UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS
FACULDADE DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS
DEPARTAMENTO DE PSICOLOGIA
Adoção homoparental e diferença sexual
Érica Silva do Espírito Santo
Belo Horizonte
2014
Érica Silva do Espírito Santo
Adoção homoparental e diferença sexual
Dissertação apresentada ao Programa de PósGraduação em Psicologia da Faculdade de Filosofia
e Ciências Humanas da Universidade Federal de
Minas Gerais, como requisito parcial para obtenção
do título de Mestre em Psicologia.
Área de concentração em Estudos Psicanalíticos.
Orientador: Guilherme Massara Rocha
Belo Horizonte
2014
Érica Silva do Espírito Santo
Adoção homoparental e diferença sexual
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Faculdade de
Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal de Minas Gerais, sob orientação do
Prof. Dr. Guilherme Massara Rocha, como requisito parcial para obtenção do título de Mestre
em Psicologia.
Aprovado em _______________________, pela Banca Examinadora composta por
_________________________________________________________________
Prof. Dr. Guilherme Massara Rocha (UFMG) / Orientador
_________________________________________________________________
Prof. Dr. Edmundo Narracini Gasparini (UFSJ)
_________________________________________________________________
Prof. Dr. Paulo César de Carvalho Ribeiro (UFMG)
“They say an end can be a start.”
Dizem que o fim pode ser um começo.
Um recomeço.
Um renascimento.
Dedico esse trabalho a todas as famílias que renascem e aos Renatos!
Agradecimentos
Agradeço ao meu orientador Guilherme Massara Rocha, pela orientação, pela inspiração, pelo
carinho e motivação para realizar este trabalho. E, principalmente, por me possibilitar
desenvolver essa pesquisa sobre esse tema, tão importante e delicado, em um espaço tão
privilegiado e querido quanto é a FAFICH.
À CAPES e ao Programa de Pós-Graduação da UFMG.
Agradeço a todos da COFA-Cognac, que me adotaram e me permitiram entrar no mundo da
adoção. Especialmente ao Jean-Marie Bremaud e Marisa Maia Drumond. E a todas as
famílias adotivas com as quais tive oportunidade de trabalhar.
Aos professores do departamento de psicologia da UFMG, especialmente ao Paulo Ribeiro,
Antônio Teixeira e Fábio Belo. Cada um a seu modo, me incentivou a fazer esta pesquisa.
Aos membros da banca de qualificação, Edmundo Gasparini e Paulo César de Carvalho
Ribeiro, pela leitura e colaborações.
Agradeço à Riva Satovchi Shwartzman e Ana Cecília Carvalho, eternas professoras, mentoras
intelectuais e inspirações na minha vida, por me ajudarem a enxergar meu próprio caminho,
meus próprios pés e caminhar.
Agradeço aos membros, colegas e amigos do NPPI (Núcleo de Psicanálise e Práticas
Institucionais) e da ASPEMED.
Agradeço aos colegas queridos dessa turma de mestrado e aos amigos queridos da psicologia.
Especialmente aos Ridículos, que tornaram o percurso bem mais divertido.
Agradecimento especial à Rosana Silva do Espírito Santo, José Sinval do Espírito Santo,
Rafaela Rodrigues, Marina França, Luciana Torquato, Glauco Batista e Marcus Vinícius
Silva, pela ajuda, pelas leituras e pitacos preciosos!
Agradeço ao apoio da minha família que consegue ser ao mesmo tempo biológica, adotiva e
recomposta, porque o que nos uniu inicialmente foram os laços de sangue, mas o que nos faz
permanecer unidos é nos adotarmos todos os dias: mamãe, Dani(s), Poli e Val. Ao meu
querido mascotinho Marcello, que chegou no meio desse furacão para fazer tudo valer ainda
mais a pena.
Ao meu pai e sua nova família, que recentemente percebi que também pode ser minha.
Agradeço a cada amiga e amigo, queridos meus: antigos e recém-chegados!
A cada leitor desse trabalho, agradeço. Há um pedaço meu aqui.
Ê, vida, vida, que amor, brincadeira, à vera
Eles amaram de qualquer maneira, à vera
Qualquer maneira de amor vale a pena
Qualquer maneira de amor vale amar.*
Resumo
A família e suas transformações, assim como as conquistas de direitos pelos
homossexuais, trouxe à tona uma questão polêmica: a homoparentalidade. O reconhecimento
dado às famílias homoparentais de serem vistas como arranjos familiares dotados de plenos
direitos é o que possibilitou esse trabalho já que, dessa maneira, foi concedida a eles a
possibilidade de adotar crianças. Partindo dessa nova realidade, nos perguntamos o que a
psicanálise poderia esclarecer sobre esse tema. Assim, esse trabalho consiste em quatro
etapas: considerações sobre adoção, família e homossexualidade; revisão de alguns textos
freudianos que tratam sobre diferença sexual, a fim de esclarecer como a psicanálise clássica
tratou sobre a noção dessa diferença; introdução a Robert Stoller e constituição da identidade
de gênero, buscando um contraponto às ideias psicanalíticas clássicas; finalmente, revisão de
pesquisas empíricas sobre homoparentalidade e considerações sobre a adoção homoparental.
A família homoparental já existia, a novidade é o reconhecimento legal e a possibilidade de
garantia de direitos equivalente à família tida como tradicional heterossexual. O sexo
anatômico dos pais vem à tona e fica evidente a necessidade de desnaturalizar a relação entre
funções parentais e sexo dos pais. Essas funções paternas e maternas podem ser plenamente
exercidas independente do sexo e gênero de quem as realiza. A família homoparental, assim
como qualquer família, não tem seu sucesso ou fracasso garantido a priori. A família adotiva
homoparental é uma realidade e mostra que essa configuração, embora reconhecida
legalmente apenas recentemente, é um dos diversos avatares através dos quais a família se
apresenta.
Palavras chave: Homoparentalidade, Diferença sexual, Adoção, Adoção Internacional,
Psicanálise.
Abstract
The family and its transformations, as well as the rights conquered/achieved by the
homosexuals/gays, brought to light/brought up a controversial question: the homoparentality.
The possibility to acknowledge the homoparental family as a fully powered familiar
formation and, from that, the adoption of children be granted is the core of this piece of work.
Starting from this new reality, a question should be posed on what psychoanalysis could
clarify on the topic. Thus, this piece of work consists of four steps: general considerations
about adoption, family and homoparentality; some freudian texts readings that deal with
sexual difference in order to clarify how classic psychoanalysis viewed the notion of such
difference; introduction to Robert Stoller and gender identity constitutions, in a way so as to
seek a counterpoint to classic psychoanalytical ideas; finally, study of empirical research on
homoparentality and some considerations on homoparental adoption. The homoparental
family has existed, the new aspect is the legal acknowledgment and the possibility of ensuring
equivalent rights as the ones assured to heterosexual traditional family. The parents anatomic
sex comes to light and the need to denaturalize the relation among parental functions and
parents sex becomes evident in the sense that both motherly and fatherly functions can be
fully performed regardless of either sex or gender from whom performs such functions. The
homoparental family, as well as any other family, has no a priori success or failure guarantee.
The adoptive homoparental family is a reality and it shows that such family possibility,
although very recently acknowledged, is one of the avatars through which the family is
introduced.
Key words: Homoparentality, Sexual Difference, Adoption, International Adoption,
Psychoanalysis.
Résumé
La famille et ses transformations, ainsi que les conquêtes de droits par les
homosexuels, ont soulevé une question polémique: l’homoparentalité. La possibilité de
reconnaître la famille homoparentale comme un arrangement familial et, à partir de cela, la
concession à cette configuration familiale de l'adoption d'enfants sont le moteur de ce travail.
À partir de cette nouvelle réalité, nous nous demandons ce que la psychanalyse pourrait
éclaircir sur ce thème. Ainsi, ce travail se compose de quatre étapes: des considérations sur
l'adoption, la famille et l'homosexualité ; une révision de quelques textes freudiens qui
abordent la différence sexuelle, dans le but de clarifier la façon dont la psychanalyse classique
a traité la notion de cette différence; une introduction à Robert Stoller et à la constitution de
l'identité de genre, en cherchant un contrepoint aux idées psychanalytiques classiques ; et,
finalement, une révision des recherches empiriques sur l’homoparentalité et des
considérations sur l’adoption homoparentale. La famille homoparentale existait déjà, la
nouveauté est la reconnaissance légale et la possibilité de garantie de droits équivalents à ceux
de la famille hétérosexuelle traditionnelle. Le sexe anatomique des parents est mis en
évidence et surgit la nécessité de dénaturaliser le lien entre la fonction et le sexe des parents,
dans le sens où ces fonctions paternelles et maternelles peuvent être pleinement exercées
indépendamment du sexe et du genre de la personne qui réalise ces fonctions. La famille
homoparentale, comme toute famille, n’a pas son succès ou échec garantit a priori. La famille
adoptive homoparentale est une réalité et montre que cette possibilité de famille, bien que
reconnue seulement récemment, est l'un des nombreux avatars à travers laquelle la famille se
présente.
Mots-clés: Homoparentalité, Différence sexuelle, Adoption, Adoption Internacional,
Psychanalyse.
Sumário
Introdução ............................................................................................................................... 11
Capítulo 1 Família, Adoção e Homoparentalidade ............................................................. 14
1.1 Conceito de família e novas configurações ........................................................... 14
1.2 Adoção, nova lei brasileira e a criança no Brasil .................................................... 17
1.3 O caminho da homoparentalidade .......................................................................... 19
1.3.1 Homossexualismo x Homossexualidade.................................................. 21
1.3.2 Conjugalidade e Parentalidade ................................................................. 23
1.3.3 Discussões do PaCS: da tolerância ao reconhecimento ........................... 24
1.3.4 Além do PaCS: o “mariage pour tous” e o casamento igualitário no
Brasil ................................................................................................................. 25
1.4 Tabu da homossexualidade e a família invisível: a novidade é o
reconhecimento ............................................................................................................ 26
1.4.1 O tabu da homossexualidade e a família invisível .................................. 26
1.4.2 A regra oral ou regra não escrita ............................................................. 29
1.4.3 A família invisível de Ana Freud ............................................................ 30
Capítulo 2 Psicanálise e a Diferença Sexual ........................................................................ 33
2.1 Inventando o sexo .................................................................................................. 33
2.2 A diferença sexual em Freud ................................................................................. 36
2.2.1 A organização genital infantil: o genital é o falo .................................... 37
2.2.2 A dissolução do complexo de Édipo ....................................................... 41
2.2.3 Algumas consequências psíquicas da diferença anatômica entre os
sexos ................................................................................................................. 44
2.2.4 Sobre a sexualidade feminina e feminilidade: os artigos dos anos
1930 .................................................................................................................. 47
2.2.4.1 Sobre a sexualidade feminina de 1931..................................................47
2.2.4.2 Conferência sobre feminilidade de 1933 ............................................. 51
2.3 Discussão ................................................................................................................ 55
Capítulo 3 Stoller e a Identidade de Gênero ....................................................................... 58
3.1 Sobre o termo identidade ....................................................................................... 58
3.1.1 Notas sobre a identificação ..................................................................... 59
3.2 Robert Stoller e a identidade de gênero ................................................................. 62
3.2.1 Masculinidade e feminilidade: apresentação de gênero .......................... 63
3.2.2 Origens da masculinidade e função materna (ou papel da mãe) ............. 66
3.2.3 Identidade de gênero nuclear .................................................................. 68
3.2.4 Teoria de gênero clássica e teoria de gênero, segundo Stoller ............... 69
3.2.5 A conquista da masculinidade e a protofeminilidade ............................. 70
3.2.6 Outros autores comentam Stoller ............................................................ 73
3.2.7 Feminilidade para Freud, feminilidade para Stoller ............................... 74
3.3 Discussão ............................................................................................................... 76
Capítulo 4 Sobre Homoparentalidade ................................................................................. 79
4.1 Zambrano e a grande pesquisa brasileira ............................................................... 79
4.1.1 A pesquisa empírica de Zambrano .......................................................... 81
4.2 Adoção por casais do mesmo sexo: um estudo belga ............................................ 83
4.3 Um estudo francês feito com 58 crianças criadas por pais homossexuais ............ 84
4.4 Adoção tardia, internacional e homoparental ........................................................ 85
4.4.1 Da separação à adoção ............................................................................ 87
4.4.2 Notas sobre adoção: a fase preparatória, o primeiro encontro e o
estágio de convivência ..................................................................................... 88
4.4.3 O nascimento no primeiro encontro, momento fundador da filiação
........................................................................................................................... 90
4.4.4 O decorrer do estágio de convivência .................................................... 91
Conclusões finais .................................................................................................................... 94
Referências ........................................................................................................................... 101
Introdução
No início de 2012, começamos a dar corpo a um projeto de mestrado cujo
interesse principal era discutir teoricamente questões levantadas a partir da configuração
homoparental de uma família adotiva. Nossa perspectiva de estudo seria a constituição
da identidade sexual de crianças criadas nesse meio, convivendo e sendo educadas por
homossexuais. Diante dessa proposta de estudo e, após alguns meses de trabalho, temos
hoje diante de nós bem melhor apresentada a pergunta orientadora dessa pesquisa: o que
tem a psicanálise a dizer sobre a constituição subjetiva de crianças que crescem na
configuração homoparental?
Antes de trazer a discussão para um âmbito predominantemente psicanalítico,
gostaríamos de contextualizar o tema da pesquisa, a homoparentalidade, pois este tema
vem sendo abordado de forma cada vez mais frequente e presenciamos ao longo desses
dois anos de pesquisa mudanças radicais no cenário. O casamento de homossexuais foi
reconhecido e, junto com o casamento, a família homoparental com filhos.O que no
início surgiu a partir de uma brecha na lei de adoção, hoje, 2014, foi aprovado em
muitos países, principalmente do mundo ocidental.
A origem do interesse dessa pesquisa surgiu a partir do trabalho realizado junto à
COFA-Cognac 1 com adoção de crianças brasileiras por famílias francesas. Essa
associação francesa existe há mais de 80 anos e trabalha com adoção de crianças
brasileiras desde 1980. A partir de 2010, começaram a aparecer casais homossexuais
interessados em adotar crianças através da associação. Diante da falta de justificativas
contrárias à adoção de crianças por casais homossexuais, a COFA-Cognac decidiu
realizar a primeira adoção homoparental, em 2010. Desde então, surgiu o desejo de
pesquisar sobre o tema da homoparentalidade e, mais especificamente, sobre adoção
homoparental.
Um dos pontos de amparo deste trabalho é a discussão francesa acerca do
“casamento para todos”. Tal discussão teve seu início com o PaCS 2 , seguiu com a
proposta do parlamento francês de abrir o casamento e a adoção aos homossexuais e
continua em debate a partir da aprovação do governo, em abril de 2013, que autoriza
tanto o casamento gay quanto a adoção de crianças por casais homossexuais. Temos na
Confédération Française pour l ‘Adoption, comitê de Cognac.
Pacto Civil de Solidariedade que entrou em vigor em 1999 e permite que casais (homossexuais ou
heterossexuais) legalizem sua união, mas não supõe a adoção de crianças ou procriação medicamente
assistida. (BORRILLO, FASSIN, IACUB, 1999)
1
2
11
França aqueles que defendem o “casamento para todos”3 e aqueles que são contra, que
dizem que o casamento gay é uma ameaça para o casamento e para a família.
Discussões sobre homoparentalidade acontecem em todos os lados do mundo.
Os meios de comunicação, dos mais sérios e comprometidos aos duvidosos, trazem
constantemente a discussão de como os países, sobretudo do mundo ocidental, colocamse diante da questão homoparental. Temos notícias do posicionamento da população, de
políticos, de religiosos como o Papa Bento XVI e o atual Papa Francisco, de
evangélicos, de sociólogos, antropólogos, psiquiatras, advogados e psicólogos. Todas as
áreas de saber são convocadas a se posicionar e em todas há controvérsias, inclusive na
psicanálise.
Para
pensarmos
como
a
psicanálise
pode
se
colocar
diante
da
homoparentalidade, devemos considerar que ela foi constituída em um tempo em que a
homoparentalidade, ao menos sua legitimidade, não poderia ser sequer imaginada. A
psicanálise foi constituída no final do século XIX, no contexto europeu e possui como
um de seus alicerces uma estrutura aparentemente formal de família. Há algo que
desloca o modelo de família, da família tradicional para os múltiplos avatares 4
contemporâneos: famílias adotivas, recompostas, monoparentais e artificiais. Isso que
desloca a própria estrutura e conceito de família deve, obrigatoriamente, deslocar uma
teoria.
O tema que trabalhamos é extremamente amplo, o que, por vezes, dificulta o
recorte que possibilita trabalhar questões específicas. Portanto, o capítulo 1 será
utilizado para levantar pontos diversos do tema: família, adoção, discussões sobre
casamento, conjugalidade, parentalidade, homossexualidade e o caminho da
homoparentalidade.
O capítulo 2 trata mais especificamente da diferença sexual na psicanálise
freudiana. Para tanto, utilizamos alguns textos clássicos de Freud que tratam
diretamente sobre o tema da diferença sexual. Através desses textos, poderemos
perceber concepções freudianas da diferença sexual tanto nos pontos esclarecedores,
quanto em momentos em que não há tanta clareza.
3
Na França, Marriage pour Tous.
Segundo o Novo Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa (2009), a palavra “avatar” se refere a
“reencarnação de um deus, e, especialmente no hinduísmo, reencarnação do deus Vixnu”. Assim como as
diversas formas que toma o deus Vixnu, a família é encarnada a partir de diferentes avatares, sendo a
família nuclear burguesa uma dessas formas, mas não a única.
4
12
Já no capítulo 3, trabalhamos a noção de identidade de gênero em Stoller, e sua
interlocução com o que foi visto no capítulo anterior em Freud. Esses dois capítulos
representam o miolo da dissertação e servem para amparar a discussão sobre a
construção tanto da noção de diferença nas origens da psicanálise, quanto um
desdobramento possível, mais contemporâneo, da teoria clássica psicanalítica. Veremos
que a discussão que inicialmente se apresenta sobre a constituição de diferença nos
filhos, acaba recaindo também sobre a importância ou não da anatomia genital do sexo
dos pais.
Finalmente, no capítulo 4, apresentamos pesquisas empíricas sobre a
homoparentalidade, junto com aspectos importantes sobre a adoção tardia internacional
e homoparental.
13
1 Família, Adoção e Homoparentalidade
1.1 Conceito de família e novas configurações
A palavra família é de uso um tanto comum, e se refere a um tipo
de realidade tão ligada a experiência cotidiana, que poder-se-ia pensar
que este trabalho se trata de uma situação simples. Sem dúvida,
sucede que os antropólogos pertencem a uma estranha espécie: gostam
de converter o “familiar” em misterioso e complicado. (Lévi-Strauss,
1986, p. 07) 5
A princípio, parece simples definir o que é uma família. E julgamos essa
definição necessária por tratarmos aqui do que significa família no contexto
contemporâneo. A citação acima é de um texto de 1986. Pois então, será que atualmente
essas definições ficaram mais fáceis, mais simples e claras?
A literatura das ciências sociais sobre família – que recebeu grande
impulso a partir da segunda metade da década de 1970 – tem
demarcado, teórica e empiricamente, a diversidade das estruturas e
configurações familiares na passagem do século XX, demonstrando a
imensa plasticidade dos grupos domésticos e as múltiplas
possibilidades de organização da reprodução biológica e social em
uma mesma sociedade. (Mello, 2005, p. 29)
Parece que a definição de família, ou a busca de um modelo familiar, é tão
cambiante quanto a própria transformação social. O mundo muda e a família muda.
Embora haja sempre uma procura, ou mesmo uma ilusão, de que há uma maneira
correta de ser e de criar as novas gerações, a verdade é que essa definição não é simples.
Afinal, parece que existem modelos de família tanto quanto existem famílias.
“As famílias felizes são todas iguais, as infelizes o são cada uma ao seu modo”,
frase que inicia o romance “Anna Karenina”, de Liev Tolstoi, traz em si um pouco do
que percebemos em relação à tentativa de estabelecer um modelo de constituição
familiar como uma espécie de garantia de sucesso. Trataremos aqui de pensar sobre as
diferenças entre as famílias, sobre o conceito de família e as mudanças que tem sofrido
e, principalmente, sobre os pontos em que as famílias das quais pensamos são
diferentes, mas não necessariamente infelizes.
Entendemos que essa padronização, que pretende estabelecer os padrões de
família de acordo com certo modelo tido como correto e tradicional não exclui apenas a
família homoparental, mas exclui todas as famílias “diferentes”, “infelizes” ou as que o
são “cada uma a seu modo”.
Vamos nos lembrar de que quando Freud começou a escutar o
sintoma e o sofrimento das histéricas, quando começou a perceber as
5
Tradução da autora.
14
inibições tremendas dos obsessivos, quando começou a se dar conta
de que o superego não forma necessariamente sujeitos morais – pode
conduzir, por exemplo, delinquentes por sentimento de culpa – quero
dizer, quando Freud percebeu a enorme quantidade de manifestações
de sofrimento psíquico, de desajuste emocional, de mal-estar, etc., a
família nuclear burguesa estava em pleno apogeu. Nada mais
estruturado do que a família vitoriana do final do século XIX, quando
Freud descobriu o sintoma neurótico e inventou a psicanálise. (...)
Assim, precisamos começar desidealizando a tal família estável e
estruturada como lugar que produz conforto psíquico e boa formação
para as crianças. (Kehl, 2001, pp. 31-32)
É tão importante diminuir a idealização da família estável e tradicional quanto
reconhecer a diversidade de possibilidades de constituição familiar e construções dos
laços de filiação. Esses laços são completamente desnaturalizados quando se leva em
conta uma adoção bem sucedida, em que, na maior parte dos casos, a filiação ocorre
sem que haja qualquer ligação sanguínea ou biológica. Assim como é importante,
também, que se perceba ou se reconheça essa desnaturalização em relação ao sexo e
gênero dos pais/mães e a relação do sexo e gênero com os papéis que desempenham
nessa filiação.
A questão dos papéis desempenhados por homens e mulheres dentro de um
contexto familiar vem sofrendo transformações, que ajudam a perceber que não há uma
ligação da natureza masculina ou feminina com as tarefas desempenhadas por eles tanto
no casamento quanto no cuidado dos filhos. Segundo Osório (1996), “efetivamente a
igualdade de direitos, deveres e opções entre os sexos é a pedra de toque das
transformações por que passa a família contemporânea e se projeta no futuro sobre a
forma de um novo padrão relacional entre homem e mulher” (p. 58).
De acordo com Borrillo, Fassin e Iacub (1999)6, uma brecha já havia sido aberta
na definição tradicional de família – esta considerada como um núcleo formado por um
casal heterossexual com filhos biológicos – pelas famílias “adotivas”, depois aumentada
pelas famílias “monoparentais” e “recompostas”. Mais recentemente, essa brecha foi
alargada pelas famílias que podemos chamar de “artificiais”, no sentido da ajuda médica
à procriação.
Hoje, é a reivindicação dos homossexuais que vem renovar o debate sobre a
modernidade da família: a demanda de igualdade entre as sexualidades impõe questões
que tocam a própria definição da sociedade. De acordo com Nadaud (2002), essas
questões são indissociáveis, ou seja, a homoparentalidade obriga a repensar os lugares
6
Essas ideias estão na introdução do livro Au-delá du PaCS, cujo original é em francês, portanto a
tradução das ideias é da autora.
15
respectivos do casal e da família, obrigando, assim, a ajuntar aos retratos da galeria de
família os diferentes avatares familiares. É preciso considerar a questão a partir do
buraco que existe entre o conceito, vinculado ao modelo “pai, mãe e filho (biológico)”,
e às diferentes formas de parentesco que as diversas famílias podem assumir na prática,
ao longo dos tempos.
Segundo Lacan (1938/2008), na introdução de seu livro sobre “Complexos
Familiares”, a família é uma estrutura hierárquica, um órgão de coação do adulto sobre
a criança, sendo esta coação a fonte originária das bases arcaicas da formação moral do
homem. Outros traços característicos da família, para ele, são: os modos de organização
da autoridade familiar, as leis de sua transmissão e conceitos de descendência e de
parentesco. Dentre seus papéis fundamentais, a família é responsável pela transmissão
cultural de hábitos de conduta, da repressão instintual e da “aquisição da língua
acertadamente chamada de materna” (pg.30). (Lacan, 1938/2008)
Assim, consideramos a família em suas funções: de transmissão da cultura e da
coação e em suas gerações, ou seja, na hierarquia que existe entre o adulto e a criança.
Dessa maneira, o que define uma família pode ser pensado em relação a outros tipos de
arranjo, como o arranjo homoparental. Podemos pensar que um casal parental, formado
por duas pessoas do mesmo sexo, pode ser capaz de garantir essa estrutura hierárquica,
que educa os filhos e, através dessa educação, funda as bases da moralidade do
indivíduo, constituindo assim uma família, com graus de parentesco e descendência.
De acordo com Kehl (2003), os lugares do masculino e do feminino nem sempre
coincidem com os lugares onde estão homens e mulheres, haja vista que estes lugares
circulam hoje, mais do que na época em que foi constituído o modelo de família
idealizado. Assim como não coincide o lugar do homem e da mulher com masculino e
feminino, também não coincidem, necessariamente, os papéis de pai, mãe e filhos. Se há
alguém que faz a função de pai e alguém que faz a função de mãe, mesmo que tais
sejam a mesma pessoa, ou duas pessoas do mesmo sexo, a família estrutura
edipicamente o sujeito. Dessa forma, ”é no atravessamento edípico que o sujeito vai se
sexuar como homem ou mulher – ou, como brinca Lacan, constituir uma certeza sobre
em que porta de banheiro, ‘damas’ ou ‘cavalheiros’, ele deve entrar” (Kehl, 2001, p.
30).
Quando Freud escutou as histéricas de sua época, foi desvendada uma
subjetividade que não confirmava a existência de uma natureza feminina. Assim, pode
se dissociar mesmo que lentamente, a equação que coloca a mulher como sinônimo de
16
mãe e portadora de um instinto maternal. Badinter, em seu trabalho de 1985, interpelou
a ideia de um instinto materno e escandalizou diversos setores da sociedade da época
por demonstrar, em diferentes fases da história da humanidade, que tal instinto não
existe naturalmente e que cada mulher é um caso particular. O escândalo da autora foi
causado por mexer na questão materna, por demonstrar que a maternidade não é
instintiva da mulher. É socialmente que se constrói essa equação que coloca a mulher
como portadora de uma habilidade instintiva para cuidar de uma criança. (Badinter,
1985)
A realidade social foi se modificando e, com isso, a formação dos pares
conjugais tornou-se independente do sexo ou da orientação sexual. Hoje os casais
homoafetivos passam a conquistar o reconhecimento social conjugal, podem adotar
filhos ou mesmo concebê-los e assumir uma função parental. Portanto, a família na
modernidade deve ser menos considerada a partir de um modelo, mas a partir de sua
capacidade de cuidar dos melhores interesses da criança, independente do sexo
anatômico dos pais.
1.2 Adoção, nova lei brasileira e a criança no Brasil
A adoção pode ser definida como o estabelecimento de relações
parentais entre pessoas que não estão ligadas por vínculos biológicos
diretos. É uma forma de proporcionar uma família às crianças que não
puderam ser criadas pelos pais que a geraram. Constitui-se também na
possibilidade de ter e criar filhos para pais que não puderam tê-los
biologicamente, ou que optaram por cuidar de uma criança com quem
não possuíam ligação genética. Deste modo, as relações parentais que
se formam na família adotiva baseiam-se mais especificamente nas
intersecções afetivas que caracterizam os seus membros do que na
continuidade biológica, que não existe nestes casos. (Levinzon, 2006,
p. 25)
O contexto de nossa pesquisa, como abordado na apresentação e introdução, é da
criança adotiva e, particularmente, no campo da adoção internacional. Assim, a criança
que abordamos aqui é aquela que passou por um longo percurso de abandonos e
tentativas fracassadas de reinserção em ambiente familiar extenso. E até mesmo que já
teve tentativas fracassadas de inserção em famílias substitutas7.
Diferente do que podemos imaginar ao observar a quantidade imensa de crianças
pelas ruas em qualquer cidade brasileira, a criança “adotável” não é, necessariamente,
7
Família substituta é um termo utilizado para referir a família adotiva. Esse termo é motivo de queixa por
parte das famílias adotivas que o consideram inadequado, já que não se consideram substitutas, mas a
própria família da criança.
17
essa que encontramos por aí vendendo balas ou flores nas mesas de bar. A criança
colocada em adoção é hoje, primordialmente, aquela cujos pais foram destituídos do
poder familiar por maus tratos, abandono, violência e, raramente, órfã. Antes que seja
colocada em adoção, são feitas inúmeras tentativas de inserção do infante na família
ampla, ou seja, tias, avós e parentes que, supostamente, tenham algum contato com o
menor. Normalmente, esse processo leva tempo e revela um histórico de violência e
rupturas na grande maioria dessas crianças “adotáveis”.
Após a destituição do poder familiar, essas crianças são acolhidas em abrigos,
onde esperam por pessoas que estejam dispostas a adotá-las. A motivação para a adoção
de uma criança deve ser o desejo dos pais (do pai ou da mãe) de criar um filho(a),
constituindo assim uma família. A vontade de ajudar não é uma motivação suficiente
para que alguém adote uma criança. “Os candidatos à adoção são pais e mães a advir de
sua própria adoção por uma criança que nunca será carne da sua carne, mas filho do
desejo.” (Hamad, 2002, p. 16)
Se há adoção, é porque efetivamente algo da palavra estabelece um
laço bastante forte para que as crianças e os pais adotivos se
reconheçam como inscritos simbolicamente na mesma linhagem e
para que esse laço se revele tão forte e tão verdadeiro quanto o do
sangue. (Hamad, 2002, p. 98)
No Brasil, a lei de adoção foi modificada em 03 de agosto de 2010. Houve uma
mudança significativa no que concerne à questão da adoção, especificamente no “Artigo
42”, que diz “qualquer pessoa acima de 18 anos pode adotar uma criança independente
do estado civil”. O pai ou mãe da criança poderia ser casado, mas poderia ser também
solteiro, membro de uma família recomposta ou mesmo poderia ser um homossexual
solteiro, ou como não era raro acontecer, um homossexual que tinha um relacionamento
estável com outro homossexual e dividia com ele o plano e o desejo de constituir uma
família, plano este que só poderia ser amplamente realizado com a chegada de um filho.
É importante percebermos que a nova lei não fez restrição ao estado civil do
candidato à adoção e não fez nem mesmo menção à sua orientação sexual. Disso podese entender que, não sendo mencionado, ficou livre para ser interpretada da forma que
se julgasse certa ou errada, em contextos específicos. Não podemos participar aqui de
uma discussão no nível do direito familiar, porém tivemos notícias de que juízes que se
colocaram tanto de um lado como de outro, fazendo assim interpretações diferenciadas
18
da lei8 . Vale lembrar ainda que todo pretendente à adoção passa por uma avaliação
psicossocial para obter a habilitação para adotar uma criança.
Além da nova lei de adoção brasileira de 2010, presenciamos hoje uma mudança
frequente no cenário nacional e mundial em relação ao que concerne a adoção de
crianças por homossexuais. A partir da permissão em diversos países, principalmente do
mundo ocidental, do casamento civil entre pessoas do mesmo sexo, a possibilidade de
homossexuais adotarem deixa de ser uma brecha interpretativa numa lei específica, para
se tornar uma realidade cada vez mais legalizada. O direito igualitário ao casamento
estabelece um direito também igualitário relativo à filiação. Assim, nos interessa
explorar o tema da filiação homossexual e suas particularidades.
Desse modo, caminhamos para o ponto chave de nossa pesquisa, a
homoparentalidade, que já ocorre no âmbito da adoção nacional e também da adoção
internacional.
1.3 O caminho da homoparentalidade
O Brasil presenciou, em maio de 2011, o reconhecimento de união estável de
pessoas do mesmo sexo, em votação unânime do Supremo Tribunal Federal (STJ9)
Assim como ocorreu no Brasil, a França já havia reconhecido os direitos de
união entre homossexuais. Reconhecimento esse que foi cercado de debates sobre a
questão inédita que se colocava: muitos homossexuais manifestavam o desejo de se
“normalizar” e reivindicavam o direito ao casamento, à adoção e à procriação
medicamente assistida.
No início de 2013, o governo francês se pronunciou para além do Pacto Civil de
Solidariedade (PaCS), que se tratava apenas de um acordo de união estável entre
pessoas do mesmo sexo ou não, e foi votado e aceito no congresso, no mês de maio, o
“Casamento para Todos” 10 . Tal ação permite que pessoas do mesmo sexo tenham
8
A Quarta Turma do STJ , em abril de 2009, proferiu uma decisão inovadora para o direito de família,
segundo o “Correio Forense”. Por unanimidade, os ministros mantiveram decisão que permitiu a adoção
de duas crianças por um casal de mulheres. Segundo o mesmo jornal, a justiça vem agindo em favor de
criar jurisprudências claras que favoreçam as minorias. E o que a lei costuma observar, levando em conta
o Estatuto da Criança e do Adolescente, é o interesse da criança. Assim a decisão dos juízes não se dá, a
princípio em favor das minorias, mas considera que seja o melhor para a criança. O ponto acaba
favorecendo e reconhecendo os direitos de minorias, mas como consequência.
9
STJ, daqui em diante.
10
A aprovação do Casamento para Todos, Mariage pour tous, na França ocorreu em 17 de maio de 2013.
Segundo estatísticas do INSEE, Institut national de la statistique, foram realizados 7 mil casamentos
19
garantidos o direito de casamento, tal e qual um casamento heterossexual. No Brasil
houve, em 16 de maio de 2013, uma recomendação do STJ que impediu os cartórios de
se recusarem a realizar o casamento entre pessoas do mesmo sexo.
Dessa forma, a discussão acerca da conjugalidade homossexual desperta também
outra questão, ainda mais espinhosa e polêmica: a homoparentalidade, ou seja, a
possibilidade desses casais, então “normatizados” e com seus direitos garantidos pela
lei, assumirem também uma família.
De acordo com Roudinesco, em seu livro “A família em desordem” (2003),
homoparentalidade [homoparentalité] é um termo criado na França em 1996, pela
Associação dos Pais e Futuros Pais Gays e Lésbicos (APGL). Um ponto interessante
abordado neste mesmo livro é o desejo dos casais homossexuais quererem se enquadrar
à norma. Segundo a autora, não é uma afronta aos valores da família, mas um desejo de
constituir uma família baseada em modelos e valores tradicionais.11
Roudinesco (2003) considera a homoparentalidade como um desejo de
normalização dos homossexuais e atribui essa vontade de se enquadrar tanto à conquista
de direitos dos movimentos gays, que teriam ajudado a colocar a escolha homossexual
dentro do campo de possibilidades, quanto como um dos efeitos da hecatombe que foi a
AIDS. A normatização a que se refere Roudinesco (2003) pode ser considerada dentro
do campo legal e jurídico que, ao considerar a família homoparental, pretende equiparála ao modelo familiar tradicional, a fim de garantir os direitos relativos à herança, ao
parentesco e à filiação. Porém, seria estranho considerar que os casais homossexuais
têm o desejo de se normalizar quando o modelo vigente é heteronormativo. Isso poderia
nos levar a considerar a família homoparental como uma espécie de caricatura da
família tradicional, denotando erroneamente uma noção de ordem natural para a família
nuclear burguesa.
A discussão sobre a família homoparental é potente, atual e controversa. Há
quem se coloque contra ou a favor. Majoritariamente aqueles que se colocam a favor
estão levando em conta o fato de que o que é chamado de família hoje é bem diferente
do modelo tradicional de família do início do século XX. Nosso desejo é o de refletir
sobre os parâmetros que são utilizados para discutir a questão, não no sentido de nos
entre pessoas do mesmo sexo no ano de 2013 na França. Enquanto o número de casamentos entre
heterossexuais em 2013 foi de 231 mil.
11
No Brasil, o termo homoparentalidade tem sido utilizado, de acordo com o glossário apresentado por
Zambrano (2006), para se referir à situação na qual pelo menos um adulto que se reconhece como
homossexual cria ao menos uma criança.
20
colocarmos contra ou a favor, defender ou atacar a homoparentalidade, mas sim de
tentar entender teoricamente aquilo que já se revela na prática, na experiência cotidiana.
A posição, ao menos inicial que tomamos aqui, é de observadores. Partiremos da
família homoparental contemporânea para revisitarmos, entre outras, as noções
freudianas de diferença sexual, assim como a constituição da identidade de gênero, de
Stoller. Nosso objetivo é tentar perceber em que medida essas noções se apoiam ou não
na diferença sexual anatômica genital dos pais. Para tanto, gostaríamos de supor que há
diferença entre os tipos de família, de que uma criança criada numa casa onde tem pai e
mãe é diferente daquela que não tem mãe, ou que seu pai faleceu num acidente de carro,
ou daquela criada pela avó, ou das mais diversas configurações que possamos
considerar. Diferenças existem também entre filhos biológicos e filhos adotivos. Mas as
diferenças a priori não são prejuízos. O que consideramos é que não há garantias de que
não haja prejuízo em nenhum tipo de configuração familiar, ou mesmo garantia de um
sucesso absoluto.
Nadaud (2003) nos fala sobre a realidade da homoparentalidade e nos indica a
dificuldade em criar um modelo de família homoparental, já que, dentre as
possibilidades dessa família, há diversos tipos, tanto do ponto de vista da
homossexualidade quanto da homoparentalidade. Aceitemos que, nas descrições de
situações reais que foram desenvolvidas por Nadaud ao longo de seu livro, os
homossexuais, gays, lésbicas e queers que vivem em casal e têm crianças, são
considerados núcleos familiares. Quanto a parentalidade, foram observadas famílias
recompostas de maneira homoparental, famílias homoparentais extensas, como nos
casos de co-parentalidade, famílias em que as crianças foram adotadas por
homossexuais, famílias em que a criança é concebida por inseminação artificial, por
mãe substituta ou barriga de aluguel.
No escopo deste trabalho, privilegiamos a família composta por um casal gay e
um filho adotado grande e fora de seu país de origem.
1.3.1 Homossexualismo x Homossexualidade
O termo homossexualidade foi cunhado em 1869 pelo médico
húngaro Karoli Maria Kertbeny para designar, segundo uma
terminologia clínica, todas as formas de amor carnal entre as pessoas
do mesmo sexo, impondo-se, nas sociedades ocidentais, à palavra
heterossexualidade, que foi criada em 1888 [itálicos nossos].
(Zambrano, 2006, p. 4)
21
O termo homossexualidade se refere à orientação sexual de indivíduos que têm
como escolha de objeto sexual pessoas do mesmo sexo, o que é diferente da
consideração quanto à sua identidade sexual. Necessário lembrar que tais indivíduos não
possuem, necessariamente, distúrbios quanto à identidade sexual. O homossexualismo12
foi deixado de ser considerado como doença e retirado dos manuais de diagnóstico
psiquiátrico apenas em 1950. Nesse sentido, ainda carrega estigma de patologia. Na
psicanálise ainda se discute sobre homossexualidade em termos de perversão (não em
relação à estrutura). Porém, há autores como Joyce McDougall (1983) que consideram o
ato homossexual não desviante em si, apenas quando deixa de ser uma variação da
sexualidade adulta e se transforma em sintoma. Garcia (2001) nos propõe que a
condição patológica está sustentada na impossibilidade de amar, uma inviabilidade no
encontro com outro, principalmente no reconhecimento do outro como ser independente
e sujeito desejante, e não numa escolha homoerótica de objeto de amor.
Acreditamos que um dos pontos que impedem ou que está por trás de muitos
argumentos contra a homoparentalidade é a própria homossexualidade dos pais
adotivos. Acreditamos nisso,pois os argumentos utilizados para indeferir a adoção de
crianças por casais do mesmo sexo poderiam ser utilizados para contestar, por exemplo,
a adoção monoparental por uma mulher solteira e não o são ou, ao menos, não com a
mesma veemência utilizada no caso dos homossexuais.
Segundo Derridá & Roudinesco,
Pode-se fazer muitas coisas com um homem e uma mulher! Com a
diferença sexual (e a homossexualidade não é indiferença sexual),
pode-se imaginar tantas configurações ditas “familiares”! E mesmo
no que consideramos “nosso” modelo mais estável e mais familiar,
existem tantas subespécies. (Derrida & Roudinesco, 2004, p. 53)
Sendo assim, nos colocamos de acordo com os autores citados acima quando
afirmam que a homossexualidade não é indiferença sexual. A homossexualidade é a
escolha de objeto de amor de alguém ser dirigida a alguém do mesmo sexo. Entretanto,
ainda hoje presenciamos discriminação, o que é chamado de homofobia, e muito
preconceito com aqueles que amam alguém do mesmo sexo. Mas os avanços ocorrem e,
mais cedo ou mais tarde, acabaremos por viver numa sociedade em que a alteridade, a
diferença e o desejo do outro não precisem ser motivo de ameaça para ninguém.
12
Utilizamos a palavra escrita dessa forma, para evidenciar o aspecto de patologia ao qual estava
vinculada anteriormente.
22
1.3.2 Conjugalidade e Parentalidade
Sur la famille, on croit toujours tout savoir, puisque chacun a une
famille! Les militants de la Manif pour tous ont pourtant montré qu’ils
ne savaient pas ce qu’est la filiation : ils la confondent
systématiquement avec la procréation… (Irène Théry).13 14
De acordo com Mello (2005),
No Brasil, especialmente depois da apresentação do Projeto de Lei
n 1.151/95, de autoria da deputada Marta Suplicy, que disciplina a
união civil entre pessoas do mesmo sexo, os meios de comunicação de
massa, liderados pela televisão, passaram a dar cobertura ostensiva – e
muitas vezes sensacionalista – a essa questão, por muitos nomeada
como “casamento gay”. No embalo dos debates, começaram a eclodir
pelo país inúmeras demonstrações de apoio e repúdio à ideia de uma
conjugalidade homossexual, nas quais os grupos de militância
homossexual e as Igrejas Católica e Evangélica são os protagonistas
principais. Pela primeira vez, a sociedade brasileira deparava-se com o
questionamento estrutural do heterocentrismo, até então prevalente
nas representações sociais acerca da família. (Mello, 2005, p. 28)
Assim, gostaríamos de ressaltar que a questão da conjugalidade homossexual, o
“casamento gay”, traz consigo as questões de homoparentalidade e compreensões a
respeito da família. Ainda de acordo com Mello (2005), o casamento e a família são
“construções socioculturais dinâmicas, mutáveis e capazes de incorporar um leque cada
vez maior de situações e formas de expressão e manifestação das trocas afetivo-sexuais
entre seres humanos” (p. 9). Portanto, a identificação das transformações que ocorrem
na família, assim como descrevemos acima, deve ser o ponto de partida fundamental
para uma tentativa de compreensão das relações estáveis entre pessoas do mesmo sexo
como expressão de amor e modalidade familiar.
Ao responder sobre a diferença entre procriação, parentesco, filiação e
parentalidade, Zambrano (2006) nos esclarece que o comum na nossa cultura é o
pensamento de que uma criança pode ter apenas um pai e uma mãe, juntando na mesma
pessoa o fato biológico da procriação, o parentesco, a filiação e os cuidados de criação.
A autora propõe o desdobramento do vínculo entre pais e filhos em quatro elementos: 1)
o vínculo biológico; 2) o parentesco; 3) a filiação; 4) a parentalidade. Só o vínculo
biológico depende exclusivamente de relações consanguíneas ou ditas “naturais”. Para a
autora, “a parentalidade é o exercício cotidiano de criação e cuidado do indivíduo”
Sobre a família acreditamos saber de tudo, já que todos nós temos uma. Os militantes da “Manifestação
para Todos”, entretanto, mostram que não sabem o que é a filiação: eles a confundem, sistematicamente,
com procriação. (Tradução da autora)
14
“Manifestação para todos” foi o nome dado para as manifestações veementes que ocorreram na França
contra a aprovação do “Casamento para todos”.
13
23
(Zambrano, 2006, p.14). Os quatro elementos podem ser combinados entre si de
diversas maneiras, evidenciando a relatividade das escolhas feitas por uma determinada
cultura em uma determinada época.
A adoção homoparental ou o reconhecimento da homoparentalidade como uma
forma aceitável e possível de parentalidade, respaldando laços de parentesco e
reconhecendo a filiação que ocorre numa família constituída dessa forma, padece de um
preconceito que denuncia, numa determinada configuração conjugal (heteronormativa),
sua inadequação ao exercício da parentalidade. Ao contrário de tratar como necessária
uma
certa
concepção
de
conjugalidade
(heteronormativa),
reconhecer
a
homoparentalidade significa aceitar que existem outras formas possíveis. Significa
desnaturalizar definitivamente os laços familiares, observando seus aspectos
contingentes e não necessários.
1.3.3 Discussões do PaCS: da tolerância ao reconhecimento
O PaCS, que entrou em vigor na França, em 1999, permite que casais
(homossexuais ou heterossexuais) legalizem sua união, mas não supõe a adoção de
crianças ou procriação medicamente assistida (Borrillo, et al., 1999). É um contrato
entre duas pessoas físicas, maiores, de mesmo sexo, ou de sexo diferentes, para
organizar a vida comum (Uziel & Grossi, 2007). As discussões em torno dessa
elaboração prescindiram da necessidade de se definir o que é um casal e chegou-se a
conclusão de que este pode ser formado por pessoas do mesmo sexo. Uziel e Grossi
(2007) consideraram acertadamente que a aplicação do PaCS seria transitória, que seria
logo discutido, no âmbito do direito da família, a igualdade entre homossexualidade e
heterossexualidade.
O PaCS deixou clara a posição da França, ao menos momentânea, em relação à
filiação, adoção e reprodução de casais, sem circunscrever o sexo. A partir dele, a Corte
Europeia decidiu que a homossexualidade não seria argumento suficiente para indeferir
uma guarda. Assim, como nos apontam novamente Uziel e Grossi (2007), o tratamento
em relação aos homossexuais “passa da tolerância ao reconhecimento” (p. 189).
No livro de 1999, “Au-delá du PaCS”, de Borillo et al., encontramos pontos
importantes a respeito do PaCS. O livro em questão não é consagrado à
homossexualidade, assim como o próprio PaCS não o é, mas sua reivindicação é,
24
sobretudo, colocada por gays e lésbicas. Todos os três autores concordam que a questão
trata da instituição familiar.
O ponto que mais nos interessa em relação ao debate francês são os argumentos
levantados e foi através deles que chegamos ao nosso objeto de pesquisa. Além de
reforçar o quanto o tema em questão leva a debates, convoca a pensar sobre assuntos
considerados superados como o próprio conceito de família, e pretende não condenar o
tema aos silêncios da ciência. De alguma forma, é o que estamos tentando fazer aqui.
1.3.4 Além do PaCS: o “mariage pour tous” e o casamento igualitário no Brasil
A questão espinhosa que o PaCS anunciou cumpriu seus presságios. A
conjugalidade homossexual se converteu em homoparentalidade. A discussão sobre o
direito de homossexuais se casarem proliferou também para a discussão sobre direitos
iguais nos moldes do casamento heterossexual, prevendo assim os direitos que cobrem a
filiação. Assim, na França, a partir da aprovação do “casamento para todos”, os
homossexuais passaram a ter direitos iguais em relação ao casamento heterossexual.
Desse modo, todos têm direito ao que o casamento garante em relação à filiação.
No Brasil, o casamento homoafetivo ainda não teve sua aprovação garantida.
Entretanto, em 14 de maio de 2013, o Conselho Nacional de Justiça proibiu 15 os
cartórios de se recusarem a realizar os casamentos entre pessoas do mesmo sexo. O
debate sobre o casamento homossexual agora recai sobre um novo embate: como ficará
a condição de diferença ao acesso de homossexuais à filiação, já que mulheres têm mais
recurso em relação à geração de filhos do que os homens. Dessa forma, o debate se
configura de uma nova maneira no que se relaciona às “barrigas de aluguel” ou, mère
porteuse (o que é proibido tanto na França quanto no Brasil), aos métodos de
fertilização in vitro (FIV) , à adoção de crianças e tudo o que dá acesso à parentalidade.
Como veremos mais detalhadamente no capítulo 4, as mulheres geralmente
recorrem aos métodos que permitem gerar seus próprios filhos e os casais de homens
recorrem mais à adoção.
15
http://agenciabrasil.ebc.com.br/noticia/2013-05-14/cnj-proibe-cartorios-de-recusar-conversao-de-uniaoestavel-homossexual-em-casamento-civil
25
1.4 Tabu da homossexualidade e a família invisível: a novidade é o reconhecimento 16
1.4.1 O tabu da homossexualidade e a família invisível
O significado de tabu, como vemos, diverge em dois sentidos
contrários. Para nós significa por um lado, sagrado, consagrado, e, por
outro, misterioso, perigoso, proibido, impuro. (...) Tabu traz em si o
sentido de algo inabordável, sendo principalmente expresso em
proibições e restrições. (...)
As proibições dos tabus não tem
fundamento e são de origem desconhecida. Embora sejam
ininteligíveis para nós, para aqueles que por elas são dominados são
aceitas como coisa natural (Freud, 1914/1996, p. 37).
Gostaríamos de propor que o reconhecimento da conjugalidade homossexual
promoveu modificações não apenas no presente de muitos casais que passaram a gozar
dos mesmos direitos que os casais adequados à heteronormatividade, mas também na
forma como olhamos para o passado. Tais efeitos seriam constatados a partir da
reconsideração do que antes não poderia ser visto nem abordado: o que chamamos aqui
de família invisível. Ou seja, o reconhecimento atual dos direitos dos homossexuais tem
um efeito de reconhecimento de casais que já existiam, contestando assim a ideia de que
o casal homoparental é uma novidade na configuração familiar, posição encontrada na
maioria dos textos que tratam da homoparentalidade.
Assim, podemos pensar que a homoparentalidade não é necessariamente uma
novidade, mas que a novidade está em seu reconhecimento e visibilidade.
Durante as controvertidas discussões e manifestações contra o reconhecimento
da
conjugalidade
homossexual
e
da
homoparentalidade,
a
natureza
e
a
heteronormatividade foram bastante invocadas para justificar posições contrárias.
Argumentos que diziam que só um homem e uma mulher poderiam ter filhos, pois
apenas isto seria o natural e normal, expressando um equívoco ao confundir filiação
com procriação.
Se a natureza serve de apoio, mas é pervertida pela pulsão, porque agora ela é
reconvocada à cena para tentar desqualificar e impedir o acesso de homossexuais à
filiação? A adoção e as FIV (fertilização in vitro) são largamente utilizadas por casais
que naturalmente não puderam ter seus filhos, então, porque ela seria negada aos
homossexuais? Parece que a natureza é utilizada para dissimular o preconceito à
Essa ideia de “família invisível” foi construída a partir do documentário Les Invisibles, de 2012,
dirigido por Sébastien Lifshitz. O filme mostra histórias de homossexuais que nasceram no período entreguerras e sofreram com a rejeição e a exclusão impostas pela época.
16
26
homossexualidade, revelando uma concepção de hierarquia que atrela conjugalidade
convencional com normalidade, “naturalizando” o casamento heterossexual. A
heteronormatividade fica escancarada e, ao mesmo tempo, disfarçada de pretensos
valores naturais. Fica também exposto o horror à homossexualidade, seja de forma
explícita, implícita, violenta, silenciosa, prática ou teórica. Seja esse horror contra o
suposto outro homossexual ou contra a própria homossexualidade presente em cada um
de nós.
O texto freudiano é o referencial primordial da psicanálise, mas esta não se
resume ao que Freud escreveu. O pai da psicanálise não a criou sozinho, mas junto de
outras pessoas responsáveis pelo desenvolvimento de ideias, conceitos, temas. As
reuniões das quartas-feiras e suas minutas 17 revelam que temas como misoginia,
bissexualidade, homossexualidade, eram amplamente abordados e discutidos por todos.
Assim, não há uma leitura da obra freudiana, mas diversas leituras. Também não há “A
Psicanálise”, coesa e uníssona. Há diversas.
Afinal, a psicanálise é contra ou a favor da homoparentalidade? É necessário que
um psicanalista se declare a favor ou contra isto ou aquilo?
Verdade é que este é um campo minado. Ao caminhar por ele, pode-se perder
um membro ou outro, mas, como disse o próprio Freud quando escreveu à sua cunhada
Minna no período de guerra em que esperava a burocracia para deixar Viena e partir
para a Inglaterra: “Diz-se que quando a raposa fica presa numa armadilha ela rói a pata
e foge capengando nas outras três. Seguiremos esse exemplo, e espero nos livrarmos,
embora mancando.” (Young-Bruehl, 1988/1992, p.197)
Teoricamente, em Freud, podemos recorrer ao texto de 1905, intitulado “Três
ensaios sobre a teoria da sexualidade”. No primeiro ensaio sobre “As aberrações
sexuais”, Freud utiliza o termo “invertidos” para se dirigir aos homossexuais. Nas
conclusões, Freud destaca que a tarefa de esclarecer as origens da inversão não foi
atingida satisfatoriamente, porém, considera mais importante do que isso o
conhecimento de que a ligação entre pulsão e objeto sexual é mais frouxa do que se
havia imaginado. O que a homossexualidade faz Freud afirmar e perceber é que há
apenas “uma solda” entre pulsão e objeto. “É provável que, de início, a pulsão sexual
17
Minutas eram atas das reuniões da Sociedade de Psicanálise de Viena, realizadas de 1902 a 1938. Ver
Nunberg, H., & Federn, E. (1962) Minutes of the Vienna Psychoanalytic Society – 1906-1908. New
York : International Universities Press.
27
seja independente de seu objeto, e tampouco deve a ela sua origem aos encantos deste”
(Freud, 1905/1996, p.140).
A pulsão não comporta um objeto predeterminado, portanto, não é natural. A
pulsão, mesmo que chamada de instinto, deve ser apoiada na necessidade para, a partir
dela, produzir respostas. Tais respostas, sempre singulares, traduzem os percursos
pulsionais de cada sujeito, no que diz respeito a sua psicossexualidade.
Freud (1905/1996), ainda nos “Três ensaios”, fez uma longa e instigante
diferenciação entre perversão e inversão. Em uma das revisões desse texto, de 1915, ele
acrescenta uma longa nota de rodapé na qual utiliza a palavra homossexualidade. Dessa
maneira, permitiu que fossem consideradas as homossexualidades como uma forma de
relação afetiva tão respeitosa quanto uma heterossexual.
Essa longa nota de rodapé diz o seguinte:
A investigação psicanalítica opõe-se com toda firmeza à tentativa
de separar os homossexuais dos outros seres humanos como um grupo
de índole singular. Ao estudar outras excitações sexuais além das que
se exprimem de maneira manifesta, ela constata que todos os seres
humanos são capazes de fazer uma escolha de objeto homossexual e
de fato a consumaram no inconsciente. (...) A psicanálise considera,
antes, que a independência da escolha objetal em relação ao sexo do
objeto, a liberdade de dispor igualmente de objetos masculinos e
femininos, tal como observada na infância, nas condições primitivas e
nas épocas pré-históricas, é a base originária da qual, mediante a
restrição num sentido ou no outro, desenvolvem-se tanto o tipo normal
como o invertido. No sentido psicanalítico, portanto, o interesse
sexual exclusivo do homem pela mulher é também um problema que
exige esclarecimento, e não uma evidência indiscutível que se possa
atribuir a uma atração de base química. A conduta sexual definitiva só
se decide depois da puberdade e resulta de uma série de fatores ainda
inabarcáveis, de natureza em parte constitucional e em parte acidental.
(Freud, 1905/1996, pp. 137-138)
É explícito o posicionamento de Freud sobre a homossexualidade nessa nota,
além de ressaltar o ponto essencial da contingência estabelecida na relação entre pulsão
e objeto. Aqui é um momento em que há uma clara “desnaturalização” da relação entre
um homem e uma mulher, ao declarar que a escolha objetal não se dá em relação ao
sexo desse objeto, nem por uma força de atração química. Além disso, Freud se coloca
claramente contra separar os homossexuais, mas, ao contrário, faz com que fique
evidente a homossexualidade presente em todos os sujeitos.
28
1.4.2 A regra oral ou regra não escrita
A partir de 1921, a questão da homossexualidade dividiu efetivamente os
membros do comitê que dirigia secretamente a International Psychoanalitycal
Association (IPA). Os vienenses mostraram-se muito mais tolerantes que os berlinenses.
Apoiados por Karl Abraham, estes últimos consideraram de fato que os homossexuais
eram incapazes de serem psicanalistas, uma vez que a análise não os curava de sua
inversão. Já os vienenses, como Freud e Otto Rank, consideravam que os homossexuais
deviam ter acesso à profissão de psicanalista de acordo com sua competência: “Não
podemos afastar essas pessoas sem outra razão válida, assim como não podemos aceitar
que sejam perseguidas pela lei.”, declarou Rank. (Roudinesco, 2009, p. 51)
Assim, a partir dessa divisão de opiniões em que o lado berlinense saiu
vencedor, em 1921, através de uma regra não escrita, os homossexuais passaram a ser
considerados não aptos a exercer o ofício de analistas.
Podemos observar que, para além do campo teórico, Freud se posicionou
claramente a favor dos homossexuais tanto em 1921, quando defendeu que praticassem
a psicanálise, quanto em 1930, quando assinou uma petição a favor da
descriminalização da homossexualidade. 18 A regra oral foi oficialmente suprimida
apenas em 2001.
Na terceira parte das conferências introdutórias, dedicada à Transferência, Freud
comenta sobre o posicionamento ético do analista de onde podemos nos nortear
inclusive sobre a questão que trabalhamos:
O psicanalista não é reformador, mas observador. E, justamente
por isto, ele está habituado a emitir pareceres isentos de preconceitos,
tanto sobre assuntos sexuais como sobre outros assuntos; (...) Dizemos
a nós próprios que todo aquele que conseguiu educar-se de modo a se
conduzir de acordo com a verdade referente a si mesmo, está
permanentemente protegido contra o perigo da imoralidade,
conquanto seus padrões de moralidade possam diferir, em
determinados aspectos, daqueles vigentes na sociedade. (Freud,
1916/1996, p. 436)
O psicanalista e a psicanálise produzida a partir da observação deve se
aproximar de descobrir a verdade para se proteger contra a imoralidade. Porém, essa
moralidade pode divergir das normas vigentes na sociedade, sendo assim considerada
uma moralidade subjetiva e não normativa. O analista pode e deve se posicionar em
18
O real e o sexual: do inominável ao pré-conceito. In: As Homossexualidades na Psicanálise: na história
de sua despatologização, de 2013.
29
relação a essa moralidade subjetiva mesmo que para isso precise assumir uma posição
contrária ao que seria socialmente aceito.
1.4.3 A família invisível de Anna Freud
Aquilo que hoje promove a descoberta sobre a família homoparental descortina
também um velho tabu da história da psicanálise: a homossexualidade e até mesmo a
homoparentalidade da filha de Freud.
Recentemente, foi lançado um livro 19 de correspondências de Sigmund Freud
com seus filhos. Um dos volumes mais esperados traz as correspondências entre Anna
Freud e o pai, entre 1904 e 1938. No prefácio, escrito por Roudinesco (2012), é
reconhecido, pela primeira vez e por uma historiadora eminente da psicanálise, a relação
homossexual que existia entre Anna Freud e Dorothy Burlingham. Em seu discurso20,
proferido na comissão de lei sobre o Mariage pour tous, Elizabeth Roudinesco declarou
que Freud não apenas sabia da homossexualidade de sua filha Anna – única entre os seis
filhos que seguiu carreira psicanalítica –, como acolheu sua diferença e, ainda,
reconheceu que seu relacionamento com Dorothy Burlingham se tratava de uma família.
“Freud aceitou em sua vida que Anna criasse os filhos de sua companheira e
considerava que se tratava de uma família” (Roudinesco, 2012).
O pai da psicanálise foi coerente com seus ideais teóricos que ajudaram a retirar
a homossexualidade do campo das perversões sexuais e fez há cem anos, em relação à
sua filha caçula, o que muitos pais não fazem hoje: acolheu sua homossexualidade e
reconheceu sua família.
O que é reconhecido, finalmente, é não apenas a homossexualidade de Anna,
assim como seu longo relacionamento, mas também a co-parentalidade que exercia com
sua companheira em relação aos filhos dela. Até então, na biografia psicanalítica, só
havia insinuações do que agora é escancarado: a homossexualidade de Anna Freud. Em
diversas biografias sobre a autora são apresentados indícios, mas há claramente uma
negação da orientação sexual de Anna.
Em 1986, foi publicada uma biografia oficial de Anna Freud, escrita por
Elizabeth Young-Bruehl. Desde então, foi possível detectar o que anteriormente sempre
”Sigmund Freud / Anna Freud Correspondance.” Ed. Fayard, 2006. O prefácio de Roudinesco,
entreatnto, é de junho de 2012. (pp. 9-19)
20
Nas audiências que precederam a aprovação do Mariage pour tous, Roudinesco proferiu esse discurso,
que pode ser visto através do link: http://www.youtube.com/watch?v=fO6Ka0uJ-2Q
19
30
apareceu de forma velada. Nessa biografia, há fatos que comprovam que o que Anna
Freud teve com Dorothy Burlingham não foi apenas uma bela amizade, mas um
relacionamento conjugal que durou mais de 40 anos. Relacionamento que hoje poderia
ser definido como família recomposta e homoparental.
Gostaríamos de ressaltar que a biografia está disponível desde 1986 mas apenas
recentemente, com o reconhecimento da união civil entre duas pessoas do mesmo sexo,
ela ganhou visibilidade. Confirmando nossa impressão de que o reconhecimento da
homoparentalidade e conjugalidade homossexual parece tirar da sombra esse arranjo
familiar, não sendo assim uma novidade.
Separamos alguns trechos a seguir, da citada biografia de Anna Freud (YoungBruehl, 1986):
- Dorothy Tiffany Burlingham foi para Viena em 1925, levando
seu asmático filho mais velho, Bob, com apenas 10 anos de idade,
buscando ajuda para os problemas psicológicos do filho. Quando
Anna Freud concordou em aceitar Bob, Dorothy Burlingham mudouse para Viena com seus três outros filhos – Mary, Katrina e Michael.
Anna Freud tratou dos dois filhos mais velhos de Dorothy, Mary e
Bob. (p. 106)
- Anna Freud confessa a Eitingon seu afeto pela Senhora
Burlingham e também a vergonha de confessá-lo ao pai, Sigmund
Freud. “As cartas de Anna Freud a Eitingon não indicavam se alguma
vez ela falou abertamente com o pai sobre os seus sentimentos. Mas é
certo que Freud aceitou a via que Anna escolheu para escapar ao seu
conflito: ela “tinha” as crianças Burlingham e a mãe delas como sua
família – e conseguia-o fundindo as famílias Freud e Burlingham”.
Numa carta escrita a Binswanger, em janeiro de 1929, Freud escreve:
“Nossa simbiose com a família americana (sem marido), cujos filhos
minha filha está educando analiticamente com mão firme, fortalece-se
cada vez mais, de forma que com eles partilhamos nossas
necessidades para o verão.” (p. 109)
- A partir de 1927, Anna e Dorothy excursionaram juntas nas férias
e em 1930, compraram juntas uma cabana. (....) Os Burlingham (sem
o marido) se mudaram para o apartamento em cima dos Freud, na
Bergasse 19, e tinha mesmo uma casa de veraneio vizinha. (p.109)
- Anna Freud deu um jeito para satisfazer seus próprios desejos, em
vez de passá-los para outros e viver a vida na figura dos outros; à sua
própria maneira, tinha ela uma vida familiar rica e completa, embora,
na década de 1920 em diante, ela não tenha mantido relacionamento
sexual com Dorothy ou com qualquer outra pessoa. (p. 109)
- Não há prova de que Anna Freud se sentisse frustrada ou se
lamentasse em sua nova família, embora desempenhar para as crianças
Burlingham o duplo papel de mãe adotiva e de analista fosse sempre
problemático – para eles e para ela. (p. 111)
Anna passou a ter sua própria vida familiar com a amizade de Dorothy. Os
trechos e a biografia revelam que o que parecia ocorrer entre Anna e sua companheira
era um relacionamento conjugal, nos moldes de uma família recomposta.
31
Elas, Anna e Dorothy, trabalharam juntas na creche Hampstead. Dorothy
também era psicanalista e escreveu artigos sobre crianças cegas e sobre irmãos gêmeos.
A partir de 1940, as duas nunca mais se separaram. Após a morte de Martha, mãe de
Anna, em 1951, Anna e Dorothy passaram a morar juntas na casa da família Freud.
Dorothy morreu em 1979 e Anna em 1982. As cinzas de ambas estão no Caveu Familial
dos Freud, no crematório Golders Green, assim como muitos outros membros da
família Freud.
Podemos concluir que aquilo que fazia com que, tanto o homossexual quanto a
família homoparental fossem invisíveis, a partir do reconhecimento de direitos
homossexuais de casamento e de família, passa a não existir ou atuar de forma mais
branda. Os efeitos do reconhecimento legal da homossexualidade normatizada através
do direito de família certamente tornará a homoparentalidade um avatar familiar cada
vez mais comum tanto no presente e no futuro como também no passado.
32
2 Psicanálise e a Diferença Sexual
O tema da homoparentalidade desperta uma questões sobre a diferença entre os
sexos e sobre como seria, então, a constituição de uma criança criada por duas pessoas
com o mesmo sexo anatômico. Seria a anatomia sexual capaz de garantir a aquisição de
uma noção de diferença sexual? Ter pais do mesmo sexo anatômico afetaria o acesso
dessas crianças à diferença sexual?
A fim de pensarmos sobre essas questões recorreremos aos textos clássicos de
Freud que tratam diretamente sobre a aquisição da diferença sexual. A partir disso
teremos ferramentas para debater em que medida a compleição anatômica dos pais se
apresenta como fator determinante na subjetivação dos filhos.
Antes de adentrar no contexto propriamente psicanalítico da questão, faremos
um breve comentário sobre a “invenção do sexo” e caminharemos a discutir como,
gradativamente, a diferença sexual foi sendo cada vez mais dissociada de qualquer
relação necessária com a natureza, biologia ou genética.
Veremos a seguir o movimento que ocorre acerca do que é considerado feminino
e masculino através dos tempos e como a psicanálise freudiana lidou com a diferença
sexual.
2.1 Inventando o sexo
A constituição da diferença sexual é uma questão bastante complexa. A
diferenciação do que é um homem e do que é uma mulher, questão que pode parecer
óbvia em um primeiro momento, trata-se de um assunto delicado, complicado e
discutido pela ciência há milhares de anos. Como nos diz Thomas Laqueur, em seu livro
intitulado “Inventando o Sexo”: “de fato, quanto mais examino os registros históricos,
menos clara se torna a divisão sexual; quanto mais os corpos existiam como fundamento
do sexo, menos sólidas se tornavam as fronteiras.” (Laqueur, 1992/2001, p. 8) Assim, o
anatômico do corpo, para Laqueur, não é suficiente para explicar ou determinar o que
constitui a feminilidade e a masculinidade, ou seja, as diferenças sexuais.
O próprio Freud procura fundamentos biológicos ou anatômicos para explicitar
essa diferença, mas acaba cada vez mais indicando a significação psíquica em torno do
que é um homem ou uma mulher, distanciando-se de um determinismo biológico ou
33
anatômico. Esse percurso entre ser mais ligado à biologia ou ao funcionamento psíquico
na obra de Freud, analisaremos mais adiante.
Antes de entrarmos na visão psicanalítica da diferença sexual através de alguns
textos freudianos, colocaremos brevemente pontos que consideramos importantes
acerca da construção cultural da diferença entre os sexos. De acordo com Costa (1995),
nenhuma posição sexual pode ser considerada universal e comum a todos os indivíduos,
em todos os tempos. Segundo o autor, há dois pontos primordiais para se entender a
diferença entre os sexos: a crença na diferença dos sexos e o instinto21 sexual. Assim, é
possível distinguir, em momentos históricos diferentes, teorias que buscam entender e
explicar a diferença sexual em termos de homem e mulher, feminino e masculino, e
teorias que levam em conta o instinto sexual, ou seja, em relação aos desejos sexuais de
homens e mulheres. Das teorias sobre diferença sexual, pode-se distinguir o que é um
homem e o que é uma mulher, sob pontos de vista que variam ao longo dos tempos. Das
ideias sobre instinto sexual, pode-se destacar, por exemplo, a questão do desejo sexual,
e dividir os seres humanos entre homossexuais e heterossexuais.
Bem antes do século XVIII, a medicina galênica do século II d.C considerava
apenas um sexo: o masculino. Galeno desenvolveu o mais “poderoso e exuberante
modelo de identidade estrutural” dos órgãos reprodutivos do homem e da mulher. Esse
modelo demonstrava com detalhes que as mulheres eram essencialmente homens.
(Laqueur, 1992/2011) A mulher era considerada um representante inferior do sexo
masculino. Havia uma “crença metafísica na teoria do calor vital e da perfeição
anatômica do corpo masculino, a mulher era descrita como um homem invertido”
(Costa, 1995, p. 5). Invertido e inferior.
Aqui, damos um salto histórico. Apenas a partir do final do século XVIII que a
mulher passou a ser considerada por suas diferenças fundamentais em relação ao
homem, não sendo mais considerada como um homem virado para dentro. É somente
no século XVIII que as diferenças sexuais aparecem e a mulher começa a ser vista a
partir de suas peculiaridades.
Assim, o antigo modelo no qual homens e mulheres eram
classificados conforme seu grau de perfeição metafísica, seu calor
vital, ao longo de um eixo cuja causa final era masculina, deu lugar,
no final do século XVIII, a um novo modelo de dimorfismo radical, de
21
Em psicanálise há uma batalha entre tradutores e teóricos a respeito da tradução do termo Trieb como
instinto ou pulsão. Neste ponto do texto utilizaremos o termo instinto seguindo a utilização de Costa, pois
é assim que esse autor utiliza no texto ao qual estamos nos referindo. Porém, preferimos o termo pulsão,
por acreditarmos que ele denota em si a diferença que existe entre um instinto natural e aquilo que é
próprio da constituição psíquica, ou seja, contingente.
34
divergência biológica. Uma anatomia e uma fisiologia de
incomensurabilidade substituiu a metafísica de hierarquia na
representação da mulher com relação ao homem. (Laqueur, 2001, p.
17)
Laqueur (1992/2011) tinha como meta mostrar que a biologia tem uma
hierarquia: o sexo masculino era considerado superior. Dessa forma, até o século XVIII,
a anatomia serviu mais como ilustração de um ponto conhecido do que como evidência
de uma verdade. O ponto conhecido era a inferioridade da mulher, evidência de que o
sexo feminino era apenas um substrato do homem, um produto. Assim, não poderia ser
tratado como nada especial, nem ter seus nomes próprios. Os ovários femininos não
tiveram nomes próprios durante dois milênios.
O que Laqueur nos mostra é como a tradição galênica obteve êxito em ignorar as
especificidades dos órgãos femininos e mais êxito ainda em comprovar, através da
metáfora anatômica do sexo feminino, sua inferioridade.
Em alguma época do século XVIII, o sexo que nós conhecemos foi
inventado. (...) Os órgãos que tinham nomes associados – ovários e
testículos – passaram a ser distinguidos em termos linguísticos. Os
que não tinham nome específico, como a vagina, passaram a ter. As
estruturas que eram consideradas comuns ao homem e à mulher – o
esqueleto e o sistema nervoso – foram diferenciados de modo que
correspondessem ao homem e à mulher culturais. (...) Os dois sexos,
em outras palavras, foram inventados como fundamento para o
gênero. (Laqueur, 1992/2011, p. 190)
Há duas explicações para a forma como os dois sexos modernos, como nós os
imaginamos, foram e continuaram a ser inventados: uma é epistemológica e a outra,
falando em termos gerais, é política. Quando se tornaram politicamente importantes,
houve interesse em evidenciar as diferenças entre os sexos, sendo elas anatômicas e
fisiológicas. Como afirma Laqueur (2011) “O sexo, tanto no mundo do sexo único
como no de dois sexos, é situacional; é explicável apenas dentro do contexto da luta
sobre gênero e poder.” (p. 24)
Para Laqueur, a descoberta da “independência da concepção com relação ao
prazer criou um espaço no qual a natureza sexual da mulher pode ser redefinida” (p.
288). Dessa forma, houve uma desnaturalização que desvinculou concepção e prazer e
que permitiu caracterizar a mulher de outra maneira. É nesse ponto que Laqueur
reconhece o lugar de Freud na compreensão da diferença entre os sexos, “precisamente
por ter refutado as antigas categorias de homens e mulheres” e por ter apresentado o
problema de forma tão brilhante, embora não tenha chegado ao final dessa construção
sobre diferença sexual (Laqueur, 2011, p. 288).
35
Não se podiam imaginar "dois sexos" diferentes, nem estabelecer códigos de
conduta moral, baseados na "ideia de uma evolução natural do instinto sexual" para um
fim predeterminado, no caso, organização da família nuclear, da sociedade burguesa,
dos estados nacionais e das políticas imperialistas e colonialistas.
Além disso, veremos que, ao longo de sua construção teórica, Freud faz uma
espécie de retificação feminina, quando passa a considerar a menina e o feminino a
partir de uma abordagem específica. A seguir, trataremos a questão da diferença sexual
em Freud a partir de textos que explicitam a tentativa da psicanálise do início do século
XX de estabelecer uma diferença entre a constituição subjetiva do menino e da menina.
2.2 A diferença sexual em Freud
Dá-se o nome de diferenciação sexual ou sexuada ao conjunto de
movimentos psíquicos que permitem ao sujeito ter acesso ao
reconhecimento da diferença entre os sexos. Na base dessa
diferenciação encontram-se o complexo de Édipo e o complexo de
castração. (Mijolla, 2005, p. 500)
A concepção freudiana da diferença sexual é tributária da medicina galênica, que
considera o feminino a partir do masculino ou a mulher como uma espécie de homem
invertido inferior e também da biologia do século XIX, que se preocupar em estabelecer
uma diferença radical entre os sexos a partir da anatomia. Como nos lembra Bartucci
(2002), a noção de corpo para Freud não é a mesma da medicina pois ele trata de um
corpo erógeno. O bebê humano é dependente de cuidados para sua sobrevivência e, a
partir desses cuidados, terá seu corpo circunscrito em zonas erógenas. “É mesmo a
partir do universo simbólico do adulto que a hierarquia do prazer ocupará a superfície
corporal do bebê”. (Bartucci, 2002, pp 131) Ao tratar do corpo erógeno, do corpo como
observado na psicanálise, é importante considerar “um conjunto de traços sobre a
sexualidade, tais como prematuridade, incompletude, insuficiência, polimorfismo,
inexistência de objeto fixo na pulsão”, uma vez que caberá ao complexo de Édipo
“organizar o devir humano em torno da diferença dos sexos e da diferença das
gerações”. (Bartucci, 2002, pp 131-132)
Através de observações clínicas das teorias sexuais infantis, Freud considerou
que no início a menina “desconhece a existência da vagina e faz o clitóris desempenhar
o papel de um homólogo ao pênis”. (Roudinesco & Plon, 1998, p. 154) Roudinesco e
Plon defendem, também, que Freud “não tinha por objetivo descrever a diferença sexual
36
a partir da anatomia, nem tampouco decidir a questão da condição feminina na
sociedade moderna”. (1998, p. 155)
A descoberta de Freud de que a sexualidade inaugura a vida psíquica opera sobre
a diferença sexual, já que faz parte da sexualidade a forma que o sujeito se coloca mais
ou menos feminino ou masculino; ou mais do lado do sexo masculino ou feminino. De
acordo com o “Dicionário De Psicanálise” (Roudinesco & Plon, 1998), a diferença
sexual, em psicanálise, é derivada da concepção freudiana da libido única ou do
chamado monismo sexual, que permite definir, a um só tempo, tanto a sexualidade
masculina como a feminina. Perceberemos que Freud considerava a sexualidade
masculina bem mais simples e menos enigmática que àquela do “continente negro”.
De acordo com Sigmund Freud, a existência de uma diferença
anatômica leva cada representante de ambos os sexos a uma
organização psíquica diferente, através do complexo de Édipo e da
castração. Mas, se essa diferença existe, ela é pensada por Freud no
quadro unificador do monismo sexual: uma única libido, de essência
masculina, define a sexualidade em geral (masculina e feminina).
(Roudineco & Plon, 1998, p. 705)
Ao percorrer a obra de Freud sobre a diferença sexual, alguns textos se destacam
pois discutem abertamente o tema em questão. A seguir, trataremos um pouco de cada
um desses textos.
2.2.1 A organização genital infantil: o genital é o falo
Começaremos pelo texto de 1923, “A organização genital infantil (um acréscimo
à teoria da sexualidade)”, no qual Freud propõe considerações importantes acerca do
desenvolvimento sexual, comum ao menino e à menina até certo ponto, e suas
diferenças para masculino e feminino. Escrito em 1923, o texto é marcado pela segunda
tópica psicanalítica, do mesmo ano de “O Eu e o ID”, o que demandou uma atualização
em relação à teoria pulsional. (Assoun, 2009)
Logo no título, já notamos um caráter inédito ao se tratar de sexualidade infantil,
pois, como comenta Assoun (2009)
22
, trata-se de uma expressão paradoxal. Até o
momento desse texto, a sexualidade infantil era por excelência parcial, pré-genital,
perverso-polimorfa. Esses eram os pontos que distinguiam a criança do adulto, em
As ideais abordadas nesse parágrafo são fruto da discussão sobre o texto “Organização Genital
Infantil”, de Freud, feitas por Paul-Laurent Assoun, na página 922 de seu “Dicionário das Obras
Psicanalíticas”, cuja referência se encontra no final. Optou-se por não traduzir o parágrafo e sim incluir as
discussões do autor sobre o texto de Freud.
22
37
termos de organização sexual. Mas o que Freud anuncia logo no título é uma proposição
inovadora: que há uma organização sexual infantil e que essa organização é genital, o
que contraria a ideia da sexualidade infantil dos “Três ensaios sobre a teoria da
sexualidade” (1905). Naquele texto, esta era tratada como plural, fragmentada e,
portanto, inicialmente “desorganizada”.
No início do texto, temos a comparação entre sexualidade infantil e adulta. A
primeira seria determinada pelas organizações pré-genitais e a segunda, pela instauração
em dois tempos do desenvolvimento sexual. A única diferença entre a sexualidade
infantil e a adulta “está em que a reunião dos instintos parciais e sua subordinação à
primazia dos genitais não chega a ocorrer na infância, ou ocorre de maneira bastante
incompleta.” (Freud, 1923/2011, p. 170) Assim, o estabelecimento desse primado
genital, a serviço da reprodução, é a última fase por que passa a organização sexual.
Ao tentar demonstrar as poucas diferenças que existem entre a sexualidade
infantil e aquela do adulto, Freud nos propõe que ainda não há na sexualidade infantil
uma total reunião dos instintos parciais em função da reprodução, ou seja, ainda não há
o genital propriamente dito, mas ele nos indica que há essa reunião mesmo que ainda
incompleta.
Nesse texto, Freud enfatiza que já há uma organização genital infantil, mas que
esta ignoraria a reprodução e que seria também desnaturalizada. O autor ainda defende
que tal organização passará a ser em função da reprodução no segundo tempo da
sexualidade, período da adolescência, quando o órgão feminino propriamente dito será,
finalmente, (re)conhecido. O que Freud reconhece nesse texto de 1923 é a organização
fálica infantil, que ignora totalmente a realidade anatômica e é construída a partir de
teorias infantis sobre os órgãos sexuais, que culminam em considerar que são ou fálicos
ou castrados: o chamado monismo sexual na infância, que reconhece apenas o genital
masculino e a primazia do falo.2324
Dicionário de Psicanálise (Roudinesco&Plon: 706): “Em outras palavras, se existe um monismo sexual,
isso significa que, no inconsciente e nas representações inconscientes do sujeito (seja ele homem ou
mulher), a diferença entre os sexos não existe. A bissexualidade que é o corolário dessa organização
monista da libido, concerne, portanto, a ambos os sexos.”.
23
24
Esse ponto é polêmico, pois é esse o alvo de críticas ainda na época das proposições freudianas, quando
foram contestadas por Ernest Jones e Karen Horney. Ambos, assim como os “discípulos” de Melanie
Klein, acreditavam haver um reconhecimento do órgão sexual feminino. O monismo sexual foi também
contestado mais tarde por Simone de Beauvoir, em seu livro “Segundo Sexo”, e até hoje é ponto polêmico
nos estudos de gênero.
38
Agora eu já não me daria por satisfeito com a afirmação de que o
primado dos genitais não se realiza, ou o faz muito imperfeitamente,
no período da primeira infância. A aproximação da vida sexual
infantil àquela dos adultos vai muito adiante e não se limita ao
surgimento da escolha de objeto. Mesmo não chegando a uma
autêntica reunião dos instintos parciais sob o primado dos genitais, no
auge do desenvolvimento da sexualidade infantil o interesse nos
genitais adquirem uma significação preponderante, que pouco fica a
dever àquela da maturidade. A principal característica dessa
“organização genital infantil” constitui, ao mesmo tempo, o que a
diferencia da definitiva organização genital dos adultos. Consiste no
fato de que, para ambos os sexos, apenas um genital, o masculino,
entra em consideração. Não há, portanto, uma primazia genital, mas
uma primazia do falo. (Freud, 1923/2011, pp. 170-171)
Podemos observar que a tese central desse texto de Freud, que nos interessa para
a discussão acerca da diferença sexual, define que o desenvolvimento libidinal que se
produz a partir da organização genital infantil é caracterizado pelo investimento de um
só órgão genital pelos dois sexos: é o falo que faz o papel de organizador libidinal.
(Assoun, 2009)
Freud (1923/2011) coloca a importância da articulação da primazia do falo em
relação a outros temas caros à sua teoria psicanalítica tais como o complexo de
castração e o complexo de Édipo. Ele nos afirma que a “ideia do complexo de castração
só pode ser corretamente apreciada quando considerada sua origem na fase da primazia
do falo.” (Freud, 1923/2011, p. 173)
Poderíamos apreender que é o anatômico que causa impressões nos meninos e
nas meninas, colocando-os em posições diferentes em relação à castração, porém, tratase de um momento ainda aquém da anatomia. Portanto, o que organiza libidinalmente
ambos, meninos e meninas, é o falo. Para Freud (1923/2011), é a primazia do falo que
organiza o sexual infantil.
É em torno do que significa o falo que a discussão sobre diferença sexual se dá
nesse momento da psicanálise e podemos considerar que esse texto nos confunde tanto
quanto esclarece acerca da diferença sexual. A partir da diferença anatômica ele encerra
a discussão com uma solução curiosa, de que a organização sexual infantil é totalmente
organizada por apenas um genital, o masculino. Que o cerne da discussão esteja aí, pode
fazer parecer que a psicanálise se guia por algum tipo de pensamento machista.
Por mais que tentemos distinguir e averiguar os percursos da construção
subjetiva e, mais especificamente, o percurso da configuração de identidade sexual ou
de gênero, o que se encontra são inúmeras dificuldades para fazê-lo. Como parece
ocorrer na pesquisa de Laqueur, citada anteriormente, a impressão é de voltar sempre
39
para o mesmo lugar: que por mais que se tente diferenciar as coisas, elas permanecem
tão ligadas que sua diferenciação já nos parece ineficaz. Sexo são dois, gêneros são
múltiplos. Gêneros existem na mesma proporção que existem percursos subjetivos; e
gênero engloba o sexo, o objeto sexual, as metas, as causas e os efeitos da pulsão.
Voltemos à Freud, ainda no texto sobre a organização genital infantil. O
desenvolvimento sexual é dividido em três partes neste texto freudiano de 1923: (1)
estágio da organização pré-genital sadicoanal, no qual ainda não se pode falar em
masculino e feminino, mas em passivo e ativo; (2) estágio que se segue, há masculino,
mas não há feminino, colocando assim a oposição entre “genital masculino” ou
“castrado”; (3) apenas ao se completar o desenvolvimento, na época da puberdade, a
polaridade sexual coincide com “masculino” e “feminino”. Masculino se refere ao
sujeito, à atividade e à posse do pênis; feminino refere-se ao objeto e à passividade. A
vagina é, então, estimada como abrigo do pênis, torna-se herdeira do ventre materno
(Freud, 1923/2011). Podemos então perceber as proposições de Freud sobre as
diferenças sexuais nesse momento de sua obra e que culminam, na puberdade, numa
equivalência entre ativo e masculino, passivo e feminino.
Veremos como essa concepção freudiana de coincidir feminino com passividade
e masculino com atividade pode gerar alguma confusão, se esquecermos que o autor
trata da masculinidade e feminilidade apenas em momentos mais avançados da
constituição tanto subjetiva quanto da diferenças sexual.
Faremos, então, uma breve referência a outro texto freudiano, “A pulsão e seus
destinos”, de 1915/2013, em que Freud fala explicitamente isso, como veremos no
trecho a seguir.
A oposição ativo-passivo funde-se depois com a oposição
masculino-feminino. O que não tem importância psicológica até o
momento em que isso ocorre. O amalgamento da atividade com a
masculinidade e da passividade com a feminilidade nos aparece como
um fato biológico; entretanto de modo algum ele é tão regularmente
imperioso e exclusivo como estaríamos propensos a presumir. (Freud,
1915/2013, pp. 51-53)
Podemos perceber que tanto em 1915 quanto em 1923, Freud nos indica que há
primeiro uma diferenciação entre passivo e ativo e que nesse estágio inicial não há
masculino e feminino. Em estágio intermediário, da organização genital infantil, não há
ainda oposição entre feminino e masculino, mas apenas masculino. A oposição que
existe é entre fálico e castrado. Freud aponta que apenas na puberdade, quando se
completa o desenvolvimento, há uma equivalência entre essa polaridade sexual anterior
40
com feminino e masculino, pois, apenas na puberdade, o órgão sexual feminino será
reconhecido. A discussão sobre atividade/passividade e sua equivalência entre
masculino/feminino reaparecerá de maneira explícita no texto que trataremos adiante
sobre feminilidade.
Podemos perceber as proposições de Freud sobre as diferenças sexuais, nesse
momento de sua obra, para poder refletir melhor sobre as ideias que vêm a seguir, a
respeito do complexo de Édipo.
2.2.2 A dissolução do complexo de Édipo
Em 1924, Freud publica “A dissolução do complexo de Édipo”. O complexo de
Édipo é considerado o fenômeno central do período sexual da primeira infância e
também um dos pilares sobre os quais se ampara o edifício teórico da psicanálise. A
importância desse texto está no entrelaçamento que o autor faz entre complexo de
castração, formação do supereu, período de latência e identificação, isso tudo para
explicar como o complexo de Édipo “desaparece”, se conclui ou se dissolve.
Logo de início, o autor nos fala das duas diferentes formas através das quais o
complexo de Édipo tem seu declínio: (1) por seu fracasso, em consequência de sua
impossibilidade interna (proibição do incesto); (2) porque chegou o momento de sua
desintegração, assim como caem os dentes de leite quando surgem os permanentes.
(Freud, 1924/2011, p. 204)
Para explicar como ocorre a dissolução do complexo de Édipo, Freud se refere à
ameaça de castração e seu efeito a posteriori. Assim, para o menino, embora a ameaça
já exista, seu efeito acontece ao se dar conta de que a menina não tem pênis. Ou seja, é o
efeito da visão do genital feminino castrado que faz com que o garoto tema sua própria
castração. Isso o leva a temer que ele perca o seu pênis, pois imagina que a menina tinha
um e o perdeu.25
O complexo de castração entra com força total para o declínio do complexo de
Édipo no garoto. Para a menina, acontece de forma diferente, o que marca a importância
desse texto para entendermos a noção de diferença sexual em Freud, já que as
consequências psíquicas são diferentes entre meninos e meninas e são colocadas pelo
25
Esse ponto será trabalhado por Freud em texto que será discutido abaixo: Algumas Consequências
Psíquicas da distinção anatômica entre os sexos, de 1925.
41
autor em relação às diferenças anatômicas dos sexos, declarando, assim, que “anatomia
é destino” 26.
Para o garoto, perceber que a garota não tem pênis é admitir a possibilidade de
sua própria castração. Desse modo, chegam ao fim suas duas possibilidades de obter
satisfação no Complexo de Édipo: a possibilidade ativa, colocando-se no lugar do pai e
relacionando-se com a mãe; e a possibilidade passiva27, que denotaria substituir a mãe
para ser amado pelo pai. Isso porque em ambas as possibilidades, o complexo de
castração atuaria, ou seja, nas duas formas de satisfação seu pênis estaria em risco: na
primeira como castigo e na segunda como pressuposto, já que isso tudo ocorre pela
constatação do garoto de que as meninas não tem pênis. A satisfação amorosa, seja ela
masculina, identificada ao pai para ser amado pela mãe; ou feminina, identificada à mãe
para ser amado pelo pai, deve lhe custar o pênis, fazendo assim com que haja um
conflito entre o interesse narcísico nessa parte do corpo e o investimento libidinal dos
objetos parentais. Nesse confronto, a força que costuma vencer é a do Eu do menino,
explicando, assim, porque ele se afasta do complexo de Édipo. (Freud, 1924/2011)
Ainda sobre o caminho e efeitos da dissolução do complexo de Édipo, Freud
explica:
Os investimentos objetais são abandonados e substituídos pela
identificação. A autoridade do pai ou dos pais, introjetada no Eu,
forma ali o âmago do Super-eu, que toma ao pai a severidade,
perpetua a sua proibição do incesto e assim garante o Eu contra o
retorno do investimento libidinal de objeto. As tendências libidinais
próprias do complexo de Édipo são dessexualizadas [itálico feito pela
autora] e sublimadas em parte, o que provavelmente ocorre em toda
transformação em identificação, e em parte inibidas na meta e
mudadas em impulsos ternos. Todo o processo, por um lado, salvou o
genital, afastou dele o perigo da perda, e, por outro lado, paralisou-o,
suspendeu sua função. Com ele tem início o período de latência, que
interrompe o desenvolvimento sexual da criança. (Freud, 1924/2011,
p. 186)
Nesse momento do pensamento freudiano, podemos perceber que a sublimação
aparece como um sinônimo 28 de dessexualização. O abandono dos objetivos sexuais
permitem a liberação dessa energia dessexualizada, deixando-a assim disponível para o
processo identificatório. A rivalidade paterna é substituída pela identificação ao pai, o
26
A anatomia, para Freud, oscila entre àquela biológica/real e a que foi proposta pelo autor no texto
anterior, ou seja, relativa ao que representa na formação inconsciente a anatomia.
27
Nesse ponto, mais uma vez, percebemos uma equivalência entre passivo/feminino e ativo/masculino.
28
Outro momento em que sublimação aparece como sinônimo de dessexualização é no Eu e o Id, no
trecho: “Se esta energia deslocável é libido dessexualizada, pode ser também descrita como energia
sublimada....” (Freud, 1923/2011, p. 57)
42
que permite ao garoto tanto se preservar da ameaça de castração quanto proteger o Eu
do retorno de investimento libidinal.
Sobre identificação 29 e sublimação, ou seja, a dessexualização que ocorre em
favor de uma hierarquia paterna, gostaríamos de enfatizar que, na citação freudiana
acima, a autoridade do pai é introjetada, apontando nisso a posição paterna em relação à
criança e não necessariamente vinculada ao sexo anatômico dessa figura de autoridade
que é o pai (ou os pais, como indicou Freud na mesma citação acima).
Freud chega à conclusão de que, para o menino, “o complexo de Édipo sucumbe
à ameaça de castração” (Freud, 1924/2011, p. 187). Freud também afirma que a
diferença morfológica é a fonte de manifestação de diferenças no desenvolvimento
psíquico, quando faz uma paródia de uma frase de Napoleão e diz: anatomia é destino.
Afirma, assim, que a diferença morfológica é a fonte de manifestação de diferenças no
desenvolvimento psíquico. Sobre este ponto, podemos entender que Freud diz que o
destino da criança, ou seja, o destino psicossexual é determinado a partir de seu órgão
sexual anatômico, seja ele menino, com seu órgão genital fálico, ou menina, com seu
órgão castrado. Freud afirma ainda que a menina acredita inicialmente, mesmo
percebendo que saiu perdendo na comparação com o menino, que seu clitóris vai
crescer e se tornar um pênis e, a partir daí, se separa o complexo de masculinidade na
mulher. Da constatação na menina de que perdeu seu pênis, ou seja, de que a castração
ocorreu, resulta “a diferença essencial de que a menina aceita a castração como fato
consumado, enquanto o menino teme a possibilidade de consumação.” (Freud,
1925/2013, p. 189)
Sobre a sexualidade da menina, Freud explica que, neste momento, é um fator da
diferença sexual: meninos temem a castração e meninas a aceitam como fato
consumado. Isso surte um efeito decisivo na noção freudiana dessa diferença entre os
sexos, já que para a menina a ameaça de castração não tem o mesmo efeito que para o
menino, afinal, a menina constata e aceita que já perdeu seu pênis. Freud conclui que,
nas mulheres, tanto a construção do Supereu quanto a demolição da organização genital
infantil não tem fortes motivos para acontecer, e ocorre em função da educação,
intimidação e ameaça de perda de amor.
Freud termina, nesse momento, sua diferenciação do que seja o destino da
mulher em relação ao destino do homem. A mulher buscaria uma compensação à
29
A identificação será tratada com maior atenção no início do capítulo 3.
43
renúncia ao pênis – único órgão sexual levado em consideração – fazendo uma equação
simbólica, na qual compensaria essa falta desejando gerar um filho do pai. A
consequência psíquica da mulher, derivada da constatação de sua anatomia castrada,
seria o investimento inconsciente desses dois desejos: ter um pênis e ter um filho. Isso
ajudaria a preparar o ser feminino para seu futuro papel sexual. E o papel sexual
possível para a mulher nos tempos de Freud era relativo aos papéis de esposa e mãe. O
destino da mulher caía, então, novamente, sobre o corpo anatômico, capaz de gerar um
bebê e se dedicar a esse bebê. De alguma forma, acaba parecendo que a função materna
e conjugal para a mulher seria algo naturalizado, seria seu destino.
A passagem freudiana sobre o Complexo de Édipo ajuda a entender “produção
das identidades como artifício protetor de nossa solidão subjetiva diante do enigma do
desejo.” (Kehl, 2006, p. 12) O Complexo de Édipo analisa o trajeto percorrido por toda
criança, do estado polimorfo infantil à organização genital sexuada; mas Freud adverte:
esta organização é produzida pelo recalque e dessexualização dos amores edípicos e,
consequentemente, pela identificação aos ideais parentais de gênero dados pela cultura.
Assim, prossegue, ninguém nasce homem, ou mulher; tornamo-nos homens ou
mulheres, ao fim de um percurso que exige de cada um o abandono das disposições
bissexuais primárias, das potencialidades polimorfas, da indiscriminação infantil. O
inconsciente, se é todo sexual, não é sexuado; se para Freud, “anatomia é destino”, isto
significa que a partir da “mínima diferença” inscrita em nossos corpos temos que nos
constituir homens e mulheres à custa de tudo o que, do ponto de vista do inconsciente, é
indiferenciado (Kehl, 2006, p. 12). Se a correspondência anatômica bastasse para que
pudéssemos aceder a uma posição sexuada, não passaríamos a vida nos indagando sobre
o que significa afinal “ser homem” ou “ser mulher”; não padeceríamos do sofrimento de
que, em relação ao sentido sexual de nossos atos, nunca sabemos bem como será
acolhido e significado pelo outro ou por nós mesmos. (Poli, 2007, p. 9) Apelamos à
anatomia, mas ela não é suficiente para nos proteger das questões essenciais e
enigmáticas que se colocam ao longo do percurso da constituição subjetiva. Nem
mesmo às questões acerca do que afinal é um homem ou uma mulher.
2.2.3 Algumas consequências psíquicas da diferença anatômica entre os sexos
Em 1925, no texto “Algumas consequências psíquicas da diferença anatômica
entre os sexos”, Freud reconsidera pontos importantes sobre o complexo de Édipo no
44
menino, pontos diferentes daqueles tratados no texto anterior, de 1924. As ideias dos
dois textos são bastante complementares. Neste, Freud coloca afirmações importantes
para a diferença sexual que gostaríamos de destacar.
Nesse texto de 1925, “A constatação proprioceptiva – visual,
sobretudo – da presença ou ausência do pênis seria o marco
referencial para a assunção de uma posição subjetiva nas várias
instâncias da vida. Freud denomina complexo de castração a
percepção da diferença sexual, desencadeando uma “angústia de
castração”. Nos meninos, pelo medo de serem privados do órgão, nas
meninas pela perda já efetivada.” (Poli, 2007, p. 11)
Inicialmente, podemos destacar uma afirmação Freudiana muito importante para
o tema sobre o qual nos debruçamos nessa pesquisa, ou seja, a aquisição da diferença
sexual em crianças criadas num meio homoparental:
Tais juízos não nos deixaremos influenciar pela contestação dos
partidários do feminismo, que desejam nos impor uma total
equiparação e equivalência dos sexos, mas admitiremos de bom grado
que também a maioria dos homens fica muito atrás do ideal masculino
e que todos os indivíduos, graças à disposição bissexual e à herança
genética cruzada, reúnem em si caracteres masculinos e femininos, de
modo que a masculinidade e a feminilidade puras permanecem
construções teóricas de conteúdo incerto [itálico nosso]. (Freud,
1925/2011, p. 268)
Podemos dizer que a citação referida acima é marca essencial da teoria da
diferença sexual em Freud, ora signatária do biologicismo, ora expressão explícita da
bissexualidade essencial e da marca da contingência na construção do percurso
subjetivo de cada um. Esse ponto mesmo que torna, para a psicanálise, cada percurso
um caminho único, pilar sobre o qual se apoia a clínica psicanalítica.
Freud encontra uma dificuldade no entendimento do complexo de Édipo, pois
evidencia que mesmo no menino há um duplo sentido, ativo e passivo, correspondendo
à disposição bissexual. A ideia de que o garoto quer também assumir o lugar da mãe,
para obter o amor do pai está presente no texto anterior. A diferença importante é que
nesse momento o autor enfatiza a posição feminina, passiva e a disposição bissexual do
menino, já que o garoto também procura ser objeto amoroso para o pai. “O garoto quer
também assumir o lugar da mãe como objeto amoroso para o pai, o que designamos
como postura feminina [itálico nosso] .” (Freud, 1925/2011, p. 287)
Na menina, Freud nos fala que as consequências psíquicas da inveja do pênis, na
medida em que não é assimilada na formação reativa do complexo de masculinidade,
são diversas e de largo alcance. Com o reconhecimento dessa ferida narcísica, produz-se
na mulher – como uma cicatriz, por assim dizer – um sentimento de inferioridade.
Embora reconheça que as reações dos indivíduos de ambos os sexos sejam mesclas de
45
traços femininos e masculinos, o autor afirma também que há um efeito mais importante
e surpreendente da inveja do pênis (ou da descoberta da inferioridade do clitóris) 30 .
Segundo Freud (1925/2011), “a mulher tolera menos que o homem a masturbação” (p.
264). Evidencia-se assim, para o autor, que essa mescla lhe parece bastante clara para a
garota em relação à masturbação. A mulher não tolera a masturbação por ser para ela
uma constatação de sua inferioridade clitoriana e, também, por ser para ela um órgão
análogo ao pênis, assim se proibindo de tocá-lo já que isso a tornaria um menino. Freud
conclui a partir disso que “uma condição para o desenvolvimento da feminilidade seria
a eliminação da sexualidade clitoridiana”. A repulsa da menina em masturbar-se seria
“claramente, um prenúncio da onda repressiva que vai remover boa parte da sexualidade
masculina na época da puberdade, para abrir espaço ao desenvolvimento da
feminilidade.” (Freud, 1925/2011, p. 264)
“Dessa maneira, o reconhecimento da diferença sexual anatômica impele a
menina a afastar-se da masculinidade e da masturbação masculina, em direção a novas
trilhas que levam ao desenvolvimento da feminilidade.” (Freud, 1925/2011, p. 265)
Freud assume claramente que o clitóris é um pênis inferior31, que causa uma ferida no
narcisismo da mulher, ferida tamanha que impede a mulher de masturbar-se, levando-a
à sexualidade genital, ou seja, a mudança de órgão genital do clitóris para a vagina. Para
Freud, nesse momento, esse seria o destino “normal” da mulher.
Nesse ponto, podemos concluir que a diferença sexual para Freud acrescenta
mais passividade na masculinidade, mais ambiguidade na diferenciação entre o que é
feminino e masculino, pelo menos no que diz respeito ao desenvolvimento psicossexual
do garoto.32 Freud ressalta o elemento masculino na mulher, o clitóris, representando
um modo de satisfação análogo ao masculino, evidenciando assim também na menina
essa bissexualidade. Dessa maneira, Freud abre caminho para a consideração de uma
30
Aqui Freud se refere à inferioridade do clitóris como se referiu anteriormente ao sentimento feminino
de inferioridade. Para o autor parece ser evidente que a inferioridade feminina se deve ao fato da mulher
não possuir pênis, sendo assim castrada, o que nesse ponto da teoria psicanalítica o autor parece mesmo
acreditar. Embora nesse mesmo texto o autor nos coloque claramente a bissexualidade original dos sexos
em relação ao falo, colocando assim o homem bem mais próximo da mulher, inclusive em relação ao
pênis e à castração.
31
Posição herdeira da concepção galênica de diferença sexual e também fruto do que era considerado
culturalmente ser mulher.
32
Embora não seja uniforme essa utilização freudiana tão evidente da ambiguidade e da passividade no
menino e a consideração do que é ativo também na menina, consideramos esse ponto essencial para a
consideração da diferença sexual em psicanálise, suas origens bissexuais e sua relação com a anatomia
apreendida pelo inconsciente.
46
construção tanto da masculinidade quanto da feminilidade, evidenciando assim que não
há uma origem natural, biológica, anatômica que garanta uma posição sexual.
2.2.4 Sobre a sexualidade feminina e feminilidade: os artigos dos anos 1930
Muitos anos após essa teorização de Freud a respeito do desenvolvimento
psicossexual da menina, o autor se dedica exclusivamente a esse assunto em dois textos:
“Sobre a sexualidade feminina”, de 1931 e “A feminilidade”, de 1933. Em ambos os
textos, de maneiras diferentes, Freud realça pontos que não havia trabalhado
anteriormente, colocando em evidência a relação da menina com a mãe. Em alguns
momentos isso é extrapolado também para o menino.
Como pudemos observar anteriormente, Freud pensava a sexualidade feminina
em relação à ausência do pênis na mulher, concluindo que a menina, como
consequência psíquica de sua castração objetiva, passa a desejar um homem e querer um
filho dele, estando assim de acordo com seu papel sexual. Ao final do texto em que
Freud expõe essas conclusões acerca do percurso do desenvolvimento sexual da menina,
o autor assume que “no conjunto é preciso admitir que nossa compreensão desses
processos de desenvolvimento da menina é insatisfatória, plena de lacunas e pontos
obscuros” (Freud, 1924/2011, p. 189). É para tentar preencher essas lacunas e corrigir
concepções acerca da relação arcaica da menina com a mãe, que Freud retoma o
assunto, agora de forma específica, da feminilidade.
2.2.4.1 Sobre a sexualidade feminina de 1931
Em “Sobre a sexualidade feminina”, de 1931, Freud reabre a questão do caráter
masculino/ativo da pulsão ao afirmar que existe uma constituição feminina da
sexualidade. Além disso, o texto é uma tentativa de Freud de integrar à sua organização
teórica as contribuições importantes de psicanalistas que passaram a tratar do campo da
sexualidade propriamente feminina de forma diferente daquela proposta por ele, tais
como: Karen Horney, Ernest Jones, Hélène Deutsch33. Freud evita ser retirado desse
campo minado e integrar essas aquisições (importância da relação primordial com a
mãe) em sua teoria colocada à prova por esses autores. (Assoun, 2009)
33
No período que precedeu a escrita desses dois textos houve uma enxurrada de textos sobre a
sexualidade feminina, o que Freud parece tentar fazer é retomar as rédeas da teoria psicanalítica sobre o
campo do desenvolvimento psicossexual também da garota.
47
Freud começa o texto em questão com a seguinte afirmação:
Na fase do complexo de Édipo normal vemos a criança ligada
afetivamente ao genitor do sexo oposto, enquanto na relação com o de
mesmo sexo predomina a hostilidade. Não nos é difícil chegar a esse
resultado no caso do menino. A mãe foi seu primeiro objeto de amor;
continua a sê-lo, e, com a intensificação dos impulsos amorosos do
menino e sua maior compreensão dos laços entre o pai e a mãe, o pai
tem de se tornar seu rival. É diferente com a menina. Seu primeiro
objeto foi também a mãe, certamente. Mas como acha ela o caminho
até o pai? Como, quando e por que ela se desprende da mãe? (Freud,
1931/2011, p. 203)
Através dessa introdução podemos perceber como o autor considera certo o
destino sexual do menino, que se liga afetivamente à mãe e tem o pai como rival, e se
coloca questões importantes sobre o destino da menina, sobretudo aquelas relativas à
troca de objeto de amor: da mãe para o pai. Podemos dizer que nesse momento o autor
realça menos a ambiguidade do que foi destacado no texto anterior, no qual considerou
mais explicitamente a presença invariável de um Édipo invertido no menino e da
bissexualidade psíquica.
Freud coloca claramente que para ambos os sexos predomina inicialmente a
ligação com esse primeiro objeto de amor: a mãe. Isso demonstra uma mudança em
relação à suas concepções anteriores, pois aqui o autor trata mais diretamente de um
ponto inicial para ambos os sexos: a ligação afetiva com o sexo oposto para o menino e
com o mesmo sexo para a menina. Como explicar então a forte ligação que tantas
mulheres têm com o pai?34 Esse seria um ponto específico da sexualidade feminina.
Logo em seguida à citação que fizemos acima, no texto de 1931, Freud continua:
Há algum tempo vimos que o desenvolvimento da sexualidade
feminina é complicado pela tarefa de abandonar a zona genital
originalmente dominante, o clitóris, por uma nova, a vagina. Agora
uma segunda transformação, a troca do original objeto mãe pelo pai,
parece-nos igualmente característica e significativa para o
desenvolvimento da mulher. (Freud, 1931/2011, p. 203)
No trecho, Freud nos indica que há dois pontos primordiais relativos à
sexualidade exclusivamente feminina: a troca de genital, do clitóris para a vagina e a
troca de objeto, da mãe pelo pai. Considerando assim a sexualidade da menina muito
mais complicada que a do menino, esta aparentemente esclarecida.
34
A forte ligação seria um remonta à ligação inicial com a mãe. A duração da fase inicial com a mãe é
extensa, passa dos quatro anos de idade, se tornando assim ponto fundamental sobre o qual se apoia a
sexualidade feminina. (Assoun, 2009)
48
É também nesse texto que Freud faz referência à fase pré-edípica35 feminina do
desenvolvimento psicossexual, reconhecendo a percepção de analistas mulheres em
relação a pontos que para si próprio passaram despercebidos. Freud compara a
descoberta dessa fase pré-edípica feminina à descoberta de uma civilização
“minoicomiscênica” anterior à civilização grega. Essa fase estaria inteiramente ligada
ao momento da “primeira ligação com a mãe”. Também sugere que a fase de ligação
com a mãe deve estar na etiologia da histeria ou da paranoia feminina relativa ao ciúme.
Em consequência disso, Freud (1931/2011) sugere que quem não quiser
abandonar a “universalidade do Édipo como núcleo da neurose” (p. 204), deve dar ao
complexo um conteúdo mais amplo, de modo a abranger todas as relações da criança
com ambos os genitores. E, seguindo a orientação freudiana, o conteúdo desse
importante complexo teria que ser ainda mais ampliado para dar espaço às
considerações sobre as relações da criança com aqueles que a criam, mesmo se se tratar
de duas pessoas do mesmo sexo anatômico genital. Essa nova forma de apresentar a
teoria nos permite considerar os pais não somente em relação ao sexo anatômico, mas
em relação às funções que desempenham na criação de seus filhos: função paterna e
materna.
A ideia sobre anatomia ser destino é retomada e é colocada em evidência a
bissexualidade feminina, já que a mulher tem dois órgãos genitais: um análogo ao pênis
e outro propriamente feminino.36 Afirma Freud (1931/2011): “A vida sexual da mulher
se divide normalmente em duas fases, das quais a primeira tem caráter masculino;
apenas a segunda é especificamente feminina.” (p. 206) Devido a sua “bissexualidade”
de órgão e de objeto, a sexualidade feminina aparece para Freud de forma bem mais
complexa que a sexualidade masculina. O homem tem apenas um órgão genital e tem
como primeiro objeto de amor uma mulher, a mulher tem dois órgãos genitais e seu
primeiro objeto de amor é a mãe, fazendo assim com que tenha que trocar de objeto.
Esses pontos relativos ao complexo de Édipo e à castração, deixando
consequências diferentes para meninos e meninas, já foram expostos em textos
anteriores. Portanto, trataremos dos pontos que consideramos “novos” no texto em
35
Podemos dizer que ao explicar a fase pré-edipica, principalmente referida à menina, Freud retoma
pontos importantes dos “Três ensaios...”, contemplando assim o terreno perverso-polimorfo da
sexualidade infantil, dos tempos em que ainda não havia qualquer organização. Ponto que não fica tão
evidente nos textos anteriores em que Freud chega a teorizar sobre uma organização infantil em torno do
genital.
36
Freud chega a afirmar que a vagina só passa a existir na puberdade, quando provoca sensações.
Fazendo da mulher ainda mais um “menininho” na infância.
49
questão: a fase exclusiva de ligação com a mãe chamada fase pré-edipica. Segundo
Assoun (2009), o ponto essencial do texto é: a caracterização do tornar-se mulher
inconsciente através da dupla dimensão do complexo de castração e da ligação com a
mãe, cujos desdobramentos dariam acesso ao pai e, posteriormente, ao amor de um
homem.37
Para explicar a ligação primitiva e extensa da menina com sua mãe, Freud realça
a posição passiva que a criança ocupa diante dos cuidados maternos, o que podemos
constatar no trecho abaixo:
As primeiras vivências sexuais e de matiz sexual que a criança tem
com a mãe são, naturalmente, de caráter passivo. Ela é amamentada,
nutrida, limpada, vestida e ensinada a fazer tudo o que deve. Uma
parte da libido da criança continua apegada a essas experiências e
desfruta as satisfações a elas relacionadas, outra parte procura
convertê-la em atividade. (Freud, 1931/2010, p. 214)
Embora o texto em questão trate explicitamente da sexualidade feminina, a
citação acima é em relação às crianças. Portanto, Freud nos fala desse ponto que as
primeiras experiências sexuais do garoto são de caráter passivo, apresentando um ponto
de vista diferente daquele visto anteriormente.
Freud, ao dar exemplos da conversão de passividade em atividade, menciona a
brincadeira tipicamente feminina de bonecas – sinal da feminilidade –, nas quais,
invariavelmente, a menina faz o papel de mãe e oferece cuidados a sua filha
bonequinha. 38 A brincadeira de ser mamãe da boneca denota um caráter ativo da
feminilidade, demonstra exclusividade em relação à mãe e negligência do pai, que não
faz parte da brincadeira. Nesse ponto se evidencia a importância tanto da relação da
menina com a mãe quanto da atividade de brincar para converter sua posição passiva em
ativa. Ao imitar a mãe a menina passa a ser ativa naquilo que inicialmente era objeto.
A atividade sexual da menina em direção à mãe se transforma, com o passar do
tempo, em tendência oral, sádica e, finalmente, fálica. Os desejos agressivos orais e
sádicos são encontrados na forma que esses lhe foram impostos pela repressão. O medo
de ser morta pela mãe, por sua vez, justificaria o desejo de morte contra a mãe, quando
37
A fim de explicar como a menina faz para se desvencilhar da forte ligação inicial que a menina tem
com a mãe, Freud fala da passividade infantil em relação aos cuidados que a mãe lhe oferece, colocandoo assim numa posição passiva.
38
Vale lembrar o exemplo clássico do autor, num trecho de “Além do princípio do prazer”, de 1920, em
que Freud recorda a brincadeira de seu netinho, que consiste em jogar o carretel do berço e trazê-lo de
volta enquanto pronunciava as palavras: fort-da. Importante ressaltar que o próprio autor relaciona, no
texto em questão, a transformação do netinho do passivo em ativo relacionado à ausência da mãe, o que
representaria para seu netinho um imenso desprazer. Freud propõe que através dessa brincadeira o
garotinho tenta fazer ativamente aquilo do qual é apenas objeto, passivo, aquém de sua vontade.
50
este se torna consciente. Freud introduz nesse momento ideias que parecem ser
originadas pelas abordagens da escola inglesa de psicanálise. Como podemos perceber
no trecho em que diz “a criança quer devorar a mãe da qual se nutriu; com relação ao
pai, falta esse motivo para o desejo.” (Freud, 1931/2010, p. 215)
Freud ressalta, através de exemplos, como a excitação sexual está encharcada
pelos primeiros cuidados maternos e como isso desperta desejo de agressão, raiva ou
angústia por parte da criança. A criança pode ter a impressão de ser seduzida pela mãe39
devido ao fato de suas primeiras sensações genitais terem sido provocadas ao receber,
por exemplo, cuidados de higiene. A criança responde a essa excitação pedindo que os
cuidados se tornem ainda mais frequentes. Assim, a criança inicia-se na fase fálica, já
que aí denotaria uma sexualidade direcionada ao genital, ou, à excitação genital. O
corpo erógeno, produto da sedução e dos cuidados maternos, levaria a criança a
abandonar os objetos parciais e se dirigir em direção ao genital.
O ponto mais importante para o desenvolvimento psicossexual da garota, no
sentido de poder avançar em direção à entrada e posterior dissolução do complexo de
Édipo feminino, passa a ser, após esse texto, a capacidade de afastar-se da relação
primordial com a mãe. Só assim a menina pode ter o pleno desenvolvimento de sua
feminilidade. Não se trata apenas de uma “simples mudança de objeto”, como Freud
havia proposto anteriormente, mas de uma ligação pré-edípica da criança com sua
primeira fonte de cuidados que deve ser superada. Isso considerado como uma fase
exclusivamente feminina.
Após considerar a importância do período pré-edípico para o desenvolvimento
da mulher, Freud conclui a última parte do texto em que faz referência, principalmente,
às analistas mulheres que vinham tratando sobre o assunto.
2.2.4.2 Conferência sobre feminilidade de 1933
O texto que comentaremos a seguir é o último dessa seção sobre a diferença
sexual em Freud. Trata-se da conferência 33 das “Novas Conferências Introdutórias à
Psicanálise”, intitulada “Feminilidade” (1933/2010). Consideramos o texto importante
por se tratar de uma retomada do autor sobre a questão tratada no texto anterior, porém
de maneira mais didática já que se trata de uma conferência oral. O que pretendemos
39
A sedução materna será mais nitidamente discutida no texto sobre feminilidade, que trataremos a
seguir.
51
destacar são trechos e ideias presentes nesse texto que contribuem para a discussão que
propusemos inicialmente.
Freud constata nos primeiros parágrafos dessa conferência que a divisão sexual é
um ponto fundamental para a organização dos seres humanos entre “macho ou fêmea”.
Embora anuncie que tratará dos enigmas da feminilidade, o que o autor acaba por
afirmar é a ambiguidade sexual que habita cada ser humano. Além disso, a aparente
determinação anatômica vacila com mais clareza nesse texto, por exemplo, quando o
autor escreve que “(...) o que constitui a masculinidade ou feminilidade é uma
característica desconhecida, que a anatomia não pode apreender.” (Freud, 1933/2010, p.
266) Nesse ponto, fica mais evidente que possamos entender e mesmo concordar com
afirmações como a que apresentaremos a seguir sobre a concepção freudiana a respeito
da diferença sexual.
Para Freud, com efeito, a existência de uma diferença anatômica
entre os sexos não desembocava numa concepção naturalista, uma vez
que essa famosa diferença, ausente no inconsciente atesta, para o
sujeito, uma contradição estrutural entre a ordem psíquica e a ordem
anatômica. (Roudinesco & Plon, 1998, p. 707)
Em alguns pontos citados e discutidos anteriormente, Freud não nos parece tão
certo do destino do sujeito não determinado pela anatomia, porém é também possível
constatar que coerente com os preceitos psicanalíticos, o “pai” da psicanálise enfatiza a
importância da ordem psíquica sobre aquela biológica.
Didaticamente, Freud convida sua audiência a se familiarizar com a
bissexualidade, com a ideia de que cada indivíduo não é homem ou mulher, mas seres
nos quais as noções de masculino e feminino variam em proporções diferentes e ressalta
que tais variações são consideráveis.
Psiquicamente, Freud afirma que denominamos algo como “masculino” ou
“feminino” por convenção, comumente nos referindo a “ativo” e “passivo”,
respectivamente. Nesse ponto, há uma separação mais clara entre masculino e ativo,
feminino e passivo. Essa ideia é mais fortemente reforçada quando, em seguida, ele cita
exemplos extraídos da natureza, ou seja, do mundo animal, que refutam a equivalência
entre ativo-masculino em relação à busca sexual e passivo-feminino em relação à
maternidade ou cuidados com a prole. Mesmo no mundo animal é possível encontrar
casos em que a realização dos cuidados da prole é feita pelo macho. Será que caberia
perguntar se para os animais isso geraria algum tipo de característica específica nesse
filhote que recebe seus cuidados maternos por um macho?
52
Deixemos os questionamentos sobre o mundo animal e voltemos à discussão
sobre passivo e ativo, ponderando sobre seus pontos complicadores. “Em todo sentido a
mãe é ativa em relação ao filho, mesmo do ato de mamar podemos dizer tanto que ela
dá de mamar à criança como também deixa a criança mamar” (Freud, 1933/2010, p.
267). Portanto, conclui Freud, não podemos dizer sobre bissexualidade considerando
passividade e atividade relacionadas com feminino e masculino, respectivamente. Ele
diz não ser aconselhável, por se tratar de um “erro de superposição”, ou seja, o erro de
pensar que está vendo uma só coisa, quando são duas coisas sobrepostas. A
feminilidade caracterizada psicologicamente pela preferência por metas passivas
também poderia conduzir ao erro, pois essa busca pode exigir uma boa dose de
atividade. Além disso, Freud também considera a influência da organização social, que
igualmente empurra a mulher para situações passivas ou coloca como passivas todas as
atividades femininas, como pudemos ver no exemplo sobre a amamentação.
Há um nexo particularmente constante entre feminilidade e
instintos, que não pretendemos ignorar. A supressão da agressividade,
prescrita constitucionalmente e imposta socialmente à mulher
favorece o desenvolvimento de fortes impulsos masoquistas, que,
como sabemos, têm êxito em ligar-se eroticamente a inclinações
destrutivas voltadas para dentro. De modo que o masoquismo é, como
se diz, realmente feminino. (Freud, 1933/2010, p. 268)
As indicações de Freud sobre atividade e passividade, nesse momento de sua
obra, embora ainda sejam até certo ponto ambíguas, falam mais de uma certa posição na
relação hierárquica entre os que cuidam e os bebês do que atribuem sentido fechado e
categórico às definições do masculino e feminino. Sendo esse um dos motivos pelo qual
esse texto sobre feminilidade se faz essencial para essa discussão. Nesse texto, Freud
deixa bem mais explícito do que anteriormente de que não se pode confundir,
psicologicamente, feminino com passivo e masculino com ativo.
Freud afirma que psicologicamente o enigma da feminilidade não pode ser
solucionado e sugere que o procuremos em outra parte até que saibamos como ocorreu a
diferenciação dos seres vivos em dois sexos. Mas destaca dois pontos tipicamente
femininos: o masoquismo e a vagina.
A partir da criança inatamente bissexual se desenvolve a mulher. Esse vir-a-ser
mulher que é explicado nesse texto freudiano através do complexo de Édipo feminino.
A bissexualidade parece mais evidente na menina, pois esta é portadora de dois órgãos
sexuais: um masculino atrofiado e inferior, principal zona erógena da fase fálica da
menina; outro tipicamente feminino, a vagina, a qual a menina só tem acesso na
53
puberdade. É essa a concepção de Freud a respeito da mulher. A presença de analistas
mulheres afeta os estudos e postulações sobre o feminino na psicanálise, mas não é
suficiente para fazer com que o autor abdique totalmente de pontos defendidos
anteriormente relativos à anatomia da mulher.
Freud afirma que as diferenças entre meninos e meninas são facilmente
observáveis em relação à formação dos genitais e características físicas, na disposição
de instintos e em relação à agressividade. Na mulher, a agressividade parece menos
presente e há mais necessidade de que lhe mostrem carinho. A aprendizagem feminina
de controles de esfíncteres é consequência dessa docilidade e a garota parece ser mais
vivaz e inteligente, mais receptiva com o mundo exterior e forma investimentos
libidinais mais fortes. O autor nos alerta para o fato dessas diferenças poderem sofrer
variações individuais, o que implica cautela ao tratar delas, portanto as deixará de lado
tendo em vista os propósitos que tem acerca do desenvolvimento feminino. (Freud,
1933/2010, p. 270)
Os dois sexos parecem atravessar da mesma forma as primeiras
fases de desenvolvimento da libido. (...) Com o ingresso da fase fálica,
as diferenças entre os sexos recuam completamente diante das
semelhanças. Temos que reconhecer que então a garota pequena é um
pequeno homem. (Freud, 1933/2010, p. 271)
Assim, Freud nos fala de um complexo de Édipo tipicamente feminino, fechando
assim o que postula sobre a diferença no desenvolvimento psicossexual do menino e da
menina. Diferente daquilo que havia proposto em “A dissolução do complexo de
Édipo” , nesse momento há uma ênfase do vínculo da menina com a mãe, da relação de
atividade e passividade envolvidas nesses primeiros cuidados maternos e mesmo da
sedução envolvida nesse processo.
Essa conferência de Freud sobre a Feminilidade ainda traz um ponto interessante
para o nosso tema e diz respeito à famosa constatação de que as histéricas haviam
mentido para ele quando diziam terem sido seduzidas pelo pai. “Somente depois pude
reconhecer, nessa fantasia da sedução pelo pai, a expressão do típico complexo de
Édipo na mulher. E agora reencontramos essa fantasia na história pré-edípica da garota,
mas a sedutora é invariavelmente a mãe.” (Freud, 1933/2010, p. 274) A sedução da mãe,
infligida à criança através dos cuidados maternos essenciais, que erotizam e dão um
destino para a sexualidade infantil não se resume ao determinismo anatômico da mãe
biológica. Talvez Freud sugira aqui que a sedução seja um predicado da função
materna, o que poderia ser considerado também em relação a todas as pessoas que
54
participam dos cuidados do bebê. Voltemos um pouco no tempo, no texto clássico de
1905, em que Freud afirma:
O trato da criança com a pessoa que a assiste é, para ela, uma fonte
incessante de excitação e satisfação sexuais vindas das zonas
erógenas, ainda mais que a pessoa – usualmente, a mãe – contempla a
criança com os sentimentos derivados de sua própria vida sexual: ela a
acaricia, beija e embala, e é perfeitamente claro que a trata como o
substituto de um objeto sexual plenamente legítimo. (...) Quando
ensina seu filho a amar, está apenas cumprindo sua tarefa. (Freud,
1905/1996, pp. 210-211)
Nessa passagem, Freud nos chama atenção para o fato dos primeiros cuidados
serem fontes de excitação e satisfação sexuais. O trato, os carinhos e embalos são
usualmente maternos, mas podem também ser realizados por substitutos, responsáveis
por seus primeiros cuidados. Parece-nos bastante relevante a ênfase presente na
passagem acima na posição ocupada pela criança ao receber passivamente esses
cuidados. Seria essa posição dependente em alguma medida do parentesco dessa criança
com seus cuidadores? Ou mesmo com o sexo anatômico dos mesmos?
Além desse ponto nos interessar pelo fato de estarmos tratando da família
homoparental, então composta por duas pessoas do mesmo sexo anatômico que se
responsabilizarão pelos cuidados do bebê, isso nos interessa também pela própria
origem dessas crianças adotivas, que muitas vezes receberam seus cuidados maternos
por substitutos: tia, avó, vizinha, ou alguém que se responsabilizou pelos primeiros
cuidados ao bebê.
2.3 Discussão
A partir do que pudemos perceber através da leitura de textos de diferentes
momentos da obra freudiana, a diferença sexual está inteiramente relacionada à
importância que representa a divisão entre feminino e masculino e o valor que isso
representa na cultura. Embora Freud insista em alguns momentos na origem biológica
anatômica do que pode ser naturalmente feminino ou masculino, ao mesmo tempo
oferece aporte para considerarmos o que existe de valor social e moral na divisão dos
sexos: masculino ou feminino. Em que medida esse percurso nos ajuda a pensar sobre a
constituição da dita diferença sexual na homoparentalidade?
Talvez exatamente no mesmo sentido em que localizamos em Freud, ou seja,
podemos propor que a discussão sobre homoparentalidade e o quão isso pode afetar na
constituição da diferença sexual em crianças está provavelmente tão impregnada de
55
valores morais como aqueles que encharcam os estudos sobre o que seria necessário
para a boa formação de um homem ou de uma mulher.
Freud destaca, ao realçar a importância dos cuidados maternos na formação da
menina, a presença da figura da mãe. Por se tratar de uma mulher, Freud fala da
atividade dos cuidados maternos, nos alertando para o fato de que os cuidados são
oferecidos por uma mulher e que esses cuidados são ativos e colocam a criança numa
posição passiva, de objeto. A passividade infantil ocorre independente de seu gênero ou
sexo, já que a sedutora é, invariavelmente, a figura que se coloca na posição dos
cuidados chamados de maternos.
E se esses cuidados fossem oferecidos por um homem? E se essa criança gerada
num útero de uma mulher recebesse seus primeiros cuidados por um homem? Será que
isso afetaria a constituição subjetiva ou a noção de diferença sexual dos pequenos?
Em alguns momentos dos textos que analisamos percebemos que há uma
consequência psíquica para Freud que ocorre quando a criança se dá conta de que
existem dois sexos, duas posições, que alguns têm e outros não. Entretanto, não fica
inteiramente claro se esta constatação ocorre em relação ao próprio genital ou ao genital
do adulto. Há momentos em que nos parece que Freud se refere ao genital da criança e
no que isso proporciona, ou seja, um certo tipo de comportamento que pode se esperar
de quem tem e de quem não tem o pênis. A aquisição por parte das crianças do lugar
que ocupam na divisão sexual parece ser mais considerada em relação às teorias sexuais
infantis e suas especulações sobre o sexo e o gênero do que, propriamente, sobre o sexo
dos pais.
No percurso edípico de cada criança, a importância da distinção anatômica se faz
presente naquilo que se oferece como identificação para cada sexo, junto com as
possibilidades de satisfação pulsional: para o menino é necessário se identificar ao pai
(homem) e ter a mãe (mulher) como objeto de amor e para a menina o oposto, acrescido
da necessidade desta conseguir nesse percurso trocar de objeto e de órgão. Como
pudemos perceber nos últimos textos, a bissexualidade e a ambiguidade tomaram a
cena, tornando as constatações bem mais complexas.
No percurso constitutivo de uma criança adotada por um casal de homossexuais,
nos parece haver a mesma necessidade de identificação e ambiguidade que estarão
presentes em relação ao que é ser mulher ou homem. Essa criança seria educada e
inserida na cultura que determina, com matizes variáveis, o que é ser menino ou menina
56
para todos. Os cuidados maternos e paternos são exercidos enquanto funções e não
necessariamente relacionados ao sexo anatômico de quem exerce cada função.
57
3 Stoller e identidade de gênero
3.1 Sobre o termo identidade
O homem que diz ‘dou’
Não dá!
Porque quem dá mesmo
Não diz!
O homem que diz 'vou’
Não vai!
Porque quando foi
Já não quis!
O homem que diz ‘sou’
Não é!
Porque quem é mesmo ‘é’
Não sou!
O homem que diz ‘tou’
Não tá
Porque ninguém tá
Quando quer
(Canto de Ossanha, Baden Powel e Vinícius de Morais)
A identidade não é uma noção freudiana. Mas pode ser considerada como a
expressão de uma coerência identitária do Eu. O Eu, então, compreendido como uma
colcha de retalhos que faz um grande esforço para se auto-conservar, para sobreviver à
passagem do tempo e mudanças corporais, para que mantenha o arranjo entre as
identificações e continue minimamente organizado. O Eu, essa “instância intermediária
do aparelho psíquico, dotado de função reguladora entre o Isso, o Supereu e a realidade
exterior” (Mijolla, 2005, p. 629) foi considerado por Freud numa ambiguidade, entre a
pessoa consciente de si mesma e a instância psíquica. As origens do Eu e sua formação,
sempre foram debatidas na psicanálise, mas é no texto intitulado “O Eu e o Id”, de 1923
(2011), que Freud afirma que “também uma parte do Eu – e sabe Deus quão importante
é ela – pode ser ics, é certamente ics [itálico nosso].” (p. 22). O Eu é responsável pelo
recalcamento ou sublimação das pulsões, da censura nos sonhos, pelas resistências ao
tratamento, administra os investimentos de objetos e controla a motilidade. Porém,
todas essas funções não fazem dele “senhor em sua própria casa”, já que tem sua parte
inconsciente, comportando, assim, uma “certa passividade”. (Mijolla, 2006, p. 633) “O
Eu é sobretudo corporal, não é apenas uma entidade superficial, mas ele mesmo a
projeção de uma superfície”, assim, é derivado das sensações corporais oriundas da
superfície do corpo, principalmente. (Freud, 1923/2011, p. 32)
Vale a ressalva de que quando tratamos de conceitos como identidade,
identificação, Eu e sujeito, tratamos levando em conta que, além da amplitude dos
conceitos na obra freudiana e seus desdobramentos na teoria psicanalítica, consideramos
58
que não se trata de um Eu supremo, que domine as outras instâncias psíquicas ou de
uma identidade fixa imutável. Mas sim no sentido de um Eu que busca uma coerência
identitária, que quando diz “sou” não é; que quando diz “estou” não está; e que nem
sempre quer quando vai, ou vai quando quer.
Sobre o termo identidade, ele não aparece na obra freudiana, mas a forma que
pretendemos utilizá-lo coincide com a impressão que temos de identidade como uma
conquista de reconhecimento do Eu.
Sobre a identidade, Renato Mezan (1986) nos esclarece da seguinte maneira:
A ideia básica da qual vamos partir é a seguinte: a identidade não é
um elemento que cada um de nós possui ao nascer; ela é algo
adquirida aos poucos, ao longo de nossa infância, de nossa educação,
etc. A identidade situa-se no ponto de cruzamento entre algo que vem
de nós (o equipamento psíquico com o qual nascemos) e algo que nos
vem de fora, isto é, da realidade externa. (Mezan, 1986, p. 44)
Para o autor, amparado pela concepção psicanalítica, a identidade é adquirida
através do processo das identificações, que “resulta na constituição, dentro de cada um
de nós, de um eu, isto é, de uma parte nossa que vai nos parecer a única, porque é
apenas dela que temos consciência”. (Mezan, 1986, p. 46) Identidade é aquilo que
acreditamos ser, fruto de um cruzamento entre partes que conhecemos e
desconhecemos, mas que para nós mesmos parecerá única, sob controle e conhecida.
O que a psicanálise mostra é que a própria identidade pessoal nos chega através
do convívio com outros seres humanos: nosso Eu, que consideramos tão "nosso", na
verdade resulta de um longo e complicado trabalho psíquico, que depende tanto da
resposta que encontramos para nossos enigmas, quanto dos enigmas que são colocados,
independente de nós, e por aquilo que recebemos do que é externo.
Sobre o tema da formação da identidade sexual, tendo em vista que esta faz parte
do percurso da construção subjetiva e que não é encontrada especificamente desta
maneira nas definições freudianas, utilizaremos num primeiro momento, como ponto de
partida, alguma concepção de identificação na obra freudiana e o quanto esta está
conectada com a constituição do Eu e da diferenciação entre feminino e masculino.
3.1.1 Notas sobre identificação
“A identificação está na origem do primeiro modo de investimento objetal”
(Mijolla, 2005, p. 633) e o Eu é a sede das identificações.
59
Dentre os conceitos fundamentais da teoria psicanalítica, o de
identificação se destaca dos demais pelo fato de encerrar algo de
paradoxal: ele ocupa uma posição ao mesmo tempo central e
marginal. (Ribeiro, 2000, p. 11)
Ribeiro (2000) coloca a identificação como central por se tratar de uma peça
fundamental da definição do sexo e que remete ao complexo de Édipo e se instala no
eixo principal sobre o qual se alicerça a teoria psicanalítica. Além disso, a identificação
se entrelaça também com os conceitos de Eu e de narcisismo. Sobre a marginalidade do
conceito, o autor nos explicita que é pelo fato de sua escassez de elaboração teórica
sobre a identificação e, sobretudo, por não ter sido consolidado metapsicologicamente,
mesmo em se tratando de um conceito fundamental cuja importância foi sendo
concedida progressivamente, principalmente na segunda tópica.
No “Vocabulário da Psicanálise”, de Laplanche e Pontalis (2001), sobre o termo
identificação, no que se refere à obra freudiana, lemos o seguinte:
Na obra de Freud, o conceito de identificação assumiu
progressivamente o valor central que faz dela, mais do que um
mecanismo psicológico entre outros, a operação pela qual o sujeito
humano se constitui. Essa evolução tem relação direta principalmente
com a colocação em primeiro plano do complexo de Édipo em seus
efeitos estruturais, e também com a remodelação introduzida pela
segunda teoria do aparelho psíquico, em que as instâncias que se
diferenciam a partir do id são especificadas pelas identificações de que
derivam. (Laplanche & Pontalis, 2001, pp. 226-227)
Mais do que um conceito psicológico, a identificação é uma operação através da
qual o sujeito humano se constitui. A identificação é um dos aspectos fundamentais, um
dos motores da subjetivação, da constituição do sujeito.
No “Dicionário Enciclopédico”, de Kaufmann (1996), encontramos uma
diferenciação entre identidade e identificação, no sentido que a identificação é um
processo de lenta hesitação entre o “eu” e o “outro”, ao passo que identidade é
finalmente encontrar um “eu” que poderia (ilusoriamente) estar livre de qualquer
relação de objeto.
Neste dicionário também é mostrado como ao longo da obra de Freud podemos
encontrar o conceito de identificação. Gostaríamos de ressaltar três dos textos: “Teoria
Sexual das Crianças”, de 1908, “Psicologia das Massas e Análise do Eu”, de 1921
(capítulo VII) e “Dissolução do complexo de Édipo”, de 1924. No primeiro texto, a
identificação é tratada como uma elaboração progressiva da imagem do corpo. Essa
identificação elabora, a partir do corpo, as noções de interior e exterior e estabelece
relações entre dentro e fora. Uma das teorias sexuais que as crianças constroem diz
60
respeito à dimensão sádica do coito e, a partir daí, se constitui uma diferença para as
crianças do que é ser homem ou mulher. Essa diferença não pode ser inscrita no
inconsciente, que não é capaz de conhecer outra coisa senão o ativo e o passivo. “É a
partir disso que se declinariam o feminino e o masculino, a bissexualidade psíquica e o
dimorfismo sexual homem/mulher.” (Kaufmann, 1996, p. 258)
O capítulo VII de “Psicologia das Massas e Análise do Eu” é um “pequeno
tratado sobre identificação”. (Assoun, 2009, p. 1051) É considerada a exposição mais
precisa e mais específica sobre o tema em toda a obra freudiana, portanto, referência
fundamental. A psicanálise conhece a identificação como a mais antiga manifestação de
uma ligação afetiva à outra pessoa. (Freud, 1921/2011)
Além disso, Freud nos diz que a identificação “desempenha um papel
determinado na pré-história do complexo de Édipo.” Interessante que após nos
esclarecer que a identificação é a mais antiga forma de ligação a uma pessoa, Freud
afirma que para o garoto essa ligação mais antiga se dá em relação ao pai, pois revela
que gostaria de ser como o pai, tomar o lugar dele, gostaria de crescer e ser como ele em
todas as situações. É o pai que é tomado como ideal pelo garoto, o que, nos alerta Freud,
não tem nada a ver com qualquer passividade ou feminilidade, mas é uma característica
tipicamente masculina. A conduta de tomar o pai como ideal harmoniza-se bem com o
complexo de Édipo, nos diz Freud, e ajuda a preparar o terreno para ele. Essa concepção
freudiana de uma identificação primitiva do menino ao pai será discutida por Stoller a
seguir.
Ao mesmo tempo em que o garoto toma o pai como ideal, ou mesmo antes que
isso ocorra, o garoto investe a mãe objetalmente, do tipo “por apoio” 40. O garoto tem
dois tipos de ligação: um investimento objetal direto com a mãe e uma identificação
com o pai, que assim se torna o modelo para o filho. Essas duas formas de ligação se
encontram no complexo de Édipo, quando o menino toma o pai como obstáculo e sua
identificação se torna hostil, aliado ao desejo de ser como o pai, para substituí-lo diante
da mãe. A identificação do menino com o pai tem um caráter ambivalente, sendo ao
mesmo tempo expressão de ternura e desejo de eliminação. (Freud, 1921/2011)
Página 107, do texto “Sobre o narcisismo : uma introdução”: “As pulsões sexuais apoiam-se, a
principio, no processo de satisfação das pulsões do Eu para veicularem-se, e só mais tarde tornam-se
independentes delas. Esse modo de apoiar-se nos processos de satisfação das pulsões de autoconservação
para conseguir veicular-se fica evidente quando se observa que as pessoas envolvidas com a alimentação,
o cuidado e a proteção da criança se tornam seus primeiros objetos sexuais, portanto, primeiramente a
mãe ou seu subtituto.”
40
61
Freud coloca a ambivalência da identificação do menino pelo pai como um
resquício da fase oral em que o indivíduo come o objeto, o que faz com que o incorpore
e o aniquile ao mesmo tempo. Seria uma afeição devoradora. Posteriormente, o destino
da identificação com o pai se perde de vista, podendo então ocorrer no complexo de
Édipo uma inversão, ou seja, o pai pode ser tomado como objeto, através do qual se
poderia obter satisfação sexual. Freud salienta que a identificação com o pai, ou seja,
aquilo que o menino gostaria de ser, é precursora de sua tomada como objeto de
satisfação, ou aquilo que gostaria de ter. A identificação se empenha em fazer com que
o Eu se configure de maneira semelhante ao seu modelo, o pai, no caso do menino.
Freud reforça a frase com que inicia este capítulo VII: “a identificação é a mais
antiga e original forma de ligação afetiva” e acrescenta “sucede com frequência que a
escolha de objeto se torne novamente identificação, ou seja, que o Eu adote
características do objeto.” (Freud, 1921/2011, p. 48) Freud, nesse momento, não
diferencia investimento objetal de identificação.
Ainda de acordo com o Dicionário de Kaufmann, o autor nos mostra que é no
texto sobre a “Dissolução do Complexo de Édipo” que Freud (1921/2011) conclui sua
teoria de identificação, ao pensar na saída do Édipo. “Quando crescer não vou tomar o
lugar de outro, mas fazer meu próprio lugar.” (p. 259) Ou seja, após e a partir do
processo identificatório com as figuras parentais o que fica para as crianças é a
possibilidade de fazerem seu próprio lugar.
3.2 Robert Stoller e a identidade de gênero
A expressão gender identity designa o sentimento relativo que
uma pessoa nutre de sua própria identidade masculina ou feminina.
Apareceu pela primeira vez em 1965, pela pena de John Money, mas
foi Robert Stoller quem a introduziu na literatura psicanalítica em
1968.” (Mijolla, 2005, p. 912)
John Money criou a expressão “identidade de gênero” para distinguir a
experiência subjetiva de um indivíduo em relação ao próprio sexo do “papel sexual”,
que, para Money, relacionava-se aos atributos socialmente determinados a respeito do
sexo. Stoller utilizou o conceito de Money e elaborou a noção de gênero como algo
relativo ao que é psicológico, diferente do sexo que seria um determinante biológico. A
identidade de gênero é um conceito sobre o que se acredita ser em relação ao sexo,
porém, não é ligado necessariamente ao sexo, sendo assim uma construção e não uma
evidência.
62
Além da diferença entre sexo e gênero, Stoller propôs um momento inaugural e
precoce para a constituição da identidade de gênero, que chamou de core gender
identity, que foi traduzido como “identidade de gênero nuclear”.
É a concepção stolleriana sobre a impressão dessa identidade de gênero nuclear
e o desenvolvimento da masculinidade a ela associado que mais nos interessa nesse
autor, principalmente em sua proposta de ampliar a ideia freudiana de complexo de
Édipo. Ampliação que o próprio Freud sugere que seja feita quando, como vimos
anteriormente, trata mais diretamente sobre sexualidade feminina. Nessa ampliação,
Stoller contraria abertamente noções freudianas, tratando a feminilidade como o
primeiro momento constitutivo de todos os sujeitos, sejam eles meninos ou meninas.
Em um trabalho de 1993, em seu sétimo livro, Robert Stoller continua o que o
próprio autor define como “busca para compreender as origens, o desenvolvimento, a
dinâmica e a patologia da identidade de gênero – masculinidade e feminilidade.”
(Stoller, 1993, p. 9)
O que faremos a seguir é apresentar algumas ideias desse autor que se tornou
essencial para a discussão sobre identidade de gênero, seja ela em conformidade ou não
com o sexo anatômico. Seja influenciando autores importantes ou servindo de
inspiração para aqueles que não concordam com suas ideias, Stoller nos parece
essencial para a discussão que visamos traçar.
3.2.1 Masculinidade e feminilidade: apresentação de gênero
Para esclarecer, um breve exercício de vocabulário: sexo (qualidade
de ser homem ou mulher) refere-se ao estado biológico com estas
dimensões – cromossomas, genitais externos, gônadas, aparatos
sexuais internos (por exemplo, útero, próstata), estado hormonal,
características sexuais secundárias e cérebro; gênero (identidade de
gênero) é um estado psicológico – masculinidade e feminilidade. Sexo
e gênero de modo algum necessariamente estão relacionados. Na
maioria dos casos no ser humano, as experiências pós-natais podem
modificar, e algumas vezes sobrepujar, tendências biológicas já
presentes. (Stoller, 1993, p. 21)
Como vimos na citação acima, Stoller esclarece seu vocabulário e sua concepção
sobre a diferença entre sexo e gênero. Sexo se refere ao biológico em seus aspectos
genéticos, hormonais, fisiológicos, anatômicos e gênero, ou identidade de gênero, se
refere ao psicológico. Diferente da qualidade de ser homem ou mulher, que o autor
63
classifica como algo biológico, a identidade de gênero seria algo psicologicamente
motivado. Assim, sexo e gênero não estariam diretamente relacionados.
Masculinidade ou feminilidade é definida, aqui, como qualquer
qualidade que é sentida, por quem a possui, como masculina ou
feminina. Em outras palavras, masculinidade ou feminilidade é uma
convicção – mais precisamente, uma densa massa de convicções, uma
soma algébrica de se, mas e e – não um fato incontroverso. Além do
fundamento biológico, a pessoa obtém estas convicções a partir das
atitudes dos pais, especialmente na infância, sendo essas atitudes mais
ou menos semelhantes àquelas mantidas pela sociedade como um
todo, filtrada pelas personalidades idiossincráticas dos pais. Portanto
essas convicções não são verdades eternas: elas se modificam quando
as sociedades se modificam. (...) A masculinidade não é medida pelo
comprimento do cabelo, mas pela convicção da pessoa de que o
cabelo comprido ou curto é masculino. (Stoller, 1993, p. 28)
O sentido psicológico do gênero é enfatizado como aquilo que o sujeito sente
como masculino ou feminino, a convicção, ou melhor, “a densa massa de convicções”
que vai se formando em seu percurso subjetivo que o faz crer pertencente a um ou outro
sexo.
O autor nos explicita em uma nota de rodapé sua ideia de que a identidade de
gênero é mais ampla do que um papel de gênero. Refere-se a algo que a pessoa é, e não
simplesmente a um papel que desempenha. Identidade seria algo relativo à essência da
pessoa, aquilo que é essencial em sua impressão sobre si mesma, algo que a faz dizer e
sentir: “eu sou mulher” ou “eu sou homem”. Esse estado psicológico da identidade de
gênero é reafirmado por Stoller ao longo de seu livro e, podemos dizer, ao longo de seu
pensamento ou sua forma de pensar e diferenciar sexo e gênero.
Stoller considera um fato interessante nos casos das “aberrações sexuais”
relacionadas aos “distúrbios de gênero”, não em relação ao lado aberrante (palavra
relativa a algo que se sente como exterior a si mesmo), mas em relação a naturalidade
com que um trans-homem pode sentir em relação a seu pertencimento ao sexo
masculino.
Aqui é importante frisar um ponto. A identidade de gênero é uma convicção,
uma certeza, adquirida pelo sujeito de que pertence a um ou outro gênero. Stoller
percebeu essa convicção nos casos em que atendeu os transexuais, em que, embora não
houvesse qualquer explicação da biologia que justificasse, o sujeito tem a convicção de
pertencer ao sexo oposto.41
Sobre isso há um bela cena no filme “Minha vida em cor de rosa” (Ma vie em rose, de Alain Berliner,
1997), em que o menino de cerca de 8 anos diz saber o que ocorreu, que Deus esqueceu de colocar nele
mais uma perna que faria o outro X do seu cromossoma. Assim ele deveria ser XX e não XY. Ele
41
64
Stoller considerou a importância da anatomia no que diz respeito à constituição
de identidade de gênero, porém, ressalta que para além do fundamento biológico, a
participação das atitudes da mãe e do pai em relação a cada filho e ao sexo biológico de
cada filho é um fator preponderante para a convicção que cada um tem de pertencer ao
sexo masculino ou feminino. Essas convicções dependem dos valores culturais e
familiares e de cada dinâmica familiar.
Após trabalhar com diferentes famílias cujos filhos (meninos) apresentavam
níveis diferentes de feminilidade, Stoller pôde notar certa “dinâmica” da masculinidade
e feminilidade em geral42.
O achado original foi esse: se um bebê do sexo masculino possui
um relacionamento demasiadamente íntimo com a mãe (seu corpo e
psique) e se ela tenta manter esta intimidade indefinidamente, em um
ambiente de prazer sem traumas, sem frustrações, ele irá falhar (não
estará bem motivado) em separar-se de seu corpo e psique do modo
como os meninos usualmente o fazem. Como resultado, desde o início
ele é feminino. (Stoller, 1993, p. 24)
Homens evitam o que consideram como impulsos femininos ou pode haver a
inversão completa 43 , ou seja, homens biologicamente perfeitos que vivem como
mulheres. Então, a masculinidade e a feminilidade são definidas como qualquer
qualidade que é sentida como masculina ou feminina por quem a possui e isso pode
ocorrer em acordo ou contradição com o sexo biológico. E, nesse ponto, o autor nos
explica sua concepção acerca da aquisição dessa masculinidade/feminilidade no sentido
geral, para todas as pessoas.
Interessante que, assim como Freud, Stoller também não se debruça com a
mesma profundidade nas questões femininas, como o faz com as masculinas. Evidencia
mais a relação do menino com a mãe e as consequências para sua aquisição de gênero, e
não se detém sobre a construção de gênero para a menina com a mesma intensidade. O
autor defende que isso se deve ao fato da feminilidade primária causar mais problemas
relacionados ao gênero nos meninos do que nas meninas. O autor analisa 14 famílias de
meninos e apenas uma de menina. Os efeitos da simbiose da menina com a mãe causam
outros sinais de “anormalidade”, segundo Stoller (1993), menos envolvidos com as
questões relativas ao gênero.
constata que houve um erro da natureza quanto ao sexo, mas jamais duvida de seu pertencimento ao
gênero feminino.
42
Por esse motivo, utilizamos esse livro de Stoller, pois se trata dessa dinâmica geral da masculinidade e
feminilidade.
43
Quando há essa inversão completa, o autor se refere como “transexuais primários homens”, que são
“homens anatomica e fisiologicamente normais, que são, quando você os examina, os homens com a
aparência feminina mais natural que você já viu”. (Stoller, 1993, p. 40)
65
3.2.2 Origens da masculinidade e função materna (ou papel da mãe)
A masculinidade é conquistada somente após uma luta imensa,
assustadora, dolorosa, ainda mais pungente porque o menino deve
separar-se precipitadamente de sua cálida e amorosa mãe. (Stoller,
1993, p. 253)
Stoller propõe três fatores que ameaçam o desenvolvimento da masculinidade
em seus estágios mais iniciais, ou seja, em relação ao que chama de identidade de
gênero nuclear. São eles: (1) A qualidade e quantidade da relação mãe-bebê: quanto
mais longa, íntima e mutuamente prazerosa for a simbiose com a mãe, maior será a
probabilidade do menino vir a se tornar feminino, isso se o pai não interferir e
interromper essa fusão quantitativamente e qualitativamente. A dinâmica familiar 44
interfere diretamente no desenvolvimento da masculinidade. (2) Nas primeiras semanas
de vida, o estágio inicial não é de masculinidade, mas de protofeminilidade, que é uma
condição induzida pela fusão que ocorre na simbiose mãe-bebê. (3) O bebê deve
construir barreiras intrapsíquicas que afastem o desejo de manter a sensação de ser um
só com a mãe. A capacidade de construção dessas barreiras depende do desabrochar de
funções biológicas e aprendizagem de habilidades para inibir os próprios impulsos de
fusão com a mãe. A masculinidade do menino deve ser encorajada pela mãe e pelo pai
e, a isso, deve ser aliado a um impulso biológico masculino forte o suficiente para
superar essa protofeminilidade inicial. O pai, ou a figura do pai, serve ao menino como
um modelo de masculinidade. (Stoller, 1993, p. 241-242)
Stoller postula ainda o que chama de “escudo protetor” do menino, a “ansiedade
de simbiose”, que seriam recursos defensivos à feminilidade em forma de fantasias que
irão perdurar ao longo da vida do garoto, fazendo parte do que é esperado no
comportamento definido socialmente como masculino. Essa ansiedade de simbiose
aparece, por exemplo, no medo da anatomia feminina, na inveja e no menosprezo em
relação às mulheres, no medo de entrar em seus corpos, medo de intimidade, medo de
demonstrar qualquer atributo feminino, medo de ser desejado por um homem. “O
primeiro regulamento na profissão de ser homem é: não seja uma mulher.” (Stoller,
Stoller considera um risco para a masculinidade do menino o que chamou de “dinâmica da família
transexual”, que, resumidamente, configura-se através da mãe excessivamente simbiótica e bemaventurada, que não incentiva qualquer separação com seu bebê, um pai omisso que não ajuda na
separação mãe-bebê e não protege o filho do “abraço da mãe”, tampouco serve de modelo masculino para
o filho e um menino biologicamente adequado ao desenvolvimento sexual.
44
66
1993, p. 241) Assim, o sujeito que possui a convicção de ser homem, deve evitar e se
defender de tudo relacionado ao feminino.
As hipóteses stollerianas sobre a conquista da masculinidade pelo menino são
relativas a fatores parentais, representados inicialmente pela relação simbiótica mãebebê, que, quando prolongada, pode colocar em risco a masculinidade. A dimensão do
risco é determinada por fatores associados: fatores biológicos; grau de fusão da mãe
com seu bebê e capacidade dela de satisfazê-lo demais sem espaço para frustração;
apoio da mãe em relação aos comportamentos femininos do filho desde cedo;
capacidade do pai de interromper a simbiose; capacidade do pai de servir de modelo de
masculinidade. Além dos fatores parentais, Stoller propõe fatores intrapsíquicos que
surgem por volta de um ano de idade do garoto, nos primórdios da masculinidade, que
fazem com que o garoto construa barreiras para o que passa a considerar como
comportamentos femininos. “A masculinidade nos homens não é simplesmente um
estado natural que precise apenas de ser preservado para desenvolver-se sadiamente, ao
contrário, ela é uma conquista.” (Stoller, 1993, p. 37)
Stoller também acredita que as origens da heterossexualidade no menino
dependem dos fatores parentais, ou seja, das atitudes e ações das mães e dos pais.
“Quando uma mãe, embora amorosa, também permite, encoraja e insiste em que seu
filho se separe de seu corpo e psique, o menino será mais capaz de seguir em frente.”
(Stoller, 1993, p. 256) Para o autor, essa mãe amorosa deve ter uma forma de amor que
consiste em “reconhecer esse objeto amado como separado de si própria e possuidor de
uma identidade independente.” (Stoller, 1993, p. 256) Para Stoller, essa é a relação de
objeto verdadeira, que seria o que Freud reconheceu como base para a situação edípica
positiva, ou seja, o complexo de Édipo clássico em que o menino ama a mãe e tem seu
pai como rival. É apenas depois de se separar da mãe que o menino passará a querer têla para si objetalmente, podendo assim aceder aos conflitos do complexo edípico tal
como foi postulado por Freud, o que posteriormente será dissolvido pela identificação
com o pai desejado, temido, admirado. O que o menino deve conquistar para ter acesso
ao complexo edípico é um tanto de sua subjetividade, é sair da posição de objeto da mãe
e se configurar como sujeito que pode passar inclusive a desejar essa mãe. A conquista
subjetiva precede a entrada no Édipo.
Quanto à identidade de gênero Stoller diz que teve sua hipótese confirmada, de
que a mãe que tenta criar uma “fusão bem-aventurada”, ilimitada e interminável entre
ela e seu lindo filho, “vivamente desejado”, cujo pai não interrompe o processo, corre o
67
risco de tornar o filho feminino quanto à identidade de gênero. O autor também conclui
que há uma suposição além da confirmação: esse processo maligno não é causado pelas
defesas do menino contra uma ansiedade insuportável, mas resultado de uma parada no
desenvolvimento que impediu a descoberta da masculinidade.
3.2.3 Identidade de gênero nuclear
A identidade de gênero nuclear é uma convicção de que a
designação do sexo da pessoa foi anatomicamente e psicologicamente
correta. É o primeiro passo em direção à identidade de gênero
fundamental da pessoa e a conexão em torno da qual a masculinidade
e a feminilidade gradualmente se desenvolvem. A identidade de
gênero nuclear não implica em um papel ou em relações objetais. Em
torno dos dois ou três anos de idade, quando podemos observar a
masculinidade definida nos meninos e a feminilidade nas meninas, ela
está tão estabelecida que é quase inalterável. (Stoller, 1993, p. 29)
No contexto do que considera importante relativo àquilo que define como
identidade de gênero, Stoller acredita que o conceito se refere a uma amplitude de
comportamentos, talvez mais ligados a diferenciação que o autor fez anteriormente entre
os papeis desempenhados e aquilo que se é. Assim, há a conceituação do que seria a
identidade de gênero nuclear, que seria o primeiro passo, mais primordial, em direção à
identidade de gênero: o pilar tanto quanto inabalável sobre o qual se ampara uma certa
convicção de pertencer a um ou outro sexo. Enquanto a identidade de gênero seria uma
convicção, uma construção, a identidade de gênero nuclear seria um momento anterior,
relativo à designação do sexo, sem relação com identificação ou relação objetal.
A identidade de gênero nuclear é resultante de cinco fatores, na opinião de
Stoller. São eles: (1) uma força biológica, neurofisiológica que transforma o corpo do
bebê de acordo com o sexo; (2) a designação do sexo no nascimento; (3) a influência da
atitude dos pais, principalmente da mãe, sobre o sexo do bebê; (4) fenômenos biopsíquicos, que o autor define como “efeitos pós-natais precoces causados por padrões
habituais de manejo do bebê” (Stoller, 1993, p. 29); (5) o desenvolvimento do ego
corporal ou eu corporal, com qualidades e quantidades de excitações, sensações genitais
que definem o físico, o corpo e define também as dimensões psíquicas do sexo.
O autor ressalta que, mesmo em casos de imperfeição biológica, ou seja, casos
em que a anatomia deixa ambígua a definição do sexo, se isso ocorre de maneira
inequívoca no momento da designação do sexo, o sujeito desenvolve um sentido
também inequívoco de ser homem ou mulher.
68
A teoria de Stoller sobre identidade de gênero nuclear diz que a primeira forma
de identidade de gênero, que ocorre antes da relação objetal, é a fusão com a mãe. Nesse
momento não é ainda possível, para a criança, distinguir as próprias fronteiras
anatômicas e psíquicas. Para a menina, essa fusão com a mãe pode naturalmente
incrementar a criação da feminilidade e, para o autor, não colocam em risco sua
identidade nuclear de gênero. É para o menino que o relacionamento mãe-bebê pode
colocar em risco sua identidade de gênero nuclear, exigindo do garoto um trabalho a
mais para que ele cresça como uma pessoa separada e masculina.
As exigências em relação à identidade de gênero mudam ao longo da vida, mas
amparadas em padrões iniciais através dos quais essas modificações posteriores irão
aparecer. Esses padrões iniciais são o que o autor define como identidade de gênero
nuclear.
3.2.4 Teoria de gênero clássica e teoria de gênero, segundo Stoller
Stoller faz uma revisão da teoria de Freud sobre masculinidade e feminilidade,
em termos de identificação de gênero nuclear. Para tanto, Stoller elenca alguns pontos
sobre a teoria freudiana e os confronta com sua teoria de gênero nuclear.
O primeiro ponto levantado por Stoller é a respeito da masculinidade nos
homens. Em resumo, referindo-se ao texto de 1933, Masculinidade e Feminilidade:
apresentações do gênero, Stoller comenta a crença freudiana de que a qualidade de ser
homem e a masculinidade eram tidos como estados principais e mais naturais e que
ambos, homens e mulheres, consideravam ser mulher e a feminilidade menos valiosas.
Assim, para o menino, a condição de considerar a feminilidade inferior resultaria na
angústia de castração e dissolução do complexo de Édipo, enquanto que para a menina
causaria a inveja do pênis.
Stoller continua, sobre o menino, em sua concepção da teoria freudiana:
O menino, disse Freud (1905, 1909), entra na vida melhor
aquinhoado do que a menina. Seus genitais são visíveis, disponíveis e
capazes de sentimentos eróticos facilmente produzidos e confiáveis. E,
embora o que ele já possui possa ser ameaçado, o perigo potencial não
é um problema tão fundamental como ter sido despojado desde o
início da condição das mulheres. Então – outra vantagem poderosa – o
menino inicia a vida como um heterossexual. Uma vez que seu
primeiro objeto de amor é do sexo oposto, seu desenvolvimento
sexual tem início adequado. Com relação aos genitais, é apenas a
ameaça, não a ausência principal com que deve lutar, uma vez que
está dotado com uma identidade de gênero nuclear biologicamente
garantida, livre de conflitos pós-natais. (Stoller, 1993, pp. 32-33)
69
Para Stoller, apesar do salutar papel principal, o menino, em determinado
momento, será mais ou menos ameaçado na exata extensão da sua masculinidade
heterossexual. Ele é ameaçado por seu desejo natural pela mãe, que tem no pai um rival
excessivamente poderoso. Quanto mais o menino deseja a mãe, mais será proibido pelo
pai, que o ameaça nos genitais. A angústia de castração aparece também quando o
menino observa as mulheres, criaturas sem pênis. “Esse trauma bloqueia o que seria, de
outra forma, um progresso tranquilo rumo à masculinidade e à heterossexualidade.”
(Stoller, 1993, p. 33)
Segundo Stoller, o desenvolvimento da identidade de gênero para a menina é um
pouco diferente. Embora a feminilidade também exija que a menina se separe da mãe,
não é necessário que se separe de sua feminilidade. Já que a mãe é uma mulher, o autor
considera que a menina, desde o início, se identifica com uma pessoa do mesmo sexo.
Embora isso ressalte um núcleo homossexual presente, sendo seu primeiro objeto
amoroso uma mulher assim como o considera Freud, “o desenvolvimento de sua
feminilidade não parece mais tão cheia de riscos.” (Stoller, 1933, p. 36)
Por outro lado, embora o menino se encaminhe para a
heterossexualidade desde cedo, é necessário que ele já tenha se
separado suficientemente de sua mãe, de modo que seja um indivíduo
e que saiba que sua mãe é uma pessoa separada, de um sexo diferente.
Então ele prefere ter, não ser, uma mulher. (Stoller, 1993, p. 36)
Stoller não apenas teorizou sobre a feminilidade em garotos, mas trabalhou
durante décadas de sua vida influenciado por essa matriz clínica, importante para sua
forma de construir sua teoria. Nas considerações acima, vimos suas ideias sobre
masculinidade e feminilidade em meninos e meninas. Embora aponte a concepção
freudiana em uma masculinidade primordial, o que Stoller propõe é o exato oposto, uma
feminilidade primordial, que deixa seus efeitos em ambos os sexos. Assim como Freud,
o psicanalista americano considerou mais os pontos relacionados à constituição de
garotos do que de garotas.
3.2.5 A conquista da masculinidade e a protofeminilidade
Resumindo, essa visão mais nova da identidade de gênero
considera que a feminilidade nas mulheres não é apenas inveja do
pênis ou negação da aceitação resignada da castração, uma mulher não
é exatamente um homem fracassado. A masculinidade nos homens
não é simplesmente um estado natural que precisa apenas ser
70
preservado para desenvolver-se sadiamente; ao contrário, ela é uma
conquista. (Stoller, 1993, p. 36)
Ainda segundo Stoller (1993), ao revisar a teoria analítica clássica, o menino é
forçado a utilizar, no conflito edípico, técnicas que ajudam a lidar com a castração e,
para que tenha sucesso, os pais precisam ajudá-lo. O que fazem de duas maneiras:
ensinando o garoto a deslocar o desejo para outras mulheres e oferecendo o próprio pai
como um modelo de identificação masculina. Se tudo corre bem, o resultado é a
primazia genital, “em que masculinidade e heterossexualidade são partes essenciais.”
(Stoller, 1993, p. 36)
Stoller recapitula as ideias freudianas acerca dos desenvolvimentos da menina,
que tem problemas desde o início: seus genitais são inferiores e seu objeto de amor
original é homossexual. O autor ressalta a concepção freudiana de que para a menina a
luta pela feminilidade exige um trabalho a mais desde o nascimento. Por ser privada de
um pênis, a menina sente inveja e o modo como lida com esse sofrimento vai
determinar sua sexualidade futura.
O conceito de identidade de gênero nuclear, contudo, modifica a
teoria de Freud, conforme segue. Embora seja verdade que o primeiro
amor do menino é heterossexual, e embora os pais sejam rivais
excessivamente poderosos, há um estágio mais precoce no
desenvolvimento de identidade de gênero em que o menino está
fundido com a mãe. Apenas depois de alguns meses é que ela
gradualmente se torna um objeto claramente separado. Sentir a si
próprio como uma parte da mãe – uma parte da estrutura de caráter
primeva e, portanto, profunda (identidade de gênero nuclear) –
estabelece o fundamento para o sentido de feminilidade de um bebê.
Isso coloca a menina no caminho para a feminilidade na idade adulta,
mas põe o menino em risco de ter, em sua identidade de gênero
nuclear, um sentido de unidade com a mãe (um sentido de qualidade
de ser mulher). (Stoller, 1993, p. 35)
O conceito de identidade de gênero nuclear se diferencia da teoria freudiana ao
supor um estágio mais precoce nas engrenagens da concepção acerca da diferença
sexual, quando Stoller propõe um momento anterior, o estabelecimento da identidade de
gênero nuclear. Há uma confirmação da suposição freudiana a respeito do primeiro
objeto de amor do menino e das configurações em torno do complexo edípico, porém
evoca-se um período anterior, mais precoce, que seria o momento em que o bebê está
fundido com a mãe, no qual, de certa forma, se sente como parte integrante da própria
mãe. As consequências dessa fusão inicial com a mãe e o modo como cada criança faz
para se desvencilhar dessa relação inicial é, para o autor, um ponto crucial na definição
de gênero de cada um.
71
Sabemos que no início da vida o bebê não tem noção de diferenciação de si
mesmo em relação ao objeto materno, o que caracteriza o período fusional com a mãe e,
para o autor, esse “sentir a si próprio como parte da mãe” é uma parte da estrutura
primeva do caráter e, portanto, profunda (identidade de gênero nuclear). Isso faz parte
da convicção da criança em relação a pertencer ao gênero masculino ou feminino, por
isso tratada como identidade.
É nesse ponto que Stoller se coloca numa posição exatamente contrária a de
Freud, ao supor que, na verdade, quem tem que fazer um trabalho extra em relação à sua
constituição é o garoto, podendo essa fase inicial deixar resíduos potencialmente
prejudiciais para a aquisição da masculinidade. A menina também deve se separar da
mãe, mas não de sua feminilidade.
A menina estaria então em vantagem em relação ao garoto, já que essa basefusional-identificatória-nuclear com a mãe não faz oposição ao seu pertencimento ao
gênero feminino. Para o menino a coisa fica mais difícil, exigindo dele um trabalho
extra para chegar ao ponto de se identificar com o pai, ao sexo masculino e, assim,
caminhar em direção a sua masculinidade.
Para Stoller, é necessário que o menino se defenda arduamente desse estágio de
fusão com a mãe e essa defesa só se torna possível com a ajuda da mãe, para que o filho
seja liberado dela. São fatores parentais, aliados a fatores intrapsíquicos e biológicos,
que propiciam ou não a aquisição e manutenção da masculinidade.
Stoller acredita que na dinâmica familiar do menino transexual há sempre um
traço materno que não libera o seu filho para a diferenciação e um pai omisso, que não é
capaz de interromper esse ciclo e instaurar a separação mãe-filho.
Essa identificação primária fusional com a mãe é o que Stoller chama de
protofeminilidade. Para o autor, é essa protofeminilidade que faz com que homens
sejam misóginos, que temam demonstrar afeto por outros homens e ele acredita ser esse
o motivo pelo qual a perversão é mais comum em homens do que em mulheres. O
homem tem que estar constantemente se defendendo da possibilidade de voltar ao
estado simbiótico com a mãe, ao estágio feminino de sua constituição, o que gera
características masculinas como a violência contra tudo o que seja ligado ao universo
feminino.
O autor reafirma que está de acordo com as proposições freudianas relativas ao
desenvolvimento psicossexual das crianças no que tange os momentos posteriores, mas
no que se refere aos momentos iniciais, ele propõe a protofeminilidade. Essa definição é
72
a que mais nos interessa neste trabalho, já que pretende explicar o desenvolvimento
habitual de meninos e meninas em relação a sentir-se conforme o sexo biológico, quer
seja homem, que seja mulher.
Não pretendemos aqui nos debruçar sobre as questões acerca da transexualidade,
embora consideremos o tema importante para concluir a incongruência que pode ocorrer
entre sexo e gênero. Como nos lembra Stoller, o estudo de casos extremos pode nos
ensinar a respeito de mecanismos com natureza semelhante, mas em grau mais reduzido
e, assim, os casos de transexuais permitiram dar sentido ao comportamento comum.
3.2.6 Outros autores comentam Stoller
Person & Ovesey (1999)
45
nos lembram que apenas em 1955 foi inferida a
distinção entre sexo e gênero, através dos estudos pioneiros de Money e seus
colaboradores sobre hermafroditismo. A partir das pesquisas de Money foi proposto que
a autodesignação pela criança em relação a seu gênero seria um fator decisivo para o
desenvolvimento de sua identidade feminina ou masculina. Além da autodesignação,
outro ponto importante serviu de apoio para os estudos de Stoller. Os estudos de
Greenson sobre identidade de gênero também foram essenciais. Para Greenson,
(Greenson apud Person & Ovesey, 1999) a identidade de gênero seria um aspecto da
identidade geral e, ao enfocá-la, sugeriu quatro fatores importantes para sua formação:
(1) consciência da estrutura anatômica e fisiológica; (2) a atribuição sexual; (3) “força
biológica”; (4) necessidade de des-identificação com relação à mãe. O fator (4), sobre
des-identificação, para Greenson, era exclusivo dos meninos, que deveriam estabelecer
uma nova identificação com o pai, o que tornaria a identidade de gênero mais precária
para o menino e mais fácil para a menina.
Segundo Ribeiro46 (2005), “a relação das desordens da identidade de gênero com
a identificação primitiva com a mãe, inicialmente apontada por Greenson, ganha, com
os estudos de Robert Stoller sobre o transexualismo, o status de uma verdadeira teoria
sobre a aquisição da identidade de gênero.” (Ribeiro, 2005, p. 239) Assim, Stoller tanto
se opõe ao ponto de vista de Freud sobre masculinidade inata, quanto discorda da ideia
45
Person, E. & Ovesey, L. (1999). Teorias psicanalíticas da identidade de gênero. In:Ceccarelli, P. (Org.).
Diferenças sexuais. (p. 121-150). São Paulo: Escuta.
46
Ribeiro, Paulo de Carvalho. (2005). Gênero e identificação feminina primária. Psicologia em
Revista, 11(18), 238-256. Recuperado em 07 de janeiro de 2014, de
http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1677-1682005000200007&lng=pt&tlng=pt.
.
73
freudiana de maior complexidade da posição da menina na aquisição da feminilidade.
Através dos estudos com transexuais, meninos muito femininos e hermafroditas, Stoller
chegou a uma identificação feminina primária, resultante da relação inicial da criança
com a mãe. A teorização sobre a natureza dessa primeira identificação com a mãe ocupa
uma parte importante na obra de Stoller e evidencia uma nítida evolução de suas ideias
a esse respeito, o que é evidenciado pelo próprio autor em seu livro sobre feminilidade e
masculinidade, em que comenta a sua mudança pessoal de opinião, ocorrida em relação
a casos que foram atendidos ao longo de sua carreira.
3.2.7 Feminilidade para Freud, feminilidade para Stoller
Vocês são convidados a familiarizar-se com a ideia de que a
proporção em que masculino e feminino se misturam, no ser
individual, está sujeita a consideráveis variações. (...) O que constitui
a masculinidade ou feminilidade é uma característica desconhecida,
que a anatomia não pode apreender.” (Freud, 1933, pp. 265-266)
Na seção anterior, traçamos um percurso através de textos freudianos sobre a
diferença sexual e pudemos constatar que algumas mudanças ocorreram no que Freud
considerou em relação à sexualidade feminina. Nos textos específicos em que Freud
trata da feminilidade e da sexualidade feminina, o autor passa a considerar dois pontos
interessantes: (1) o complexo de Édipo completo, com sua consideração a respeito do
complexo de Édipo invertido, ou seja, o menino se identificar com a mãe e ter o pai
como objeto; (2) a importância de uma relação especial da menina com a mãe, que
chamou de fase pré-edípica, tratando desse ponto mais especificamente em relação à
menina.
Para Stoller, podemos dizer que a fase pré-edípica foi muito mais enfatizada em
relação ao menino, no sentido da relação inicial com a mãe-mulher deixar marcas
importantes na constituição do garoto e, principalmente, em sua masculinidade. Stoller
dedicou décadas de trabalho ao estudo dos transexuais, e suas acepções acerca do que
chamou de identidade de gênero nuclear foram organizadas visando a responder
questões acerca dessa matriz clínica com a qual trabalhava. Portanto, buscou encontrar
explicações que justificassem a dificuldade maior dos meninos em relação à
masculinidade. A conquista da feminilidade, para o autor, nos pareceu um tanto mais
enigmática, já que não explica tão detalhadamente o que faz uma mulher se considerar,
ou não, como pertencente do sexo feminino.
O argumento de que a feminilidade não é experienciada nem pelos
homens nem pelas mulheres como fundamento inferior à
74
masculinidade está apoiado nos achados subjacentes ao conceito de
identidade de gênero nuclear, o sentimento da pessoa de ser ou um
homem ou uma mulher. Como descrevi anteriormente, isso começa a
emergir no primeiro ano de vida, ou em torno disso, como parte da
subjetividade contida nos termos como eu e identidade. (Stoller, 1993,
p. 240)
Ao discutirmos os textos freudianos sobre feminilidade, constatamos uma
tendência tardia no que poderíamos chamar de uma “retificação feminina”, ou seja,
Freud acrescenta, modifica e introduz considerações acerca da sexualidade feminina. Ao
levar em conta a relação pré-edípica da menina com a mãe, há uma consideração a
respeito dos efeitos dos primeiros cuidados maternos e das possíveis consequências
desastrosas para a garotinha, caso não se desvencilhasse dessa relação excessivamente
próxima com sua mãe. Ao declarar que “a sedutora é a mãe”, Freud nos mostra que são
os cuidados maternos, exercidos pela mãe ou por um substituto, os responsáveis pela
transformação do corpo infantil num corpo erógeno, marcado pela pulsão e seus
destinos. Esse processo é imprescindível na constituição subjetiva. Embora Freud, até
onde sabemos, não tenha sido assim tão explícito ao considerar essa mesma sedução
materna em relação ao menino e suas possíveis consequências para a identidade
masculina no garoto, poderíamos considerar que o autor deixou ali sementes férteis para
o desenvolvimento desta questão.
Outro ponto que gostaríamos de ressaltar, referente aos textos sobre feminilidade
de Freud, está relacionado à consideração acerca da atividade e passividade induzir ao
erro quando consideradas como correlatas, respectivamente, de masculino e feminino.
“Dizemos, então, que uma pessoa seja homem ou mulher, comporta-se de maneira
masculina num ponto e feminina em outro. Mas logo vocês verão que isso apenas
significa ceder à anatomia e à convenção.” (Freud, 1933/2010, p. 266)
Como seria pensar sobre a constituição da feminilidade ou masculinidade em
crianças que são criadas por dois pais, dois homens? Será que ficaria ainda mais
evidente que a constituição da diferença sexual ou identidade de gênero não se dá a
partir do sexo anatômico dos pais? E, mais ainda, será que essa configuração familiar
deixa marcas específicas nessas crianças?
No capítulo 1, evocamos a importância de perceber e reconhecer a
desnaturalização ao sexo e gênero dos pais/mães e a relação do sexo e gênero com os
papéis que desempenham nessa filiação. Através dos estudos de Stoller com
transexuais, pudemos perceber que todas as famílias ãpresentadas eram tradicionais, no
sentido do casal parental ser composto por um homem e uma mulher. Fica claro que o
75
fato dos pais serem anatomicamente um casal formado por um homem e uma mulher,
não garante a partir disso a adequação do gênero de uma criança em relação ao seu
sexo.
3.3 Discussão
Ao desvencilhar sexo e gênero, Stoller aponta para uma desnaturalização na
aquisição da identidade de gênero, da constituição da masculinidade ou feminilidade.
Embora aponte para a importância dos fatores naturais, ou seja, biológicos, fisiológicos,
anatômicos, o autor torna evidente que há uma construção em jogo, que não é garantida
naturalmente, mas fruto de fatores sobredeterminados. Essa aquisição de identidade de
gênero não é garantida pela anatomia genital das crianças.
Ao considerar a protofeminilidade como relacionada ao sexo da mãe, pelo fato
da mãe oferecer os primeiros cuidados, Stoller acaba tratando o feminino como algo
original. O que nos leva a perceber nessa atitude um naturalismo, ao considerar uma
espécie de “natureza feminina” na mulher, ao exercer seu papel de mãe. Percebemos
isso quando o autor tenta explicar, principalmente, como se dá a construção da
identidade de gênero na menina. Nesse ponto, Stoller revela que considera a
feminilidade mais simples, pelo fato da mãe ser mulher.
Embora Stoller explique, em alguns momentos, sobre o desenvolvimento da
menina, entendemos que ao considerar o percurso feminino mais simples, ele não nos
explica exatamente como se daria na menina a conquista de sua feminilidade e o efeito
de sua constatação a respeito de seu sexo. Os efeitos da protofeminilidade na menina
seriam apenas facilitadores de sua construção de identidade de gênero feminina. Assim,
nos parece que Stoller trata a feminilidade como algo natural e não nos esclarece sobre
os efeitos na menina de sua identificação inicial com a mãe. Como vimos anteriormente,
o autor aponta para uma consideração freudiana que levava em conta o masculino como
primário. Stoller propõe então o feminino como primário, considerando assim a
feminilidade como algo natural, identificatório e objetal, já que a mãe é do sexo
feminino.
Em relação ao menino, não percebemos essa “naturalização” quanto ao sexo da
mãe, mas uma ênfase no que o autor chamou de “abraço materno”, quando a mãe sufoca
a masculinidade do filho impedindo-o de se defender da feminilidade que ela lhe inflige.
76
Consideramos importante a contribuição de Stoller, principalmente quando
aponta a existência de uma certa dinâmica que entra em jogo na constituição da
identidade de gênero. Essa dinâmica que pode sobrepor qualquer determinação
anatômica, tanto dos filhos como dos pais.
As conclusões de Stoller a respeito da aquisição do que chamou de identidade de
gênero tanto central como geral dependem de uma dinâmica familiar, dependem da
forma como pais e mães cuidam dos filhos e encorajam ou não sua masculinidade.
Os casos de transexuais que Stoller apresenta, percebemos que todos são frutos
de casais heterossexuais, não apresentavam qualquer anormalidade anatômica e foram
femininos desde o primeiro ano de vida.
Assim, a dinâmica familiar é apontada como a principal fonte de risco para a
aquisição da masculinidade em garotos, ou seja, essa identidade de gênero do garoto
não está necessariamente ligada ao fato do casal parental ser composto por um homem e
uma
mulher
anatomicamente
referentes
aos
sexos
masculino
e
feminino,
respectivamente. O fato do casal parental ser heterossexual não garante a “normalidade”
na sexualidade dos filhos. O que ocorre é a influência de certa dinâmica familiar que
propicia ou não a aquisição da masculinidade.
Outro ponto importante levantando pelo autor é, para além da feminilidade ou
masculinidade, o fato da dinâmica familiar ajudar ou atrapalhar a conquista da
subjetividade da criança, ou seja, a possibilidade de iniciar relações de objeto, de ser
diferenciado da mãe, passando assim a existir separadamente dela. Stoller nos mostra
que a criança o faz por desenvolver uma “ansiedade de simbiose”. São criadas pela
criança, a partir de sua possibilidade de se desenvolver enquanto sujeito, defesas contra
o estado fusional com a mãe, permitindo assim que o menino se descubra separado dela
e de seu sexo. É a partir dessa separação que ele passa a saber sobre seu sexo. A
descoberta da diferença anatômica, a partir de então, causará no menino o que Freud
propôs: a sua entrada no complexo de Édipo.
Como pudemos observar nos textos freudianos discutidos anteriormente, o que
Freud chama de consequência psíquica da distinção anatômica entre os sexos, se trata
do que ocorre a partir da constatação infantil de ter ou não ter o pênis, de ser fálico ou
castrado, desdobrando numa anatomia das teorias sexuais infantis.
Trouxemos artigos importantes de Freud que discutem sobre as diferenças
sexuais e, como contraponto, trouxemos contribuições que julgamos importantes de
77
Robert Stoller, que com seus estudos com transexuais pôde abordar questões
interessantes sobre a masculinidade e feminilidade.
Um ponto permanece obscuro nos dois autores: Freud e Stoller. Ambos adotam
em algum momento de suas considerações sobre feminino e masculino, um apego a
uma explicação biológica ou anatômica. Freud, ao falar do menino, pressupõe uma
identificação primária ao pai e Stoller, ao falar da menina, pressupõe ligação ao
feminino materno que tornaria natural sua definição de gênero.
Ponto primordial sobre o efeito dos estudos de Stoller e suas considerações sobre
feminino e masculino é o quanto o autor acaba considerando, de forma direta ou
indireta, que há algo, muito além de qualquer distinção anatômica entre os sexos dos
pais, que incide radicalmente sobre a constituição não apenas de identidade de gênero,
mas a constituição subjetiva de meninos e meninas. A nosso ver, Stoller considera
essencial a dinâmica familiar, a forma como será permitido ou não à criança existir para
além de uma simbiose, de um abraço materno sufocador.
78
4 Sobre homoparentalidade
Antes de ter aprovada a lei do “casamento para todos” na França, foram
organizadas conferências para as quais foram chamados diversos representantes de
diferentes áreas de saber para discutir sobre a homoparentalidade, já que a lei garantiria
para todas as pessoas casadas direitos iguais, inclusive os relativos à procriação e
adoção de crianças. Antes de tomarem qualquer decisão contra ou a favor de uma lei
que admitia como família a configuração homoparental, foram convocadas famílias
homoparentais para falar.47 Uma das garotas que se pronunciou começou dizendo algo
como: “podem olhar para mim, vejam que não sou uma aberração”. A presença dessas
famílias e a certificação de que se tratava de pessoas absolutamente normais, capazes de
falar sobre si e sua experiência e capazes, inclusive, de defender seu direito de não
rotular previamente sua escolha afetiva sexual, foi importante na decisão que aprovou o
Mariage pour tous na França.
As pesquisas sobre homoparentalidade ajudaram a embasar as decisões a favor
da aprovação do casamento e subsequente reconhecimento legal da família
homoparental.
A família homoparental não é uma novidade tão recente quanto o
reconhecimento legal que vem sendo feito na maior parte do mundo ocidental. Ela já
existe há tempos e já há pesquisas sobre o assunto que revelam dados interessantes.
Separamos três dessas pesquisas para tratarmos a seguir. No decorrer deste capítulo,
abordaremos também pontos fundamentais sobre a adoção tardia, internacional e
homoparental e, ao final, apresentaremos alguns relatos provenientes de relatórios feitos
a partir da prática com família adotivas homoparentais, relatos estes que nos ajudam a
refletir sobre o assunto que abordamos.
4.1 Zambrano e a grande pesquisa brasileira
O primeiro trabalho sobre o qual falaremos foi feito em Porto Alegre, no período
de setembro de 2004 a setembro de 2005, e foi realizado pelo Instituto de Acesso à
Justiça. Interessa-nos o produto desta pesquisa, a cartilha intitulada “O Direito à
Homoparentalidade: cartilha sobre as famílias constituídas por pais Homossexuais”,
47
Essas audiências estão disponibilizadas no site da APGL.
79
cujo objetivo foi buscar informações sobre famílias homoparentais existentes no Brasil.
Considera-se homoparental a família em que pelo menos um dos pais se reconhece
como homossexual e exerce a função de cuidar cotidianamente de, pelo menos, uma
criança. Não seria exagero dizer que esta se trata da maior e mais importante pesquisa
brasileira feita sobre o assunto.
A cartilha brasileira sobre homoparentalidade foi feita na tentativa de suprir uma
falha, já que até então havia pouca quantidade de trabalhos sobre o tema no Brasil. O
intuito da pesquisa foi, dentre outros, o de obter dados que informassem o que se pensa
sobre homoparentalidade, tanto no sentido dos envolvidos diretamente no assunto – os
membros de famílias homoparentais –, como também profissionais que trabalham com
esse público. Foram considerados, além disso, dados vinculados na imprensa brasileira
sobre o assunto. É um estudo amplo, sem o qual certamente não poderíamos discutir a
homoparentalidade hoje no Brasil.
Levando em conta que a maior preocupação, tanto dos operadores do direito
quanto dos pais e mães envolvidos na pesquisa, é relativa ao bem-estar da criança, foi
feito um vasto levantamento bibliográfico sobre artigos e pesquisas empíricas nas áreas
da Psicologia, Antropologia e Direito. No total, foram analisados 43 artigos, em sua
maioria internacionais. Aproveitaremos, aqui, esse levantamento mais adiante.
A cartilha ressalta que há um número muito mais expressivo de pesquisas sobre
a parentalidade lésbica do que da parentalidade gay, e atribui isso ao fato de ser muito
mais acessível à mulher a maternidade, principalmente antes de serem regulamentadas
em tantos países as leis sobre casamento e adoção de crianças por homossexuais.
Ressalta, também, a necessidade de fazer estudos sobre as famílias homoparentais que
não sejam comparativos, relacionados às famílias “heteroparentais”, para que se possam
ressaltar as especificidades das famílias homoparentais.
Outro ponto levantado pela pesquisa é de que a representação social de gênero
atribui muito mais à mulher do que ao homem a capacidade de cuidar dos filhos, o que
reforça a ideia de que “homens são menos aptos para cuidar de filhos do que as
mulheres” e que “mulheres são representadas como seres original e necessariamente
maternais apenas pelo fato de serem mulheres.” (Zambrano, 2006, p. 9)
O resultado geral da nossa pesquisa bibliográfica mostra que as
pesquisas empíricas realizadas por diferentes autores indicam a
inexistência de diferenças em relação à habilidade para o cuidado de
filhos e à capacidade parental de pessoas heterossexuais e
homossexuais, bem como demonstra não haver diferenças
significativas entre o desenvolvimento de crianças criadas por famílias
80
heterossexuais quando comparadas àquelas de famílias homossexuais.
(Zambrano, 2006, p. 22)
A
cartilha
coordenada
por
Zambrano
destaca
que
estudos
sobre
homoparentalidade existem desde 1975 e dedica um capítulo a mostrar o resultado e a
discussão de cada uma dessas pesquisas. Embora os resultados desses mais de 30 anos
de pesquisas não tenham conseguido demonstrar qualquer prejuízo nas crianças criadas
por homossexuais, eles indicam que os mesmos não serviram para desmistificar a ideia
de que algo poderia ser prejudicial nesse tipo de família. Mas, ampararam muitos países
em decisões sobre leis de adoção e casamento entre homossexuais.
Diante da escassez de estudos sobre homoparentalidade que levassem em conta
homens gays, a delimitação empírica da pesquisa coordenada por Zambrano foi
composta por homens homossexuais, homens travestis e transexuais (homens para
mulher), levando em conta o sexo biológico anatômico de nascimento dos indivíduos.
Todos os participantes da pesquisa são de famílias tradicionais, heterossexuais,
nucleares e baseadas em laços consanguíneos.
4.1.1 A pesquisa empírica de Zambrano
A pesquisa brasileira teve três fontes de dados: entrevistas semi-estruturadas
com 20 homens (12 homossexuais, 5 travestis e 3 transexuais) que tinham ou
pretendiam ter filhos; entrevistas semi-estruturadas com 7 operadores do Direito (3
psicólogos e 4 assistentes sociais); foi feita uma vasta revisão bibliográfica de 43
estudos sobre homoparentalidade da área da Psicologia, Antropologia e Direito; foram
levantadas reportagens veiculadas pela Folha de São Paulo. Algumas das conclusões
sobre a pesquisa serão apresentadas abaixo.
O primeiro ponto esclarecido é sobre as possibilidades de construção da família
homoparental, que seriam quatro: relação heterossexual anterior; adoção, legal ou
informal; novas tecnologias reprodutivas; co-parentalidade. Aqui, é considerado um
dado interessante, pois o estudo conclui que para os homens gays a via da parentalidade
é, preferencialmente, a adoção. A parentalidade social é mais considerada do que a
biológica, já que para os homens a anatomia de seus corpos não permite a autonomia
sobre a gestação de uma criança, como é o caso de mulheres lésbicas.
81
A partir do próprio estudo empírico realizado por Zambrano e a partir de outros
estudos citados na pesquisa, concluí-se que para as mulheres é mais preponderante a
parentalidade biológica ou o laço de filiação de sangue.
Sobre as funções paterna e materna exercidas no grupo estudado na pesquisa
brasileira, foi concluído que ocorrem de acordo com as características e preferências de
cada um, não tendo sido observado, necessariamente, nos casais homossexuais, uma
divisão rígida de ‘’papel de gênero’’, ou seja, o feminino para o que cumpre a função
materna e masculino para a função paterna. Foi observado que o papel de autoridade,
vinculado ao papel paterno, foi representado por aquele que era considerado o
“verdadeiro’’ pai, por ser o pai biológico ou por ser o pai adotante, o único reconhecido
pela lei até então. O outro pai ocupa um lugar mais ‘’maternal’’, não porque seja mais
feminino, mas porque se encarrega das tarefas nas quais o reconhecimento legal não é
solicitado, geralmente os cuidados domésticos. Nas famílias em que um dos
componentes é travesti ou transexual, foi constatado que a divisão dos papéis parentais
era definida de acordo com o sexo/gênero de ‘’escolha’’ de cada um, então mulheres
transexuais e travestis são consideradas mães e seus companheiros, pais. (Zambrano,
2006)
A pesquisa destacou que cada grupo familiar pesquisado inventa seus próprios
termos de nomeação. Isso foi considerado como uma forma de possibilitar a inclusão de
outros tipos de cuidados parentais, para além da nomeação tradicional “pai” e “mãe”.
Termos como “dindo”, “painho”, diminutivos dos nomes próprios, e nos casos de
transexuais foram mencionados termos como “mainha” e equivalentes femininos.
A pesquisa brasileira ressaltou também que a socialização dos filhos em
ambientes homoparentais faz com que crianças e adolescentes transitem melhor entre as
diferentes possibilidades de relações sexuais, fazendo com que se coloquem de forma
mais aberta em relação à homossexualidade. Porém, todos os estudos demonstram que a
ocorrência de escolha afetiva homossexual em filhos de família homoparental é a
mesma de famílias tradicionais, heterossexuais.
82
4.2 Adoção por casais do mesmo sexo: um estudo belga 48
Na Bélgica, a lei de adoção suprimiu as três palavras “de sexo diferente” no que
concernia a adoção, sendo assim permitido que casais do mesmo sexo passassem a ser
autorizados pela lei a adotar crianças. Aprovada em 20 de abril de 2006, a abertura para
a adoção de casais do mesmo sexo começou a ocorrer no final da década de 1990,
quando essa ideia de abrir a adoção a casais homoparentais parecia audaciosa e
inovadora. Convém, entretanto, ressaltar a complexidade do assunto quando se trata de
pontos essenciais para a sociedade como família, a criança e a sexualidade.
Assim como no Brasil, o que ocorria na Bélgica antes da aprovação da adoção
por casais do mesmo sexo era a adoção monoparental, ou seja, apenas um membro do
casal era o adotante da criança, embora fosse de conhecimento de todos de que se
tratava de um casal. Ou, havia uma dissimulação da relação de casal em função da
comprovação de que se tratava mesmo de uma adoção monoparental.
No curso dos anos 2000, muitos países votaram alguma lei que regulamentou o
casamento e/ou a adoção por casais do mesmo sexo. Foram eles: Países Baixos, em 1º
de abril de 2001; seguido pela Grã Bretanha, em dezembro de 2002; Suécia, em 1º de
fevereiro de 2003; assim como Dinamarca, Islândia e Noruega.
Em 2005, na Espanha, se decidiu de uma só vez regulamentar o casamento
homossexual e a adoção por pessoas do mesmo sexo. O Canadá também regulamentou
leis sobre adoção e casamento de pessoas do mesmo sexo. Isso tudo, dias antes da
votação ocorrer na Bélgica.
Nas conclusões dessa pesquisa belga, temos a afirmação em relação à aprovação
da lei de adoção, naquele país, por casais do mesmo sexo. A lei belga alcança mais do
que apenas permitir que casais do mesmo sexo tenham acesso à adoção, sendo
considerada um passo emblemático em favor do reconhecimento da diversidade de
configuração de família na contemporaneidade. Fazendo com que a lei pudesse cobrir
todas essas configurações, tirando da sombra aquelas que já existiam, mas que não eram
reconhecidas legalmente. (Herbrand, 2006, p. 71) Permitiu à homoparentalidade aceder
a uma legitimidade tanto jurídica quanto simbólica pelas vias do direito.
A pesquisa em questão ressalta também que o reconhecimento dos direitos dos
homossexuais e reconhecimento das famílias homoparentais promove a modificação das
48
L’adoption par les couples de même sexe, de Cathy Herbrand, 2006.
83
representações sociais acerca do gênero, da orientação sexual e da família. Assim, as
questões sobre adoção por casais do mesmo sexo ultrapassaram em muito a simples
defesa de uma minoria. O tema interpela todo cidadão a respeito do que é a família.
Junção do público e do privado, a família se revela um vasto campo de evolução
permanente, cujos atores são levados sempre a repensar, redefinir e reconstruir.
(Herbrand, 2006, p. 71)
4.3 Um estudo francês feito com 58 crianças criadas por pais homossexuais
O primeiro trabalho científico feito na França sobre filhos de famílias
homoparentais, de Nadaud (2006), foi feito com sujeitos recrutados na APGL 49 . O
estudo francês pesquisou se as crianças filhas de homossexuais apresentavam patologias
psiquiátricas ou não; também procurou determinar o tipo de temperamento dessas
crianças de acordo com quatro modelos: emocional, atividade, sociabilidade e timidez;
e, finalmente, avaliou a capacidade adaptativa dessas crianças ao confrontarem
situações desafiadoras.
Os resultados obtidos nos diferentes testes seguiram a mesma linha daqueles
encontrados em todas as pesquisas feitas até então. Globalmente, os comportamentos e
temperamento dessas crianças não são diferentes do que é encontrado geralmente em
crianças. Um ponto interessante é que foi constatado que as crianças de famílias
homoparentais apresentam mais capacidade adaptativa, provavelmente pelo fato de
pertencerem a famílias “atípicas”, o que as impulsiona a desenvolver mais estratégias de
proteção.
“Não se trata então de afirmar que todas as crianças de pais homossexuais ‘vão
bem’, mas de colocar uma pedra suplementar no edifício dos estudos que mostram que
seus comportamentos correspondem àqueles de outras crianças de sua idade.” (Nadaud,
2006, p. 302) Assim, o estudo não pretende negar as especificidades dessas crianças,
mas reafirmar que, mesmo com especificidades, elas não são tão diferentes de qualquer
criança criada por casais em conformidade com a heteronormatividade.
Sobre as pesquisas apresentadas, gostaríamos de considerar que há muitos
estudos de revisão já existentes, e selecionamos o brasileiro para cobrir o vasto campo
de estudos sobre a homoparentalidade. Utilizamos um brasileiro e outro francês por se
49
Associação de Pais Gays e Lésbicas.
84
tratar de países intimamente ligados a essa pesquisa, que surgiu a partir do trabalho com
adoção de crianças brasileiras por casais franceses.
Outros estudos certamente virão, mas até hoje não há qualquer dado empírico ou
nenhum estudo considerado sério que traga qualquer comprometimento específico de
crianças de famílias homoparentais.
4.4 Adoção tardia, internacional e homoparental
Gostaríamos de esclarecer alguns pontos sobre adoção e suas especificidades,
pontos motivadores dessa pesquisa.
Para falar de adoção precisamos, infelizmente, falar sobre abandono, sobre a
discrepância que existe entre o amor de uma família e o real da rua, do ferro e do fogo,
das queimaduras de cigarro pelo corpo, do estupro, do descaso, da exploração de
menores, dos horrores pelos quais passam milhares de crianças todos os dias no Brasil.
Peiter (2011) evita a utilização da palavra “abandono” por considerar que remete
a ideia de uma situação intencional e considera que são poucas as vezes em que o
afastamento entre as crianças e seus pais biológicos seja fruto de um descuido
intencional. Outro ponto muito interessante ressaltado por Peiter (2011) é relativo à
consideração de que quem entrega ou abandona o bebê no Brasil é sempre a mãe, pois,
no imaginário social, é a mãe a única responsável pela criança e a pessoa a ser julgada
caso não tenha condições de desempenhar seu papel materno.
Delannoy (2006) diz que na França, a opinião pública exprime compaixão pela
criança, condenação aos pais biológicos, admiração pelos pais adotivos, o que considera
como três variáveis de uma mesma dificuldade em conceber um ato de abandono. A
autora nos diz ainda que o abandono deixa suas feridas no narcisismo da criança,
fazendo com que tenha dúvida sobre seu valor. Assim, considera que é o abandono que
cria qualquer problema no processo de filiação e não considera que a adoção em si
tenha qualquer problema a priori. A autora não só utiliza a palavra abandono como
considera o fator mais desafiador para a elaboração da criança adotiva, gerando
insegurança profunda e desvalorização de si mesmo, seja pelo abandono real ou
imaginário.
A maior parte das histórias de adoção no Brasil passa pela miséria, pelos maus
tratos, não só pela má distribuição da renda, mas pela má distribuição de direitos. Num
85
país miserável e rico ao mesmo tempo, incapaz de garantir direitos mínimos às suas
crianças.
O percurso de uma criança que é disponibilizada para a adoção internacional é
um caminho marcado por rupturas. Isso porque para que, hoje, no Brasil, uma criança
seja encaminhada para adoção fora do país é necessário que todas as outras alternativas
tenham fracassado. A volta para a própria casa, a ida para a casa de um parente
próximo, a tentativa de inserção em família adotiva brasileira. Além disso, a maioria das
crianças encaminhadas para a adoção internacional tiveram a destituição do poder
parental transitada e julgada. Isso nos revela que na família de origem, as condições de
vida dessas crianças não eram nem um pouco favoráveis ao seu desenvolvimento.
Dados do Cadastro Nacional de Adoção (CNA) 50, lançado em 29 de abril de
2008, servem para entendermos por que se recorre à adoção internacional.
Comecemos por um dado simples que confirma que, diferente do que muitos
imaginam, há muito mais casais interessados em crianças para adoção do que crianças
disponíveis no Brasil. E ainda assim, sobram crianças. Por que será que isso ocorre?
Temos 29.194 pretendentes a adoção e 5.465 crianças no CNA. 51 Embora o
número de crianças em abrigos seja imenso, apenas 1 em cada 8,15 crianças abrigadas
está apta para a adoção.
Uma explicação simples é que o perfil de crianças que esses tantos casais
almejam não corresponde às crianças disponíveis. A maior parte dos casais quer
crianças o mais novas possível, o mais claras possível e do sexo feminino, sobretudo. E
no CNA a maioria das crianças é parda, do sexo masculino, maiores de 9 anos e
possuem irmãos. “No Cadastro Nacional de Adoção (CNA), segundo dados de outubro
de 2013, das 5,4 mil crianças e jovens para adoção, 4,3 mil (80%) estão na faixa etária
acima de 9 anos.”52
Segundo os dados do CNA referentes ao mês de agosto de 2012,
92,7% dos pretendentes definiram que sua escolha era pela adoção de
“O CNA é em um banco de dados unificado nacionalmente que contém as informações necessárias à
realização de adoções no Brasil. O cadastro tem por objetivo facilitar e dar maior agilidade aos processos
de adoção por meio do mapeamento de informações unificadas, visto que uniformiza todos os bancos de
dados existentes; racionaliza os procedimentos de habilitação; amplia as possibilidades de consulta aos
pretendentes brasileiros cadastrados; possibilita o controle adequado pelas respectivas corregedoriasgerais de Justiça; e orienta o planejamento e a formulação de políticas públicas voltadas para a população
de crianças e adolescentes que aguardam pela possibilidade de convivência familiar.” (p. 7_CNJ, 2013)
50
51
Esses dados são de 2013, do CNA, criado em 2008 e do CNCA (Cadastro Nacional de Crianças
Acolhidas) criado em outubro de 2009; corregedoria Nacional de Justiça e Secretaria de Direitos
Humanos da Presidência.
52
http://www.cnj.jus.br/programas-de-a-a-z/infancia-e-juventude/cadastro-nacional-de-adocao-cna
86
crianças entre 0 e 5 anos. (...) Enquanto 92,7% desejam uma criança
com idade entre 0 a 5 anos, o CNA informa que apenas 8,8% de
crianças e adolescentes aptos à adoção tem essa idade. (CNJ, 2013, p.
28)
A partir desses dados fica evidente que o fator idade é o que mais conta para o
desencontro que existe entre e a quantidade de pretendentes e a quantidade de crianças
aptas à adoção no Brasil.
4.4.1 Da separação à adoção
Adoção tardia é uma expressão utilizada para designar a adoção de crianças de
mais de 2 anos de idade. É o tipo de adoção prevalente na adoção internacional. O que
regulamenta a adoção internacional é a convenção de Haia53 à qual o Brasil aderiu em
1999 e, desde então, passou a seguir uma série de regulamentações em relação à adoção
de crianças brasileiras por estrangeiros.
As adoções abrangidas por esta Convenção só poderão ocorrer
quando as autoridades competentes do Estado de origem (...) tiverem
verificado, depois de haver examinado adequadamente as
possibilidades de colocação da criança em seu Estado de origem, que
uma adoção internacional atende ao interesse superior da criança;
(Convenção de Haia, 1980)
Art. 39. § 1o A adoção é medida excepcional e irrevogável, à qual
se deve recorrer apenas quando esgotados os recursos de manutenção
da criança ou adolescente na família natural ou extensa, na forma do
parágrafo único do art. 25 desta Lei. (Nova lei de adoção, 2010)
Art. 50.§ 10. A adoção internacional somente será deferida se,
após consulta ao cadastro de pessoas ou casais habilitados à adoção,
mantido pela Justiça da Infância e da Juventude na comarca, bem
como aos cadastros estadual e nacional referidos no § 5o deste artigo,
não for encontrado interessado com residência permanente no
Brasil. (Nova lei de Adoção, 2010)
Visando atender o interesse da criança, a adoção internacional só é utilizada em
último caso, quando foram exauridos todos os outros recursos. Por isso mesmo, é muito
mais frequente que ocorra com crianças grandes, maiores de 9 anos ou com irmãos que
não forem separados. Ocorre apenas em casos excepcionais de adoções internacionais
acontecerem com crianças pequenas, que, mesmo pequenas, não encontraram famílias
nas longas filas do cadastro nacional.
Da separação à filiação adotiva há um longo e muitas vezes doloroso percurso
que a criança enfrenta. As crianças que sobrevivem a esse caminho de rupturas e
53
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/d3087.htm Convenção que regulamenta a adoção
internacional, visando assim, além de outros, desvincular a imagem da adoção internacional ao tráfico
internacional de crianças.
87
continuam aptos a serem adotadas, ou seja, aptos a adotarem uma nova família e serem
adotados por ela, são crianças muito especiais. A criança necessita elaborar o luto de sua
família biológica, para que possa reconstruir suas imagos, que servirão de apoio para as
imagos de seus novos pais. (Ozoux-Teffaine, 2004)
Nas engrenagens da adoção tardia, que é prevalente na adoção internacional, há
dois momentos essenciais: a preparação das crianças e o estágio de convivência. A
preparação começa quando já se sabe que a criança ou as crianças serão adotadas por
um casal heterossexual, uma pessoa solteira ou, como veremos a seguir, um casal
homossexual que vem de longe buscar seu filho no Brasil. O estágio de convivência é o
período em que os membros dessa nova família permanecerão juntos, entre o momento
em que se conhecem e a decisão do juiz em relação à adoção. O estágio de convivência
tem a duração de no mínimo 30 dias, podendo ser estendido conforme seja julgado
necessário. Durante o estágio, a guarda da criança é concedida aos pais adotantes e,
após esse período, ocorre a audiência que concretizará a adoção de caráter irrevogável.
4.4.2 Notas sobre adoção: a fase preparatória, o primeiro encontro e o estágio de
convivência
A semana anterior de João foi marcada por pesadelos. Para que João não
sofresse tanto com a ruptura e não associasse sua perda com a chegada dos pais
adotivos, ele foi retirado da família acolhedora uma semana antes do início do estágio
de convivência, semana essa em que passou na casa da responsável pelo abrigo em que
João passava as manhãs.54
Ozoux-Teffaine (2004) considera que um dos pontos fundamentais para a bem
sucedida filiação adotiva é o processo preparatório da criança anterior à chegada dos
pais. Pois, como também ressalta Delannoy (2008), embora seja um momento de alegria
para a criança que receberá uma nova família, se trata também de um momento de
muitas perdas: perda de suas origens, de seu ambiente, do abrigo ou família acolhedora,
dos colegas de escola e mesmo da língua materna. Para permitir a elaboração adequada
desse luto, é necessário que a criança seja bem preparada para adoção por vir e que
esteja de acordo com o que irá acontecer.
54
No corpo do texto, o que se apresenta em itálico é baseado em relatório efetuado no período em que
ocorrem as adoções. Nomes próprios, locais, datas e partes da história foram modificadas.
88
Antes dos pais chegarem João, de 9 anos, foi sendo preparado para a adoção
pela equipe do juizado. Aos poucos, foram apresentando a ele aqueles que seriam seus
pais. Logo no primeiro dia da preparação um fato foi revelador, João não seria
adotado por um pai e uma mãe, mas por um casal de homens. Ele disse sem hesitar, ao
final do primeiro encontro com a equipe: “Eu não quero uma mãe-bicha. Eu quero um
pai e uma mãe.”
No segundo encontro com a equipe de preparação João já chega dizendo que
não mudou de ideia, que gostaria mesmo de ter um pai e uma mãe. Mas aceita seguir
conhecendo mais sobre os possíveis pais. Então fica sabendo o nome deles e é mostrada
a ele uma foto em que se podia ver apenas o rosto dos dois. Ele leva a foto consigo. E
continua dizendo não.
No terceiro dia de preparação João mostra a foto dos pais, perfeita, sem um
amassado, parecendo ter tomado muito cuidado com ela. E começa a fazer perguntas
de como seria a vida dele no país pra onde iria, como é a comida de lá, se ele poderia
aprender a nadar.
No quarto dia da preparação de João, a equipe diz que os pais lhe enviaram
uma carta e perguntam se ele gostaria de ler. Ele diz que quer ler sozinho. Na carta, os
pais se apresentavam, contavam o que gostavam de fazer, diziam que gostariam de
saber mais a respeito dele e, no final, disseram que se João quisesse, e apenas se
quisesse, seria o filho deles. João ficou muito feliz com a carta que leu muitas vezes.
Ficou nitidamente satisfeito com a parte em que os pais levavam em conta a vontade
dele, respeitavam sua vontade e o fato de João poder dizer sim ou não. Ao final do
quarto dia de preparação, João disse sim, que queria ser filho daqueles dois.
No breve relato que lemos podemos constatar a importância da preparação da
crianças e da criação de um espaço intermediário entre o abrigo e a família adotiva.
Durante a preparação, a criança pode ir se despedindo daquilo que até ali fora sua vida e
pode se preparar, se imaginar, se projetar na vida nova que viria a ter. Pode decidir se
aceita, ainda mais no caso de crianças grandes, aquela família que está disposta a
oferecer-lhe uma nova vida. A preparação é um período necessário para que a criança
possa ter acesso aos pais reais que estão por vir. E confrontar esses pais com os pais de
sua imaginação, com os pais que a criança gostaria de ter e com os quais sonhou por
muito tempo.
89
4.4.3 O nascimento no primeiro encontro, momento fundador da filiação
“Assistimos aos primeiros momentos da vida em adoção que poderiam estar
muito próximos daqueles que acontecem durante um nascimento. Nós falamos de um
renascimento, nessa passagem de uma vida a outra.” (Ozoux-Teffaine, 2004, p. 114)
Ainda segundo Ozoux-Teffaine (2004), os primeiros momentos de uma adoção
são marcados por um idílio entre pais e filhos. Trata-se de uma fase original, de um
momento privilegiado, de um encontro marcado por um longo período de espera, tanto
do lado dos pais, como dos filhos. É um momento de completude, de realização, de
encontro. Momento de nascimento.
Às 15h, após duas horas de conversa com a equipe de preparação de Joãozinho,
nos avisam, pelo telefone, que ele está no prédio. Uma sala separa João de seus pais.
João pede que os pais coloquem apenas os rostos pela porta, olha os pais por um
segundo e se esconde. João vem lento, no seu tempo, parece tímido ou cauteloso na
expectativa de encontrar os pais pela primeira vez. Mostra primeiro o pé, depois a mão,
depois sua voz. A voz é reconhecida pelos pais. Ele finalmente entra na sala, e vai de
corpo inteiro na direção dos pais, como se ninguém mais estivesse presente.
Fabrice toca na mão do filho e o coloca no colo, o segura nos braços e eles se
abraçam por um momento, um longo momento. Fabrice coloca João no chão e é a vez
de François abraçar o filho, segurá-lo nos braços, de olhar pra ele, de conhecê-lo
finalmente. João olhava para os pais e procurava traços que o ajudassem a reconhecêlos. Ele já os conhecia por fotos e por um contato rápido pela internet. Então, quando
está no colo de Fabrice ele passa a mão em sua barba e diz, você é o Fabrice e ele
[apontando para François] é o François.
O primeiro encontro marca a fase inicial de um processo de filiação, da inscrição
da filiação. Momento do encontro, do renascimento de um filho que tem uma história
pregressa marcada por rupturas diversas, mas que manteve a possibilidade de
estabelecer vínculos com esses pais, manteve a possibilidade de confiar e se lançar nos
braços de adultos que, finalmente, poderiam cuidar dele.
O período inicial de uma adoção é marcado por regressões diversas e a
importância dos cuidados, do contato com a pele, a procura do calor. A necessidade de
fricções cutâneas é sinal precursor de um retorno imaginário ao seio, ao bem-estar, ao
interior do ventre materno ou à sua proximidade imediata. A criança se joga nos pais
buscando o contato direto, o que pode gerar certo desconforto, quando o pai não entende
90
como um menino grande pode precisar de colo. (Ozoux-Teffaine, 2004.) A criança pode
oscilar entre ser completamente capaz de cuidar de si, como alguém de sua idade
cronológica, ou se comportar como um bebê, ela parece precisar ter assegurada sua
possibilidade de ser novamente um bebê e ser cuidado pelos pais como tal.
“É uma pena você não ter peito, porque se você tivesse peito eu poderia
mamar.” – disse João à Fabrice, um pouco antes da hora de dormir. Então Fabrice diz
que “não seja por isso.” E vai até a geladeira, pega um pouco de leite, esquenta num
copo e volta para a sala. Na sala ele deita João em seu colo e lhe dá o leite como se seu
filho de 9 anos de idade fosse um bebezinho de colo. João toma o leite, agradece e ri. Ri
como quem sabe que aquilo não é bem o esperado para um menino daquele tamanho.
Ri como quem descobre que será alimentado por seu pai, mesmo que esse não tenha
peito. Então João vai para seu quarto dormir, onde François o espera para contar uma
história.
Até agora, pudemos perceber um pouco das engrenagens de uma adoção tardia,
internacional e homoparental. Utilizamos, entretanto, referências de autoras que se
referem às adoções realizadas por casais heterossexuais.
4.4.4 O decorrer do estágio de convivência
Art. 46.
§ 1o O estágio de convivência poderá ser dispensado se o
adotando já estiver sob a tutela ou guarda legal do adotante durante
tempo suficiente para que seja possível avaliar a conveniência da
constituição do vínculo.
§ 2o A simples guarda de fato não autoriza, por si só, a dispensa da
realização do estágio de convivência.
§ 3o Em caso de adoção por pessoa ou casal residente ou
domiciliado fora do País, o estágio de convivência, cumprido no
território nacional, será de, no mínimo, 30 (trinta) dias.
§ 4o O estágio de convivência será acompanhado pela equipe
interprofissional a serviço da Justiça da Infância e da Juventude,
preferencialmente com apoio dos técnicos responsáveis pela execução
da política de garantia do direito à convivência familiar, que
apresentarão relatório minucioso acerca da conveniência do
deferimento da medida.” (Nova lei de adoção, 2010)
Como vimos acima, o estágio de convivência no caso de adoção internacional
tem o prazo mínimo de 30 dias. Esse período é inaugural no processo de filiação
adotiva. Durante esses 30 dias a família consolida aquilo que antes só fazia parte do
imaginário de pais e filhos que estavam distantes e ainda não se conheciam. Esse
91
período permite que a família passe dessas idealizações para vivências concretas e reais
que serão a base para seu relacionamento futuro, em outro país.
Joãozinho chegou com uma mala azul, pequena, ali estava tudo o que tinha.
Algumas roupas, alguns brinquedos, suas “cartinhas” estavam no bolso, delas não se
separava por nada. A calça jeans no corpo, algumas blusas, um tênis, uma meia.
Recebeu também um cd, com fotos dos colegas da escola, cartas dos colegas lhe
desejando uma boa vida nova.
Nas engrenagens da adoção tardia também há os momentos de conflito, e como
nos explicam Levinzon (2004), Peiter (2011) e Ozounx-Teffaine (2004), nessa fase de
conflitos as marcas do abandono podem aparecer. No momento em que está em seu
novo ambiente, a criança conta histórias de seu passado, sobre o que se passou antes da
adoção, despertando dúvidas sobre a veracidade desses fatos. Se a família tem
capacidade para gerir esses conflitos, as lembranças continuam presentes, num sinal de
que o que está em jogo é o passado da criança e sua necessidade de conservar
lembranças boas de um passado do qual se distancia cada dia mais. Isso pode ocorrer
mesmo durante o estágio de convivência.
Adoção desnaturaliza a filiação, no sentido de deixar claro o que pode ocorrer de
encontro ou desencontro no processo de adoção entre pais e filhos. Podemos perceber
que a filiação não é um processo natural. Outro ponto que a filiação adotiva enfatiza é a
existência de um lado da criança que jamais poderá ser conhecido. A adoção tardia,
principalmente, supõe uma criança que tem em sua bagagem uma história obscura e que
deve ser aceita e respeitada pelos pais como tal. A criança tem direito a esse passado e
esse direito é garantido por lei. Mas o ponto que nos chama atenção é da semelhança
dessa ideia de um passado obscuro, que só pode ser acessado a partir de fragmentos, da
memória que está sujeita a falhas e reconstruções, a semelhança disso com a ideia de
inconsciente. A filiação adotiva realça a presença de uma parte do sujeito à qual o
acesso é impossível de alcançar, assim entendemos que realça o ponto em comum a
todos os sujeitos, desde que foi postulado o conceito de inconsciente enquanto instância
psíquica.
A criança adotiva tem direito ao acesso aos fatos de sua história, aos arquivos
que puderam ser documentados. Mas cabe aos pais adotivos, sejam eles de qualquer
configuração afetiva ou sexual anatômica, respeitarem o fato de que a criança é um
sujeito constituído para além de seus desejos e expectativas.
92
Muitas vezes ao se falar de adoção são sublinhadas as dificuldades
que podem ocorrer nesse processo. É importante ressaltar, no entanto,
que a relação entre pais e filhos adotivos é apenas uma relação
vincular humana, com todas as vicissitudes e paixões. Cada grupo é
similar em alguns aspectos e se destaca em outros, em relação ao
conjunto maior de pessoas. O mesmo ocorre com as pessoas ligadas
por vínculos de adoção. (Levinzon, 2004, p. 131)
Ao considerar os homossexuais como criaturas humanas tão habilitadas como
qualquer adulto responsável que tenha o desejo de parentalidade de construir um laço de
filiação com uma criança, o que ocorre são histórias em que o que está em jogo é apenas
essa relação vincular humana citada acima. Importante ter em vista que a aceitação da
homossexualidade como uma possibilidade de relação afetiva, amorosa e conjugal, abre
espaço para considerar o que há de específico no tipo de família homoparental. “A
facilidade ou dificuldade com que uma criança aceita sua condição de adoção está
diretamente ligada ao grau de aceitação de seus pais sobre a sua própria condição de
pais adotivos.” (Levinzon, 2004, p. 133) E, diferentemente do que ocorre nos casais
heterossexuais55, os casais gays que procuram a adoção não experimentaram a decepção
de não poder ter filhos, mas, ao contrário, passam por um momento em que veem o
surgimento de uma possibilidade que, anteriormente, consideravam bem remota ou
impossível. O que se vê é a abertura de uma possibilidade e um desejo genuíno de
estabelecer um vínculo essencial com uma criança que, da sua parte, precisa ter
assegurado seu direito de crescer no seio de uma família.
55
Sobre esse tema, o artigo de LEVINZON (2006), aborda questões como: os sentimentos decorrentes da
condição de infertilidade, o luto por não ter podido gerar seu filho, a dificuldade em conviver com as
diferenças. Essas questões, ao nosso ver, estão relacionadas diretamente com casais heterossexuais.
93
Conclusões Finais
O tema sobre o qual trabalhamos ao longo desses dois anos de mestrado vem
sofrendo mudanças consideráveis. Quando propusemos a questão para a banca, que
aprovaria o que era ainda um projeto de mestrado, a homoparentalidade se colocava a
partir de uma brecha na lei, que permitia a adoção de solteiros, sem especificar o estado
civil ou opção sexual. Desde então, tanto no Brasil quanto em outros países, sobretudo
do ocidente, as leis sobre casamento homossexual foram aprovadas e garantidos os
direitos tanto conjugais quanto familiares, ou seja, os que versam sobre a filiação. A
partir disso, a atualidade e relevância desse tema são confirmados e podemos mesmo
concluir que estamos longe de esgotá-lo.
A homoparentalidade não foi responsável pelas modificações no cenário das
configurações familiares, mas as modificações que ocorreram com a família, com o
reconhecimento da homossexualidade como uma forma legítima de afetividade e o
desejo de homossexuais de participarem da ordem familiar fizeram com que a família
homoparental se tornasse visível sendo, portanto, reconhecida legalmente.
Na primeira parte dessa dissertação, tratamos sobre o conceito de família e suas
transformações, lembrando que a família tradicional burguesa, que se trata de um casal
com filhos biológicos, é um modelo ao qual foram adicionadas outras possibilidades,
que também são reconhecidas tais como: família adotiva, cujos filhos não são
biológicos; família recomposta, cujos pais se separaram, um deles ou ambos se casam
novamente formando uma nova família; família monoparental, constituída por apenas
um dos pais, seja adotivo ou biológico, que exerce sozinho as funções materna e
paterna; família artificial, cujos filhos são concebidos por métodos de inseminação
artificial. Diante da variedade de avatares familiares possíveis, a família homoparental
aparece com mais uma, dentre tantas possibilidades. O reconhecimento da
homoparentalidade permite que apareçam essas famílias que já existiam, assim
revelando que seus filhos são sujeitos aos mesmos percursos constitutivos, pulsionais e
identificatórios, pelos quais passam todas as crianças.
O percurso que levou ao reconhecimento da família homoparental nos fez
levantar a questão: como a psicanálise poderia explicar a constituição subjetiva de
crianças que crescem tendo como casal parental duas pessoas do mesmo sexo
anatômico?
94
A fim de obter respostas para nossa pergunta decidimos selecionar alguns textos
freudianos que tratassem diretamente da questão da diferença sexual, ou seja, os textos
em que Freud revela as concepções da psicanálise clássica sobre “os movimentos
psíquicos que permitem ao sujeito ter acesso ao reconhecimento da diferença entre os
sexos”. (Mijolla, 2005, p. 500) Já que um ponto evidente da homoparentalidade é o fato
do casal parental ser constituídos por duas pessoas do mesmo sexo anatômico.
Pudemos perceber, a partir dos textos estudados, que a psicanálise freudiana
sofreu mudanças ao longo dos tempos e apontou para a necessidade de ampliar
conceitos e concepções. Revisamos cinco textos freudianos e de cada um percebemos
pontos importantes.
No texto sobre a “Organização genital infantil” (Freud, 1923/2011), distante do
que poderia ser apenas uma constatação de que os órgãos genitais infantis seriam
entendidos a partir de sua anatomia, Freud propõe que o que prevalece, após o momento
da organização perverso polimorfa, é uma organização que coloca para as crianças a
possibilidade de entenderem a se dividirem entre fálico e castrado. Essa divisão pesaria
tanto sobre a concepção que a criança tem sobre si, quanto a representação que faria dos
pais. Freud aponta, ainda, que nessa fase não há equivalência com masculino e
feminino.
O texto seguinte, de 1924 (2011), trata sobre um dos conceitos essenciais da
psicanálise clássica: o Complexo de Édipo. Como vimos, esse texto versa sobre pontos
cruciais da constituição das crianças e de suas relações com seus primeiros objetos de
amor, as pessoas que se responsabilizam por seus cuidados, que exercem para a criança
as funções parentais. Esse trajeto infantil, que vai do perverso polimorfo das pulsões
parciais ao organizado como fálico ou castrado, é produzido em parte pela
dessexualização desses amores edípicos, que são trocados pela possibilidade de se
identificar aos pais e aos ideias parentais. A identificação ocorre tanto com aquele que
representa o pai, masculino, ativo, quanto com o representante do feminino, passivo.
Nesse texto Freud considera a identificação do menino com a mãe, mas ressalta
vagamente o que seria uma identificação com uma “postura feminina”56.
No outro texto de 1924 (2011), “Algumas consequências psíquicas da diferença
anatômica entre os sexos”, Freud considera as consequências psíquicas em meninos e
meninas em relação a anatomia que os divide entre fálico e castrado. Embora assuma
56
Conforme grifado na citação da página 47, acima.
95
posições parecidas com textos anteriores, percebemos que há uma maior ênfase sobre a
bissexualidade, considerando mais passividade na masculinidade e mais ambiguidade
na diferenciação entre o que é propriamente feminino e masculino. Percebemos um
avanço na teoria clássica que permitiu uma menor determinação natural do que seria
feminino ou masculino.
Finalmente, na parte da revisão dos textos freudianos, revisamos dois textos
semelhantes em que Freud aborda questões novas sobre o feminino, motivo pelo qual
chamamos esse período de “retificação feminina”. Em ambos os textos, “Sobre
sexualidade feminina” (1931/2010) e “Feminilidade” (1933/2010), o autor considera a
sexualidade feminina mais complexa, pelo fato da garotinha ter que trocar tanto de zona
genital (do clitóris para a vagina), quanto de objeto de amor (da mãe para o pai). Para
fazer essa retificação feminina, Freud propõe uma ampliação do complexo de Édipo que
permita reconhecer melhor a fase pré-edípica da menina, evidenciando a forte ligação
inicial que a menina tem com a mãe. O ponto que mais nos interessou foi que, ao tentar
explicar o feminino, Freud faz avançar a teoria e faz alertas que consideramos
importantes para o tema que tratamos nessa pesquisa. Dissocia definitivamente
feminino de passivo e masculino de ativo, considera a fase pré-edipica de ligação
primordial com a figura sedutora materna e a disposição inicial bissexual infantil são
pontos apontados por Freud nesse texto. Porém, esses avanços nem sempre são
considerados efetivamente na teoria clássica, como vimos nas considerações de Stoller.
Através da revisão desses cinco textos, percebemos avanços na direção de
desnaturalizar a relação que poderia existir entre o órgão sexual anatômico e uma
posição sexuada específica, através da ênfase cada vez maior que foi sendo dada aos
diferentes caminhos que levam meninos e meninas a se tornarem homens e mulheres.
Embora seja evidente em alguns momentos uma equivalência entre biológico anatômico
e um destino sexuado pré-determinado, percebemos que nos textos mais tardios, essa
equivalência foi sendo cada vez mais desfeita. Consideramos que para contribuir para
pensarmos sobre a homoparentalidade, essa desnaturalização da equivalência deve ser
ainda mais radical.
Após a revisão dos textos clássicos de Freud sobre diferença sexual, decidimos
traçar um certo diálogo entre a teoria clássica psicanalítica e outra mais contemporânea,
através das concepções de Robert Stoller sobre identidade de gênero. A fim de perceber
em que ponto a concepção stolleriana sobre identidade de gênero poderia nos amparar
96
para refletirmos sobre como a psicanálise poderia ajudar a esclarecer sobre a
homoparentalidade.
Stoller, em seu livro “Masculinidade e feminilidade: apresentações do gênero”,
de 1993 (2010), traça, a partir de sua longa experiência com transexuais, como seria o
percurso de constituição de identidade de gênero principalmente em meninos. Ao tratar
especificamente sobre essa constituição, o autor desnaturaliza completamente a relação
entre sexo anatômico e gênero. Stoller ressalta que a relação ente sexo (qualidade de ser
homem ou mulher) e gênero (estado psicológico referente a feminilidade e
masculinidade) não configuram uma relação necessária, mas contingente, ou seja,
experiências que ocorrem após o nascimento podem modificar as “tendências
biológicas”. (Stoller, 1993, p. 21)
Apesar de não desconsiderar completamente a importância das forças biológicas
representadas pela anatomia sexual genital, pela determinação do que seria o sexo
masculino ou feminino, Stoller considera a importância de um período anterior ao
complexo de Édipo freudiano na construção da identidade de gênero. Esse período préedípico estaria presente em todas as crianças e se trata de uma forte ligação com a figura
materna e com o corpo da mãe, determinante da identidade de gênero nuclear. Essa forte
ligação inicial seria feminina, o que faz o autor postular que para ambos, meninos e
meninas, a faze primordial de sua constituição é de uma feminilidade primária. A
primeira ligação seria responsável pela dificuldade maior que o menino teria em
conquistar sua masculinidade, já que para isso teria que ultrapassar essa feminilidade.
Embora as concepções stollerianas sobre o feminino materno e suas possíveis
marcas deixadas no menino pareçam equivaler feminino e passivo, a ênfase que o autor
dá às primeiras relações são importantes para o que consideramos sobre
homoparentalidade. Mas caberia considerar que as concepções de Stoller teriam que ser
ampliadas ao ponto de poder considerar as primeiras relações dessas crianças, por
exemplo, com uma função materna que fosse exercida por um homem. Caberia
perguntar: como ficaria essa relação inicial com um corpo que fosse masculino e o
quanto isso poderia interferir na conquista da masculinidade para o menino?
Seguindo a orientação freudiana, teríamos que ampliar ainda mais o conteúdo do
complexo de Édipo, abrindo espaço para considerar as relações iniciais da criança com
aqueles que dela cuidam, quando as funções parentais fossem exercidas por duas
pessoas do mesmo sexo anatômico. Isso nos permitiria considerar os pais não somente
em relação ao sexo anatômico, mas em relação às funções que desempenham na criação
97
de seus filhos e as consequências dessas diferentes funções nas possibilidades
identificatórias das crianças, que o fazem em relação ao ideal parental. Essa mesma
ampliação teria que ser feita na teoria desenvolvida por Stoller, ao considerar que a
dinâmica familiar, tão importante na constituição da identidade de gênero de cada
criança, ocorreria menos atrelada a um feminino materno pelo fato da mãe ser mulher,
mas a uma posição passiva da criança em relação a esse cuidado.
A noção de identidade de gênero amparada pelo amplo estudo freudiano, nos
mostra que é preponderante na construção no Eu uma impressão de pertencer a um ou
outro sexo e isso não depende da diferença anatômica do sexo dos pais, mas de um
percurso pulsional e identificatório. A ênfase num certo tipo de dinâmica familiar
colocada por Stoller nos ajuda a pensar na desnaturalização da relação que
pretensamente existe entre sexo dos pais e aquisição da noção de diferença sexual.
Um dos pontos essenciais que percebemos ao longo do texto foi a necessidade
da desnaturalização para entendermos mais sobre as concepções de feminino e
masculino tanto no que tange às crianças, mas, principalmente, no que concerne o sexo
anatômico dos pais. Freud e Stoller são essenciais para essas considerações e, muito
além do que pode ser apontado como pontos obscuros, esclarecem em momentos
diferentes como essa desnaturalização ocorre.
Não falamos em nome de uma psicanálise uníssona, mas trouxemos um pouco
de duas abordagens dentro da ampla teoria psicanalítica: uma clássica freudiana e outra,
mais contemporânea, stolleriana, cada uma com uma matriz clínica específica. Nossa
matriz, a homoparentalidade, obriga que seja feita de forma ainda mais radical a
separação entre sexo e gênero, entre função materna e sexo anatômico feminino, entre
função paterna e sexo anatômico masculino.
A noção freudiana de complexo de Édipo interpreta uma faceta da cultura que
sobrepõe mulher e homem às figuras parentais e essas figuras podem não ser,
necessariamente, homem e mulher, mas mesmo assim exercerem esses papéis como
funções não acopladas ao gênero.
A construção do laço de filiação é um processo que parece durar a vida inteira.
Mas há um momento inaugural dessa construção. Através da filiação adotiva,
percebemos que esse laço não depende exclusivamente do sangue, da herança genética.
Através da homoparentalidade e as pesquisas empíricas que comprovam não haver
diferenças consideráveis na constituição das crianças que crescem nesse meio,
98
percebemos que a construção desse laço de filiação e parentalidade não depende
exclusivamente da anatomia do sexo dos pais e nem da diferença anatômica.
Na obra “Um amor conquistado: o mito do amor materno”, Elizabeth Badinter
(1985) escandaliza uma geração ao demonstrar através de um percurso histórico como a
ideia de que a mulher possui algo como um instinto materno é falsa. O livro é repleto de
exemplos em que esse instinto não se revela tão “natural” assim, aparecendo muito mais
como uma crença e uma relação de poder sobre a mulher do que como um atributo da
natureza feminina.
A cultura vincula mulher e mãe. Mas nos tempos em que ser mãe é cada dia
mais uma opção para a mulher e os gêneros estão cada vez mais fluídos, nos parece
importante propor utilizarmos a maternidade como uma função, e como tal pode ser
exercida para além do sexo da mãe.
Nos estudos sobre adoção homoparental, em casais gays, podemos perceber que
há presença desses cuidados “maternos” desempenhados pelos pais da criança, há
identificação desses cuidados pela criança e há também uma elaboração pela criança da
“ausência” da mãe/mulher tão evocada socialmente quando se trata de criar um filho ou
constituir uma família.
Para o campo da psicanálise talvez seja necessário radicalizar ainda mais a
separação que começou a ser feita por Freud em relação ao real do corpo e a elaboração
subjetiva a respeito dele de acordo com o percurso pulsional e identificatório.
Radicalizar também a não correspondência que existe entre natureza, procriação e
desejo sexual. Mas o ponto mais essencial, no que tange a questão da
homoparentalidade, seria afastar de vez a relação que se estabeleceu entre passividade e
feminino, atividade e masculino.
Em relação às funções maternas e paternas, elas também necessitam ser
radicalmente separadas no sentido de não fazerem uma relação necessária mas
contingente entre o sexo feminino e a função materna e o sexo masculino e a função
paterna.
Construímos essa pesquisa a partir da experiência com adoção tardia
internacional e homoparental, o que representa a adoção de crianças grandes, às vezes
com mais de 9 anos de idade, por casais estrangeiros. Dessa forma, a base da
constituição dessas crianças já estaria estabelecida e marcada, na maior parte das
crianças, por algum tipo de abandono. As questões relativas a diferença sexual teriam
que ser feitas especificamente nesse contexto e aliadas a outras referentes ao ponto em
99
que influenciam na construção de um laço afetivo de parentesco. Uma criança grande,
com mais de 9 anos tem um passado, uma história e subjetividade constituídos com
outros pais, em outro contexto. Em que ponto a homoparentalidade poderia representar
alguma característica específica sobre esse tipo de filiação adotiva?
As pesquisas empíricas comprovam que não é necessário mais perguntar “se” a
constituição subjetiva desses filhos da homoparentalidade sofreria qualquer dano
particular. Mas ainda cabe perguntar quais são e como funcionam as especificidades
características do arranjo homoparental, o que constitui um campo aberto de trabalho,
sobre o qual gostaríamos de continuar investigando em pesquisas futuras.
A adoção homoparental é um campo amplo de pesquisa e carece daquelas que
procurem discutir suas especificidades. Esperamos poder continuar com pesquisas sobre
o assunto e contribuir para que o conhecimento sobre as especificidades dessa recém
reconhecida família possa ser ampliado.
Certamente esse trabalho não termina aqui, pelo contrário, como dissemos no
início, se trata de um começo, de um primeiro passo.
100
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* Letra da música “Paula e Bebeto”, de Milton Nascimento e Caetano Veloso.
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1 De acordo com o estilo APA – American Psychological Association
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