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Semiótica do haikai

2011

discurso e linguagens: OBJETOS DE ANÁLISE E PERSPECTIVAS TEÓRICAS coleção Mestrado em linguística Volume 6 discurso e linguagens: OBJETOS DE ANÁLISE E PERSPECTIVAS TEÓRICAS ORGANIZADORES Maria Regina Momesso Matheus Nogueira Schwartzmann Vera Lucia Rodella Abriata Fernando Aparecido Ferreira Franca 2011 CATALOGAÇÃO NA FONTE BIBLIOTECA CENTRAL DA UNIVERSIDADE DE FRANCA COPYRIGHT © COLEÇÃO MESTRADO EM LINGUÍSTICA. TODOS OS DIREITOS RESERVADOS DISCURSO E LINGUAGES: OBJETOS DE ANÁLISE E PERSPECTIVAS TEÓRICAS V. 6. 2011. ORGANIZADORES: MARIA REGINA MOMESSO, MATHEUS NOGUEIRA SCHWARTZMANN, VERA LUCIA RODELLA ABRIATA, FERNANDO APARECIDO FERREIRA. FRANCA, SP : UNIVERSIDADE DE FRANCA, 2011 210 P. (COLEÇÃO MESTRADO EM LINGUÍSTICA, 6) ISBN: 978-85-60114-39-9 1. LINGUÍSTICA – ESTUDO E ENSINO. 2. PUBLICAÇÕES CIENTÍFICAS – PERIÓDICOS. I. UNIVERSIDADE DE FRANCA. CDU – 801(07) REITORIA CHANCELARIA PRÓ-REITORIA DE ENSINO PRÓ-REITORIA DE PESQUISA E PÓS-GRADUAÇÃO PRÓ-REITORIA DE EXTENSÃO DR.a M.E ARNALDO NICOLLELA FILHO PROF. DR. ABIB SALIM CURY DR. CLOVIS EDUARDO PINTO LUDOVICE PROF. M.E ARNALDO NICOLELLA FILHO PROF.a DR.a KÁTIA JORGE CIUFF a PROF. M.ª ELISABETE FERRO SOUSA TOUSO Diretor responsável_ EVERTON DE PAULA Assistente administrativo_ MUNIRA ROCHÈLLE NAMBU Assistente editorial_ PAULA ANDREA ZÚÑIGA MUÑOZ Projetista gráfico_ SÉRGIO RIBEIRO Revisora _ DENISE MELO MENDES Revisora _ ISABELLA ARAUJO OLIVEIRA Diagramadora _ ANA LÍVIA DE MATOS AV. DR. 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Sem exagero pode-se dizer que o poeta do haikai completa apenas uma metade do seu poema, deixando a outra metade para ser provida pela imaginação do leitor. (UEDA, 1978, p. 7).1 O emprego do lexema “Semiótica”, lembra-nos Greimas e Courtés (2008, p. 448-56), pode ser pensando segundo, pelo menos, três acepções, que equivalem a níveis de apreensão do fazer semiótico sensivelmente diferentes: 1. “Semiótica-objeto”; 2. “Tipologia semiótica” e 3. “Teoria semiótica”. Na primeira acepção, está em jogo o córpus com que trabalha o semioticista, o material “bruto” a que submetemos nossas intuições antes de qualquer segmentação ou análise. Na segunda, “Semiótica” reporta-se a um estágio de maturação da semiótica-objeto, quando esta, já confrontada com os princípios da Teoria Semiótica, encontra-se, para usar as palavras do Dicionário, “em processo de constituição ou já constituída”, o que faz dela um “projeto de descrição” ou um “objeto construído”. Por fim, na terceira acepção, temos a Teoria Semiótica, que por sua natureza descritiva, abstrata e generalizável – em termos hjelmslevianos: coerente, exaustiva e simples –, apresenta-se como uma metassemiótica científica, ou seja, um conjunto de procedimentos, de 1 [email protected] Coleção Mestrado em Linguística modelos de descrição, em suma, um sistema de representação que estabelece as relações de dependência e as regras de funcionamento de uma semiótica-objeto. Quando o semioticista se interessa por alguma semiótica-objeto – em nosso caso, o haikai clássico2 –, seu primeiro passo é procurar colocar em prática os princípios gerais de uma Teoria Semiótica – ainda em nosso caso, a Semiótica de A. J. Greimas e seus colaboradores –, para então instaurar o processo chamado anteriormente de “projeto de descrição”, fase em que a semiótica-objeto já figura como objeto semiótico construído, pois segmentado e analisado, pronto a gerar uma “tipologia semiótica”. É nessa relação entre “tipologia semiótica” e Teoria Semiótica que reside a margem de ação do semioticista, que, longe de ser uma mera máquina de analisar cegamente programada, deve fazer falar a semiótica-objeto e explorar sua descrição a tal ponto, que dela se possa depreender princípios de funcionamento que venham se integrar à Teoria Semiótica. Nesse sentido, na narrativa do sujeito semioticista, a Teoria Semiótica pode desempenhar o papel ao mesmo tempo de sujeito-destinador e sujeito-destinatário: os procedimentos que a teoria fornece ao analista são os procedimentos que, depois do corpo a corpo com o córpus, vão retornar ao seu domínio repropostos, modificados, enfim, aumentados de poder heurístico. É à luz dessa reflexão, que considera o projeto de descrição uma Semiótica em devir, que propomos neste ensaio uma Semiótica que se pretende ao mesmo tempo um “canteiro de obras” e um edifício construído segundo uma engenharia estrita, que, não obstante, permite-se estender e reinventar permanentemente. O haikai, velho conhecido dos círculos literários brasileiros desde sua introdução no Brasil pelos imigrantes japoneses nas primeiras déEmbora os dicionários de Língua Portuguesa tragam o registro “haicai”, optamos neste estudo por nos valermos do lexema “haikai”, em itálico, já que tratamos da poesia que remonta, no Japão, ao Século 17, período em que o lexema “haikai” está ligado a uma série de manifestações de formas poéticas ixas japonesas, como iremos demonstrar no decorrer deste trabalho. É essa também a escolha de Franchetti, Doi e Dantas (1996). 2 –164– Discurso e linguagens: objetos de análise e perspectivas teóricas cadas do século XX, tem sido tratado como objeto de comunhão, de fruição, e também de análises literárias acadêmicas de grande alcance analítico (CHOCIAY, 1984; FRANCHETTI, 1994; FRANCHETTI; DOI; DANTAS, 1996). No âmbito da Semiótica greimasiana, o tema ainda não teve a atenção merecida, não ao menos de uma maneira mais exaustiva, com exceção da pesquisa que realizamos há alguns anos sobre o emprego dos preceitos formais do haikai clássico no ensino de poesia (PORTELA, 2003); de que este ensaio, em certa medida, é uma versão refundida e aumentada, e do estudo semiótico sobre os poemas haikai de Paulo Leminski, de autoria de Olivia Yumi Nakaema (2011). A proposta de análise aqui apresentada parte do princípio de que para ler semioticamente o haikai clássico, do qual estamos distantes por volta de 350 anos, é preciso restituir diacronicamente a sua evolução formal na economia geral das formas poéticas fixas japonesas, sem perder de vista as coerções da língua natural e seu modo de circulação; para só então analisá-lo em sua imanência, priorizando, por motivos que esclareceremos mais adiante, seu plano de conteúdo. Assim, teremos ocasião de demonstrar como a análise do haikai clássico, ainda que imanente, depende da significação que atribuímos a figuras que atuam como conectores de isotopia altamente cifrados, o que leva o analista a tomar parte em um intrincado jogo de alusões, de referências, e procurar explorar os universos socioletal e idioletal que subjazem à produção do haikai. A sugestão DA coisA-em-si Seguramente a menor forma poética japonesa, o haikai é composto de 17 sílabas poéticas3, com duas cesuras, uma após a quinta sílaba e outra após a décima segunda. A presença de assonâncias e aliterações na poesia do haikai fica por conta do uso de onomatopeias, jogos de palavras e referências eruditas, descartando um esquema de rimas como o adotado em português, por exemplo, muito provavelmente devido à estrita composição silábica consonantal do japonês (sempre uma consoante e 3 Em japonês, contam-se todas as sílabas de cada verso. –165– Coleção Mestrado em Linguística uma vogal) e do reduzido espectro de vogais (apenas cinco, nessa ordem: a, i, u, e, o), que restringem a combinatória de rimas. Derivado de formas poéticas clássicas como o waka ou tanka (forma poética de 5 versos com composição no esquema de 5-7-5-7-7 sílabas) e, principalmente, do renga ou renku (“poema em série”, “poema encadeado”), o haikai mantém uma relação intrínseca com os princípios estéticos japoneses, que, na visão de Keene (1988), podem ser assim condensados: sugestão, irregularidade, simplicidade, perecibilidade. O haikai clássico, como estabelecido por Matsuo Bashô (16441694), deve conter, obrigatoriamente, ao menos uma referência sazonal (kigo, “palavra da estação”) fornecida por nomes de plantas, lugares, animais, objetos, descrições climáticas etc. O grau de sofisticação e importância do kigo na poesia do haikai é tal, que é possível encontrar livros e sites da internet com dicionários completos de kigo (GOGA; ODA, 1999; MABESOONE, 2012). O haikai encontrou terreno fértil no ocidente no final do século XIX, com a abertura política do Japão, que possibilitou trocas culturais e, em vários sentidos, a imigração, meio pelo qual o haikai alcançou o Brasil em 1908, no primeiro levante imigratório japonês que aportou no país, embora, segundo Goga (1988, p. 9), “... 1916 (Trovas Populares Brasileiras, Afrânio Peixoto) e 1926 (Relance da Alma Japonesa, Wenceslau de Moraes) devem ser considerados como os marcos iniciais de sua difusão em português”. Um de seus maiores estudiosos, Reginald Horace Blyth (18981969), organizador, tradutor e comentador da maior compilação de haikai feita em uma língua ocidental a partir de um córpus original japonês, expressa assim sua opinião acerca da poesia do haikai: Em minha opinião, a Literatura Japonesa ascende ou decai por conta do haiku, mas sua característica única faz com que seja difícil avaliar a sua posição na literatura mundial. Não é meramente a brevidade pela qual isola um grupo particular de fenôme–166– Discurso e linguagens: objetos de análise e perspectivas teóricas nos de todo o resto; nem seu poder de sugestão, por meio da qual revela todo um mundo de experiência. Não é apenas em seu uso notável da palavra da estação, pela qual nos dá uma impressão de um trimestre do ano; nem seu humor leve e penetrante. Sua qualidade peculiar é sua natureza autoanuladora, autodestrutiva, pela qual nos permite, mais do que qualquer forma de literatura, apreender a coisa-em-si. (BLYTH, 1982, p. 980)4. Entre tantas características (brevidade, sugestão, relação com a natureza, humor), Blyth aponta como principal característica do haikai a sua relação com a “coisa-em-si”. Sendo uma forma literária que, ainda que se paute pelo rigor formal e temático, não aspira à literariedade declarada, à artificialidade retórica; o haikai independe dos adereços (ou ao menos prega essa independência), ele é “autoanulador”, revelando o mundo com descrição absoluta, uma estudada transparência, que Blyth chama também de “autodestruição”, como se se quisesse dizer que o haikai pede desculpas por significar, ou melhor, ele se ausenta, falta, para poder significar (BARTHES, 1970). HAIKAI, HOKKU, HAIKU Não se pareçam comigo – Não sejam como um melão Cortado em duas metades iguais Matsuo Bashô5 A partir do século XVII, o haikai é compreendido como um gênero poético englobante, que extrapolou em larga medida os limites dos três versos que lhe são próprios, podendo se desenvolver em poemas encadeados (renga), em comentários em prosa que precedem os poemas (haibun), em gravuras (haiga) e em diários poéticos que alternam poesia e 4 5 Todas as traduções para o português, salvo menção contrária, são de nossa autoria. No original: ware ni nina/ futatsu ni wareshi/ makuwauri. –167– Coleção Mestrado em Linguística prosa (nikki). Está à disposição do haijin (poeta do haikai) um completo leque de tipos textuais verbais e verbovisuais, que nos mostra como o haikai deixou de ser tão somente uma forma poética para tornar-se uma verdadeira prática semiótica ou, ainda, uma forma de vida (FONTANILLE, 2008). A primeira estrofe (hokku) de um renga passa a ser, progressivamente, mais valorizada, concentrando toda a força temática e figurativa dos poemas que virão após ela. O hokku torna-se objeto de fetiche literário, tomando a cena das intermináveis estrofes que o sucedem. Quando se traduz hokku por “estrofe inicial” ou “primeira estrofe”, deve-se ter em mente que ele é, na verdade, a primeira estrofe do waka inicial de um renga. O hokku é a cabeça do renga, são os primeiros 3 versos, que devem ser obrigatoriamente escritos em esquema de 5-7-5 sílabas. Na composição de um renga, após o hokku, frequentemente, os haijin faziam suceder mais de mil versos (em uma única reunião poética), mas era a elaboração do hokku que trazia mais expectativa e responsabilidade. O grande mestre de haikai no renga do século XVII – e fundador da poesia do haikai como é conhecida hoje – é Matsuo Bashô (1644-1694). Bashô também é considerado o mais sofisticado praticante de hokku e quem filosofou mais sobre o tema. É dele o célebre poema (ver Anexo), escrito em 1682 (BOWERS, 1996, p. 15): furu ike ya Lagoa antiga – kawazu tobikomu Salta o sapo mizu no oto Ruído d’água Uma das máximas de Bashô que melhor ilustra sua relação com a tradição poética japonesa é “Não siga os passos dos velhos poetas, procure o que eles procuraram” (HASS, 1994, p. 233). É com esse projeto, por assim dizer vanguardista, que Bashô inaugura uma maneira própria de praticar o renga, aumentando o valor e a densidade do hokku e arrebanhando para si numerosos discípulos. O mestre do haikai reprovava veementemente a simples imitação e –168– Discurso e linguagens: objetos de análise e perspectivas teóricas incentivava a originalidade e a descoberta: “Bashô insistia que seu estilo de poesia deveria ‘mudar a cada ano e apresentar-se fresco a cada mês’”, comenta Keene (1987, p. 38). A poética de Bashô pregava a observação e a integração máximas com o objeto poetizado. Ele acreditava que quando alguém compunha um verso não deveria permitir que um fio de cabelo separasse a mente daquilo sobre o que escrevia. O Sr. Bananeira – esse é o significado de bashô, nome que ele adotou já adulto – acreditava na pureza da imagem, no retrato fiel de um instante que só o haikai pode eternizar. O mundo natural irradia e nossas mentes deveriam estar despertas para a percepção do instante do haikai: “Aprenda sobre pinheiros com o pinheiro e sobre bambu com o bambu” é um dos seus preceitos mais conhecidos. O rigor que Bashô aplica ao haikai procede diretamente do Zen Budismo japonês (SUZUKI, 1973, p. 215-67). Para ele – convertido monge depois de uma vida desregrada (UEDA, 1989, p. 19-35) – o haikai era um caminho para o satori (“a iluminação”), uma forma de alcançar o autoconhecimento máximo. Matsuo Bashô é considerado o primeiro dos Quatro Grandes Mestres do Haikai (HIGGINSON, 1989, p. 12). O segundo é Yosa Buson (1716-1783), artista que admirava a pintura chinesa e a poesia de Bashô. Quando morreu, Buson era conhecido basicamente como pintor, só anos mais tarde seu legado poético foi descoberto. Hass (1994, p. 73) lembra que as comparações entre os dois feitas pelos estudiosos são sempre contrastantes: “[...] Bashô, o poeta subjetivo, Buson, o poeta objetivo; Bashô, o escritor asceta, Buson, o pintor mundano”. De fato, Buson afastou-se consideravelmente da tradição de Bashô. Ele não era um religioso recluso e austero, um peregrino como Bashô, era um homem viajado, culto, farto em amores, o que não justifica a sua negativa em compactuar com os princípios zen-budistas, mas, ao menos, torna mais plausível essa recusa. A sua poesia é totalmente plástica, radiante, esvaziada de reflexões morais ou religiosas. É a poesia de um pintor: –169– Coleção Mestrado em Linguística na no hana ya A colza – tsuki ha higashi ni A lua ao leste hi ha nishi ni No oeste, o sol. Yosa Buson, apesar das divergências com os ensinamentos de Matsuo Bashô6, só fez enriquecer a tradição do haikai, dando-lhe um caráter efetivamente autônomo do renga e da religião, aumentando a dimensão plástica do haikai e inaugurando a “arte pela arte” entre os haijin. A despeito de sua grande capacidade poética, a maior parte de sua obra consiste em haiga e pinturas inspiradas na Arte Chinesa. O terceiro grande mestre do haikai foi Kobayashi Issa (1763-1827), um dos mais amados poetas japoneses. Segundo Keene (1987, p. 46), Issa foi um poeta que dedicou sua energia exclusivamente ao hokku, distante que estava da época de Bashô, na qual o haikai no renga era a forma poética mais difundida. Em Issa, como em Buson, há um esforço de autonomia da forma poética hokku, o que o faz empregá-la apenas em nikki e haiga, nunca em renga. Issa era adepto da seita budista Terra Pura (Jodô), o que, para seu comentadores, dá a seus poemas não o caráter austero buscado pelo zen-budismo de Bashô, mas um ânimo de piedade e compaixão com o sofrimento de todos os seres, característica marcante dessa seita, bem próxima ao cristianismo. Seu hokku mais conhecido foi composto, dizem, quando tinha apenas 6 anos de idade: ware to kite Venha, brinque comigo! asobe ya oya no Pardalzinho nai suzume Órfão. A sentimentalidade exacerbada de Issa é uma das suas principais características, podendo ser comparada, guardadas as devidas proporMesmo havendo divergências, Buson era um grande admirador de Bashô. Higginson (1994, p. 12) chama atenção para o fato de Buson ter ilustrado inúmeros nikki do mestre Bashô. 6 –170– Discurso e linguagens: objetos de análise e perspectivas teóricas ções, à do compositor gaúcho Lupicínio Rodrigues (PORTELA, 2001, p. 50). Depois de Issa, há um sensível declínio da tradição do haikai, cabendo ao quarto grande haijin, Masaoka Shiki (1867-1902), a renovação de uma tradição que, a essa altura, já tinha quase 300 anos. Segundo Hass (1994, p. 20), Shiki é o último dos grandes haijin do passado e o primeiro entre os haijin modernos. Foi ele quem empregou pela primeira vez o termo haiku7 (“verso de um haikai no renga”) para designar o hokku. Por meio da adoção do termo haiku, Shiki conseguiu desvencilhar o haikai de uma vez por todas da relação com o renga, concluindo um processo que remonta a Buson e a Issa. A subjetividade decadente de alguns imitadores tardios de Bashô não agradava Shiki, que tinha como exemplo de objetividade e eficiência na linguagem, Yosa Buson. Shiki ansiava um haikai que fosse feito em linguagem objetiva e que versasse sobre fatos cotidianos, acessíveis à experiência, não sobre imaginações místicas afetadas. Os poetas que sucederam Masaoka Shiki muito contribuíram para a divulgação do haikai (haiku, como ficou conhecido no Japão, após Shiki). Dentre tantos reformadores do haikai e fiéis defensores podem-se citar: o moderno Kawahigashi Hekigotô (1873-1937), o conservador Takahama Kyoshi (1874-1959)8 e a pioneira Hashimoto Takako (18991963), primeira grande poeta do haikai9. 7 Sobre a introdução do termo haiku, cabem algumas considerações. No Brasil e na França, o hokku icou conhecido como haikai (nome, na verdade, do gênero que subsume a prática do renga e do hokku). Já os divulgadores de língua inglesa optaram pelo termo haiku, deixando haikai e hokku para tratar de períodos especíicos da tradição ou, ainda, como fazem Keene (1987), Ueda (1989) e Blyth, usando haiku nos casos em que ele designa “poema japonês de 17 sílabas”, sem distinção de período histórico. René Siefert (apud FRANCHETTI; DOI; DANTAS (1996, p. 56)), por exemplo, airma que o “velho mestre teria, sem dúvida alguma, condenado a prática designada por esse termo [haiku]”. Endossando a visão de Siefert, Ueda (1989), no Prefácio de sua obra, diz que “ele [Bashô] e seus contemporâneos usavam raramente a palavra haiku, mesmo quando, como se viu nos diários de Bashô, a prática de tratar um hokku como poema independente era comum”. 8 Kyoshi foi mestre de Kenjiro Sato (1898-1979), conhecido como Nenpuku Sato, imigrante japonês que veio para o Brasil em 1927 e que difundiu o haikai pelo interior do Estado de São Paulo e Paraná. Cf. Maurício Arruda MENDONÇA, Trilha forrada de folhas - nenpuku sato - mestre de haikai no Brasil. 9 Takako, aluna da poeta Sugita Hisajo, icou conhecida pelos seus poemas sempre muito pessoais e delicados. –171– Coleção Mestrado em Linguística o conteúDo Do HAIKAI Quando o haikai é concebido com arte, há pouco espaço na superfície, mas grande substância na profundidade. Magnino (1952, p. 129) Até o momento, procedemos a uma exposição essencialmente diacrônica acerca da poesia do haikai. A seguir, procuraremos ler o haikai à luz da Semiótica, sem perder de vista as implicações de ordem socioletal que sua leitura suscita. Um haikai não deveria, segundo a tradição da qual ele provém, ser objeto de interpretação, de compreensão racional e sistemática, no sentido que a Filosofia ocidental deu a essas atividades. Como vimos, para a tradição, o haikai deveria ser experimentado, vivido, sentido, pois ele é a percepção de um acontecimento singular relatado por outro ser humano, que almejou a expressão da singularidade desse acontecimento. Assim, o alcance da percepção ideal do haikai não é matéria que dependa da razão, mas, quase que exclusivamente, da sensação, da junção dos sentidos. Um mestre de haikai diria, não obviamente com essas palavras, que alguém só entenderia um haikai quando conseguisse “pensá-lo com os sentidos”. Tal afirmação, aparentemente contraditória em uma sociedade que entranhou o “pensar” e o “sentir” como termos muitas vezes opostos, pode ser compreendida com a ajuda de Fernando Pessoa: “Ah, canta, canta sem razão!/ O que em mim sente ‘stá pensando”. Há nesses versos um ensinamento capital: às vezes, é preciso pensar com os sentidos, abandonar a razão, ainda que a pura sensação deva, em algum estágio de sua percepção, virar pensamento. Tanto do ponto de vista da sua produção e circulação quanto do ponto de vista de sua análise, a maior parte dos estudiosos está de acordo com o fato de o plano do conteúdo do haikai ser o plano de análise mais relevante para sua compreensão, ainda que sua expressão visual (a caligrafia ou, ainda, a ilustração) e sonora (aliterações, assonâncias, ritmo etc.) não sejam de modo algum dimensões de análise negligenciáveis. –172– Discurso e linguagens: objetos de análise e perspectivas teóricas Por um simples recorte metodológico, com o objetivo de analisar o plano de conteúdo da linguagem verbal, o haikai é tratado aqui tão somente como uma semiótica verbal construída a partir da língua natural japonesa. Essa escolha encontra objeções importantes quando a enquadramos segundo correntes interpretativas como a preconizada por Campos (1994, p. 62), via Ezra Pound e Ernest Fenollosa, que acreditam ser fundamental para a leitura do haikai o exercício filológico e imagético profundos, por meio do ir e vir constante entre o conteúdo do poema e a iconicidade manifestada pela escrita ideogramática. Optamos por nos alinhar às ideias de Franchetti (1996, p. 46-7), que rejeita o preciosismo no estudo da escrita ideogramática e assim comenta a tradução de “furu ike ya” empreendida por Haroldo de Campos (cf. item “b” do Anexo): [...] ‘salt’tomba’ é evidentemente trabalhado, pouco discreto, e desequilibra o poema ao concentrar sobre si a atenção do leitor. Face à poética de Bashô, que sempre demonstrou aversão à mera exibição técnica em haikai [...] a utilização de uma ‘palavra-valise’ à James Joyce parece completamente inadequada [...] Um segundo problema na aproximação de Haroldo de Campos ao haikai diz respeito à interpretação do ideograma. [...] A imensa maioria das vezes [...] o kanji não tem papel fundamental quanto o que lhe empresta Haroldo de Campos: uma estrofe de haikai tem aproximadamente o mesmo sentido escrita em kanji ou hiragana – o kanji servindo frequentemente para distinguir os homófonos, e o hiragana servindo também frequentemente para valorizá-los. De fato, o haikai assimilado pelas vanguardas literárias esteve muito ligado aos aspectos formais concernentes à língua japonesa. Muito foi discutido sobre a sua metrificação e sua escrita, mas pouco sobre suas dimensões discursiva, narrativa e fundamental, o que trataremos de fazer a seguir. –173– Coleção Mestrado em Linguística DA “lAgoA AntigA” Ao som DA quietuDe Retomemos o célebre poema de Bashô (cf. traduções no Anexo10): furu ike ya Lagoa antiga – kawazu tobikomu Salta o sapo mizu no oto Ruído d’água O poema inicia-se com um enunciado de estado – “furu”11 (antigo, velho, anterior) ∩ “ike” (tanque artificial, poço, lagoa) – que nos oferece coordenadas espaciais e temporais. A “ike”, a lagoa, é o espaço da transformação, o espaço tópico da narrativa, determinado pela / imobilidade/ da água estanque, em permanente /regularidade/, /homogeneidade/, /continuidade/. “Ike”, nesse sentido, opor-se-ia a “rio”, no qual a superfície revolta é marcada pela /descontinuidade/ dos movimentos da oscilação da água. “Furu” é o predicado que temporaliza e aspectualiza a cena de /fixidez/ de “ike”: a lagoa é anterior, data de outra época, e é na imobilidade acabada que o processo se inicia. O tempo fez velha essa lagoa: o espaço descrito é a sua imagem temporalizada. O expletivo “ya”12, que se segue à instauração do percurso figurativo da “lagoa antiga”, pode ser traduzido, em português, por meio da pontuação: tanto um ponto de exclamação, como um travessão, No Anexo, apresentamos todas as versões consideradas necessárias para o estudo do poema. Durante a análise, apenas algumas são citadas, mas todas merecem atenção, daí o propósito de apresentar as versões de língua inglesa em tradução. 11 Para as análises, empregaram-se, principalmente, o Dicionário Japonês-Português (Porto Editora, 1998) e o New Concise Japanese-English Dictionary (Sanseido Press, 1975). 12 Na tradição do haikai, chama-se esse tipo de expletivo de “kireji”, “palavra de corte”, recurso que serve como regulador da métrica e da montagem imagética do poema. Segundo Higginson (1989, p. 291-2), os expletivos mais usados são “ka” (ênfase; no im da frase, serve para perguntar algo); “kana” (ênfase; geralmente no im do poema, indica surpresa diante do acontecimento); “-keri” (suixo verbal, passado, exclamação); “-ramu” ou “-ran” (suixo verbal, probabilidade); “-shi” (suixo adjetivo usado para concluir uma sentença); “-tsu” (suixo verbal, presente) e “ya”, (suspensão, elipse). 10 –174– Discurso e linguagens: objetos de análise e perspectivas teóricas como dois-pontos transmitem eficientemente seu significado. É como se houvesse um corte abrupto na cena e a seguir viesse seu desenrolar. No segundo momento do poema (da sexta à décima segunda sílaba) há a introdução de um ator: “kawazu” (rã, sapo, sinônimo pouco usado de “kaeru”). Eis uma figura perfeitamente cabível no percurso figurativo da “lagoa antiga”: um anfíbio que “tobikomu” (voa para dentro, entra subitamente, salta). Nada mais natural. O sujeito reflexivo “kawazu” efetua sua performance (“tobikomu”) e, ao realizá-la, ocasiona uma transformação no sujeito de estado “ furu ike”: as águas anteriormente paradas saem de sua imobilidade. Pode-se situar o “sapo” como destinador circunstancial da /descontinuidade/, da desordem na superfície da água, e a “lagoa antiga” como a destinatária desse cismo. O enunciador prossegue (décima terceira à décima sétima sílaba) descrevendo as consequências do salto do sapo na lagoa antiga: “mizu no oto”. “Mizu” é “água”, “no” é “de”, partícula posposta que indica posse ou relação adjetiva; “oto” é “som”, “barulho”, “ruído”, assim, obtém-se “ruído d’água”, uma espécie de respingo sonoro. Não se pode deixar de notar que o haikai, em japonês, é frequentemente escrito em uma única linha13, daí a dificuldade em chamar “verso” cada uma das três sequências silábicas do haikai. O haikai é, a rigor, um verso com duas cesuras, uma após a quinta sílaba e outra após a décima segunda, o que impede de promovê-lo a estrofe, mesmo levando em conta a sua tradução em tercetos, tradicional no Ocidente. Uma apresentação linear do poema de Bashô poderia ser assim descrita: fu-ru i-ke ya ka-wa-zu to-bi-ko-mu mi-zu no o-to 12345 6 7 8 9 10 11 12 13 14 15 16 17 Desse modo, entende-se melhor o uso da palavra de corte “ya”, mas O poema “ furu ike ya”, apresentado em escrita cursiva no item “a” no Anexo, foi escrito em 3 “versos” e não numa única linha, o que também é frequente. 13 –175– Coleção Mestrado em Linguística a leitura do poema, a partir da sexta sílaba, ganha uma pequena variação. Ao invés de se ler, como na explanação acima, “kawazu tobikomu” (“salta o sapo”) e, em seguida, “mizu no oto” (“ruído d’água”), pode-se pensar numa leitura aglutinadora, bem ao espírito do idioma japonês: “kawazu tobikomu mizu no oto” (“ruído de água na qual o sapo salta”, “som de sapo saltando na água” etc.). É essa a leitura que faz Blyth (1982, p. 1009), em fiel tradução: The old pond; The-sound-of-a-frog-jumping-into-the-water O velho tanque; O-som-de-um-sapo-pulando-dentro-d’água Essa tradução é um exemplo de como se pode verter o haikai através da reificação, da “substantivação” de algumas partes de seu enunciado. É uma tradução que também reflete a generalidade e ambiguidade do idioma japonês, recursos que são a marca registrada no haikai. Independentemente da leitura ou tradução escolhidas para o poema, é preciso observar mais atentamente o uso da imagem “mizu no oto”, pois, certamente, seu emprego não é gratuito, já que, como consequência do salto do sapo, o enunciador poderia ter descrito o oscilar das águas da lagoa, o odor desprendido pela água etc. Nesse momento da análise, é preciso remeter-se ao universo socioletal da literatura japonesa para uma leitura eficaz do poema de Bashô, que o subverte idioletamente. Conforme esclarece Keene (1987, p. 39), na tradição clássica da poesia japonesa, o “sapo” foi um motivo muito empregado, geralmente como o “sapo cantante”, o “sapo chorão”, cujo coaxar é para os japoneses um canto agradável, eufônico, muito próximo ao de alguns pássaros. O enunciador Bashô foi um homem inventivo e completamente consciente da revolução que instaurou na poesia japonesa. Ele pretendia, acredita-se, renovar o emprego do motivo “sapo” e –176– Discurso e linguagens: objetos de análise e perspectivas teóricas tal renovação só aconteceria se ele calasse o sapo cantor da velha poesia. Mas a situação é mais especial do que parece: o sapo não é totalmente mudo, ele pode produzir som, mas, desta vez, com o próprio corpo, o corpo todo. O enunciador rompe a isotopia fácil da /eufonia/ e constrói a estranheza cacofônica do barulho da água, como traduz brilhantemente Allen Ginsberg: Th’old pond – a frog jumps in. Klerplunk! Velho tanque – um sapo pula. Ploft! ou de um “rumor de água”, como prefere o indiscretamente letrado (para os propósitos do haikai) Haroldo de Campos. A cena não poderia ser mais cômica e incomum – um sapo que se joga na água, em silêncio – o que fez desse poema o grande manifesto estético da nova poesia, vulgar, radical, o haikai. Ainda quanto ao universo socioletal, outra isotopia que pode surgir numa leitura desse poema que se pretenda realmente elucidativa, é a isotopia da /religiosidade/, da /espiritualidade/, ou melhor, da /iluminação/. Bashô colocou sua poesia a serviço do Zen Budismo, promovendo a escrita à técnica para o alcance do satori, a iluminação espiritual. Em inúmeros koan (absurdas anedotas Zen propostas a um aprendiz) há referência ao percurso narrativo que consiste em um mestre, quando perguntado sobre o nada ou o Zen ou a natureza de Buda, derrubar o aprendiz, com as próprias mãos, com um remo ou varinha, dentro da água. Com base nessa informação, como negar que o sapo, nesse poema, possa representar o aprendiz precipitado na água ou o sinete que tiraria o aprendiz do sono profundo dos que não encontraram a iluminação? No poema analisado, há, no nível profundo, a passagem da / continuidade/ à /descontinuidade/ ou da /quietude/ à /inquietude/ ou, ainda, a passagem da /tradição/ à /modernidade/ (subversão do motivo “sapo”) e da /ignorância/ à /iluminação/ (relação com o koan), temas sempre presentes na tradição do haikai. –177– Coleção Mestrado em Linguística Juntamente com as isotopias da /modernidade/ e da /espiritualidade/, creditadas ao estudo da projeção socioletal do poema, pode-se acrescer a isotopia /primaveril/, aparente no emprego do lexema “kawazu” (sapo), que é um kigo (palavra da estação)14 de primavera. À época de Bashô, para um apreciador de haikai, esse era um dado a priori, pois não era possível pensar num haikai (um hokku, para ser mais preciso) sem kigo. A importância da referência sazonal na literatura japonesa data de suas origens, assim como no haikai, que extrai da contemplação da natureza o seu principal tema (FUKUDA, 1995, p. 35-43). O número de motivos sazonais é grande e o critério principal para o seu emprego é a sutileza, já que um bom haikai deve informar a estação em que está situado sem fazer referência direta à mesma. Alguns motivos que designam estados climáticos, como “harusame” (chuva de primavera) ou “aki no kaze” (vento de outono), são abundantemente encontrados, apesar de sua composição óbvia, pois, de tão empregados, são compreendidos como sintagmas lexicais que, aglutinados pelo uso, tornaram-se lexemas autônomos. Era um princípio de Bashô fazer poemas que descrevessem estados naturais e de cunho aparentemente não metafórico. Seus poemas almejam ser “coisas”, fusão precisa do mundo natural e da língua natural, criações nas quais o sentido fosse apreendido imediatamente, não a preço de sucessivas investigações e leituras. Obviamente, a erudição de Bashô e seu fino bom-humor emergiam, vez ou outra, como rompantes metafóricos consideráveis (o intertexto com o motivo “sapo” e com o koan, por exemplo). Passemos, agora, à análise de um outro conhecido poema de Bashô, encontrado em seu nikki (diário poético) mais popular, Oku no Hosomichi (Trilha Estreita ao Confim). Antes de determo-nos nas descrições dos lexemas empregados no texto, cabe alertar que esse poema representa um caso muito comum na 14 Segundo a tradição clássica, um haikai sem kigo não pode ser considerado um haikai no sentido estrito do termo. Costuma-se chamar um haikai sem kigo de senryū, quando este é de tom crítico ou satírico. –178– Discurso e linguagens: objetos de análise e perspectivas teóricas tradição do haikai, pois é um poema acompanhado por um comentário em prosa (haibun), que o antecede. O haibun, a “ frase do haikai”, é, muitas vezes, um recurso importantíssimo na compreensão do haikai. Ele serve como uma pequena introdução ao poema e tem um caráter essencialmente referencial, embora escrito em prosa poética. Nele, encontramos uma série de topônimos, cronônimos, e antropônimos, recursos de ancoragem histórica que produzem um efeito de sentido de “realidade”, à medida que referenciam o poema, tornando-o parte de um enunciado maior, ao qual ele está subsumido. No haibun que acompanha o poema, há o relato da história da fundação do templo Ryushaku, localizado na província de Yamagata. O poeta está no alto da montanha na qual se encontra o templo. Eis o final desse haibun, como aparece em Bashô (1997, p. 51): “As rochas coloridas pela eternidade eram pontilhadas pelas tapeçarias de verdes musgos. Os portais do templo, embutido nas rochas, barravam todos os ruídos e, em seus interiores o silêncio abissal, mudo, reverberava”. Abaixo dessa prosa poética o poema é apresentado: shizukasa ya Quanta quietude! iwa ni shimiiru O som da cigarra semi no koe Penetra a pedra A relação intertextual mantida entre o haibun e o haikai que o acompanha impede que se formulem hipóteses impertinentes para os semióticos mais centrados no enunciado. Pelo próprio caráter discursivo do texto (um diário), todas as informações sobre o espaço, o tempo e os atores da ação já estão previamente dadas, resta ao leitor a análise minuciosa de um enunciado que de simples só tem o parecer. Tem-se, aqui, novamente um poema construído em torno da / continuidade/ e da /descontinuidade/ de uma situação estanque ou de um estado inicial de repouso. O enunciador começa por formular um enunciado de estado que será subvertido em seguida: “shizukasa”, –179– Coleção Mestrado em Linguística variante de “shizukesa”, “calma”, “tranquilidade”, “quietude”, “paz”, “serenidade”, “silêncio”. O expletivo “ya” mais uma vez exerce o papel de conta-gotas sintático. O enunciador escreve: “shizukasa ya”, ou seja, “tudo se encontra em silenciosa harmonia!”. Nas sílabas seguintes, a mudança de estado: “iwa ni shimiiru” (“iwa”, rocha, rochedo, penhasco; “ni”, em, para; “shimiiru”, embeber, infiltrar, penetrar, encharcar), “penetra a pedra”. A /rigidez/ e a /imobilidade/ inerentes do rochedo atuam aqui como uma figurativização do silêncio, sorte de concreção da quietude. O que penetra a pedra é “semi no koe” (“koe”, voz, som, ruído; “semi”, cigarra), o sibilar, “o som da cigarra”, num corte preciso15. Com a introdução do lexema “semi”, um kigo, há também o surgimento da isotopia do verão, que, somada à visão das rochas, traz a ideia de /aridez/, de / imobilidade/ do ar. Inicialmente, presumiu-se uma estrutura elementar de significação que se articulasse entre a /continuidade/ e a /descontinuidade/. É essa a passagem que ocorre quando o silêncio absoluto é rompido pelo sibilar da cigarra. Entretanto, o som da cigarra (/descontinuidade/), dada a sua duração e intensidade (suficiente para “encharcar” as pedras), estabilizase como /continuidade/, qual a quietude que a sua altura potencializa. Se num primeiro momento, opõe-se o silêncio ao som, por meio de uma análise mais acurada, percebe-se a dependência modal do par silêncio versus som, no qual o silêncio modaliza o fazer da cigarra. Nos dois poemas analisados, da imobilidade da “velha lagoa” à quietude da montanha erma, o trabalho do enunciador haijin com a delicada subversão da ordem, com a experiência reveladora é constante. A análise semiótica nos ajuda a perceber o jogo figuraDevido à proposta inicial de ater-se ao conteúdo do haikai e não a sua expressão, eis uma observação que só teria lugar em uma nota de rodapé. O fonema “K” presente em “shizuKasa” (quietude), lexema que dá início ao poema, aparece também em “Koe” (voz, som), lexema que o inaliza. Embora a língua japonesa compreenda a “linha” KA como KA, KI, KU, KE, KO – e não como uma consoante e uma vogal separadamente, como estamos habituados – a reiteração desse fonema de mesma “linha” não pode ser descartada como elemento semissimbólico da construção do poema. Curiosamente, o lexema que designa o verbo “cortar”, em japonês, “kureru”, é iniciado por fonemas que também pertencem à “linha” KA, mais precisamente ao meio da linha (ka, ki, KU, ke, ko). Resta-nos a especulação duvidosa: no silêncio, a voz da cigarra partiu a pedra ao meio? 15 –180– Discurso e linguagens: objetos de análise e perspectivas teóricas tivo de alusões que o haikai instaura, em uma micronarrativa sem atores/actantes humanos explícitos, mas cuja análise do papel dos sujeitos da enunciação, mais especificamente, do sujeito enunciatário – ou, ainda, de um sujeito observador implícito no enunciado, sob o controle do qual está o ponto de vista – é fundamental para a compreensão do haikai, essa poesia que, estendendo as palavras de Makoto Ueda que serviram de epígrafe a este ensaio, solicita a imaginação do analista. RefeRênciAs BARTHES, R. L’empire des signes. Genève: Éditions d’Art Albert Skira, 1970. BASHO, M. Trilha estreita ao conim. Tradução de Kimi Takenaka e Alberto Maricano. São Paulo: Iluminuras, 1997. BLYTH, R. H. Haiku: Spring. Tokyo/ South San Francisco: Hokuseido/ Heian, v. 2, 1981. BLYTH, R. H. Haiku: Autumn-Winter. 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Matsuo Basho. 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E um respingo Makoto Ueda The old pond; The-sound-of-a-frog-jumping-into-the-water O velho tanque; O-som-de-um-sapo-pulando-dentro-d’água Reginald Horace Blyth (1982, p. 1008-9) Th’old pond – a frog jumps in. Klerplunk! Velho tanque – um sapo pula. Ploft! Allen Ginsberg (IDEM) A lonely pond in age-old stillness sleeps… Apart, unstirred by sound or motion… till Suddenly into it a lithe frog leaps. Um tanque isolado adormece em velhice imóvel... À parte, intocado por som ou movimento... até que De repente nele pula um sapo ágil. Curtis Hidden Page (BOWERS, 1996, p. 15) –189– Coleção Mestrado em Linguística Frog pond… Tanque-sapo A leaf falls in De uma folha, o mergulho Without a sound. Nenhum barulho. Bernard Lionel Einbond (IDEM) Ah, o velho tanque! E o ruído das rãs, atirando-se para a água... Um templo, um tanque musgoso; Mudez, apenas cortada Pelo ruído das rãs, Saltando à água. Mais nada... Wenceslau de Moraes (apud FRANCHETTI; DOI; DANTAS, 1999, p. 39)16 Moraes faz primeiro uma tradução “de apresentação” (em que o barulho não é da água, mas das rãs que nela se atiram) e depois uma versiicada, adaptada à quadra popular portuguesa. 16 –190–