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A cidade do Iluminismo: o caso da New Town de Edimburgo

2005, ArteTeoria

A cidade do Iluminismo: o caso da New Town de Edimburgo Helena Murteira Olhar o mundo Especulação, experimentação, criação e debate são conceitos profusamente postos em prática pela elite pensante setecentista. Efectivamente, o século XVIII foi, antes do mais, um período de acesa actividade intelectual possibilitando a abertura de novos horizontes à criação científica, artística e literária europeia. A partir da segunda metade de Setecentos, este movimento estrutura-se numa corrente de pensamento conhecida pela designação lata de Iluminismo e reconhece-se como uma nova atitude perante o conhecimento, este entendido como a relação que o Homem estabelece com a Natureza, da qual é parte integrante, enquanto ser pensante e actuante. Alexander Pope (1688-1744) escreveu em 1733: "Conhece-te portanto a ti próprio, não presumas examinar Deus; o verdadeiro objecto de estudo da Humanidade é o Homem" 1 . Com esta afirmação Pope pretende separar o mundo metafísico do físico e, deste modo, delinear as fronteiras do conhecimento humano. A sua tese da Natureza como uma estrutura perfeita e harmoniosa, porque de criação divina, onde o Homem desempenha um papel fulcral, debatendo-se entre a racionalidade (o que o aproxima da perfeição) e a paixão (o que o distancia do divino), foi, apesar das críticas de alguns detractores, como Voltaire (1694-1778), amplamente aceite e aplaudida na 1 "Know then thyself, presume not God to scan; the proper study of Mankind is Man" -Pope, An Essay on Man (1733-34), Epistle II, "Man, with respect to Himself, as an Individual", II, p. 1. época 2 . A dimensão divina da Natureza, no que se reporta à sua criação e regulação intrínseca e a capacidade única do Homem de contribuir para a sua própria evolução são as ideias fulcrais desta nova atitude mental. No entanto, o Iluminismo foi essencialmente: "Um grupo de elites que se sobrepunham e interagiam e que partilhavam a missão de modernizar" 3 . Por isso mesmo, acolheu teorias mais arrojadas baseadas numa visão ateísta do mundo 4 . Da necessidade de reconhecer e apelar à individualidade humana, apregoada pelo Humanismo renascentista, ao estabelecimento de uma única via segura para o conhecimento, a Razão, veio no final de Seiscentos, acrescentar-se a Observação e a Experiência, métodos de estudo resultantes de um interesse crescente sobre nós próprios e o que nos cerca. Isaac Newton (1642-1727) e John Locke (1632-1704) vieram com as novas leis do conhecimento -Observação, Experimentação e Indução -fechar o círculo e dar os últimos e decisivos motes para uma forma de pensar que a sociedade contemporânea inevitavelmente herdou 5 .

ArteTeoria, nº 7 (2005), p. 77- 88 A cidade do Iluminismo: o caso da New Town de Edimburgo Helena Murteira Olhar o mundo Especulação, experimentação, criação e debate são conceitos profusamente postos em prática pela elite pensante setecentista. Efectivamente, o século XVIII foi, antes do mais, um período de acesa actividade intelectual possibilitando a abertura de novos horizontes à criação científica, artística e literária europeia. A partir da segunda metade de Setecentos, este movimento estrutura-se numa corrente de pensamento conhecida pela designação lata de Iluminismo e reconhece-se como uma nova atitude perante o conhecimento, este entendido como a relação que o Homem estabelece com a Natureza, da qual é parte integrante, enquanto ser pensante e actuante. Alexander Pope (1688-1744) escreveu em 1733: “Conhece-te portanto a ti próprio, não presumas examinar Deus; o verdadeiro objecto de estudo da Humanidade é o Homem”1. Com esta afirmação Pope pretende separar o mundo metafísico do físico e, deste modo, delinear as fronteiras do conhecimento humano. A sua tese da Natureza como uma estrutura perfeita e harmoniosa, porque de criação divina, onde o Homem desempenha um papel fulcral, debatendo-se entre a racionalidade (o que o aproxima da perfeição) e a paixão (o que o distancia do divino), foi, apesar das críticas de alguns detractores, como Voltaire (1694-1778), amplamente aceite e aplaudida na 1“Know then thyself, presume not God to scan; the proper study of Mankind is Man” - Pope, An Essay on Man (1733-34), Epistle II, “Man, with respect to Himself, as an Individual”, II, p. 1. 1 época2. A dimensão divina da Natureza, no que se reporta à sua criação e regulação intrínseca e a capacidade única do Homem de contribuir para a sua própria evolução são as ideias fulcrais desta nova atitude mental. No entanto, o Iluminismo foi essencialmente: “Um grupo de elites que se sobrepunham e interagiam e que partilhavam a missão de modernizar”3. Por isso mesmo, acolheu teorias mais arrojadas baseadas numa visão ateísta do mundo4. Da necessidade de reconhecer e apelar à individualidade humana, apregoada pelo Humanismo renascentista, ao estabelecimento de uma única via segura para o conhecimento, a Razão, veio no final de Seiscentos, acrescentar-se a Observação e a Experiência, métodos de estudo resultantes de um interesse crescente sobre nós próprios e o que nos cerca. Isaac Newton (1642-1727) e John Locke (1632-1704) vieram com as novas leis do conhecimento Observação, Experimentação e Indução - fechar o círculo e dar os últimos e decisivos motes para uma forma de pensar que a sociedade contemporânea inevitavelmente herdou5. O intercâmbio de informação que animou esta produção teórica foi, a um tempo, premissa e instrumento desta nova corrente de pensamento. As viagens a Itália, particularmente a Roma, multiplicaram-se: buscava-se estudar in loco a herança clássica, ou por outras palavras, “a excelência das origens da cultura europeia”. Mas o gosto pela viagem, o entusiasmo pelo desconhecido, não teve só as cidades italianas como destino: viajava-se em busca de novos focos de Utilizando como argumento a tragédia ocorrida em Lisboa após o terramoto de 1755, Voltaire defende que o Mal também existe na Natureza, refutando, deste modo, o Optimismo preconizado por Pope – “All is for the Best in the Best of all possible Worlds” - na sua obra Candide ou l’Optimisme (Paris, 1759) 3 Porter, Roy, Enlightenment. Britain and the Creation of the Modern World, The Penguin Press (London, 2000), p. xxii - “A cluster of overlapping and interacting elites who shared a mission to modernize”. 4 O debate sobre o papel da religião, particularmente do Cristianismo, levou ao aparecimento da tese do Deísmo (o mundo é de criação divina, mas só é possível conhecer através da razão) defendida, entre outros, por Voltaire e pelo irlandês John Toland (1670-1722). No entanto, para além dos primeiros escritos de Diderot (Pensées Philosophiques, 1700), pensadores como o físico francês La Mettrie (1709-51) e o Barão d’Holbach (1723-89) partilhavam claramente uma perspectiva materialista e ateísta do mundo. 5 Newton, Isaac, Philosophiae Naturalis Principia Mathematica (1687); Locke, John, Essay Concerning Human Understanding (1689). 2 2 conhecimento e de fortuna. A nova elite educada e empreendedora que reunia tanto aristocratas, como burgueses fazia questão em informar-se e coleccionar tudo o que lhe garantisse acesso ao conhecimento que se ia gerando e que sentia também como porta de passagem a um novo status sócio-económico. Esta tendência inscreve-se numa dinâmica social de ancien-régime de origem mais remota (o Renascimento Italiano) e reforça-se em Seiscentos, com a empresa expansionista europeia, a decorrente revolução científica e a consolidação do Estado absolutista. As bibliotecas e colecções particulares multiplicam-se, ainda num cenário barroco de encenação de poder. A título de exemplo, com a destruição do palácio do marquês de Louriçal após o terramoto de Lisboa de 1755, perderam-se: “200 quadros incluindo obras de Ticiano, Correggio e Rubens, uma biblioteca de 18,000 livros impressos, 1,000 manuscritos, incluindo uma história escrita pelo Imperador Carlos V pelo seu próprio punho, um herbário pertencente anteriormente ao rei Matthias Hunyadi (1440-90) da Hungria, um vastíssimo arquivo de família, e uma numerosa colecção de mapas e cartas relacionadas com as viagens de descobrimento dos portugueses no Oriente e no Novo Mundo”6. Rapidamente o Iluminismo retoma esta dinâmica, agora mais especificamente de acordo com uma ideologia que preconizava a necessidade de compreender o mundo, com o fim último de o civilizar. De facto, o Renascimento e a expansão marítima para outras partes do globo transmitiram aos Europeus o sentimento de pertencerem a uma civilização superior. Esta ideia foi acarinhada pelo Iluminismo e tem moldado o pensamento Europeu até ao presente: “A capacidade, consequência do ambiente ou da vontade divina, de controlar os recursos do mundo natural, de empregá-los para o bem supremo da Humanidade, tinha conferido à Europa a sua implícita Kendrick, T.D., The Lisbon Earthquake, Methuen & Co. Ltd (London, 1956), p. 32 - “200 pictures, including Works by Titian, Correggio and Rubens, a library of 18,000 printed books, 1,000 manuscripts, including a history written by the Emperor Charles v in his own hand, a herbal formerly belonging to king Matthias Hunyadi (1440-90) of Hungary, a huge family archive, and a great collection of maps and charts relating to the Portuguese voyages of discovery and colonization in the east and in the New World”. 6 3 superioridade sobre os povos do mundo. Esta é a origem da convicção, ainda partilhada por muitos, que a Europa ou ‘O Ocidente’ é excepcional”7. Neste quadro, salienta-se a atitude dos britânicos, segundo eles observadores e intervenientes privilegiados, dado o carácter progressivo do seu sistema parlamentar e do seu enquadramento religioso: ”Havia factores com carácter ainda mais revolucionário nas reacções que tanto a civilidade como o comércio provocavam: ‘entusiasmo’ Metodista, filantropia colectiva sistemática, radicalismo político subversivo e, não menos importante, um interesse crítico no estatuto das mulheres, crianças, estrangeiros, escravos, povos distantes, animais e todas as criaturas vivas não abençoadas com o inestimável dom divino de haver nascido um inglês livre e proprietário” 8. Para os teóricos do Iluminismo, dever-se-ia, antes do mais, partir da premissa que só através da condição do Homem como ser racional é possível conhecer e unicamente por este meio a Humanidade pode aspirar a melhorar as suas condições de vida. A vida humana é, deste modo, mais do que uma mera passagem para um outro nível existencial. Representa um lugar onde o Homem se deverá exprimir como ser pensante e procurar a tão desejada Felicidade. Esta visão da condição humana está, em última análise, na origem de uma nova forma de abordar o planeamento urbano, e consequentemente, num novo entendimento de como fazer a cidade. Esta representa, para os teóricos do Iluminismo, a unidade física onde todos os atributos da civilização europeia Pagden, Anthony, “Prologue: Europe and the World Around” The Early Modern Europe, Cameron, Euan (ed.) (2001), p. 19-20 - “The ability, whether the consequence of environment or divine will, to control the resources of the natural world, to make them work for the greater good of humankind, had given Europe its assumed superiority among the peoples of the world. This is the origin of the belief, which is still shared by many, that Europe, or ‘The West’ is exceptional”. 8 Langford, Paul, A Polite and Commercial People (England 1727-1783) (1989), p. 7 - “There was much that was even more revolutionary in the responses which both politeness and commerce provoked: Methodist ‘enthusiasm’, systematic collective philanthropy, subversive political radicalism, and not least, critical interest in the status of women, children, foreigners, slaves, distant peoples, animals, and every other living creature not blessed with the inestimable divine gift of birth as a freeborn, propertied Englishman”. 7 4 podem e devem encontrar-se no sentido de promover o progresso da Humanidade9. Pensar a cidade Foi neste ambiente de profícuo debate filosófico que se delinearam os primeiros princípios que haveriam de, sensivelmente um século mais tarde, dar origem à disciplina do urbanismo. Ao longo do século XVII, o Barroco tinha conferido flexibilidade aos princípios teóricos herdados do Renascimento10. O debate entre clássicos e modernos em França, promovido pela Academia Francesa de Arquitectura (1671), reflectiu as questões de base que se colocavam a uma prática arquitectónica que estava longe de se definir linearmente: para além da tratadística, vocabulários vernaculares e a sólida formação da experiência enformavam também a criação arquitectónica que se queria, no entanto, cada vez mais coesa e interveniente política e socialmente11. A questão teórica vai, deste modo, adquirindo protagonismo e reflectindo as tensões em jogo. A produção de tratados de arquitectura conhece um significativo aumento a partir do final de Seiscentos. É notório o delinear de uma tendência que valoriza, antes do mais, as seguintes premissas: o estabelecimento de tipologias arquitectónicas a um tempo coerentes, mas passíveis de várias articulações de Schorske, Carl E. “The Idea of the City in European Thought: Voltaire to Spengler”, The Historian and the City (Handlin, Oscar e Buchard, John, eds.), MIT Press and Harvard Press (Cambridge, Massachusetts, 1996). 10 Ver Guarini, Guarino, Disegni di architettura civile (1686) e Architettura civile (Turim,1737). 11 Ver Blondel, François, Cours d’Architecture (Paris, 1675-1683). O engenheiro militar François Blondel, que presidiu à Academia Real de Arquitectura logo no seu início, foi um claro defensor da pureza da tratadística clássica. Por outro lado, Claude Perrault na sua obra Les dix livres d’architecture de Vitruve, corrigez et traduits nouvellement en François, (Paris, 1673) advoga que as noções de perfeição e beleza são subjectivas e que só através de um perfeito equilíbrio entre as proporções e a funcionalidade do edifício é possível aferir da qualidade deste. 9 5 acordo com o fim a que se destinam e a necessidade de as divulgar de uma forma simples e eficaz. Subjacente a esta corrente, detecta-se claramente a vontade de atribuir definitivamente um outro estatuto à arquitectura, olhada não mais como uma actividade artesanal, mas como uma arte à qual devem presidir princípios teóricos sólidos: ”Não temos ainda nenhuma Obra que estabeleça solidamente os princípios, que manifeste o verdadeiro espírito, que proponha regras próprias para orientar o talento e estabelecer o gosto. Parece-me que nas artes que não são puramente mecânicas não é suficiente que se saiba trabalhar, importa sobretudo que se aprenda a pensar”12. Proporção e clareza são, deste modo, sinónimos de qualidade, com evidentes benefícios para a utilidade pública. O objecto arquitectónico é considerado como um instrumento de intervenção social e amiúde se refere a necessidade de pensar o edifício como uma equação equilibrada entre forma e função: ” se nós considerarmos a arquitectura em geral apercebemo-nos que … temos visto incessantemente os objectos do ponto de vista dos materiais, quando deveríamos tê-los considerado em termos filosóficos. Eis porque as cidades jamais foram ordenadas convenientemente para o bem-estar dos seus habitantes ; perpetuamente somos vítimas das mesmas calamidades, da sujidade, do ar nocivo e de uma infinidade de imprevistos que a harmonia de um plano judiciosamente preparado teriam feito desaparecer ‘’13. Laugier, Marc-Antoine, Essai sur l’Architecture (1753), Preface, p. xxxiv - “Nous n’avons point encore d’Ouvrage qui établisse solidement les principes, qui en manifeste le veritable esprit, qui propose dês régles propres à diriger le talent et à fixer le gôut. Il me semble que dans les arts qui ne sont pas purement méchaniques, il ne suffit pas que l’on sache travailler, il emporte sur-tout que l’on aprenne à penser”. 13 Patte, Pierre, Mémoires sur les objets les plus importants de l’Architecture (1769): “si l’on considère l’architecture dans le grand on se aperçoit que … l’on a vu sans cesse les objets en maçon, tandis qu’il eût fallu les envisager en philosophie. Voilá pourquoi les villes n’ont jamais été distribuées convenablement pour le bien-être de leurs habitants; perpétuellement, on y est victime des mêmes fléaux, de la malpropreté, du mauvais air et d’une infinité d’accidents que l’entente d’un plan judicieusement combine eût fait disparaître”. Ver também Blondel, JacquesFrançois, Architecture Françoise (Paris, 1752-1756) e Cours d’architecture ou Traité de la Décoration, Distribution & Construction des Bâtiments (Paris, 1771-1777). 12 6 Também Carlo Lodoli, monge franciscano e figura carismática do Iluminismo veneziano, dedicou uma importante parte da sua actividade à defesa destes princípios de ordenamento urbano14. Finalmente, e como conclui Patte, o fundamental era planear globalmente e fazer submeter o objecto arquitectónico à lógica do conjunto urbano. Já Descartes (1596-1650) advogava este último princípio, pela racionalidade do método. Mas era a simetria e a regularidade que o preocupavam: um conjunto medíocre mas uniforme era preferível a uma justaposição desconexa de edifícios de qualidade15. Todavia, os teóricos do Iluminismo estavam preocupados com a excelência da prática arquitectónica: “Entre as várias Artes cultivadas pelos homens, algumas são concebidas para uso diário e adaptadas para suprir as nossas necessidades, ou ajudar nas nossas debilidades, algumas ainda são somente instrumentos de luxo, sendo totalmente concebidas para lisonjear a vaidade, ou gratificar os desejos da humanidade: enquanto outras são apropriadas para vários fins, contribuindo ao mesmo tempo para a preservação, o divertimento e a grandeza da espécie humana. A Arquitectura pertence à última categoria…”16. Deste modo, o Iluminismo acolheu a ideia de embelezamento urbano, a qual constituía uma premissa da gestão das cidades europeias desde, pelo menos, Quinhentos17. No entanto, os teóricos do Iluminismo definiram este conceito em estreita ligação com questões fundamentais de planeamento urbano: regularidade, desafogo e extensão do traçado urbano, construção de Lodoli, Carlo, Elementi dell’Architettura Lodoliana; o sai, l’arte del fabbricare com solidità eleganza (Roma, 1786). 15 Descartes, René, Discours de la Méthode … plus la dioptrique, les météores, la méchanique et la musique, qui sont des essais de cette méthode (1637). 16 Chambers, William, A Treatise on Civil Architecture (1759), Preface, p. IV - “Amongst the various Arts cultivated by men, some are calculated for the uses of life, and adapted to supply our wants, or help our infirmities, some again are merely the instruments of luxury, being wholly contrived to flatter the vanity, or gratify the desires of mankind: whilst others are fitted to many purposes, contributing at the same time to the preservation, the amusement, and the grandeur of the human species. Architecture is of the latter kind …” 17 Ver Patte, Pierre,Monuments érigés en France à la gloire de Louis XV (Paris, 1765) e Voltaire, Des Embellissements de Paris (Paris, 1749) e Des Embellisssements de la ville de Cachemire (Paris, 1750). 14 7 equipamentos de saneamento básico, manutenção e melhoramento das estruturas viárias e equipamentos existentes, tais como ruas, pontes e cais e construção de locais públicos de lazer. “Embelezamento” urbano, ou “formosura” urbana, tornou-se, deste modo, um ex-libris da cidade proclamada pelo Iluminismo e reproduzia a um tempo uma ideia de cidade e uma política urbanística bem estruturada: ” Não se pode dizer que uma cidade é bela… se as pontes, os portos e os cais não são espaçosos, cómodos e bem preservados; se as praças de abastecimento, os mercados e as fontes não são distribuídos equilibradamente pela cidade para a comodidade dos habitantes” 18. Proporção e uniformidade das formas arquitectónicas, regularidade morfológica, salubridade do ambiente e funcionalidade do conjunto urbano, esta é a ideia de cidade preconizada pelo Iluminismo, só amplamente conseguida por uma actuação concertada e de projecção global. Os arquitectos franceses Etienne Louis Boulée (1728-99) e Claude Nicholas Ledoux (1736-1806), já no final de Setecentos, dão um novo impulso a esta corrente de pensamento e reformulam a equação entre forma e função: o edifício existe enquanto expressão da sua utilidade em termos sociais e, contém, em si mesmo, as qualidades e atribuições de uma unidade espacial total. A arquitectura submete-se deste modo à lógica da sua função social. Por entre este debate, tecem-se considerações que prenunciam já uma visão eclética do objecto arquitectónico e, como resultado, do projecto urbano: “A imitação da bela Natureza é aí [na arquitectura] menos visível e mais limitada do que nas outras duas artes que acabámos de mencionar [pintura e escultura]: estas exprimem indiferentemente e sem restrições todas as partes da bela Natureza, e representam-na tal como é, uniforme ou variada ; a Arquitectura, pelo contrário, combinando e unindo os diferentes corpos que usa, encontra-se limitada a imitar o arranjo simétrico que a 18 Delamare, N. et Le Cler du Brillet, Traité de la Police, t. 4 (Paris, 1738), p. 439 - “l’on ne peut dire qu’une ville soit belle … si les ponts, les ports et les quais ne sont spacieux, commodes et bien entretenus; si les halles, les marchés et les fontaines ne sont régulièrement distribués pour la commodité des habitants”. Ver Harouel, Jean-Louis, L’Embellissement des Villes (L’Urbanisme Français au XVIIIe Siècle), Picard Villes et Sociétés (Paris, 1993). 8 Natureza segue mais ou menos obviamente em cada indivíduo e que contrasta tão bem com a bela variedade de todas em conjunto”19. O Projecto Urbano É à luz destas considerações preambulares que iremos analisar o primeiro projecto de expansão da cidade de Edimburgo, a chamada New Town, desencadeado sensivelmente uma década após Manuel da Maia ter apresentado ao Duque de Lafões a sua Dissertação para a reconstrução da Lisboa destruída pelo terramoto de 1755. No início de Setecentos, a cidade de Edimburgo estava ainda confinada à velha cidade medieval desenvolvendo-se do Castelo para leste ao longo da grande via denominada The Royal Mile (Fig. 1). D’Alembert, Encyclopédie ou Dictionnaire Raisonné des Sciences des Arts et des Métiers…Discours préliminaire (1ª edição: Paris, 1751-1780), Flammarion (Paris, 1986), p. 104 – “L’imitation de la belle Nature y est moins frappante et plus resserrée que dans les deux autres arts don’t nous venons de parler; ceux-ci expriment indifféremment et sans restriction toutes les parties de la belle Nature, et la représentent telle qu’elle est, uniforme ou variée; l’Architecture au contraire se borne à imiter par l’assemblage et l’union des différents corps qu’elle emploie, l’arrangement symétrique que la Nature observe plus ou moins sensiblement dans chaque individu, et qui contraste si bien avec la belle variété du tout ensemble’’. Ver também Laugier, Marc-Antoine, op. cit. 19 9 Figure 1 - Planta da Old Town de Edimburgo e da área circundante (séc. XVIII). Publicado em Youngson, A.J., The Making of Classical Edinburgh (1750-1840). Edinburgh: Edinburgh University Press, 1993. Ao centro e a Oeste, podemos ver o penhasco onde se localiza o castelo e correndo para Leste, estruturando o casario e ligando aquele e o Palácio de Holyrood, estende-se a Royal Mile. A Noroeste deste conjunto são visíveis o North Loch, a área ocupada pelos Barefoot Parks e os terrenos pertencentes ao Heriot Hospital adquiridos pelo Município de Edimburgo em meados de Setecentos para a construção da New Town. A degradação de várias áreas do velho conjunto arquitectónico medieval e a ocupação intensiva que havia sido alvo (alguns edifícios chegavam a atingir os doze pisos!) tinham tornado premente o problema da extensão da cidade (Fig. 2). 10 Figure 2 Vista do Old Fishmarket Close em Edimburgo (inícios do séc. XIX). Apesar de datar de algumas décadas após a construção da primeira New Town, este desenho mostra ainda a densa ocupação vertical da Old Town. Publicado em Youngson, op. cit. Daniel Defoe (1660-1731), o famoso escritor inglês Setecentista, dá-nos esta imagem de Edimburgo em 1727: “Como resultado a Cidade é vítima de inúmeros transtornos e encontra-se imersa em tantas inconveniências escandalosas que é objecto de escárnio e crítica pelos seus inimigos; como se as pessoas não estivessem dispostas a viver de forma agradável e limpa como vivem as outras nações, mas se deliciassem, ao contrário, no Fedor e no Detestável, condições em que estariam outras pessoas que vivessem sob tal gestão, quero dizer, para além de vivermos num local rochoso e montanhoso, com edifícios sobrelotados, de sete a dez ou doze pisos de altura, temos escassez de água e a pouca que temos ao dispor, de difícil alcance, sobretudo para os apartamentos mais altos; deveríamos ter Londres e Bristol tão sujos como Edimburgo e, talvez, menos aptas a tornar as suas habitações toleráveis, pelo menos numa área tão reduzida; porque apesar de várias Cidades terem 11 mais população, eu acho, o que não estará longe da verdade, que nenhuma cidade no mundo vive em tão pouco espaço como Edimburgo”20. Tanto em Lisboa como em Edimburgo, o século XVII marca o início de um processo de elaboração de disposições legais visando instituir medidas precisas para as novas construções, bem como a reforma urgente das infra-estruturas urbanas. Em ambas as cidades, os municípios e o poder central foram forçados a adaptar e a regular um crescimento urbano que não podia ser contido por uma mera política restritiva da área a urbanizar. Qualidade e durabilidade dos materiais, regularidade das fachadas, depuradas de elementos obstrutivos ao trânsito, iluminação e saneamento urbanos são as questões mais referidas na documentação camarária de ambas as cidades21. Esta orientação do ordenamento urbano é detectável, neste período, um pouco por toda a Europa, particularmente nas cidades mais populosas. A questão da uniformidade das fachadas, que por razões de representação política e de funcionalidade urbana, adquiriu uma importância crucial nas maiores cidades Europeias de Seiscentos, parece ter sido abordada mais eficazmente, pelo menos ao nível da legislação e do projecto, na segunda metade desta centúria. Corroborando esta convicção, em 1674, um incêndio de grandes proporções no centro de Edimburgo despoletou o primeiro projecto, por parte do município, com vista a uma uniformidade tipológica e morfológica da cidade: “A disputa entre os herdeiros que sofreram prejuízos com o fogo de Todrig’s Wind levou o Conselho 20 Defoe, Daniel, A Tour through the Whole Island of Great Britain (Revised Edition, with the Tour through Scotland), (London, 1724-26), 2 vols. – “By this means the City suffers infinite disadvantages, and lies under such scandalous inconveniences as are, by its enemies made a subject of scorn and reproach; as if the people were not willing to live sweet and clean as other nations, but delighted in Stench and Nastiness, whereas, were any other People to live under the same management, I mean as well of a rocky and mountainous Situation, throng’d buildings, from seven to ten or twelve storeys high, a scarcity of water, and that little they have to be had, and to the uppermost lodgings, far to fetch; we should have a London or a Bristol as dirty as Edinburgh, and, perhaps, less able to make their Dwelling tolerable, at least in so narrow a compass; for tho’ many Cities have more people in them, yet, I believe, this may be said with Truth, that in no city in the World live in so little Room as Edinburgh”. 21 Ver Oliveira, Eduardo Freire de, Elementos para a História do Município de Lisboa (Lisboa, 1884-1911), 17 vols e Extracts from the Records of the Borough of Edinburgh, Scottish Borough Records Society (ed.), Oliver & Boyd (Edinburgh 1927-1967), 8 vols. 12 e os mestres artesãos a visitarem o local no dia 16 de Novembro de 1674 e a ouvirem aí todas as queixas e, como resultado, recomendaram que todos os edifícios com fachada para a High Street deveriam ser construídos com a mesma altura, numa linha recta. Com janelas ao mesmo nível, e apoiados em pilares e arcos”22. Outros incidentes desta natureza tiveram uma resposta similar por parte da municipalidade de Edimburgo23. Todavia, esta tarefa não se revelava fácil nem de rápida execução, dados os obstáculos de ordem legal e financeira que se colocavam a projectos de remodelação urbana de grande monta em centros urbanos populosos. Em Lisboa, o Senado da Câmara pediu a acção directa da Coroa tanto para a resolução dos direitos de propriedade, como para o levantamento de algumas taxas, como a Siza, quando procedia à aquisição de propriedades na Rua dos Ourives da Prata e Rua dos Ourives do Ouro, em finais de Seiscentos e inícios de Setecentos, com vista ao alargamento destas vias. 24 Ainda na capital portuguesa, as tentativas de controlar a construção tanto no centro, como nas novas áreas urbanizadas, segundo um mínimo de normas de carácter formal, revelaram-se muitas vezes infrutíferas. Manuel da Maia aborda este problema na sua Dissertação25. A eficácia das disposições legais era, com a escassez dos meios financeiros, um problema sério e recorrente na administração das grandes cidades europeias. Arnet, Helen “Notes on rebuilding in Edinburgh in the Last Quarter of the seventeenth century” Book of Old Edinburgh (BOEC), 29 (Edinburgh, 1956), p. 113 – “A dispute between the heritors who suffered loss in the fire at Todrig’s Wynd caused the whole Council and deacons of crafts to visit the ground on 16th November 1674 and hear all complaints on the spot, and as a result they recommended that the tenements fronting the High Street should be built of equal height, in a straight line, with Windows at the same level, and supported on pillars and arches”. 23 Ver Extracts from the Records of the Borough of Edinburgh 1681-1689 (Edinburgh, 1954) e 1689-1701 (Edinburgh, 1962). 24 Ver Consulta da Câmara ao Rei de 23 de Agosto de 1677, Liv.º V de Consultas e Decretos do príncipe D. Pedro, fl. 83 e Consulta da Câmara ao Rei de 24 de Abril de 1716, Liv.º VI de Cons. e Decr. de D. João V, Senado Oriental, fl. 293 (Arquivo Histórico da Câmara Municipal de Lisboa). 25 Maia, Manuel da, Dissertação (1756) publicada em França, José-Augusto, Lisboa Pombalina e o Iluminismo, Bertrand Editora (Lisboa, 1983). 22 13 Em Edimburgo, a consciência deste problema levou à promulgação do Acto de Parlamento de 1698 que estabeleceu, pela primeira vez nesta cidade, um conjunto de normas construtivas. Este diploma legal é revelador da apreciação cuidada que tanto o Parlamento, como o Município, faziam das condições das estruturas urbanas de Edimburgo, bem como da convicção instalada que só mediante a aplicação coerciva de um conjunto de medidas para toda a cidade se poderia atingir a tão desejada melhoria das condições de vida dos seus habitantes: “O nosso Soberano Senhor considerando que os novos edifícios da Cidade de Edimburgo foram construídos sem nenhumas regras fixas resultantes de uma fiscalização particular, várias casas são incomodamente construídas e com uma altura perigosa e todas muito acanhadas e inadequadas pelo que não só os costumes e a boa vizinhança da cidade são prejudicados, mas também no caso de acontecer um incêndio todos os acessos para parar e extinguir o mesmo são tão impraticáveis que podem vir a constituir um perigo para toda a cidade. Para remediar esta situação em qualquer lugar e para uma ordenação e regulamentação de todos os edifícios novos da cidade de Edimburgo daqui para o futuro, Sua Majestade foi advertida e aconselhada pelos Estados do Parlamento, Estatutos e Ordenações que na construção de quaisquer novas casas ou propriedades na cidade e nos subúrbios estas regras devem ser observadas …”26. As regras enumeradas neste Acto do Parlamento diziam essencialmente respeito ao problema da prevenção de incêndios: nomeadamente, ampliação da “Act Regulating the Manner of Building within the Town of Edinburgh” , 30 Agosto de 1698, Extracts from the Records of the Burgh of Edinburgh 1689-1701 - “Our Sovereign Lord considering that the new buildings in the City of Edinburgh having been built without any settled rule of particular oversight, severall of the houses are built to excessive incommodious & dangerous height and all of them very slight and insufficient whereby not only by the policy and good neighbourhood of the Town is prejudiced but also in case of fire happening, all acess for staying or extinguishing the same is so difficult that it may prove dangerous to the whole town. For Remeid whereof and for the better ordering and regulating of all new buildings within the city of Edinburgh in all time coming, His Majestie with advice and counsel of the estates of parliament, statutes and ordinances that in the building of any new houses or lands within the city and suburbs these rules shall be observed …”. 26 14 espessura das paredes, redução do uso de elementos em madeira, medidas de segurança na construção de chaminés e a redução da altura dos edifícios para não mais do que cinco pisos. Tendo aparentemente só um propósito de segurança, estas normas pressupunham uma uniformidade global de construção e eram claramente consideradas como um instrumento fundamental para se obter uma maior comodidade urbana. A acrescentar a estes esforços, começa a desenhar-se a vontade de estender a cidade para lá do núcleo medieval. Em 1687, o rei James II apoiou um primeiro projecto de construção de uma ponte sobre o North Loch (Lago Norte) de forma a permitir a expansão da cidade nesta direcção. Em 1707, a Escócia assinou com a Inglaterra o “Acto de União” (Union Act), o qual também vinculava o País de Gales. Os três territórios, agora sob a designação de Grã-Bretanha, passaram a ser representados por um só parlamento, instalado em Londres. Enquanto alguns sectores da sociedade escocesa consideraram esta união como a solução mais eficaz para a saída do atraso económico e social em que se encontrava a Escócia, outros grupos não viram com bons olhos a perda da autonomia parlamentar deste território. Entre estes incluíam-se os Jacobitas há muito afectos a uma luta pela independência da Coroa Escocesa em relação à Inglesa27. Este acontecimento político veio reforçar a ideia de que era urgente mudar a imagem de Edimburgo, dar-lhe a dignidade de outras capitais europeias, no momento em que precisamente tinha perdido este estatuto: “os habitantes de Edimburgo tinham começado a sentir de forma premente as desvantagens da sua existência acanhada, da falta de edifícios públicos e da falta geral de salubridade do seu ambiente citadino. De igual forma, o orgulho nacional parece finalmente ter-se mostrado sensível ao estado da capital, e planos para o seu melhoramento receberam o tão preciso Os Jacobitas, apoiantes do deposto rei católico James II de Inglaterra e VII da Escócia (16331701) e dos seus herdeiros, prosseguiram uma luta pela reinstalação desta família no trono escocês, durante cerca de 60 anos, após a revolução de 1688-89. 27 15 ímpeto por parte de pessoas não directamente ligadas à administração de Edimburgo”28. Após 1707, a sociedade mais esclarecida e empreendedora de Edimburgo vê-se directamente confrontada com a necessidade de apressar o passo de forma a acompanhar o dinamismo económico e cultural inglês. De facto, o atraso em que a Escócia se encontrava em relação a Inglaterra era notório, o que obrigava a um grande esforço de modernização por parte dos escoceses e, particularmente, do seu mais representativo centro urbano. Estas circunstâncias favoreceram a emergência de uma elite erudita, formada essencialmente no meio académico, e que deu expressão ao denominado Iluminismo Escocês, movimento que teve uma importância inegável na estruturação do pensamento contemporâneo29. É neste ambiente sócio-cultural que se começa a delinear um processo coerente visando a extensão de Edimburgo, bem como a produção de textos advogando uma outra imagem para a cidade. Em 1716, o município adquire um conjunto de propriedades a Norte da cidade; em 1723, um Acto do Parlamento considera a drenagem do North Loch e cinco anos mais tarde, Sir John Erskine (1675-1732), Earl of Mar, publica o seu famoso e visionário panfleto sugerindo a expansão da cidade para norte. Neste texto, Sir John Erskine defende a construção de uma ponte sobre o North Loch, a construção de outra ponte a Sul e a ligação dos rios Forth e Clyde de forma a melhorar a salubridade da cidade e a reforçar não só o itinerário comercial da Escócia como de toda a Grã-Bretanha. Este documento representa a primeira Wood, Marguerite, “Survey of the development of Edinburgh”, BOEC, (Edinburgh, 1974-1983), vol. XXXIV, p. 34 - “the inhabitants of Edinburgh … were beginning to feel acutely the inconvenience of their cramped existence, of the lack of public buildings and of the general unhealthiness of their surroundings. Also national pride appears at last to have become sensitive to the state of the capital, and plans for its improvement received much needed impetus from the introduction of persons not directly concerned in the government of Edinburgh”. 29 Algumas individualidades célebres deste movimento foram: David Hume (1711-1776), figura carismática da filosofia; Adam Smith (1723-1790), cujas obras se ligam ao surgimento da Economia; Adam Ferguson (1723-1815), considerado por muitos como o pai da Sociologia; os filósofos Francis Hutcheson (1694-1746) e Thomas Reid (1710-1796) e o jurista e professor de Direito, John Millar (1735-1801). 28 16 expressão estruturada das ideias da elite escocesa no respeitante às debilidades urbanas de Edimburgo. No entanto, as repercussões políticas do Acto de União, nomeadamente a rebelião Jacobita e os subsequentes problemas financeiros atrasaram o progresso destes projectos30. Apesar da estabilidade política e financeira ser fundamental para a exequibilidade do projecto, era crucial a existência de um programa conceptual claro. O grau de concentração do edificado no centro da cidade e os riscos que esta situação comportava para os seus habitantes foram amplamente noticiados em 1752, com a súbita ruína de parte de alguns edifícios densamente habitados. O impacto deste incidente na opinião pública constituiu o tão desejado pretexto para a elite de Edimburgo promover a sua ideia de cidade. Esta surgiu sob a forma de um panfleto, publicado na imprensa com o título de “Propostas para levar a efeito certas Obras Públicas na Cidade de Edimburgo” (Proposals for carrying out certain Public Works in the City of Edinburgh)31. As primeiras considerações deste texto dirigem-se claramente para uma definição precisa do conceito de cidade capital, à luz do pensamento iluminista: “Entre as várias causas às quais a prosperidade de uma nação deve ser atribuída, a situação, conveniência, e beleza da sua capital não são seguramente de somenos importância. A capital, em que estas circunstâncias conseguem afortunadamente convergir, deverá naturalmente tornar-se o centro do comércio, do ensino e das artes, da civilidade e do requinte de todo o género”32. Neste 30 Ver nota 26. Sir John Erskine, sexto Earl of Mar, tornou-se um fervoroso jacobita, após o seu apoio ao Acto de União não ter tido o desejado eco por parte do rei George I (1714-27). O famoso panfleto, sugerindo a extensão de Edimburgo para Norte, faz parte de uma carta, em jeito de testamento, que o Conde dirige ao seu filho: “The Earl of Mar’s Legacies to Scotland, and to his Son Lord Erskine, 1722-1727” in Scottish History Society, vol. 26. Edinburgh,1986, p. 301203. 31 Atribuído a Sir Gilbert Elliot of Minto e a George Drummond. O panfleto foi publicado no Scots Magazine em 1752 (p. 371-375). 32 Proposals for carrying on certain Public Works in the City of Edinburgh (1752) - “Among the several causes to which the prosperity of a nation may be ascribed, the situation, conveniency, and beauty of its capital are surely not the least considerable. A capital where these circumstances happen fortunately to concur, should naturally become the centre of trade and commerce, of learning and the arts, of politeness, and of refinement of every kind”. 17 texto, é patente uma clara diferenciação entre os conceitos de utopia e modelo: a Roma clássica surge como o ideal, mas o exemplo a seguir é inequivocamente Londres. Esta cidade representava neste período, apesar da ausência de um plano global de ordenamento urbano, o exemplo mais próximo do conceito de cidade iluminista. Este facto ficava a dever-se não só ao desafogo, regularidade e funcionalidade dos novos squares residenciais, que se multiplicavam a oeste e a norte da cidade, como também ao papel determinante que desempenhava no panorama económico e cultural Europeu: “A cidade de Londres dá-nos o exemplo mais representativo desta afirmação geral. Através do olhar mais superficial, não podemos evitar reparar a sua saudável e espaçosa localização … Não menos óbvia é a regularidade e a acomodação das suas habitações; a beleza e funcionalidade das suas numerosas ruas e amplos largos, das suas pontes e edifícios, e amplos parques e extensos caminhos …. Quando examinamos esta grande reunião de pessoas, cujos negócios, ambição, curiosidade, ou amor pelo prazer conseguiram reunir numa área tão restrita, não precisamos mais de ficar admirados pelo industrioso espírito e pelo progresso, o qual, erguendo-se na cidade de Londres, tem a seu tempo se estendido pela maior parte do Sul da Grã-Bretanha, animando qualquer arte e profissão e inspirando com o maior entusiasmo e inspiração qualquer pessoa”33. A sociedade esclarecida de Edimburgo, animada pelo debate particularmente fértil do Iluminismo escocês, estava consciente de que a aparência física e a comodidade da sua cidade eram vitais para a concretização do projecto económico e cultural que defendiam. 33 Proposals for carrying out certain Public Works in the City of Edinburgh - “Of this general assertion the city of LONDON affords the most striking example. Upon the most superficial view, we cannot fail to remark its healthful, unconfined situation (…). No less obvious are the neatness and accommodation of its private houses; the beauty and convenience of its numerous streets and open squares, of its buildings and bridges, its large parks and extensive walks …When we survey this mighty concourse of people, whom business, ambition, curiosity, or the love of pleasure, has assembled within so narrow a compass, we need no longer be astonished at the spirit of industry and improvement, which taking its rise in the city of LONDON, has at length spread over the greatest part of SOUTH BRITAIN, animating every art and profession, and inspiring the whole people with the greatest ardour and inspiration”. 18 No entanto, esta proposta de extensão urbana foi polémica e teve como opositores um conjunto de comerciantes e proprietários de Edimburgo, protegidos por uma legislação ancestral, e que não viam com bons olhos as facilidades concedidas aos proprietários da nova área a construir, bem como as despesas públicas que este projecto acarretava. A reacção da franja mais conservadora de cidadãos concretizou-se, em 1759, num texto de resposta ao panfleto publicado em 1752 e que recebeu o título de Considerações Imparciais sobre as Propostas de extensão dos Limites da Cidade de Edimburgo (Proposals for extending the Limits of the City of Edinburgh, Impartially considered). No entanto, a extensão de Edimburgo tinha-se tornado uma opção inevitável: era necessária uma solução que fosse a um tempo rápida, eficiente e financeiramente viável. Tomando em mãos esta tarefa, o município, sob a direcção esclarecida do seu presidente, George Drummond (1687-1766), iniciou o processo de construção da Ponte Norte (1763/1772). A 21 de Maio de 1766, como resultado de um concurso público, foram admitidos seis planos para a construção da nova área residencial de Edimburgo. A 2 de Agosto de 1766, um documento assinado por dois representantes do município, George Clerk e John Adam, irmão mais velho do famoso arquitecto Robert Adam (1728-92), considerou o plano nº 4 como “o melhor dos que temos”34. Esta lacónica observação deixa perceber que o plano seleccionado não se coadunava totalmente com os objectivos que a câmara tinha definido para este projecto. De facto, até à versão final ser finalmente adoptada em Julho de 1767, as Actas do Comité da Ponte Norte e as Actas Camarárias referem amiúde o facto do plano adoptado estar a ser alvo de emendas. O plano original, assinado pelo então jovem arquitecto James Craig (1744-95), perdeu-se e o facto dos documentos que dizem respeito a esta questão 34 Edinburgh City Archive, Bundle 125, shelf 9, Bay D - “The Best of those we have”. 19 referirem a intervenção de vários peritos, coloca dúvidas sobre a verdadeira autoria do projecto final. O Comité nomeado para dirigir o processo de rectificação do plano vencedor é descrito como sendo composto de “pessoas de distinção e classe” incluindo “os senhores Adams, que fizeram várias alterações ao plano”35. Por outro lado, e de acordo com as Actas do Comité da Ponte Norte, o arquitecto William Mylne (1734-90) foi escolhido para elaborar “O Plano da New Town e melhoramentos a Norte da Cidade”36. Menos de dois meses depois, a 10 de Dezembro de 1766, uma Acta do mesmo Comité refere-se a “um plano em duas perspectivas diferentes” da autoria de James Craig37. A acrescentar a esta controvérsia existe ainda uma outra importante peça documental: um plano da autoria de John Laurie representando Edimburgo e a área envolvente. Sobre este plano encontram-se desenhados dois projectos distintos para a New Town, a que foi acrescentado, mais tarde, o desenho do plano adoptado (Fig. 3). Segundo Stuart Harris, o primeiro projecto seria o original, da autoria de James Craig e o segundo seria exactamente o da autoria de William Mylne, encomendado pelo Comité da Ponte Norte e que se assemelha ao plano adoptado38. Deste modo, Stuart Harris pretende comprovar a sua tese de que James Craig pouco contribuiu para o desenho final e que este se deveu fundamentalmente às modificações introduzidas por William Mylne, John Adam e George Clerk. Book of Old Edinburgh Club, vol. XXIII, p. 8 North Bridge Committee Minute of 22 October 1766 – Edinburgh City Archive 37 North Bridge Committee Minute of 10 December 1766 – Edinburgh City Archive 38 Harris, Stuart, “New Light on the First New Town” The Book of the Old Edinburgh Club, New Series, vol. 2 (1992), p. 1-13. 35 36 20 Figure 3 John Laurie, Plan of Edinburgh and Places Adjacent (1766). Publicado em Mckean, Charles, “James Craig and Edinburgh’s New Town” James Craig 1744-1795, Kitty Cruft and Andrew Fraser (eds.). Edinburgh: Mercat Press, 1995, p. 48-56. Estas duas versões da mesma planta mostram esboços de dois projectos diferentes para a extensão de Edimburgo. Stuart Harris (“New Light on the First New Town” The Book of the Old Edinburgh Club, new series, vol. 2, 1992, p. 1-13) argumenta que o primeiro esboço, com o título de New Edinburgh, é o desenho original de James Craig, ou seja, o plano nº 4 selecionado pelo Município de Edimburgo e depois sujeito a emendas, e que o segundo, que aparece sob a designação de New Town, representa, com toda a probabilidade, o projecto encomendado a William Mylne. Antes de nos debruçarmos sobre este assunto, analisemos primeiramente o plano adoptado (Fig. 4). 21 Figure 4 Plano adoptado para a New Town de Edimburgo (1768). Desenho de James Craig; Gravura de P. Begpie (Royal Commission on the Ancient and Historical Monuments of Scotland). Publicado em Fraser, Andrew, op. cit., p. 25-47. St George’s Square recebeu, mais tarde, a designação de Charlotte Square, devendo-se a Robert Adam a responsabilidade do conjunto edificado. Trata-se de uma retícula desenvolvendo-se entre duas praças ligadas entre si por uma rua central, estruturando este conjunto a composição no seu todo. Fechando o esquema, a norte e sul, duas outras ruas desenvolvem-se paralelamente à via central, sendo ainda separadas desta por outras duas ruas secundárias. Cinco ruas estendem-se perpendicularmente a este conjunto, duas das quais constituem o lado interior das praças. A malha resultante evidencia a repetição do quarteirão, que se afigura como o elemento chave de todo o projecto. O desenho é simples e consegue estabelecer uma relação harmoniosa com a Old Town. Princes Street, a primeira rua a sul do conjunto, apresenta edifícios só no seu lado norte, permitindo uma vista ampla sobre o centro medieval e o castelo. A norte, rematando o conjunto, uma outra via, também só edificada num só lado, abre a cidade à paisagem circundante. O plano responde a um específico entendimento da cidade iluminista: promove uma unidade 22 espacial ordenada, espaçosa e funcional capaz de simultaneamente receber a sociedade comercial de Edimburgo e melhorar consideravelmente a imagem da cidade em termos europeus. Se analisarmos os projectos que James Craig fez posteriormente para a New Town, notamos o uso recorrente de um elemento de ordenação espacial, uma praça circular, que imprime uma dinâmica diversa ao conjunto e que nunca foi adoptada pela municipalidade (Figs. 5 e 6). Figure 5 James Craig, Circus Plan (1766?). Plano não adoptado para a New Town de Edimburgo. City of Edinburgh Museum and Galleries. Publicado em Fraser, op. cit. 23 Figure 6 James Craig, Circus Plan (1774). Projecto pessoal de James Craig para a New Town (de facto, não existe documentação que comprove ter resultado de uma encomenda por parte da municipalidade). Esta insistência no circus central sugere um entendimento particular do desenho urbano que não encontra eco no plano adoptado para a New Town. City of Edinburgh Museum and Galleries. Se o primeiro desenho que surge no plano de John Laurie é, como afirma Stuart Harris, o plano original de James Craig, não existe de facto nenhum ponto de contacto entre este e o plano adoptado (Fig. 3). O primeiro esboço que o plano de Laurie apresenta pode ser considerado com uma variante do modelo Vitruviano, inspirador dos projectos de ordenamento paisagista a partir do século XVII. Esta primeira versão procura uma dinâmica espacial, de inspiração barroca, que não se articula com o pragmatismo do plano adoptado para a New Town. As várias tentativas por parte de Craig de inserir um circus central no plano da New Town, de forma a quebrar a monotonia da retícula e que na sua última proposta adquire um peso conceptual relevante (o circus central transmite movimento ao conjunto, reforçando, ao mesmo tempo, a sua funcionalidade) pode ser interpretado como um projecto pessoal de planeamento urbano que este arquitecto foi desenvolvendo ao longo da sua carreira. Mais do que estabelecer com rigor a autoria do plano adoptado, parece-nos fundamental perceber o seu significado no contexto das propostas do Iluminismo para a cidade. O que foi julgado como sendo uma solução “pobre” e “pouco 24 imaginativa” para dar expressão à nova Edimburgo revelou-se como uma opção pragmática e eficaz. Os engenheiros militares portugueses utilizaram a retícula como um expediente seguro já que respondia a um conjunto de imponderáveis a ter em conta no projecto urbano: topografia do local; articulação com préexistências; facilidade de ampliações posteriores. A estes factores acrescentavase a simplicidade de execução com consequentes benefícios do ponto de vista técnico e financeiro. De facto, tanto o desenho como o conceito subjacente à New Town apresenta semelhanças com a Lisboa Pombalina: um desenho geométrico simples e sóbrio dá expressão a uma unidade urbana coerente. Esta responde eficazmente ao objectivo de criar um ambiente citadino amplo e regular, fácil de construir e de vender. Neste quadro conceptual, podemos detectar um outro elemento de ligação: uma hierarquia espacial marcada pelo uso de diferentes unidades arquitectónicas. Pretendia-se “um esquema residencial viável que aliviasse a densa ocupação da Old Town bem como fornecesse uma acomodação adequada para os seus habitantes mais abastados”39. Todavia, a New Town foi mais do que um mero projecto de construção de uma nova área residencial. Para além da vontade de construir uma nova área de acordo com preceitos de uniformidade, regularidade e qualidade arquitectónica, a divisão física da sociedade de Edimburgo era olhada, tal como em Londres, como um meio essencial para se conseguir um centro de “civilidade e requinte de todo o tipo”40. Como escreve um visitante de Edimburgo nos finais de Setecentos: “Qualquer pessoa cuja memória recue alguns anos deve ser sensível à diferença marcante na aparência externa de Edimburgo e também ao modo de vida, de negociar e Meade, M.K., “Plans of the New Town of Edinburgh” Architectural History 14 (1971), p. 41 – “a viable housing scheme to relieve overcrowding of the Old Town as well as providing suitable accommodation for its wealthier inhabitants” 40 Proposals for carrying on Certain Public Works in the City of Edinburgh – “politeness and of refinement of every kind”. 39 25 de conduta dos seus habitantes”41. Os objectivos principais das Proposals de 1752 tinham, deste modo, sido alcançados. 41 Extracto de uma carta de William Creech a Sir John Sinclair em Dezembro de 1792 publicada em Adams, Ian H., The Making of Urban Scotland,, Croom Helm (London, 1978), p. 4 – “every person, whose recollection extends but a few years past must be sensible of a very striking difference in the external appearance of Edinburgh, and also in the mode of living, trade and manners of the people”. 26