Cadernos do IPRI
O Brasil e o atual ordenamento
político e econômico mundial.
Conferência do Secretário-Geral
Embaixador Luiz Felipe Lampreia,
na Escola Superior de Guerra
As grandes transformações
no cenário internacional:
uma visão de Londres.
Palestra proferida pelo
Senhor Embaixador
Paulo Tarso Flecha de Lima
no Instituto Rio Branco
Crônica de uma negociação:
O capítulo financeiro da Agenda 21
durante a Conferência de
Meio Ambiente e Desenvolvimento.
Rubens Ricupero
Coordenador do Grupo de Contato sobre
Finanças na UNCED
Cadernos do IPRI No 7
Fundação Alexandre de Gusmão / IPRI
Financiadora de Estudos e Projetos
Brasília - Junho/1993
Sumário
O Brasil e o atual ordenamento político e econômico mundial
Conferência do Secretário-Geral, Embaixador Luiz Felipe Lampreia, na
Escola Superior de Guerra (Rio de Janeiro, 18 de maio de 1993)
Preâmbulo
Introdução: a importância do contexto internacional
O Brasil do início dos anos 90
O cenário internacional
A política externa brasileira como instrumento de interação com o
mundo e resposta às novas realidades
Conclusões
As grandes transformações no cenário internacional: uma visão de Londres.
Palestra proferida pelo Senhor Embaixador Paulo Tarso Flecha de Lima no
Instituto Rio Branco (Brasília, 9 de março de 1993.)
Crônica de uma negociação: o capítulo financeiro da Agenda 21 durante a
Conferência de Meio Ambiente e Desenvolvimento
Rubens Ricupero - Coordenador do Grupo de Contato sobre Finanças na
UNCED (Rio de Janeiro, 3 a 14 de junho de 1992)
Antecedentes
Primeiros passos
Negociação decisiva
GEF
Questões pendentes
O problema da ida
A questão dos 0,7%
As posições em confronto
Balanço final
Processo negociador
Recursos comprometidos
Sistema financeiro
“Linkage” finanças - meio ambiente
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O Brasil e o atual ordenamento
político e econômico mundial
Conferência do Secretário Geral
Embaixador Luiz Felipe Lampreia,
na Escola Superior de Guerra
Rio de Janeiro, 18 de maio de 1993.
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Senhor Comandante da Escola Superior de Guerra,
Senhores Estagiários,
Preâmbulo
Antes de dar início à exposição sobre as grandes linhas da nossa política externa
atual, gostaria de agradecer a oportunidade que a Escola Superior de Guerra mais uma vez
oferece à Chefia do Itamaraty de compartilhar com os seus estagiários algumas das
preocupações que formam a base do trabalho diário da Chancelaria brasileira.
Do diálogo já tradicional que aqui mantemos, decorre uma troca de impressões
fundamental para a correta avaliação dos fatores que influenciam a formulação da nossa
diplomacia.
É tradição do Itamaraty preparar, para apresentação nesta Escola, textos
abrangentes, que constituem repositórios importantes para a formulação e a divulgação das
linhas-mestras da política externa brasileira. Há anos esses textos são referência obrigatória de
quantos desejam conhecer a nossa política externa.
O esforço de sistematização exigido por esses textos constitui sem dúvida uma
oportunidade singular para a reflexão diplomática. Sua renovação a cada ano é fonte de
permanente atualização da própria visão que o Itamaraty tem de sua tarefa.
A compreensão abrangente da política externa brasileira depende de uma correta
avaliação dos dois polos que entram na relação que a diplomacia faz entre os planos interno e
externo de uma nação. Não é possível conceber uma política externa sem que tenhamos uma
ideia mais ou menos precisa do que somos e de como é o contexto internacional no qual
aquela política vai projetar os interesses nacionais.
É por essa razão que me proponho a discorrer aqui sobre esses dois polos da
relação antes de passar à análise da política externa propriamente dita. Percorrendo esse
caminho analítico, a imagem da diplomacia, suas áreas prioritárias, seus dilemas e opções,
suas fontes de pressão e suas tendências já se irão perfilando, tornando-se mais fácil não
apenas descrever a política externa, mas compreendê-la em toda a sua complexidade.
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Introdução: a importância do contexto internacional
A inserção internacional de um país é elemento determinante do seu projeto
nacional e fator decisivo na busca da sua consolidação como Estado soberano e como
sociedade estável, equânime e desenvolvida. No plano das relações internacionais de um país,
não estão em jogo apenas o seu poder nacional, a sua imagem externa ou o seu prestígio, mas
elementos centrais da sua estabilidade política, do seu desenvolvimento econômico e da sua
coesão social.
A dimensão internacional é o contraponto necessário e indissociável da soberania
e do desenvolvimento. Nascemos para a vida independente com uma preocupação básica
inicial: que essa independência fosse reconhecida por aqueles que considerávamos nossos
parceiros mais importantes. Para o Brasil, a importância desse passo inicial é exemplarmente
ilustrada pelo reconhecimento da independência pela Inglaterra e Portugal, que nos custou
grande esforço diplomático e não pequeno número de concessões cuidadosamente negociadas.
Também a própria configuração do território nacional e o pleno e incontestável
exercício da soberania do Estado sobre ele dependem do correto relacionamento com aqueles
que são a primeira instância da nossa inserção internacional: nossos vizinhos territoriais.
Mas é também do contexto internacional que provém grande parte dos recursos
financeiros, tecnológicos e científicos com que precisamos contar para o nosso
desenvolvimento. E dali que provém parte dos bens de equipamento de que necessita nosso
parque industrial e muitos insumos básicos indispensáveis. É no plano externo que se
encontram mercados que possibilitam dar maior escala de produção à nossa economia e
dispor de recursos para adquirir no exterior os bens e serviços de que necessitamos. É no
plano externo que o país tem a possibilidade de exercer influência política na defesa dos
interesses nacionais e consolida a sua identidade e o seu projeto como nação.
Se essas constatações eram verdadeiras já ao tempo do nosso nascimento para a
vida independente e soberana, certamente o são muito mais no mundo de hoje, marcado pela
crescente globalização da economia, por uma intensidade jamais vista nas trocas comerciais e
nos fluxos de tecnologia, capitais e serviços e por uma crescente dependência das
economias – desenvolvidas ou em desenvolvimento – em relação ao exterior.
Em um mundo onde a tecnologia e o conhecimento científico já superam
amplamente em importância os fatores tradicionais de produção – insumos básicos, capital e
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trabalho – e em que vantagens comparativas tradicionais dos países são alteradas pela
capacitação tecnológica de seus competidores, a marginalização não constitui mais uma
aposta viável para o desenvolvimento, mas cada vez mais um risco de atraso e isolamento,
com consequências sociais e políticas imprevisíveis.
O grande desafio da diplomacia dos nossos dias é precisamente saber conciliar,
em atenção aos interesses do país, a soberania e a interdependência. Essa é, para mim, o ponto
central do trabalho de todos aqueles que, de uma forma ou de outra, lidam com a inserção
internacional do nosso país – diplomatas, militares, empresários, políticos.
Países tão diferentes como a China e o México, o Chile e Cingapura, a Espanha e
a Indonésia, para não falar de entidades como Taiwan e Hong Kong, são exemplos perfeitos
de como economias muito diferenciadas e sistemas políticos às vezes opostos compreenderam
as alterações profundas ocorridas no sistema econômico internacional e alteraram seus perfis
para fazer face a novas exigências.
A China Popular, outrora exemplo de modelo de desenvolvimento fechado e
autárquico, fez e vem aprofundando uma extensa reforma econômica, que reduziu a cerca de
10% o controle do Estado sobre a economia, limitando-o àquelas áreas em que a ação estatal
foi considerada indispensável (os setores energético, de transportes, de telecomunicações e de
produção de insumos básicos). A abertura econômica chinesa, com ampla participação do
capital estrangeiro sob a forma de investimentos diretos e joint ventures, tem sido
responsável por um crescimento médio anual do PIB de 9% ao longo dos últimos 14 anos.
Em 1992, com a aceleração da política de abertura da economia e as reformas, o
Produto Interno Bruto chinês cresceu 12,8%, enquanto a taxa esperada daqui até o final do
século é de 8 a 9% de crescimento ao ano. São números expressivos que traduzem uma nova
realidade mundial e um novo enfoque de parte de um país em desenvolvimento de primeira
importância.
O papel da diplomacia brasileira no mundo contemporâneo é precisamente esse:
ajudar o país a compreender a latitude das mudanças que se vêm processando no mundo nos
campos político e econômico. Levando em conta as igualmente profundas alterações que
mudaram o perfil econômico, político e social do Brasil nas últimas décadas e especialmente
nos últimos anos, cabe-nos promover e defender os interesses nacionais brasileiros a partir de
um constante aperfeiçoamento da inserção do país no mundo. Trata-se de buscar maximizar
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as vantagens e possibilidades externas, afastar os riscos e equacionar, com a melhor relação
custo-benefício, os inevitáveis diferendos que surgem em torno do aproveitamento das
oportunidades e da forma de tirar proveito dos jogos de pressão próprios da comunidade
internacional.
Uma diplomacia a serviço do nosso desenvolvimento sustentável: eis aqui o
conceito-chave que identifica a nossa política externa.
O Brasil do início dos anos 90
Disse ao princípio que a diplomacia estabelece uma relação – de defesa de
interesses e busca de benefícios e oportunidades – entre o país e o mundo. Examinemos, pois,
o primeiro polo dessa relação – o Brasil e a percepção que dele tem a diplomacia brasileira ao
executar as suas tarefas.
O Brasil cujos interesses nacionais a diplomacia projeta e defende no contexto
internacional é um país substancialmente diferente daquele que cresceu a ritmos quase sem
precedentes durante o processo de substituição de importações em suas diferentes etapas. Em
termos de produto, de capacidade industrial e tecnológica, de comércio internacional, de
vínculos com a economia internacional, pouco temos hoje em comum com o país basicamente
agroexportador de trinta, cinquenta ou cem anos atrás. Somos uma economia industrial
diversificada e poderosa em um país de dimensões e recursos continentais. Esse e um dado
essencial, que as dificuldades conjunturais e mesmo os desajustes estruturais não devem
obscurecer sob pena de perdermos nossa principal referência como Nação.
Temos algumas características físicas – nossa geografia continental, o tamanho de
nossa população, a variedade do nosso território, o fato de que não temos contiguidade física
ou proximidade com nenhum dos grandes polos de poder econômico ou político mundial (os
EUA, a CEE, o Japão) – que nos fazem membros de um reduzido grupo de países
continentais – como a Rússia, a China, a Índia – que às vezes têm nessas suas características
não apenas elementos decisivos de poder nacional, mas também fatores de constrangimento e
dificuldades adicionais.
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Tivemos, além disso, o mais elevado índice de crescimento econômico nos
últimos 120 anos, superando inclusive o Japão – um dado que aponta uma vocação de
desenvolvimento e um potencial de recursos expressivos.
É por essas características, e não por mero voluntarismo, que temos um projeto
nacional próprio, mais complexo do que o da maioria dos países em desenvolvimento que
hoje se colocam claramente na condição de nossos competidores por recursos financeiros e
tecnológicos e por parcerias comerciais mais dinâmicas.
Esse projeto nacional próprio e diferenciado certamente nos indica caminhos
também diferenciados, mas o contexto internacional globalizado, a própria competição que
nos fazem nossos concorrentes e a dependência crescente que temos em relação aos influxos
provenientes do quadro externo limitam e condicionam severamente as alternativas
individuais.
Ao mesmo tempo, as escolhas que somos forçados a fazer no plano externo –
entre elas a de procurar manter aberto o maior número possível de opções estratégicas
enquanto perdurarem incertezas e indefinições de que falaremos mais adiante – implicam
necessariamente custos e opções internos. Nossa condição de país distanciado dos centros de
poder econômico e político aumenta o risco da marginalização implícito, hoje, em qualquer
fórmula que se avizinhe à do desenvolvimento autárquico e fechado.
No plano político, é a democracia o que nos confere a primeira dimensão da nossa
identidade interna e internacional. Somos um país cuja complexidade política e social, hoje,
torna inexistente qualquer opção fora da democracia. Aprendemos que a legitimidade que
emana da democracia fortalece o Governo como interlocutor externo e dá ao Estado novas
responsabilidades no plano interno. Embora mais lento e submetido a tempos e ritmos
próprios, o processo decisório democrático é mais sólido e inegavelmente atende às
necessidades de estabilidade e coesão impostas pela grande complexidade social desenvolvida
pelo Brasil em razão do próprio crescimento econômico.
Com a acumulação da experiência democrática, cresce a percepção interna de que
a democracia não pode ser o domínio do formalismo. Da mesma forma, cresce a percepção de
que o Estado democrático, sem interferir desnecessariamente na economia, sem ser grande
proprietário ou grande empresário, tem de ser forte e dispor dos recursos humanos, materiais e
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financeiros para estar à altura dos seus compromissos e responsabilidades, inclusive no que
diz respeito à sua representação no exterior.
A democracia que hoje vivemos no país é muito mais complexa do que a que teve
vigência em etapas anteriores, porque o país é socialmente muito mais dinâmico,
politicamente mais organizado e maduro, mais urbanizado, mais industrializado e
regionalmente mais integrado pelo notável desenvolvimento das comunicações e da mídia e
pela intensidade dos fluxos internos de comércio e de investimentos.
A Constituição de 1988 fortaleceu as instituições representativas e abriu um
campo mais amplo à atuação dos agentes sociais e políticos que fazem a intermediação entre o
Governo e a Sociedade: partidos políticos, sindicatos, organizações não governamentais
dedicadas a temas e áreas específicas como direitos humanos e meio ambiente, para citar duas
áreas de grande sensibilidade e visibilidade.
A política externa é área que lida com temas particularmente sensíveis aos
influxos e demandas gerados internamente pela democracia. Direitos humanos, meio
ambiente, integração, a defesa da democracia, o ritmo e a intensidade da abertura econômica,
a internacionalização de temas como propriedade intelectual, serviços e regras de
investimento, as negociações da Rodada Uruguai do GATT, as relações com determinados
países ou grupos de países, as crises e conflitos regionais, entre outros, são objeto de
preocupação e ação de grupos de interesse e de lideranças políticas e partidárias.
Por causa da complexidade e multiplicidade dos grupos internos e de sua
capacidade de organização e defesa de seus interesses junto à opinião pública e ao Congresso,
os temas e tópicos internacionais que afetam esses interesses passaram a exigir
crescentemente um esforço prévio, muitas vezes complexo e demorado, de negociação interna,
antes que possamos encetar uma negociação internacional. Os interesses afetados, seja por
razões ideológicas, seja por razões práticas, manifestam-se livre e abertamente e têm a
capacidade de influenciar as decisões e o rumo e o ritmo de uma negociação, seja ela bilateral
ou multilateral. E influenciam assim, diretamente, as relações externas do país.
A dificuldade de se obter consenso interno em torno de alguns temas – por
exemplo, para citar um muito atual, propriedade intelectual – afeta às vezes adversamente a
negociação externa e pode ter consequências negativas, sob a forma de custos onerosos, para
setores nacionais. Ainda assim, o processo democrático tende a assegurar que, uma vez obtido
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consenso ou amplo apoio interno dos setores legitimamente interessados, a diplomacia pode
atuar com mais força e legitimidade.
Tem cabido muitas vezes ao Itamaraty a tarefa difícil de recordar ao público
interno, imerso nos complexos debates em torno dos temas de interesse da diplomacia, que a
negociação pressupõe compromissos e barganha. Nessa barganha, os ganhos necessariamente
devem ser parciais para que sejam efetivos. Temos de chamar a atenção para o fato, às vezes
esquecido no calor da defesa de interesses setoriais, que pode haver um preço a pagar pelo
fracasso ou adiamento de uma negociação.
Encarar a negociação externa, em um mundo dinâmico onde temos muitos
competidores, como mera tática dilatória pode às vezes ter altos custos, não só em imagem,
mas principalmente em isolamento, retaliações e dificuldade de acesso a bens materiais e
recursos financeiros e tecnológicos indispensáveis ao nosso desenvolvimento. Cabe-nos às
vezes convencer que a negociação com ânimo de compromisso e barganha não é alienação de
soberania, mas soberania em exercício ativo e construtivo, que países tão diferentes como a
China ou os membros da CEE, a Coreia e o Japão, o México e o Chile, utilizam com proveito
em defesa de seus interesses e, portanto, no fortalecimento da sua própria soberania.
Somos a nona economia do mundo ocidental em Produto Interno Bruto e a oitava
em produção industrial, mas quando olhamos nossos indicadores sociais, vemos que apesar
desse bom desempenho econômico, estamos relegados a um plano muito inferior: somos o
36o país em renda per capita e andamos em torno do 46o lugar quando se trata de indicadores
sociais.
As disparidades sociais e regionais de renda, os desequilíbrios, econômicos e
ambientais que os altos índices de crescimento continuado do país na maior parte deste século
não conseguiram resolver ou ainda acentuaram, e o enorme e crescente fosso em termos de
bem-estar social e desenvolvimento científico e tecnológico que nos separa dos países
desenvolvidos faz do desenvolvimento sustentado, ao lado da democracia, o pilar do projeto
nacional brasileiro e a linha-mestra da defesa dos interesses nacionais no exterior.
Se for verdade que a democracia é antes de tudo um fenômeno endógeno, cujo
vigor depende essencialmente daqueles que a praticam e não de imposições externas, o
desenvolvimento, ao contrário, tem uma ampla dimensão internacional, e depende em grande
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medida, ainda que certamente não de modo exclusivo, das oportunidades e das condições que
se encontram no entorno internacional.
Nos anos recentes, mesmo em meio a uma crise estrutural profunda e à perniciosa
obsolescência de parte de nosso parque produtivo, com sensível perda de competitividade, o
Brasil consolidou o perfil de uma complexa economia exportadora com diversificados
parceiros em escala mundial. Já somos, estruturalmente falando e com todas as consequências,
responsabilidades e desafios que isso acarreta, o que em inglês se convencionou chamar de
global trader, isto é, literalmente, um mercador global, um país com interesses econômicos
e comerciais que alcançam todos os quadrantes da Terra.
Mais que isso, a economia brasileira sem dúvida ampliou e sofisticou a sua
dependência em relação a mercados externos e a centros internacionais de geração de
tecnologia, capitais e investimentos de risco. O comércio exterior, especialmente de
manufaturados, vem sustentando a atividade econômica, inibida pela crise de estagflação
interna.
A busca de competitividade internacional tem uma componente importante de
internacionalização da produção. E o país abriu-se de forma cautelosa e seletiva, eliminando
barreiras não tarifárias e entraves burocráticos às importações e reduzindo de forma sensível e
continuada as barreiras tarifárias. A indústria brasileira ficou mais exposta à competição
externa e viu-se na contingência de melhorar sua competitividade e produtividade para fazer
face a um mercado menos protegido na área de bens de consumo. Respondemos de certa
forma, cautelosamente, a uma tendência global de relativa abertura econômica, ao menos nos
países que mais tradicionalmente se tinham fechado para desenvolver-se.
O comércio externo brasileiro tem um perfil equilibrado de distribuição, que
reforça a sua condição de global trader: aproximadamente 25% com a CEE, 25% com os
EUA, 20% com o Ásia-Pacífico, onde sobressai o Japão, e 20% com a América Latina.
Temos tido saldos comerciais positivos ininterruptos, que nos colocam na condição de
ostentar o terceiro saldo comercial mundial, depois do Japão e da Alemanha.
O bom desempenho do comércio externo brasileiro foi acrescido de um perfil
razoável do país como receptor de investimentos diretos estrangeiros, ainda que abaixo do
México, que sozinho em 1991 foi o destino de 40 por cento de todo o investimento direto
estrangeiro na América Latina.
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Esses dados positivos no campo econômico são, porém, contrabalançados por
algumas preocupações cujas consequências poderão fazer-se sentir a médio e longo prazo.
A primeira delas vem do fato de que, em um mundo que se aglutina em torno de
blocos mais ou menos fechados, como a CEE e a área de livre comércio da América do Norte,
estabelecido pelo Acordo de Livre Comércio (NAFTA), que associa os EUA, o Canadá e o
México, o perfil equilibrado do nosso comércio externo pode vir a constituir uma
desvantagem se a tendência global for a de associar os países em desenvolvimento a núcleos
regionais como esses. Não tendo uma posição comercial forte em relação aos EUA, à CEE ou
ao Japão – já que nosso comércio se distribui equitativamente entre esses polos – o Brasil se
veria enfraquecido se fosse levado, pela evolução da estrutura mundial de comércio, a ter de
negociar alguma forma de adesão a um dos blocos formados em torno desses três polos.
Decorre daí, precisamente, nosso interesse em que uma conclusão exitosa e sem novas
condicionalidades da Rodada Uruguai assegure um espaço primordial aos mecanismos e
regras multilaterais de comércio, única forma de manter relativamente abertos e flexíveis os
esquemas regionais com os quais o mundo terá de conviver no futuro previsível.
Outro dado preocupante em relação ao desempenho comercial do Brasil em um
mundo crescentemente globalizado e interdependente é o fato de que, mesmo ainda mantendo
bom desempenho exportador, nosso país vem sendo pressionado, em um movimento de
pinças, por dois tipos de competidores.
De um lado, estão aquelas economias em desenvolvimento que, como Taiwan e
Coreia, investiram maciçamente no passado em educação, formação de recursos humanos e
desenvolvimento tecnológico semiautônomo, e que portanto têm condições de incorporar em
graus crescentes tecnologia e qualidade a seus produtos manufaturados.
De outro lado, encontram-se aqueles países que, como a China, o Paquistão e a
Índia, oferecem custos de mão de obra ainda mais baixos do que os do Brasil, e portanto têm
condições de oferecer produtos pouco sofisticados a preços mais competitivos do que o nosso
país.
Dos dois lados, o Brasil perde espaço: em eletrodomésticos, eletrônicos, bens de
equipamento ligeiros (como tornos, em que tínhamos liderança), automóveis; e em
manufaturados mais simples, como calçados e têxteis. O índice relativamente baixo de
investimentos no reequipamento da indústria e em treinamento e reciclagem da mão de obra e
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o atraso tecnológico completam um quadro de relativa obsolescência da economia brasileira,
com consequências importantes para a inserção internacional do país se não forem adotadas
estratégias e intensificadas medidas para reverter esse quadro e aumentar nossa produtividade
e nossa competitividade.
Temos três instrumentos ao nosso dispor, para fazê-lo: o desenvolvimento
tecnológico, a ampliação da escala da economia por meio da integração com outras
economias regionais e através da melhoria da distribuição de renda e maiores investimentos
em educação e formação de recursos humanos. A utilização ótima desses instrumentos de
transformação econômica e social depende sem dúvida de uma evolução favorável do quadro
econômico, mas cada vez torna-se mais evidente que uma ação determinada nessas áreas não
pode indefinidamente esperar pela solução dos problemas econômicos que enfrentamos –
mais do que isso, seria parte de uma solução estável e duradoura, com importante projeção na
inserção internacional do país.
O cenário internacional
As considerações anteriores não esgotam todos os traços que identificam o Brasil
como Nação e como parceiro internacional, mas resumem aquelas que são, a meu ver, as
características mais operacionais do país em matéria de política externa.
Não basta, contudo, descrever essas características para compreender as opções
que estamos fazendo em matéria diplomática e de inserção internacional e regional. É preciso
analisar de que forma vemos o mundo contemporâneo para entendermos que a política
externa deve ser e, na medida do possível, vem sendo uma resposta dinâmica daquele país que
descrevemos acima a um cenário internacional em permanente mutação, mas com momentos
de intensidade às vezes sem precedentes na mudança.
É o que estamos vivendo neste momento. Já se tornou lugar comum dizer que
vivemos um período de profunda transformação das estruturas políticas que se cristalizaram
no pós-guerra sob o domínio do que se convencionou chamar de Guerra Fria.
Essas transformações – o colapso do socialismo, o fim da União Soviética, o fim
da ameaça de um conflito nuclear de proporções globais, um amplo movimento mundial
redemocratização e liberalização econômica com o virtual fim das economias centralmente
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planificadas – de certa forma já ocorreram e estamos vivendo uma espécie de acomodação,
muitas vezes lenta e penosa, daqueles movimentos, daquelas transformações.
Essa acomodação, em sua face mais negativa e conspícua, se dá na forma dos
conflitos a que estamos assistindo entre as várias etnias e grupos nacionais ou quase nacionais
que compunham algumas das nações que formavam parte seja da ex-URSS, seja da sua área
de influência imediata. Em sua face mais positiva, essa acomodação se dá com o
encaminhamento, ou ao menos a perspectiva mais favorável de encaminhamento, de velhos
conflitos regionais, que são afetados por novas correlações de forças nos planos internacional
e regional. É o caso do Oriente Médio, cuja complexa estrutura de conflitos superpostos
ganhou nova dinâmica com o fim da URSS e a Guerra do Golfo.
A própria Rússia busca ainda um destino que não está completamente delineado,
mas dificilmente esse destino poderia ser o de voltar à mesma condição de superpotência
hegemônica, polo de um bloco estratégico e ideológico, de que desfrutou a União Soviética.
Da mesma forma, consolidam-se as reformas econômicas na China, e nada faz prever que se
pudesse alterar de forma significativa o quadro atual de liberalização da economia mundial –
um fato econômico que tem uma forte projeção política e diplomática.
A grande transformação política e econômica do mundo parece já ter ocorrido,
portanto, mas sem que alguns elementos centrais da ordem anterior, como as desigualdades de
poder militar e de pujança econômica, se tenham alterado sensivelmente. Seria por isso
supérfluo ou mesmo errôneo insistir na mudança como característica principal do novo
ordenamento.
Vivemos, isto sim, uma etapa nova da História, que apresenta elementos
igualmente novos, às vezes inteiramente imprevistos, outras vezes almejados por tanto tempo
que pareciam inalcançáveis, (os EUA, por exemplo, nunca deixaram de apostar na
possibilidade de derrota do bloco socialista). Nem todos os elementos que caracterizam esta
nova etapa da História, contudo, são novos, nem tampouco surgiram ou se desenvolveram
somente a partir da queda do Muro de Berlim ou do fim da União Soviética, sobretudo se
pensamos no plano econômico e científico-tecnológico.
No plano econômico, a tendência à construção de blocos regionais mais ou menos
rígidos, agrupados em torno dos três polos da tríade de poder econômico mundial – EUA,
CEE e Japão – vem de algum tempo atrás. A Guerra Fria e o bipolarismo político e
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estratégico já haviam cedido lugar, na década de 60, à aparição de um sistema econômico
multipolar.
Essa tendência só cresceu na década de 70 e 80, quando os EUA, sempre
guardando o poderio e as credenciais de maior economia do planeta, deixaram de ter controle
completo sobre a economia mundial e passaram a ver a Europa e o Japão competirem com
sucesso não só em terceiros mercados, mas dentro do seu próprio mercado interno, gerando
superávits comerciais gigantescos em detrimento dos EUA e passando a aplicar enormes
quantidades de investimentos na economia norte-americana.
O fortalecimento, ainda que desequilibrado, dos três polos da tríade gerou um
movimento dinâmico de competição internacional. Cada polo passou a tentar consolidar um
sistema de hegemonia econômica em suas áreas contíguas, com uso de fórmulas diversas, mas
que hoje resultaram na Área de Livre Comércio da América do Norte, resposta norteamericana à CE, na própria consolidação da CE como mercado comum a partir do Tratado de
Maastricht, de 1992, e a consequente consolidação da Europa dos Doze como um espaço de
atração tanto de outros países desenvolvidos da Europa quanto de países do Leste Europeu,
além das ex-colônias ligadas ao Tratado de Roma pelos Acordos de Lomé. O Japão,
informalmente, criou uma área econômica dominada pelo yen e vem exercendo papel
preponderante como polo em torno do qual prosperam as economias em desenvolvimento
acelerado da Ásia do Sudeste e a própria China Popular.
Mesmo nesse quadro de multipolaridade econômica, a única superpotência
remanescente da Guerra Fria continua sendo uma grande potência econômica e tem
demonstrado uma enorme capacidade de recuperação, paralelamente a um exercício de
hegemonia e poder político e militar universal sem precedentes na História.
Seria um grave equívoco adotar de forma acrítica as teses dos declinistas, que
consideram os EUA fadados a um inexorável movimento de decadência em função da perda
da produtividade e da competitividade da sua economia em comparação com as economias do
Japão e da Alemanha. Os EUA ainda detêm índices de desemprego muito abaixo dos índices
europeus – inclusive da Alemanha, cujos problemas nessa área foram agravados pela
reunificação –, têm crescido a taxas médias que já ultrapassam os 3,5% ao ano, enquanto a
Europa não alcança 1% e o Japão vem sofrendo os efeitos de uma recessão que pode ser
complexa e duradoura, e vêm dando sinais de vitalidade em matéria de produtividade,
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comércio exterior e capacidade de gerar tecnologia. Essas observações devem, portanto,
matizar o conceito, que continua válido e operacional para efeitos da nossa política externa,
de multipolarismo econômico.
Mas não é apenas a multipolaridade que caracteriza o cenário econômico mundial.
Além da marcha acelerada do mundo em direção à consolidação do liberalismo e das forças
de mercado como motor principal da atividade econômica – tendência que precedeu o colapso
do socialismo e apenas se viu reforçada por ele –, quatro tendências ou linhas de força não
excludentes coexistem (ao menos enquanto persiste um grau elevado de indefinição nos
rumos dos diferentes processos de integração regional e no ritmo e alcance das negociações
da Rodada Uruguai) e poderiam ser identificadas como procuro fazer a seguir.
O domínio do GATT e do multilateralismo tradicional. Parte substancial do
comércio mundial se faz sob as regras multilaterais de comércio do GATT. Ainda que
mecanismos unilaterais como medidas antidumping, subsídios e barreiras não tarifárias gerem
tensão dentro do sistema, ele vem sendo aplicado e constitui um terreno seguro onde, na
medida do possível, os países tendem a preferir dirimir suas controvérsias antes de passar a
outras instâncias na competição por mercados.
A regionalização. Paralelamente ao sistema multilateral de comércio, a
regionalização é uma realidade crescente e um instrumento de política comercial e econômica
dos Estados. Especialmente no caso da Comunidade Europeia, talvez já tenhamos
ultrapassado a etapa de uma integração regional como anteparo e garantia diante de um
sistema multilateral de comércio ameaçado pelas ações unilaterais e pela virtual guerra
comercial que as economias capitalistas tendem a promover em sua disputa pela
sobrevivência e pelo crescimento. Mas não há dúvida de que a opção pelo regional está longe
de ser exclusiva e depende, em grande medida, do futuro do sistema multilateral de comércio.
O multilateralismo ampliado. Apesar de estar em questão o vigor e a permanência
do multilateralismo, o sistema internacional de comércio vem apontando uma tendência
crescente a abranger novos temas, muito além das regras de comércio de bens e das medidas
chamadas “de fronteira” (tarifas e medidas protecionistas não tarifárias aplicadas
nacionalmente pelos países), como serviços, propriedade intelectual, normas para
investimentos, transferência de tecnologia, entre outros, com o ânimo de dar um caráter
universal às regras e procedimentos que regulam essas matérias. A tendência a fazer com que
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regras universais sobre esses novos temas predominem sobre práticas nacionais unilaterais
ganha vigor mesmo diante da propensão de fortalecimento da regionalização. Ela responde a
um movimento universal de globalização da economia, que tende a fazer da produção uma
associação de insumos, tecnologias, trabalho, componentes e periféricos dos produtos de
origens distintas. Amplia-se, portanto, a tensão entre o nacional e o universal em torno de
certos temas. É o que estamos vivendo, por exemplo, em relação à questão da propriedade
intelectual.
O comércio administrado. Essa quarta tendência, com a qual o multilateralismo
nunca deixa de conviver, se materializa sob a forma de Acordos de Restrição Voluntária, de
regimes de quotas e de sistemas complexos de regras de origem para os produtos e os serviços.
Reflexo límpido da ascendência relativa do poder em matéria comercial sobre o direito que
emana dos acordos internacionais, o comércio administrado continuará a funcionar como uma
espécie de colchão entre o multilateralismo e o unilateralismo, administrando dois dados
irrefutáveis da realidade econômica internacional contemporânea: a perda de competitividade
de certos setores industriais em países desenvolvidos (e, tudo leva a crer, crescentemente em
países em desenvolvimento) e a capacidade desses países de recorrer a medidas protecionistas
unilaterais de natureza variada para preservar aqueles setores.
Essas quatro linhas de força, como disse, coexistem e tornam o cenário econômico
mundial suficientemente complexo para justificar uma atitude aberta de um país como o
Brasil, cuja melhor opção passa a ser precisamente um esforço para participar de todas as
tendências, sem exclusivismo. De nossa capacidade de “apostar” ao mesmo tempo nos
diferentes tabuleiros em que se movimenta a economia internacional dependerá em grande
medida o benefício que poderemos auferir de nossa inserção internacional.
Outra característica importante do sistema econômico mundial é que hoje ele
apresenta competidores muito mais fortes concorrendo nas faixas em que o Brasil tempos
atrás figurava às vezes sem concorrência. Os países desenvolvidos recuperaram
competitividade em áreas onde a haviam perdido ou geraram novas vantagens comparativas.
Exemplo do deslocamento que o Brasil sofreu nesse campo foi a perda de uma substancial
parcela do mercado automobilístico latino-americano para a concorrência europeia e
sobretudo japonesa, sem falar na ameaça coreana.
17
Muitos desses novos competidores, não apenas em comércio, mas especialmente
na atração dos investimentos, fizeram ajustes e promoveram aberturas na sua economia que os
colocaram em posição muito mais favorável do que o Brasil para receber investimentos e
tecnologia, ainda que, algumas vezes, correndo o risco de uma desnacionalização excessiva da
economia ou de um desmantelamento do seu parque industrial.
México, Chile e, mais uma vez, a China Popular são exemplos acabados desses
novos desafios que se apresentam para o Brasil no mundo. O México potencializou os
benefícios do seu ajuste e da sua abertura com a sua adesão ao Tratado de Livre Comércio
EUA-Canadá, que resultou na assinatura do NAFTA. O simples anúncio de que estaria dando
esse passo histórico em direção a uma associação de fato e de direito com os EUA foi
responsável por um grande desvio dos fluxos de capitais internacionais em direção ao México.
O êxito mexicano foi tal que bom número de especialistas chegaram a vislumbrar um
“modelo mexicano”, cuja aplicação, de forma acrítica, preconizavam para todos os países em
desenvolvimento, especialmente os da América Latina.
Os chamados tigres asiáticos parecem estar-se multiplicando, e até o Vietnã hoje
figura como promessa de novo destino na Ásia do Sudeste em função das aceleradas reformas
econômicas que vem promovendo e dos recursos naturais e humanos que oferece em
contrapartida. A Europa mediterrânea é outra história de sucesso, com os naturais altos e
baixos decorrentes da acelerada expansão econômica. Itália, Espanha e Portugal têm sido
grandes focos de investimento internacional.
A competição econômica entre países em desenvolvimento não é um traço
inovador dentro do sistema internacional, mas assume hoje características novas que vale a
pena assinalar para acentuar a percepção de risco que o sistema apresenta para nós.
Em primeiro lugar, a competição ferrenha é a face econômica e mais ativa do
processo de relativa desmobilização dos países em desenvolvimento no campo político. O
chamado Sul, desde a crise do início dos anos 80, perdeu o controle da agenda política
internacional, que passou a ser dominada por temas muitas vezes de interesse mais direto dos
países desenvolvidos, como não proliferação, narcotráfico, meio ambiente, direitos humanos,
entre outros. Esses temas têm uma dinâmica que não obedece à linha de clivagem Norte-Sul,
ao contrário dos temas predominantemente econômicos da década dos 60 e dos 70.
18
Competindo entre si junto aos desenvolvidos por mercados, tecnologia e
investimentos, os países em desenvolvimento tendem, portanto, a dissociar-se ainda mais do
que já o faziam em relação à agenda política e muitas vezes procuram colocar a sua atuação
diplomática a serviço dos interesses de associação econômica com o mundo desenvolvido.
Em segundo lugar, a competição hoje, muito centrada nos investimentos e nas
garantias de acesso privilegiado aos mercados desenvolvidos, tende a dificultar, quando não a
obstar a coordenação para promover interesses antes percebidos claramente como comuns. A
competição estreita, quando não anula, as margens de cooperação, deixando para o plano
quase que exclusivamente político os esforços de coordenação e consulta.
De fato, é difícil imaginar países em desenvolvimento associando-se para procurar
termos mais vantajosos para a recepção de investimentos ou para o acesso a tecnologias em
termos concessionais, porque qualquer gesto desse tipo imediatamente beneficia o competidor
mais disposto a fazer maiores concessões para obter tais recursos. E não são concessões
gratuitas, porque as vantagens políticas, econômicas e sociais do acesso privilegiado a
investimentos e tecnologia hoje se mede em índices econômicos muito concretos, da mesma
forma que se medem em impacto econômico negativo os custos de uma opção equivocada ou
utópica. O jogo individual é cada vez mais a marca distintiva do comportamento de países em
desenvolvimento, muitas vezes em contradição com o seu engajamento em programas
regionais de integração ou em mecanismos de consulta e concertação política, que, como
disse, tendem a esmaecer quando se trata de questões econômicas.
Essa nova realidade afeta também a cooperação que os países em
desenvolvimento promoviam em torno de acordos de produtos de base, por exemplo, área em
que muitas vezes a sustentação dos preços sobrepunha-se ao simples interesse no acesso aos
mercados. Nessa, como em outras áreas das relações econômicas internacionais, assiste-se a
uma quase completa verticalização das relações, com reduzido espaço para a associação
horizontal entre países em desenvolvimento.
Ainda do ponto de vista econômico, um dado marcante do mundo que se foi
gestando mesmo durante a Guerra Fria foi o da crescente preeminência da competição
econômica e tecnológica sobre a competição estratégica e ideológica. É certo que os EUA são
agora a única superpotência militar do globo, mas é completa a consciência norte-americana
de que essa hegemonia não é suficiente para garantir a supremacia econômica norte-
19
americana e de que competitividade, produtividade e avanço tecnológico são chaves para
assegurar ou reconquistar essa supremacia.
Um corolário natural dessa realidade é que a ampliação da escala produtiva não
pode depender somente da continuada disputa por mercados independentes. É aqui que a
integração começou a desempenhar um papel fundamental como fator de ampliação de
mercados preferenciais. O MERCOSUL é o resultado do aprendizado, pelo Brasil e seus
vizinhos, de um elenco de lições que substituíram a retórica integracionista de que a América
Latina foi pródiga até o passado recente.
De fato, a integração se faz onde já existem grandes correntes de comércio,
geralmente facilitadas pela proximidade geográfica. Além disso, a integração, para ter
resultados positivos sobre a escala, a produtividade e a competitividade das economias, deve
ir além da mera liberalização comercial para alcançar a harmonização de macropolíticas
econômicas e a associação transfronteiriça na produção de bens e serviços para consumo
dentro ou fora da área integrada.
Em terceiro lugar, aprendemos que a integração não é resultado apenas da vontade
política dos Governos, mas também do interesse dos agentes econômicos que operam nos
países envolvidos e não deve ser excludente – em dois sentidos, no de que deve estar aberta a
países que reúnam condições e vontade de participar e no de que os blocos integrados não
podem fechar-se artificialmente ao comércio internacional.
Finalmente, a integração se faz a partir de um movimento de construção
progressiva, que vai agregando partes a um pequeno núcleo inicial e eventualmente agrega
núcleos menores a um núcleo maior.
No plano político, são diversas as áreas onde mais notadamente se operaram
transformações que foram desencadeadas ou acentuadas com o fim da Guerra Fria. Todas elas
afetam a percepção brasileira do cenário internacional e, naturalmente, influenciam a
reformulação da estratégia diplomática do Brasil.
A primeira é a inegável ascendência política e militar dos Estados Unidos e seu
corolário, o domínio que os EUA vêm podendo exercer na condução da maioria dos assuntos
ligados à paz e à segurança internacionais, especialmente no que se refere a conflitos
regionais, mas também em relação à não proliferação. É no Conselho de Segurança das
20
Nações Unidas que esse novo quadro é mais evidente e tem mais consequências do ponto de
vista político.
A capacidade de mobilização e influência dos EUA na costura da coligação de
forças que derrotaram o Iraque na Guerra do Golfo foi exemplar dessa nova correlação de
forças políticas, da mesma forma que o foi o diktat político e diplomático que significou a
resolução que consagrou o armistício. Não se trata da legitimidade ou o mérito da ação que
impôs ao Iraque o cumprimento das Resoluções do Conselho e o respeito às normas e
princípios do direito internacional, violados por ocasião da invasão do Kuait. O que se quer
apontar é que, pela primeira vez na História recente da Humanidade, a mobilização para
impor essa solução e a direção geral dessa mobilização foram conduzidas por uma só potência.
A segunda é o fato de que, apesar do forte matiz representado pela hegemonia
única de uma superpotência no plano político e militar no mundo, o fim da Guerra Fria deu às
Nações Unidas condições reais de exercer o seu papel em matéria de paz e segurança
internacionais. Pela primeira vez desde a sua criação, e fora dos poucos momentos de
coincidência tática das duas superpotências da Guerra Fria (por exemplo, a ação em Suez, em
1956), a ONU tem sido capaz de agir com êxito relativo no encaminhamento de inúmeros
conflitos regionais. Sua ação é cada vez mais um ponto de referência obrigatório no universo
das relações internacionais. E, obviamente, dentro desse novo papel da ONU, tem primazia
absoluta a ação do Conselho de Segurança.
Esse fortalecimento do papel das Nações Unidas se dá em um momento em que o
número de Nações soberanas no mundo beira o número sem precedentes de 190 e em que
uma grande maioria desses países, debilitados politicamente ou nascidos já em meio a
situações conflitivas e de debilidade intrínseca, têm na ONU o grande foro onde suas vozes,
inaudíveis individualmente, podem fazer-se ouvir dependendo de como participem do jogo
que ali se desenvolve.
A terceira é a alteração profunda que ocorreu na agenda política internacional,
conforme adiantei mais acima. Essa alteração qualitativa é, como expliquei, de duas ordens.
De um lado, ela afeta os temas, divididos em novos ou renovados, e, de outro, ela altera as
prioridades. Em ambos os casos, traduz-se o domínio da agenda pelos países desenvolvidos,
em contraste com os anos 60 e 70, quando os países em desenvolvimento puderam avançar
vários temas do seu interesse.
21
Nova ordem econômica internacional, cooperação para o desenvolvimento,
diálogo Norte-Sul, novo direito internacional, distribuição dos frutos do progresso, não
alinhamento, cooperação Sul-Sul, preferências comerciais – são todos temas que se
transformaram ou cederam lugar a preocupações de outra natureza: direitos humanos, meio
ambiente, narcotráfico, liberalização econômica, solução de controvérsias por meio do
Conselho de Segurança “renovado” com o fim da Guerra Fria, o “direito de ingerência”, a
“Agenda para a Paz” proposta pelo Secretário-Geral da ONU. Recolocar o desenvolvimento e
a cooperação no centro dessa agenda vem custando um considerável esforço diplomático, do
que foi claro exemplo todo o processo negociador da Conferência do Rio e especialmente a
parte financeira, relativa a compromissos concretos.
Essa nova agenda obriga a uma redefinição das preocupações e focos de atenção
das diplomacias e levou à convocação de um grande número de conferências internacionais,
iniciadas precisamente com a Conferência do Rio sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, e
que continuarão com as Conferências Mundiais sobre Direitos Humanos (1993), sobre
População (1994) e sobre a Condição da Mulher (1995), além da Cúpula sobre
Desenvolvimento Social (1995). Em todas essas conferências, a exemplo do que sucedeu com
a Conferência do Rio, os resultados terão de ser produto de uma cuidadosa engenharia
negociadora.
Uma quarta área de inovação é a crescente presença, no cenário internacional e
regional, do que se convencionou chamar de “coalizões de geometria variável”, ou, mais
simplesmente, grupos temporários ou com vocação permanente que reúnem países em torno
de temas específicos ou objetivos limitados. São grupos intercomunicantes através de seus
membros, na medida em que um mesmo país pode participar de um grande número desses
grupos, dependendo dos seus interesses e prioridades em matéria de política internacional e
regional.
O Grupo do Rio, o Grupo dos 15 e a Conferência Ibero-Americana são exemplos
de “coligações” com vocação permanente, formadas em torno da ideia de concertação política
entre países com certa identidade regional ou de padrão de desenvolvimento. Esses novos
Grupos passam a coexistir com grupos tradicionais de concertação, como o Grupo LatinoAmericano e do Caribe, o Grupo dos 77 ou o Movimento Não Alinhado, e traduzem a
existência de espaços vazios na concertação internacional, que os Grupos tradicionais não são
22
capazes de preencher seja por seu tamanho e pouca mobilidade, seja pelos constrangimentos
históricos ou ideológicos a que ficaram submetidos.
A coalizão que combateu o Iraque ou a que se criou para atuar na Somália são
exemplos de grupos de vocação transitória, que agregam países em torno de um objetivo
comum único. Alcançado o objetivo, a coalizão é suspensa. Tais grupos acrescentam um
enorme dinamismo às relações internacionais contemporâneas e constituem um campo novo
para a prática diplomática. Ao mesmo tempo, suas ações podem ter consequências duradouras
e decisivas, como foi o caso da ação contra o Iraque e seu papel na consolidação da nova
macroestrutura política pós-Guerra Fria.
Uma quinta área é a que diz respeito à cada vez mais provável reforma da Carta
das Nações Unidas para acomodar e refletir as novas realidades de poder mundial e inclusive
distribuir melhor os custos de funcionamento do aparato da Organização, especialmente no
que se refere a missões de paz e de observação. Essa é área que tem incidência direta sobre
interesses brasileiros, na medida em que poderá provocar uma muito adiada revisão da Carta e
a provável ampliação, em moldes ainda desconhecidos, do Conselho de Segurança.
Dois fortes candidatos se apresentam para assumir a condição de membrospermanentes do Conselho de Segurança. São eles o Japão e Alemanha, os vencidos da
Segunda Guerra Mundial, mas hoje os dois únicos países que reúnem consenso quanto às suas
credenciais para integrar o Conselho, embora não reúnam ainda apoio consensual para tanto.
Mas uma reforma da Carta e a ampliação do Conselho abrirão passagem a um grande número
de pleitos represados pelo congelamento do sistema durante a época da Guerra Fria.
Pode-se questionar vivamente, desde logo, e o Brasil o faz sincera e
interessadamente, se de fato Japão e Alemanha são os únicos que reúnem credenciais para
participar como novos membros permanentes e se ao limitar-se a admiti-los as Nações Unidas
estarão dando os passos necessários e urgentes para cobrir o fosso normativo que separa a sua
Carta (onde, aliás, há referências explícitas ao “inimigo” identificado no Japão e na
Alemanha) das realidades atuais da política mundial.
Segundo os critérios utilizados, um número razoável de outros postulantes, entre
os quais certamente se destaca o Brasil, faz prenunciar que uma eventual reforma do Conselho
será produto de uma complexa negociação. Se os critérios disserem respeito a tamanho,
população, PIB, interesses globais e papel desempenhado no sistema internacional, o Brasil
23
certamente encabeça a lista de pretendentes. Se o critério for o domínio de armas nucleares, a
Ucrânia, o Cazaquistão (ao menos por enquanto) e a Índia têm um bom ponto de partida. Se o
critério for balancear o número de desenvolvidos com assento permanente e o de países em
desenvolvimento, hoje reduzidos à China Popular, o Brasil sobressai em um grupo que ainda
poderia eventualmente incluir alguns outros países de uma lista que inclui a Nigéria, México,
Egito, Indonésia e Argentina. Trata-se de uma equação complexa, para cuja solução ainda não
está clara a existência de uma fórmula de consenso.
A discussão deve assim ser ampla, pois uma reforma do Conselho não
necessariamente se reduzirá a ampliar o número de assentos permanentes e não permanentes,
mas também a discutir novas modalidades de participação e até mesmo a abolição do direito
de veto assegurado aos permanentes. Mas não se trata apenas de uma discussão de natureza
processual, e sim de um passo que terá consequências importantes para o sistema
internacional e afetará, diferentemente, é certo, os interesses de todos os países-membros da
ONU.
Uma sexta área que define o novo cenário internacional decorre do fato de que,
nunca como antes, alguns dos temas da agenda internacional contemporânea interessam
diretamente a setores e grupos de interesse dentro dos países, gerando um espaço inédito de
internacionalização de temas que antes eram considerados de competência exclusiva das
soberanias. Falo de direitos humanos, meio ambiente e dos conflitos regionais e étnicos que
adentram os lares diariamente graças ao poder de cobertura da televisão e dos meios de
comunicação em geral.
Graças não só ao modo como esses temas tocam valores e sensibilidades dos seres
humanos, mas também a que a maior vigência da democracia no mundo ampliou as áreas de
participação das opiniões públicas, muitas Chancelarias sofrem uma pressão direta das
sociedades e respondem mediante um grande ativismo internacional, que gera áreas de
convergência e conflito com outros países e movimenta a agenda internacional.
Corolário dessa nova realidade é o crescente peso das Organizações Não
Governamentais (ONGs) no tratamento de temas internacionais, na condição de virtuais
“novos atores” do sistema internacional. A Conferência do Rio foi exemplar da importância
desses atores e da sua capacidade de mobilização e influência. O mesmo se verifica em
relação a direitos humanos. As ONGs são o agente por excelência da internacionalização dos
24
temas antes sob domínio exclusivo da soberania e da mobilização das opiniões públicas
internas e internacional em torno de tópicos da agenda diplomática contemporânea. Como tal,
constituem uma variável nova que ocupa o planejamento e a ação das Chancelarias e vem
influenciando a redefinição da política externa de países como o Brasil.
Temos uma atitude de abertura, diálogo e cooperação em relação a um número
expressivo dessas Organizações Não Governamentais, brasileiras ou internacionais, e essa
atitude é sem dúvida um traço marcante da nossa política externa.
A política externa brasileira como instrumento de interação com o mundo e
resposta às novas realidades.
Chegamos, finalmente, ao cerne da nossa conversa: a política externa brasileira.
Creio que o duplo quadro que esboçamos acima – o interno e o internacional – já adiantaram
em grande medida quais são ou devem ser as linhas gerais de orientação da política externa
brasileira na década de 90. Nunca antes a dialética própria de toda política externa de país
com interesses globais como o Brasil assistiu a maior tensão entre os polos aparentemente
contraditórios da continuidade e da inovação.
Continuidade, porque não abandonamos, nem pensamos fazê-lo, as grandes linhas
que identificaram a política externa de Governos anteriores, aqueles que deram equilíbrio e
sentido de busca de harmonia à diplomacia brasileira na defesa dos interesses nacionais e da
promoção das relações internacionais do país. O multilateralismo, as relações com os países
desenvolvidos, as relações com a América Latina especialmente com a América do Sul e os
demais países que integram o MERCOSUL, a Ásia, a Bacia do Pacífico, a África e o Oriente
Médio, a Europa do Leste – todas essas são áreas que continuam a concentrar interesses e
atenção do Brasil. O que mudou foi a escala de prioridades e as condições objetivas dos
diversos relacionamentos.
Inovação, porque as características atuais do país e do sistema internacional não
admitem a repetição mecânica de fórmulas que tiveram vigência no passado, quando eram
outras as condições objetivas de formulação e implementação da política externa, tanto no
plano interno quanto no plano internacional.
25
Inovação, ainda, porque devemos partir necessariamente de uma análise contínua
para elaborar as respostas aos desafios que percebemos e aos influxos, pressões e estímulos
que vêm do exterior e que indicam um mundo diferente lá fora.
A própria descrição do que sejam as nossas prioridades e linhas gerais de atuação
responde em grande medida à necessidade de estabelecer uma correlação entre tais propostas
e a análise que desenvolvemos até aqui. Dentro dessa linha analítica, identifico as seguintes
diretrizes e prioridades para a política externa brasileira nos anos 90.
Universalismo não excludente. Um país das dimensões e características do Brasil
tem de ter uma política externa naturalmente universal, não excludente e aberta, na medida do
possível, a diversas opções simultâneas. Essa é uma primeira característica da nossa política
externa, uma primeira diretriz geral. Não somos suficientemente atrelados a nenhum centro de
poder mundial para justificar uma opção excludente. Da mesma forma, o perfil dinâmico da
economia brasileira e nossos interesses econômicos e comerciais fazem de todas as regiões do
globo parceiros reais ou potenciais do Brasil, embora a escassez de recursos imponha muitas
vezes limites e constrangimentos à ação externa.
Abertura às opções estratégicas. Alguns temas de natureza global, a começar pela
forma definitiva que as estruturas políticas e econômicas assumirão depois da ruptura deste
início de década, não têm ainda respostas definitivas. Países com escasso poder ou que se
sentem profundamente atrelados a polos políticos ou econômicos podem não ter opções além
de procurar colocar esse atrelamento, da melhor forma possível, a serviço dos seus interesses.
Mas um país como o Brasil não teria por que, neste momento, fazer uma opção estratégica
que significasse a exclusão definitiva de outras opções ou que reduzisse as suas margens de
manobra.
Escolher agora entre o multilateralismo ou o firme atrelamento a um bloco
regional seria, para nós, precipitado, pois não só as respostas não estão claras a respeito do
futuro dessas opções, como o poder real de o Brasil influenciar na decisão é reduzido. Sendo
mais provável que o mundo prolongue um estado de convivência entre as várias opções,
ganhará quem tiver condições de apostar no maior número possível dessas opções. É o que
fazem os Estados Unidos, cujo compromisso com o NAFTA ficou indiscutível após a posse
de Bill Clinton, mas que tem renovado a sua posição de compromisso com o êxito da Rodada
Uruguai do GATT, sem descartar a adoção de medidas unilaterais de proteção do seu mercado.
26
Da mesma forma, no plano político, não haveria benefício em buscar
alinhamentos excludentes ou participações em coalizões de geometria variável ou grupos
novos de concertação, como não haveria ganho em reduzir nossa projeção política às Nações
Unidas. Temos necessariamente de jogar em vários tabuleiros não excludentes, não apenas
porque nos interessa manter abertos todos os caminhos, mas porque temos suficiente cacife
como grande país em desenvolvimento, de dimensões continentais e ativa política externa nos
vários âmbitos de que participamos, e mantemos presença regional e internacional mais do
que suficiente para fazê-lo.
Resposta às dualidades intrínsecas do país. Mas não é apenas em função de
interesses objetivos que a política externa brasileira deve ser universal e não excludente. A
própria natureza multifacetada do nosso país, em que convivem lado a lado o
desenvolvimento e o subdesenvolvimento, o progresso e o atraso, os padrões de consumo
ocidentais e a miséria absoluta, o dinamismo econômico e a estagnação, aponta-nos um
caminho de abertura e diversificação de parcerias externas na defesa dos nossos interesses e
na definição daqueles que são dois dos principais objetivos do universalismo da política
externa: a promoção do desenvolvimento e a garantia de mecanismos, regras e sistemas
equilibrados e justos de inserção internacional de todos os países.
Seja na ONU e suas grandes conferências, seja no GATT, seja em negociações
bilaterais ou regionais, a política externa brasileira deve ir além do principismo para defender
um papel como instrumento no progresso econômico brasileiro. Em outras palavras, a política
externa brasileira é universalista e participante não como um fim em si mesmo, mas como
uma forma de dar uma contribuição à nossa economia e à nossa estabilidade política e social.
Estes serão os parâmetros pelos quais nossa ação será julgada pela História.
Negociação como defesa da soberania. Uma terceira característica da nossa
política externa deve ser a de participar ativamente na definição das regras internacionais que
tenderão a regular número crescente de áreas de vital interesse para nós e, quando não for
possível, ajudar a promover a nossa adaptabilidade a regras para cuja mudança o poder
brasileiro, mesmo associado a diferentes parceiros internacionais, não é suficiente.
Não se trata de defender qualquer forma de debilidade, fraqueza ou concessão a
priori em matéria de política externa. Temos características que nos colocam em posição
vantajosa no cenário internacional, mas existem diferenciais de poder que é preciso
27
compreender e colocar em perspectiva se queremos ir mais além da militância ideológica para
alcançar resultados que nos são exigidos a cada dia.
Definir interesses, posições e limites responsáveis para uma negociação, em um
mundo de opções reduzidas e grande competitividade, é hoje o melhor sinônimo da defesa dos
interesses nacionais. Negociar, barganhar, buscar ganhos parciais é tarefa que incumbe ao
diplomata de hoje, qualquer que seja a sua nacionalidade. A negociação, entendida como um
processo complexo de interação e composição de interesses, não constitui alienação de
soberania, mas, ao contrário, soberania em exercício. Frente à crescente competição, não
negociar pode ser justamente a causa de uma alienação indesejada de soberania.
Prioridades. Uma quinta característica da política externa brasileira decorre
naturalmente do fato de que temos de ter prioridades, que não implicam exclusões. No cenário
que descrevemos mais acima, as prioridades da política externa brasileira têm hoje, mais do
que nunca, o caráter de procurar garantir espaços no mundo que se está consolidando.
Uma primeira prioridade, naturalmente, é procurar contribuir para o
fortalecimento do sistema multilateral de comércio, conferindo a importância devida aos
novos temas em análise na Rodada Uruguai além dos temas comerciais. Propriedade
intelectual, serviços, transferências de tecnologia, investimentos são áreas que devem passar
por uma multilateralização, gerando normas mais universais e transparentes, mas exigindo
compromissos, custos e opções internas de cada país participante. Essa é, aliás, uma noção
que é preciso ter clara na mente: as opções externas são hoje um imperativo da sobrevivência
econômica e não há opções externas que não impliquem custos e opções internas.
Uma segunda prioridade da nossa política externa é a atenção aos três grandes
blocos econômicos que geram 6 trilhões de dólares de produto – CEE, NAFTA, Japão e
comunidade do Pacífico. Deles provêm capitais, investimentos diretos, tecnologias e demanda
por bens e serviços de que nossa economia depende. Não se trata de procurar formas de
associação indiscriminada ou de “relação especial” que nos una a qualquer desses blocos,
mesmo porque se formos levados a uma opção dessa natureza em algum momento, por um
acirramento das tensões econômicas mundiais, não teríamos provavelmente opção fora da
área hemisférica. Trata-se de dar atenção ao que ocorre nesses polos, tanto para buscar e
aperfeiçoar parcerias operacionais e nichos de oportunidades que ampliem o intercâmbio em
28
sentido amplo, como para avaliar o impacto do que ocorre nessas áreas sobre a economia
brasileira e sobre o comércio externo brasileiro nesses mercados e em terceiros mercados.
Uma terceira prioridade é a área mais imediata da convivência internacional do
Brasil: a América Latina, especialmente a América do Sul, onde temos fronteiras estáveis com
dez países, e, dentro da América do Sul, o MERCOSUL, onde estamos construindo uma das
alternativas não excludentes que nos garantem espaços no cenário internacional. Trata-se aqui
de equacionar e pôr a serviço dos interesses brasileiros aquilo que é a nossa circunstância, no
dizer do filósofo Ortega y Gassett, aquilo que nos identifica no universo.
Somos
sul-americanos
e
com
nossos
vizinhos
temos
um
expressivo
relacionamento, uma densa e crescente relação fronteiriça, interesses comuns regionais e
internacionais e o interesse ditado por toda proximidade. Correntes vultosas de comércio
facilitado pela vizinhança física geram interesses e mobilizam os agentes econômicos. Na
América do Sul encontra-se a maior possibilidade de ampliação da escala da economia de
cada um dos países que a compõem, facilitada pela relativa identidade política e a experiência
de muitas décadas de desenvolvimento e economia de mercado.
Dentro da mesma ótica do interesse vinculado à contiguidade geográfica, uma
quarta prioridade brasileira é o Atlântico Sul e, por extensão natural, a África, especialmente a
África Austral e os países de língua portuguesa.
Não necessito estender-me sobre os vínculos de natureza política e cultural que
nos ligam à África e sobre o potencial do nosso relacionamento com a região, especialmente
quando a evolução positiva de alguns conflitos e a perspectiva de superação do apartheid na
África do Sul abrem caminho para que a África volte a crescer e a ter a confiança da
comunidade internacional. Embora ainda sujeita a retrocessos e a surpresas, como o
demonstrou a evolução interna de Angola, a África é hoje uma área com potencial real, na
qual já estamos bem situados politicamente para promover um relançamento das nossas
relações.
Esse relançamento já começou, simbolizado na proposta, em interessada análise
entre todos os membros potenciais, de criação de uma Comunidade de Povos de Língua
Portuguesa, que terá importante impacto sobre o conjunto de nossas relações com os países
africanos de língua oficial portuguesa. Acrescida da ênfase que estamos começando a dar uma
atualização das preocupações que nos levaram a propor a Zona de Paz e Cooperação do
29
Atlântico Sul, nas vertentes da proteção do meio ambiente marinho, da desnuclearização, da
intensificação do comércio intrarregional e da cooperação esportiva, a política africana vem
ganhando uma nova dinâmica no Itamaraty, mesmo que ainda contra o pano de fundo das
dificuldades econômicas que, no Brasil e em muitos de nossos parceiros africanos, afetaram
adversamente o perfil do nosso relacionamento com o Continente.
Uma quinta prioridade são os temas globais e o fortalecimento do multilateralismo
político, especialmente as Nações Unidas e tudo o que diga respeito à paz e à segurança
internacionais. O Brasil é um país com peso específico suficiente para influenciar o
tratamento dos temas políticos universais e ser por eles afetado positiva ou adversamente.
Direitos humanos, meio ambiente e muito especialmente o cumprimento das decisões da
Conferência do Rio e a aplicação prática universal do conceito de desenvolvimento
sustentável, migrações, desenvolvimento, desarmamento, não proliferação, controles de
transferência de tecnologia, narcotráfico, direito de ingerência, direito humanitário, direito
regulatório dos grandes espaços como mar, Antártida e espaço exterior são todos temas que
compõem uma agenda densa de interesses para o Brasil. Alguns conflitos regionais que
sobreviveram ao fim da Guerra Fria ou foram gerados ou mantidos por fatores endógenos
alheios ao fim da confrontação bipolar afetam áreas e países com os quais o Brasil tem um
relacionamento relevante e presença de grande visibilidade, como ocorre na Angola.
O Brasil não é um ator indiferente em relação à imensa maioria dos temas em
discussão e seu interesse em ter uma política externa equilibrada, influente e eficaz o faz
igualmente atento àqueles pontos da agenda internacional que dizem respeito à paz e à
segurança internacionais e à promoção do desenvolvimento sustentável.
Por todas essas razões, temos um interesse especial em nossa participação no
Conselho de Segurança da ONU, onde pela sétima vez ocupamos um lugar como membro não
permanente. Acompanhamos cuidadosamente a evolução do processo, que poderá levar a uma
reforma da Carta das Nações Unidas e à ampliação do Conselho mediante o aumento no
número de membros permanentes e não permanentes e eventualmente a criação de uma
categoria intermediária, que assegure uma participação ampliada de alguns países. Reunimos
condições objetivas que nos autorizam a figurar no horizonte como uma das opções para essa
eventual reforma do Conselho.
30
Temos peso, interesses e histórico de contribuições que justificam esse pleito e
nos instam a acompanhar com atenção e cuidado o que ocorrerá nessa área, especialmente em
vista da recente admissão, por parte do Governo dos EUA, de que uma reforma do Conselho é
conveniente para refletir novas realidades do poder mundial pós-Guerra Fria. O Brasil vem
acompanhando com interesse o assunto e está mobilizado para encorajar a reforma e tirar o
melhor proveito possível de uma eventual alteração na composição do Conselho de Segurança.
Uma sexta área prioritária é a proteção de nacionais brasileiros no exterior. Essa é
uma resposta a um fenômeno ao qual não estávamos acostumados e ao qual o governo
brasileiro tem feito grandes esforços para adaptar-se: o fenômeno da emigração. A já
volumosa e crescente colônia brasileira no exterior justifica uma política de redistribuição e
reforço da rede consular brasileira naqueles países e áreas onde é maior a concentração de
brasileiros.
Uma dessas áreas é, naturalmente, a extensa faixa de fronteiras do Brasil, que se
estende por exatos 16.889 quilômetros e em sua maior parte atravessa áreas escassamente
povoadas, de difícil acesso, mas de grande poder de atração sobre contingentes da população
brasileira que foge das áreas de estagnação. Corolário, portanto, da preocupação com a
proteção de brasileiros no exterior é a preocupação com a boa identificação das fronteiras
brasileiras, mediante um trabalho sistemático de demarcação, densificação, inspeção e
conservação de marcos nas linhas de limites, em estreita cooperação com os Governos dos
países limítrofes.
Nossas prioridades se completam com outras áreas de interesse estratégico
brasileiro, como a região do Golfo Pérsico, a região da Ásia Pacífico e todo o Leste Europeu,
inclusive os novos Estados nascidos da extinção da antiga União Soviética, com os quais
estamos em processo de pleno estabelecimento de relações diplomáticas e início de contactos
para desenvolver um relacionamento o mais proveitoso possível, mesmo que necessariamente
incipiente no princípio. Além disso, a República Popular da China e a Índia ocupam lugar de
realce, não apenas em função dos interesses concretos do intercâmbio, mas porque são dois
países que, ao lado da Rússia e do Brasil, compõem o que poderíamos chamar de núcleo dos
países-gigantes com características, desafios, potencialidades e dificuldades semelhantes.
Em todas essas áreas, o Brasil vem atuando na promoção de interesses nacionais e
procura identificar novas formas de cooperação e intensificação das relações, procurando
31
compreender a exclusão das mudanças políticas e econômicas que processam nesses
importantes parceiros internacionais.
A ação em cada uma dessas áreas prioritárias muitas vezes é um fator de
complementação da estratégia em relação às demais áreas, contribuindo para dar maior peso e
maior poder de negociação ao país.
Conclusões
Esse exercício generalizador que acabo de realizar será, felizmente, completado
pelas exposições temáticas que vários outros diplomatas vêm fazendo neste segmento do
vosso estágio dedicado às relações internacionais.
Nas exposições setoriais, os Senhores Estagiários poderão comprovar a extensão
dos interesses brasileiros no exterior e a expressiva quantidade de tópicos da agenda
internacional multilateral, regional e bilateral que nos ocupa.
Estruturada ao longo de dois pares de dicotomias que não são em absoluto
excludentes – a que contrasta o multilateralismo e o bilateralismo e a que distingue as relações
com países desenvolvidos e as relações com os países em desenvolvimento –, a política
externa brasileira quer continuar a ser, como tem sido, um instrumento do projeto nacional
brasileiro.
Em um mundo que se transformou rapidamente, que tem uma incidência direta
sobre nossas capacidades e necessidades como Nação e como sociedade em busca de sua
realização, e que apresenta um quadro de acelerada e dinâmica competição internacional em
busca de parcerias operacionais, recursos, investimentos e tecnologia, a diplomacia tem uma
responsabilidade redobrada em seu papel de fazer a ponte entre o Estado brasileiro e o mundo
em que estamos irredutivelmente inseridos.
Não quero desconhecer o impacto que a situação interna brasileira inegavelmente
tem sobre o desempenho da tarefa diplomática do país. Não há dúvida de que o sucesso que
tivermos na retomada do crescimento, na estabilização da economia e na consolidação e
expansão multiplicadora dos êxitos relativos que temos alcançado em matéria de comércio
exterior e atração de investimentos provados serão elementos decisivos para dar força ao
projeto diplomático brasileiro nesse mundo marcado por desafios e oportunidades, mas
32
também por riscos que convém ter presente. Mas a ação diplomática não pode estar
condicionada a tais avanços, inclusive porque ela deve ser um instrumento a serviço desses
objetivos de curto e médio prazo.
Avançamos muito na construção de um perfil de confiança internacional, de que
os entendimentos com a Argentina na área nuclear foram peça essencial. Muito resta a fazer,
ainda. O processo de impeachment, que mobilizou os brasileiros, foi um acontecimento de
grande visibilidade internacional colocou o Brasil e as instituições políticas brasileiras no foco
das atenções internacionais e mostrou uma face positiva e digna do país. Esses fatos servem
ao propósito de alavancar uma nova inserção internacional do Brasil, mas devem ser
completados por uma ação interna concertada de resposta aos desafios do mundo exterior e de
solução duradoura dos nossos problemas.
O conhecimento da política externa brasileira pelos diferentes segmentos e setores
da sociedade brasileira é um passo fundamental na construção dessa resposta concertada. O
exercício de diálogo entre a Escola Superior de Guerra e diplomatas encarregados dos mais
diversos temas da política externa brasileira é sem dúvida parte desse esforço em que
devemos estar engajados, juntos, o Itamaraty e a sociedade brasileira, aqui expressivamente
representada.
Deixo agora ao interesse e à curiosidade pessoal de cada um espaço para debate,
de forma a poder completar esta abordagem introdutória da política externa brasileira e das
suas grandes linhas de avaliação e de interesse.
Muito obrigado.
33
As grandes transformações
no cenário internacional:
uma visão de Londres.
Palestra proferida pelo
Senhor Embaixador
Paulo Tarso Flecha de Lima
no Instituto Rio Branco.
Brasília, 9 de março de 1993.
34
Existe uma expressão inglesa segundo a qual “forecasting is very difficult;
particularly about the future”. Creio que a verdade dessa expressão foi integralmente
confirmada pela evolução recente das relações internacionais.
A rapidez e profundidade das transformações ocorridas nos últimos cinco anos
surpreendeu a todos os analistas. Pela primeira vez no após-guerra o futuro do cenário
internacional constitui virtual obra aberta. Subitamente o mundo tornou-se muito mais
complexo e, perdidos antigos pontos de referência, faltam-nos, por vezes, mesmo os conceitos
que possam apreender essas novas realidades emergentes.
Ao preparar essa breve conferência, reli o texto de Aula Magna que proferi na
Faculdade de Direito da Universidade de Minas Gerais, como Secretário Geral do Itamaraty,
em março de 1990. Naquela data, ainda era possível descrever as mutações por que passava o
cenário internacional apontando para a “neodistensão” que resultava do entendimento entre as
duas superpotências e temas como o “novo pensamento” soviético, glasnost e perestroika
ainda mereciam ser analisados. Em apenas três anos, a União Soviética deixou de existir,
esses temas saíram da agenda, a ideia de distensão foi inteiramente superada e a própria figura
da superpotência perdeu relevância.
Para entender esse novo mundo que se vai moldando diante de nossos olhos, creio
que é preciso situar essas mudanças no quadro mais amplo de duas crises simultâneas.
A situação de indeterminação que atravessamos hoje é o resultado do esgotamento
das duas macroestruturas que garantiram a estabilidade do após-guerra. De um lado, temos a
crise do que chamarei de “Sistema de Yalta”, o qual garantiu o equilíbrio político-estratégico
do após-guerra e, de outro lado, a crise do “Sistema de Bretton Woods”, que assegurava a
estabilidade das relações econômicas internacionais.
A crise do Sistema de Yalta tem contornos mais claros e culmina na extinção da
União Soviética, o que assinala o fim definitivo da Guerra Fria.
A crise do Sistema de Bretton Woods é mais complexa e, em alguma medida,
ainda tem desfecho incerto.
Sua origem remonta ao início da década de 70, quando a decisão do Governo
Nixon de suspender a convertibilidade do dólar instaura um sistema de paridades cambiais
flutuantes. Desde então os governos dos países mais desenvolvidos se têm debatido, sem
35
muito êxito, na busca de algum acordo que impeça alterações bruscas ou desvalorizações
cambiais predatórias.
A recente crise cambial europeia e a virtual incapacidade do FMI de contribuir
para a sua solução são sinais claros de que as instituições de Bretton Woods precisam ser
revistas.
No âmbito comercial o impasse em que se arrasta a Rodada Uruguai coloca em
risco a própria sobrevivência de um sistema multilateral de comércio e pode tornar o GATT
um acordo moribundo.
Com o esfacelamento dos ordenamentos e das hierarquias que decorriam dessas
duas macroestruturas, abre-se para o cenário internacional uma fase de aguda instabilidade.
Na verdade, muitos dos conflitos, seja políticos, seja econômicos, que hoje
ocupam a cena internacional só se tornaram possíveis no contexto desse esfacelamento.
Apenas a título ilustrativo, poderíamos pensar no conflito na antiga Iugoslávia, que resgata do
passado o fantasma da “Questão Balcânica”, ou mesmo na disputa comercial entre EUA e
Japão.
Sobre esse último ponto, em livro publicado recentemente nos Estados Unidos,
chamado Changing Fortunes, Toyoo Gyohten, importante formulador da política econômica
internacional do Japão nos anos 70 e 80, declara que as relações EUA-Japão estavam
baseadas em uma aliança segundo a qual os EUA garantiam o livre acesso dos produtos
japoneses ao mercado norte-americano e, em troca, o Japão aceitava a liderança norteamericana nos temas de segurança global. Superado o confronto estratégico, remove-se da
aliança uma de suas razões de existir e abre-se espaço para uma revisão dessa relação especial.
Nessa nova fase deverão ser levadas em conta as peculiaridades dessa relação
bilateral como, por exemplo, a vinculação entre Wall Street e a liquidez da economia japonesa.
Hoje os capitais japoneses são importantes compradores de títulos do Tesouro norteamericano, contribuindo, dessa forma, para o financiamento do déficit público dos EUA. Na
hipótese de uma retração desse investimento, a relação bilateral inexoravelmente estará às
voltas com uma crise potencial de efeitos alarmantes para a comunidade financeira
internacional como um todo.
No que concerne às relações com o Japão, arrisco-me a dizer que estamos na
iminência de reeditar um conflito Leste-Oeste. Dessa vez, porém, deslocado mais para oeste e
36
de fundo pragmático, ao invés de ideológico. Em menor grau com a Europa, e mais
intensamente com os EUA, as disputas econômicas com o Japão correm o risco de degenerar
em uma guerra comercial e repercutir negativamente sobre a economia mundial. Para lidar
com essa questão, nem o GATT, nem mesmo o G-7 parecem preparados. Ao partirem do
pressuposto de que uma abertura simétrica de mercados seria a solução, esses dois foros
ignoram questões tão difíceis de lidar quanto a estrutura de distribuição interna no Japão, a
preferência do consumidor japonês por produtos nacionais e a própria estrutura da economia
japonesa, onde Governo e iniciativa privada se interligam e na qual é muito pequena a
participação do capital externo.
Diante dessa situação onde prevalecem as incertezas, e que Douglas Hurd
caracterizou como “a nova desordem internacional”, muitos analistas têm buscado antecipar o
que seria o futuro do cenário internacional descrevendo-o a partir do que chamaria de uma
leitura geometrizante da realidade.
Essa leitura tem suas linhas gerais bem conhecidas por todos nós e consiste na
ideia de um mundo tripolar aglutinado em torno de grandes espaços econômicos.
Nessa linha, os países que conseguirem uma inserção, ainda que subordinada, em
um desses blocos têm alguma perspectiva de prosperidade. Aos demais, a História reservaria
o subdesenvolvimento perpétuo.
Segundo essa visão, países como o Brasil estariam em situação crítica. País
continental e sem ter a “ventura” de concentrar todas as suas exportações em um só mercado,
sua integração em qualquer uma dessas áreas é de difícil concepção. Somos, assim, levados a
lamentar aquilo que sempre nos pareceu um ponto positivo, nosso caráter de global traders.
Ainda que reconheça que essa leitura da realidade seja sustentável sob vários
aspectos, estou convencido de que ela deve ser analisada mais criticamente, sob pena de nos
deixarmos seduzir por falsas promessas como, por exemplo, a tentativa de adesão a qualquer
preço a um dos blocos emergentes.
No contexto dessa análise crítica, é preciso lembrar que, ainda que apresentados
como processos paralelos, cada um desses espaços econômicos tem uma história e uma lógica
próprias.
Na Ásia, o que está em curso é um processo de adensamento dos fluxos de
comércio e, sobretudo, de investimento, inexistindo, até o momento, qualquer instrumento
37
formal ou marco institucional que antecipe a formação de uma área de integração econômica.
Além do mais, uma eventual Zona de Co-prosperidade Asiática teria de superar, não apenas
antigos ressentimentos históricos, mas também a própria distância geográfica que separa as
economias asiáticas em expansão.
No caso do NAFTA, temos em sua origem a preocupação em remover fontes de
atrito entre as já extremamente integradas economias dos EUA e do Canadá. Sua recente
ampliação para incluir o México pode ser entendida como um gesto de alcance político por
parte da administração Bush, estando ainda incerto qual o real comprometimento do
Presidente Clinton com essa iniciativa. Cabe ter em mente, de qualquer forma, que o déficit
comercial mexicano, de cerca de US$ 19 bilhões em 1992, cria uma situação potencialmente
perigosa para a economia daquele país no caso de uma alteração de expectativas que abale a
confiança dos investidores externos.
Concentrando-me agora na situação europeia, não hesitaria em afirmar que o
tempo da Euroforia já passou.
Os eventos que conduziram a isso são bastante conhecidos. A título de exemplo
citaria o voto contrário à Maastricht no plebiscito dinamarquês, o impacto da quarta-feira
negra sobre a operação do exchange rate-mechanism, a estreita margem de aprovação de
Maastricht no plebiscito francês, a recusa do eleitorado suíço em se associar ao processo de
integração e as exigências do parlamento alemão de que propostas que impliquem
transferência de soberania a Bruxelas devam ser aprovadas por maioria qualificada de dois
terços.
A crise do processo de integração europeia manifesta-se, na verdade, em mais de
uma vertente.
Em primeiro lugar, em uma vertente quase ideológica, é possível afirmar que o
movimento de criação de uma gigantesca estrutura burocrática baseada em Bruxelas, o que é
percebido como uma alienação da cidadania, está em franca contradição com o movimento
quase universal de redução da presença do Estado. Esse movimento equivale a uma aposta na
centralização justamente em um momento histórico que privilegia a tendência oposta.
Esse centralismo excessivo traduz-se, ainda, em uma multiplicação de normas
burocráticas que, além de criar problemas para os próprios comunitários, acaba por
representar um verdadeiro “protecionismo normativo” para os não membros.
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No campo da política industrial comunitária encontraremos atitudes em franca
contradição com os valores de mercado. Exemplos claros nesse sentido são dados pela
frequência injustificada com que a CEE recorre a ações antidumping, que se transformam,
assim, em virtual instrumento de política industrial; pelos programas de industrialização
financiados pelos Fundos de Coesão nos chamados países pobres da Comunidade ou mesmo
pelo rígido esquema de cartelização da indústria siderúrgica europeia. Ao lado desses
exemplos, vale mencionar o setor de bens de alta tecnologia, cuja sobrevivência depende, seja
de subsídios, seja de compras governamentais, e o setor de transporte aéreo que, com a
exceção da British Airways, também depende de subsídios estatais diretos.
No setor agrícola, são bem conhecidos os efeitos distorcivos da Política Agrícola
Comum sobre o comércio mundial. A um custo elevadíssimo para a comunidade, hoje em dia
mesmo o cultivo de oleaginosas é subsidiado.
Os prejuízos causados por essa política de subsídios não se refletem apenas no
comércio internacional, mas repercutem diretamente na vida cotidiana e nas estruturas sociais
de países como o Brasil. Para entender o quão negativos podem ser esses impactos, basta
pensar em seus efeitos em termos da deterioração da renda do campo, da desarticulação das
comunidades rurais, do êxodo em direção às cidades e de tantas outras mazelas sociais que
poderiam ser atenuadas se nossos produtores tivessem uma oportunidade justa de competir no
mercado internacional.
No que diz respeito à performance econômica dos doze, a Europa está assistindo a
um verdadeiro nivelamento por baixo de seus ritmos de crescimento, estando a maior parte de
seus membros atravessando uma fase recessiva de duração incerta. Os custos da reunificação
alemã estão sendo, na verdade, pagos pela Europa inteira, já que a atitude do Bundesbank de
defender o Marco via taxas de juros força os demais bancos centrais europeus a também
elevarem suas taxas de juros na defesa de suas moedas nacionais. O resultado é uma retração
geral do nível de atividades.
Na vertente política, a manifestação mais evidente de crise é a virtual
incapacidade da CEE de articular uma ação política que ponha termo à guerra na Iugoslávia.
Essa incapacidade apenas reforça a percepção, que se vinha afirmando desde a Guerra do
Golfo, de que a Europa Comunitária tem extrema dificuldade em articular e liderar uma ação
externa comum em temas de segurança. Essa dificuldade, naturalmente, assume dimensões
39
trágicas quando se manifesta em relação a um conflito que ocorre em pleno coração da
Europa. A eventualidade de que os EUA precisem envolver-se na busca de uma solução para
o problema iugoslavo é um mau augúrio para a ordem tripolar.
Diante desse quadro de problemas, que claramente tem motivado as autoridades
europeias a reconsideraram o ritmo e o escopo do processo de integração, a posição do
governo britânico sai fortalecida.
Na verdade, dentre os países da Comunidade, talvez o Reino Unido seja aquele
em que o tema da integração tenha sido mais debatido, exprimindo-se hoje em uma posição
claramente europeia, apesar de possíveis percalços na tramitação parlamentar dos
compromissos de Maastricht. A cúpula de Edimburgo, ao coroar conceitos como o de
enlargement rather than deepening e ao adotar o princípio da subsidiariedade como uma
espécie de balizador de suas decisões representou extraordinária vitória política para o
Governo de Major. Essa vitória pode ser particularmente importante nesse momento em que a
administração Clinton dá indicações de que a special relationship com a Inglaterra assumirá
novos contornos.
Após essa rápida análise crítica da visão geometrizante do futuro, espero ter
deixado clara minha convicção de que ainda é prematuro realizar apostas estratégicas de
política externa que tenham por base esse diagnóstico. Com efeito, considero que a palavrasíntese do cenário internacional continua sendo indefinição.
Essa mesma indefinição caracteriza dois atores que não podem deixar de ser
considerados: Rússia e China.
Com um PIB estimado, segundo o Economist, em US$ 140 bilhões, a Rússia
experimentou em 1992 uma assombrosa queda de 16% em seu produto, sendo que para este
ano a expectativa é de uma nova queda da ordem de 8%. Ao mesmo tempo, a inflação, que
em 1992 foi de 2000%, em janeiro deste ano superou os 50%, tornando a hiperinflação uma
ameaça concreta.
Essa performance econômica não pode deixar de ser vista como preocupante em
um país que possui cerca de 40 mil ogivas nucleares e cuja desestabilização pode levar, seja à
renovação de uma postura imperialista, seja a uma fragmentação. Basta ter em mente que não
só a Rússia, mas também a Ucrânia, o Cazaquistão e a Bielorrússia detêm arsenais nucleares
para avaliar o quão grave pode tornar-se a situação na área.
40
Ao resto do mundo, que se viu por décadas refém do “equilíbrio do terror”, é
reservada a ironia de testemunhar que o fim da Guerra Fria não pôs termo à dissuasão nuclear
e ainda trouxe consigo, a despeito do TNP, a substituição de uma superpotência por quatro
novos e instáveis membros do clube atômico.
Vale lembrar que se trata de países que não se encontram vinculados a nenhum
dos instrumentos que compõem o arcabouço institucional do desarmamento e aos quais não
tem parecido absurda a ideia de usar seus arsenais nucleares como instrumento de pressão
interna. Imaginemos uma Iugoslávia nuclearizada e teremos uma boa ideia do que pode
ocorrer na eventualidade de uma escalada de tensões na área.
A China, por sua vez, com um PIB estimado em US$ 480 bilhões, cresceu 13% no
ano passado e deve este ano crescer mais 7%, com uma inflação de 6 e de 10%
respectivamente. Mantido esse ritmo de crescimento, o que nem sempre se afigura fácil, em
poucos anos a China rivalizará com o Japão em termos da hegemonia econômica na Ásia.
Mais uma vez, não deixa de ser irônico que, em uma “nova ordem” em que se proclama a
vitória da Democracia Liberal e do livre-mercado, caiba a um país comunista ostentar uma
das mais impressionantes performances econômicas mundiais.
Ao mencionar essa nova ordem, gostaria de trazer para o debate um tema que
parece esquecido: a questão do desenvolvimento.
Identifico com clareza crescente por parte do mundo desenvolvido a tendência a
perceber a pobreza do Sul como um problema técnico, de má gerência de recursos, sendo
assim relegada a plano secundário a figura da cooperação para o desenvolvimento.
Essa relutância em politizar a questão do desenvolvimento é justificada pelo
argumento, caro ao ideário da nova ordem, de que ao mercado e somente a ele cabe presidir as
relações econômicas entre os Estados. Tem-se aqui um caso típico de contradição. Enquanto
os países industrializados têm um comportamento intervencionista em temas como
concorrências públicas, política industrial, subsídios e outros tantos, exigem dos países em
desenvolvimento – inclusive por meio de suas diretorias nos organismos financeiros
internacionais – o respeito a uma ortodoxia à la Smith.
Diante disso, ao confrontarmos o ideário com as práticas dos seus proponentes, é
inevitável perguntar-se se não será o discurso sobre a “nova ordem” uma arquitetura
41
ideológica posta a serviço dos que detêm maior influência na edificação do futuro, antes do
que uma linguagem neutra e elucidativa da presente conjuntura internacional.
A mesma inquietação resulta da observação do posicionamento dos desenvolvidos
ante os novos temas da agenda multilateral – população, direitos humanos, meio ambiente.
O mundo em desenvolvimento é convocado a participar das Conferências
temáticas que se anunciam a esse respeito muito mais no papel de detentor do passivo do que
no de gestor dos recursos que delas possam resultar. Postula-se uma solução normativa para
os efeitos do subdesenvolvimento – migrações, violação dos direitos humanos, produção de
drogas, degradação ambiental –, virtuais ameaças ao bem-estar das sociedades afluentes, e se
ignora, como matéria exclusiva das forças de mercado, a questão do desenvolvimento.
É sintomático que não se contemple em um futuro previsível qualquer rodada
negociadora sobre temas vinculados à agenda da “Década para o Desenvolvimento” como
transferência de tecnologia, deterioração dos termos de troca, dívida externa ou itens afins.
É preocupante, por outro lado, perceber que essas soluções normativas parecem
inspiradas em uma visão repressiva da realidade, como se a questão social fosse uma questão
de polícia. Exemplo mais acabado dessa tendência é a tese do autoatribuído dévoir
d’ingerence. Cabe perguntar: dévoir legitimado por quem? Na verdade, sob o manto de um
aparente Humanismo transfronteiras, o que se postula não difere muito das teses coloniais do
passado que atribuíram ao homem branco o pesado fardo de levar a civilização aos quatro
cantos do mundo.
O tema do desenvolvimento e a adequação entre discurso e prática pelos
desenvolvidos é de particular importância para os países latino-americanos.
Após anos de luta pela redemocratização e de esforços de liberalização de
economias até então extremamente fechadas surgem sinais promissores de uma retomada do
crescimento. Seria decepcionante que, justamente agora, nos descobríssemos na contramão da
História. Mais do que nunca, a América Latina pode cobrar responsabilidade do mundo
desenvolvido.
Ao aproximar-me do fim de minha exposição, não poderia deixar de manifestarme a respeito de como vejo o Brasil nesse novo cenário. Nesse âmbito, devo confessar, a
despeito de todas as dificuldades da conjuntura, meu otimismo.
42
Considero que grande parte das análises pessimistas sobre uma suposta
inviabilidade do País partilham do defeito de se deixarem cegar pelos problemas de curto
prazo. As dificuldades em reduzir a inflação geram uma espécie de bloqueio psicológico que
induz ao pessimismo.
É preciso, contudo, levantar a vista e pensar em um horizonte mais largo. Ao fazêlo, não são poucas as razões para o otimismo.
Tomemos, em primeiro lugar, a consolidação democrática. Creio que pela
primeira vez na história recente da política brasileira as dificuldades econômicas e mesmo
políticas não servem de pretexto para a tentação autoritária. A importância desse fator é
claramente percebida no cenário externo e certamente é levada em conta em análises sobre
estabilidade de longo prazo.
Com efeito, ao contrário da quase totalidade dos países que são hoje apontados
como exemplos de ajustes bem-sucedidos, o Brasil encaminha suas reformas econômicas em
contexto de pluralismo político e de liberdades civis garantidas.
Com isso, o processo de reformas estruturais pode levar um tempo maior, mas
certamente será mais estável.
De qualquer forma, se compararmos o debate nacional hoje com o que ocorria há
não muito tempo é evidente o amadurecimento da sociedade brasileira. Gradualmente se vai
cristalizando uma consciência de que a Nação precisa se organizar em torno de um projeto de
reformas que permita a retomada do desenvolvimento e a elevação do nível de vida da
população como um todo. Parecem descartadas as opções do desenvolvimento excludente.
Ressalto, ainda, que em um cenário onde não são pequenos os riscos de
fragmentação e de ressurgimento de conflitos étnicos e religiosos, a coesão nacional brasileira
e sua clara identidade nacional são importantes ativos. O Brasil é hoje um dos poucos países
que se pode orgulhar de não possuir tensões nacionalistas, conflitos étnicos ou religiosos e de
não precisar preocupar-se com ameaças externas, disputas territoriais ou conflitos regionais.
Na verdade, uma das grandes realizações do Itamaraty nos últimos anos foi transformar suas
fronteiras em fronteiras de cooperação.
Em contexto mais geral, considero nosso caráter de global traders outro
importante ativo a ser preservado. Devemos ter em conta que relações diversificadas não são
algo a se lamentar, mas são a própria garantia de uma ação externa mais independente.
43
Considero por isso que nossas relações com os grandes espaços econômicos devem ser
reforçadas sem que isso implique uma adesão, que será sempre desfavorável, a nenhum deles.
Creio que para nós diplomatas, que temos por missão defender os interesses
brasileiros no exterior, esses são alguns pontos que devem ser objeto de reflexão. Não somos
os representantes de algum pequeno país marginal ao qual a falta de opções dite uma única
opção. A complexidade de definir que rumos tomar deriva de nossa própria importância. É
esse o espírito que considero deva prevalecer em nossa ação profissional. É esse o espírito
com que tenho buscado desempenhar minhas funções como representante brasileiro junto ao
Reino Unido.
44
Crônica de uma negociação:
o capítulo financeiro da Agenda 21
durante a Conferência de
Meio Ambiente e Desenvolvimento
Rubens Ricupero
Coordenador do Grupo de Contato sobre
Finanças na UNCED
Rio de Janeiro, 3 a 14 de junho de 1992
45
A negociação do capítulo financeiro da Agenda 211 teve lances tão curiosos e pôs
à mostra traços tão característicos do atual panorama das relações internacionais que me
pareceu valer a pena registrar algumas das impressões que me ficaram, enquanto ainda frescas.
Antecedentes
Cheguei ao tema de forma tardia, quando me informaram que seria chamado ao
Rio para ajudar nos esforços a serem desenvolvidos no campo das finanças, num formato
ainda na época pouco definido, mas que sugeria alguma iniciativa paralela e informal por
meio talvez de uma reunião de ministros de uns poucos países-chaves. Antes de embarcar,
estive com o Diretor-Executivo do Global Environment Facility (GEF) no Banco Mundial e
com gente vinculada ao tema em Washington, a fim de informar-me sobre o estado da questão.
Como resultado, em parte, dessas conversas, já me ficara claro ao chegar ao Rio
que o processo de negociação teria necessariamente de enquadrar-se nos padrões habituais do
processo decisório no âmbito das Nações Unidas, com tudo o que isso implica de pesada
maquinaria, reuniões com centenas de participantes e a ênfase na intermediação dos grupos
regionais. Não havia lugar, nesse quadro, para atalhos ou fórmulas capazes de economizar
tempo ou esforço.
Também me apareceu com nitidez a extrema, quase insuperável, dificuldade da
tarefa. De todos os temas da Agenda, era este o único onde não se dispunha sequer de um
texto aceitável por todos como base das negociações, ainda que com alguns parágrafos em
aberto, como ocorria nos demais assuntos. Desde o princípio, um diálogo de surdos tinha
caracterizado a discussão financeira entre industrializados e países em desenvolvimento, com
o resultado de que os dois experientes e competentes diplomatas escolhidos sucessivamente
para coordenar o grupo antes de mim não haviam encontrado condições maduras o bastante
para aproximar as posições.
1 A “Agenda 21” é um dos principais documentos emanados da Conferência do Rio, produto de árduo trabalho
negociador ao longo dos mais de dois anos de preparação da Conferência. Em suas mais de 500 páginas, a “Agenda
21” – denominação que, sugestivamente, reporta-se ao próximo século, referência explícita a um compromisso com
o futuro – contém um plano de ação detalhado, cobrindo toda a pauta de questões ambientais e de desenvolvimento
examinadas pela Conferência do Rio. Em suma, a “Agenda 21” pode ser descrita como o braço operacional da
Conferência. Sua implementação pela comunidade internacional é pré-condição para que se implante o
desenvolvimento sustentável em escala global. Uma nova instituição do sistema das Nações Unidas, a Comissão do
Desenvolvimento Sustentável, deverá acompanhar os progressos na implementação da “Agenda 21”.
46
Diante disso, cogitou-se de início em tentar confiar ao Japão a liderança do grupo
de contato, posição para a qual seria o candidato natural por ser uma nação doadora e por
aparentar disposição mais generosa de efetuar uma contribuição financeira expressiva.
Infelizmente a ideia não atraiu os japoneses, não restando outra alternativa senão a
de recorrer ao país-anfitrião. Foi, assim, que, com bastante relutância de minha parte, o
Embaixador Tommy Koh indicou-me para coordenar o grupo de contato sobre finanças na
primeira reunião do Comitê Principal na quarta-feira, dia 3 de junho, logo após a abertura da
UNCED.
Primeiros passos
Logo de saída, procurei aconselhar-me com um grupo menor formado pelos
representantes dos grupos regionais e países afins: Grupo dos 77, China, Federação Russa,
América Latina, Caribe, África, Ásia, EUA, Japão, C.E.E., Nórdicos, CANZ (Canadá,
Austrália, Nova Zelândia). Tendo presente a reação negativa ao documento circulado pelo
precedente coordenador na última sessão do Comitê Preparatório em Nova York, com
numeração oficial da conferência, tomei o cuidado de dizer a alguns dos representantes antes
de começar a reunião que estaria disposto a preparar um novo papel, mas apenas se assim me
pedissem de público. Aberta a reunião, resumi a situação em que nos encontrávamos:
tínhamos de encerrar os trabalhos do Comitê Principal na quarta-feira, dia 10 de junho e só
dispúnhamos, a rigor, de cinco dias (estávamos em 5 de junho) para produzir um capítulo
acabado para a Agenda. Não havendo um documento básico comum, aguardava das
delegações sugestões sobre como proceder. A essa indagação, as delegações responderam
estimulando-me a preparar um papel que não fosse apresentado oficialmente como substituto
do documento L/41/Rev.1, ainda considerado pelo G-77 e China como traduzindo sua posição
embora inaceitável para os demais.
Passei a trabalhar na redação desses subsídios com a ajuda do Senhor Joseph
Wheeler, americano, competente membro do Secretariado da UNCED, ex-Diretor, por cinco
anos, da Divisão de Cooperação para o Desenvolvimento da OCDE e grande conhecedor de
tudo o que se refere à ajuda ao desenvolvimento. Completava esse pequeno grupo de redação
o Ministro Luiz Filipe Macedo Soares Guimarães, Chefe da Divisão do Meio Ambiente do
Itamaraty, e indiscutivelmente a pessoa que, em condições adversas, mais contribuiu para
47
desenvolver com inteligência e integridade as posições substantivas brasileiras na conferência.
Dos três era eu o que menos conhecia o tema, devendo-se assim a meus dois companheiros o
que possa ter havido de útil nesse trabalho.
Demos ao fruto de nosso esforço o nome modesto de “Elementos para um Papel
de Trabalho” e ao apresentá-lo tivemos o cuidado de: a) esclarecer que não se tratava de um
documento oficial da conferência, nem pretendia tomar o lugar do L/41/Rev.1; b) explicar que
o novo papel se justificava pela necessidade de recolher por escrito tudo o que ocorrera depois
do L/41/Rev.1 como, por exemplo, o resultado das discussões do Comitê Preparatório em sua
4a sessão em Nova York, a reunião do GEF em Washington em maio, os dispositivos
financeiros das Convenções sobre o Clima e Biodiversidade, a reunião de personalidades
eminentes de Tóquio, o mais recente comunicado da Comissão Bruntland em Londres, etc.
As reações ao papel, relativamente mais vivas da parte do G-77, orientaram a
elaboração de nova versão, submetida ao crivo de uma reunião plenária do grupo de contato
na tarde de sexta-feira, dia 6. Começamos a discussão pelo exame de possíveis emendas aos
primeiros parágrafos. Após cerca de duas horas, estávamos ainda na parte inicial do
documento e as emendas se multiplicavam. Faltando apenas uma hora para o término da
reunião, pareceu melhor pedir às delegações que expressassem seu pensamento sobre os
demais elementos do papel de trabalho. O convite estimulou um debate de tamanha
intensidade e duração que nos obrigou a prosseguir exclusivamente em inglês, por mais de
uma hora após a partida das intérpretes. Embora frustrante pela tendência de fazer recuar o
estágio das discussões às posições iniciais de muitos meses atrás, a experiência teve, a meus
olhos, dois méritos. O primeiro foi o de dar às delegações oportunidade para manifestar suas
tendências e emoções, fornecendo balizamento precioso para o ajuste do texto. O segundo foi
que as próprias delegações, ao perceberem a confusão que se armara, começaram a propor, ao
final, que se adotasse um formato com menor número de participantes, capaz de desenvolver
negociações efetivas com base em versão revista do texto incorporando as observações
formuladas.
Terminada a reunião e apesar de certo desânimo consequente a esse cansativo
debate, reunimo-nos, os três integrantes do núcleo de redação, e entre dezenove e trinta horas
e meia-noite reformulamos profundamente o texto, procurando, na medida do possível,
incorporar o máximo de propostas novas e de harmonizá-las entre si. O documento resultante
foi distribuído no fim da tarde de sábado para que as delegações tivessem tempo para digeri-lo
48
no domingo e realizassem as reuniões dos grupos regionais na segunda-feira, dia 8. A esta
altura, próxima do prazo final do Comitê Principal, começavam a circular sugestões, que
desestimulamos com firmeza, para confiar o assunto a um grupo restrito de altas
personalidades, o que teria certamente provocado mais dificuldades do que benefícios.
Negociação decisiva
Tendo o G-77 e os demais grupos efetuado seus encontros de coordenação no dia
8, convocou-se para o dia seguinte uma reunião dos líderes regionais, na qual teríamos de
produzir, a qualquer custo, um capítulo acabado com tão poucos pontos pendentes quanto
possível.
Organizada em sala menor e fixada para as onze horas da terça-feira, dia 9, a
reunião sofreu atraso de meia hora devido à presença de excessivo número de delegações que
foi preciso persuadir a não permanecer. Deu-se início finalmente aos trabalhos com a
participação do Japão, EUA, CANZ, Nórdicos, C.E.E. (Portugal, Países Baixos, Reino Unido,
França), Federação Russa, China e G-77 (Paquistão, presidente do grupo, mais Índia, Malásia,
Irã, Benin, Moçambique, Nigéria, Egito, Jamaica, México, Venezuela).
Saltamos os 14 parágrafos iniciais e atacamos de saída a parte mais árdua, os
meios de implementação. Perto das treze horas, sem que tivéssemos feito muito progresso, a
secretária lembrou que teríamos de deixar a sala para um encontro do grupo do Caribe.
Decidimos não ceder a sala a ninguém e só darmos por encerrada a reunião quando
terminássemos o trabalho. Tentou-se mandar trazer algo para comer, mas não foi possível;
prosseguimos assim mesmo, cada delegação dependendo de seus próprios recursos.
A atmosfera das negociações foi harmoniosa e construtiva, embora com
momentos de intensa tensão e nervosismo. Por duas vezes tivemos de suspender brevemente
as deliberações para evacuar, com alguma dificuldade, os “penetras” que ameaçavam arruinar
o formato do pequeno grupo negociador.
49
GEF
Conforme se poderia ter previsto, a parte relativa ao Global Environment Facility
(GEF) do Banco Mundial foi a mais espinhosa, demandando de quatro a cinco horas de
discussão. O resultado foi, no entanto, melhor do que se poderia esperar e representou avanço
considerável em relação ao estágio anterior. Conseguiu-se texto relativamente pormenorizado
e claro, com instruções acerca do que era preciso modificar nas regras atuais para obter um
mecanismo renovado: transparência, universalidade e equilíbrio. Só no término da negociação
empacou-se num ponto incontornável: a exigência do G-77 de mencionar de forma explícita
que não aceitava empréstimos com condicionalidades, o que provocou, em represália, a
introdução pela Delegação norte-americana, de colchetes em vários parágrafos cuja
linguagem já havia sido anteriormente negociada e aprovada.
Sem almoço nem jantar, tendo apenas interrompido por meia hora a reunião para
possibilitar aos participantes comerem rapidamente alguma coisa, a exaustão, o sono e a fome
se combinaram para finalmente produzir um espírito de compromisso. Por volta das duas
horas da manhã, os mesmos negociadores que, no início, levavam horas para discutir uma
palavra, estavam aprovando páginas em alguns minutos. O que não deixou de nos causar uma
ou outra dificuldade posterior como se verá a seguir.
Cerca das quatro horas da madrugada, no centro de convenções totalmente deserto,
chegou-se ao que parecia impossível: dar por aprovado o capítulo 33 da Agenda 21, saudado
pelos participantes com palmas de alívio e alegria. Foram cerca de dezessete horas de
negociações quase ininterruptas, uma verdadeira maratona que tornou possível preencher a
lacuna herdada dos encontros preparatórios e praticamente completar a parte essencial da
Agenda.
Questões pendentes
Ficaram pendentes três grandes temas: a data para o cumprimento do
compromisso de contribuir com 0,7% do PNB para a Ajuda Oficial ao Desenvolvimento
(ODA), o parágrafo sobre a reposição em termos reais da Associação para o Desenvolvimento
Internacional (IDA) do Banco Mundial e a seção relativa ao GEF. Duas outras questões
menores resultaram das condições um tanto confusas das horas finais dessa exaustiva
negociação: o desentendimento entre as delegações da Índia e dos EUA devido à introdução,
50
por esta última, da palavra including entre new and additional resources e on grant and
concessional terms no parágrafo 10 (o problema real era saber se todos os recursos novos e
adicionais seriam providos em bases concessionais e mediante programas oficiais de ajuda ou
se parte desses recursos poderia provir de investimentos ou fluxos privados) e uma referência
a modalidades de debt relief no contexto do Clube de Paris, adicionada por iniciativa de
Moçambique e Benin em nome dos países de menor desenvolvimento relativo (Least
Developed Countries ou LDCs) e, após aprovada no Grupo, recusada pelo Japão e EUA,
contrários a decisões ampliando as concessões feitas pelo Clube de Paris.
No dia seguinte, o Comitê Principal aprovou o capítulo em seus contornos gerais e
passamos a concentrar nosso esforço em superar as questões em aberto.
A presença no Rio naquele momento de numerosos ministros e a evidente
impossibilidade de resolver o problema do compromisso dos 0,7% do PIB no nível de altos
funcionários aconselharam a separar esse ponto dos demais e confiá-lo a consultas a serem
conduzidas pelo Ministro da Cooperação para o Desenvolvimento dos Países Baixos, Jan
Pronk. O Ministro é personalidade de grande experiência nesse campo (participa das
negociações sobre o assunto desde os anos 70) e goza de credibilidade junto aos países em
desenvolvimento (inclusive porque o seu país é dos poucos a terem já cumprido a meta dos
0,7%).
Enquanto isso, com base em consultas às delegações diretamente envolvidas, foise encontrando solução para cada um dos demais assuntos pendentes.
A separação em duas sentenças distintas das referências a new and additional
resources e on grant or concessional terms tornou desnecessária a controvertida adição da
palavra including.
Após laboriosas negociações triangulares Japão-LDCs (Moçambique, Benin)devedores asiáticos de renda média (Filipinas, Indonésia), acordou-se fórmula para mencionar
no contexto das medidas de alívio de dívida do Clube de Paris as duas categorias de
devedores, com diferença de tratamento e ênfase em favor dos primeiros.
O problema da condicionalidade teve solução relativamente simples com a
aceitação por todos da expressão consagrada na Resolução 44/2282: “sem introduzir novas
2
Documento aprovado pela ONU em fins de 1989 que estabeleceu uma espécie de roteiro para a preparação da
UNCED.
51
formas de condicionalidade”. Com isso, a delegação norte-americana concordou em retirar os
colchetes dos demais parágrafos e a seção sobre o GEF pode ser aprovada por consenso.
O problema da ida
Restava uma das questões que acabaram se revelando das mais exasperantes da
negociação: a reposição do capital da Associação de Desenvolvimento Internacional (IDA) do
Banco Mundial, cuja discussão começaria um mês após o encerramento da UNCED.
Foi essa também uma das grandes frustrações da negociação financeira em termos
de resultados. Logo no início da Conferência, o discurso de Lewis Preston, Presidente do
Banco Mundial, provocou entusiasmo em Maurice Strong e no Secretariado e junto à maioria
dos participantes. Preston propôs de maneira incisiva que a IDA fosse recapitalizada em
termos reais, o que significava elevar os recursos disponíveis dos cerca de US$ 15 bilhões
atuais a aproximadamente US$ 18 bilhões. Em adição a esse nível se criaria um Earth
Increment de US$ 5 bilhões, para os quais o Banco contribuiria com US$ 1,5 bilhões retirados
da sua própria renda.
O discurso de Preston aumentou substancialmente o nível de expectativas dos
países em desenvolvimento cujos documentos de posição falavam até então em modestas
metas de reposição para o Fundo. Converteu-se também no padrão mínimo com que passou a
trabalhar o Secretariado. Ao ver que o nosso Secretário, Joseph Wheeler, havia incorporado o
essencial do pronunciamento de Preston ao parágrafo correspondente à IDA, tive a intuição de
que isso viria a converter-se num foco de problemas e relutei em aceitar a redação proposta.
Acabei, porém, por render-me ao argumento de que, por tratar-se do braço concessional do
BIRD e destinar-se aos países mais pobres, deveríamos ao menos tentar obter o endosso à
proposta de Preston.
Infelizmente o pressentimento revelou-se realista e logo tivemos indicações de
que os doadores, em particular os EUA, que respondem por quase 22% do Fundo, e o Japão,
mas também a maioria dos demais, não estavam preparados para assumirem um compromisso
tão categórico durante a UNCED.
Na sexta-feira, dia 12 de junho, abrimos às dezoito horas uma reunião do grupo
menor de representantes regionais para tentar resolver a questão. Nessa noite, o Presidente
Collor oferecia no Palácio das Laranjeiras um jantar ao Presidente Bush, que festejava seu
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aniversário e eu estava convidado, devendo sair do Riocentro antes das vinte horas com o
Ministro Celso Lafer. Às dezenove horas era evidente que a questão se complicara e
estávamos com uma crise em desenvolvimento. Hesitei uns minutos, mas finalmente
desculpei-me pela ausência ao jantar e, em companhia dos meus companheiros de grupo,
tentamos encontrar alguma expressão que contivesse a substância da proposta de Preston sem
o emprego das palavras “termos reais”, objetada, entre outras razões, porque poderia
estabelecer um precedente para outros processos de reposição de capital. Durante horas
explorou-se talvez mais de uma dúzia de fórmulas, algumas engenhosas e aparentemente
satisfatórias. Nenhuma, porém, revelou-se capaz de satisfazer a desenvolvidos e em
desenvolvimento.
A certa altura, suspendi a sessão e convidei para uma conversa reservada em meu
escritório o Embaixador Curtis Bohlen, na Delegação norte-americana e o Embaixador
Marker, do Paquistão, Presidente do G-77 em Nova York, ambos, aliás, diplomatas de grande
integridade e competência, cujo espírito construtivo muito contribuiu para levar a termo as
negociações financeiras. Nesse contato menor, verificou-se que o impasse era efetivamente
grave, uma vez que a inaceitabilidade da expressão “termos reais” e de outros elementos da
proposta de Preston havia sido confirmada, do lado norte-americano, após consulta à Casa
Branca, sendo, por outro lado, uma exigência prioritária do Paquistão, talvez mais do que do
G-77 propriamente.
Foi esse talvez o momento em que senti maior desânimo em toda a negociação,
talvez por efeito do cansaço e sacrifício acumulados de quase duas semanas. Tendo Marker se
ausentado para comer algo e depois participar de outras reuniões, prosseguiu-se
informalmente na busca de uma solução, encontrada finalmente e de maneira surpreendente
mediante fórmula proposta pelo representante da Índia, o qual sugeriu que o parágrafo da IDA
simplesmente dissesse que se daria “especial consideração”, na negociação do replenishment,
ao discurso do Presidente do BIRD. Aceita pelo representante chinês, a fórmula tinha,
portanto, o endosso dos dois países que são os maiores recipiendários da IDA. Aprovada por
Bohlen, pelos japoneses e europeus, foi ela levada, tarde da noite, ao plenário, onde Marker,
que não pudera ser consultado (ao contrário dos seus companheiros de delegação), solicitou
algum tempo até a manhã seguinte para consultar o G-77. No sábado, tendo os paquistaneses
levantado a objeção, foi possível obter consenso em torno da fórmula de referência ao
discurso de Preston.
53
A questão dos 0,7%
Tendo-se resolvido, assim, a última questão pendente sob minha responsabilidade
direta, passei a trabalhar com o Ministro holandês Jan Pronk na busca de solução para o
espinhoso problema de tentar fixar um horizonte de tempo para o cumprimento do
compromisso de contribuição de 0,7% do PIB para a ajuda oficial ao desenvolvimento.
Desde o princípio se havia percebido que a única possibilidade de encaminhar um
problema que se arrasta há mais de vinte anos seria através do que se convencionou chamar
do menu approach. Em outras palavras, tratava-se de estabelecer diferenciação entre as
situações particulares das várias categorias de países (em termos do compromisso histórico
das Nações Unidas) e dar a cada uma o tratamento correspondente.
Assim, no caso dos Estados Unidos (e assimilados), que alegam não haver jamais
assumido o compromisso, a fórmula encontrada se desdobrava em dois elementos. O primeiro
era evitar, na sentença geral, falar em “afirmar” o compromisso em aditamento à
“reafirmação” desse compromisso pelos que o haviam assumido. O segundo elemento foi
incluir uma sentença cobrindo essa classe de países na qual se diria que “outros países
desenvolvidos” (“em consonância com seu apoio aos esforços de reforma em países em
desenvolvimento”, frase da Declaração de Cartagena da UNCTAD, acrescentada pela
delegação norte-americana) “concordam em realizar seu melhor esforço para aumentar seu
nível de ODA”.
Os ex-países socialistas e os exportadores de petróleo foram contemplados com a
seguinte sentença: “Outros países, inclusive os que atravessam o processo de transição para
uma economia de mercado, poderão aumentar voluntariamente as contribuições dos países
desenvolvidos”. Como se verá na parte relativa às posições negociadoras de grupos, essa
fórmula foi também um item controvertido que ameaçou até o fim impedir um consenso.
Os problemas maiores se concentraram, porém, em torno da situação dos países
que aceitaram o compromisso, mas não atingiram a meta.
Os raros países cumpridores do objetivo foram assinalados como merecedores de
elogio e “encorajados a continuar a contribuir ao esforço comum para tornar disponíveis os
substanciais recursos adicionais que têm de ser mobilizados”.
54
Nas primeiras versões que propusemos para o capítulo 33 oferecíamos três
opções: a) o ano 2000; b) tão cedo como possível; c) no ano 2000 ou tão cedo como possível
após essa data. Após negociações que duraram até a noite anterior ao encerramento da
UNCED, adotou-se como regra geral que “os países desenvolvidos reafirmam seus
compromissos de alcançar a meta aceita pelas Nações Unidas de 0,7 por cento do PNB em
relação à ODA e, na medida em que ainda não atingiram aquele objetivo, concordam em
aumentar seus programas de ajuda de forma a alcançar a meta tão cedo como possível e a
assegurar uma pronta e efetiva implementação da Agenda 21”. Indicou-se, em seguida, que
“alguns países aceitam ou já aceitaram atingir a meta no ano 2000”. A novidade, contudo, foi
incluir a decisão de que “a Comissão de Desenvolvimento Sustentável irá fiscalizar e
acompanhar regularmente o progresso em direção a essa meta”. “Esse processo de revisão”,
continua o parágrafo, “deverá combinar sistematicamente o monitoramento da implementação
da Agenda 21 com uma revisão dos recursos financeiros disponíveis”.
Em conexão com o artigo 21 do capítulo, que já fixara a necessidade de revisão e
monitoramento dos recursos financeiros em vinculação com a implementação da Agenda, o
parágrafo sobre a ODA estabeleceu pela primeira vez um mecanismo das Nações Unidas (a
Comissão de Desenvolvimento Sustentável) com autoridade de acompanhar e fiscalizar os
fluxos de Ajuda Oficial ao Desenvolvimento. Como se sabe, até agora, os dados relativos a
esses fluxos eram apenas fornecidos pelos doadores ao Comitê DAC da OCDE.
Em sua versão final, as fórmulas aprovadas evoluíram a partir de propostas de um
pequeno grupo de redação coordenado pelo Ministro Klaus Töpfer, da Alemanha. Ainda
tivemos de esperar algumas horas até que o laborioso processo interno de consultas entre os
membros da OCDE se completasse. Segundo os comentários ouvidos na ocasião, um dos
problemas havia sido suscitado pela dificuldade de dar o devido crédito aos países que já
haviam aceitado cumprir o compromisso até o ano 2000 no passado (Países Baixos,
Dinamarca), ao mesmo tempo estabelecendo uma distinção em relação aos que só o haviam
aceitado naquele momento (França). Finalmente, perto das onze horas da noite, conseguiu-se
bater o martelo e aprovar todo o capítulo financeiro (33) da Agenda, não sem que antes a
Arábia Saudita e o Kuwait manifestassem reservas aos parágrafos referentes às expectativas
acerca de sua eventual contribuição como doadores, parte de sua estratégia geral de tentar
reabrir o consenso geral sobre a Agenda tão penosamente alcançado (devido à sua oposição à
ênfase posta pelo documento na necessidade de reduzir o consumo de combustíveis fósseis).
55
As posições em confronto
No grupo de finanças não se repetiu a polarização de um contra todos, entre os
Estados Unidos e os demais, que caracterizou a questão da biodiversidade ou a dos limites
para as emissões de gases na Convenção sobre o Clima. Como era de se esperar, dada a
natureza da discussão financeira e ao papel central ocupado pelo velho tema do compromisso
dos 0,7%, os participantes se dividiram de maneira geral de acordo com a tradicional linha de
demarcação Norte-Sul.
Essa oposição comportou, ao mesmo tempo, importantes exceções e matizes
significativos. Assim, os Nórdicos, que já cumpriram o compromisso (ou estão perto disso),
foram muitas vezes um grupo de pressão mais insistente e, quase diria, intransigente do que o
G-77 na exigência de que os demais industrializados alcançassem a meta em prazo fixo.
Deram também uma ênfase especial e compreensível à necessidade de uma distribuição mais
equitativa do fardo entre as nações ricas.
Já os antigos socialistas, liderados pela Federação Russa, tinham um objetivo
maior, quase único: consagrar sua categoria de países em transição para uma economia de
mercado e evitar que lhes fossem automaticamente aplicados padrões de expectativas de
contribuições para a ODA semelhantes aos dos industrializados. Encontraram, para isso, de
parte do G-77 e da China, resistência que só no final cedeu ao compromisso3.
Os exportadores de petróleo, já preocupados com a premissa da Agenda 21 em
favor de maior economia energética, tentaram o tempo todo enfraquecer ainda mais a ideia de
que sua situação de relativa prosperidade lhes criava o dever de voluntariamente avançar
recursos próprios para aumentar a contribuição dos desenvolvidos.
Para o G-77 como um todo, o mais importante era consolidar o avanço conceitual
de que a Agenda só poderá ser implementada se houver recursos novos e adicionais de forma
substancial. Daí a luta por um “fundo verde”, pelo compromisso de que a meta de 0,7% seja
cumprida em data certa, a exigência de reposição da IDA em termos reais, além do
Incremento da Terra, enfim, de tudo que pudesse estabelecer um vínculo entre meio ambiente
e desenvolvimento.
3
A relutância se devia ao receio de consagrar uma nova categoria que viria rivalizar com os países em
desenvolvimento em matéria de tratamento mais favorável, o que parecia excessivo aos opositores, dado o caráter
provavelmente transitório das dificuldades dos ex-socialistas.
56
Dentre os desenvolvidos, os mais relutantes em aceitar a data proposta para a
ODA foram países que enfrentam dificuldades e limitações orçamentárias graves (Canadá,
Reino Unido) ou que necessitariam aumentar significativamente e a curto ou médio prazo
seus programas de ajuda a fim de acompanhar um PNB em expansão (Japão).
A C.E.E. viveu uma problemática à parte. Suas dificuldades para lograr
internamente posições conjuntas marcaram muitos instantes decisivos da negociação. Num
desses momentos, quando todos os participantes haviam sido chamados a expressar sua
reação a determinada formulação, o representante comunitário (Portugal), após confessar não
existirem definições da C.E.E. naquela matéria, sugeriu que negociássemos primeiramente
entre nós uma redação a ser depois proposta à consideração da Comunidade. Não me contive
e observei que aceitar tal abordagem seria conferir à C.E.E. o privilégio de ser o único
participante da negociação que não seria obrigado por ela, de ser, em outras palavras,
participante e juiz ao mesmo tempo. A Comunidade, tão ciosa em se fazer representar em
todas as organizações e foros internacionais como uma unidade, pretendendo ter uma só voz,
acabava se comportando na UNCED como mero grupo geográfico do tipo do grupo latinoamericano ou asiático, os quais não têm obviamente nenhuma pretensão a posturas comuns.
Caso a C.E.E. não pudesse apresentar posições comuns, comentei, melhor seria que ela se
fizesse representar pelos doze.
Ouvi depois de outro delegado comunitário que se havia cometido um erro ao
pretender a C.E.E. operar como entidade única em matéria na qual a Comissão de Bruxelas
não tem mandato (ao contrário da área do comércio, por exemplo, reservada à Comissão pelo
Tratado de Roma). Além disso, sendo muito amplo o leque de dispersão das situações reais
dos países comunitários em matéria de cumprimento da meta de 0,7% da ODA (de 0,7% a
0,15%), qualquer tentativa de unificar posições estava fadada ao insucesso. No fundo, à
imagem da Santíssima Trindade, a Comunidade quis ser doze personalidades diferentes numa
só e impossível unidade.
Balanço final
Em todas as listas dos fracassos da UNCED, a fraqueza dos compromissos
financeiros comparece de maneira proeminente ao lado da rejeição de metas obrigatórias para
a redução de emissão de gases na Convenção – Quadro sobre Mudança do Clima, da recusa
57
americana de assinar a Convenção de Biodiversidade ou da diluição da Declaração de
Princípios sobre Florestas.
Maurice Strong, por exemplo, lamentou a ausência de modalidades automáticas
de geração de fundos por meio de fórmulas inovadoras como as permissões comercializáveis
(tradable permits, que figuram, contudo, no capítulo, mas como possibilidade eventual e
futura) e sentenciou que embora tivesse havido acordo em finanças, esses acordos não tinham
sido acompanhados de compromissos suficientes.
Após descrever a conferência como um “jogo de oportunidades perdidas”, o
Financial Times acreditou ter posto o dedo na essência do ocorrido: o mundo industrializado e
o mundo em desenvolvimento fracassaram novamente em encontrar uma base para
cooperação.
Em artigo de Edward Mortimer de 12 de junho, o jornal detectou na reunião de
cúpula da UNCED um “cheiro dos anos 70”, pela reaparição do Grupo dos 77 como
articulador eficaz no que se converteu num típico e indisfarçável cotejo Norte-Sul.
Mortimer resume bem a questão: “Pode o recente interesse do Norte no meio
ambiente global e especialmente na preservação de recursos naturais, com as florestas
tropicais localizadas no Sul, fornecer uma base alternativa” (em relação ao petróleo da OPEP
dos anos 70) “para uma barganha?” E elabora: “Os Governos do Norte aceitaram que o Sul
não poderia levar a sério as demandas ecológicas a não ser que sua própria agenda de
desenvolvimento econômico fosse atendida. Os países tropicais julgaram que tinham
finalmente algo que o Norte queria e pelo qual estava disposto a pagar”. Conclui, a meu ver
um tanto precipitadamente: “No entanto, está claro agora que nenhuma barganha real foi
fechada no Rio”.
A palavra-chave aqui é “real”. Se com isto se quer dizer que faltaram ofertas
concretas, tangíveis, de recursos financeiros em nível substancial, é difícil discordar. Se a
intenção, porém, é negar que a conferência tenha criado o quadro de referência para um novo
tipo de cooperação internacional que pode conduzir justamente à transação indicada por
Mortimer, é fácil demonstrar o contrário.
Para chegar a um julgamento equilibrado, creio que os resultados financeiros da
UNCED devem ser avaliados de acordo com quatro aspectos principais: o processo
58
negociador, os recursos comprometidos, o sistema financeiro, o condicionamento dos
programas ambientais à disponibilidade de recursos.
Processo negociador
Desse ponto de vista, a reunião representou um avanço expressivo na prática
internacional. Ao falar no “cheiro dos anos 70”, o Financial Times intuiu um fato que, até
agora, passara despercebido: a UNCED realizou de forma parcial e um tanto dissimulada a
aspiração das “negociações globais” recusadas em Cancún no início da década de 80 pelos
países industrializados, no gesto que simbolicamente pingava o ponto final do diálogo NorteSul dos anos 70.
Como há de se recordar, a expressão continha dois elementos: a necessidade de
negociar globalmente todos os aspectos interligados da ordem econômica mundial (moeda,
finanças, comércio, ajuda) e a exigência de que o locus da negociação fosse a AssembleiaGeral das Nações Unidas, em processo decisório democrático e igualitário (e não nas
instituições de Bretton Woods, de acordo com o voto ponderado característico dessas
organizações).
Foi esse ideal das negociações globais que afinal prevaleceu no Rio de Janeiro, é
claro que sem a abrangência de todos os temas da agenda da década de 70 (não se negociou
moeda ou comércio, por exemplo), mas cobrindo ainda assim um território vastíssimo (basta,
para provar o ponto, percorrer com o olhar o índice das matérias da Agenda 21).
Não admira, portanto, que fossem gigantescas as dificuldades em negociações
onde a diferença de interesses concretos era intensificada pelas divergências ideológicas
acerca da maneira de abordar a construção da ordem econômica. Apesar do menor poder de
barganha dos países em desenvolvimento, o processo “onusiano” lhes permitiu uma real
participação num jogo negociador onde os industrializados tiveram de fazer concessões
apreciáveis. Nesse sentido, o “consenso do Rio” esteve longe do chamado “consenso de
Washington” no exclusivismo da visão deste último de um caminho único para o
desenvolvimento tal como ditado pelo FMI e o Banco Mundial.
Aliás, foi interessante que, nesse primeiro teste de edificação de uma nova ordem,
a postura mais afirmativa da Europa e do Japão, de um lado, e as reticências que
enfraqueceram o poder de liderança dos EUA, do outro, abriram espaço para maior pluralismo
59
e diversificação no interior do campo dos desenvolvidos. Antes da Conferência, comentou-se
muito na imprensa internacional que a UNCED seria irrelevante, pois lhe caberia apenas
“carimbar” decisões já alcançadas nos encontros preparatórios. Ao contrário, o que se viu no
Rio de Janeiro foi uma verdadeira e dura negociação sobre todos os temas centrais, indicando,
contra as previsões mais derrotistas, que existe algum espaço para tentar melhorar a presente
“desordem estabelecida”.
Recursos comprometidos
À primeira vista, as promessas firmes ficaram muito aquém dos 5 a 10 bilhões de
dólares anuais esperados (metade disso talvez), para não falar dos 125 bilhões estimados pelo
Secretariado da UNCED como necessários.
Nesse particular, contudo, seria prematuro fechar as contas. Não só porque ainda
não se dispõem dos resultados da reposição da IDA ou da ampliação do GEF, ou mesmo da
criação de “janelas de meio ambiente” nos bancos regionais. Faltam, sobretudo, indicações a
respeito de como os doadores pretendem dar cumprimento a um dos mais relevantes
dispositivos incluídos no capítulo financeiro, o parágrafo 21, pelo qual “os países
desenvolvidos e outros em condições de assim proceder deverão assumir compromissos
financeiros iniciais para dar efeito às decisões da Conferência. Eles deverão participar tais
planos e compromissos à Assembleia-Geral das Nações Unidas no outono de 1992 em sua 47a
sessão”.
Não é possível também quantificar, a esta altura, o aumento de recursos que
certamente resultará do compromisso relativo à Ajuda Oficial para o Desenvolvimento (ODA).
Embora o prazo do ano 2000 para atingir a meta dos 0,7% do PNB não tenha sido retido como
obrigatório, ele ficou como termo de referência que será sem dúvida invocado agora que se
dispõe, pela primeira vez, de um mecanismo de monitoramento não exclusivamente
controlado pelos doadores (como é o comitê DAC da OCDE).
Sistema financeiro
Muitos se decepcionaram por não ter sido possível criar-se o chamado “fundo
verde” (embora nada no capítulo impeça que dele se cogite no futuro). Em vez de um fundo
60
único, a conferência montou um verdadeiro sistema financeiro, um conjunto de elementos
inter-relacionados com o objetivo comum de custear os programas ambientais.
A estrutura desse sistema, tal como descrita no parágrafo 16, mostra bem que a
extrema complexidade de desafios ambientais de natureza e escopo diferentes (globais,
regionais, nacionais, provinciais, locais) exige um sistema flexível composto de mecanismos
de financiamento diversificados (IDA, bancos regionais, o GEF e outros fundos multilaterais,
agências especializadas da ONU, instituições de cooperação técnica, os programas bilaterais
responsáveis por quase dois terços da ajuda, alívio de dívida, fundos privados, investimentos,
financiamento inovador como os tradable permits, etc.).
Alguns desses fundos já existem e operam (o GEF, por exemplo); outros serão
criados (as “janelas ambientais” dos bancos regionais, o Earth Increment a ser acrescentado à
IDA). Uma das contribuições principais da UNCED foi justamente imprimir a esse sistema
diversificado e difuso uma unidade básica proveniente, de um lado, de um minucioso plano de
ação consubstanciado na Agenda 21 (com diferentes capítulos dedicados às áreas prioritárias)
e, do outro, as normas que deverão orientar a operação financeira dos mecanismos que, em
conjunto, podem ser considerados como uma espécie de “super-fundo”.
“Linkage” finanças – meio ambiente
A barganha que, segundo o jornalista do Financial Times, teria ficado fora do
alcance dos negociadores do Rio está na verdade expressa em duas passagens da Agenda 21.
A primeira, em termos gerais, no parágrafo 23, o qual, após dizer que “a revisão e o
monitoramento do financiamento da Agenda 21 são essenciais”, prossegue: “Será importante
revisar em base regular a adequação de fundos e mecanismos, inclusive dos esforços para
atingir objetivos acordados deste capítulo incluindo metas quando aplicáveis”. De maneira
mais específica, no parágrafo 15, logo em seguida à reafirmação da meta de 0,7% do PNB em
relação à ODA, se afirma: “Foi decidido que a Comissão de Desenvolvimento Sustentável
revisaria e efetuaria o monitoramento com regularidade do progresso em direção a essa meta.
Esse processo de revisão deverá combinar sistematicamente o monitoramento da
implementação da Agenda 21 com a revisão dos recursos financeiros disponíveis”.
A Comissão de Desenvolvimento Sustentável, a ser criada na próxima
Assembleia-Geral de acordo com o modelo da Comissão de Direitos Humanos, terá, ao
61
contrário desta última, um mandato onde, de forma simétrica, se aferirá a execução dos
compromissos da Agenda passo a passo com as medidas tomadas pelos doadores para
honrarem suas obrigações financeiras. A analogia com a questão dos Direitos Humanos só é
válida de forma parcial. Nesse terreno, os países em desenvolvimento reconhecem que as
disparidades de nível econômico-social não podem servir de escusa para a violação desses
direitos. Sempre buscaram, porém, demonstrar que existe, sem embargo, uma relação entre o
nível de desenvolvimento e a qualidade da implementação dos Direitos Humanos (nível de
conscientização, recursos para policiamento e combate a violações, para a administração
judiciária e penas, etc.). Os países industrializados resistem a admitir a existência dessa
relação e a aceitar, por exemplo, a legitimidade de um “direito ao desenvolvimento”, dentre os
Direitos Humanos.
Um aspecto do vínculo entre meio ambiente e desenvolvimento que interessa
particularmente a um país como o Brasil é o seu potencial para ajudar-nos a contrabalançar
algumas das tendências negativas do cenário mundial dos últimos anos e de fornecer-nos um
trunfo capaz de valorizar nossa atuação. É um fato que certas características da evolução
recente das relações internacionais tenderam a desvalorizar, ou mesmo marginalizar, nações
como a nossa. Foi esse, por exemplo, o caso da redução do grau de pluralismo consequente à
concentração, quase de forma unipolar, do poder estratégico-militar após a superação do
velho confronto da Guerra Fria. De igual maneira atuaram tendências como a de impor rígidos
limites à exportação de equipamentos e tecnologias sensíveis, o favorecimento à criação de
blocos regionais de comércio menos atrativos para nós devido à estrutura mais diversificada
de nosso comércio exterior, o aparecimento de competidores asiáticos capazes de exportar
produtos de alta tecnologia com a perda de importância relativa de fatores como a mão de
obra barata ou a abundância de recursos naturais.
Dentre as mudanças recentes do panorama internacional, uma das poucas que
trabalham em nosso favor é a súbita emergência de um tema como o ambiental onde o Brasil,
ao lado de sérias vulnerabilidades (a repercussão do desmatamento predatório da Amazônia),
dispõe de cartas preciosas como o fato de deter o maior patrimônio de biodiversidade, de ser o
dono da maior floresta tropical existente. Num cenário onde a cooperação internacional tende
a se concentrar em temas de interesse direto dos doadores (combate às drogas, por exemplo),
a aspiração por um meio ambiente global mais saudável pode servir para ajudar a canalizar
para projetos brasileiros recursos apreciáveis e cada vez mais escassos.
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É o que já se viu como parte da preparação da UNCED e durante sua realização,
mediante a concessão dos fundos para a fase inicial do Programa-piloto para a Amazônia
pelos países do G-7, o anúncio pelo BID de recursos para projetos de despoluição (como o da
Baía de Guanabara, do rio Tietê, do Guaíba), os entendimentos para a obtenção de recursos
japoneses, etc.
Para isso será certamente necessário empreender um sério esforço interno a fim de
demonstrar que somos capazes de implementar com eficiência uma política nacional de meio
ambiente que nos torne credores de credibilidade internacional. A prova de que isso não é de
forma alguma impossível foi dada pela própria realização da UNCED. Ao oferecer-se como
sede da conferência, o Brasil converteu uma vulnerabilidade (sua anterior situação de vilão da
comunidade ambientalista mundial devido à devastação da Amazônia) num poderoso trunfo
de cooperação internacional. Tendo-se logrado êxito no terreno diplomático, falta agora
estendê-lo à implementação interna da política de meio ambiente, como condição para
consolidar e desenvolver a promissora cooperação internacional que começou a produzir
frutos.
No fundo, os exemplos de projetos brasileiros, que vimos acima, constituíram já
uma primeira aplicação, na prática, do que foi o objetivo essencial da conferência: estabelecer,
de maneira clara e equitativa, um vínculo direto entre a implementação da Agenda, de um
lado, e o provimento de recursos financeiros, do outro, caras inseparáveis da mesma moeda.
Com todas as deficiências e sem negar que, como tudo que é humano, a UNCED
só realizou em parte sua promessa, não me parece exagero defender que, ao amarrar o meio
ambiente ao financiamento, as negociações financeiras deram cumprimento através de um
compromisso contratual ao programa esboçado no título da Cúpula da Terra: Conferência das
Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento.
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