Roberto Luís Monte-Mór
O QUE É O URBANO, NO MUNDO
CONTEMPORÂNEO*
Roberto Luís Monte-Mór **
RESUMO
ABSTRACT
Conceitos centrais da vida contemporânea,
tais como política, civilização e cidadania,
derivam da forma e organização da cidade.
A cidade expressa a divisão socioespacial do
trabalho, e Henri Lefebvre propõe pensar sua
transformação a partir de um continuum que
se estende da cidade política ao urbano, onde
se completa a dominação sobre o campo.
A efetiva passagem da cidade ao urbano foi
marcada pela tomada da cidade pela
indústria, trazendo a produção – e o
proletariado – para o espaço do poder.
A cidade, lócus do excedente, do poder e da
festa, cenário privilegiado da reprodução
social, ficou, assim, subordinada à lógica da
indústria. Sofreu, então, um duplo processo:
sua centralidade implodiu sobre si mesma e
sua periferia explodiu sobre o entorno sob a
forma de tecido urbano, que acabou por
carregar consigo o germe da pólis e da civitas.
Assim, a práxis urbana, antes restrita à
cidade, re-politizou todo o espaço social.
No Brasil, o urbano teve sua origem na política
ao mesmo tempo concentradora e integradora
dos governos militares, que deram seqüência
à centralização e expansionismo varguista e à
interiorização desenvolvimentista juscelinista.
Hoje, o urbano-industrial impõe-se
virtualmente a todo o espaço social, na
urbanização extensiva dos nossos dias.
Contemporary life central concepts such as
politics, civilization and citizenship, derive from
the city form and organization. A city conveys
labor socio-spatial division, thus Henri Lefebvre
proposes to think its transformation on the basis
of a continuum that extends from the political
city to the urban environment, when and where
it completes its countryside domination. The
city’s transformation into urban environment
was marked by an industrial takeover that
brought power to production and to working
class. The city, as the surplus, power and fiesta
locus, as well as a privileged scenario of social
reproduction, was thus subordinated to the
industrial logics. The city thus experienced a
double process: its centrality imploded upon
itself and its outskirts exploded upon the
surrounding areas through the urban tissue,
which carries within it the polis and civitas
germ. Therefore, the urban praxis, formerly
restricted to the city, has now re-politicized the
social space as a whole. In Brazil, urban
environment had its origin in the military
government concentrating and integrating
politics that followed Vargas’s centralization
and expansionism, and Kubitschek’s
developmental interiorizing. Today, the urbanindustrial process virtually imposes itself on all
social space through the extended urbanization
of our days.
Palavras-chave: cidade; Lefebvre; urbano;
urbanização extensiva.
Key words: city; Lefebvre; urban environment;
extended urbanization.
*Este artigo foi publicado originalmente em inglês na revista Cadernos de Saúde Pública, Rio de Janeiro, v.21, n.3,
maio/jun. 2005.
**Arquiteto, mestre em Planejamento Urbano e Rural pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Ph.D.
em Planejamento Urbano, University of California - Los Angeles, 2004. Professor Adjunto do Departamento de Ciências
Econômicas da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).
[email protected]
Artigo recebido para publicação em abril/2007. Aceito para publicação em abril/2007.
REVISTA PARANAENSE DE DESENVOLVIMENTO, Curitiba, n.111, p.09-18, jul./dez. 2006
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O que é o Urbano, no Mundo Contemporâneo
INTRODUÇÃO
A relação entre cidade e campo situa-se, histórica e teoricamente, no centro
das sociedades humanas. A dominação da cidade sobre o campo, como resultado da
divisão entre trabalho intelectual e trabalho manual e através do comando do mercado
sobre as atividades de produção, é fato que marcou as sociedades humanas desde
tempos remotos, e particularmente as sociedades capitalistas industriais modernas em
que nos inserimos.
Os adjetivos urbano e rural, todavia, referentes à cidade e ao campo, ganharam
autonomia apenas recentemente e dizem respeito a uma gama de relações culturais,
socioeconômicas e espaciais entre formas e processos derivados da cidade e do campo,
sem, no entanto, permitirem a clareza dicotômica que os caracterizava até o século
passado. Ao contrário, cada vez mais as fronteiras entre o espaço urbano e o rural são
difusas e de difícil identificação. Pode-se supor que isso acontece porque hoje esses
adjetivos carecem da sua referência substantiva original, na medida em que tanto a
cidade como o campo não são mais conceitos puros, de fácil identificação ou
delimitação. O que são hoje as cidades de Belo Horizonte, São Paulo, Rio de Janeiro,
Bela Vista de Minas ou qualquer outra cidade grande, média ou mesmo pequena no
Brasil contemporâneo ou no mundo? Onde começam e onde terminam? De outra
parte, o que é o campo na atualidade? A cooperativa agrícola da Cotia ou a Barretos
do peão boiadeiro em São Paulo? Povoados e distritos distantes como Milho Verde, ou
a periferia das cidades, chamada “área rural”? Ou, ainda, as grandes fazendas, as
agroindústrias, os acampamentos do MST, no Nordeste, no cerrado ou na Amazônia?
Em qualquer caso, a definição dos limites e da natureza, tanto do campo como da
cidade, é cada vez mais difusa e difícil.
Legalmente, no Brasil, as cidades são definidas pelos perímetros urbanos das
sedes municipais, e os territórios e populações considerados urbanizados incluem os
perímetros das vilas, sedes dos distritos municipais. Entretanto, as áreas urbanizadas
englobam amplas regiões circunvizinhas às cidades cujo espaço urbano integrado se
estende sobre territórios limítrofes e distantes em um processo expansivo iniciado no
século XIX e acentuado de forma irreversível no século XX.
Por outro lado, as cidades, ou o espaço político e sociocultural formado a
partir delas, vêm se tornando os centros da organização da sociedade e da economia.
Na escala mundial, poucas cidades organizam e comandam grandes blocos de
interesses e reordenam o espaço econômico global1; nas escalas local, regional e
nacional, as cidades definem as formas de organização da população e a localização
das atividades econômicas, referenciam identidades sociais e definem as formas várias
de constituição comunitária.
De fato, alguns dos conceitos centrais da vida contemporânea derivam da cidade,
tanto em sua forma espacial quanto em sua organização social. Da idéia grega de pólis
vem o conceito de política, enquanto do latim civis e civitas vêm cidadão, cidadania,
1
10
Uma vasta literatura discute as cidades mundiais e globais; ver Friedmann (1988) e Sassen (1991).
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cidade, e mesmo civilização.2 Também se origina do latim o sentido de urbano, com
dupla conotação: de urbanum (arado) vem o sentido de povoação, a forma física da
ocupação do espaço de vida delimitado pelo sulco do arado dos bois sagrados que
marcava o território da produção e de vida dos romanos; da sua simplificação semântica
originaram-se urbe e urbs, este último termo referindo-se a Roma, cidade-império, centro
do mundo e, assim, desaparecido até as grandes cidades da era moderna.3
Cidade e campo, elementos socioespaciais opostos e complementares, constituem
a centralidade e a periferia do poder na organização social. As cidades garantem a
diversidade e a escala da vida social, bem como a competição e a cooperação,
características da vida humana contemporânea. Os campos, por sua vez, tão diversos
entre si, garantem, também, diversidades dentro da sua homogeneidade extensiva e de
suas escalas de produção, quando tomados de forma abrangente. Contêm, do mesmo
modo, processos de competição e cooperação, mesmo que gerenciados pelas cidades e
limitados pela auto-suficiência relativa que ainda mantêm.
A cidade, na visão histórica dominante na economia política, constitui o resultado
do aprofundamento da divisão socioespacial do trabalho em uma comunidade.4 Esse
aprofundamento resulta de estímulos provocados pelo contato externo e da abertura
para outras comunidades, envolvendo processos regulares de troca, baseados na
cooperação e na competição. Implica, assim, de um lado, um sedentarismo e uma
hierarquia socioespacial interna à comunidade e, de outro, movimentos regulares de
bens e pessoas entre comunidades. Localmente, exige uma estrutura de poder sustentada
pela extração de um excedente regular da produção situada no campo. Assim, a cidade
faz emergir uma classe dominante que extrai e controla esse excedente coletivo mediante
processos ideológicos, acompanhados, certamente, do uso da força.
Segundo Paul Singer (1973), a cidade é o modo de organização (sócio)espacial
que permite à classe dominante maximizar a extração regular de um mais-produto do
campo e transformá-lo em garantia alimentar para a sua sustentação e para a de um
exército que garanta a regularidade dessa dominação e extração. Posto dessa forma,
estabelece-se, assim, o que Henri Lefebvre (1969; 1999) denominou “cidade política”,
2
Até recentemente, o reconhecimento de uma civilização implicava a existência de civis, da cidade, e, assim, os
povos nativos brasileiros e norte-americanos, considerados seminômades e que não construíram cidades duradouras, eram
considerados não-civilizados, em oposição às civilizações dos Maias, Astecas e Incas, que produziram cidades cujas ruínas
perduraram. Abordagens etno-históricas, antropológicas e arqueológicas recentes questionam, entretanto, a pertinência
dessas classificações, enquanto a geografia contemporânea discute o próprio sentido da cidade como uma construção
posterior à chamada Revolução Agrícola. Ver, entre outros, Ericson (2001), Fausto (2000), Roosevelt (1994) e Soja (2000).
3
O termo urbano foi resgatado apenas no século XVI em português, segundo Houaiss, Villar e Franco (2001), para
se referir a cidade-império, e particularmente no século XVII à cidade-sede do Império Britânico em construção, segundo o
Webster’s Lexicon (LEXICON, 1987), sendo que mesmo a palavra city (vinda do francês cité e do latim civitas) se impôs na
língua inglesa a partir do centro financeiro de Londres, generalizando-se no período vitoriano em contraposição ao campo.
Raymond Williams (1973; 1983) mostra que a palavra city apareceu no século XIII de forma paradigmática referindo-se a
cidades ideais ou bíblicas (em lugar de borough ou town) e qualificando representações do poder: cidade provincial, cidadecatedral etc. Para uma breve discussão dos conceitos de polis, civitas e urbs, ver Cardoso (1990) e Carpintero (1998).
4
A hipótese, muito heterodoxa e sistematicamente rejeitada, da precedência da cidade sobre o campo, foi
inicialmente apresentada por Jane Jacobs (1969) com base em descobertas arqueológicas da cidade de Çatal Huyuk. Hoje,
a discussão desta precedência vem ganhando peso com novas pesquisas arqueológicas envolvendo, entre outras, a lendária
Jericó. Ver Soja (2000).
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O que é o Urbano, no Mundo Contemporâneo
ou seja, a cidade que mantém seu domínio sobre o campo (com a conseqüente extração
do mais-produto, ou excedente) a partir do controle apenas político. Nesse contexto, a
produção é centrada no campo, e a cidade, espaço não-produtivo privilegiado dos poderes
político e ideológico, retira do excedente produzido no campo as condições de reprodução
da classe dominante e de seus servidores diretos, militares e civis, que a habitam.5
Lefebvre propõe, entretanto, que se pense um continuum da cidade política à
“zona crítica” (o urbano), passando pela cidade mercantil e pela cidade industrial.
A primeira passagem é marcada pela entrada da praça de mercado no interior das muralhas
das cidades controladas por mosteiros ou castelos. Incentivadas pelas feiras locais e regionais
(em múltiplas escalas, mesmo “internacionais”) de artigos de luxo, as elites gradativamente
permitiram a entrada da burguesia nascente no espaço do poder, logo deslocando a
centralidade do poder dos palácios e mosteiros para a praça de mercado, consolidando a
economia de mercado, que teve nas cidades seu espaço privilegiado.6
Assim, a cidade mercantil, lugar central para onde os excedentes regionais eram
voluntariamente trazidos e comercializados, resulta da entrada da burguesia na cidade e de
sua eventual conquista. Os burgos mercantis deram novo sentido e força à cidade política,
transformando-a em centro mercantil. A relação entre campo e cidade teve, então, sua
primeira inflexão, e a extração do mais-produto não era mais apenas possibilitada pela
coerção político-ideológica e militar, mas também por um movimento voluntário do campo
em direção à capacidade articuladora da cidade como lócus do mercado. A inflexão do
campo à cidade foi, portanto, marcada pela economia: a produção do campo só se realizava
na praça de mercado, modificando e ampliando a dominação da cidade sobre o campo.
Cabe ressaltar, ainda, a sinergia da vida urbana na cidade mercantil, lugar central
de inovação e provimento dos bens e serviços para produção no campo e, também,
espaço privilegiado da vida em comunidade, onde a divisão do trabalho aprofunda-se por
meio das especialidades e complementaridades que ali se desenvolvem.
1 A CIDADE INDUSTRIAL, A RELAÇÃO ENTRE CIDADE E CAMPO
E O SURGIMENTO DO URBANO
A segunda transformação e efetiva passagem da cidade em direção ao urbano
foi marcada pela entrada da indústria na cidade, processo longo na história ocidental,
como enfatiza Singer (1973). Na verdade, a urbanização, tal como hoje é entendida,
iniciou-se com a cidade industrial. Até o surgimento da indústria fabril e sua concentração
nas cidades e metrópoles européias, o processo de urbanização restringia-se a algumas
poucas cidades onde o poder e/ou o mercado se concentravam. Poucas eram as
aglomerações humanas que na atualidade poderiam ser denominadas cidades no período
que antecedeu a Revolução Industrial. A população que vivia em cidades não ultrapassava
20% em quase todos os países (DAVIS, 1970), e a cidade significou condição fundamental
5
Considerando as novas abordagens citadas acima, a cidade sempre foi mais produtiva do que o campo, o que
garantiu de fato seu domínio, sendo que muitas vezes ela produziu o seu espaço rural a posteriori.
6
Lewis Mumford (1965) descreve com brilhantismo a passagem da praça de mercado à economia de mercado, em
seu livro A Cidade na História.
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para o desenvolvimento da indústria, concentrando a população consumidora, os
trabalhadores e as condições gerais de produção7 para instalação das empresas fabris,
presentes (ou criadas) apenas em algumas cidades, como até recentemente no Brasil.
A cidade industrial foi, assim, marcada pela entrada da produção no seio do
espaço do poder, trazendo com ela a classe trabalhadora, o proletariado. A cidade passou
a não mais apenas controlar e comercializar a produção do campo, mas também a
transformá-la e a ela agregar valor em formas e quantidades jamais vistas anteriormente.
O campo, até então predominantemente isolado e auto-suficiente, passou a depender
da cidade para sua própria produção, das ferramentas e implementos aos bens de consumo
de vários tipos, chegando hoje a depender da produção urbano-industrial até para alimentos
e bens de consumo básico. Para Lefebvre (1999), essa inflexão significa a subordinação
total do campo à cidade.
Na cidade industrial, há também uma transformação radical. A indústria impõe
à cidade sua lógica centrada na produção, e o espaço da cidade, organizado como lócus
privilegiado do excedente econômico, do poder político e da festa cultural, legitimado
como obra e regido pelo valor de uso coletivo, passa a ser privatizado e subordinado ao
valor de troca. Segundo Lefebvre, a cidade se transforma, também, em produto industrial,
segundo as mesmas leis econômicas que regem a produção. O espaço privilegiado da
reprodução da sociedade fica, então, subordinado à lógica do industrialismo e às
necessidades da indústria e, como tal, deve reunir as condições de produção necessárias.
Entre estas, com destaque, está a reprodução coletiva da força de trabalho, sintetizada
pela habitação e por demandas complementares.8 O espaço urbanizado passa a se
constituir em função das demandas colocadas ao Estado no sentido de atender tanto à
produção industrial quanto, e particularmente, às necessidades da reprodução coletiva
da força de trabalho. As grandes cidades industriais estendem-se, assim, sobre suas
periferias de modo a acomodar as indústrias, seus provedores e trabalhadores, gerando
amplas regiões urbanizadas no seu entorno: as regiões metropolitanas.
A cidade, no entanto, lócus da tríade do excedente coletivo, do poder político e da
festa, não poderia desaparecer, pois representa e sintetiza a sociedade que a gerou. Lefebvre
(1999) descreve metaforicamente o que acontece: a cidade industrial sofre um duplo
processo: o de implosão e o de explosão. A implosão se dá na cidadela sobre si mesma,
sobre a centralidade do excedente/poder/festa que se adensa e reativa os símbolos da
cidade ameaçada pela lógica (capitalista) industrial.9 A explosão incide sobre o espaço
7
As condições gerais da produção, um conceito marxista resgatado por teóricos urbanos neomarxistas (LOJKINE,
1981; TOPALOV, 1979), abrangem: provisão, pelo Estado, de aparato legal que garanta as relações de propriedade privada
e livre circulação de mercadorias (incluindo terra e força de trabalho), serviços de transporte e comunicações, e a provisão
da infra-estrutura básica e serviços para o capital industrial e financeiro, assim como para a reprodução da força de trabalho.
8
Manuel Castells (1983) desenvolveu uma influente abordagem de inspiração neomarxista em que definiu a
especificidade do espaço urbano dentro do sistema econômico capitalista como o lócus privilegiado da reprodução da força
de trabalho, tornada possível pela concentração dos meios de consumo coletivo. Castells sofreu diversas críticas, de Lojkine
(1981), Topalov (1979) e outros autores, que chamaram a atenção para o fato de que a função do urbano no sistema
capitalista transcendia a reprodução da força de trabalho, constituindo-se também em lócus privilegiado das já referidas
condições gerais da produção.
9
Isso explica, em parte, no atual processo de industrialização, a ênfase na “revitalização de áreas centrais”, espaços
simbólicos do poder político e do resgate de valor de uso das elites, mais ou menos estendidos ao conjunto da população.
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O que é o Urbano, no Mundo Contemporâneo
circundante, com a extensão do tecido urbano, forma e processo socioespacial que
carrega consigo as condições de produção antes restritas às cidades, estendendo-as ao
espaço regional imediato e, eventualmente, ao campo longínquo, conforme as
demandas da produção (e reprodução coletiva) assim o exijam. O tecido urbano sintetiza,
dessa maneira, o processo de expansão do fenômeno urbano que resulta da cidade
sobre o campo e, virtualmente, sobre o espaço regional e nacional como um todo.
2 A URBANIZAÇÃO CONTEMPORÂNEA: seu caráter extensivo
e outras implicações
O que é, então, o urbano no mundo contemporâneo, esse “tecido” que nasce
nas cidades e se estende para além delas, sobre o campo e as regiões? O urbano,
entendido dessa forma, é uma síntese da antiga dicotomia cidade–campo, um terceiro
elemento na oposição dialética cidade–campo, a manifestação material e socioespacial
da sociedade urbano-industrial contemporânea, estendida, virtualmente, por todo o espaço
social. Lefebvre (1999) usa a expressão “sociedade urbana” como síntese dialética
(e virtual) da dicotomia cidade–campo, superada na etapa contemporânea do capitalismo
que ele alcunha “sociedade burocrática de consumo dirigido” (LEFEBVRE, 1991). O urbano,
ou o espaço urbano-industrial contemporâneo, metáfora para o espaço social (re)definido
pela urbanização, estende-se virtualmente por todo o território através do tecido urbano,
essa forma socioespacial herdeira e legatária da cidade que caracteriza o fenômeno
urbano contemporâneo e a sociedade urbana.
O tecido urbano prolifera, estende-se, corrói os resíduos de vida agrária. Estas palavras, “o tecido
urbano”, não designam, de maneira restrita, o domínio edificado nas cidades, mas o conjunto
das manifestações do predomínio da cidade sobre o campo. Nessa acepção, uma segunda
residência, uma rodovia, um supermercado em pleno campo, fazem parte do tecido urbano.
(LEFEBVRE, 1999, p.17).
No entanto, a cidade industrial que transbordou sobre as regiões circundantes
deu origem a uma nova forma de urbanização que, ao mesmo tempo, estendeu e integrou
também a práxis sociopolítica e espacial própria do espaço urbano-industrial (à qual
Lefebvre chamou de “práxis urbana”) ao espaço social como um todo. À medida que o
tecido urbano se estendeu sobre o território, levou com ele os germes da pólis, da civitas,
da práxis política urbana que era própria e restrita ao espaço da cidade. A luta política
pelo controle dos meios coletivos de reprodução que caracterizam a cidadania
contemporânea e os movimentos sociais urbanos que emergiram nos anos setenta
mostraram que a luta pela cidadania estava latente nas cidades e nas áreas urbanas. A
década de 1980, no entanto, mostrou que esses movimentos haviam se estendido para
além desses limites, atingindo todo o espaço social. Os movimentos sociais perderam a
adjetivação de urbanos conforme passaram a abranger populações rurais e tradicionais,
como índios, seringueiros, trabalhadores sem terra, entre outras.
Assim, a questão urbana havia se transformado na questão espacial em si mesma,
e a urbanização passou a constituir uma metáfora para a produção do espaço social
contemporâneo como um todo, cobrindo potencialmente todo o território nacional em
bases urbano-industriais. Por outro lado, a politização própria do espaço urbano, agora
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estendida ao espaço regional, reforça preocupações com a qualidade da vida quotidiana,
o meio ambiente, enfim, com a reprodução ampliada da vida. O industrial passou a ser,
ao menos virtualmente, submetido a limitações do urbano e por exigências da reprodução.
Nesse contexto, a re-politização da vida urbana torna-se a re-politização do espaço social:
A problemática do espaço, a qual subsume os problemas da esfera urbana (a cidade e suas
extensões) e da vida cotidiana (consumo dirigido), deslocou a problemática da industrialização.
(LEFEBVRE, 1991, p.89).
Tenho chamado de urbanização extensiva10 esta materialização sociotemporal
dos processos de produção e reprodução resultantes do confronto do industrial com o
urbano, acrescida das questões sociopolíticas e cultural intrínsecas à pólis e à civitas, que
têm sido estendidas para além das aglomerações urbanas ao espaço social como um
todo. É essa espacialidade social resultante do encontro explosivo da indústria com a
cidade – o urbano – que se estende, com as relações de produção (e sua reprodução),
por todo o espaço onde as condições gerais de produção (e consumo) determinadas
pelo capitalismo industrial de Estado impõem-se à sociedade burocrática de consumo
dirigido, carregando, no seu bojo, a reação e a organização políticas próprias da cidade.
Essa é a realidade – a sociedade urbana – que se coloca hoje como virtualidade e
objetividade no Brasil, constituindo-se em condição para a compreensão do espaço
social contemporâneo.
3 A URBANIZAÇÃO EXTENSIV
A NO BRA SIL
EXTENSIVA
11
CONTEMPORÂNEO
Diante desse quadro, já se pode falar de uma sociedade virtualmente urbana
no Brasil. A urbanização brasileira intensificou-se na segunda metade do século XX,
quando o capitalismo industrial ganhou momento no País e dinamizou a economia a
partir da consolidação das grandes cidades industriais, particularmente São Paulo, o
grande pólo industrial do Brasil. A transformação de uma economia agroexportadora em
uma economia centrada na substituição de importações para o mercado interno redefiniu
a cidade industrial como pólo de dinamização e de transformações seletivas no espaço
e na sociedade brasileira.
A cidade industrial originou-se no Brasil a partir de duas vertentes principais,
não necessariamente excludentes entre si: a primeira, a transformação da cidade política,
tradicional sede do aparelho burocrático de Estado e espaço de comando das oligarquias
rurais ligadas à economia agroexportadora, em cidade mercantil, marcada pela presença
do capital exportador e/ou da concentração de comércio e serviços centrais de apoio às
atividades produtivas rurais em centro de produção industrial; a segunda, a criação e/ou
captura de pequenas cidades como espaços de produção monoindustrial por grandes
10
O termo urbanização extensiva, apesar de sua inspiração claramente lefebvriana ao pretender resgatar aspectos
centrais do pensamento de Lefebvre sobre o fenômeno urbano, mais particularmente aliando à dimensão socioespacial o
elemento político implícito na praxis urbana, é de minha total responsabilidade e não foi utilizado por Lefebvre. Para outras
definições do termo, ver Monte-Mór (1994; 1997; 2003).
11
Partes do texto, neste item, foram apresentadas em Monte-Mór (2004).
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indústrias. Apenas essas cidades industriais, grandes, médias ou pequenas
(monoindustriais), reuniam as condições exigidas pelo capitalismo industrial, em que o
Estado regulava as relações entre capital e trabalho, fazia investimentos em infra-estrutura,
garantia os meios de consumo coletivo, enfim, criava as condições gerais de produção
para a indústria. Essas condições de produção estavam restritas ao que Milton Santos
(1994) denominou “arquipélago urbano”, evidenciando o caráter fragmentário e
desarticulado da sociedade urbana brasileira. Nesse contexto, a cidade industrial era
peça central da dinâmica capitalista, articulando-se com cidades comerciais e centros
urbanos que canalizavam a produção para sua área de influência e controle. Era também
nessas cidades, e apenas nelas, que se concentravam as possibilidades de acesso às
facilidades da vida moderna, à cidadania, à urbanidade e à modernidade.
O tecido urbano, no Brasil, teve sua origem na política territorial ao mesmo
tempo concentradora e integradora dos governos militares, em seqüência à centralização
e expansionismo do período Vargas e às ações de interiorização do desenvolvimento do
período juscelinista. O velho binômio Energia e Transporte transformou-se, nos anos
setenta, em investimentos em infra-estrutura (rodovias, hidrelétricas), comunicações,
serviços financeiros, entre outros. Os capitais internacionais que demandaram o Brasil
associaram-se à construção civil, ao latifúndio subsidiado e à agroempresa, que constituíam
alguns dos acordos das elites econômicas nacionais e regionais para apoio ao militarismo
(inter)nacional. Através do tecido urbano, estenderam-se o (aparato do) Estado, a
legislação (trabalhista e previdenciária), redes de comunicações e serviços urbanos e
sociais (produção e consumo), potencialmente por todo o País, dos centros dinâmicos às
fronteiras de recursos naturais.
A partir dos anos setenta, a urbanização estendeu-se virtualmente ao território
nacional, integrando os diversos espaços regionais à centralidade urbano-industrial que
emanava de São Paulo, desdobrando-se na rede de metrópoles regionais, cidades médias,
núcleos urbanos afetados por grandes projetos industriais, atingindo, finalmente, as
pequenas cidades nas diversas regiões, em particular onde o processo de modernização
ganhou uma dinâmica mais intensa e extensa. “Já não há mais problema agrário, agora
se trata do problema urbano em escala nacional”, dizia de forma quase panfletária o
economista e sociólogo Francisco de Oliveira, na SBPC de 1978, em seu texto conhecido
como “o ovo de Colombo da urbanização brasileira” (OLIVEIRA, 1978, p.74). De fato, ao
final daquela década, as relações capitalistas virtualmente já haviam sido estendidas a
todo o espaço nacional.
É a essa urbanização que ocorreu para além das cidades e áreas urbanizadas,
e que carregou com ela as condições urbano-industriais de produção (e reprodução)
como também a práxis urbana e o sentido de modernidade e cidadania, que tenho
chamado de urbanização extensiva. A urbanização extensiva atingiu nos últimos
30 anos praticamente todo o País: estendeu-se a partir das regiões metropolitanas,
articulando-se aos centros industriais, às fontes de matérias-primas, seguindo a infraestrutura de transportes, energia e comunicações, criando e estendendo as condições
de produção e os meios de consumo coletivo necessários ao consumo da produção
industrial fordista que se implantava no Brasil com o “milagre brasileiro”. Ao final do
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século XX, o urbano se fazia presente em todo o território nacional, com destaque para
as fronteiras amazônica e do centro-oeste, onde a produção do espaço já se dava a
partir de uma base urbano-industrial que emanava dos centros metropolitanos e de seus
desdobramentos sobre as regiões agrárias articuladas à base agroindustrial do País.
É nesse sentido amplo que se pode falar de uma urbanização extensiva que se
impõe no espaço brasileiro para muito além das cidades, integrando espaços rurais e
regionais ao espaço urbanoindustrial mediante a expansão da base material requerida
pela sociedade e pela economia contemporâneas e as relações de produção que são
(ou devem ser) reproduzidas pela própria produção do espaço. Neste contexto,
multiplicam-se as fronteiras (urbanas), tanto internamente e nas franjas das aglomerações
quanto nos espaços regionais e rurais incorporados à lógica urbano-industrial dominante.
A urbanização extensiva caminha, assim, ao longo dos eixos viários e redes de
comunicação e de serviços em regiões “novas”, como a Amazônia e o Centro-Oeste,
mas também em regiões “velhas”, como o Nordeste, em espaços residuais das regiões
mais desenvolvidas, nas “ilhas de ruralidade” no interior mineiro ou paulista. Em toda
parte, a lógica urbano-industrial impõe-se ao espaço social contemporâneo, no urbano
dos nossos dias.
REFERÊNCIAS
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