discurso e linguagens:
OBJETOS DE ANÁLISE E PERSPECTIVAS TEÓRICAS
coleção Mestrado em linguística
Volume 6
discurso e linguagens:
OBJETOS DE ANÁLISE E PERSPECTIVAS TEÓRICAS
ORGANIZADORES
Maria Regina Momesso
Matheus Nogueira Schwartzmann
Vera Lucia Rodella Abriata
Fernando Aparecido Ferreira
Franca
2011
CATALOGAÇÃO NA FONTE
BIBLIOTECA CENTRAL DA UNIVERSIDADE DE FRANCA
COPYRIGHT © COLEÇÃO MESTRADO EM LINGUÍSTICA.
TODOS OS DIREITOS RESERVADOS
DISCURSO E LINGUAGES: OBJETOS DE ANÁLISE E PERSPECTIVAS TEÓRICAS
V. 6. 2011. ORGANIZADORES: MARIA REGINA MOMESSO, MATHEUS NOGUEIRA SCHWARTZMANN,
VERA LUCIA RODELLA ABRIATA, FERNANDO APARECIDO FERREIRA. FRANCA, SP :
UNIVERSIDADE DE FRANCA, 2011
210 P. (COLEÇÃO MESTRADO EM LINGUÍSTICA, 6)
ISBN: 978-85-60114-39-9
1. LINGUÍSTICA – ESTUDO E ENSINO. 2. PUBLICAÇÕES CIENTÍFICAS – PERIÓDICOS.
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sumário
apresentação ..................................................................... 9
aforização, enquadramento interpretativo
e configuração humanistas
Dominique Maingueneau .............................................................. 15
Práticas discursivas, de leitura e de escrita
aforísticas no TWITTER: uma forma
de construção do sujeito contemporâneo
Maria Regina Momesso ................................................................... 37
efeito de sentido humorístico e processo
evenemencial
Ana Cristina Carmelino .................................................................. 55
o lugar social e as condições de produção
do sujeito autor: machado de assis e
carolina maria de jesus
Glória Maria Palma .................................................................. 75
Mocinhos e bandidos reconfigurados:
formas de vida em desenhos animados
Naiá Sadi Câmara .................................................................... 97
leitura semiótica de uma cena de telenovela
Loredana Limoli, Ana Paula Ferreira Mendonça .......................... 111
estilos de vida em “o outro ou o outro”
de João guimarães rosa
Vera Lucia Rodella Abriata ..................................................... 129
Polindo as unhas:
Feminilidade como forma de vida
nas cartas de sá-carneiro
Matheus Nogueira Schwartzmann ............................................. 143
semiótica do HAIKAI
Jean Cristtus Portela ................................................................. 165
relatos de uma saga: Pioneiros
de Tangará da serra, MT
Tieko Yamaguchi Miyazaki, Walnice Aparecida Matos Vilalva ... 193
Semiótica do HAIKAI
Jean Cristtus Portela1
Qualquer poema exige uma parcela de participação
ativa por parte do leitor, mas isso é especialmente
verdadeiro no caso do haikai. Sem exagero pode-se
dizer que o poeta do haikai completa apenas uma
metade do seu poema, deixando a outra metade
para ser provida pela imaginação do leitor. (UEDA,
1978, p. 7).1
O emprego do lexema “Semiótica”, lembra-nos Greimas e Courtés (2008, p. 448-56), pode ser pensando segundo, pelo menos, três
acepções, que equivalem a níveis de apreensão do fazer semiótico sensivelmente diferentes: 1. “Semiótica-objeto”; 2. “Tipologia semiótica” e
3. “Teoria semiótica”. Na primeira acepção, está em jogo o córpus com
que trabalha o semioticista, o material “bruto” a que submetemos nossas
intuições antes de qualquer segmentação ou análise. Na segunda, “Semiótica” reporta-se a um estágio de maturação da semiótica-objeto, quando
esta, já confrontada com os princípios da Teoria Semiótica, encontra-se,
para usar as palavras do Dicionário, “em processo de constituição ou já
constituída”, o que faz dela um “projeto de descrição” ou um “objeto
construído”. Por fim, na terceira acepção, temos a Teoria Semiótica,
que por sua natureza descritiva, abstrata e generalizável – em termos
hjelmslevianos: coerente, exaustiva e simples –, apresenta-se como uma
metassemiótica científica, ou seja, um conjunto de procedimentos, de
1
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modelos de descrição, em suma, um sistema de representação que estabelece as relações de dependência e as regras de funcionamento de uma
semiótica-objeto.
Quando o semioticista se interessa por alguma semiótica-objeto –
em nosso caso, o haikai clássico2 –, seu primeiro passo é procurar colocar
em prática os princípios gerais de uma Teoria Semiótica – ainda em nosso
caso, a Semiótica de A. J. Greimas e seus colaboradores –, para então instaurar o processo chamado anteriormente de “projeto de descrição”, fase
em que a semiótica-objeto já figura como objeto semiótico construído,
pois segmentado e analisado, pronto a gerar uma “tipologia semiótica”.
É nessa relação entre “tipologia semiótica” e Teoria Semiótica que reside
a margem de ação do semioticista, que, longe de ser uma mera máquina
de analisar cegamente programada, deve fazer falar a semiótica-objeto
e explorar sua descrição a tal ponto, que dela se possa depreender princípios de funcionamento que venham se integrar à Teoria Semiótica.
Nesse sentido, na narrativa do sujeito semioticista, a Teoria Semiótica
pode desempenhar o papel ao mesmo tempo de sujeito-destinador e
sujeito-destinatário: os procedimentos que a teoria fornece ao analista
são os procedimentos que, depois do corpo a corpo com o córpus, vão
retornar ao seu domínio repropostos, modificados, enfim, aumentados
de poder heurístico.
É à luz dessa reflexão, que considera o projeto de descrição uma
Semiótica em devir, que propomos neste ensaio uma Semiótica que se
pretende ao mesmo tempo um “canteiro de obras” e um edifício construído segundo uma engenharia estrita, que, não obstante, permite-se
estender e reinventar permanentemente.
O haikai, velho conhecido dos círculos literários brasileiros desde
sua introdução no Brasil pelos imigrantes japoneses nas primeiras déEmbora os dicionários de Língua Portuguesa tragam o registro “haicai”, optamos neste estudo
por nos valermos do lexema “haikai”, em itálico, já que tratamos da poesia que remonta, no Japão,
ao Século 17, período em que o lexema “haikai” está ligado a uma série de manifestações de formas
poéticas ixas japonesas, como iremos demonstrar no decorrer deste trabalho. É essa também a
escolha de Franchetti, Doi e Dantas (1996).
2
–164–
Discurso e linguagens: objetos de análise e perspectivas teóricas
cadas do século XX, tem sido tratado como objeto de comunhão, de
fruição, e também de análises literárias acadêmicas de grande alcance
analítico (CHOCIAY, 1984; FRANCHETTI, 1994; FRANCHETTI;
DOI; DANTAS, 1996). No âmbito da Semiótica greimasiana, o tema
ainda não teve a atenção merecida, não ao menos de uma maneira mais
exaustiva, com exceção da pesquisa que realizamos há alguns anos sobre
o emprego dos preceitos formais do haikai clássico no ensino de poesia
(PORTELA, 2003); de que este ensaio, em certa medida, é uma versão
refundida e aumentada, e do estudo semiótico sobre os poemas haikai
de Paulo Leminski, de autoria de Olivia Yumi Nakaema (2011).
A proposta de análise aqui apresentada parte do princípio de que
para ler semioticamente o haikai clássico, do qual estamos distantes por
volta de 350 anos, é preciso restituir diacronicamente a sua evolução
formal na economia geral das formas poéticas fixas japonesas, sem perder
de vista as coerções da língua natural e seu modo de circulação; para só
então analisá-lo em sua imanência, priorizando, por motivos que esclareceremos mais adiante, seu plano de conteúdo. Assim, teremos ocasião
de demonstrar como a análise do haikai clássico, ainda que imanente,
depende da significação que atribuímos a figuras que atuam como
conectores de isotopia altamente cifrados, o que leva o analista a tomar
parte em um intrincado jogo de alusões, de referências, e procurar explorar os universos socioletal e idioletal que subjazem à produção do haikai.
A sugestão DA coisA-em-si
Seguramente a menor forma poética japonesa, o haikai é composto
de 17 sílabas poéticas3, com duas cesuras, uma após a quinta sílaba e
outra após a décima segunda. A presença de assonâncias e aliterações na
poesia do haikai fica por conta do uso de onomatopeias, jogos de palavras
e referências eruditas, descartando um esquema de rimas como o adotado em português, por exemplo, muito provavelmente devido à estrita
composição silábica consonantal do japonês (sempre uma consoante e
3
Em japonês, contam-se todas as sílabas de cada verso.
–165–
Coleção Mestrado em Linguística
uma vogal) e do reduzido espectro de vogais (apenas cinco, nessa ordem:
a, i, u, e, o), que restringem a combinatória de rimas.
Derivado de formas poéticas clássicas como o waka ou tanka (forma
poética de 5 versos com composição no esquema de 5-7-5-7-7 sílabas) e,
principalmente, do renga ou renku (“poema em série”, “poema encadeado”), o haikai mantém uma relação intrínseca com os princípios estéticos
japoneses, que, na visão de Keene (1988), podem ser assim condensados:
sugestão, irregularidade, simplicidade, perecibilidade.
O haikai clássico, como estabelecido por Matsuo Bashô (16441694), deve conter, obrigatoriamente, ao menos uma referência sazonal
(kigo, “palavra da estação”) fornecida por nomes de plantas, lugares,
animais, objetos, descrições climáticas etc. O grau de sofisticação e importância do kigo na poesia do haikai é tal, que é possível encontrar livros
e sites da internet com dicionários completos de kigo (GOGA; ODA,
1999; MABESOONE, 2012).
O haikai encontrou terreno fértil no ocidente no final do século
XIX, com a abertura política do Japão, que possibilitou trocas culturais
e, em vários sentidos, a imigração, meio pelo qual o haikai alcançou o
Brasil em 1908, no primeiro levante imigratório japonês que aportou
no país, embora, segundo Goga (1988, p. 9), “... 1916 (Trovas Populares
Brasileiras, Afrânio Peixoto) e 1926 (Relance da Alma Japonesa, Wenceslau de Moraes) devem ser considerados como os marcos iniciais de
sua difusão em português”.
Um de seus maiores estudiosos, Reginald Horace Blyth (18981969), organizador, tradutor e comentador da maior compilação de
haikai feita em uma língua ocidental a partir de um córpus original
japonês, expressa assim sua opinião acerca da poesia do haikai:
Em minha opinião, a Literatura Japonesa ascende
ou decai por conta do haiku, mas sua característica
única faz com que seja difícil avaliar a sua posição
na literatura mundial. Não é meramente a brevidade pela qual isola um grupo particular de fenôme–166–
Discurso e linguagens: objetos de análise e perspectivas teóricas
nos de todo o resto; nem seu poder de sugestão, por
meio da qual revela todo um mundo de experiência.
Não é apenas em seu uso notável da palavra da
estação, pela qual nos dá uma impressão de um
trimestre do ano; nem seu humor leve e penetrante.
Sua qualidade peculiar é sua natureza autoanuladora, autodestrutiva, pela qual nos permite, mais
do que qualquer forma de literatura, apreender a
coisa-em-si. (BLYTH, 1982, p. 980)4.
Entre tantas características (brevidade, sugestão, relação com a
natureza, humor), Blyth aponta como principal característica do haikai
a sua relação com a “coisa-em-si”. Sendo uma forma literária que, ainda
que se paute pelo rigor formal e temático, não aspira à literariedade declarada, à artificialidade retórica; o haikai independe dos adereços (ou
ao menos prega essa independência), ele é “autoanulador”, revelando o
mundo com descrição absoluta, uma estudada transparência, que Blyth
chama também de “autodestruição”, como se se quisesse dizer que o
haikai pede desculpas por significar, ou melhor, ele se ausenta, falta, para
poder significar (BARTHES, 1970).
HAIKAI, HOKKU, HAIKU
Não se pareçam comigo –
Não sejam como um melão
Cortado em duas metades iguais
Matsuo Bashô5
A partir do século XVII, o haikai é compreendido como um
gênero poético englobante, que extrapolou em larga medida os limites
dos três versos que lhe são próprios, podendo se desenvolver em poemas
encadeados (renga), em comentários em prosa que precedem os poemas
(haibun), em gravuras (haiga) e em diários poéticos que alternam poesia e
4
5
Todas as traduções para o português, salvo menção contrária, são de nossa autoria.
No original: ware ni nina/ futatsu ni wareshi/ makuwauri.
–167–
Coleção Mestrado em Linguística
prosa (nikki). Está à disposição do haijin (poeta do haikai) um completo
leque de tipos textuais verbais e verbovisuais, que nos mostra como o
haikai deixou de ser tão somente uma forma poética para tornar-se uma
verdadeira prática semiótica ou, ainda, uma forma de vida (FONTANILLE, 2008). A primeira estrofe (hokku) de um renga passa a ser,
progressivamente, mais valorizada, concentrando toda a força temática
e figurativa dos poemas que virão após ela. O hokku torna-se objeto de
fetiche literário, tomando a cena das intermináveis estrofes que o sucedem. Quando se traduz hokku por “estrofe inicial” ou “primeira estrofe”,
deve-se ter em mente que ele é, na verdade, a primeira estrofe do waka
inicial de um renga. O hokku é a cabeça do renga, são os primeiros 3 versos, que devem ser obrigatoriamente escritos em esquema de 5-7-5 sílabas.
Na composição de um renga, após o hokku, frequentemente, os haijin
faziam suceder mais de mil versos (em uma única reunião poética), mas
era a elaboração do hokku que trazia mais expectativa e responsabilidade.
O grande mestre de haikai no renga do século XVII – e fundador da
poesia do haikai como é conhecida hoje – é Matsuo Bashô (1644-1694).
Bashô também é considerado o mais sofisticado praticante de hokku e
quem filosofou mais sobre o tema. É dele o célebre poema (ver Anexo),
escrito em 1682 (BOWERS, 1996, p. 15):
furu ike ya
Lagoa antiga –
kawazu tobikomu
Salta o sapo
mizu no oto
Ruído d’água
Uma das máximas de Bashô que melhor ilustra sua relação com
a tradição poética japonesa é “Não siga os passos dos velhos poetas,
procure o que eles procuraram” (HASS, 1994, p. 233). É com esse
projeto, por assim dizer vanguardista, que Bashô inaugura uma maneira própria de praticar o renga, aumentando o valor e a densidade
do hokku e arrebanhando para si numerosos discípulos.
O mestre do haikai reprovava veementemente a simples imitação e
–168–
Discurso e linguagens: objetos de análise e perspectivas teóricas
incentivava a originalidade e a descoberta: “Bashô insistia que seu estilo
de poesia deveria ‘mudar a cada ano e apresentar-se fresco a cada mês’”,
comenta Keene (1987, p. 38). A poética de Bashô pregava a observação e a
integração máximas com o objeto poetizado. Ele acreditava que quando
alguém compunha um verso não deveria permitir que um fio de cabelo
separasse a mente daquilo sobre o que escrevia. O Sr. Bananeira – esse
é o significado de bashô, nome que ele adotou já adulto – acreditava na
pureza da imagem, no retrato fiel de um instante que só o haikai pode
eternizar. O mundo natural irradia e nossas mentes deveriam estar despertas para a percepção do instante do haikai: “Aprenda sobre pinheiros
com o pinheiro e sobre bambu com o bambu” é um dos seus preceitos
mais conhecidos.
O rigor que Bashô aplica ao haikai procede diretamente do Zen
Budismo japonês (SUZUKI, 1973, p. 215-67). Para ele – convertido
monge depois de uma vida desregrada (UEDA, 1989, p. 19-35) – o
haikai era um caminho para o satori (“a iluminação”), uma forma de
alcançar o autoconhecimento máximo.
Matsuo Bashô é considerado o primeiro dos Quatro Grandes Mestres do Haikai (HIGGINSON, 1989, p. 12). O segundo é Yosa Buson
(1716-1783), artista que admirava a pintura chinesa e a poesia de Bashô.
Quando morreu, Buson era conhecido basicamente como pintor, só anos
mais tarde seu legado poético foi descoberto. Hass (1994, p. 73) lembra
que as comparações entre os dois feitas pelos estudiosos são sempre contrastantes: “[...] Bashô, o poeta subjetivo, Buson, o poeta objetivo; Bashô,
o escritor asceta, Buson, o pintor mundano”.
De fato, Buson afastou-se consideravelmente da tradição de Bashô.
Ele não era um religioso recluso e austero, um peregrino como Bashô,
era um homem viajado, culto, farto em amores, o que não justifica
a sua negativa em compactuar com os princípios zen-budistas, mas,
ao menos, torna mais plausível essa recusa. A sua poesia é totalmente
plástica, radiante, esvaziada de reflexões morais ou religiosas. É a poesia
de um pintor:
–169–
Coleção Mestrado em Linguística
na no hana ya
A colza –
tsuki ha higashi ni
A lua ao leste
hi ha nishi ni
No oeste, o sol.
Yosa Buson, apesar das divergências com os ensinamentos de
Matsuo Bashô6, só fez enriquecer a tradição do haikai, dando-lhe um
caráter efetivamente autônomo do renga e da religião, aumentando a
dimensão plástica do haikai e inaugurando a “arte pela arte” entre os
haijin. A despeito de sua grande capacidade poética, a maior parte de sua
obra consiste em haiga e pinturas inspiradas na Arte Chinesa.
O terceiro grande mestre do haikai foi Kobayashi Issa (1763-1827),
um dos mais amados poetas japoneses. Segundo Keene (1987, p. 46),
Issa foi um poeta que dedicou sua energia exclusivamente ao hokku,
distante que estava da época de Bashô, na qual o haikai no renga era a
forma poética mais difundida. Em Issa, como em Buson, há um esforço
de autonomia da forma poética hokku, o que o faz empregá-la apenas em
nikki e haiga, nunca em renga. Issa era adepto da seita budista Terra Pura
(Jodô), o que, para seu comentadores, dá a seus poemas não o caráter
austero buscado pelo zen-budismo de Bashô, mas um ânimo de piedade
e compaixão com o sofrimento de todos os seres, característica marcante
dessa seita, bem próxima ao cristianismo. Seu hokku mais conhecido foi
composto, dizem, quando tinha apenas 6 anos de idade:
ware to kite
Venha, brinque comigo!
asobe ya oya no
Pardalzinho
nai suzume
Órfão.
A sentimentalidade exacerbada de Issa é uma das suas principais
características, podendo ser comparada, guardadas as devidas proporMesmo havendo divergências, Buson era um grande admirador de Bashô. Higginson (1994, p. 12)
chama atenção para o fato de Buson ter ilustrado inúmeros nikki do mestre Bashô.
6
–170–
Discurso e linguagens: objetos de análise e perspectivas teóricas
ções, à do compositor gaúcho Lupicínio Rodrigues (PORTELA, 2001,
p. 50). Depois de Issa, há um sensível declínio da tradição do haikai, cabendo ao quarto grande haijin, Masaoka Shiki (1867-1902), a renovação
de uma tradição que, a essa altura, já tinha quase 300 anos.
Segundo Hass (1994, p. 20), Shiki é o último dos grandes haijin do
passado e o primeiro entre os haijin modernos. Foi ele quem empregou
pela primeira vez o termo haiku7 (“verso de um haikai no renga”) para
designar o hokku. Por meio da adoção do termo haiku, Shiki conseguiu
desvencilhar o haikai de uma vez por todas da relação com o renga,
concluindo um processo que remonta a Buson e a Issa.
A subjetividade decadente de alguns imitadores tardios de Bashô
não agradava Shiki, que tinha como exemplo de objetividade e eficiência na linguagem, Yosa Buson. Shiki ansiava um haikai que fosse feito
em linguagem objetiva e que versasse sobre fatos cotidianos, acessíveis à
experiência, não sobre imaginações místicas afetadas.
Os poetas que sucederam Masaoka Shiki muito contribuíram para
a divulgação do haikai (haiku, como ficou conhecido no Japão, após
Shiki). Dentre tantos reformadores do haikai e fiéis defensores podem-se citar: o moderno Kawahigashi Hekigotô (1873-1937), o conservador
Takahama Kyoshi (1874-1959)8 e a pioneira Hashimoto Takako (18991963), primeira grande poeta do haikai9.
7
Sobre a introdução do termo haiku, cabem algumas considerações. No Brasil e na França, o hokku
icou conhecido como haikai (nome, na verdade, do gênero que subsume a prática do renga e do
hokku). Já os divulgadores de língua inglesa optaram pelo termo haiku, deixando haikai e hokku
para tratar de períodos especíicos da tradição ou, ainda, como fazem Keene (1987), Ueda (1989)
e Blyth, usando haiku nos casos em que ele designa “poema japonês de 17 sílabas”, sem distinção
de período histórico. René Siefert (apud FRANCHETTI; DOI; DANTAS (1996, p. 56)), por
exemplo, airma que o “velho mestre teria, sem dúvida alguma, condenado a prática designada por
esse termo [haiku]”. Endossando a visão de Siefert, Ueda (1989), no Prefácio de sua obra, diz que
“ele [Bashô] e seus contemporâneos usavam raramente a palavra haiku, mesmo quando, como se
viu nos diários de Bashô, a prática de tratar um hokku como poema independente era comum”.
8
Kyoshi foi mestre de Kenjiro Sato (1898-1979), conhecido como Nenpuku Sato, imigrante japonês
que veio para o Brasil em 1927 e que difundiu o haikai pelo interior do Estado de São Paulo e
Paraná. Cf. Maurício Arruda MENDONÇA, Trilha forrada de folhas - nenpuku sato - mestre de
haikai no Brasil.
9
Takako, aluna da poeta Sugita Hisajo, icou conhecida pelos seus poemas sempre muito pessoais
e delicados.
–171–
Coleção Mestrado em Linguística
o conteúDo Do HAIKAI
Quando o haikai é concebido com arte, há pouco
espaço na superfície, mas grande substância na
profundidade. Magnino (1952, p. 129)
Até o momento, procedemos a uma exposição essencialmente diacrônica acerca da poesia do haikai. A seguir, procuraremos ler o haikai à
luz da Semiótica, sem perder de vista as implicações de ordem socioletal
que sua leitura suscita.
Um haikai não deveria, segundo a tradição da qual ele provém,
ser objeto de interpretação, de compreensão racional e sistemática, no
sentido que a Filosofia ocidental deu a essas atividades. Como vimos,
para a tradição, o haikai deveria ser experimentado, vivido, sentido, pois
ele é a percepção de um acontecimento singular relatado por outro ser
humano, que almejou a expressão da singularidade desse acontecimento.
Assim, o alcance da percepção ideal do haikai não é matéria que dependa
da razão, mas, quase que exclusivamente, da sensação, da junção dos
sentidos. Um mestre de haikai diria, não obviamente com essas palavras, que alguém só entenderia um haikai quando conseguisse “pensá-lo
com os sentidos”. Tal afirmação, aparentemente contraditória em uma
sociedade que entranhou o “pensar” e o “sentir” como termos muitas
vezes opostos, pode ser compreendida com a ajuda de Fernando Pessoa:
“Ah, canta, canta sem razão!/ O que em mim sente ‘stá pensando”. Há
nesses versos um ensinamento capital: às vezes, é preciso pensar com os
sentidos, abandonar a razão, ainda que a pura sensação deva, em algum
estágio de sua percepção, virar pensamento.
Tanto do ponto de vista da sua produção e circulação quanto do
ponto de vista de sua análise, a maior parte dos estudiosos está de acordo
com o fato de o plano do conteúdo do haikai ser o plano de análise mais
relevante para sua compreensão, ainda que sua expressão visual (a caligrafia ou, ainda, a ilustração) e sonora (aliterações, assonâncias, ritmo
etc.) não sejam de modo algum dimensões de análise negligenciáveis.
–172–
Discurso e linguagens: objetos de análise e perspectivas teóricas
Por um simples recorte metodológico, com o objetivo de analisar
o plano de conteúdo da linguagem verbal, o haikai é tratado aqui tão
somente como uma semiótica verbal construída a partir da língua
natural japonesa. Essa escolha encontra objeções importantes quando a
enquadramos segundo correntes interpretativas como a preconizada por
Campos (1994, p. 62), via Ezra Pound e Ernest Fenollosa, que acreditam
ser fundamental para a leitura do haikai o exercício filológico e imagético
profundos, por meio do ir e vir constante entre o conteúdo do poema e
a iconicidade manifestada pela escrita ideogramática.
Optamos por nos alinhar às ideias de Franchetti (1996, p. 46-7),
que rejeita o preciosismo no estudo da escrita ideogramática e assim comenta a tradução de “furu ike ya” empreendida por Haroldo de Campos
(cf. item “b” do Anexo):
[...] ‘salt’tomba’ é evidentemente trabalhado, pouco
discreto, e desequilibra o poema ao concentrar sobre
si a atenção do leitor. Face à poética de Bashô, que
sempre demonstrou aversão à mera exibição técnica
em haikai [...] a utilização de uma ‘palavra-valise’ à
James Joyce parece completamente inadequada [...]
Um segundo problema na aproximação de Haroldo
de Campos ao haikai diz respeito à interpretação
do ideograma. [...] A imensa maioria das vezes [...]
o kanji não tem papel fundamental quanto o que
lhe empresta Haroldo de Campos: uma estrofe de
haikai tem aproximadamente o mesmo sentido
escrita em kanji ou hiragana – o kanji servindo
frequentemente para distinguir os homófonos, e o
hiragana servindo também frequentemente para
valorizá-los.
De fato, o haikai assimilado pelas vanguardas literárias esteve muito
ligado aos aspectos formais concernentes à língua japonesa. Muito foi
discutido sobre a sua metrificação e sua escrita, mas pouco sobre suas
dimensões discursiva, narrativa e fundamental, o que trataremos de
fazer a seguir.
–173–
Coleção Mestrado em Linguística
DA “lAgoA AntigA” Ao som DA quietuDe
Retomemos o célebre poema de Bashô (cf. traduções no Anexo10):
furu ike ya
Lagoa antiga –
kawazu tobikomu
Salta o sapo
mizu no oto
Ruído d’água
O poema inicia-se com um enunciado de estado – “furu”11 (antigo, velho, anterior) ∩ “ike” (tanque artificial, poço, lagoa) – que nos
oferece coordenadas espaciais e temporais. A “ike”, a lagoa, é o espaço
da transformação, o espaço tópico da narrativa, determinado pela /
imobilidade/ da água estanque, em permanente /regularidade/, /homogeneidade/, /continuidade/. “Ike”, nesse sentido, opor-se-ia a “rio”, no qual
a superfície revolta é marcada pela /descontinuidade/ dos movimentos
da oscilação da água.
“Furu” é o predicado que temporaliza e aspectualiza a cena de /fixidez/ de “ike”: a lagoa é anterior, data de outra época, e é na imobilidade
acabada que o processo se inicia. O tempo fez velha essa lagoa: o espaço
descrito é a sua imagem temporalizada.
O expletivo “ya”12, que se segue à instauração do percurso figurativo da “lagoa antiga”, pode ser traduzido, em português, por meio
da pontuação: tanto um ponto de exclamação, como um travessão,
No Anexo, apresentamos todas as versões consideradas necessárias para o estudo do poema.
Durante a análise, apenas algumas são citadas, mas todas merecem atenção, daí o propósito de
apresentar as versões de língua inglesa em tradução.
11
Para as análises, empregaram-se, principalmente, o Dicionário Japonês-Português (Porto Editora,
1998) e o New Concise Japanese-English Dictionary (Sanseido Press, 1975).
12
Na tradição do haikai, chama-se esse tipo de expletivo de “kireji”, “palavra de corte”, recurso que
serve como regulador da métrica e da montagem imagética do poema. Segundo Higginson (1989,
p. 291-2), os expletivos mais usados são “ka” (ênfase; no im da frase, serve para perguntar algo);
“kana” (ênfase; geralmente no im do poema, indica surpresa diante do acontecimento); “-keri”
(suixo verbal, passado, exclamação); “-ramu” ou “-ran” (suixo verbal, probabilidade); “-shi” (suixo
adjetivo usado para concluir uma sentença); “-tsu” (suixo verbal, presente) e “ya”, (suspensão, elipse).
10
–174–
Discurso e linguagens: objetos de análise e perspectivas teóricas
como dois-pontos transmitem eficientemente seu significado. É como
se houvesse um corte abrupto na cena e a seguir viesse seu desenrolar.
No segundo momento do poema (da sexta à décima segunda sílaba)
há a introdução de um ator: “kawazu” (rã, sapo, sinônimo pouco usado
de “kaeru”). Eis uma figura perfeitamente cabível no percurso figurativo
da “lagoa antiga”: um anfíbio que “tobikomu” (voa para dentro, entra
subitamente, salta). Nada mais natural. O sujeito reflexivo “kawazu”
efetua sua performance (“tobikomu”) e, ao realizá-la, ocasiona uma
transformação no sujeito de estado “ furu ike”: as águas anteriormente
paradas saem de sua imobilidade. Pode-se situar o “sapo” como destinador circunstancial da /descontinuidade/, da desordem na superfície da
água, e a “lagoa antiga” como a destinatária desse cismo.
O enunciador prossegue (décima terceira à décima sétima sílaba)
descrevendo as consequências do salto do sapo na lagoa antiga: “mizu no
oto”. “Mizu” é “água”, “no” é “de”, partícula posposta que indica posse
ou relação adjetiva; “oto” é “som”, “barulho”, “ruído”, assim, obtém-se
“ruído d’água”, uma espécie de respingo sonoro.
Não se pode deixar de notar que o haikai, em japonês, é frequentemente escrito em uma única linha13, daí a dificuldade em chamar
“verso” cada uma das três sequências silábicas do haikai. O haikai
é, a rigor, um verso com duas cesuras, uma após a quinta sílaba e outra
após a décima segunda, o que impede de promovê-lo a estrofe, mesmo
levando em conta a sua tradução em tercetos, tradicional no Ocidente.
Uma apresentação linear do poema de Bashô poderia ser assim descrita:
fu-ru i-ke ya ka-wa-zu to-bi-ko-mu mi-zu no o-to
12345
6 7 8 9 10 11 12
13 14 15 16 17
Desse modo, entende-se melhor o uso da palavra de corte “ya”, mas
O poema “ furu ike ya”, apresentado em escrita cursiva no item “a” no Anexo, foi escrito em 3
“versos” e não numa única linha, o que também é frequente.
13
–175–
Coleção Mestrado em Linguística
a leitura do poema, a partir da sexta sílaba, ganha uma pequena variação. Ao invés de se ler, como na explanação acima, “kawazu tobikomu”
(“salta o sapo”) e, em seguida, “mizu no oto” (“ruído d’água”), pode-se
pensar numa leitura aglutinadora, bem ao espírito do idioma japonês:
“kawazu tobikomu mizu no oto” (“ruído de água na qual o sapo salta”,
“som de sapo saltando na água” etc.). É essa a leitura que faz Blyth (1982,
p. 1009), em fiel tradução:
The old pond;
The-sound-of-a-frog-jumping-into-the-water
O velho tanque;
O-som-de-um-sapo-pulando-dentro-d’água
Essa tradução é um exemplo de como se pode verter o haikai através
da reificação, da “substantivação” de algumas partes de seu enunciado.
É uma tradução que também reflete a generalidade e ambiguidade do
idioma japonês, recursos que são a marca registrada no haikai.
Independentemente da leitura ou tradução escolhidas para o poema, é preciso observar mais atentamente o uso da imagem “mizu no oto”,
pois, certamente, seu emprego não é gratuito, já que, como consequência
do salto do sapo, o enunciador poderia ter descrito o oscilar das águas da
lagoa, o odor desprendido pela água etc.
Nesse momento da análise, é preciso remeter-se ao universo socioletal da literatura japonesa para uma leitura eficaz do poema de Bashô,
que o subverte idioletamente. Conforme esclarece Keene (1987, p. 39),
na tradição clássica da poesia japonesa, o “sapo” foi um motivo muito
empregado, geralmente como o “sapo cantante”, o “sapo chorão”, cujo
coaxar é para os japoneses um canto agradável, eufônico, muito próximo
ao de alguns pássaros. O enunciador Bashô foi um homem inventivo e
completamente consciente da revolução que instaurou na poesia japonesa. Ele pretendia, acredita-se, renovar o emprego do motivo “sapo” e
–176–
Discurso e linguagens: objetos de análise e perspectivas teóricas
tal renovação só aconteceria se ele calasse o sapo cantor da velha poesia.
Mas a situação é mais especial do que parece: o sapo não é totalmente
mudo, ele pode produzir som, mas, desta vez, com o próprio corpo, o
corpo todo. O enunciador rompe a isotopia fácil da /eufonia/ e constrói a
estranheza cacofônica do barulho da água, como traduz brilhantemente
Allen Ginsberg:
Th’old pond – a frog jumps in. Klerplunk!
Velho tanque – um sapo pula. Ploft!
ou de um “rumor de água”, como prefere o indiscretamente letrado (para os propósitos do haikai) Haroldo de Campos. A cena não
poderia ser mais cômica e incomum – um sapo que se joga na água,
em silêncio – o que fez desse poema o grande manifesto estético da
nova poesia, vulgar, radical, o haikai.
Ainda quanto ao universo socioletal, outra isotopia que pode surgir
numa leitura desse poema que se pretenda realmente elucidativa, é a
isotopia da /religiosidade/, da /espiritualidade/, ou melhor, da /iluminação/. Bashô colocou sua poesia a serviço do Zen Budismo, promovendo
a escrita à técnica para o alcance do satori, a iluminação espiritual. Em
inúmeros koan (absurdas anedotas Zen propostas a um aprendiz) há
referência ao percurso narrativo que consiste em um mestre, quando
perguntado sobre o nada ou o Zen ou a natureza de Buda, derrubar o
aprendiz, com as próprias mãos, com um remo ou varinha, dentro da
água. Com base nessa informação, como negar que o sapo, nesse poema,
possa representar o aprendiz precipitado na água ou o sinete que tiraria
o aprendiz do sono profundo dos que não encontraram a iluminação?
No poema analisado, há, no nível profundo, a passagem da /
continuidade/ à /descontinuidade/ ou da /quietude/ à /inquietude/ ou,
ainda, a passagem da /tradição/ à /modernidade/ (subversão do motivo
“sapo”) e da /ignorância/ à /iluminação/ (relação com o koan), temas
sempre presentes na tradição do haikai.
–177–
Coleção Mestrado em Linguística
Juntamente com as isotopias da /modernidade/ e da /espiritualidade/, creditadas ao estudo da projeção socioletal do poema, pode-se
acrescer a isotopia /primaveril/, aparente no emprego do lexema “kawazu” (sapo), que é um kigo (palavra da estação)14 de primavera. À época
de Bashô, para um apreciador de haikai, esse era um dado a priori,
pois não era possível pensar num haikai (um hokku, para ser mais
preciso) sem kigo. A importância da referência sazonal na literatura
japonesa data de suas origens, assim como no haikai, que extrai da
contemplação da natureza o seu principal tema (FUKUDA, 1995, p.
35-43). O número de motivos sazonais é grande e o critério principal
para o seu emprego é a sutileza, já que um bom haikai deve informar
a estação em que está situado sem fazer referência direta à mesma.
Alguns motivos que designam estados climáticos, como “harusame”
(chuva de primavera) ou “aki no kaze” (vento de outono), são abundantemente encontrados, apesar de sua composição óbvia, pois, de
tão empregados, são compreendidos como sintagmas lexicais que,
aglutinados pelo uso, tornaram-se lexemas autônomos.
Era um princípio de Bashô fazer poemas que descrevessem estados
naturais e de cunho aparentemente não metafórico. Seus poemas almejam ser “coisas”, fusão precisa do mundo natural e da língua natural,
criações nas quais o sentido fosse apreendido imediatamente, não a
preço de sucessivas investigações e leituras. Obviamente, a erudição de
Bashô e seu fino bom-humor emergiam, vez ou outra, como rompantes
metafóricos consideráveis (o intertexto com o motivo “sapo” e com o
koan, por exemplo).
Passemos, agora, à análise de um outro conhecido poema de Bashô,
encontrado em seu nikki (diário poético) mais popular, Oku no Hosomichi (Trilha Estreita ao Confim).
Antes de determo-nos nas descrições dos lexemas empregados no
texto, cabe alertar que esse poema representa um caso muito comum na
14
Segundo a tradição clássica, um haikai sem kigo não pode ser considerado um haikai no sentido
estrito do termo. Costuma-se chamar um haikai sem kigo de senryū, quando este é de tom crítico
ou satírico.
–178–
Discurso e linguagens: objetos de análise e perspectivas teóricas
tradição do haikai, pois é um poema acompanhado por um comentário
em prosa (haibun), que o antecede. O haibun, a “ frase do haikai”, é,
muitas vezes, um recurso importantíssimo na compreensão do haikai.
Ele serve como uma pequena introdução ao poema e tem um caráter
essencialmente referencial, embora escrito em prosa poética. Nele,
encontramos uma série de topônimos, cronônimos, e antropônimos,
recursos de ancoragem histórica que produzem um efeito de sentido de
“realidade”, à medida que referenciam o poema, tornando-o parte de
um enunciado maior, ao qual ele está subsumido.
No haibun que acompanha o poema, há o relato da história da
fundação do templo Ryushaku, localizado na província de Yamagata. O
poeta está no alto da montanha na qual se encontra o templo. Eis o final
desse haibun, como aparece em Bashô (1997, p. 51): “As rochas coloridas
pela eternidade eram pontilhadas pelas tapeçarias de verdes musgos. Os
portais do templo, embutido nas rochas, barravam todos os ruídos e, em
seus interiores o silêncio abissal, mudo, reverberava”. Abaixo dessa prosa
poética o poema é apresentado:
shizukasa ya
Quanta quietude!
iwa ni shimiiru
O som da cigarra
semi no koe
Penetra a pedra
A relação intertextual mantida entre o haibun e o haikai que o
acompanha impede que se formulem hipóteses impertinentes para os
semióticos mais centrados no enunciado. Pelo próprio caráter discursivo
do texto (um diário), todas as informações sobre o espaço, o tempo e os
atores da ação já estão previamente dadas, resta ao leitor a análise minuciosa de um enunciado que de simples só tem o parecer.
Tem-se, aqui, novamente um poema construído em torno da /
continuidade/ e da /descontinuidade/ de uma situação estanque ou
de um estado inicial de repouso. O enunciador começa por formular
um enunciado de estado que será subvertido em seguida: “shizukasa”,
–179–
Coleção Mestrado em Linguística
variante de “shizukesa”, “calma”, “tranquilidade”, “quietude”, “paz”, “serenidade”, “silêncio”. O expletivo “ya” mais uma vez exerce o papel de
conta-gotas sintático. O enunciador escreve: “shizukasa ya”, ou seja, “tudo
se encontra em silenciosa harmonia!”. Nas sílabas seguintes, a mudança
de estado: “iwa ni shimiiru” (“iwa”, rocha, rochedo, penhasco; “ni”,
em, para; “shimiiru”, embeber, infiltrar, penetrar, encharcar), “penetra
a pedra”. A /rigidez/ e a /imobilidade/ inerentes do rochedo atuam aqui
como uma figurativização do silêncio, sorte de concreção da quietude.
O que penetra a pedra é “semi no koe” (“koe”, voz, som, ruído; “semi”,
cigarra), o sibilar, “o som da cigarra”, num corte preciso15. Com a introdução do lexema “semi”, um kigo, há também o surgimento da isotopia
do verão, que, somada à visão das rochas, traz a ideia de /aridez/, de /
imobilidade/ do ar.
Inicialmente, presumiu-se uma estrutura elementar de significação
que se articulasse entre a /continuidade/ e a /descontinuidade/. É essa a
passagem que ocorre quando o silêncio absoluto é rompido pelo sibilar
da cigarra. Entretanto, o som da cigarra (/descontinuidade/), dada a sua
duração e intensidade (suficiente para “encharcar” as pedras), estabilizase como /continuidade/, qual a quietude que a sua altura potencializa.
Se num primeiro momento, opõe-se o silêncio ao som, por meio de uma
análise mais acurada, percebe-se a dependência modal do par silêncio
versus som, no qual o silêncio modaliza o fazer da cigarra.
Nos dois poemas analisados, da imobilidade da “velha lagoa”
à quietude da montanha erma, o trabalho do enunciador haijin com
a delicada subversão da ordem, com a experiência reveladora é
constante. A análise semiótica nos ajuda a perceber o jogo figuraDevido à proposta inicial de ater-se ao conteúdo do haikai e não a sua expressão, eis uma observação que só teria lugar em uma nota de rodapé. O fonema “K” presente em “shizuKasa” (quietude),
lexema que dá início ao poema, aparece também em “Koe” (voz, som), lexema que o inaliza. Embora a língua japonesa compreenda a “linha” KA como KA, KI, KU, KE, KO – e não como uma
consoante e uma vogal separadamente, como estamos habituados – a reiteração desse fonema de
mesma “linha” não pode ser descartada como elemento semissimbólico da construção do poema.
Curiosamente, o lexema que designa o verbo “cortar”, em japonês, “kureru”, é iniciado por fonemas
que também pertencem à “linha” KA, mais precisamente ao meio da linha (ka, ki, KU, ke, ko).
Resta-nos a especulação duvidosa: no silêncio, a voz da cigarra partiu a pedra ao meio?
15
–180–
Discurso e linguagens: objetos de análise e perspectivas teóricas
tivo de alusões que o haikai instaura, em uma micronarrativa sem
atores/actantes humanos explícitos, mas cuja análise do papel dos
sujeitos da enunciação, mais especificamente, do sujeito enunciatário – ou, ainda, de um sujeito observador implícito no enunciado,
sob o controle do qual está o ponto de vista – é fundamental para
a compreensão do haikai, essa poesia que, estendendo as palavras
de Makoto Ueda que serviram de epígrafe a este ensaio, solicita a
imaginação do analista.
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–184–
Discurso e linguagens: objetos de análise e perspectivas teóricas
Anexo – TrAduções de “Furu ike yA”, de MA
Tsuo BAshô.
a) Poema de Matsuo Bashô, “furu ike ya”, em escrita cursiva
(CAMPOS, 1995, p. 25):
–185–
Coleção Mestrado em Linguística
b) Operação tradutória de Haroldo de Campos (CAMPOS,
1975, p. 62):
–186–
Discurso e linguagens: objetos de análise e perspectivas teóricas
c) Tradução de Paulo Franchetti e Elza Taeko Doi (FRANCHETTI; DOI; DANTAS, 1996, p. 89):
d) Tradução de Décio Pignatari (CAMPOS, 1995, p. 24):
–187–
Coleção Mestrado em Linguística
e) Tradução intersemiótica de Júlio Plaza (CAMPOS, 1995, p.
23):
f) Seleção de traduções de autores diversos
The ancient pond
O tanque antigo
A frog leaps in
Um sapo pula
The sound of the water
O som da água
Donald Keene
velha lagoa
o sapo
salta
o som da água
Paulo Leminski (1983, p. 20)
–188–
Discurso e linguagens: objetos de análise e perspectivas teóricas
The old pond –
O tanque velho –
A frog leaps in,
Um sapo pula,
And a splash.
E um respingo
Makoto Ueda
The old pond;
The-sound-of-a-frog-jumping-into-the-water
O velho tanque;
O-som-de-um-sapo-pulando-dentro-d’água
Reginald Horace Blyth (1982, p. 1008-9)
Th’old pond – a frog jumps in. Klerplunk!
Velho tanque – um sapo pula. Ploft!
Allen Ginsberg (IDEM)
A lonely pond in age-old stillness sleeps…
Apart, unstirred by sound or motion… till
Suddenly into it a lithe frog leaps.
Um tanque isolado adormece em velhice imóvel...
À parte, intocado por som ou movimento... até que
De repente nele pula um sapo ágil.
Curtis Hidden Page (BOWERS, 1996, p. 15)
–189–
Coleção Mestrado em Linguística
Frog pond…
Tanque-sapo
A leaf falls in
De uma folha, o mergulho
Without a sound.
Nenhum barulho.
Bernard Lionel Einbond (IDEM)
Ah, o velho tanque! E o ruído das rãs,
atirando-se para a água...
Um templo, um tanque musgoso;
Mudez, apenas cortada
Pelo ruído das rãs,
Saltando à água. Mais nada...
Wenceslau de Moraes
(apud FRANCHETTI; DOI; DANTAS, 1999, p. 39)16
Moraes faz primeiro uma tradução “de apresentação” (em que o barulho não é da água, mas das
rãs que nela se atiram) e depois uma versiicada, adaptada à quadra popular portuguesa.
16
–190–