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Crime organizado e crime comum

2011, Sociologia e Política

Artigo baseado em conferencia realizada no Woodrow Wilson Center, em Washington, publicado em Sociologia e Política.

REVISTA DE SOCIOLOGIA E POLÍTICA V. 19, Nº 40: 103-114 OUT. 2011 DOSSIÊ “CRIME, SEGURANÇA E INSTITUIÇÕES ESTATAIS: PROBLEMAS E PERSPECTIVAS CRIME ORGANIZADO E CRIME COMUM NO RIO DE JANEIRO: DIFERENÇAS E AFINIDADES Michel Misse RESUMO O artigo trata das relações entre “crime organizado” e “crime comum” no Rio de Janeiro. Seu objetivo é definir as condições para responder a questões como quanto o crime organizado explica as lógicas do crime comum ou se estamos subestimando ou superestimando essa relação entre um e outro. A análise foca três atividades criminais violentas organizadas: (i) o “jogo do bicho”; (ii) os “comandos” que controlam e disputam territórios de venda a varejo de drogas e outras mercadorias ilícitas; (iii) as “milícias”, que disputam com os “comandos” o controle desses territórios, com vistas a impor a venda de proteção aos seus moradores. Concluímos defendendo que o modelo das milícias, como também ocorreu com o jogo do bicho e com o tráfico de drogas, todos surgidos no Rio de Janeiro, vem sendo adotado em cidades de outros estados brasileiros, nacionalizando formas de organizações criminosas que têm no recurso à violência uma de suas principais características. A dinâmica de funcionamento dessas organizações depende, primordialmente, de sua constituição como mercados ilegais, em que cada mercadoria explorada – jogo, drogas, armas e proteção – possuem diferentes propriedades como capital. A dinâmica social, a atuação e a violência associados a cada uma dessas atividades, por sua vez, estão ligados a essas propriedades. PALAVRAS-CHAVE: crime organizado; crime comum; milícias; jogo do bicho; Rio de Janeiro. I. INTRODUÇÃO1 O objetivo deste trabalho é tratar das relações entre o “crime organizado” e o “crime comum” no Rio de Janeiro, buscando definir as condições para responder as questões de como o quanto o crime organizado explica as lógicas do crime comum e se estamos subestimando ou superestimando essa relação entre um e outro. Uma primeira aproximação ao problema da violência urbana no Brasil é necessária para contextualizar melhor o que iremos tratar em seguida. Em todo o Brasil, entre 1980 e 2007, o número de pessoas assassinadas alcança aproximadamente um milhão de indivíduos2. São números de guerra, 1 Este trabalho foi apresentado no seminário internacional “Common Crime and Organized Crime in Latin American Cities: Commonalities and Differences”, Woodrow Wilson International Center for Scholars, Washington, (DC), em 19 de maio de 2010. Foi publicado, em parte, em Problèmes d’Amerique Latine, Paris, n. 76. Aqui publicamos o original completo. 2 Dados oficiais do Ministério da Saúde, que divulga Recebido em 18 de maio de 2010. Aprovado em 18 de junho de 2010. embora não haja nenhuma. As taxas de homicídio aumentaram de maneira continuada, inicialmente, no Rio de Janeiro. Passaram de dez por 100 mil na década de 1950 para 25 por 100 mil na década de 1970 e alcançaram 50 por 100 mil nos anos 1980. Entre 1980 e 2007, cerca de 200 mil pessoas foram assassinadas apenas no estado do Rio de Janeiro. O aumento dos homicídios permaneceu forte por mais de uma década no Rio de Janeiro, São Paulo e Belo Horizonte, mas apresenta sinais de queda nos últimos anos, principalmente em São Paulo. Não há consenso sobre o que explica o forte aumento continuado e a queda recente nas três metrópoles. Embora o número de prisões e de mortes de suspeitos pela polícia tenha aumentado muito na última década, a capacidade de esclarecimento desses homicídios e a punição de seus autores pelo sistema de justiça criminal anualmente as estatísticas de mortalidade com base no Código Internacional de Doenças (CID-10). Essas estatísticas são baseadas nas declarações oficiais de óbito, assinadas por médicos, documento exigido para o sepultamento em cemitérios brasileiros. Rev. Sociol. Polít., Curitiba, v. 19, n. 40, p. 103-114, out. 2011 103 CRIME ORGANIZADO E CRIME COMUM NO RIO DE JANEIRO brasileiro é muito baixa. Pesquisas indicam que não passam de 15% os homicídios esclarecidos pela polícia no Rio de Janeiro, cujos supostos autores podem vir a ser denunciados à Justiça. A esmagadora maioria dos homicídios permanece não elucidada, contribuindo para que novos homicídios ocorram pela impunidade de seus autores. A conta é clara: um assassino no Rio de Janeiro tem 85% de chance de não ser descoberto pela polícia. Embora a baixa elucidação dificulte saber as circunstâncias desses homicídios, há consenso entre os especialistas de que parte significativa desse aumento relaciona-se ao tráfico de drogas a varejo em favelas e outras áreas urbanas de baixa renda. O que aconteceu no Rio de Janeiro a partir dos anos 1980 produziu um padrão de violência urbana que se alastrou para grande parte das cidades brasileiras a partir dos anos 1990 (Tabela 1). TABELA 1 – HOMICÍDIOS INTENCIONAIS NO BRASIL E PRINCIPAIS REGIÕES METROPOLITANAS EM NÚMEROS ABSOLUTOS 1990-1992 1993-1995 1996-1998 1999-2001 2002-2004 2005-2007 Rio de Janeiro 11 689 13 863 17 623 16 326 17 568 14 934 São Paulo 19 797 22 620 28 539 32 606 25 687 14 086 Belo Horizonte 1 285 1 471 2 184 3 503 6 708 6 774 Porto Alegre 2 336 1 942 2 482 2 784 3 270 3 602 Recife 4 007 3 854 5 798 7 298 7 220 7 486 Vitória 1 468 2 217 3 082 3 212 3 592 3 665 Fortaleza 1 081 1 495 1 687 2 075 2 536 3 207 Salvador n. d. 2 459 2 356 1 115 2 484 4 433 Curitiba 915 1 168 1 617 2 022 2 928 3 902 Belém 1 050 909 1 054 884 1 476 2 271 Brasil 91 174 100 342 121 351 136 217 149 112 144 430 FONTE: Ministério da Justiça (2011). Ainda no Rio de Janeiro, a taxa de roubos com violência ou sua ameaça, registrada pela polícia, passou de 263 por 100 mil habitantes em 1980 para 830 por 100 mil habitantes em 2009. No entanto, é alta a subnotificação e a mais recente pesquisa de vitimização realizada em 2007 na Região Metropolitana do Rio de Janeiro constatou que nos cinco anos anteriores à pesquisa (20022006) cerca de 25% da população da região foi vítima de ao menos um roubo3 (de veículo, de casa e de outros bens) e no ano anterior à pesquisa, 7,3% da população foi vítima de roubo, com uma incidência de algo como 1 milhão 850 mil roubos praticados em um ano sobre cerca de um milhão de residentes na região metropolitana 3 Na legislação brasileira, “roubo” é a expropriação de bens alheios com uso de violência ou sua ameaça (assalto a mão armada), distinguindo-se do “furto”, que expropria com astúcia mas sem armas. 104 da segunda cidade mais populosa do país. No entanto, apenas cerca de 30% das vítimas registraram as ocorrências nas delegacias policiais. Os demais alegam que não acreditam que a polícia possa resolver o caso e punir os culpados e que não vale a pena, portanto, perder tempo em registrar queixas. As pesquisas mostram que eles não estão totalmente errados: menos de 2% dos roubos praticados no Rio de Janeiro transformam-se anualmente em inquéritos policiais com suspeitos e provas suficientes para que o Ministério Público os denuncie à Justiça (MISSE, 2009). Não é possível desconectar o volume de crimes violentos, que aumentou consideravelmente a partir dos anos 1980, das características e da extensão dos mercados ilegais urbanos no Brasil, embora variadas circunstâncias mesclem-se nos dados, desde os crimes passionais até os acertos de conta próprios às atividades criminosas. Nada sabemos, entretanto, sobre quais percentuais REVISTA DE SOCIOLOGIA E POLÍTICA V. 19, Nº 40: 103-114 OUT. 2011 desses crimes ocorrem por iniciativa individual ou de pequenos grupos e qual a participação das organizações criminosas em sua consecução. A variedade e extensão das organizações criminosas no Brasil não nos permitem, neste artigo, uma exposição abrangente de suas características e modos de atuação. Essa variedade inclui um amplo leque de formas de corrupção nas relações entre empresas privadas e governos nas licitações de obras públicas, na oferta de serviços públicos, no financiamento de campanhas eleitorais e de partidos políticos e nas diferentes formas de extorsões e propinas cotidianas controladas por redes de agentes públicos em diferentes esferas do cotidiano. Não poderemos tratá-las aqui, como também não faremos referência ao contrabando de armas, ao tráfico de mulheres, crianças e de órgãos, pirataria de softwares, compact disks e DVDs. São muitos os mercados ilícitos que aproveitam a livre circulação financeira entre países sem uma regulamentação que controle a movimentação especulativa de capitais e a lavagem de dinheiro nas atividades ilegais. Deixarei de lado a intricada questão do que seja “crime organizado” e suas diferenças para quadrilhas que operam grande parte dos crimes comuns contra a propriedade. Deixarei de lado, também, os crimes passionais, pois embora possam contar com recursos retirados do crime organizado não se resumem a ele e não podem ser explicados apenas por ele. Tratarei rotineiramente do que o senso comum e a imprensa, no Rio de Janeiro, chamam de “crime organizado”. Dentre eles, selecionarei apenas aquelas organizações, redes ou grupos que incorporam a violência como recurso regular de suas ações. Com isso, deixo de lado também o tradicional “jogo do bicho”, cuja organização atual impede os sucessivos conflitos que marcaram a atividade entre os anos 1950 e 1980. Atualmente, apenas uma família disputa violentamente o controle de distribuição de máquinas caça-níqueis no Rio de Janeiro, mas o conflito não extravasa para além dos próprios atores envolvidos na disputa. De qualquer modo, apresentarei em linhas gerais suas características, dada a sua relevância para a compreensão do crime organizado no Rio de Janeiro. Restam quatro atividades criminais violentas organizadas: os “comandos”, que controlam e disputam territórios de venda a varejo de drogas e outras mercadorias ilícitas; as “milícias”, que disputam com os “comandos” o controle desses territórios, com vistas a impor a venda de proteção aos seus moradores; as quadrilhas de roubo de carga e de roubo de carros; as redes de pistolagem, vigilância clandestina, tráfico de armas, extermínio – operadas geralmente sob proteção de policiais da ativa. Dessas, sabemos muito pouco sobre as quadrilhas de roubo de carga e sobre as redes de pistolagem urbana (sicários, que trabalham com motos), bem como sobre o tráfico de armas. Sabemos um pouco mais sobre roubos de carro, empresas clandestinas de vigilância privada e grupos de extermínio, mas não o suficiente para estabelecer relações com o crime comum. Resta finalmente o que conhecemos melhor no Rio de Janeiro: o “jogo do bicho”, os “comandos” e as “milícias”. II. O “JOGO DO BICHO” Até 1980, o jogo do bicho foi a atividade criminosa que mais aproximou-se de uma organização de tipo mafioso no Brasil. Ele existe desde o final do século XIX no Rio de Janeiro e sempre foi clandestino, mesmo quando os cassinos e casas de jogos eram legais, mas não constitui um crime no Código Penal brasileiro. É uma contravenção penal, para a qual as penas são mais leves. Começou como uma forma legal de arrecadação de dinheiro para o Jardim Zoológico e transformou-se, entre 1920 e 1950, no principal foco de violência no Rio de Janeiro, envolvendo disputas por territórios entre os “banqueiros” que dividiam a antiga capital federal entre si. O apostador escolhe entre 25 animais, cada um dos quais tem um grupo de números correspondente (unidade, dezena, centena e milhar). As apostas são feitas em um “ponto” (uma esquina, uma banca de jornais, uma pequena mesa na calçada etc) onde há uma “banca”4 . São milhares os “pontos” do jogo do bicho espalhados pela cidade. Aí também são divulgados os resultados. É famosa a expressão: “vale o que está escrito”, para reforçar a seriedade e confiança envolvida nas apostas e no pagamento do prêmio. Quem garante o prêmio é o “banqueiro”, também conhe- 4 Para uma etnografia de um ponto do jogo do bicho na década de 1970, ver Luis Antônio Machado da Silva e Ademir Figueiredo (1978). 105 CRIME ORGANIZADO E CRIME COMUM NO RIO DE JANEIRO cido pela alcunha (pejorativa) de “bicheiro”. O mesmo termo é também empregado indiferentemente a gerentes e outros membros da organização. A estrutura básica tem no topo o “banqueiro” (sempre vinculado a seus irmãos e filhos adultos), cercados de guarda-costas, contadores e advogados. Abaixo vêm os gerentes dos pontos de jogo, distribuídos por região ou bairro. Eles contam com esquemas de segurança que podem ser mobilizados para defender os pontos. E, na parte mais baixa da hierarquia, os “apontadores”, aqueles que entram em contato face a face com os apostadores e que anotam o jogo em um talonário. Havia, no passado, bicheiros menos ricos do que atualmente (cujo território, por exemplo, era uma favela), e que precisavam recorrer a um bicheiro mais rico para cobrir apostas muito altas de ganhadores. A isso se chama “descarga” e permite que todas as apostas sejam cobertas e pagas aos ganhadores. Cada sorteio passou a ser acompanhado por fiscais de vários banqueiros, seguindo-se a unificação do sorteio, cujos resultados passaram a ser válidos para todos os banqueiros (e não só no Rio de Janeiro, mas também em alguns outros estados). Essa loteria é conhecida até hoje com o nome de “Paratodos”. Assim, por todas essas precauções, o jogo do bicho, embora clandestino, é representado por populares e apostadores como uma loteria de reconhecida honestidade . O território do bicheiro é geralmente onde ele mora (um ou mais bairros, uma cidade e mesmo um município). A relação dos bicheiros com a população de seu território tem as características do que no mundo rural brasileiro chamou-se “mandonismo local”. Vários deles mantinham relações de clientelismo com os moradores de sua área e tornaram-se financiadores e presidentes de “escolas de samba” e de clubes de futebol no Rio de Janeiro. Quase todas as escolas de samba tinham o seu bicheiro e os seus nomes são conhecidos de todos que produzem o carnaval popular no Rio de Janeiro: tornou-se legendário, por exemplo, Natal da Portela, que participou da fundação de uma das mais tradicionais escolas de samba do Rio de Janeiro e cuja trajetória de vida mereceu um longa-metragem que ainda hoje é reexibido na televisão5. 5 O jogo do bicho inspirou muitas obras literárias, 106 A folha de pagamento dos principais bicheiros incluía, além dos empregados no jogo, um sistema previdenciário informal que paga uma pensão a antigos gerentes, guarda-costas e apontadores aposentados ou às suas viúvas. Contribuições filantrópicas a diversas associações e um grande investimento no carnaval permitem uma abrangente neutralização, entre beneficiários e setores das camadas populares, das acusações e denúncias feitas pela grande imprensa. Jornalistas, políticos, lideranças comunitárias, policiais e mesmo promotores e juízes, em algum momento, fizeram parte dessas folhas de pagamento. Candidatos ao governo e ao Parlamento estadual buscavam abertamente o apoio dos bicheiros até muito recentemente. Durante a ditadura militar os bicheiros gozaram de ampla impunidade e alguns deles festejaram o regime. Um ex-Capitão do Exército, que trabalhou para o Serviço de Informações da ditadura, escalou posições até tornar-se hoje um reconhecido bicheiro e, por vários mandatos, presidente da Liga das Escolas de samba do Rio de Janeiro (cargo ocupado em rodízio, durante algum tempo, por bicheiros e que ainda é controlado por eles). O jogo do bicho – uma notável instituição informal – existe há quase um século, mas as famílias de bicheiros não têm a mesma idade. Algumas sobreviveram bastante, passando o domínio de pai para filho, por 50 ou mais anos, mas em geral a competição e o conflito entre os antigos banqueiros pelo controle dos territórios do jogo impediram a sua continuidade na maioria dos casos. Alguns novos bicheiros, emergentes durante a ditadura militar (1964-1985), ocuparam posições anteriormente controladas por outras famílias, mas as mudanças permitiram que se chegasse a um acordo que suspendeu os conflitos violentos que caracterizaram essa atividade durante a maior parte do século XX. O jogo do bicho espalhou-se por todo o país ainda nos anos 1950, sem que houvesse um controle centralizado ou uma única estrutura vertical. Os bicheiros de cada estado mantêm sua autonomia em relação ao Rio dramatúrgicas e cinematográficas. Entre as mais conhecidas, pode-se citar “Boca de Ouro”, peça teatral de Nelson Rodrigues transposta duas vezes ao cinema. Roberto DaMatta e Elena Soarez (1999) é um interessante estudo antropológico do jogo do bicho e de sua “cultura”. Ver também Michel Misse (1999). REVISTA DE SOCIOLOGIA E POLÍTICA V. 19, Nº 40: 103-114 OUT. 2011 de Janeiro, mas mantêm relações com os mais proeminentes bicheiros do Rio. Em 1980, os banqueiros do jogo do bicho do Rio de Janeiro interromperam suas disputas e constituíram uma “cúpula”, em resposta à queda nos lucros, decorrente do surgimento de várias loterias de sorteio imediato, diário ou semanal, controladas por um banco oficial, a Caixa Econômica Federal. Os banqueiros então, mesmo sem abandonar o jogo do bicho, diversificaram seus investimentos em empresas legais e pequenos cassinos clandestinos, propiciando uma relativa trégua na violência que antes marcara a atividade. Com o declínio do jogo do bicho após o surgimento dessas loterias, parte da cúpula “investiu” em hotéis no Brasil e em cassinos legais em outros países da América do Sul enquanto uma outra parte (repartindo em conflito a herança do principal Capo, Castor de Andrade6, revive as antigas disputas, agora pelo controle da distribuição de máquinas caça-níqueis em bares da cidade. Há ainda denúncias de “lavagem de dinheiro” e ligações com o tráfico internacional, mas nenhuma foi provada judicialmente. Em 1993, os 14 bicheiros mais importantes do Rio foram presos por uma Juíza durante uma audiência corriqueira e condenados por “formação de quadrilha” (crime organizado) a até seis de prisão. Após cumprir parte da pena, voltaram normalmente às suas atividades e continuam controlando as dez principais escolas de samba e influenciando a política local. Como o jogo do bicho sempre foi criminalizado no Brasil, mas também sempre obteve adesão 6 Ele foi o mais poderoso e conhecido bicheiro do Brasil. O território de Castor de Andrade compreendia grande parte da Zona Oeste do Rio de Janeiro. Filho de bicheiro, era Advogado e presidiu o Bangu Futebol Clube e a escola de samba Mocidade Independente de Padre Miguel, uma das mais importantes. Foi o articulador da “cúpula”, cuja face legal é a Liga Independente das Escolas de Samba do Rio de Janeiro. Faleceu em 1997, com 70 anos de idade. Foi preso e solto várias vezes. Sua casa, no subúrbio do Rio, chamada de “fortaleza”, foi invadida em uma operação policial em 1994. As folhas de pagamento de políticos foram tornadas públicas. Ficou foragido até ser preso, disfarçado em outra cidade. Após sua morte, seu filho Paulo Andrade ficou com o jogo do bicho e seu genro, Fernando Ignacio, ficou com o controle da rede de caçaníqueis e vídeo-pôquer. Paulo foi assassinado e seu genro vem tentando controlar sua herança em uma disputa feroz. Um ex-Chefe de Polícia do Rio está atualmente preso acusado de ter beneficiado o seu esquema. popular, com centenas de milhares de apostadores, criou-se um ambiente favorável à corrupção de policiais, de membros do poder Judiciário e de políticos. Políticos recebiam votos em troca de tolerância ao jogo, policiais recebiam propinas regulares nos pontos de jogo ou constavam na folha de pagamento, junto com pistoleiros, jogadores de futebol, artistas e membros do poder Judiciário. Entre o final dos anos 1950 e meados dos anos 1960 alguns governadores (Bahia, Paraíba e Rio de Janeiro) resolveram “legalizar” por parte do próprio jogo do bicho, proibindo sua repressão pela polícia estadual, sob a justificativa de lutar contra a corrupção. A experiência não durou muito, exceto na Paraíba. Nos estados do Nordeste, o jogo do bicho é semilegal até hoje, embora recentemente uma operação da Polícia Federal tenha fechado várias lojas onde funcionam pontos do jogo no Ceará e em Pernambuco. No Rio de Janeiro o jogo continua sendo oferecido em todo o estado, geralmente próximo a bancas de jornais, por apontadores sentados em cadeiras ou em improvisados bancos feitos de caixas de frutas. A polícia recebe a sua parte e, eventualmente, detém apontadores e apreende os talões de jogos, provavelmente em combinação com os contraventores, pois o jogo continua sendo jogado normalmente e os resultados anunciados nas paredes de prédios e postes próximos ao ponto (ou “banca”) do jogo do bicho. III. OS “COMANDOS” DO TRÁFICO DE DROGAS O Brasil não é produtor de drogas ilícitas. Produz ingredientes químicos utilizados na pastabase da cocaína. Pequenos laboratórios têm sido localizados e destruídos pela polícia, mas a maior parte da droga que chega ao Brasil já vem preparada para o consumo. Há uma produção relativamente pequena de cannabis (maconha) no Nordeste, sempre sob repressão federal, que não é suficiente para abastecer o consumo no país. A maior parte das drogas ilícitas, principalmente a cannabis e a cocaína, chegam ao Brasil por meio da fronteira com o Paraguai. O Brasil faz parte da rota internacional da cocaína que sai da Bolívia, do Peru e da Colômbia com destino à Europa e aos Estados Unidos. As partidas de cocaína no atacado seguem por três caminhos principais: pela Amazônia, via Manaus e Belém do Pará, para o Caribe e os Estados Unidos; pela tríplice fronteira com o Paraguai e a Argentina, passa para o Paraná; pelas fazendas de fronteira com o Mato Grosso 107 CRIME ORGANIZADO E CRIME COMUM NO RIO DE JANEIRO do Sul, segue pelo interior de São Paulo para os portos de Santos e do Rio de Janeiro, com destino à África (Nigéria) e à Europa (Espanha). As mesmas rotas são utilizadas para abastecer o tráfico de drogas a varejo, inicialmente com base no desvio de frações das partidas do tráfico internacional e, já nos anos 1980, constituindo uma via própria de abastecimento. Nos anos 1990, a rota que liga o Paraguai a São Paulo e Rio de Janeiro passa também a ser usada para o tráfico de armas de guerra (fuzis AK-47, AR-15, granadas, bazucas antiaéreas, metralhadoras etc.) para abastecer as disputas pelos pontos de venda entre quadrilhas e facções nos morros do Rio de Janeiro e nos confrontos com a polícia. As principais organizações criminosas do tráfico a varejo no Rio de Janeiro surgiram dentro do sistema penitenciário durante a ditadura militar. A partir de 1968, organizações de esquerda que resistiam à ditadura lançaram-se à luta armada e o assalto a bancos passou a ser uma das formas de arrecadação de recursos para a Revolução. O regime militar sancionou então a Lei de Segurança Nacional, em 1969, considerando comuns os crimes cometidos pelos militantes de esquerda. Assim, militantes políticos e assaltantes de bancos comuns conviveram, sob a mesma lei, até a sua revogação mais de dez anos depois. Nesse período, os presos políticos organizaram-se dentro das penitenciárias do Rio de Janeiro para reivindicar alguns direitos que lhes estavam sendo negados. A relativa vitória em suas reivindicações, na primeira metade dos anos 1970, criou um efeito de demonstração para os assaltantes de banco comuns, chamados entre os criminosos em geral pela alcunha de “os lei de segurança”. Esses resolveram também organizarse para reivindicar direitos e impor seu domínio dentro do sistema penitenciário. Por isso, e pelo fato de alguns de seus líderes considerarem-se também de esquerda (embora não reconhecidos assim pelos presos políticos), passaram a designar-se primeiramente como “Falange Vermelha” e, depois, pela imprensa, como “Comando Vermelho” (CV), o nome que finalmente prevaleceu. O primeiro relatório de um Diretor de presídio aludindo à organização que se formava no sistema penitenciário foi apresentado ao governo em 1979. Dizia que essa organização era formada pelos que tinham sido condenados por terem formado quadrilhas para assaltar bancos. Como em 1979 os presos 108 políticos, também condenados pela mesma lei, obtiveram anistia política, criou-se um ambiente de revolta entre os “Lei de Segurança”, que formavam o Comando Vermelho, por considerarem-se abandonados em seus direitos, já que a anistia não os alcançou. Seu lema, então, era: “Paz, Justiça e Liberdade”. Nos anos seguintes, com a queda do preço da cocaína no mercado latino-americano, decorrente da entrada da Colômbia na produção, os antigos pontos de venda de cannabis nas favelas do Rio foram tomados por membros do Comando Vermelho (CV) e fortalecidos para a venda de cocaína. Entre 1982 e 1985 consolidou-se um modelo de organização interligando em uma rede as quadrilhas atuantes no varejo, com base na proteção oferecida pelo CV dentro do sistema penitenciário7. O modelo desenvolvido de uma organização em rede dentro do sistema penitenciário desde então divide-se em dois setores, um “intramuros” e outro “extramuros”. Vários “donos” (presos ou não) controlam o varejo em uma ou mais favelas8, com relativa autonomia em relação aos dirigentes do CV e sem qualquer vínculo organizacional com os fornecedores da droga no atacado. Seu capital é o exercício, pela violência, do mandonismo na área, e os contatos com fornecedores intermediários (“mulas”) ou mesmo atacadistas. Em cada território dominado pelo tráfico organizouse uma divisão de trabalho e uma hierarquia de poder que ainda mantêm-se quase trinta anos depois, embora em algumas áreas tenha se simplificado em decorrência da forte repressão policial na última década: um “dono”, seus “gerentes”, um para a cannabis (gerente do 7 Sobre o tráfico de drogas no Rio, as principais pesquisas são: Zaluar (1995; 2004), Marcelo Lopes de Souza (1996), Misse (1997; 1999; 2008), Rafael (1997; 1998), Alvito (2001), Dowdney (2003), Rosinaldo Souza (2004) e Silva (2008). 8 Há, na cidade do Rio de Janeiro, cerca de 700 favelas, reunindo mais de um milhão de habitantes. Cálculos da polícia e de pesquisadores concordam que há tráfico de drogas em quase todas as maiores favelas (Rocinha, Maré, Alemão, Borel, Mangueira, Manguinhos, Jacarezinho, Turano, Acari, Vigário Geral e Providencia), sem contar os conjuntos habitacionais das áreas de baixa renda, principalmente na Zona Oeste (Cidade de Deus, Vila Kennedy, Vila Aliança, Cesarão etc.), o que representaria cerca de10 a 15% da população da cidade em áreas sob controle do tráfico. REVISTA DE SOCIOLOGIA E POLÍTICA V. 19, Nº 40: 103-114 OUT. 2011 “preto”), outro para a cocaína (gerente do “branco”) e outro ainda para a segurança do território (gerente dos “soldados”). Abaixo vêm os “vapores” (vendedores diretos, cada um com uma “carga” de 300 unidades da droga em média); os “aviões” (que trabalham longe da “boca” ou até mesmo fazem a revenda em outros lugares) e os “soldados”, que carregam o armamento pesado e estão preparados para enfrentar invasores concorrentes (chamados na gíria de “alemães”) ou a polícia. Como tudo isso já ocorre há pelo menos 30 anos, há toda uma geração nascida e socializada em favelas e conjuntos habitacionais para a qual o “movimento” (nome que se dá ao varejo do tráfico; cf. Misse (2009)) integra normalmente seu repertório cultural. Uma parcela desses jovens oferece-se regularmente para substituir os que foram presos ou mortos, de modo a manter o “movimento” mesmo quando é duradoura a repressão. Do mesmo modo, foi constituindo-se – em um ambiente social desprovido, em geral, de outras identificações coletivas fortes – um referencial simbólico de identidade local, mesmo para os jovens não envolvidos diretamente com o tráfico, que os fazem se identificar com o Comando algumas vezes com o mesmo grau de adesão que torcedores têm por seus clubes de futebol. A expectativa do Comando Vermelho era a de oligopolizar o mercado a varejo das drogas em todo o estado do Rio de Janeiro, mas ainda em meados dos anos 1980 surgiu outra organização, intitulada “Terceiro Comando” (TC)9, que passou a disputar violentamente os territórios com o CV. Iniciou-se, assim, uma corrida armamentista entre os dois comandos pela posse das armas mais eficientes e letais, capazes de garantir seja a manutenção do controle dos pontos de venda, seja sua expansão para outras favelas. Com isso, estruturou-se, em paralelo, o tráfico de armas de guerra (fuzis AK-47, AR-15, metralhadoras de uso reservado das Forças Armadas, granadas, armas antiaéreas, bazucas etc.). Havia também os traficantes que controlavam áreas que se consideravam “independentes” dos dois comandos. Com o tempo, dissidências surgiram e criaramse novas facções a partir de meados dos anos 1990 (Comando Vermelho Jovem (CVJ), Amigos dos Amigos (ADA) e Terceiro Comando Puro (TCP), elevando a disputa com o Comando Vermelho (CV) a níveis de violência inéditos na cidade). Foi também em meados dos 1990, que o Governador do estado obrigou-se a aceitar a intervenção das Forças Armadas na cidade em uma operação que interrompeu momentaneamente a violência, mas não foi capaz de dissolver os comandos ou impedir o retorno das disputas nos anos seguintes. A divisão das favelas e conjuntos habitacionais do Rio de Janeiro pelos comandos, em 2009, apresentava-se como na Tabela 2. A polícia passou a adotar cada vez mais uma política de extermínio, oferecendo gratificações TABELA 2 – DISTRIBUIÇÃO DOS COMANDOS POR FAVELAS E CONJUNTOS DA CIDADE ÁREAS (N) % Comando Vermelho (CV) 77 31,4 Amigos dos Amigos (ADA) 34 13,9 Terceiro Comando Puro (TCP) 29 11,8 Áreas sob controle de milícias 96 39,2 Áreas perdidas para a polícia Total 9 245 3,7 100,0 FONTE: Ministério da Justiça (2011). aos policiais que prendessem ou matassem os chefes do tráfico. As sucessivas e intermitentes invasões das favelas e conjuntos habitacionais pela polícia produziam cada vez mais prisões e mortes sem que o Estado conseguisse duradouramente 9 Não se tem notícia de um “segundo” comando. Entrevistados que cumprem pena me afirmaram que o Terceiro Comando foi criado por policiais com o objetivo de enfraquecer o CV e também se beneficiar dos lucros do tráfico, competindo com ele. 109 CRIME ORGANIZADO E CRIME COMUM NO RIO DE JANEIRO recuperar o controle dessas áreas aos traficantes. Um dos efeitos perversos dessa política foi, de um lado, estigmatizar os moradores dessas áreas, confundidos com traficantes e vulneráveis à letalidade das ações policiais; de outro lado, produzir um amplo sentimento de revolta e injustiça entre esses moradores, reféns da violência do tráfico e também da violência da polícia. Em algumas áreas, muitos moradores passaram a proteger os traficantes contra uma polícia que eles consideravam corrupta e violenta; em todas as áreas, entretanto, o medo dos traficantes e o pavor da polícia empurraram os moradores locais à submissão e ao silêncio. Sem o apoio dos moradores, a polícia tornou-se cada vez mais uma força externa e invasora, com a qual muitos jovens da área não só não se identificavam como repudiavam como inimigos, dando-lhes a alcunha de “Comando Azul”, igualando-os aos traficantes10. Ao mesmo tempo que prendiam e matavam, policiais negociavam proteção aos traficantes. As mortes de suspeitos de serem traficantes, pela polícia do Rio de Janeiro, em supostos confrontos em que resistiram à prisão alcançou números jamais vistos no Brasil e mesmo em outros países (Gráfico 1): No Rio de Janeiro, em suma, há três redes de quadrilhas, chamadas “facções” ou “comandos”, GRÁFICO 1 – CIVIS SUSPEITOS MORTOS EM CONFRONTO COM A POLÍTICA NO RIO DE JANEIRO, ESTADO E CAPITAL, 1993-2008 FONTE: Ministério da Justiça (2011). que disputam entre si o controle de territórios nas favelas e conjuntos habitacionais da cidade e de sua periferia urbana: o “Comando Vermelho”, o mais antigo; o “Terceiro Comando” e os “Amigos dos Amigos”. Essas redes de quadrilhas operam a partir do sistema penitenciário, em que mantém, cada uma, a oferta de proteção aos presos que ali chegam. A corrida armamentista entre esses comandos, principalmente a partir do início da década de 1990, levou ao fortalecimento do tráfico de armas de guerra, como fuzis automáticos, granadas, bazucas e armas antiaéreas, armas disputadas ferozmente pelas facções. O conflito entre esses comandos na década de 1990 explica grande parte das taxas de homicídio no Rio de 110 Janeiro naquela época. Qual a relação possível entre esses comandos e o crime comum na cidade? É preciso distinguir entre o crime comum na área sob controle do tráfico e fora dessa área. Na área sob controle do tráfico, o crime comum diminui, pois os traficantes reprimem-no violentamente, exercendo forte controle social em seu território. O contrário ocorre fora da área sob controle do tráfico, que vem a ser a cidade como um todo. O que se pode observar é uma tripla 10 Muitos de meus entrevistados aludiram à permanente extorsão praticada pelos policiais sobre os traficantes como a principal fonte de renda do “Comando Azul” (nome que é aplicado à Polícia Militar). REVISTA DE SOCIOLOGIA E POLÍTICA V. 19, Nº 40: 103-114 OUT. 2011 relação: 1) quando a repressão ao tráfico aumenta, parte dos seus homens migra para outras atividades criminosas, como o assalto a mão armada a estabelecimentos comerciais, meios de transporte e transeuntes; às vezes, mesmo sem aumento da repressão, as duas atividades tornamse complementares para uma parcela dos traficantes; 2) quando a repressão cessa ou diminui, traficantes utilizam-se do roubo momentâneo de carros para o transporte da droga entre um território e outro controlado pelo mesmo comando; 3) consumidores de drogas endividados recorrem ao furto e ao roubo para proverem recursos para a compra de drogas. O aumento da repressão, a morte de um jovem traficante ou morador da favela ou o aumento da cobrança de propinas por policiais corruptos leva, eventualmente, a explosões de revolta em uma e noutra área, com ônibus incendiados e fechamento compulsório do comércio da região. Não se sabe a proporção exata de crimes comuns que se ligam aos comandos, mas a relação existe e já foi demonstrada em muitos casos. IV. GRUPOS PARAPOLICIAIS E OFERTA DE PROTEÇÃO Nos anos 1950, no Rio de Janeiro, por iniciativa do então chefe de polícia, foi criado um denominado “Grupo de Diligências Especiais” cuja principal missão – que deveria ser cumprida clandestinamente – era executar criminosos. Esse grupo passou a ser chamado popularmente de “Esquadrão da Morte” e seu modelo disseminouse para outros estados brasileiros, com o mesmo nome. Apesar das sucessivas críticas da imprensa e das comissões de investigação criadas para apurar os crimes cometidos e punir seus autores, o Esquadrão da Morte permaneceu, inclusive, após a morte de seu principal dirigente, o detetive Le Cocq. Seus comandados criaram, já nos anos 1960, a “Scuderie Le Cocq”, composta pelos autodenominados “Homens de Ouro” da Polícia do Rio de Janeiro. As comissões de investigação prenderam alguns de seus membros, mas o grupo continuou a existir clandestinamente, reforçandose após o golpe militar de 1964. Outros grupos surgiram, com a mesma justificação “justiceira”, de “fazer justiça” porque o poder Judiciário “solta os bandidos”. Uma frase, emitida em entrevista na televisão, por um dos membros da Scuderie Le Cocq ficou famosa: “bandido bom é bandido morto”. Ele exprimia o que um segmento da população pensava a respeito de como se deve tratar com criminosos. Essa política semilegal de extermínio prosseguiu durante a ditadura com o surgimento, a partir dos anos 1970, na “Baixada Fluminense”, a populosa periferia do Rio de Janeiro, de “grupos de extermínio” (esse o nome dado pela imprensa da época e que se mantêm ainda hoje). Trata-se de pequenos grupos de policiais, agentes penitenciários e guardas que recebem dinheiro de comerciantes e empresários para “limpar a área”, isto é, matar ladrões e assaltantes que agem na área. Outra modalidade é a chamada “polícia mineira”, também constituída por grupos de policiais e ex-policiais, que vendem proteção a pequenos empresários e comerciantes oferecendo-lhes também seus serviços de pistolagem. As taxas de homicídio na região, nos anos 1980, alcançaram valores extraordinários, principalmente pela ação desses grupos, que continuam a agir ainda hoje, mas de modo mais clandestino. Na década de 1990 surgiu uma nova modalidade de “polícia mineira” na favela de Rio das Pedras, no Rio de Janeiro: a proteção passou a ser oferecida (ou extorquida) aos próprios moradores e não apenas aos comerciantes locais, com o objetivo de impedir que o tráfico instalassese na favela. Por meio da associação de moradores, formou-se um novo modelo de oferta de proteção que mesclava policiais pistoleiros, a atividade associativa local e lideranças com ambições de carreira política (cf. BURGOS, 2002; ZALUAR & CONCEIÇÃO, 2007). O arranjo foi bem sucedido em impedir a entrada do tráfico e exercer o controle social na favela, ainda que para parte dos moradores afigurasse-se a cobrança de taxas de proteção como uma extorsão velada. O modelo passou a disseminar-se em outros bairros da Zona Oeste do Rio de Janeiro, dando origem a uma organização de tipo mafioso intitulada “Liga da Justiça”, cujo braço político estava representado por deputados e vereadores e o braço armado por grupos de policiais militares e civis da ativa e aposentados, agentes penitenciários, bombeiros e guardas municipais, chamados pela imprensa, a partir de 2006, quando se constituíram, de “milícias”. A “Liga” foi fortemente reprimida após as reportagens que a denunciaram, mas as milícias continuam existindo. O fenômeno das milícias é mais variado do que o nome aparenta, pois reúne modalidades diferentes de controle de territórios (Cf. ASSEMBLÉIA LEGISLATIVA DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO, 2008; CANO, 2008), 111 CRIME ORGANIZADO E CRIME COMUM NO RIO DE JANEIRO embora todas tenham em comum a justificativa da “ausência do Estado” para ocuparem o lugar do tráfico de drogas e oferecer, em seu lugar, uma série de serviços e mercadorias ilegais. Há hoje cerca de 90 favelas sob controle das chamadas “milícias”. Em todas elas há um grupo armado que controla a distribuição de gás em botijão, os serviços clandestinos de internet e televisão a cabo e, em algumas áreas, o transporte público ilegal por veículos de passageiros do tipo “vans”. Impedem também que o tráfico de drogas instale-se na localidade, embora haja casos em que milícias “venderam” seu território para traficantes, quando não obtiveram os lucros esperados. Uma Comissão Parlamentar de Inquérito foi formada na Assembléia Legislativa para apurar as ilegalidades e violências e a Secretaria de Segurança Pública tem reprimido duramente as milícias, inclusive prendendo e denunciando à justiça os principais políticos ligados à chamada “Liga da Justiça”. Apesar disso, e assim como acontecia com o tráfico, as milícias continuam a existir em várias partes do Rio de Janeiro, mesmo que tenham perdido seu braço político mais visível, a “Liga da Justiça”, e se tornado uma atividade obrigada à clandestinidade. Além de evitarem o tráfico, reprimem o crime comum em sua área de atuação matando pequenos ladrões e jovens desviantes que não se mudaram para outros lugares. Ao contrário dos comandos, não há relação direta entre as milícias e crimes comuns contra a propriedade, como o furto e o roubo ou assalto à mão armada. Os crimes comuns praticados por milicianos incluem o homicídio, a agressão física e a venda de mercadorias ilícitas. V. AS POLÍTICAS PÚBLICAS As políticas sociais são implementadas nas áreas sob controle de traficantes graças a acordos informais estabelecidos entre as partes, o que inclui agentes do Estado e de organizações não governamentais. A polícia não pode trabalhar nessas áreas a não ser que as invada e expulse os traficantes. Duas experiências desse tipo foram feitas no Rio de Janeiro nos últimos dez anos: a primeira, sem sucesso, levou à criação dos Grupamentos de Policiamento em Áreas Especiais (Gpaes) em favelas, mas não conseguiram desalojar os traficantes. A segunda, em andamento na atualidade, é chamada de Unidades de Policiamento Pacificador (UPP) e já controla mais 112 de 10 favelas, com um total de mais de 200 mil habitantes, 20% da população de favelas da cidade. Até agora tem obtido bons resultados e, curiosamente, embora desalojados, os traficantes não migraram para o crime comum nos bairros próximos, preferindo refugiar-se nas outras favelas sob o controle de sua facção. Não se sabe o quanto essa política, que envolve mais de dois mil policiais em sua execução, poderá expandirse para os complexos de favelas mais fortes, onde o tráfico é capaz de resistir mais tenazmente. Isso ainda não foi tentado. Apesar desses avanços contra o tráfico, as taxas de roubos e outros crimes comuns continuam a aumentar no Rio de Janeiro (MINISTÉRIO DA JUSTIÇA, 2011), sem que se saiba exatamente o quanto estão ou não associadas a essas mudanças nas políticas. VI. CONCLUSÕES O modelo das milícias, como também ocorreu com o jogo do bicho e com o tráfico de drogas, todos surgidos no Rio de Janeiro, vem sendo adotado em cidades de outros estados brasileiros, nacionalizando formas de organizações criminosas que têm no recurso à violência uma de suas principais características. Há hoje jogo do bicho em todo o país; há também redes de quadrilhas de tráfico de drogas em todos os estados e organizações de presidiários em pelo menos cinco estados (Rio de Janeiro, São Paulo, Espirito Santo, Mato Grosso do Sul e Paraná). Grupos de extermínio e modalidades da chamada “polícia mineira” são comuns em todo o Norte e Nordeste do país, além dos estados, já citados, onde há organizações de presidiários. Todos os três tipos de organização criminosa tratados neste artigo são empreendimentos que se definem, primeiramente, por constituírem-se em mercados ilegais. As mercadorias ilegais exploradas – jogo, drogas, armas e proteção – possuem diferentes propriedades como capital. As drogas ilícitas e as armas letais têm em comum o fato de sua sobrevalorização no mercado ser função da maior ou menor oferta, o que depende da repressão que essas organizações sofrem. O mesmo não se passa com o jogo e com a proteção. O preço dessas duas mercadorias depende mais da demanda e, portanto, da maior ou menor abrangência da clientela. No caso da proteção, quando não há clientela espontânea, ela pode ser induzida por extorsão. De qualquer modo, todas essas organizações dependem – para se REVISTA DE SOCIOLOGIA E POLÍTICA V. 19, Nº 40: 103-114 OUT. 2011 reproduzir – de um segundo tipo de mercadoria, aquela que pode proteger quem oferece proteção, proteger quem controla territórios, proteger quem negocia armas e proteger quem anota apostas nas ruas. Trata-se, nesse caso, de uma mercadoria que depende de um cálculo efetivo de poder e de correlação de forças para poder adquirir características econômicas. Tenho-a chamado, por isso, de “mercadorias políticas” (MISSE, 1997; 1999; 2007; 2009). São mercadorias produzidas em uma troca assimétrica, quase sempre compulsória, embora interesse geralmente a ambas as partes realizá-la. Seu preço depende simultaneamente de um cálculo político e de um cálculo econômico. Pode ser produzida pela privatização de atribuições estatais por um funcionário público (é o caso da variedade de trocas chamada “corrupção”), como pode ser produzida simplesmente pela posse de informação, força, poder ou violência suficiente para obrigar um sujeito ou grupo social a entrar em uma relação de troca (é o caso da chamada “extorsão”). Evidentemente, pode-se fazer uma interpretação estritamente econômica dessas trocas, mas perde-se a dimensão política e a complexidade envolvida na interação social em que se desenrolam. Se imaginarmos uma escala de mercadorias políticas, o chamado “clientelismo” seria a sua forma mais leve e a “extorsão mediante seqüestro e cárcere privado” a forma mais pesada. Não importam aqui os fins da troca, se egoístas ou altruístas, se individuais ou coletivos. Diferentes modalidades de corrupção recheariam grande parte da linha que vai da forma mais leve à mais grave. O ganho nesse mercado não resulta exclusivamente da lei da oferta e da procura, mas de uma relação de força, de uma relação de poder. Não é necessário que esse poder seja retirado das atribuições do Estado, ele pode ser produzido independentemente, como ocorria antes do surgimento do Estado moderno. Max Weber (1994) referia-se a essa forma de ganho como própria de um capitalismo aventureiro ou político por oposição ao capitalismo moderno, baseado no livre mercado e na competição regulada por um direito racional. Essa interpretação tende a confinar no passado pré-capitalista os piratas, os traficantes de escravos e outros mercadores cujo ganho dependia do recurso à violência. No entanto, essa forma de ganho jamais desapareceu com o advento e a hegemonia do capitalismo moderno, apenas continuou a produzir-se complementarmente a ele, ainda que posta fora da lei. Não é possível compreender a reprodução das organizações criminosas de todo tipo sem se fazer referência ao fato de que elas produzem ou submetem-se a mercadorias políticas. No Brasil são muito fortes e constantes as acusações e denúncias de corrupção na polícia, especialmente na polícia do Rio de Janeiro. Há referências em grande quantidade atravessando décadas, primeiramente na relação com a prostituição, o contrabando e o jogo do bicho e, atualmente, nas ligações com o tráfico de drogas e de armas. Em geral, observam-se três tipos de referencias ao que está englobado na representação de corrupção na polícia brasileira: a propina em troca da não cobrança de multa por infração de trânsito e outras infrações codificadas em portarias, normas e leis estaduais; o arreglo ou troca negociada, geralmente envolvendo contraventores e outros agentes de mercados ilícitos que não envolvem necessariamente o recurso à violência; o arrego, que é a troca assimétrica ou extorsiva, geralmente pactuada no tráfico de drogas (atacado ou varejo) e de armas11. Em qualquer dos casos, a reprodução de organizações criminosas de todo tipo torna-se particularmente dependente de acordos e trocas políticas com agentes públicos, dos quais policiais (que detêm o uso legal das armas e de informações estratégicas) constituiriam um dos principais tipos. Diferentemente do jogo do bicho, que pratica o “arreglo” (acordo negociado) ou mesmo a cooptação de agentes públicos para sua folha de pagamento, policiais do Rio passaram a praticar o “arrego” (extorsão) sobre os traficantes de drogas, impondo trocas políticas assimétricas e praticamente compulsórias. Um dos mais conhecidos traficantes do Rio de Janeiro, hoje cumprindo pena na Penitenciária de Bangu, pagou cerca de 250 mil dólares a policiais que o haviam prendido anteriormente, negociando sua liberdade. É corriqueira a propina, o arreglo e o arrego no Rio de Janeiro e em outros estados brasileiros. Sem essas mercadorias políticas, torna-se difícil compreender as relações entre violência, organizações criminosas e lucros nos mercados ilegais brasileiros. 11 Sobre as diferentes formas de troca política, ver Michel Misse (2009). Sobre a diferença entre arreglo e arrego, ver Lênin Pires (2010). 113 CRIME ORGANIZADO E CRIME COMUM NO RIO DE JANEIRO Michel Misse ([email protected]) é Doutor em Sociologia pelo Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro (Iuperj) e Professor Associado do Departamento de Sociologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ)”. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ALVITO, M. 2001. As cores de Acari: uma favela carioca. Rio de Janeiro: FGV. BURGOS, M. (org.). 2002. A Utopia da Comunidade. Rio das Pedras, uma favela carioca. Rio de Janeiro: Loyola. CANO, I. 2008. Seis por meia dúzia? Um estudo exploratório do fenômeno das chamadas ‘milícias’ no Rio de Janeiro. In: RIBEIRO, C.; DIAS, R.; CARVALHO, S.; SOUZA E SILVA, J.; WILLADINO, R.; LANNES, F.; LEHER, R.; ALVES, J. C. S.; SILVA, I.; ROCHA, L. M. & CANO, I. Segurança, Tráfico e Milícias. Rio de Janeiro: Heinrich Boll. DAMATTA, R. & SOAREZ, E. 1999. Águias, burros e borboletas. Um estudo antropológico do jogo do bicho. 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