ArteTeoria, nº 7 (2005), p. 77- 88
A cidade do Iluminismo: o caso da New Town de Edimburgo
Helena Murteira
Olhar o mundo
Especulação, experimentação, criação e debate são conceitos profusamente
postos em prática pela elite pensante setecentista. Efectivamente, o século XVIII
foi, antes do mais, um período de acesa actividade intelectual possibilitando a
abertura de novos horizontes à criação científica, artística e literária europeia. A
partir da segunda metade de Setecentos, este movimento estrutura-se numa
corrente de pensamento conhecida pela designação lata de Iluminismo e
reconhece-se como uma nova atitude perante o conhecimento, este entendido
como a relação que o Homem estabelece com a Natureza, da qual é parte
integrante, enquanto ser pensante e actuante.
Alexander Pope (1688-1744) escreveu em 1733: “Conhece-te portanto a ti
próprio, não presumas examinar Deus; o verdadeiro objecto de estudo da
Humanidade é o Homem”1. Com esta afirmação Pope pretende separar o
mundo metafísico do físico e, deste modo, delinear as fronteiras do
conhecimento humano. A sua tese da Natureza como uma estrutura perfeita e
harmoniosa, porque de criação divina, onde o Homem desempenha um papel
fulcral, debatendo-se entre a racionalidade (o que o aproxima da perfeição) e a
paixão (o que o distancia do divino), foi, apesar das críticas de alguns
detractores, como Voltaire (1694-1778), amplamente aceite e aplaudida na
1“Know
then thyself, presume not God to scan; the proper study of Mankind is Man” - Pope, An
Essay on Man (1733-34), Epistle II, “Man, with respect to Himself, as an Individual”, II, p. 1.
1
época2. A dimensão divina da Natureza, no que se reporta à sua criação e
regulação intrínseca e a capacidade única do Homem de contribuir para a sua
própria evolução são as ideias fulcrais desta nova atitude mental. No entanto, o
Iluminismo foi essencialmente: “Um grupo de elites que se sobrepunham e
interagiam e que partilhavam a missão de modernizar”3. Por isso mesmo,
acolheu teorias mais arrojadas baseadas numa visão ateísta do mundo4. Da
necessidade de reconhecer e apelar à individualidade humana, apregoada pelo
Humanismo renascentista, ao estabelecimento de uma única via segura para o
conhecimento, a Razão, veio no final de Seiscentos, acrescentar-se a
Observação e a Experiência, métodos de estudo resultantes de um interesse
crescente sobre nós próprios e o que nos cerca. Isaac Newton (1642-1727) e
John Locke (1632-1704) vieram com as novas leis do conhecimento Observação, Experimentação e Indução - fechar o círculo e dar os últimos e
decisivos motes para uma forma de pensar que a sociedade contemporânea
inevitavelmente herdou5.
O intercâmbio de informação que animou esta produção teórica foi, a um tempo,
premissa e instrumento desta nova corrente de pensamento. As viagens a Itália,
particularmente a Roma, multiplicaram-se: buscava-se estudar in loco a herança
clássica, ou por outras palavras, “a excelência das origens da cultura europeia”.
Mas o gosto pela viagem, o entusiasmo pelo desconhecido, não teve só as
cidades italianas como destino: viajava-se em busca de novos focos de
Utilizando como argumento a tragédia ocorrida em Lisboa após o terramoto de 1755, Voltaire
defende que o Mal também existe na Natureza, refutando, deste modo, o Optimismo
preconizado por Pope – “All is for the Best in the Best of all possible Worlds” - na sua obra
Candide ou l’Optimisme (Paris, 1759)
3
Porter, Roy, Enlightenment. Britain and the Creation of the Modern World, The Penguin Press
(London, 2000), p. xxii - “A cluster of overlapping and interacting elites who shared a mission to
modernize”.
4 O debate sobre o papel da religião, particularmente do Cristianismo, levou ao aparecimento da
tese do Deísmo (o mundo é de criação divina, mas só é possível conhecer através da razão)
defendida, entre outros, por Voltaire e pelo irlandês John Toland (1670-1722). No entanto, para
além dos primeiros escritos de Diderot (Pensées Philosophiques, 1700), pensadores como o
físico francês La Mettrie (1709-51) e o Barão d’Holbach (1723-89) partilhavam claramente uma
perspectiva materialista e ateísta do mundo.
5 Newton, Isaac, Philosophiae Naturalis Principia Mathematica (1687); Locke, John, Essay
Concerning Human Understanding (1689).
2
2
conhecimento e de fortuna. A nova elite educada e empreendedora que reunia
tanto aristocratas, como burgueses fazia questão em informar-se e coleccionar
tudo o que lhe garantisse acesso ao conhecimento que se ia gerando e que
sentia também como porta de passagem a um novo status sócio-económico.
Esta tendência inscreve-se numa dinâmica social de ancien-régime de origem
mais remota (o Renascimento Italiano) e reforça-se em Seiscentos, com a
empresa expansionista europeia, a decorrente revolução científica e a
consolidação do Estado absolutista. As bibliotecas e colecções particulares
multiplicam-se, ainda num cenário barroco de encenação de poder. A título de
exemplo, com a destruição do palácio do marquês de Louriçal após o terramoto
de Lisboa de 1755, perderam-se: “200 quadros incluindo obras de Ticiano,
Correggio e Rubens, uma biblioteca de 18,000 livros impressos, 1,000
manuscritos, incluindo uma história escrita pelo Imperador Carlos V pelo seu
próprio punho, um herbário pertencente anteriormente ao rei Matthias Hunyadi
(1440-90) da Hungria, um vastíssimo arquivo de família, e uma numerosa
colecção de mapas e cartas relacionadas com as viagens de descobrimento dos
portugueses no Oriente e no Novo Mundo”6. Rapidamente o Iluminismo retoma
esta dinâmica, agora mais especificamente de acordo com uma ideologia que
preconizava a necessidade de compreender o mundo, com o fim último de o
civilizar.
De facto, o Renascimento e a expansão marítima para outras partes do globo
transmitiram aos Europeus o sentimento de pertencerem a uma civilização
superior. Esta ideia foi acarinhada pelo Iluminismo e tem moldado o pensamento
Europeu até ao presente: “A capacidade, consequência do ambiente ou da
vontade divina, de controlar os recursos do mundo natural, de empregá-los para
o bem supremo da Humanidade, tinha conferido à Europa a sua implícita
Kendrick, T.D., The Lisbon Earthquake, Methuen & Co. Ltd (London, 1956), p. 32 - “200
pictures, including Works by Titian, Correggio and Rubens, a library of 18,000 printed books,
1,000 manuscripts, including a history written by the Emperor Charles v in his own hand, a herbal
formerly belonging to king Matthias Hunyadi (1440-90) of Hungary, a huge family archive, and a
great collection of maps and charts relating to the Portuguese voyages of discovery and
colonization in the east and in the New World”.
6
3
superioridade sobre os povos do mundo. Esta é a origem da convicção, ainda
partilhada por muitos, que a Europa ou ‘O Ocidente’ é excepcional”7. Neste
quadro, salienta-se a atitude dos britânicos, segundo eles observadores e
intervenientes privilegiados, dado o carácter progressivo do seu sistema
parlamentar e do seu enquadramento religioso: ”Havia factores com carácter
ainda mais revolucionário nas reacções que tanto a civilidade como o comércio
provocavam:
‘entusiasmo’
Metodista,
filantropia
colectiva
sistemática,
radicalismo político subversivo e, não menos importante, um interesse crítico no
estatuto das mulheres, crianças, estrangeiros, escravos, povos distantes,
animais e todas as criaturas vivas não abençoadas com o inestimável dom
divino de haver nascido um inglês livre e proprietário” 8.
Para os teóricos do Iluminismo, dever-se-ia, antes do mais, partir da premissa
que só através da condição do Homem como ser racional é possível conhecer e
unicamente por este meio a Humanidade pode aspirar a melhorar as suas
condições de vida. A vida humana é, deste modo, mais do que uma mera
passagem para um outro nível existencial. Representa um lugar onde o Homem
se deverá exprimir como ser pensante e procurar a tão desejada Felicidade.
Esta visão da condição humana está, em última análise, na origem de uma nova
forma de abordar o planeamento urbano, e consequentemente, num novo
entendimento de como fazer a cidade. Esta representa, para os teóricos do
Iluminismo, a unidade física onde todos os atributos da civilização europeia
Pagden, Anthony, “Prologue: Europe and the World Around” The Early Modern Europe,
Cameron, Euan (ed.) (2001), p. 19-20 - “The ability, whether the consequence of environment or
divine will, to control the resources of the natural world, to make them work for the greater good
of humankind, had given Europe its assumed superiority among the peoples of the world. This is
the origin of the belief, which is still shared by many, that Europe, or ‘The West’ is exceptional”.
8 Langford, Paul, A Polite and Commercial People (England 1727-1783) (1989), p. 7 - “There was
much that was even more revolutionary in the responses which both politeness and commerce
provoked: Methodist ‘enthusiasm’, systematic collective philanthropy, subversive political
radicalism, and not least, critical interest in the status of women, children, foreigners, slaves,
distant peoples, animals, and every other living creature not blessed with the inestimable divine
gift of birth as a freeborn, propertied Englishman”.
7
4
podem e devem encontrar-se no sentido de promover o progresso da
Humanidade9.
Pensar a cidade
Foi neste ambiente de profícuo debate filosófico que se delinearam os primeiros
princípios que haveriam de, sensivelmente um século mais tarde, dar origem à
disciplina do urbanismo.
Ao longo do século XVII, o Barroco tinha conferido flexibilidade aos princípios
teóricos herdados do Renascimento10. O debate entre clássicos e modernos em
França, promovido pela Academia Francesa de Arquitectura (1671), reflectiu as
questões de base que se colocavam a uma prática arquitectónica que estava
longe de se definir linearmente: para além da tratadística, vocabulários
vernaculares e a sólida formação da experiência enformavam também a criação
arquitectónica que se queria, no entanto, cada vez mais coesa e interveniente
política e socialmente11.
A questão teórica vai, deste modo, adquirindo protagonismo e reflectindo as
tensões em jogo.
A produção de tratados de arquitectura conhece um significativo aumento a
partir do final de Seiscentos. É notório o delinear de uma tendência que valoriza,
antes do mais, as seguintes premissas: o estabelecimento de tipologias
arquitectónicas a um tempo coerentes, mas passíveis de várias articulações de
Schorske, Carl E. “The Idea of the City in European Thought: Voltaire to Spengler”, The
Historian and the City (Handlin, Oscar e Buchard, John, eds.), MIT Press and Harvard Press
(Cambridge, Massachusetts, 1996).
10
Ver Guarini, Guarino, Disegni di architettura civile (1686) e Architettura civile (Turim,1737).
11 Ver Blondel, François, Cours d’Architecture (Paris, 1675-1683). O engenheiro militar François
Blondel, que presidiu à Academia Real de Arquitectura logo no seu início, foi um claro defensor
da pureza da tratadística clássica. Por outro lado, Claude Perrault na sua obra Les dix livres
d’architecture de Vitruve, corrigez et traduits nouvellement en François, (Paris, 1673) advoga que
as noções de perfeição e beleza são subjectivas e que só através de um perfeito equilíbrio entre
as proporções e a funcionalidade do edifício é possível aferir da qualidade deste.
9
5
acordo com o fim a que se destinam e a necessidade de as divulgar de uma
forma simples e eficaz. Subjacente a esta corrente, detecta-se claramente a
vontade de atribuir definitivamente um outro estatuto à arquitectura, olhada não
mais como uma actividade artesanal, mas como uma arte à qual devem presidir
princípios teóricos sólidos: ”Não temos ainda nenhuma Obra que estabeleça
solidamente os princípios, que manifeste o verdadeiro espírito, que proponha
regras próprias para orientar o talento e estabelecer o gosto. Parece-me que nas
artes que não são puramente mecânicas não é suficiente que se saiba trabalhar,
importa sobretudo que se aprenda a pensar”12.
Proporção e clareza são, deste modo, sinónimos de qualidade, com evidentes
benefícios para a utilidade pública. O objecto arquitectónico é considerado como
um instrumento de intervenção social e amiúde se refere a necessidade de
pensar o edifício como uma equação equilibrada entre forma e função: ” se nós
considerarmos a arquitectura em geral apercebemo-nos que … temos visto
incessantemente os objectos do ponto de vista dos materiais, quando
deveríamos tê-los considerado em termos filosóficos. Eis porque as cidades
jamais foram ordenadas convenientemente para o bem-estar dos seus
habitantes ; perpetuamente somos vítimas das mesmas calamidades, da
sujidade, do ar nocivo e de uma infinidade de imprevistos que a harmonia de um
plano judiciosamente preparado teriam feito desaparecer ‘’13.
Laugier, Marc-Antoine, Essai sur l’Architecture (1753), Preface, p. xxxiv - “Nous n’avons point
encore d’Ouvrage qui établisse solidement les principes, qui en manifeste le veritable esprit, qui
propose dês régles propres à diriger le talent et à fixer le gôut. Il me semble que dans les arts qui
ne sont pas purement méchaniques, il ne suffit pas que l’on sache travailler, il emporte sur-tout
que l’on aprenne à penser”.
13 Patte, Pierre, Mémoires sur les objets les plus importants de l’Architecture (1769): “si l’on
considère l’architecture dans le grand on se aperçoit que … l’on a vu sans cesse les objets en
maçon, tandis qu’il eût fallu les envisager en philosophie. Voilá pourquoi les villes n’ont jamais
été distribuées convenablement pour le bien-être de leurs habitants; perpétuellement, on y est
victime des mêmes fléaux, de la malpropreté, du mauvais air et d’une infinité d’accidents que
l’entente d’un plan judicieusement combine eût fait disparaître”. Ver também Blondel, JacquesFrançois, Architecture Françoise (Paris, 1752-1756) e Cours d’architecture ou Traité de la
Décoration, Distribution & Construction des Bâtiments (Paris, 1771-1777).
12
6
Também Carlo Lodoli, monge franciscano e figura carismática do Iluminismo
veneziano, dedicou uma importante parte da sua actividade à defesa destes
princípios de ordenamento urbano14. Finalmente, e como conclui Patte, o
fundamental era planear globalmente e fazer submeter o objecto arquitectónico
à lógica do conjunto urbano. Já Descartes (1596-1650) advogava este último
princípio, pela racionalidade do método. Mas era a simetria e a regularidade que
o preocupavam: um conjunto medíocre mas uniforme era preferível a uma
justaposição desconexa de edifícios de qualidade15.
Todavia, os teóricos do Iluminismo estavam preocupados com a excelência da
prática arquitectónica: “Entre as várias Artes cultivadas pelos homens, algumas
são concebidas para uso diário e adaptadas para suprir as nossas
necessidades, ou ajudar nas nossas debilidades, algumas ainda são somente
instrumentos de luxo, sendo totalmente concebidas para lisonjear a vaidade, ou
gratificar os desejos da humanidade: enquanto outras são apropriadas para
vários fins, contribuindo ao mesmo tempo para a preservação, o divertimento e a
grandeza da espécie humana. A Arquitectura pertence à última categoria…”16.
Deste modo, o Iluminismo acolheu a ideia de embelezamento urbano, a qual
constituía uma premissa da gestão das cidades europeias desde, pelo menos,
Quinhentos17. No entanto, os teóricos do Iluminismo definiram este conceito em
estreita
ligação
com
questões
fundamentais
de
planeamento
urbano:
regularidade, desafogo e extensão do traçado urbano, construção de
Lodoli, Carlo, Elementi dell’Architettura Lodoliana; o sai, l’arte del fabbricare com solidità
eleganza (Roma, 1786).
15
Descartes, René, Discours de la Méthode … plus la dioptrique, les météores, la méchanique et
la musique, qui sont des essais de cette méthode (1637).
16 Chambers, William, A Treatise on Civil Architecture (1759), Preface, p. IV - “Amongst the
various Arts cultivated by men, some are calculated for the uses of life, and adapted to supply our
wants, or help our infirmities, some again are merely the instruments of luxury, being wholly
contrived to flatter the vanity, or gratify the desires of mankind: whilst others are fitted to many
purposes, contributing at the same time to the preservation, the amusement, and the grandeur of
the human species. Architecture is of the latter kind …”
17 Ver Patte, Pierre,Monuments érigés en France à la gloire de Louis XV (Paris, 1765) e Voltaire,
Des Embellissements de Paris (Paris, 1749) e Des Embellisssements de la ville de Cachemire
(Paris, 1750).
14
7
equipamentos de saneamento básico, manutenção e melhoramento das
estruturas viárias e equipamentos existentes, tais como ruas, pontes e cais e
construção de locais públicos de lazer. “Embelezamento” urbano, ou “formosura”
urbana, tornou-se, deste modo, um ex-libris da cidade proclamada pelo
Iluminismo e reproduzia a um tempo uma ideia de cidade e uma política
urbanística bem estruturada: ” Não se pode dizer que uma cidade é bela… se as
pontes, os portos e os cais não são espaçosos, cómodos e bem preservados; se
as praças de abastecimento, os mercados e as fontes não são distribuídos
equilibradamente pela cidade para a comodidade dos habitantes” 18.
Proporção e uniformidade das formas arquitectónicas, regularidade morfológica,
salubridade do ambiente e funcionalidade do conjunto urbano, esta é a ideia de
cidade preconizada pelo Iluminismo, só amplamente conseguida por uma
actuação concertada e de projecção global. Os arquitectos franceses Etienne
Louis Boulée (1728-99) e Claude Nicholas Ledoux (1736-1806), já no final de
Setecentos, dão um novo impulso a esta corrente de pensamento e reformulam
a equação entre forma e função: o edifício existe enquanto expressão da sua
utilidade em termos sociais e, contém, em si mesmo, as qualidades e atribuições
de uma unidade espacial total. A arquitectura submete-se deste modo à lógica
da sua função social. Por entre este debate, tecem-se considerações que
prenunciam já uma visão eclética do objecto arquitectónico e, como resultado,
do projecto urbano: “A imitação da bela Natureza é aí [na arquitectura] menos
visível e mais limitada do que nas outras duas artes que acabámos de
mencionar [pintura e escultura]: estas exprimem indiferentemente e sem
restrições todas as partes da bela Natureza, e representam-na tal como é,
uniforme ou variada ; a Arquitectura, pelo contrário, combinando e unindo os
diferentes corpos que usa, encontra-se limitada a imitar o arranjo simétrico que a
18 Delamare, N. et Le Cler du Brillet, Traité de la Police, t. 4 (Paris, 1738), p. 439 - “l’on ne peut
dire qu’une ville soit belle … si les ponts, les ports et les quais ne sont spacieux, commodes et
bien entretenus; si les halles, les marchés et les fontaines ne sont régulièrement distribués pour
la commodité des habitants”. Ver Harouel, Jean-Louis, L’Embellissement des Villes (L’Urbanisme
Français au XVIIIe Siècle), Picard Villes et Sociétés (Paris, 1993).
8
Natureza segue mais ou menos obviamente em cada indivíduo e que contrasta
tão bem com a bela variedade de todas em conjunto”19.
O Projecto Urbano
É à luz destas considerações preambulares que iremos analisar o primeiro
projecto de expansão da cidade de Edimburgo, a chamada New Town,
desencadeado sensivelmente uma década após Manuel da Maia ter
apresentado ao Duque de Lafões a sua Dissertação para a reconstrução da
Lisboa destruída pelo terramoto de 1755.
No início de Setecentos, a cidade de Edimburgo estava ainda confinada à velha
cidade medieval desenvolvendo-se do Castelo para leste ao longo da grande via
denominada The Royal Mile (Fig. 1).
D’Alembert, Encyclopédie ou Dictionnaire Raisonné des Sciences des Arts et des
Métiers…Discours préliminaire (1ª edição: Paris, 1751-1780), Flammarion (Paris, 1986), p. 104 –
“L’imitation de la belle Nature y est moins frappante et plus resserrée que dans les deux autres
arts don’t nous venons de parler; ceux-ci expriment indifféremment et sans restriction toutes les
parties de la belle Nature, et la représentent telle qu’elle est, uniforme ou variée; l’Architecture au
contraire se borne à imiter par l’assemblage et l’union des différents corps qu’elle emploie,
l’arrangement symétrique que la Nature observe plus ou moins sensiblement dans chaque
individu, et qui contraste si bien avec la belle variété du tout ensemble’’. Ver também Laugier,
Marc-Antoine, op. cit.
19
9
Figure 1 - Planta da Old Town de Edimburgo e da área circundante (séc. XVIII). Publicado em
Youngson, A.J., The Making of Classical Edinburgh (1750-1840). Edinburgh: Edinburgh University
Press, 1993. Ao centro e a Oeste, podemos ver o penhasco onde se localiza o castelo e correndo para
Leste, estruturando o casario e ligando aquele e o Palácio de Holyrood, estende-se a Royal Mile. A
Noroeste deste conjunto são visíveis o North Loch, a área ocupada pelos Barefoot Parks e os terrenos
pertencentes ao Heriot Hospital adquiridos pelo Município de Edimburgo em meados de Setecentos
para a construção da New Town.
A degradação de várias áreas do velho conjunto arquitectónico medieval e a
ocupação intensiva que havia sido alvo (alguns edifícios chegavam a atingir os
doze pisos!) tinham tornado premente o problema da extensão da cidade (Fig.
2).
10
Figure 2 Vista do Old Fishmarket Close em Edimburgo (inícios do séc. XIX). Apesar de datar de
algumas décadas após a construção da primeira New Town, este desenho mostra ainda a densa
ocupação vertical da Old Town. Publicado em Youngson, op. cit.
Daniel Defoe (1660-1731), o famoso escritor inglês Setecentista, dá-nos esta
imagem de Edimburgo em 1727: “Como resultado a Cidade é vítima de
inúmeros transtornos e encontra-se imersa em tantas inconveniências
escandalosas que é objecto de escárnio e crítica pelos seus inimigos; como se
as pessoas não estivessem dispostas a viver de forma agradável e limpa como
vivem as outras nações, mas se deliciassem, ao contrário, no Fedor e no
Detestável, condições em que estariam outras pessoas que vivessem sob tal
gestão, quero dizer, para além de vivermos num local rochoso e montanhoso,
com edifícios sobrelotados, de sete a dez ou doze pisos de altura, temos
escassez de água e a pouca que temos ao dispor, de difícil alcance, sobretudo
para os apartamentos mais altos; deveríamos ter Londres e Bristol tão sujos
como Edimburgo e, talvez, menos aptas a tornar as suas habitações toleráveis,
pelo menos numa área tão reduzida; porque apesar de várias Cidades terem
11
mais população, eu acho, o que não estará longe da verdade, que nenhuma
cidade no mundo vive em tão pouco espaço como Edimburgo”20.
Tanto em Lisboa como em Edimburgo, o século XVII marca o início de um
processo de elaboração de disposições legais visando instituir medidas precisas
para as novas construções, bem como a reforma urgente das infra-estruturas
urbanas. Em ambas as cidades, os municípios e o poder central foram forçados
a adaptar e a regular um crescimento urbano que não podia ser contido por uma
mera política restritiva da área a urbanizar. Qualidade e durabilidade dos
materiais, regularidade das fachadas, depuradas de elementos obstrutivos ao
trânsito, iluminação e saneamento urbanos são as questões mais referidas na
documentação camarária de ambas as cidades21. Esta orientação do
ordenamento urbano é detectável, neste período, um pouco por toda a Europa,
particularmente nas cidades mais populosas. A questão da uniformidade das
fachadas, que por razões de representação política e de funcionalidade urbana,
adquiriu uma importância crucial nas maiores cidades Europeias de Seiscentos,
parece ter sido abordada mais eficazmente, pelo menos ao nível da legislação e
do projecto, na segunda metade desta centúria.
Corroborando esta convicção, em 1674, um incêndio de grandes proporções no
centro de Edimburgo despoletou o primeiro projecto, por parte do município, com
vista a uma uniformidade tipológica e morfológica da cidade: “A disputa entre os
herdeiros que sofreram prejuízos com o fogo de Todrig’s Wind levou o Conselho
20
Defoe, Daniel, A Tour through the Whole Island of Great Britain (Revised Edition, with the Tour
through Scotland), (London, 1724-26), 2 vols. – “By this means the City suffers infinite
disadvantages, and lies under such scandalous inconveniences as are, by its enemies made a
subject of scorn and reproach; as if the people were not willing to live sweet and clean as other
nations, but delighted in Stench and Nastiness, whereas, were any other People to live under the
same management, I mean as well of a rocky and mountainous Situation, throng’d buildings, from
seven to ten or twelve storeys high, a scarcity of water, and that little they have to be had, and to
the uppermost lodgings, far to fetch; we should have a London or a Bristol as dirty as Edinburgh,
and, perhaps, less able to make their Dwelling tolerable, at least in so narrow a compass; for tho’
many Cities have more people in them, yet, I believe, this may be said with Truth, that in no city in
the World live in so little Room as Edinburgh”.
21 Ver Oliveira, Eduardo Freire de, Elementos para a História do Município de Lisboa (Lisboa,
1884-1911), 17 vols e Extracts from the Records of the Borough of Edinburgh, Scottish Borough
Records Society (ed.), Oliver & Boyd (Edinburgh 1927-1967), 8 vols.
12
e os mestres artesãos a visitarem o local no dia 16 de Novembro de 1674 e a
ouvirem aí todas as queixas e, como resultado, recomendaram que todos os
edifícios com fachada para a High Street deveriam ser construídos com a
mesma altura, numa linha recta. Com janelas ao mesmo nível, e apoiados em
pilares e arcos”22.
Outros incidentes desta natureza tiveram uma resposta similar por parte da
municipalidade de Edimburgo23. Todavia, esta tarefa não se revelava fácil nem
de rápida execução, dados os obstáculos de ordem legal e financeira que se
colocavam a projectos de remodelação urbana de grande monta em centros
urbanos populosos.
Em Lisboa, o Senado da Câmara pediu a acção directa da Coroa tanto para a
resolução dos direitos de propriedade, como para o levantamento de algumas
taxas, como a Siza, quando procedia à aquisição de propriedades na Rua dos
Ourives da Prata e Rua dos Ourives do Ouro, em finais de Seiscentos e inícios
de Setecentos, com vista ao alargamento destas vias. 24 Ainda na capital
portuguesa, as tentativas de controlar a construção tanto no centro, como nas
novas áreas urbanizadas, segundo um mínimo de normas de carácter formal,
revelaram-se muitas vezes infrutíferas. Manuel da Maia aborda este problema
na sua Dissertação25. A eficácia das disposições legais era, com a escassez dos
meios financeiros, um problema sério e recorrente na administração das grandes
cidades europeias.
Arnet, Helen “Notes on rebuilding in Edinburgh in the Last Quarter of the seventeenth century”
Book of Old Edinburgh (BOEC), 29 (Edinburgh, 1956), p. 113 – “A dispute between the heritors
who suffered loss in the fire at Todrig’s Wynd caused the whole Council and deacons of crafts to
visit the ground on 16th November 1674 and hear all complaints on the spot, and as a result they
recommended that the tenements fronting the High Street should be built of equal height, in a
straight line, with Windows at the same level, and supported on pillars and arches”.
23 Ver Extracts from the Records of the Borough of Edinburgh 1681-1689 (Edinburgh, 1954) e
1689-1701 (Edinburgh, 1962).
24 Ver Consulta da Câmara ao Rei de 23 de Agosto de 1677, Liv.º V de Consultas e Decretos do
príncipe D. Pedro, fl. 83 e Consulta da Câmara ao Rei de 24 de Abril de 1716, Liv.º VI de Cons. e
Decr. de D. João V, Senado Oriental, fl. 293 (Arquivo Histórico da Câmara Municipal de Lisboa).
25
Maia, Manuel da, Dissertação (1756) publicada em França, José-Augusto, Lisboa Pombalina e
o Iluminismo, Bertrand Editora (Lisboa, 1983).
22
13
Em Edimburgo, a consciência deste problema levou à promulgação do Acto de
Parlamento de 1698 que estabeleceu, pela primeira vez nesta cidade, um
conjunto de normas construtivas. Este diploma legal é revelador da apreciação
cuidada que tanto o Parlamento, como o Município, faziam das condições das
estruturas urbanas de Edimburgo, bem como da convicção instalada que só
mediante a aplicação coerciva de um conjunto de medidas para toda a cidade se
poderia atingir a tão desejada melhoria das condições de vida dos seus
habitantes: “O nosso Soberano Senhor considerando que os novos edifícios da
Cidade de Edimburgo foram construídos sem nenhumas regras fixas resultantes
de uma fiscalização particular, várias casas são incomodamente construídas e
com uma altura perigosa e todas muito acanhadas e inadequadas pelo que não
só os costumes e a boa vizinhança da cidade são prejudicados, mas também no
caso de acontecer um incêndio todos os acessos para parar e extinguir o
mesmo são tão impraticáveis que podem vir a constituir um perigo para toda a
cidade. Para remediar esta situação em qualquer lugar e para uma ordenação e
regulamentação de todos os edifícios novos da cidade de Edimburgo daqui para
o futuro, Sua Majestade foi advertida e aconselhada pelos Estados do
Parlamento, Estatutos e Ordenações que na construção de quaisquer novas
casas ou propriedades na cidade e nos subúrbios estas regras devem ser
observadas …”26.
As regras enumeradas neste Acto do Parlamento diziam essencialmente
respeito ao problema da prevenção de incêndios: nomeadamente, ampliação da
“Act Regulating the Manner of Building within the Town of Edinburgh” , 30 Agosto de 1698,
Extracts from the Records of the Burgh of Edinburgh 1689-1701 - “Our Sovereign Lord
considering that the new buildings in the City of Edinburgh having been built without any settled
rule of particular oversight, severall of the houses are built to excessive incommodious &
dangerous height and all of them very slight and insufficient whereby not only by the policy and
good neighbourhood of the Town is prejudiced but also in case of fire happening, all acess for
staying or extinguishing the same is so difficult that it may prove dangerous to the whole town.
For Remeid whereof and for the better ordering and regulating of all new buildings within the city
of Edinburgh in all time coming, His Majestie with advice and counsel of the estates of parliament,
statutes and ordinances that in the building of any new houses or lands within the city and
suburbs these rules shall be observed …”.
26
14
espessura das paredes, redução do uso de elementos em madeira, medidas de
segurança na construção de chaminés e a redução da altura dos edifícios para
não mais do que cinco pisos. Tendo aparentemente só um propósito de
segurança, estas normas pressupunham uma uniformidade global de construção
e eram claramente consideradas como um instrumento fundamental para se
obter uma maior comodidade urbana. A acrescentar a estes esforços, começa a
desenhar-se a vontade de estender a cidade para lá do núcleo medieval. Em
1687, o rei James II apoiou um primeiro projecto de construção de uma ponte
sobre o North Loch (Lago Norte) de forma a permitir a expansão da cidade nesta
direcção.
Em 1707, a Escócia assinou com a Inglaterra o “Acto de União” (Union Act), o
qual também vinculava o País de Gales. Os três territórios, agora sob a
designação de Grã-Bretanha, passaram a ser representados por um só
parlamento, instalado em Londres. Enquanto alguns sectores da sociedade
escocesa consideraram esta união como a solução mais eficaz para a saída do
atraso económico e social em que se encontrava a Escócia, outros grupos não
viram com bons olhos a perda da autonomia parlamentar deste território. Entre
estes incluíam-se os Jacobitas há muito afectos a uma luta pela independência
da Coroa Escocesa em relação à Inglesa27. Este acontecimento político veio
reforçar a ideia de que era urgente mudar a imagem de Edimburgo, dar-lhe a
dignidade de outras capitais europeias, no momento em que precisamente tinha
perdido este estatuto: “os habitantes de Edimburgo tinham começado a sentir de
forma premente as desvantagens da sua existência acanhada, da falta de
edifícios públicos e da falta geral de salubridade do seu ambiente citadino. De
igual forma, o orgulho nacional parece finalmente ter-se mostrado sensível ao
estado da capital, e planos para o seu melhoramento receberam o tão preciso
Os Jacobitas, apoiantes do deposto rei católico James II de Inglaterra e VII da Escócia (16331701) e dos seus herdeiros, prosseguiram uma luta pela reinstalação desta família no trono
escocês, durante cerca de 60 anos, após a revolução de 1688-89.
27
15
ímpeto por parte de pessoas não directamente ligadas à administração de
Edimburgo”28.
Após 1707, a sociedade mais esclarecida e empreendedora de Edimburgo vê-se
directamente confrontada com a necessidade de apressar o passo de forma a
acompanhar o dinamismo económico e cultural inglês. De facto, o atraso em que
a Escócia se encontrava em relação a Inglaterra era notório, o que obrigava a
um
grande
esforço
de
modernização
por
parte
dos
escoceses
e,
particularmente, do seu mais representativo centro urbano. Estas circunstâncias
favoreceram a emergência de uma elite erudita, formada essencialmente no
meio académico, e que deu expressão ao denominado Iluminismo Escocês,
movimento que teve uma importância inegável na estruturação do pensamento
contemporâneo29. É neste ambiente sócio-cultural que se começa a delinear um
processo coerente visando a extensão de Edimburgo, bem como a produção de
textos advogando uma outra imagem para a cidade.
Em 1716, o município adquire um conjunto de propriedades a Norte da cidade;
em 1723, um Acto do Parlamento considera a drenagem do North Loch e cinco
anos mais tarde, Sir John Erskine (1675-1732), Earl of Mar, publica o seu
famoso e visionário panfleto sugerindo a expansão da cidade para norte. Neste
texto, Sir John Erskine defende a construção de uma ponte sobre o North Loch,
a construção de outra ponte a Sul e a ligação dos rios Forth e Clyde de forma a
melhorar a salubridade da cidade e a reforçar não só o itinerário comercial da
Escócia como de toda a Grã-Bretanha. Este documento representa a primeira
Wood, Marguerite, “Survey of the development of Edinburgh”, BOEC, (Edinburgh, 1974-1983),
vol. XXXIV, p. 34 - “the inhabitants of Edinburgh … were beginning to feel acutely the
inconvenience of their cramped existence, of the lack of public buildings and of the general
unhealthiness of their surroundings. Also national pride appears at last to have become sensitive
to the state of the capital, and plans for its improvement received much needed impetus from the
introduction of persons not directly concerned in the government of Edinburgh”.
29 Algumas individualidades célebres deste movimento foram: David Hume (1711-1776), figura
carismática da filosofia; Adam Smith (1723-1790), cujas obras se ligam ao surgimento da
Economia; Adam Ferguson (1723-1815), considerado por muitos como o pai da Sociologia; os
filósofos Francis Hutcheson (1694-1746) e Thomas Reid (1710-1796) e o jurista e professor de
Direito, John Millar (1735-1801).
28
16
expressão estruturada das ideias da elite escocesa no respeitante às
debilidades urbanas de Edimburgo. No entanto, as repercussões políticas do
Acto de União, nomeadamente a rebelião Jacobita e os subsequentes
problemas financeiros atrasaram o progresso destes projectos30.
Apesar da estabilidade política e financeira ser fundamental para a
exequibilidade do projecto, era crucial a existência de um programa conceptual
claro. O grau de concentração do edificado no centro da cidade e os riscos que
esta situação comportava para os seus habitantes foram amplamente noticiados
em 1752, com a súbita ruína de parte de alguns edifícios densamente habitados.
O impacto deste incidente na opinião pública constituiu o tão desejado pretexto
para a elite de Edimburgo promover a sua ideia de cidade. Esta surgiu sob a
forma de um panfleto, publicado na imprensa com o título de “Propostas para
levar a efeito certas Obras Públicas na Cidade de Edimburgo” (Proposals for
carrying out certain Public Works in the City of Edinburgh)31. As primeiras
considerações deste texto dirigem-se claramente para uma definição precisa do
conceito de cidade capital, à luz do pensamento iluminista: “Entre as várias
causas às quais a prosperidade de uma nação deve ser atribuída, a situação,
conveniência, e beleza da sua capital não são seguramente de somenos
importância.
A
capital,
em
que
estas
circunstâncias
conseguem
afortunadamente convergir, deverá naturalmente tornar-se o centro do comércio,
do ensino e das artes, da civilidade e do requinte de todo o género”32. Neste
30 Ver nota 26. Sir John Erskine, sexto Earl of Mar, tornou-se um fervoroso jacobita, após o seu
apoio ao Acto de União não ter tido o desejado eco por parte do rei George I (1714-27). O
famoso panfleto, sugerindo a extensão de Edimburgo para Norte, faz parte de uma carta, em
jeito de testamento, que o Conde dirige ao seu filho: “The Earl of Mar’s Legacies to Scotland, and
to his Son Lord Erskine, 1722-1727” in Scottish History Society, vol. 26. Edinburgh,1986, p. 301203.
31 Atribuído a Sir Gilbert Elliot of Minto e a George Drummond. O panfleto foi publicado no Scots
Magazine em 1752 (p. 371-375).
32 Proposals for carrying on certain Public Works in the City of Edinburgh (1752) - “Among the
several causes to which the prosperity of a nation may be ascribed, the situation, conveniency,
and beauty of its capital are surely not the least considerable. A capital where these
circumstances happen fortunately to concur, should naturally become the centre of trade and
commerce, of learning and the arts, of politeness, and of refinement of every kind”.
17
texto, é patente uma clara diferenciação entre os conceitos de utopia e modelo:
a Roma clássica surge como o ideal, mas o exemplo a seguir é inequivocamente
Londres. Esta cidade representava neste período, apesar da ausência de um
plano global de ordenamento urbano, o exemplo mais próximo do conceito de
cidade iluminista. Este facto ficava a dever-se não só ao desafogo, regularidade
e funcionalidade dos novos squares residenciais, que se multiplicavam a oeste e
a norte da cidade, como também ao papel determinante que desempenhava no
panorama económico e cultural Europeu: “A cidade de Londres dá-nos o
exemplo mais representativo desta afirmação geral. Através do olhar mais
superficial, não podemos evitar reparar a sua saudável e espaçosa localização
… Não menos óbvia é a regularidade e a acomodação das suas habitações; a
beleza e funcionalidade das suas numerosas ruas e amplos largos, das suas
pontes e edifícios, e amplos parques e extensos caminhos …. Quando
examinamos esta grande reunião de pessoas, cujos negócios, ambição,
curiosidade, ou amor pelo prazer conseguiram reunir numa área tão restrita, não
precisamos mais de ficar admirados pelo industrioso espírito e pelo progresso, o
qual, erguendo-se na cidade de Londres, tem a seu tempo se estendido pela
maior parte do Sul da Grã-Bretanha, animando qualquer arte e profissão e
inspirando com o maior entusiasmo e inspiração qualquer pessoa”33.
A sociedade esclarecida de Edimburgo, animada pelo debate particularmente
fértil do Iluminismo escocês, estava consciente de que a aparência física e a
comodidade da sua cidade eram vitais para a concretização do projecto
económico e cultural que defendiam.
33
Proposals for carrying out certain Public Works in the City of Edinburgh - “Of this general
assertion the city of LONDON affords the most striking example. Upon the most superficial view,
we cannot fail to remark its healthful, unconfined situation (…). No less obvious are the neatness
and accommodation of its private houses; the beauty and convenience of its numerous streets
and open squares, of its buildings and bridges, its large parks and extensive walks …When we
survey this mighty concourse of people, whom business, ambition, curiosity, or the love of
pleasure, has assembled within so narrow a compass, we need no longer be astonished at the
spirit of industry and improvement, which taking its rise in the city of LONDON, has at length
spread over the greatest part of SOUTH BRITAIN, animating every art and profession, and
inspiring the whole people with the greatest ardour and inspiration”.
18
No entanto, esta proposta de extensão urbana foi polémica e teve como
opositores um conjunto de comerciantes e proprietários de Edimburgo,
protegidos por uma legislação ancestral, e que não viam com bons olhos as
facilidades concedidas aos proprietários da nova área a construir, bem como as
despesas públicas que este projecto acarretava. A reacção da franja mais
conservadora de cidadãos concretizou-se, em 1759, num texto de resposta ao
panfleto publicado em 1752 e que recebeu o título de Considerações Imparciais
sobre as Propostas de extensão dos Limites da Cidade de Edimburgo
(Proposals for extending the Limits of the City of Edinburgh, Impartially
considered).
No entanto, a extensão de Edimburgo tinha-se tornado uma opção inevitável:
era necessária uma solução que fosse a um tempo rápida, eficiente e
financeiramente viável. Tomando em mãos esta tarefa, o município, sob a
direcção esclarecida do seu presidente, George Drummond (1687-1766), iniciou
o processo de construção da Ponte Norte (1763/1772). A 21 de Maio de 1766,
como resultado de um concurso público, foram admitidos seis planos para a
construção da nova área residencial de Edimburgo. A 2 de Agosto de 1766, um
documento assinado por dois representantes do município, George Clerk e John
Adam, irmão mais velho do famoso arquitecto Robert Adam (1728-92),
considerou o plano nº 4 como “o melhor dos que temos”34. Esta lacónica
observação deixa perceber que o plano seleccionado não se coadunava
totalmente com os objectivos que a câmara tinha definido para este projecto. De
facto, até à versão final ser finalmente adoptada em Julho de 1767, as Actas do
Comité da Ponte Norte e as Actas Camarárias referem amiúde o facto do plano
adoptado estar a ser alvo de emendas.
O plano original, assinado pelo então jovem arquitecto James Craig (1744-95),
perdeu-se e o facto dos documentos que dizem respeito a esta questão
34
Edinburgh City Archive, Bundle 125, shelf 9, Bay D - “The Best of those we have”.
19
referirem a intervenção de vários peritos, coloca dúvidas sobre a verdadeira
autoria do projecto final.
O Comité nomeado para dirigir o processo de rectificação do plano vencedor é
descrito como sendo composto de “pessoas de distinção e classe” incluindo “os
senhores Adams, que fizeram várias alterações ao plano”35. Por outro lado, e de
acordo com as Actas do Comité da Ponte Norte, o arquitecto William Mylne
(1734-90) foi escolhido para elaborar “O Plano da New Town e melhoramentos a
Norte da Cidade”36. Menos de dois meses depois, a 10 de Dezembro de 1766,
uma Acta do mesmo Comité refere-se a “um plano em duas perspectivas
diferentes” da autoria de James Craig37. A acrescentar a esta controvérsia existe
ainda uma outra importante peça documental: um plano da autoria de John
Laurie representando Edimburgo e a área envolvente. Sobre este plano
encontram-se desenhados dois projectos distintos para a New Town, a que foi
acrescentado, mais tarde, o desenho do plano adoptado (Fig. 3). Segundo
Stuart Harris, o primeiro projecto seria o original, da autoria de James Craig e o
segundo seria exactamente o da autoria de William Mylne, encomendado pelo
Comité da Ponte Norte e que se assemelha ao plano adoptado38. Deste modo,
Stuart Harris pretende comprovar a sua tese de que James Craig pouco
contribuiu para o desenho final e que este se deveu fundamentalmente às
modificações introduzidas por William Mylne, John Adam e George Clerk.
Book of Old Edinburgh Club, vol. XXIII, p. 8
North Bridge Committee Minute of 22 October 1766 – Edinburgh City Archive
37 North Bridge Committee Minute of 10 December 1766 – Edinburgh City Archive
38 Harris, Stuart, “New Light on the First New Town” The Book of the Old Edinburgh Club, New
Series, vol. 2 (1992), p. 1-13.
35
36
20
Figure 3 John Laurie, Plan of Edinburgh and Places Adjacent (1766). Publicado em Mckean, Charles,
“James Craig and Edinburgh’s New Town” James Craig 1744-1795, Kitty Cruft and Andrew Fraser
(eds.). Edinburgh: Mercat Press, 1995, p. 48-56. Estas duas versões da mesma planta mostram
esboços de dois projectos diferentes para a extensão de Edimburgo. Stuart Harris (“New Light on the
First New Town” The Book of the Old Edinburgh Club, new series, vol. 2, 1992, p. 1-13) argumenta
que o primeiro esboço, com o título de New Edinburgh, é o desenho original de James Craig, ou seja,
o plano nº 4 selecionado pelo Município de Edimburgo e depois sujeito a emendas, e que o segundo,
que aparece sob a designação de New Town, representa, com toda a probabilidade, o projecto
encomendado a William Mylne.
Antes de nos debruçarmos sobre este assunto, analisemos primeiramente o
plano adoptado (Fig. 4).
21
Figure 4 Plano adoptado para a New Town de Edimburgo (1768). Desenho de James Craig; Gravura
de P. Begpie (Royal Commission on the Ancient and Historical Monuments of Scotland). Publicado em
Fraser, Andrew, op. cit., p. 25-47. St George’s Square recebeu, mais tarde, a designação de Charlotte
Square, devendo-se a Robert Adam a responsabilidade do conjunto edificado.
Trata-se de uma retícula desenvolvendo-se entre duas praças ligadas entre si
por uma rua central, estruturando este conjunto a composição no seu todo.
Fechando o esquema, a norte e sul, duas outras ruas desenvolvem-se
paralelamente à via central, sendo ainda separadas desta por outras duas ruas
secundárias. Cinco ruas estendem-se perpendicularmente a este conjunto, duas
das quais constituem o lado interior das praças. A malha resultante evidencia a
repetição do quarteirão, que se afigura como o elemento chave de todo o
projecto. O desenho é simples e consegue estabelecer uma relação harmoniosa
com a Old Town. Princes Street, a primeira rua a sul do conjunto, apresenta
edifícios só no seu lado norte, permitindo uma vista ampla sobre o centro
medieval e o castelo. A norte, rematando o conjunto, uma outra via, também só
edificada num só lado, abre a cidade à paisagem circundante. O plano responde
a um específico entendimento da cidade iluminista: promove uma unidade
22
espacial ordenada, espaçosa e funcional capaz de simultaneamente receber a
sociedade comercial de Edimburgo e melhorar consideravelmente a imagem da
cidade em termos europeus.
Se analisarmos os projectos que James Craig fez posteriormente para a New
Town, notamos o uso recorrente de um elemento de ordenação espacial, uma
praça circular, que imprime uma dinâmica diversa ao conjunto e que nunca foi
adoptada pela municipalidade (Figs. 5 e 6).
Figure 5 James Craig, Circus Plan (1766?). Plano não adoptado para a New Town de Edimburgo.
City of Edinburgh Museum and Galleries. Publicado em Fraser, op. cit.
23
Figure 6 James Craig, Circus Plan (1774). Projecto pessoal de James Craig para a New Town (de
facto, não existe documentação que comprove ter resultado de uma encomenda por parte da
municipalidade). Esta insistência no circus central sugere um entendimento particular do desenho
urbano que não encontra eco no plano adoptado para a New Town. City of Edinburgh Museum and
Galleries.
Se o primeiro desenho que surge no plano de John Laurie é, como afirma Stuart
Harris, o plano original de James Craig, não existe de facto nenhum ponto de
contacto entre este e o plano adoptado (Fig. 3). O primeiro esboço que o plano
de Laurie apresenta pode ser considerado com uma variante do modelo
Vitruviano, inspirador dos projectos de ordenamento paisagista a partir do século
XVII. Esta primeira versão procura uma dinâmica espacial, de inspiração
barroca, que não se articula com o pragmatismo do plano adoptado para a New
Town. As várias tentativas por parte de Craig de inserir um circus central no
plano da New Town, de forma a quebrar a monotonia da retícula e que na sua
última proposta adquire um peso conceptual relevante (o circus central transmite
movimento ao conjunto, reforçando, ao mesmo tempo, a sua funcionalidade)
pode ser interpretado como um projecto pessoal de planeamento urbano que
este arquitecto foi desenvolvendo ao longo da sua carreira.
Mais do que estabelecer com rigor a autoria do plano adoptado, parece-nos
fundamental perceber o seu significado no contexto das propostas do Iluminismo
para a cidade. O que foi julgado como sendo uma solução “pobre” e “pouco
24
imaginativa” para dar expressão à nova Edimburgo revelou-se como uma opção
pragmática e eficaz. Os engenheiros militares portugueses utilizaram a retícula
como um expediente seguro já que respondia a um conjunto de imponderáveis a
ter em conta no projecto urbano: topografia do local; articulação com préexistências; facilidade de ampliações posteriores. A estes factores acrescentavase a simplicidade de execução com consequentes benefícios do ponto de vista
técnico e financeiro.
De facto, tanto o desenho como o conceito subjacente à New Town apresenta
semelhanças com a Lisboa Pombalina: um desenho geométrico simples e sóbrio
dá expressão a uma unidade urbana coerente. Esta responde eficazmente ao
objectivo de criar um ambiente citadino amplo e regular, fácil de construir e de
vender.
Neste quadro conceptual, podemos detectar um outro elemento de ligação: uma
hierarquia espacial marcada pelo uso de diferentes unidades arquitectónicas.
Pretendia-se “um esquema residencial viável que aliviasse a densa ocupação da
Old Town bem como fornecesse uma acomodação adequada para os seus
habitantes mais abastados”39. Todavia, a New Town foi mais do que um mero
projecto de construção de uma nova área residencial. Para além da vontade de
construir uma nova área de acordo com preceitos de uniformidade, regularidade
e qualidade arquitectónica, a divisão física da sociedade de Edimburgo era
olhada, tal como em Londres, como um meio essencial para se conseguir um
centro de “civilidade e requinte de todo o tipo”40.
Como escreve um visitante de Edimburgo nos finais de Setecentos: “Qualquer
pessoa cuja memória recue alguns anos deve ser sensível à diferença marcante
na aparência externa de Edimburgo e também ao modo de vida, de negociar e
Meade, M.K., “Plans of the New Town of Edinburgh” Architectural History 14 (1971), p. 41 – “a
viable housing scheme to relieve overcrowding of the Old Town as well as providing suitable
accommodation for its wealthier inhabitants”
40 Proposals for carrying on Certain Public Works in the City of Edinburgh – “politeness and of
refinement of every kind”.
39
25
de conduta dos seus habitantes”41. Os objectivos principais das Proposals de
1752 tinham, deste modo, sido alcançados.
41
Extracto de uma carta de William Creech a Sir John Sinclair em Dezembro de 1792 publicada em
Adams, Ian H., The Making of Urban Scotland,, Croom Helm (London, 1978), p. 4 – “every person, whose
recollection extends but a few years past must be sensible of a very striking difference in the external
appearance of Edinburgh, and also in the mode of living, trade and manners of the people”.
26