havendo perdido o seu objeto pela União
das Coroas, deixou de ser invocado. Assim, observa Hélio Vianna (19), “enquanto muitos
espanhóis com facilidade se estabeleciam em povoações brasileiras, o que antes lhes era
defeso, por seu lado muitos luso-brasileiros, em entradas e bandeiras, também penetravam em
regiões anteriormente atribuídas à Espanha, com isso obtendo títulos de propriedade e posse
que seriam respeitados pela diplomacia posterior”.
Durante a União Ibérica:
- ampliou-se a ocupação portuguesa do litoral brasileiro para uma faixa que
passou a estender-se da baía de Paranaguá (no atual Estado do Paraná) até o rio Oiapoque (no
atual Amapá);
- conquistou-se o Nordeste e o Norte do país, havendo-se expulsado os franceses
que ocupavam o Maranhão, onde haviam fundado a cidade de São Luís;
- debravaram-se os atuais estados do Pará e do Amazonas. Arthur C. F. Reis (20)
observa que, em sua famosa expedição de 1637/1640, Pedro Teixeira alcançou o rio Napo,
onde, em terras pertencentes ao atual Equador, tomou posse da região para Portugal;
- povoou-se o litoral sulino de Paranaguá a Laguna, assegurando-se a
incorporação definitiva da costa de Santa Catarina, sobre a qual haviam anteriormente
manifestado pretensões os espanhóis; e
- consolidou-se a ocupação do interior sulino e dos limites internos do CentroOeste brasileiro, mediante a destruição pelos bandeirantes partidos de São Paulo das
povoações e reduções jesuíticas espanholas de Guairá, entre os rios Paranapanema e Iguaçu;
de Tape, no atual Rio Grande do Sul; e de Itatim, no atual Mato Grosso.
10
Divergem os historiadores quanto à motivação do surto de expansão territorial
brasileira durante o período filipino e a suspensão para todos os efeitos de Tordesilhas. Uns
acreditam que isto ocorreu em função da observância da política colonial espanhola,
tradicionalmente voltada para a ocupação de faixas interioranas, ao contrário da orientação
litorânea portuguesa. Outros pensam que o que se produziu foi a simples ausência de uma
política colonial propriamente dita para o Brasil, o que deu margem a um movimento natural
de expansão.
Independente de qual foi a motivação, o fato é que, ao terminar a União Ibérica, se
bem ainda se encontrassem no Nordeste do Brasil os holandeses inimigos de Castela (de onde
só seriam expulsos em 1654), os limites da ocupação lusitana da América haviam-se
expandido consideravelmente. Foi, aliás, no Nordeste do Brasil que as marcas do Período
Filipino se fizeram mais presentes. A origem de João Pessoa, nome atual da capital do Estado
da Paraíba, é espanhola. Foi fundada em 1584 por espanhóis, com o nome de Filipeia de
Nossa Senhora das Neves. Um dos romances mais importantes da recente literatura brasileira.
“A Pedra do Reino”, do paraibano Ariano Suassuna, recupera certa mitologia luso-castelhana
que se entrelaçou no interior do Nordeste brasileiro no período em que a linha imaginária de
Tordesilhas deixou de separar as terras americanas. A certa altura o herói compara
fisicamente o Nordeste à Península Ibérica: “Portugal é uma espécie de Zona da Mata e faixa
litorânea, semelhante à dos Engenhos pernambucanos, enquanto que a Espanha, com sua
Castela seca, parda, áspera e empoeirada, é muito mais parecida com este Sertão...”.
O Extremo Sul: A Luta pelo Controle do Prata
Finda a União Ibérica e restabelecida teoricamente a divisão imposta por
Tordesilhas, recrudesceram as ambições portuguesas em direção ao rio da Prata, cuja margem
esquerda era considerada como o limite natural entre as duas frentes colonizadoras da
América do Sul. Alguns historiadores dão conta do fato de que, durante a União, os
portugueses haviam-se tornado os mais ativos intermediários entre os mercadores do Peru e os
agentes comerciais estrangeiros. Não teria sido por outra razão que, logo em 1643, tal como
relata Buarque de Hollanda (21), Salvador Correia de Sá propõe a Lisboa a tomada do porto
de Buenos Aires como a maneira mais eficaz de abrir caminho para os tesouros de Potosi e
assegurar grande “proveito em carnes e em couramas para o sustento do Brasil”. Em 1648, o
Padre Antonio Vieira somava-se às vozes que propugnavam pela tomada do rio da Prata,
“como se pode fazer com grande facilidade e interesse nosso, dano e divisão de Castela”.
Porém, não obstante às pressões partidas do Brasil, Buenos Aires parecia a Lisboa um
objetivo irrealista.
A visão estratégica lusitana não desprezou, contudo, a importância do controle da
margem oriental do Prata. Em 1680, o Governador do Rio de Janeiro, D. Manuel Lobo
desembarcaria na costa hoje uruguaia para fundar, em bases militares e por instrução de
Lisboa, uma nova colônia, a Colônia do Sacramento. Na sugestiva descrição de Teixeira
Soares (22), Sacramento foi uma atalaia, “levantada pelo gênio lusitano em ponto estratégico
da mais alta relevância para ser a Gibraltar do rio da Prata”.
A reação castelhana não se fez por esperar. Invocando os limites traçados em
Tordesilhas, armaram os castelhanos um numeroso exército que logo desalojou os
portugueses de Sacramento. Estes, porém, voltariam em seguida. Abria-se um ciclo de
conflitos pela posse da margem oriental do Prata que, entre Espanha e Portugal, perduraria até
o Tratado de Santo Ildefonso de 1777 e entre o Brasil e seus vizinhos, iria até 1828, com a
proclamação, por inspiração britânica, da independência do Uruguai, o Estado - Tampão, ou o
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“algodão entre os cristais”, de acordo com a conhecida expressão da diplomacia britânica da
época. Foram 148 anos - um século e meio - de alternância de soberanias, de guerras e de
negociações diplomáticas. Um capítulo interessantíssimo da História da América, que está a
merecer estudo mais aprofundado sob uma perspectiva regional.
No que se refere a Tordesilhas, os acontecimentos no Prata em torno da posse de
Sacramento viriam a proporcionar a estrutura de causa dos sucessivos instrumentos
diplomáticos negociados entre Portugal e Espanha que culminaram com a definitiva abrogação do Tratado de 1494, cujo V Centenário ora celebramos. Alexandre de Gusmão, o
grande inspirador por parte de Portugal do Tratado de Madri de 1750, justificava a entrega de
Sacramento, que denominava de “remoto presídio e valhacouto de contrabandistas” (23), a
Castela alegando as dificuldades que Portugal tivera até então para sustentar a sua guarnição,
as constantes lutas a que dera lugar, a sua vizinhança com Buenos Aires, o perigo de sua
situação em plenos domínios castelhanos e separados do Brasil pelos descampados da Banda
Oriental. As vantagens de Portugal são maiores em outras terras, dizia o grande estadista,
cultuado no Brasil como o “avô dos diplomatas brasileiros”. Era de fato insustentável a posse
portuguesa da Colônia. Com a fundação de Montevidéu em 1725, os espanhóis inviabilizaram
as comunicações terrestres de Sacramento com o Brasil e, expandindo-se pela Banda Oriental,
isolaram Sacramento. Hélio Vianna (24) observa que, com a expansão do povoamento
espanhol pela margem esquerda do Prata, nasceu o direito “que depois lhe reconheceram, a
eles e a seus sucessores hispano-americanos, os portugueses e seus sucessores brasileiros:
embora fosse lusitana a precedência no descobrimento de 1513/1514, como na fundação em
1680, espanhol foi o povoamento de toda a região e não de simples fortaleza e entreposto
como Colônia. Esta é em suma a razão da existência de um Uruguai independente e não de
uma Província Cisplatina aportuguesada ou brasileira”.
Os historiadores brasileiros concordam quanto a que Sacramento teve ao fim um
efeito positivo para a expansão geográfica do Brasil no Sul. Ainda que se desconte a
circunstância de ter servido como base para cessões territoriais, foi de qualquer maneira um
estímulo para a conservação, o alargamento e o povoamento de uma área que, parcialmente
penetrada em épocas anteriores por iniciativa de audaciosos aventureiros, marcaria ao fim as
lindes austrais do Brasil.
A grande figura do período é Alexandre de Gusmão, o inspirador do Tratado de
Madri em 1750, o gênio negociador que soube configurar nas mesas diplomáticas as
barganhas necessárias para a consolidação territorial da América portuguesa com base no
princípio do uti possidetis, que outra coisa não era senão a expressão jurídica da conhecida
frase de D. João II aos soberanos espanhóis nos alvores da negociação de Tordesilhas: “que
cada um tenha o que lhe pertence”.
A Extinção de Tordesilhas e suas Consequências para o Brasil
Encerrada definitivamente a vigência de Tordesilhas em 1777 com o Tratado de
Santo Ildefonso, o Brasil no final do Século XVIII tinha uma base física profundamente
diversa daquela que, mesmo numa interpretação liberal do Tratado de Tordesilhas, fora
assentada em 1494. A observação é de Arthur C. F. Reis (25): “A expansão ao longo do litoral
levara ao Oiapoque no Norte e ao Prata no Sul. Toda uma geografia nova, política, social e
econômica se estava escrevendo na América portuguesa, fosse por ação livre ou decisão
pessoal de sertanistas, fosse por obra e graça da política oficial metropolitana”.
12
A visão estratégica da negociação dos Tratados de Madri e de Santo Ildefonso
seria comprovada em benefício da consolidação do espaço territorial e econômico brasileiro.
Em retrospecto, percebe-se a importância dos longos anos de perseverança portuguesa na
ocupação da margem esquerda do Prata, materializada na isolada fortificação da Colônia do
Sacramento como a peça da barganha que permitiu a incorporação à massa territorial
brasileira do que hoje são os Estados do Mato Grosso e Mato Grosso do Sul, as férteis
planícies do Rio Grande do Sul e a linha fluvial que vai do Guaporé ao Madeira.
Uma linha imaginária que conduzisse através dos tempos históricos, de 1494, em
Tordesilhas, a 1777, em Santo Ildefonso, revelaria a coerência e o sentido de futuro da
diplomacia portuguesa, respaldada no terreno por uma política de ocupação e exploração do
Brasil, a um tempo realista, porque foi capaz de ajustar-se às limitações efetivas da nação
colonizadora, e visionária, porque não deixou jamais de buscar a expansão e a unidade da
grande massa territorial que se vislumbrava na América do Sul.
O Brasil é, portanto, um prodígio histórico, fruto da antevisão de D. João II em
Tordesilhas e da perseverança colonizadora e negociadora dos lusitanos ao longo dos
duzentos e oitenta e três anos de conflitos e negociações entre as duas Potências Ibéricas, que
conduziriam a Santo Ildefonso e à consagração efetiva do domínio luso-brasileiro sobre
praticamente a metade do continente sul-americano.
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NOTAS BIBLIOGRÁFICAS
1) Hélio Vianna
História das Fronteiras do Brasil
Biblioteca Militar
Rio de Janeiro, 1949
2) Capistrano de Abreu
O Descobrimento do Brasil
Sociedade Capistrano de Abreu
Rio de Janeiro, 1948
3) A. G. Araújo Jorge
Ensaios de História e Crítica
Ministério das Relações Exteriores
Instituto Rio Branco
Rio de Janeiro, 1948
4) Francisco Adolfo de Varnhagen, Visconde de Porto Seguro
História Geral do Brasil (3a edição)
São Paulo, 1928
5) J. Pandiá Calógeras
Formação Histórica do Brasil (5a edição)
Cia. Editora Nacional
São Paulo, 1957
6) Oliveira Lima
“Formation Historique de la Nationalité Brésilienne”
Garnier Frères,
Paris, 1911
7) Sérgio Buarque de Hollanda
O Desconhecimento do Brasil
in História Geral da Civilização Brasileira
(7a edição)
Difel
São Paulo, 1985
8) A. G. de Araújo Jorge, op. cit.
9) José Carlos de Macedo Soares
Fronteiras do Brasil no Regime Colonial
José Olympio Editora
Rio de Janeiro, 1939
10) Sérgio Buarque de Hollanda, op. cit.
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11) José Carlos de Macedo Soares, op. cit.
12) Hélio Vianna
História Diplomática do Brasil
Edições Melhoramentos
São Paulo, 1959
13) A. G. de Araújo Jorge, op. cit.
14) Sérgio Buarque de Hollanda, op. cit.
15) J. Capistrano de Abreu
Capítulos de História Colonial
Soc. Capistrano de Abreu, 1928
16) Francisco Adolfo de Varnhagen, op. cit.
17) Hélio Vianna, op. cit.
18) Francisco Adolfo de Varnhagen, op. cit.
19) Hélio Vianna, op. cit.
20) Arthur C. F. Reis
A Ocupação Portuguesa do vale Amazônico
in História Geral da Civilização Brasileira, cit.
21) Sérgio Buarque de Hollanda
A Colônia do Sacramento e a Expansão no Extremo Sul
in História Geral da Civilização Brasileira, cit.
22) Álvaro Teixeira Soares
Diplomacia do Império no Rio da Prata (até 1865)
Ed. Bruno Ltda.
Rio de Janeiro, 1955
23) Sérgio Buarque de Hollanda, op. cit.
24) Hélio Vianna, op. cit.
25) Arthur C. F. Reis
Os Tratados de Limites
in História da Civilização Brasileira, cit.
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