GEOUSP - Espaço e Tempo, São Paulo, Nº 20, pp.
197 - 205,
2006
REPENSAR A CIDADE: A DIMENSÃO ONTOLÓGICA DO URBANO**
Daniel Hiernaux*
“Não tratar de encontrar muito cedo
uma definição da cidade; é
um assunto muito vasto e há muitas
possibilidades de se equivocar”
Georges Perec: Espécies de espaços
(1999:71)
Introdução
Hoje quando as cidades mudam tão
velozmente quanto as sociedades, surge a
impressão de que todo o conhecimento que a
humanidade acumulou sobre a história das
mesmas, está se erodindo pela intensidade e
quase, pela própria violência do processo de
mudança.
Os exemplos surgem em abundância:
entre as redes que cruzam de forma invisível os
espaços urbanos para distribuir informação, ou
às vezes mentiras ou novas lendas urbanas
(como a notícia da existência de uma banda
denominada “sangue” na Cidade do México ao
final do ano de 2005), até a proliferação de
conjuntos cercados por muros onde encerram
seus medos os que têm o que os demais sentem
saudades, são muitas as facetas destas “novas
cidades” que se apresentam a nossos olhos.
Mais ainda, resulta impressionante observar que
as mesmas tendências, os mesmos medos, as
mesmas ilusões de modernidade, avassalam a
todos os territórios do mundo.
Uma pergunta, entretanto, se impõe aos
*
que pretendem superar a profusão dos
elementos visíveis para interrogar a essência
do fenômeno atual: Como interpretar estas
mudanças? Como reconstruir a urdidura de um
tecido do qual só vemos os fios exteriores e o
acabado que nos deixam ver?
As leituras da cidade atual propostas
agora pelos analistas são muito diferentes e
respondem a correntes de pensamento ainda
mal estabelecidas ou pouco consolidadas depois
da derrubada dos grandes discursos: desde as
propostas pós-marxistas de David Harvey
(2003) ou Neil Smith (1996), passando pela
sociologização do discurso da globalização que
sugere a obra de Saskia Sassen (1991), até as
versões mais centradas na cultura que propõem
Nestor García Canclini (2004) ou Armando Silva
(1992), estamos diante de uma inescusável
multiplicidade de vozes que pretendem decifrar
a cidade contemporânea. Todas, à sua maneira
e no marco das limitações mas também das
potencialidades que trazem consigo de seus
enfoques, aportam algo ao estudo da cidade
atual.
Todas remetem a uma porção da
realidade, a aquelas dimensões que se
presumem essenciais para entender a cidade
de hoje, sejam as migrações internacionais, os
imaginários urbanos, o peso das corporações
internacionais ou o modo de governar, para
mencionar somente algumas. Dimensões, todas
elas, que se derivam da ênfase momentânea
que os intelectuais pressentem necessária dar
a algum elemento em especial, quando já se
Professor Pesquisador Titular e Coordenador do Curso de Geografia Huamana da Universidade Autônoma Metropolitana: Unidade Iztapalana,
Cidade do México. E-mail:
[email protected]
**Traduzido por Rodolfo Pereira das Chagas, Mestrando em Geografia pelo Departamento de Geografia da FFLCH - USP.
E-mail:
[email protected]
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esfumaram as frases feitas, as explicações
formalizadas que tornaram mais fácil, embora
menos criativo, o trabalho das ciências sociais
desde alguns qüinqüênios.
Por isso, as explicações são múltiplas, a
realidade fragmentada, peças de um quebracabeça sempre não-concluído, sempre renovado,
parecido ao tecido de Penélope. Por isso
também, os leitores destas análises podem
passar, avidamente, de uma leitura a outra, de
uma interpretação aparentemente sem falha a
outra que, em questão de minutos, se torna
inconfundivelmente a mais acertada, até que a
sofisticação de uma nova proposta, apaga as
anteriores, como uma maré.
A riqueza deste processo caótico não
deve passar desapercebida: em vez de
discursos contundentes que explicam “tudo” a
partir de algumas afirmações decisivas, a
multiplicidade de ensaios interpretativos induz
a emergência de diversos marcos históricos,
como pontas de iceberg no meio do mar de
nossa incapacidade para entender a cidade
contemporânea. O valor do caótico, do múltiplo,
da própria diversidade, até nas explicações
intelectuais, é sem sombra de dúvidas, uma
grande virtude de nossos tempos.
Poucos autores, entretanto, enfrentam
uma pergunta fundamental, aquela que deveria
preceder a todas as demais sobre temas
concretos: Estamos ainda frente ao que
tradicionalmente se tem chamado de “cidade”?1
Efetivamente, seguimos usando a voz “cidade”
para qualificar estas urbanizações extensas,
esta “cidade difusa”, estas formas de ocupação
do espaço inovadoras que impactam nosso
intelecto e nossos sentidos, como se nada
tivesse mudado desde a “polis” grega, desde o
nascimento do burgo feudal na Idade Média
européia, ou desde a cidade industrial do século
XIX. Em outras palavras, a voz que descreve as
formas de ocupação do espaço pareceria ter se
congelado enquanto que, mediante a realidade,
ninguém
poderá
negar
a
profunda
transformação da própria “cidade”.
Não é que não floresceram as propostas
HIERNAUX, D.
de denominação, em uma sorte de esforço
desesperado para agarrar um processo através
de lhe dar um nome: citávamos, há alguns
parágrafos, a denominação de “cidade difusa”,
uma “apelação controlada” recentemente posta
no mercado, mesmo que a história do
pensamento urbano nos permita acumular
muitas denominações a mais, desde a
“ G roszstad t” simme liana (S imme l, 1986),
passando pela “meg alóp ole” gottmaniana
(Gottman e Harper, 1990), até chegar aos
ensaios contemporâneos, como a “metápole”
(Ascher, 1995), “edge city” (Garreau, 1991) e
outra “exópole” (Soja, 2000).
Apesar deste florescimento certamente
ilustrativo de denominações, ficamos pouco
satisfeitos com o que se tem aportado para
definir a cidade ela mesma, para ir à essência
mesma de um fenômeno que, não por ser
milenar, deixou de se recriar permanentemente,
ou talvez de desaparecer para dar lugar a
outras formas de ocupação do espaço. Alguém
confirmou que o modelo “cidade” tinha que ser
eterno?
Estes temas integ ram a q uestão
fundamental que trataremos nas páginas a
seguir. Em certo sentido, o que pretendemos
f aze r – modestamente – é uma reflexão
ontológica sobre a cidade, sobre a essência
mesma do que se tem considerado, desde o
renascimento do processo urbano na Europa
medieval, como uma “cidade”.
Os aportes sobre o tema prov em,
essencialmente, de autores que fizeram da
cidade, o tema da uma meta-reflexão, mais
próxima à filosofia do que aos estudos urbanos
tradicionais.
I
Definir a cidade, indagar na essência
ontológica da mesma, nos obriga a partir, em
primeira instância, de uma reflexão sobre sua
definição tradicional: para a maior parte dos
autores que estudaram a cidade e pretenderam
d efini-la, a cid ad e se caracteriza p ela
Repensar a cidade: A dimensão ontológica do urbano, pp. 197 - 205
concentração de uma certa quantidade de
população, uma certa densidade física, a
presença de atividades não diretamente ligadas
à produção do campo e um modo de vida distinto
do que prevalece nas zonas que – em forma de
antinomia – se qualificaram como “rurais”. O
anterior já foi amplamente estudado e criticado
p or Louis W irth d esd e 1938 (W irth, 1988
[1938]).
Este tipo de definição, quer dizer um
conjunto de definições aparentadas, remete a
quatro campos disciplinares: a demografia, o
urbanismo, a economia e a cultura. Muitos
aspectos, entretanto, têm sido isolados por este
tipo de enfoque, de tal situação de poder chegar
a definições relativamente simples, acessíveis
a tod os e, sob retud o, mensuráv eis e
comparáv eis internacionalmente. É então
possív el, empreender uma tarefa de
comp aração internacional d os g raus d e
urbanização.
Para se conseguir o propósito anterior,
o q se isolou não é nada secundário: temas tais
como a organização social que remete à
sociologia, assim como os aspectos subjetivos,
tais como a formação dos imaginários que, se
bem entra na dimensão cultural, não aparecem
com freqüência nas definições de cidade. Os
temas e campos do conhecimento, esquecidos
ou omitidos nesta definição, são certamente
muito mais importantes que os aproveitados.
Não faltaram autores que, de uma maneira ou
outra, se remeteram a estes e outros elos
perdidos da análise da essência da cidade, como
a política (em Weber, 1964; Kropotkine, 2003
ou Pirenne, 1975 por exemplo) ou a relação com
o ambiente/entorno (Bairoch, 1990) mas,
claramente não são os aportes considerados
como os mais significativos e menos ainda são
os de uso comum.
O que definitivamente sobressai de tudo
isso, é a ausência de uma dimensão subjetiva
nas definições tradicionais da cidade: centramse no material ou no visível, no supostamente
objetivo, submetido aos critérios da razão
positiva. Assim é então possível definir a cidade
199
a partir de seu tamanho, critério bem conhecido
pelos organismos que trabalham o demográfico,
ou o econômico, por exemplo. Possivelmente, o
exemplo mais completo e sofisticado que temos
a este respeito no México é o trabalho de Luis
Unikel em sua destacada obra sobre o
Desenvolvimento Urbano do México (Unikel,
1976).
Isto é suficiente? Não consideramos
assim. A complexidade das cidades supera o
marco
estreito
de
suas
d imensões
demográficas, morfológicas ou econômicas. As
fronteiras entre o urbano e o rural se tornam
cada vez mais frágeis à luz de uma crescente
“urbanização do campo” que, singularmente,
apaga de maneira progressiva os limites entre
os modos de vida urbanos e rurais, pelo menos
segundo os critérios tradicionais de delimitação
entre ambos campos.
A pergunta é então: o que faz com que
uma cidade seja uma cidade? Ou, em outras
palavras, qual é a essência própria do feito
urbano?
A esta pergunta nos aproximaremos nas
páginas a seguir.
II
Proporemos uma definição da essência
do urbano que levará em conta três categorias
fundamentais: o labiríntico, o fugaz e o fortuito.
Estas são três figuras metafóricas essenciais a
partir das quais se pode desvelar a essência
da cidade. São em essência metafóricas, porque
re p re se ntam mais um e stad o “ ab soluto”
inatingível em forma total, que uma realidade
concreta. O labiríntico não remete à obrigação
de que a cidade se trace como um perfeito
labirinto como o que se encontra inscrito no chão
da catedral de Chartres. Tampouco o fugaz
implica
que
tudo
se
desvaneça
instantaneamente, mas sim que uma
característica essencial do urbano é a ausência
de duração, a volatilidade das coisas, as
pessoas, as ações e os pensamentos.
Finalmente, o fortuito não implica a ausência de
200 - GEOUSP - Espaço e Tempo, São Paulo, Nº 20, 2006
organização nem de instituições, quando
sabemos que, desde a Idade Média, as
instituições foram decisivas para impulsionar o
novo auge urbano (Pirenne, 1975; Weber,
1964); melhor se remete ao caráter caótico,
espontâneo de muitos eventos urbanos.
Passaremos então a tratar de discernir
cada uma das categorias antológicas que
acabamos de mencionar e explicar de que
maneira são essenciais para a definição do
urbano.
A figura do Labirinto
O labirinto é uma das figuras mais
enigmáticas que tenha oferecido a iconografia
humana. Desde épocas muito antigas se
encontra representado pelas sociedades
humanas, assim como transformado em uma
figura, uma morfologia particular da mitologia
das sociedades antigas. É uma figura atrativa e
complexa apesar de certa obviedade: a
obrigação de encontrar um percurso em um
entrelaçado de vias fechadas.
Michel Foucault expressa, acerca do
labirinto que não é o lugar onde as pessoas se
perdem, mas sim do qual se sai sempre perdido
(Foucault, citado por Attali, 1996:209). Entrar
em um labirinto, corresponde metaforicamente
a empreender uma viagem mental não evidente,
construída por avanços e retrocessos, que
implica também um processo de memorização
para encontrar o caminho da saída.
O homem moderno, o homo urbanus, o
que vive na cidade, é quem, percebendo a
complexidade do mundo atual, não trata de
solucionar sua vida cotidiana a partir de traçados
retos e decisões irrevogáveis, mas sim que
assume um percurso labiríntico através do
mundo da cidade. Este andar não determinado,
não reflete uma incapacidade para encontrar o
caminho reto, mas sim uma capacidade
adaptativa quase genética, que faz que o
homem moderno seja justamente um homem
sábio. A sabedoria, não se encontrando no
respeito das tradições, das normas e pautas
HIERNAUX, D.
estabelecidas desde tempos imemoriais, mas
sim na capacidade da se adaptar, de encontrar
um caminho diferente cada vez que se
apresenta uma nova situação (uma esquina do
labirinto, onde se tem que definir o caminho a
seguir) é, em essência, a sabedoria do nômade
(Attali, 2003).
A cidade é objetivamente uma figura
metafórica do labirinto, ou também, e o
pensando como espelho, o labirinto é a metáfora
d a cid ad e. Proliferaram-se as cid ad es d e
traçado regular e simples de interpretar, mas
não é a forma material à qual nos referimos,
mas sim ao sentido da própria abordagem da
cidade.
A cidade é antes de tudo uma forma
sócio-espacial cuja interpretação, tanto pelo
habitante como pelo analista, requer um andar
labiríntico: a complexidade se aninha na cidade
e a transforma em um tecido de caminhos
mentais e físicos q ue ob rig a os v ai-v em,
retrocessos, avanços e raras vezes, a chegada
a uma saída evidente.
Regressando à aparente transparência
para o habitante da cidade ortogonal, é possível
e realista pensar que não é o caminho reto
sempre a melhor via. Como o sublinha Jacques
Attali: “Até as cidades mais artificiais nunca
puderam se desfazer do labirinto: a vida não
está feita de linhas retas” (Attali, 1996: 135). O
medo a certos espaços pouco transitados, a
afetividade ligada a certos espaços frente aos
quais nos agrada passar, assim como muitos
comportamentos modelados por nosso
inconsciente ou por nossos desejos, atuam
como uma situação de força mental para nos
desviar do caminho reto. Obrigam-nos a seguir,
inconscientemente, os ditados do labirinto; como
sublinha Michel Roux, “o imaginário está no
coração das ‘realidades’ geográficas” (Roux,
1999: 32).
A cidade de origem européia é, antes de
tudo, labiríntica em seu traçado. O discurso da
racionalidade proposto por Hippodamo de Mileto
em sua intenção de impor o traçado ortogonal
dos assentamentos do homem, foi pouco
Repensar a cidade: A dimensão ontológica do urbano, pp. 197 - 205
escutado na vida cotidiana das sociedades
tradicionais. (Paden, 2001).
Nos primórdios da cidade moderna, na
ur - modenir dade como a qualificou Walter
Benjamin, a figura do labirinto volta a se impor
com força através da construção das passagens
cobertas de Paris, e em muitas cidades do
mundo, onde esta forma arquitetônica-urbana
se repetirá de maneira mais ou menos similar.
Também Benjamin integra a figura do labirinto
ao seu estudo sobre as passagens, através da
montagem literária, que implica numerosas
bifurcações mentais, algumas inclusive, pouco
e v id e nte s p ara o le itor. Finalmente, para
Benjamin a cidade também é um labirinto como
assinala Frisby: “...Benjamín concebia já a cidade
de Paris como um labirinto e a passagem como
um labirinto que continha a ‘paisagem primitiva
do consumo’” (Frisby, 1992: 346). Assim,
evidencia-se que o labirinto não é uma figura
pré-moderna, mas sim que foi retomada em
suas formas básicas, pela modernidade.
201
implica movimento, mas talvez, sobretudo,
velocidade. Os ritmos lentos da transformação
das sociedades tradicionais remetiam a uma
vida tranqüila, ao peso da tradição, à
onipresença da memória e da continuidade que
impunham as mesmas formas e os mesmos
espaços de vida, de geração em geração. Em
outras palavras, as possibilidades de mudança
erma poucas e se se manifestavam, isso era a
longo prazo.
Pelo contrário, a cidade implicou
rapidamente a imposição de um ritmo muito
diferente marcado pela velocidade das ações e
a escassa transcendência temporal dos
eventos 2 . Certamente, a construção da cidade
denotava sempre a permanência, como no caso
da lenta construção das catedrais, mas até
assim, os críticos da arquitetura evidenciaram
como se transformava o estilo construtivo ao
longo do processo de edificação, permitindo que
a transformação pudesse e devesse ser lida na
mesma pedra.
Pelo contrário, a cidade moderna, de
cunho anglo-saxônico, pareceria ter assumido
rapidamente o traçado em forma de tabuleiro
de damas, de tal maneira que o caráter
labiríntico da cidade se esfumou. Como observa
Jackson (1994), a maneira euclidiana de se
situar no espaço tem sido amplamente aceita
pela sociedade norte-americana, a qual assumiu
a idéia de que a cidade deve ser transparente,
evitando as brechas, os cantos, espaços
neutros, impasses e outras formas de
organização espacial que se encontram
ex tensamente nas cid ad es trad icionais
européias: a metáfora do labirinto se perdeu,
d iante d a racionalid ad e irrep reensív el d o
capitalismo protestante, e sabemos a que grau
este modelo urbano se expandiu ao longo do
mundo.
A vida urbana, por sua parte, esteve
marcada, desde seu princípio, por outra
temporalidade, cuja racionalidade se pode
entender pelo passo da comunidade a
associação, no sentido que desenvolveram
Tönnies (1979) e Simmel (1986), entre outros.
Enquanto que a presença da comunidade
imp licou q ue as relações sociais semp re
estivessem marcadas pela onipresença do
passado no presente (refletido nos costumes,
normas e rituais precisos), a associação se
alcança sobre a base de um acordo entre partes
que não tem mais objeto que cumprir com um
fim determinado: não existe, portanto, uma
tradição tão forte, os costumes podem se
modificar por exemplo, na medida em que a
associação se torna melhor sob novos
parâmetros.
A tirania do fugaz
Um d os p arâmetros essenciais d a
associação é a abstração da riqueza, que de
ser contab ilizad a em b ens materiais, se
transforma na imaterialidade do próprio dinheiro.
O temp o d as socied ad es rurais
trad icionais
d ifere
sensiv elmente
d as
temporalidades do mundo urbano. A cidade
Este sup orte d as transações (o
dinheiro), mas também transformador potente
202 - GEOUSP - Espaço e Tempo, São Paulo, Nº 20, 2006
das relações sociais, se generaliza nas cidades
que inventaram o cheque e posteriormente as
formas magnéticas de dinheiro, permitindo
assim a fugacidade dos intercâmbios, sua
volatilidade graças a um suporte inodoro e
aparentemente
intranscendente
das
transações.
Georg Simmel tratou de forma magnífica
esta transformação das relações no entorno
urbano, mostrando que a vida urbana implica o
encontro fugaz entre as pessoas, sem que isso
leve à criação de obrigações mútuas. Na cidade,
prefere-se a velocidade e a mudança à duração
e à permanência, comprovando a instabilidade
da residência, a mudança de trabalho, a seleção
de atividades lúdicas, assim como a instabilidade
da família. A exacerbação da tendência ao fugaz
foi amplamente demonstrada pelos sociólogos
urbanos, que ev idenciam como se tem
manifestado a redução da fidelidade a uma
residência, a um lugar de compras, às relações
sociais, e como se criaram gêneros de vida cada
vez mais efêmeros: é o que Bauman qualifica
como “modernidade líquida” (Bauman, 2003).
Em outro lugar, também tratamos de
evidenciar que existe uma nova geografia do
fugaz, já que esta qualidade não somente se
refere aos encontros ou aos intercâmbios, mas
também que concerne aos espaços (Hiernaux,
2006). O fugaz não é somente uma imposição
tecnológica como, por exemplo, no uso de
aparelhos de telecomunicações. Tornou-se uma
forma de viver, uma capacidade nova de exercer
ações no tempo: é também uma demanda social
crescente (Hiernaux, 2005).
O fugaz não é só demandado, é também
o que se constitui de forma talvez contraditória,
com o que se costumava ver pelo passado, uma
oferta concreta das instituições: desfiles (As
chamadas “parades” em inglês e francês) oficiais
e corporativos, movimentos fugazes propostos
por grupos organizados, eventos instantâneos
organizados pela Internet entre pessoas que
não se conhecem, tudo isso reflete uma
penetração crescente do fugaz na vida urbana,
sem que se ofereça muita resistência a esse
HIERNAUX, D.
respeito.
O fugaz se
torna
assim uma
característica dominante da vida urbana, e isso
se expressa em todas as esferas do cotidiano,
como certos relatos sobre sex ualidade o
retratam.
A riqueza do fortuito
Associa-se à fugacidade, de forma
evidente, o caráter cada vez mais fortuito da
vida urbana, também resultado da evolução das
cidades em si. Se o labirinto é a representação
metafórica da cidade, então não se pode duvidar
que não se sabe o que aparecerá ao virar a
esquina. A cidade oferece, então, novas
possibilidades a cada cruzamento de ruas, seja
no sentido tradicional, de uma variedade de
oferta (Remy, 1966 3 ) seja desde a perspectiva
do desenvolvimento pessoal do indivíduo. Que
o ar da cidade se faz livre dizia Robert Park
(“Stadtlucht mach frel’) parece uma evidência,
mas que, além disso, a liberdade surge a partir
da variedade de possibilidades que oferece o
fortuito, é a observação complementar que
consolida o proposto por este sociólogo.
Jacques Lévy observa também que: “a cidade
oferece, justamente pela densidade de sua
diversidade, a possibilidade do que se pode
chamar em inglês de “serendipity4 - uma palavra
que gosto muito: quer dizer que se encontra o
que não se buscava” (Lévy, 2003: 83).
O fortuito não implica que a cidade
funcione caoticamente, em cujo caso tudo
poderia ocorrer, mas sim que a concentração de
ind iv íd uos com ex p eriências e trajetórias
distintas implica que do encontro de tantas
diferenças, sempre pode surgir algo novo,
inesperado, fortuito. Neste sentido, a cidade é
berço de inovações porque reúne uma
multiplicidade de experiências humanas que,
situadas em um substrato labiríntico, marcado
pela fugacidade do que ali ocorre, permite uma
situação de combinações no infinito de eventos.
Então, o fortuito é uma dimensão
incontrolável do urbano, fonte de inovações e
Repensar a cidade: A dimensão ontológica do urbano, pp. 197 - 205
de uma reconstrução constante. Isto permite
ao escrito Joseph Roth, assinalar que se torna
impossível descrever uma cidade de maneira
definitiva, como parece que queriam fazer os
guias turísticos em certos relatos de viagem:
“Os livros de viagem estão ditados por um
espírito estúpido, incapaz de crer na
variabilidade do mundo. [...] O ‘bom observador’
é o informador mais triste. Registra tudo que
esteja sujeito a mudanças com os olhos bem
abertos mas rígidos” (Roth, 2000: 9).
Não há lugar a dúvidas que o fortuito
representa uma riqueza inesgotáv el das
cidades. É uma das principais fontes que seguem
sendo atrativas para muitos, mesmo tendo
outras facetas que são dificilmente suportáveis.
O fortuito oferece uma qualidade extraordinária
à vida urbana, a transforma num sempre
recomeçar, apesar dos inegáveis elementos
rotineiros, que comportam a vida cotidiana.
Assim, o fortuito é o que permite as
pequenas
transgressões,
as
mínimas
subversões que aliviam o peso da rotina, da
repetição do já conhecido: O caráter fortuito dos
eventos na cidade é a pimenta da dolorosa
experiência da rotina.
Sobre o fortuito se constrói a inovação
social, a capacidade das cidades de se
constituírem em territórios do moderno. Como
já assinalara Charles Baudelaire, a modernidade
se baseia no fortuito. Mas também poderíamos
agregar que a cidade sem o fortuito seria um
receptáculo vazio de nossas vivências, um
simp les contêiner d e f atos e ob jetos, um
suporte material da vida, o que – obviamente –
seria impossível de se viver.
III
As três características essenciais que
ap re se ntamos nas p ág inas ante riore s – o
caráter labiríntico, a fugacidade e a essência
fortuita do urbano – podem ser vistas como as
três dimensões centrais a partir das quais
podemos construir a ontologia da cidade.
203
Estamos longe, pois, das definições
trad icionais d a cid ad e: a q uantid ad e d e
população, sua densidade física ou a presença
de atividades não rurais. Essas já não são
suficientes para que um espaço seja urbano.
Tudo isso não significa mais que intentos sejam
técnicos, mas sim tecnocráticos, que reduzem a
essência do urbano a algumas características
essencialmente físicas ou econômicas. Com
base nos critérios anteriores, é evidente que o
estudo da cidade não passa por definir níveis
de cidades por tamanho, por estudar variações
de densidade do centro à periferia, ou por
estudar as novas profissões que surgem da
atual “globalização”, entre outras análises
possíveis.
Mas talv ez d ev amos começar uma
reflexão que pareceria muito mais significativa
e que já vem sendo empreendida parcialmente
por alguns autores. Esta é a de redefinir a
cidade
em
outro
sentido,
e
talvez,
p articularmente, a p artir d estas fig uras
metafóricas que compõem a estrutura, os
pilares, da construção do próprio conceito de
cidade.
Falar da cidade difusa, com faz por
exemplo Giuseppe Dematteis (1998), ou de
exópole (Garreau, 1991), de metápole (Ascher,
1995), entre outras vozes, umas com mais êxito
que outras, não resolve o problema, ou melhor,
o agrava, porque estas expressões partem da
idéia de que toda aglomeração humana com
certas características oficiais, segue sendo, de
certa forma, uma cidade porque somente se
estudam as variações de uma forma de “cidade”
pré-determinada, ao invés de se interrogar
sobre a essência mesma da “cidade como ser”,
quer dizer, empreender a construção de uma
ontologia da cidade. Esta tarefa, possivelmente,
não faria mais que derrubar muitos dos discursos
sobre a cidade contemporânea.
A tríade “labiríntico-fugaz-fortuito” não
é uma simples justaposição de “ocorrências”
bonitas pelas quais se poderia repensar a
cidade. Esta tríade permite uma redefinição
ontológica sobre o que a cidade é em sua
204 - GEOUSP - Espaço e Tempo, São Paulo, Nº 20, 2006
essência, o que faz, em outras palavras, que
uma cidade seja uma cidade e não uma simples
aglomeração de pessoas com certas atividades
sobre um território dado, sob uma determinada
morfologia espacial.
Uma cidade, pelo menos no sentido que
se atribuiu tradicionalmente ao conceito, tem
que ter as três características mencionadas.
Mas, além disso, elas têm que possuir essas
características de forma simultânea e articulada.
Não há possibilidade de que um labirinto sem o
caráter fortuito e sem a fugacidade constitua
uma cidade. Tampouco é possível que os
eventos de caráter fortuito e/ou fugaz possam
se constituir em uma representação da cidade,
se não existe o labiríntico que é seu substrato,
não somente físico mas também mental.
De fato as três caracterizações falam do
mesmo, mas se referem a campos distintos. O
labiríntico remete ao espacial desde o geográfico
até a organização do espaço mental (o
labiríntico dos sonhos e dos imaginários). O
fugaz se refere ao temporal, e o fortuito ao
social. Estamos falando, então, de uma
comp lementarid ad e real, em três camp os
articulados e dificilmente separáveis, de uma
“ ce rta” característica q ue é a marca d e
referência que define a cidade. Em boa medida,
falamos da não linearidade do espaço, do tempo
e das ações sociais, da ausência de um traçado
confiável, permanente, seguro para nossas
ações no tempo e no espaço.
Isto é o que distingue a cidade do
“ campo” ou, melhor d izend o, d as formas
distintas de articulação entre a natureza e a
sociedade que costumavam se dar no passado.
A comunidade, em suas diversas formas de
inscrição social, desde o calpulli pré-hispânico,
até as vilas tradicionais européias ou as aldeias
africanas, não ofereceu nem oferecerá – para o
bem ou para o mal – a diversidade de espaços,
de possibilidades nem de inovações que
ofereceu, e segue oferecendo, a cidade desde
seus primórdios.
A questão que pode se colocar também,
desde uma perspectiva histórica, é se certas
formas de assentamentos, como Tenochtitlán,
HIERNAUX, D.
entre outros, cab em nesta formulação d a
essência da cidade que acabamos de propor.
Não nos cabe responder esta pergunta, mas
podemos afirmar que muitas formas atuais de
assentamento humano, como as intermináveis
p eriferias d as metróp oles mund iais, e
particularmente as nossas no México, distam de
ser labirínticas, de oferecer fugacidade e o
caráte r f ortuito q ue consid e ramos como
essência ontológica da cidade.
O debate não de se focar na morfologia
da cidade, e colocamos por outro lado, que o
modelo de urbanização atual dista de ter as
condições para que possa ser qualificado como
urbano. A questão é, então, a de reconhecer
que talvez estejamos entrando numa fase de
“pós-cidade” onde reina a urbanização sem
cidade. Isto é o que insinuaram, em forma
profética, autores como Françoise Choay (1970)
ou Murray Bookchin (1989), há mais de trinta
anos.
Tampouco é aceitável que todo o
urbanizado não seja cidade. A cidade perdura,
em sua essência ontológica tradicional, mas é
evidente que foi substituída (talvez desde os
anos sessenta?) por uma urbanização que não
é cidade, mas “outra coisa” da qual é pertinente
fazer a ontologia e lhe dar um nome, batizá-la,
o que até agora não foi feito, talvez pelo afã de
seguir discutindo sobre as formas de cidade.
Significativamente, muitas cidades que
perduraram como tais, se rodearam destas
urb anizações
intermináv eis.
Inclusiv e,
encontramos um verdadeiro interesse em muitos
d e seus hab itantes p or emp reend er um
“regresso à cidade” (Bidou, Hiernaux e Rivière
d’ Arc, 2003) que, com freqüência, serve mais
para desvirtuar o espaço urbano ainda
existente que para assegurar a permanência
da cidade.
Fenômenos como a “gentrificação” ou a
“turistificação” se fizeram presentes em muitas
cidades, desenvolvidas ou não. Mas estes
processos, fruto de uma visão nostálgica,
mesmo que não forçosamente negativa da
cidade, não apóiam sua permanência, mas
ofuscam as possibilidades de sustentá-las como
tais. Assim, os centros urbanos costumam se
Repensar a cidade: A dimensão ontológica do urbano, pp. 197 - 205
tornar museus semi-vivos para a felicidade dos
turistas, ou lugar de residência das novas
burguesias que, antes de tudo, reclamam que
se eliminem todas as condições do fortuito e do
fugaz, como podem ser os “mal-viventes,
comerciantes ambulantes, prostitutas e demais
vagabundos”.
Uma cidade que talv ez conserv a o
caráter labiríntico de sua planta antiga, é onde
não se permite e inclusive se tem um medo
exagerado a tudo o que não é controlado,
datado, conhecido (vide o auge da cidadefilmada dia e noite por câmeras de vigilância);
este medo é recorrente em muitas cidade cujos
centros estão passando pelo processo de
elitização ou gentrificação, ou seja, México,
Londres (a cidade mais controlada do mundo),
Nova Iorque ou Paris: “Nada mal pode passar
205
se nada fortuito de apresenta” parece ser o
lema de nossas cidades “gentrificadas”.
Talvez, então, é a Louis Wirth que
d ev amos reg ressar p ara reencontrar esta
“personalidade urbana” marcada pelo efêmero,
o transitório, a complexidade e a mobilidade
(Wirth, 1938), personalidade que distingue a
cidade das massas informes, de nossas
urbanizações “difusas” (Chadouin, 2005).
Nossas reflexões anteriores não
somente se remetem à necessidade de uma
reflexão filosófica, da qual estas notas são
somente um esboço. Também poderiam ser
matéria de uma política urbana mais inteligente
e atenta à própria realidade, que reflita sobre
a cidade de amanhã, para construí-la desde
hoje.
Notas
1
Donzelot, por exemplo, fala de uma “nova questão
urbana” que surge tanto da expansão da cidade,
como das novas formas de organização do espaço
urb ano, p articularmente a p artir d as nov as
segregações voluntárias (Donzelot, 1999)
2
N e ste se ntid o, a mod e rnid ad e é , como b e m
assinalou Baudelaire, o transitório, o fugitivo, o
contingente.
3
Em sua obra clássica sobre a cidade, Jean Remy
(1966) havia colocado, há quase quarenta anos,
que a variedade da oferta era uma dimensão
essencial do urbano; embora o fizesse em termos
essencialmente econômicos, a reflexão segue
sendo pertinente e também premonitória para o
mundo urbano atual.
4
Cabe recordar que esta expressão foi introduzida
na teoria sociológica por Robert Merton em
referência a “um dado imprevisto, anômalo e
estratégico que se transforma por ocasião do
desenvolvimento de uma teoria nova ou da
a mp lia çã o d e u ma e x iste n te (...). Uma
investigação encaminhada para comprovar uma
tese lança um subproduto fortuito que influi em
teorias que não se haviam tido em conta ao se
começar uma investigação” (Merton, 1995: 181).
Trabalho enviado em maio de 2006
Trabalho aceito em agosto de 2006
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