FERNANDA DE ALMEIDA GALLO
AS FORMAS DO CRIME ORGANIZADO
Campinas
2014
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ii
UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS
INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS
FERNANDA DE ALMEIDA GALLO
AS FORMAS DO CRIME ORGANIZADO
Orientador: Thomas Patrick Dwyer
Tese de doutorado apresentada ao Instituto de
Filosofia e Ciências Humanas, para obtenção do
título de doutor em Ciências Sociais.
Campinas
2014
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Ficha catalográfica
Universidade Estadual de Campinas
Biblioteca do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas
Cecília Maria Jorge Nicolau - CRB 8/338
AL64f
Almeida Gallo, Fernanda, 1979AlmAs formas do crime organizado / Fernanda de Almeida Gallo. – Campinas, SP
: [s.n.], 2014.
AlmOrientador: Thomas Patrick Dwyer.
AlmTese (doutorado) – Universidade Estadual de Campinas, Instituto de Filosofia
e Ciências Humanas.
Alm1. Simmel, Georg, 1858-1918. 2. Ciências socias - Análise de redes sociais. 3.
Comissões parlamentares de inquérito. 4. Sociologia. 5. Crime organizado. 6.
Tráfico de drogas. I. Dwyer, Thomas Patrick,1952-. II. Universidade Estadual de
Campinas. Instituto de Filosofia e Ciências Humanas. III. Título.
Informações para Biblioteca Digital
Título em outro idioma: The form of organized crime
Palavras-chave em inglês:
Social sciences - Network analysis
Parliamentary committee of inquiry
Sociology
Organized crime
Drug traffic
Área de concentração: Ciências Sociais
Titulação: Doutora em Ciências Sociais
Banca examinadora:
Thomas Patrick Dwyer [Orientador]
Sergio Franca Adorno de Abreu
Guaracy Mingardi
Valeriano Mendes Ferreira Costa
Ricardo Dahab
Data de defesa: 01-12-2014
Programa de Pós-Graduação: Ciências Sociais
Powered by TCPDF (www.tcpdf.org)
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vi
RESUMO
Na presente tese explorou-se o Relatório da CPI do Narcotráfico como fonte de
dados principal. Através do método indutivo da “Grounded Theory”, pôde-se explorar,
selecionar e se aprofundar na investigação de seis casos brasileiros que versavam sobre o
próprio tráfico de drogas e crimes conexos que, por sua vez, levaram a um estudo sobre
organizações do crime organizado. Esses seis casos foram analisados a partir da sociologia
formal de Simmel que me conduziu a um estudo sobre as formas acionadas pelo crime
organizado, até então inédito na Sociologia.
Dentre as principais contribuições e descobertas é possível elencar 1) o uso de
metodologias informacionais, como as análises de redes sociais, que permitiram a
reconstrução organizacional (e das redes) acionadas pelos grupos estudados e com isso,
ajudaram a alcançar um nível de abstração tal que permitiu pensar acerca dos tipos
organizacionais acionados por esses grupos; 2) a descoberta do nível meso de análise
alcançada através do uso de relatórios e investigações políticas; 3) a percepção sobre a
existência de um terceiro tipo organizacional que transita entre as hierarquias e as redes,
que denomino como híbrido. Essa tipologia foi percebida na quase totalidade dos casos
estudados e, nacional e internacionalmente contextualizada, onde foram encontrados
paralelos em casos chineses, canadenses, colombianos e mexicanos. Na tentativa de
entender o desenvolvimento do hibrido nos casos estudados, levantei algumas hipóteses,
dentre as quais destaco: as TIC’s influenciam no desenvolvimento de organizações
criminosas hibridas.
Palavras-chave: George, Simmel; Ciências Sociais – Análise de redes sociais; Comissões
Parlamentares de Inquérito; Sociologia; Crime organizado; Tráfico de drogas.
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viii
ABSTRACT
In this thesis the Drug Trafficking Report from the Brazilian parliament (lower
house) Investigation Commission (CPI) is analyzed as primary data source. By using the
inductive Grounded Theory methodology, I was able to explore, select and deepen the
investigation into six Brazilian criminal drug trafficking cases and related crimes, resulting
in a body of knowledge about the structures and organization of the organized crime. These
six cases were analyzed throughout Simmel’s “formal Sociology” lenses, resulting in a
study of the forms employed by the organized crime, a novel result.
Main contributions and discoveries in this thesis are: (1) the first reconstruction and
abstraction of the organizational networks of Brazilian organized crime by using
informational methodologies, (2) the first characterization of the organized crime networks
at the analytical “meso”-level, by using a triangulation of methodologies, and (3) the
identification of a third organizational class, called here hybrid - a merge between
hierarchical and mesh organization.
In special, the hybrid organizational type was detected in almost all cases studied
and parallels were found to international cases (Chinese, Canadian, Colombian and
Mexican). These parallels enabled me to postulate some hypothesis for future work, the
most noteworthy relating the pervasive IT and the hybrid organizational class.
Keywords: Social Sciences – Network analysis; Parliamentary committee or inquiry;
Sociology; Organized crime; Drug traffic.
ix
x
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ................................................................................................................1
CAPÍTULO I
SOCIOLOGIA FORMAL .................................................................................................11
CAPÍTULO II
O CRIME ORGANIZADO, UMA REVISÃO BIBLIOGRÁFICA ..................................21
PARTE 1
Do Direito à Sociologia: definições do crime organizado .................................................25
Crime organizado sob a perspectiva do Direito .................................................................26
Crime organizado sob a perspectiva da Sociologia ............................................................34
PARTE 2
Organizações emblemáticas do crime organizado ..............................................................42
Máfia ...................................................................................................................................42
Cartéis .................................................................................................................................50
Gangues ...............................................................................................................................53
PARTE 3
Temáticas relacionadas ao crime organizado ......................................................................59
Corrupção ............................................................................................................................60
“Mercadorias políticas” .......................................................................................................64
Conclusões e resumos sobre o crime organizado ................................................................65
CAPÍTULO III
OS ESTUDOS MICRO E MACRO E A IMPORTÂNCIA DOS ESTUDOS MESO ..........71
Micro análise ........................................................................................................................73
Macro análise .......................................................................................................................77
xi
Conclusão sobre o escopo de análise meso ..........................................................................86
CAPÍTULO IV
O RELATÓRIO DA CPI DO NARCOTRÁFICO COMO FONTE DE DADOS ..............89
Brasil: Final dos anos 90, breve contexto ............................................................................90
O que são as comissões parlamentares ................................................................................91
CPI do Narcotráfico .............................................................................................................93
Vieses nos dados da CPI ......................................................................................................99
Conclusões do capítulo ......................................................................................................103
CAPÍTULO V
MÉTODOS
DE
ANÁLISE
E
SOFTWARES
EMPREGADOS
.............................................................................................................................................107
Triangulação .......................................................................................................................107
Grounded Theory ...............................................................................................................109
Passo a passo da coleta ao tratamento dos dados segundo a Grounded Theory ................111
Codificação aberta ..............................................................................................................113
Codificação axial ................................................................................................................116
Codificação seletiva ...........................................................................................................117
Matrix condicional .............................................................................................................119
Ferramenta de Pesquisa associada à Grounded Theory: NVivo 8 .....................................120
Princípios básicos do NVivo ..............................................................................................122
Nvivo aplicado à presente pesquisa ...................................................................................123
Análise de redes sociais .....................................................................................................126
Conceitos-chave de análise de redes ..................................................................................128
Propriedades das redes .......................................................................................................132
Como as redes estão presentes nesta pesquisa e ferramentas associadas às análises de
redes....................................................................................................................................136
A seleção da amostra ..........................................................................................................137
Conclusão do capítulo ........................................................................................................139
xii
CAPÍTULO VI
ENTRE POLÍTICOS, EMPRESÁRIOS E “BANDIDOS”: A ANÁLISE DOS DADOS
.............................................................................................................................................141
Construção da amostra dos casos ilustrativos da CPI do Narcotráfico ..............................141
Análise relacional ...............................................................................................................142
Análise dos mercados criminais acionados ........................................................................145
Casos ..................................................................................................................................147
Caso FAB ...........................................................................................................................156
Caso Rio de Janeiro – Beira Mar........................................................................................173
Caso São Paulo ..................................................................................................................193
Caso Acre ...........................................................................................................................212
Caso Alagoas ......................................................................................................................225
Caso Espírito Santo ............................................................................................................236
Conclusões do capítulo ......................................................................................................247
CAPÍTULO VII
DO MICRO AO MACRO: INDIVÍDUOS E MERCADOS .............................................251
PARTE 1
Perfil dos indivíduos: os estigmatizados ............................................................................252
O estigma do “bandido”......................................................................................................252
O estigma do “traficante” e do “ladrão de cargas” .............................................................255
Alguns dados estatísticos sobre o perfil dos indivíduos investigados ................................258
Perfil dos indivíduos indiciados .........................................................................................263
Biografias ...........................................................................................................................268
PARTE 2
Os mercados como categorias informativas sobre o crime organizado .............................273
Mercados, nichos e Estados ...............................................................................................282
Conclusões do capítulo ......................................................................................................284
xiii
CAPÍTULO VIII
EXPLORAÇÃO
EM
ESCALA
DOS
CASOS:
A
FORMA
DO
CRIME
ORGANIZADO..................................................................................................................287
Os casos estudados e a bibliografia sobre o crime organizado ..........................................289
Relações entre os indivíduos investigados e o crime organizado ......................................295
Organizações no crime organizado: contribuição ..............................................................304
Anotações sobre estruturas organizacionais .......................................................................310
Definindo, institucionalizando e contextualizando o híbrido na literatura ........................314
BIBLIOGRAFIA ..............................................................................................................333
APÊNDICE
Pertences
de
Beira
Mar
–
dados
extraídos
da
CPI
do
Narcotráfico,
resistematizados..................................................................................................................355
xiv
Para minha família, que nasceu e cresceu junto com essa pesquisa...
xv
xvi
AGRADECIMENTOS
De todas as etapas da escrita de uma tese, os “Agradecimentos” sempre acabam
ficando por ultimo apesar de serem os primeiros ensinamentos que um pós-graduando
aprende: a pedir e aceitar ajuda. Essa seção é a mais difícil de ser escrita não por que eu
tenha alguma dificuldade em reconhecer o papel dos outros na composição e processo da
minha formação, mas por justamente, na recordação desse processo - que em geral, dura
mais de quarto anos, e o meu foram quase seis – não esquecer de alguém. Afinal, são
longos anos de encontros, desencontros, tropeços, arremetidas, que posso acabar
esquecendo o nome de alguém, de alguma situação, de circunstancia – sobretudo, daqueles
momento dolorosos que propositalmente tento me esquecer, mas que na escrita desta seção
é imprescindível se lembrar de quem esteve ao meu lado. Por isso, minha dificuldade na
elaboração dos “agradecimentos” levou alguns meses e acabei derramando muitas vezes
algumas lágrimas... Com esforço de memória e ternura, apresento minha gratidão à todos
aqueles que estiveram comigo e, de alguma forma, me trouxeram até aqui.
Faço parte de um crescente grupo de pesquisadores que ousam e navegam por
novas metodologias e ferramentas de pesquisa. Ofereço esta tese à este grupo como prova
de que muitas descobertas ainda podem ser feitas, mesmo a partir de objetos já explorados.
Nunca é tarde para ousar.
Meu agradecimento seguinte vai para as instituições de fomento e pesquisa, sem as
quais seria, senão impossível mas, bastante difícil, levar a diante uma pesquisa em ciências
humanas. Agradeço particularmente ao CNPq pelo estímulo material que possibilitou que
eu me dedicasse exclusivamente a esse trabalho ao longo de quatro anos. E agradeço ainda
ao convênio Capes/Cofecub que possibilitou minha estadia por mais de um ano na França
para um “doutorado sanduiche” no qual aprendi muito sobre análise de redes e também
sobre a singularidade de alguns queijos e vinhos.
Sou imensamente grata ao professor Tom Dwyer, meu orientador, que me aceitou
mais uma vez como sua orientanda, mesmo havendo conflitos de objetos de estudo.
Permitiu que eu saísse para meu “doutorado sanduiche”, soube respeitar minhas decisões e
xvii
escolhas analíticas e ainda me “colocou de volta nos trilhos” nas incontáveis vezes em que
eu me perdi.
Não posso deixar de mencionar a sincera gratidão que tenho para com a professora
Angelina Peralva, que me recebeu de braços abertos na Université de Toulouse – Le Mirail,
França e soube o momento e a forma mais acertada de me dizer quando o caminho pelo
qual eu estava indo não seria muito promissor. Com ela aprendi a ser mais assertiva,
pragmática e didática, sobretudo, nas minhas incursões pelo universo da matemática
discreta e das análises de redes. Como Tom, Angelina sempre acreditou no meu trabalho e,
insistiu para que eu continuasse em algumas direções, mesmo que naquele momento eu
ainda não visse razão para aquilo.
À Jacqueline Sinhoretto, agradeço o interesse pelas minhas questões e pela parceria
em nosso trabalho sobre a CPI do Narcotráfico. Nossas reuniões pelo Skype com Angelina
permaneceram comigo durante toda a escrita desta tese. Obrigada pelos convites e trabalhos
que desenvolvemos juntas e pelo carinho com que sempre me recebeu na UFSCar.
A concretização desta pesquisa só foi possível com a gentil parceria de Angelina
Peralva e Jacqueline Sinhoretto que me apresentaram ao relatório da CPI do Narcotráfico e
dividiram comigo suas preocupações iniciais sobre ele. A partir daí, mergulhar no universo
das CPIs foi um passo que eu dei com a garantia do acerto, uma vez que essas duas grandes
pesquisadoras me deram a trilha do “caminho das pedras” e eu pude seguir confiante.
Agradeço ao professor Sergio Adorno que, duplamente encontrou um espaço em
sua atribulada agenda para discutir meu trabalho no exame de qualificação e,
posteriormente, na minha defesa. A Guaracy Mingardi que se ausentou da Comissão
Nacional da Verdade e se abalou até São Paulo para traçar enriquecedores comentários
sobre o meu trabalho no exame de qualificação e mais uma vez na defesa final desta tese.
Agradeço aos professores Ricardo Dahab e Valeriano Mendes que gentilmente
aceitaram o desafio de compor a minha banca de defesa de tese, mesmo trabalhando em
temas e áreas tão distantes, mas que, de alguma forma dialogam com o material ou método
de pesquisa empregado.
Agradeço aos professores Michel Misse, Fernando Lourenço e Bruno Speck que
prontamente aceitaram compor a suplência da citada banca.
xviii
Minha gratidão especial aos funcionários do Instituto de Filosofia e Ciências
Humanas que sempre foram solícitos em atender minhas demandas. Um obrigada especial
para o secretário da pós graduação em Ciências Sociais, Reginaldo Alves, que sempre me
ajudou com meus problemas com prazos, cartas, pedidos, etc.
Há quem diga que o processo criativo e os estudos acadêmicos deixam-nos mais
insulares que nunca. Concordo em parte, porque, por mais isolados que estejamos durante o
percurso de escrita da tese, os verdadeiros amigos e companheiros de jornada estão sempre
presentes. Agradeço aos meus amigos (acadêmicos e não acadêmicos), cujos nomes não
vou citar, na certeza de estar esquecendo de alguém, e que estiveram presentes me
arrebatando de frente do monitor do computador e me levando para “dar uma volta”, me
ajudando até aos últimos momentos da escrita e respeitando minhas decisões de novamente
me isolar.
Minha pequena família (Roberto Gallo, meu esposo, Flon Gallo e Klin Gallo,
minhas companheiras peludas e gigantes e agora, meu bebê que ainda está a caminho,
Pietro Gallo) me trouxeram a alegria e perseverança naqueles dias que eu pensei em “jogar
tudo pra cima” e desistir. Sou imensamente grata por me ajudarem a continuar: Roberto
com palavras de incentivo e com o exemplo de sua brilhante carreira acadêmica; Flon e
Klin, através de seus olhares meigos e gentis e Pietro, com seus incontáveis chutes. Com
vocês dividi meus medos e frustrações, minhas conquistas e entusiasmos e souberam
recebe-las e dosá-las de tal forma que me fizeram forte e confiante para continuar.
Agradeço particularmente ao meu filho, Pietro, que carrego dentro de mim e que, nos
últimos meses, tem me tornado mais serena, confiante, disciplinada e feliz. Obrigada, bebê!
Aos meus pais – Irene e Pedro que me ensinaram que nem sempre a jornada é
simples, mas que vale a pena continuar. Em outras lições, me mostraram que é melhor se
recolher para então dar o salto. Com isso, aprendi que é preciso saber o momento certo para
cada coisa. Ao meu avô Felício que nos deixou antes de poder compartilhar as felicidades
dos últimos tempos, minhas saudades. Às minhas irmãs (Mônica, Yara e Valéria) que, com
suas atitudes me mostraram a importância das conquistas e de insistir quando os desafios se
mostram presentes. Aos meus cunhados e tios sou grata pelo incentivo e oportunidade de
concluir meus estudos. Obrigada, família, por me amarem e respeitarem minhas decisões,
xix
tenho por vocês a mais profunda e genuína admiração, mesmo que às vezes silenciosa.
Finalmente, agradeço a Deus, que esteve comigo no “deserto”, me mostrou a saída
e, quando eu não tinha mais forças, me carregou no colo.
xx
ÍNDICE DE FIGURAS, TABELAS, QUADROS E GRÁFICOS
FIGURAS
FIGURA 1 – Estrutura organizacional dos Maras ...............................................................56
FIGURA 2 – Dados da CPI inseridos no software NVivo .................................................124
FIGURA 3 – Categorias inseridas no software NVivo – representação nós .....................125
FIGURA 4 – Díades e tríades ............................................................................................129
FIGURA 5 – Esquema de laços fortes e fracos de Granovetter .........................................134
FIGURA 6 – Mapa do Brasil com os casos apontados através das relações dos indivíduos
investigados ........................................................................................................................154
FIGURA 7 – A rede internacional da FAB ........................................................................162
FIGURA 8 – Organograma caso FAB ...............................................................................164
FIGURA 9 – A rede geral do caso FAB ............................................................................165
FIGURA 10 – Rede caso FAB – foco na relação de Paulo e Luís .....................................166
FIGURA 11 - Rede caso FAB – foco na relação de Washington e Zau ............................167
FIGURA 12 - Rede caso FAB – foco na relação de Washington, Paulo e Zau .................169
FIGURA 13 - Rede caso FAB – foco nas relações de confiança .......................................171
FIGURA 14 – Organograma de Fernandinho Beira Mar ...................................................180
FIGURA 15 – Organização de Beira Mar ..........................................................................183
FIGURA 16 – Organização de Beira Mar com tipos de relações ......................................184
FIGURA 17 – Organograma da organização de Beira Mar – hierarquia 1 assinalada ......186
FIGURA 18 - Organograma da organização de Beira Mar – rede assinalada ...................188
FIGURA 19 – Organização descentralizada ......................................................................189
FIGURA 20 – Organograma da organização de Beira Mar – hierarquia 2 assinalada ......192
FIGURA 21 – Rede de traficantes do interior paulista ......................................................196
FIGURA 22 – Rede de Maria do Pó – parcial da rede de Sozza .......................................199
FIGURA 23 – Interconexões entre as redes de Sozza, Maria do Pó, Roubo de Cargas e PC
Farias ..................................................................................................................................201
FIGURA 24 – Organização de Sozza ................................................................................203
xxi
FIGURA 25 – Organograma da organização liderada por Sozza ......................................208
FIGURA 26 – Relações entre Roubo de Cargas, Tráfico de drogas e o Caso PC Farias
.............................................................................................................................................210
FIGURA 27 – Classificação das atividades dos indivíduos envolvidos com a organização
de Hildebrando ...................................................................................................................217
FIGURA 28 – Rede de Hildebrando com subgrafos .........................................................223
FIGURA 29 – Organograma da Família Pascoal ...............................................................224
FIGURA 30 – Rede de PC Farias ......................................................................................228
FIGURA 31 – Organograma da Família Farias .................................................................229
FIGURA 32 – Rede de vendas de alvarás de soltura .........................................................232
FIGURA 33 – Scuderie Le Cocq assinalada com a rede dos envolvidos com a máfia dos
municípios ..........................................................................................................................240
FIGURA 34 – Tráfico de drogas ........................................................................................242
FIGURA 35 – Bicheiros e traficantes ................................................................................244
FIGURA 36 – Organograma Scuderie Le Cocq ................................................................246
FIGURA 37 – Scuderie Le Cocq sob a chefia de Gratz ....................................................247
FIGURA 38 – Tipos de atividades econômicas e suas inter-relações ...............................276
FIGURA 39 – Conexões entre mercados – CPI do Narcotráfico ......................................280
FIGURA 40 – Modelo híbrido de Tusikov ........................................................................321
TABELAS
TABELA 1 – Sistematização das características do crime organizado, segundo as
perspectivas
do
Direito
e
da
Sociologia
e
exemplos
de
organizações
criminosas.............................................................................................................................68
TABELA 2 – Parlamentares, estado de origem e tipo de envolvimento com as investigações
da CPI .................................................................................................................................100
TABELA 3 – Resumo das definições de conceitos primários em análise de redes ...........132
TABELA 4 – Resumo de propriedades analíticas em análise de redes .............................135
TABELA 5 – Resumo dos casos da CPI do Narcotráfico, crimes contemplados e perfil dos
indivíduos ...........................................................................................................................147
xxii
TABELA 6 – Ocupação dos indivíduos acusados (casos citados apenas) .........................259
TABELA 7 – Tipos de organizações criminosas e particularidades organizacionais ........292
TABELA 8 – A influência dos conteúdos sobre as formas em atividades criminosas ......294
TABELA 9 – Características dos grupos oportunistas e especialistas ...............................302
TABELA 10 – Características do crime organizado presentes nos casos estudados .........305
TABELA 11 – Comparativo entre hierarquia e redes na organização de Beira Mar .........311
TABELA 12 - Estruturas organizacionais criminais: proposta do híbrido ........................324
QUADROS
QUADRO 1 – Quadro avaliativo de organizações do crime organizado ............................79
QUADRO 2 – Definição de modelos de organização do crime organizado, segundo
UNODC ................................................................................................................................81
QUADRO 3 – Estrutura básica de uma organização criminosa estabelecida em uma favela
carioca ................................................................................................................................179
GRÁFICOS
GRÁFICO 1 – Ocupação dos indivíduos acusados (resultados parciais) ..........................261
GRÁFICO 2 – Gráfico dos casos analisados – número absoluto de indivíduos envolvidos
segundo atividade ...............................................................................................................262
GRÁFICO 3 – Indiciados pela CPI do Narcotráfico, segundo ocupação (%) ...................263
xxiii
INTRODUÇÃO
Durante os anos de graduação interessei-me pelo cotidiano, dilemas e problemas
que os adictos carregam por consequência do uso de certas drogas, sobretudo no que tange
ao percurso de recuperação pelo qual a maioria passa. Foi quando, por intermédio de um
deles, conheci os grupos de mutuo-ajuda que tratam dos mais diversos tipos de adicção:
desde o uso de drogas, passando pelo alcoolismo, jogos, relacionamentos, sexo, até a
neurose.
Por curiosidade comecei a frequentar os grupos e tentar entender como
funcionavam, um ano depois, me vi estudando-os. Comecei primeiro como os grupos de
familiares e depois os grupos de narcóticos anônimos aonde fui admitida ora como
pesquisadora ou como frequentadora – me apresentando como adicta sem, na verdade, sêlo. Frequentei o Narcóticos, Alcoólicos e Neuróticos Anônimos por cerca de dois anos,
procurando compreender aquilo que Victor Turner - em outro contexto de pesquisa chamou de “processo ritual”. Escrevi minha monografia sobre esse assunto e, seis anos
mais tarde minha curiosidade voltou a me incomodar. Me incomodou tanto que decidi pular
o muro, deixar o universo do adicto do “lado de lá” e vir dar uma espiada no “lado de cá”,
no que se passa no mercado da droga, sobretudo no universo do atacado, pouco estudado
pelas Ciências Sociais.
Nunca tive intenções de entender o que se passava em uma boca de fumo: sobre isso
existem excelentes etnografias, além do mais, durante minha pesquisa de campo no
Narcóticos Anônimos tive inúmeros informantes que poderiam me contar as minúcias do
cotidiano do tráfico, por isso, a pesquisa que estava sendo realizada pelas profas. Dras.
Angelina Peralva (Université de Toulouse/FR) e Jacqueline Sinhoretto (Universidade
Federal de São Carlos/BR) sobre a CPI do Narcotráfico me pareceu tão interessante: ela
tratava do “não dito” sobre o mercado da droga.
Inicialmente, Angelina e Jacqueline me forneceram bons referencias para estudar o
mercado da droga, uma vez que estavam começando a analisar o relatório da CPI do
Narcotráfico e este começava a tornar evidente a “doce” relação que se estabelecia entre o
tráfico de drogas e alguns políticos, empresários, juízes.
1
Foi então que surgiu a oportunidade de estudar o relatório da CPI do Narcotráfico e
investigar o “alto escalão” da droga no Brasil. Bastante enriquecedor foi o diálogo
estabelecido com as pesquisadoras na medida em que elas me ajudaram com as
bibliografias iniciais (com as quais eu não tinha contato) e me apresentaram a base de
dados ACCESS desenvolvida em 2008 por Jacqueline. Esta base de dados me deu as
diretrizes das informações mais gerais que poderiam ser extraídas do relatório da CPI e me
ajudou a desenvolver a minha própria base de dados em NVivo com a qual acabamos por
enriquecer a base ACCESS em um processo de retroalimentação.
Por essa razão, é preciso esclarecer que a pesquisa que deu origem a presente tese é
parte de um esforço acadêmico maior orquestrado pelas Profas. Angelina Peralva e
Jacqueline Sinhoretto1. Esse trabalho, por sua vez, está inserido em uma grande pesquisa
temática2 dirigida pelas Profas. Dras. Vera Telles (USP/Brasil) e Angelina Peralva, que
contou com o apoio de uma dezena de docentes que coordenam várias frentes de pesquisa
sobre a temática do lícito e do ilícito no Brasil.
1
Para a realização da presente pesquisa contou-se também com o apoio do Núcleo de Estudos da Violência
NEV/USP ao qual dirijo meus mais sinceros agradecimentos.
2
Esse grupo apresenta como norteador o projeto de pesquisa intitulado Trajetórias, circuitos e redes urbanas,
nacionais e transnacionais e o seu impacto sobre a arquitetura institucional democrática, desenvolvido com
apoio da parceria CAPES/COFECUB. Tal projeto parte do paradigma erigido a partir da discussão acerca da
integração regional “paralela” (PROCÓPIO, 2005) e se propõem a pensar a temática do descompasso entre
“Brasil legal” e “Brasil real” colocando em foco as ambivalências e limites da legalidade construída após a
democratização brasileira, e a garantia os direitos políticos democráticos adquiridos (TELLES, 2006).
Procurando entender como estas questões têm sido trabalhadas e redefinidas no cenário das transformações
atuais e, sobretudo, como a singularidade brasileira absorve essa relação aparentemente conflituosa, o citado
projeto visa desenvolver e entender a costura existente entre o “legal e o ilegal”. Nessa linha de raciocínio,
encontram-se os “dispositivos de exceção” (AGAMBEN, 2002) entendidos como marco teórico para o citado
projeto de pesquisa e que, segundo Telles, podem ser vistos como elementos-chave para se entender essa
“nova ordem das coisas”. Segundo a autora, por exceção entende-se, como as tensões do mundo são
construídas na fricção entre os “indivíduos governáveis” (FOUCAULT, 2004) e o que escapa dos
“dispositivos gestionários” e cai nas bordas de uma suposta “legislação da exceção” (AGAMBEN, 2002).
Segundo o projeto, essa “exceção” precisaria ser melhor entendida para se pensar nos tempos atuais em que
ela se tornou a regra. De uma maneira geral, a ideia de “exceção que se transformou em regra” remete a
formação de uma subpolítica inerente à sociedade civil, produto e produtora dos processos de globalização
econômica e social que estariam minando a soberania do Estado (HELD e MCGREW, 2001); dos novos
processos de consumo e de produção que reforçam o poder das grandes corporações econômicas e
enfraquecem as regulações vigentes do mercado (PERALDI, 2007); da rapidez das mudanças tecnológicas
(CASTELLS, 2006); do fluxo de pessoas, mercadorias e de capitais em ritmo e proporções jamais conhecidos
anteriormente (HERBERT, 1999), dentre outras questões similares.
2
O trabalho de pesquisa realizado em parceria com Angelina e Jacqueline produziu
uma série de artigos3,4, e permitiu nos debruçarmos sob o Relatório da CPI do Narcotráfico
(CÂMARA DOS DEPUTADOS, 2000) agora tomando-o como uma fonte de dados,
colocando nossos questionamentos no mesmo paradigma da relação entre o ‘lícito e o
ilícito’ proposto pela pesquisa temática5 com a qual dialogávamos.
Ao mesmo tempo em que o relatório da CPI parecia muito promissor enquanto fonte
de dados, quando contava para quem quer que fosse, que meu objeto de pesquisa, a esse
momento inicial era o narcotráfico no Brasil no final da década de 90, a primeira pergunta
que surgia era: “Ah! Mas você não tem medo de ir entrevistar traficante?”. Então eu
respondia que eu não ia fazer isso, que utilizaria inicialmente do Relatório da CPI do
Narcotráfico como fonte de dados. Então, vinha a crítica e o descrédito, seguidos de um
“Ah tá...”. Foi isso o que me motivou a realizar uma crítica da fonte, em tom de mea culpa
por algumas incoerências que se lê no Relatório e outras mais que são apenas de
conhecimento público revelado através da mídia. Todavia, mesmo sendo o relatório um
texto político, passível de manipulações nesse sentido, datado - com mais de 14 anos – ele
ainda apresenta contribuições, tal como o envolvimento de representantes e agentes do
Estado com situações criminosas.
Meus primeiros mergulhos nas mais de 1200 páginas do Relatório se deu em caráter
experimental, procurava algo “original” e fui arrebatada logo no início pelos indivíduos
investigados: “quem eram, o que faziam, o que fizeram, do que estavam sendo acusados”,
tudo isso destoava do velho pilar construído entorno da figura do traficante “negro, pobre e
jovem”6. Na verdade, a realidade apresentada nos dados da CPI era bem diferente e isso me
preocupou: tive que me habituar aos relatos sobre políticos, empresários e advogados que
3 PERALVA, A., SINHORETTO, J. e ALMEIDA GALLO, F. Economia da droga, instituições e política no
Brasil: a CPI do Narcotráfico. In: Christian Azäis, Gabriel Kessler, Vera da Silva Telles. (Org.). Ilegalismos,
cidade e política. 1ed.Belo Horizonte: Traço Fino, 2012.
_______. Economia da droga, instituições e política: os casos de São Paulo e Acre na CPI do Narcotráfico.
Anais da ANPOCS, Caxambu, 2010.
Entre outras, ainda no prelo.
4
Utilizarei como referência na seção 3 alguns gráficos desenvolvidos a partir da base de dados ACCESS
criada por Sinhoretto para quantificar os dados qualitativos existentes na CPI do Narcotráfico acerca do perfil
dos indivíduos investigados. Muitos desses gráfico estão disponíveis nos artigos citados na nota anterior.
5
Me refiro à temática de pesquisa desenvolvida pelas Profas. Dras. Vera Telles e Angelina Peralva, discutida
anteriormente. Para saber mais, vide nota 2.
6
SOARES, BILL e ATHAIDE, 2005.
3
matavam e “mandavam matar”, que exportavam quilos e quilos de cocaína, que se
envolviam com roubos de cargas, que pilhavam os cofres públicos de cidades, etc., enfim,
uma realidade bastante diferente daquela que se lia nos jornais e cujos livros, pesquisas de
campo e etnografias sobre o tráfico de drogas, roubo de cargas e homicídios não abordava.
Durante o período do meu “doutorado sanduíche” fiz uma imersão completa no
universo investigado pela CPI do Narcotráfico, foi aí que surgiram meus diagramas, que a
princípio funcionavam como “mapas mentais” para que eu pudesse entender o que estava
sendo relatado, e foi então que me dei conta de que o tráfico de drogas não caminha
sozinho: ele precisa de “crimes conexos”, tais como a lavagem de dinheiro, homicídios,
tráfico de influências, para citar apenas alguns, como mantenedores do tráfico,
propriamente dito.
Todavia, foi os trabalhos de alguns pesquisadores europeus7 sobre o tráfico de
drogas e sua relação com outros mercados criminais, como a prostituição, tráfico de
pessoas, as máfias italianas, etc., que me fizeram pensar em analisar o conteúdo do
Relatório da CPI do Narcotráfico como uma descrição do Crime Organizado no Brasil
muito mais rica que somente dados sobre o tráfico de drogas, uma vez que os elementos
constituintes do crime organizado, tais como a formação de organização hierárquica,
especialização e divisão de tarefas, acesso a indivíduos e esferas do Estado, lavagem de
dinheiro, acesso a outros crimes conexos que ajudariam a organizar e a promover o tráfico,
estavam presentes nesse relato. O estudo sobre diferentes tipos de crime organizado, como
máfias, cartéis, gangues e bandos, me ajudaram a ampliar a lente a partir da qual eu olharia
para meu objeto de estudos. Esses estudos também me levaram a perceber minúcias e
especificidades do crime organizado que eu estava começando a investigar, que me pareceu
um conjunto muito mais interessante do que explorar apenas o narcotráfico.
Saí em busca de uma bibliografia brasileira que me ajudasse a entender o crime
organizado no Brasil. Entretanto, como acontece com outros fenômenos em constante
mutação, nesse conjunto de estudos nunca se chegou a um consenso sobre sua definição e
caracterização e apenas um estudo apontou em uma direção coerente: poucos anos antes da
7
Vide Labrousse (1996), Kokoreff (2004), Missaoui (2010), Rivelois (2000), Ruggiero (1992), Tarrius
(2010).
4
CPI do Narcotráfico divulgar seu relatório final, Guaracy Mingardi (1998) foi um dos
primeiros que ousou dizer que existia crime organizado no Brasil, em um momento em que
as etnografias e microssociologia afirmavam que o mesmo ainda não havia se concretizado.
De certa forma, não estavam errado, uma vez que o crime organizado dificilmente é
captado e percebido na rotina de bocas de fumo, bordéis ou bancas de jogo do bicho, enfim,
o crime organizado parecia não estar presente nos cotidianos estudados, mas estava.
Acredito que isso se deve a uma questão de foco – para onde se está olhando, e nível –
micro ou macro sociologia. Guaracy olhou para o tráfico de drogas e o roubo de cargas no
interior do estado de São Paulo para fazer suas afirmações em relação à existência do crime
organizado, mas não se deteve no pequeno grupo de ladrões e traficantes estudados, ele
adicionou dados da polícia federal que os ligava à políticos, policiais e empresários, enfim,
sujeitos que não estão presentes no cotidiano do tráfico ou dos roubos, mas que, de alguma
forma, cruzavam os mesmos caminhos do crime.
Buscando avançar além do trabalho de Mingardi acrescentei às minhas fontes de
dados o relatório da CPI do Crime Organizado (CAMARA DOS DEPUTADOS, 2003) e
Roubo de Cargas (DIARIO DO SENADO FEDERAL, 2003). Porém, em termos de riqueza
de detalhes e aprofundamento investigativo, aos poucos, o relatório da CPI do Crime
Organizado se mostrou menos informativo do que o da CPI do Narcotráfico – do qual eu
dispus dos depoimentos prestados na integra, graças à gentileza do Prof. Dr. Michel Misse
(UFRJ) que os cedeu.
Assim, tomando o cuidado para não cair na tentação de fazer muito mais uma
investigação criminal do que uma análise sociológica, fui estudando o relatório da CPI do
Narcotráfico como minha principal fonte de dados, e tomei o cuidado de usar fontes
complementares confiáveis para checar e comparar os dados disponíveis. Esse exercício
permitiu distanciar-me do meu objeto e assumir uma postura crítica frente ao que eu lia e
interpretava. O mais difícil foi lidar com a linguagem utilizada pelos relatores da CPI que –
ora prezavam pelo uso de terminações jurídicas para identificar o “criminoso”, ora usavam
linguagens policiais, como a palavra “elemento” para se referir ao indivíduo praticante de
um dado delito. “Aprender a língua” e me lembrar “sobre os ombros” de quem eu estava
olhando foram dois desafios para mim, uma vez que o relatório da CPI apresenta textos e
5
fatos sedutores, à ponto de fazer o leitor submergir e acreditar em tudo o que está sendo
dito. Entender como a CPI qualificou os indivíduos investigados e, sobretudo, desconstruir
essa “representação” foi mais um desafio que se impôs. Becker e sua teoria da
“etiquetagem” me ajudaram a caminhar sobre esse terreno.
Assim, a problematização desta pesquisa se apresentou a partir do momento em que
deixei de lado o cenário do narcotráfico e passei a pensar sobre o crime organizado,
partindo do princípio de que este é um dado e não uma incógnita, e que precisa ser
compreendido, trilha já apontada por Mingardi à mais de 10 anos atrás e até então
inexplorada.
Aos poucos, quando comecei a lidar com os indivíduos investigados pela CPI, suas
estórias, trajetórias e relações, fui “desenhando” suas redes e diagramas, e percebendo
nuances de formas de organização (hierarquia, rede, etc.) com os quais já estava
familiarizada a partir de pesquisas anteriores8. Foi esse percurso, associado à bagagem
bibliográfica sobre os diferentes tipos de crime organizado que adquiri na minha estadia na
França, e que me conduziram para um estudo sobre as categorias organizacionais do crime
organizado. Nesse contexto, o cenário complexo se estabeleceu uma vez que o relatório não
tratou apenas do tráfico de drogas, mas de uma série de outros mercados ilegais, como o
roubo de cargas, lavagem de dinheiro e sobre o envolvimento de mercados e comércios
considerados lícitos com o universo ilícito. Portanto, para alcançar um nível de análise
substancial, parti do princípio de que o crime organizado existe no Brasil, precisa ser
compreendido em sua forma e conteúdo e quiçá, apresenta particularidades.
Foi então que meu trabalho começou a ganhar “forma”, literalmente, uma vez que
por essa época tomei contato (mesmo que tardiamente) com os trabalhos de Simmel e sua
sociologia formal. Isso me ajudou a entender aquilo que eu achava que eram “modelos
organizacionais”, mas que na verdade eram apenas uma representação de uma dada
realidade, não um padrão. Simmel me ajudou a entender a diferença entre forma e conteúdo
e daí surgiram as ideias que apresento nesta tese.
Para tanto, proponho ainda o estabelecimento de uma meso sociologia, capaz de
captar o que existe entre os trabalhos de campo e as grandes cifras da ONU sobre o crime
8
Em minha pesquisa de mestrado trabalhei com relações de poder e análise de redes sociais.
6
organizado. A análise de meso escala pareceu-me ser a mais indicada para apreender tal
fenômeno uma vez que o mesmo foi assumido entre esses dois alicerces. A importância da
meso sociologia para os estudos sobre o citado tema está baseada nas contribuições que esta
pesquisa trará para o campo de estudos do crime organizado uma vez que nenhuma outra
pesquisa foi realizada sobre o fenômeno partindo dessa perspectiva analítica.
Todavia, esta não foi uma tarefa trivial uma vez que a informação sobre o crime
organizado é muitas vezes limitada a anedotas e estudos de caso pontuais sobre um
determinado varejista, esquecendo-se dos grandes atacadistas e seus “associados” que se
encontram na base de todo o universo criminal. São raros os conjuntos de dados globais
publicamente disponíveis sobre temas referentes ao crime organizado, sendo que destes,
nenhum é abrangente o suficiente para realizar-se uma análise em escalas que não perca
legitimidade frente a sociedade tocada pela problemática do crime e nem que se torne
caricaturável e, portanto, improvável de ser politicamente aceita.
Portanto, ante a minha trajetória na presente pesquisa, é possível perceber que a
hipótese foi baseada em uma construção indutiva, ou seja, ela esteve atrelada à curiosidade
em querer conhecer o que mais o relatório da CPI do Narcotráfico poderia informar, para
além do dito. Esse percurso me levou a pensar que o crime organizado (presente nos casos
estudados) pode ser representado como o produto de uma série de tipologias criminais, tal
como as máfias italianas, os cartéis mexicanos e até mesmo organizações não criminais,
como empresas, sindicatos e ONGs. Nessa lógica, o mesmo se manifesta em forma de
hierarquias e em forma de redes, cuja combinação permitirá ser chamado provisoriamente
de “híbrido”, despontando como um possível tipo explicativo sobre as formas
organizacionais encontradas nos casos estudados.
Assim, esta tese teve por objetivo mostrar que o crime organizado no contexto dos
casos estudados, possui particularidades que o tornam sui generis e de difícil identificação
imediata, cujas propriedades devem ser conhecidas, se deseja um efetivo controle e
combate.
Minha proposta ao longo dessa tese, sobretudo quando trabalhei com análise de
redes e verificação de formas e estruturas, foi mostrar que existem indivíduos nas
organizações que não são vitais para a manutenção da mesma, mas que, se descobertos e
7
combatidos são de extrema utilidade para sua fragmentação e extinção. Também procuro
mostrar aonde estão localizados os indivíduos que geralmente se revelam nas pesquisas de
campo e etnografias e que não estão presentes nos estudos da ONU, como políticos, juízes,
empresários, etc.
Nesse sentido, o tema central da presente tese são as formas de organização
adotadas pelo crime organizado presente nos seis casos investigados do ponto de vista da
meso escala de análise.
Finalmente, este trabalho utilizou da triangulação como instrumento de pesquisa,
objetivando dar às fontes de dados utilizadas um tratamento empírico indutivo que tem por
função abrir o horizonte dos estudos sobre o crime organizado no Brasil para novos
paradigmas. Busquei com isso identificar e estabelecer um construto teórico aplicável sob o
ponto de vista da Sociologia que estuda as organizações criminosas aproximando-o e
testando-o o máximo possível nos estudos de casos de meso escala.
Para tanto, dividi a tese em alguns capítulos: inicio bebendo do pensamento de
George Simmel e de sua sociologia formal que utiliza formas e conteúdos para capturar o
teor das interações e relações sociais examinadas nos estudos de caso contidos no capítulo
VII e estabeleço uma base que considero bastante frutífera para futuras análises que serão
realizadas ao longo desta pesquisa. Recomendo fortemente a leitura deste capítulo para
aqueles que não estão familiarizados com a sociologia formal de Simmel; os demais,
sintam-se a vontade para seguir direto para o capítulo II.
No capítulo II discuto o que é o crime organizado a partir das premissas jurídicas e
sociológicas a fim de entender os debates entorno de suas definições. Neste capítulo são
lançadas as bases através das quais procuro entender o que são e como se estabelecem as
máfias, cartéis, gangues, etc. Pretendendo com isso mostrar alguns avanços em relação aos
estudos sobre esses diferentes tipos de organizações criminosas e a diferenciação existente
entre suas definições sobre crime organizado. Se meu leitor é conhecedor da temática,
sinta-se a vontade de passar ao capítulo seguinte.
No capítulo III descrevo o que são as análises meso, estabelecendo-as entre as
(micro) pesquisas de campo e etnografias e os (macro) estudos da ONU sobre o tráfico de
8
drogas e crime organizado, afim de mostrar a contribuição acadêmica da presente pesquisa
e a importância de que outros estudos sejam realizados com os mesmos referenciais.
No capítulo IV apresento a CPI do Narcotráfico como a fonte principal dos dados
utilizados, mostrando como foi concebida, quais dificuldades de leitura apresentou,
compreensão do relatório final e possíveis manipulações em seu texto final se comparados
aos fatos noticiados na mídia da época. Por essa razão, procurei nesse mesmo capítulo
realizar uma análise crítica da fonte, a fim de identificar e neutralizar os vieses que a
mesma contém.
O capítulo V é marcado pela combinação de diferentes métodos e ferramentas de
pesquisa acionados para a leitura e entendimento do Relatório da CPI do Narcotráfico.
Esses métodos permitem conhecer em profundidade o relatório, e “navegar” entre seus
“casos”, de modo a melhor explorar suas interconexões – já percebido nas primeiras
leituras do texto. Essa combinação de métodos inclui a Grounded Theory, uso de
metodologias informacionais e análise de redes sociais. Se o leitor está familiarizado com
as etapas de análise da Grounded Theory ou for usuário das ferramentas de análises de
redes sociais e suas definições, pode seguir para o capítulo VI.
O capítulo VI aborda seis casos da CPI considerados os mais ilustrativos sobre o
obscuro jogo de poderes estabelecido entre o poder público e/ou político e os mercados
(legais e ilegais). Para tanto são recontadas as estórias desses casos e esboçadas questões,
análises e padrões, nos arranjos organizacionais utilizados. Esses casos privilegiaram a
descrição de organizações de pessoas, de rotas de transporte e de fluxo de negócios - do
comércio da droga no atacado e também de outros mercados ilegais. Nesse mesmo capítulo
são trabalhadas as relações estabelecidas entre os indivíduos que ilustram cada um desses
casos, perfil dessas relações, tipologias organizacionais acionadas e análises de forma e
conteúdo das mesmas.
No capítulo VII apresento duas categorias de análise – mercado e indivíduos – que
foram imprescindíveis nas análises dos casos realizados no capítulo anterior. Para tanto,
investigo a origem, descrição e aplicação analítica desses dois marcadores.
No capítulo VIII sistematizo os dados recolhidos nos casos estudados nos capítulos
anteriores e trabalho com as informações contidas no relatório da CPI do Narcotráfico que
9
permitiram alcançar dois referenciais distintos: indivíduos e organizações que ajudam a
entender o crime organizado a partir de um ponto de vista meso e a questionar se estaríamos
diante de um tipo específico (e novo) de organização criminosa, sobre a qual a bibliografia
nacional nada fala. Desta forma, o tema do crime organizado é retomado e os pontos que o
caracterizam são analisados. Dos casos estudados, alguns pontos foram questionados e
descobriu-se que paradigma do crime organizado pode estar em mutação e caminhando
para direções diferentes das canônicas máfias. Para tanto, introduzo um tipo ideal novo e
particular aos casos estudados, que são as organizações hibridas, definindo-as e
exemplificando como as mesmas se desenvolveriam nos contextos estudados.
10
CAPÍTULO I
SOCIOLOGIA FORMAL
Para tentar compreender como o crime organizado se comporta nos casos que serão
estudados, proponho dar um passo atrás e usar ferramentas analíticas da micro sociologia
aplicadas à um fenômeno que considero meso. Vou então buscar nas interações sociais dos
indivíduos investigados formas de organização e conteúdos, enfim, elementos que as
ampare e que possam indicar um caminho analítico fértil. O presente capítulo tem a
finalidade de mostrar como Simmel alcançou sua sociologia formal e de que maneira esta
pode contribuir para a presente pesquisa.
A proposta analítica de Simmel lançou as bases da sociologia formal. Observando a
Alemanha no final do séc. XIX quando entrava no período inicial de industrialização,
Simmel bebeu do neokantismo, marcante nessa época, e que já demonstrava grande
preocupação com o dualismo conteúdo e forma das relações sociais. Todavia, Simmel se
distancia de Kant ao definir a existência de uma historicidade recorrente às estruturas
cognitivas. Para ele, as formas são históricas e mudam com o tempo, ao contrário do que
pensava Kant.
As mudanças na Alemanha levaram muitos intelectuais da época a procurar estudar
temas presentes nessas transformações, como o capitalismo, a tecnologia, o status social, as
classes sociais e o dinheiro. Simmel se preocupava com a postura dos indivíduos frente ao
novo mundo urbano e suas reações, para tanto, se concentrou nas formas específicas de
interação, pensando-as a partir da figura do estrangeiro, do capitalista, do pobre, do homem
da nova metrópole que era Berlim. Para tanto, voltou-se aos problemas mais profundos da
vida moderna, tais como a pretensão do indivíduo em preservar sua autonomia e a
peculiaridade de sua existência frente à sociedade baseada na diversidade de círculos
sociais somados a um aumento crescente da falta de vínculos antes presentes nas relações
tradicionais e ao novo modo de divisão do trabalho. Essas particularidades da vida nos
centros urbanos, para Simmel era refletidos e expressos em sentimentos de desamparo,
solidão e alienação.
11
Nesse percurso, Simmel pensava na sociedade em que vivia e nos novos tipos de
relações entre as pessoas e das pessoas com as coisas e, foi assim que chegou a uma tese
sobre o significado do dinheiro. Para ele, o dinheiro está ligado às mudanças que a
economia produzem nas relações sociais. Simmel via o dinheiro como algo impessoal e
universal que estaria substituindo os vínculos de sangue e de parentesco no relacionamento
entre as pessoas e delas com os grupos. Além disso, ele acreditava que na vida contábil, não
haveria mais individualidade, mas apenas relações monetárias.
Por essa razão, Simmel percebeu que as relações individuais mudavam. Foi essa
micro sociologia que deu origem aos preceitos básicos das análises sobre a “sociação”,
outro conceito cunhado pelo sociólogo. Por mais diferentes que sejam os interesses e os
propósitos que levam os homens associar-se, as formas sociais de interação podem ser
similares, mas nunca idênticas; segundo Cohn (1998) elas são derivadas de fluxos. Há
processos de conflito e cooperação, subordinação, poder, descentralização, centralização
que atravessam as mais variadas estruturas sociais.
A tarefa de Simmel consiste em captar no momento mesmo da sua emergência os
processos de sociação, aqueles em que os fluxos da experiência vivida ganham
forma e persistem para além dos conteúdos íntimos originais. Feito isso, a
demonstração de como essas formas operam na organização das interações é
mera decorrência, por mais que ocupe espaço na sua obra. Para dar conta dessa
tarefa ele oscila entre dois modelos. O primeiro é de caráter energético. A vida
(o fluxo das experiências) aparece como fonte de energia que alimenta as
relações recíprocas dos elementos. A sociedade figura aí como um conjunto de
aproximações e afastamentos, no quadro dos efeitos da presença desses
elementos. A reciprocidade desses efeitos é o traço mais marcante desse modelo.
Mas há um outro modelo, não tão nítido mas inseparável do anterior, no
pensamento de Simmel. A este, por falta de outro termo, denominarei modelo da
impregnação significativa do conjunto das relações entre os indivíduos. Sob esse
ângulo, a dimensão significativa impregna a vida social, é o éter em que se
movem os homens. (COHN, 1998, p. 03)
Simmel não fala de socialização, que pressupõe muito mais a formação do sujeito a
partir das determinações sociais, mas sim de sociação, que seria a forma pura de interação
entre os indivíduos. Sua sociologia, não visava determinar leis empíricas e universais para o
mundo social. Ele tinha uma visão pragmática do mundo, para a qual não haveria verdade
absoluta. Simmel acreditava ainda que a psicologia, juntamente com as noções de interação
e de sociação, e com o dualismo forma-conteúdo ajudavam a formar e a entender as
12
experiências históricas dos indivíduos. Nesse sentido, a sociedade não é uma realidade em
si, na medida em que o indivíduo é o substrato dos grupos. Todavia, o interesse de Simmel
não estava nem no nível do indivíduo nem no da sociedade, interessava para ele conhecer a
interação existente entre os indivíduos como a real "produtora" de uma coisa e outra.
Segundo Vandenberghe (2007 apud SANCHIS, 2010), Simmel partia de uma ideia
geral de que nas interações entre as pessoas estava o fundamento de todos os domínios da
vida. Dessa ideia surgiu um dos preceitos gerais de Simmel, de que a sociedade só é
possível, como resultado das ações e reações dos indivíduos entre si, não sendo, portanto,
estática. A sociação, nesse sentido, pressupõe a interação de duas pessoas ou mais pessoas o que caracteriza uma díade, unidade básica da sociação e, por sua vez, a sociedade é
formada pelos impulsos dos indivíduos, interesses e objetivos; e pelas formas que essas
motivações assumem. Daí a importância de se distinguir forma e conteúdo.
Interessado pelo tema das díades George Ritzer (1996) em seu livro Sociological
Theory comenta o fato de que ao falar sobre a importância das relações e interações sociais,
Simmel teria criado uma “geometria” 9 social das relações aonde o foco estava na
importância do número de indivíduos envolvidos e na distância que mantinham entre si.
Nas díades, cada membro do grupo necessariamente está ligado a ouros membros, como em
uma família com a relação entre pai e filho, ou na escola, entre professor e aluno.
Diferentemente, na tríade, os indivíduos retomam sua individualidade na medida em que
com a introdução de um terceiro elemento no grupo, aparece a possibilidade de um novo
número de papéis sociais, como, por exemplo, na relação entre pai, mãe e filho, um dos
dois primeiros pode assumir o papel de “árbitro” (ou de ator conflitante) na relação
estabelecida entre os dois outros e polarizá-la, tornando-se num objeto de competição dos
outros membros do grupo ou então, pode surgir um sistema de estratificação de onde
emerge uma estrutura de autoridade no grupo.
As sociedades emergem, portanto, na transição da díade para a tríade e continuam a
se expandir para grupos maiores. Em estruturas sociais grandes, o indivíduo desponta cada
9
Na seção de metodologia, quando falar sobre as Análises de Relações Sociais, comentarei mais sobre o tema
da geometria social e sobre a influencia de Simmel sobre alguns autores contemporâneos que tratam do
assunto.
13
vez mais separado da sua estrutura social, isolado e segmentado. Para Simmel, ao mesmo
tempo em que o crescimento do grupo dá mais liberdade individual ao indivíduo, em um
grupo pequeno este tem sua vida controlada pelo restante dos membros do grupo. Todavia,
o indivíduo pertencente a uma sociedade mais ampla, uma vez perdido e segmentado, tende
a se envolver em pequenos grupos, como a família, para manter sua identidade de grupo.
Simmel (1983) aborda o fato de que a Sociologia deve buscar seus problemas não
na matéria da vida social apenas, mas na forma e no conteúdo por ajudarem a demonstrar
que as associações podem constituir o caráter sociológico do conflito, que não está no
conflito em si, mas nas relações sociais que ele institui. Para entender isso é preciso admitir
a sugestão de Simmel de que “não existe outra coisa senão os indivíduos” (p. 49), e é nisso
que se baseia a importância de se olhar para os indivíduos com o mesmo peso que se olha
para as relações que estabelecem – relações estas que podem assumir um caráter de
oposição ou não, refletir relações de poder, subordinação, equidade, etc. Nesse sentido,
conseguir “abstrair a forma de sociação 10 dos estados concretos, dos interesses, dos
sentimentos que constituem seu conteúdo” (p. 58 – grifo da autora) é o segredo para se
determinar a partir das particularidades, aquilo que é, de fato, sociológico. Nesse sentido, a
socialidade não somente está presente, bem como é parte substancial das interações, ela
torna-se responsável pela produção de estruturas expressas durante o jogo destas interações.
A sociabilidade, dada pelos conteúdos dos arranjos sociais, se viabilizaria em
razão da multiplicidade dos jogos sociais, aqui entendidos como os artifícios
socialmente construídos por meio das interações (inter <=> ações) sociais
projetadas em indeterminadas formas de sociações, e, produtoras do meio social
e, pela estruturação de vital importância para a formação da própria sociedade,
a qual se expressaria em infindáveis quadros sociais, e por que não dizer, nas
inumeráveis formas da existência social. Elas são fruto de uma coalescência
derivada das matérias do seu conteúdo, resultante das inumeráveis formas
sociais, cujos exemplos poderiam ser verificados, tanto nas artes e no direito
como nos próprios jogos sociais. No caso do Brasil, isto demandaria uma gama
de trabalhos etnográficos, já que o “jeitinho brasileiro” se comporta a
semelhança dos lances efetuados por um jogador em uma partida de futebol. São
múltiplas e inumeráveis as formas de se jogar (ALCANTARA JR., 2005, p.
33).
10
Para Simmel, a sociedade é vista como algo não estático, ou seja, ela faz e se desfaz constantemente, em
um incessante processo de consenso e conflito, dominação e subordinação.
14
Simmel define o conteúdo da sociação como aquilo que é marcante na existência
dos indivíduos, ou seja, seus impulsos, interesses, tendências, como o desejo do usuário por
drogas ou o interesse do traficante na venda destas para a arrecadação de recursos, são
alguns exemplos simples que podem refletir (ou receber) em efeitos sobre outros
indivíduos. O conteúdo por si só não reflete a interação, antes, precisa das formas para tal.
A sociação é, portanto, a forma (que se realiza de maneiras distintas) na qual os indivíduos,
em razão de seus interesses se desenvolvem conjuntamente em direção a uma unidade no
seio da qual esses interesses se realizam (SIMMEL, 2006, p. 60). A partir de uma definição
sobre sociedade, Simmel deixa ainda mais eminente a importância das interações para a
constituição de formas e conteúdos:
Aqui, “sociedade” propriamente dita é o estar com um outro, para um outro,
contra um outro que, através do veículo dos impulsos ou dos propósitos, forma e
desenvolve os conteúdos e os interesses materiais ou individuais. As formas nas
quais resulta esse processo ganham vida própria. São liberados de todos os laços
com os conteúdos; existem por si mesmo e pelo fascínio que difundem pela
própria liberação destes laços. É isto precisamente o fenômeno a que chamamos
sociabilidade. Interesses e necessidades específicas certamente fazem com que os
homens se unam em associações econômicas, em irmandades de sangue, em
sociedades religiosas, em quadrilhas de bandidos. Além de seus conteúdos
específicos, todas estas sociações também se caracterizam, precisamente, por um
sentimento, entre seus membros, de estarem sociados, e pela satisfação derivada
disso. Os sociados sentem que a formação de uma sociedade como tal é um
valor; são impelidos para essa forma de existência. (... ) Pois a forma é a mútua
determinação e interação dos elementos da associação. É através da forma que
constituem uma unidade. ( SIMMEL, 1983, p. 168/169).
A interação, portanto, é a forma como os determinados impulsos, sentimentos,
interesses,
tendências
e
desejos
dos
indivíduos,
entendidos
por
Simmel
como conteúdo, são realizados à medida que o indivíduo sai da individualidade buscando
atender a esses impulsos, cujo objetivo consiste em se associar com o outro num universo
de diversas possibilidades.
Essa interação sempre surge com base em certos impulsos ou em função de
certos propósitos. Os instintos eróticos, os interesses objetivos, os impulsos
religiosos e propósitos de defesa ou ataque, de ganho ou jogo, de auxílio ou
instrução, e incontáveis outros, fazem com que o homem viva com outros
homens, aja por eles, com eles, contra eles, organizando desse modo,
reciprocamente, as suas condições – em resumo, para influenciar os outros e
para ser influenciado por eles. A importância dessas interações está no fato de
obrigar os indivíduos, que possuem aqueles instintos, interesses, etc., a formarem
15
uma unidade – precisamente, uma “sociedade”. Tudo que está presente nos
indivíduos (que são os dados concretos e imediatos de qualquer realidade
histórica) sob a forma de impulso, interesse, propósito, inclinação, estado
psíquico, movimento – tudo que está presente nele de maneira a engendrar ou
medir influências sobre outros, ou que receba tais influências, designo como
conteúdo, como matéria, por assim dizer, da sociação. (SIMMEL, 1983, p.
165/166)
A diferenciação entre forma e conteúdo consiste na abstração a partir da qual é
possível compreender os problemas sociológicos, pois em qualquer fenômeno social eles
constituem uma realidade unitária, ou seja, em qualquer experiência concreta, forma e
conteúdo são indissociáveis, já que, necessariamente, os indivíduos interagem a partir de
conteúdos (motivações, interesses, objetivos, paixões, ensejos). Na impossibilidade de
apreender a multiplicidade e a complexidade das experiências da vida social, a sociologia
formal deve, segundo Simmel, procurar pelas formas que assumem essas experiências,
independente de seu conteúdo. A forma é, portanto, uma das possibilidades de se analisar
as unidades que formam o todo social, tal como um microssistema composto de pequenos
“jogos sociais”.
Segundo Levine (1997), Simmel define quatro níveis de formas sociais:
1) formas de interação social elementar - também chamadas de protoformas sociais;
2) estruturas institucionalizadas (sindicatos, família, igrejas, exército);
3) formas “lúdicas” autonomizadas, desprovidas de conteúdos práticos, nas quais a
finalidade está na própria participação na sociedade (bares, jogos, prática de esportes);
4) forma genérica do mundo.
Para Simmel, existem relações entre essas formas na medida em que as protoformas
podem passar às formas objetivas através de legados e tradições que, por sua vez,
conformam a cultura subjetiva e num segundo nível, a cultura objetiva e institucionalizada,
por exemplo, a música ou a arte em seu estado experimental sendo transformada em uma
partitura ou numa obra prima apreendidos por sua vez a partir de diferentes contextos e
experiências na vida social, como a religião, a arte ou a ciência. Desta maneira, a sociedade
seria uma forma possível de organização das experiências uma vez que permite que forma e
conteúdo simultaneamente sejam, em certo sentido, intercambiáveis: aquilo que se
16
apresenta como forma pode ser visto como conteúdo, depende apenas, do ponto de vista ou
da posição adotados pelo indivíduo.
Seguindo o pensamento de Simmel, Weber (1999) propõe que as relações podem
ser norteadas por elementos como a burocracia ou a dominação. Assim, vida, forma e
conteúdo caminham constantemente juntas. De um lado, a vida é repleta de “fragmentos”
de formas a serem completadas por um trabalho de constante interpretação; de outro, os
“fragmentos” de forma seriam melhor finalizados por meio de um distanciamento da
realidade, ou seja, através da construção de “tipos” de forma, os quais, a partir de uma
reelaboração, exprimiriam conteúdos. Buscando uma associação entre Simmel e Weber é
possível afirmar que o resultado teórico desses conteúdos podem ser interpretados como
“tipos ideais”, transformados em um recurso metodológico que permitiria o pesquisador
lidar com a realidade.
Enquanto Simmel caminhava em direção às formas e aos conteúdos na construção
de sua sociologia, Weber tinha como objetivo alcançar as “impuras e complexas”
interações que se dão no mundo. As formas e conteúdos para Simmel seriam “modelos”
(diferentes dos propostos por Weber) resultantes de relações. A dificuldade nessa linha de
pensamento está em capturá-las em um determinado instante, uma vez que estão
intimamente
ligadas
às
relações
interindividuais,
tornando-as
passíveis
de
se
reconfigurarem e exprimirem conteúdos diferentes. Mesmo porque, os “modelos” são
abstrações que não se desenvolvem integralmente nas relações cotidianas.
Utilizando os dados disponíveis pela CPI do Narcotráfico, proponho um exercício
de análise sobre os acontecimentos e relações investigadas, realizados sob essa perspectiva
simmeliana aonde as relações entre os indivíduos são analisadas uma a uma e o conteúdo
das mesmas percebido e examinado em contexto. Simmel realizou vários trabalhos desse
tipo, um deles, diz respeito à gratidão. Nas palavras de Cohn (1998) essa análise é descrita
da seguinte maneira:
É como se a gratidão, ou qualquer outro tipo de ponte de ligação dos homens,
tivesse a capacidade de converter o seu impulso inicial em um sentimento difuso,
tingindo as interações subsequentes com o tom da gratidão pura e simples, e não
com a lembrança pontual de alguma doação singular. É por isso que ela é capaz
de suscitar uma contraprestação espontânea mesmo não sendo um dever
17
externamente imposto. Há também um outro caminho para construir essas pontes
sociais. Uma relação pode ganhar persistência no tempo não porque tenha na
origem algum impulso íntimo, mas porque a experiência reiterada do estar
próximos leva os parceiros à "indução" do sentimento correspondente. É o caso
da fidelidade, na qual Simmel assinala uma "cooptação" pela situação social
externa de mera proximidade dos sentimentos correspondentes. (op. cit., p.
10).
Para Cohn, isso nos remete ao papel das formas da vida social em Simmel.
A ideia básica é a de que determinados padrões de interação destacam-se dos
conteúdos (sentimentos, impulsos etc.) que de certo modo lhes davam vida e
passam a operar por sua própria conta, como receptáculos para relações que se
ajustem a eles (op. cit., p. 10).
É isso o que fascina Simmel: pensar sobre como as relações, mesmo que dinâmicas,
apresentam elementos que se mantém, como a gratidão, por exemplo. A ênfase recai então
sobre as “diferenças finas” estabelecidas pelas experiências dos indivíduos. É sobre a
perspectiva das experiências e relações que analisarei os depoimentos contidos no Relatório
da CPI do Narcotráfico, tentando entender como confiança, amizade, cooptação, traição,
etc., perpassam as relações, transformam e lhes conferem formas e conteúdos pertinentes
no universo criminal.
Assim, seguindo na direção de uma proposta teórica das formas do crime
organizado, a sugestão é investigar as organizações consideradas como tradicionalmente
pertencentes ao universo do crime organizado, i.e., organizações envolvidas com o tráfico
de drogas, grupos de extermínio, lavagem de dinheiro e roubo de cargas, para citar
algumas. Devo enxergá-las como reveladoras de relações sociais passíveis de serem
apreendidas mediante a adoção de categorias ou modelos analíticos canônicos, como é o
caso das máfias, dos cartéis, das estruturas hierárquicas, por exemplo.
Procurarei então entender o conjunto de fatores que formam os fenômenos culturais
historicamente significativos para o crime organizado pois, uma vez entendidos e
explicados, podem conduzir ao reconhecimento de outros agrupamentos igualmente
especiais – repletos de ligações possíveis de serem reconhecidas e interpretadas, sempre
passando pelo crivo da sociologia formal de Simmel.
18
A relação entre forma e conteúdo proposta por Simmel ajuda a repensar os diversos
indivíduos e os inúmeros mercados criminais acionados pelos grupos investigados pelas
CPIs do Narcotráfico, Crime Organizado e Roubo de Cargas. Partindo da interação dos
indivíduos com os mercados acionados acredito que será possível chegar ao conteúdo que
os motivaram nas práticas criminais. Enfim, a partir dos indivíduos, passando pelos
mercados, é possível chegar às organizações e suas diversas fórmulas organizacionais.
A partir da sociologia formal procurarei mostrar que os pesquisadores brasileiros
ainda tem um caminho fértil e interessante a trilhar no reconhecimento e na informação
acerca da existência do crime organizado, sobretudo, mostrarei que se trata de um
fenômeno muito importante e que ainda não foi devidamente documentado em nossos
estudos.
19
20
CAPÍTULO II
O CRIME ORGANIZADO, UMA REVISÃO BIBLIOGRÁFICA
Para tratar do tema do crime organizado é necessário primeiramente definí-lo e
contextualizá-lo em sua extensa abordagem, desde o Direito até a Sociologia, oferecendo
uma visão crítica da temática. Tarefa difícil para um fenômeno em constante mutação e
com múltiplas formas de análise e compreensão, sobretudo, quando se sabe que nem toda
organização criminosa pode ser considerada como sendo uma organização do crime
organizado. Pode tratar-se de apenas uma organização que se define criminosa por
simplesmente assumir caráter empresarial e seguir para o mundo dos negócios ilícitos, mas
que não faz uso da violência ou de associações com agentes do Estado, como pode tratar-se
de organizações tradicionalmente violentas e profundamente envolvidos na ilegalidade. Por
essa razão é importante relativizar o caráter “organizado” das organizações criminosas.
Uma leitura preliminar do relatório da CPI do Narcotráfico permitiu verificar
algumas características pertinentes aos crimes investigados, tais como a existência e
confluência de inúmeros mercados criminais, como os crimes de tráfico de drogas, roubo
de cargas, lavagem de dinheiro, dentre outros, agindo em conjunto e constituindo um tipo
de simbiose entre si. Também, o perfil dos indivíduos envolvidos apontou para um número
elevado de indivíduos representantes do Estado atuando nesses mercados. Esses dois dados,
associados, levaram-me a pensar acerca de algumas características básicas do crime
organizado, como a presença de agentes do Estado e a transformação empresarial do crime.
Todavia e para além dessas constatações, alguns estudiosos do tema ainda não acreditam na
existência do fenômeno no Brasil. Utilizarei suas análises para compor uma visão crítica,
mas ainda assim, sigo me perguntando “como é o crime organizado no Brasil?”.
Essas questões conduzem, obrigatoriamente, para uma revisão bibliográfica a fim
de situar e melhor entender como o crime organizado tem sido entendido no Brasil e em
outros países, sob outras perspectivas. Tais questões são o fio condutor da presente
pesquisa com um todo. Todavia, não poderão ser respondidas integralmente nesta tese,
dado o escopo analítico reduzido com o qual lidarei nas análises dos casos.
21
*****
Para introduzir o fenômeno do crime organizado, independente da abordagem e do
tipo de análise utilizado, lanço mão de um precioso estudo de Charles Tilly, publicado no
livro Coercion, Capital and European States (1996), no qual o autor escreve que a
formação histórica do Estado pré-democrático carrega consigo aspectos de extorsão e do
“crime organizado”, legitimando-os, finalmente. Esse texto é fundamental para o
entendimento geral da formação do Estado italiano e, principalmente sobre a sua relação
com organizações criminosas uma vez que permite perceber como estas duas esferas estão
imbricadas de tal forma que, como será mostrado ao longo desse capítulo, é impossível
descrever o crime organizado sem mencionar sua relação com agentes e aparelhos do
Estado.
O processo de constituição dos Estados europeus foi marcado por inúmeros
conflitos sociais, descontinuidades históricas e uma forte competição entre os Estados
nacionais e outras unidades políticas, como as cidades-estados, por exemplo. Para explicar
esse processo, o argumento utilizado por Tilly é que o monopólio de meios de coerção era
utilizado por grupos sociais dominantes na ordem feudal (em alguns casos, aliados à
burguesia em ascensão) para aumentar o território sobre os quais pretendiam exercer poder.
A gênese desse processo estaria relacionada às pressões impostas pelos movimentos
migratórios ocorridos na Europa oriental e que forçaram os governantes a redefinirem suas
bases de dominação política e sua infraestrutura econômica. Finalmente, a guerra acabou
sendo utilizada como mecanismo de controle desses movimentos e antigos conquistadores
se transformaram em governantes quando começaram a exercer o controle sobre as
populações e territórios conquistados – essa foi a forma utilizada para garantir o acesso aos
recursos ali produzidos.
Assim, Charles Tilly faz uma analogia entre o crime organizado, suas práticas de
"proteção", e o desenvolvimento do Estado. Na chave da origem e motivo da guerra, ele
encontra uma ligação de sequências causais entre esta e as decisões do Estado na história
européia. Para ele, "a guerra fez os Estados". Seu argumento é de que os Estados organizam
a violência de forma semelhante ao crime organizado, fazendo o mesmo movimento só que
22
em uma escala maior. Nesse sentido, fazer a guerra, e promover a extração e a acumulação
de capital permitiram moldar as decisões tomadas na formação dos Estados europeus. Esses
três elementos, juntos, constituem a base na formação dos Estados para Tilly.
Ele observou como os governos muitas vezes apoiaram uma série de grupos
violentos que, em contra partida, os apoiou nas guerras, quando era necessário ou
conveniente: nesse sentido, os bandidos se tornaram tropas e os piratas se tornaram
marinheiros. Num segundo momento, esses grupos foram reconsiderados ilegais, quando já
não serviam mais ao seu propósito. O objetivo desses governos era manter seu território ou
expandí-lo. Internamente, os governos procuraram erradicar a violência, concentrando-se
em uma forma monopolizada e legitimando-se como uma autoridade central. Externamente,
a guerra foi essencial para esse processo.
Para esses governantes, a guerra e sua preparação dependiam diretamente da
extração de recursos essenciais (como dinheiro, soldados, provisões, armas, etc.) que suas
populações não estavam dispostas a entregar sem ressarcimentos ou mediante um elevado
custo político. Assim, além da guerra contra outros Estados havia também os conflitos
sociais internos a cada um deles. Conforme os custos da guerra aumentavam, os conflitos
sociais se intensificavam. Segundo o autor, o tipo de Estado que predominou em cada
período e região dependeu diretamente da combinação estabelecida entre diferentes meios
de coerção (controlados pelos governantes) e diferentes taxas de acumulação e
concentração de capital (controlado por agentes privados). Governantes e grupos
dominantes barganhavam por direitos políticos e favores econômicos que variavam desde
impostos até a prestação de serviço militar.
O que distinguiu as diferentes formações dos Estados foram as escalas da guerra e a
criação de um sistema europeu de Estados soberanos. Esses dois fatores permitiram grandes
vantagens aos Estados que apresentaram trajetórias de “coerção capitalizada”11. A coerção
capitalizada se deu quando coalizões de burocratas, capitalistas e estadistas foram mais
eficientes na gestão da guerra que outros grupos, beneficiando-se também de instituições
jurídicas e administrativas, participando, inclusive, da constitucionalização do exercício do
poder e na construção da infraestrutura do Estado.
11
Vide exemplo da Sicília/IT em Tilly, 1996, p. 45 e segs.
23
Nessa lógica, o Estado foi o responsável pela legitimação da oferta de serviços
considerados, a princípio, obscuros, como por exemplo, o serviço de segurança oferecido
na Itália antes do século XIX. Tilly relata que no período anterior à unificação da Itália,
havia muita disputa por territórios e a luta era constante. No sul da Itália, por exemplo,
alguns trabalhadores rurais, de um lado, se levantaram oferecendo seus serviços de
segurança e proteção às famílias, e de outro, produziram o “terror” local que forçavam as
famílias mais abastadas a contratarem esses serviços de segurança. Dessa maneira, nascia a
máfia e com ela o controle sobre o mercado de proteção. Conforme o autor, isso somente
foi possível quando a população concordou com esse tipo de atividade e pagou por ela. Na
leitura de Tilly, esta lógica é vista como um elemento constitutivo do próprio Estado.
Resumidamente, ele identificou quatro maneiras diferentes em que os Estados (em
formação e outros) organizaram a violência: guerra, estados de decisões, proteção e
extração.
Seguindo a mesma linha analítica de Tilly, a International encyclopedia of the
social & behavioral sciences (SMELSER e BALTES, 2001) define que o crime organizado
está intimamente relacionado à corrupção e, por essa razão, trata-se de um fenômeno
sistemático legitimado pela “pilhagem” dos recursos do Estado, que se garante causando
crises institucionais no interior deste, fomentando a decepção sobre a vida política e
modificando a ideia de “bem público”.
Essas anotações de Smelser, Baltes e Tilly mostram que entre os indivíduos,
as estruturas e os eventos associados com o crime organizado não existe um vácuo social,
ao contrário, eles estão ligados em alguns aspectos que serão comentados nesse capítulo,
como o fator étnico, familiar, linguístico, de gênero, etc. Um resultado disso é o
"enraizamento social do crime organizado" (KLEEMANS e VAN DE BUNT, 1999), tal
como o que acontece em certos estratos sociais, ambientes, ou comunidades étnicas. Isso
ficou claro quando membros da máfia italiana migraram para os EUA no início do século
XX e tão rapidamente se destacaram cinco grandes famílias (Gambino, Colombo,
Lucchese, Bonanno, e Genovese) que, juntas fundaram um braço da Cosa Nostra. Reuniões
em todo os EUA durante os anos 1920 e 1930 ajudaram a resolver as diferenças entre
sicilianos e demais italianos (que sempre estiveram em conflito uns com os outros) e a
24
descobrir maneiras de resolver guerras de gangues utilizando-se da violência apenas
quando estritamente necessário e maximizar os lucros obtidos com a venda ilegal de álcool
e drogas durante a Lei Seca. Após a Segunda Guerra Mundial, os mafiosos ítaloamericanos mudaram para o ramo do entretenimento como boates, bares, cassinos, etc. Na
década de 1950 se tornaram empresários respeitáveis, e fundaram os chamados “sindicatos”
que aliciavam novos criminosos e que são até hoje combatidos pelo FBI e pela Justiça
Italiana.
De forma um pouco distinta, as variações étnicas dentro do crime organizado se
dão, segundo uma regra de transição simples, na qual, quando um grupo enfraquece, outro
grupo assume seu lugar. Esse exemplo se destaca nas diferenciações étnicas, nos conflitos,
no uso da violência, na proximidade com o Estado, etc.
A fim de tentar conhecer como outros campos da ciência, que não apenas a
Sociologia definiram o crime organizado, proponho nas páginas seguintes uma revisão
bibliográfica sobre o tema dividida em três partes: na primeira, abordarei as definições
sociológicas e jurídicas sobre o crime organizado; na segunda parte apresentarei algumas
organizações emblemáticas do crime organizado, como as máfias (sobretudo, a italiana, por
ser a mais complexa e antiga), cartéis e gangues; e na terceira parte apresentarei algumas
temáticas relacionadas com o crime organizado, como a corrupção e as mercadorias
políticas, por serem características com as quais trabalharei nas análises dos casos ao longo
do capítulo VI.
PARTE 1
DO DIREITO À SOCIOLOGIA: DEFINIÇÕES DO CRIME ORGANIZADO
No senso comum, duas definições são frequentemente utilizadas sobre o crime
organizado: uma que se concentra em grupos de pessoas, e outra em tipos de crime.
Quando o senso comum se refere ao fenômeno, faz menção à forma abreviada de se referir
a grupos de pessoas cujas práticas são consideradas ilegais, como a extorsão, tráfico de
25
drogas, fraude imobiliária, lavagem de dinheiro, dentre outras., encarnados, por sua vez,
nas figuras icônicas da "máfia", cartéis e grupos similares.
Indo além dessas definições, a Sociologia e o Direito dão ao fenômeno do crime
organizado pistas sobre diferentes características e padrões de organização adotados pelos
grupos criminosos.
Para muitos juristas (e sociólogos), “as formas de organização criminosa devem ser
conhecidas se quisermos combatê-las”, como afirmou o juiz italiano Giovanni Falcone
(apud CRETIN, 1998, p. 05) que ficou conhecido pelas maiores ações contra a máfia
italiana. Falcone sustentava que a luta contra a máfia exigia uma sólida especialização em
matéria de crime organizado, tais como bons conhecimentos sociológicos e antropológicos.
Todavia essas várias visões sobre o fenômeno também incorreram no uso equivocado da
categoria de crime organizado como sinônimo de máfia, como apontou o cientista político
Wanderley Guilherme dos Santos (2002). Por essa razão, este último aconselha que o
fenômeno seja conhecido e estudado em contexto com sua realidade doméstica,
contradições históricas, econômicas, políticas e culturais de modo a contextualizar as
muitas definições utilizadas, seja pela Sociologia, Política, Direito, criminologia, etc. Ao
longo dessa seção serão explicados alguns desses pontos de vista sobre o crime organizado,
todavia, não se tratam de conceitos encerrados mas de opiniões que se modificam
contextualmente.
CRIME ORGANIZADO SOB A PERSPECTIVA DO DIREITO
Em linhas gerais, o Direito internacional define o crime organizado como um
conjunto de atividades que potencializaram os danos sociais, violando bens jurídicos
individuais e coletivos. São inúmeras as perspectivas e definições dadas, mas as mais
proeminentes serão selecionadas para esclarecer e contextualizar o fenômeno a partir da
lente da jurisprudência. Lembrando que a mesma pode sofrer influência de interesses
políticos e de criminalistas no momento de sua redação, o que a pode levar a um viés com
interesses históricos, institucionais e políticos, por exemplo.
26
Ciente dessas condições, abro essa revisão bibliográfica com a conceitualização do
crime organizado adotada a partir da Convenção de Palermo, considerada por muitos países
(inclusive o Brasil) como detentora das diretrizes básicas a serem seguidas. O relatório da
UNODC (2010, p. 19) se concentra em um ponto crucial para investigar o crime organizado
que coloca a ênfase no grupo e não na natureza do crime 12 . Esta é uma distinção
importante, mas, ainda bastante controversa (MALTZ, 1985), porque implica em uma série
de suposições sobre a maneira pela qual os criminosos, uma vez organizados, trabalham e
sobre a inter-relação entre a forma como trabalham e o tipo de organização que adotam.
Uma acurada revisão de Werner (2009) sobre as causas fundamentais para a
existência do crime organizado aponta a existência de correntes teóricas que o observaram
e podem ser entendidas como:
• Tensão Social: Durkheim (1951) assinala que os incentivadores das
práticas delitivas são a pressão social e a cobrança pelo êxito que a sociedade exerce
sobre o indivíduo.
• Diferencial Associativo: Suterland (1955) estabelece que tanto a conduta
lícita quanto a ilícita, são entendidas em razão da influência e da representação do
meio social, nesse sentido, as condutas criminosas dependem de um ambiente
favorável ao seu desenvolvimento;
• Sub-cultura: Segundo Abadinski (2010) padrões de conduta são
estabelecidos com um conjunto de regras que tem origem em costumes e tradições
compartilhados ao longo do tempo pelos indivíduos colocados à margem da
sociedade, criando valores próprios, mas contrários à lei e ao estado de direito.
• Oportunidade Diferenciada: Abadinski (2010) acredita que em uma
sociedade as oportunidades são distribuídas de forma heterogênea, sendo o caminho
ilícito a forma fácil de atingir o sucesso.
• Controle Social: Conforme Abadinski (2010), o crime ocorre quando o
freio social encontra-se enfraquecido.
• Sucessão Étnica: Se dá quando os grupos de imigrantes se articulam e se
12
“the emphasis is on the group, not the nature of the crime” UNODC, 2010, p. 19.
27
beneficiam das atividades ilegais disponíveis.
Em outra revisão do mesmo tipo, Albanese (2007), sintetizou esses pontos a partir
de uma abordagem realizada por Abadinsky em apenas quatro fatores responsáveis pelo
desenvolvimento do crime organizado:
• 1) Positivo: se dá por condições externas, como características sociais ou
econômicas;
• 2) Clássico: está associado a um comportamento baseado na maximização
do prazer pessoal em detrimento da dor;
• 3) Estrutural: se devem aos fatores políticos e econômicos como a
promoção
da
concorrência
e
do
ganho
individual
em
detrimento
do
desenvolvimento da sociedade;
• 4) Étnico: a liberdade na tomada de decisões está intimamente ligada aos
fatores étnicos. Nesse conjunto, os comportamentos ilícitos trazem benefícios e
garantem a ascensão no interior do grupo, reforçando o sentimento de
pertencimento ao grupo étnico.
Tomando essas premissas como base, o campo do Direito estabeleceu algumas
características gerais para identificação do crime organizado, tal como preconiza o
professor de direito e criminologia Howard Abadinsky (2010, p. 16). Embora não haja uma
definição amplamente aceita sobre o crime organizado, esses atributos ajudam a distinguilo de outros grupos, como os terroristas e grupos criminosos convencionais. Sendo assim, o
crime organizado em geral
(1) não tem objetivos políticos claramente estabelecidos,
(2) apresenta hierarquia,
(3) tem uma sociedade limitada ou de indivíduos exclusivos,
(4) constitui uma subcultura única,
(5) que pode ser perpétua,
(6) apresenta a vontade de fazer uso da violência e da corrupção,
(7) é monopolista,
28
(8) é regida por regras e regulamentos explícitos.
Para Abadinsky (2010), a criminalidade no interior do crime organizado difere
daquela praticada por criminosos convencionais, porque sua filiação organizacional fornece
uma forma de credenciamento e de rede que facilita a cooperação entre os criminosos e que
lhes permite cometer crimes variados e em uma escala maior do que seus colegas menos
organizados. Embora o crime organizado e o terrorismo sejam diferentes em relação aos
seus objetivos, com o terrorismo sendo inerentemente político e o crime organizado tendo
metas mais pecuniárias, eles frequentemente usam as mesmas táticas, ou seja, suas
atividades financeiras podem se sobrepor ou se entrelaçar, e às vezes assumir uma relação
simbiótica, mas nunca devem ser confundidos.
O crime organizado contemporâneo pode manifestar-se de duas formas
organizacionais contrastantes que representam os dois extremos de um continuum: de um
lado, está a característica burocrática/ corporativa e, de outro, a rede clientelista. Os grupos
criminosos, se forem para ser definidos como organizados, podem ser localizados em
algum lugar ao longo deste continuum, ou então, se seus líderes acharem necessário podem
até se organizar de uma forma burocrática, normalmente manifesta através de uma versão
compartimentada de tarefas e deveres de cada membro (ABADINSKY, 2010, p. 16), e
ainda adotarem traços de organizações em redes em outros pontos.
Abadinsky segue argumentando que a participação no crime organizado pode se dar
por laços de parentesco ou amizade, e que mesmo os não-membros podem estar envolvidos
no grupo por esses laços. A adesão regular, bem como a disciplina são controladas por
suborno, extorsão, violência e assassinato (ou pela simples reputação de usar esses
métodos). Geralmente, há uma tentativa de permitir que os membros se especializem graças
às suas habilidades particulares para realizar uma determinada atividade, apesar de que a
existência de indivíduos “pau-pra-toda-obra” seja bastante comum. Regras e regulamentos
são muito explícitos, tanto que, o crime organizado não aceita competição, e busca sempre
manter um monopólio.
Albanese (2007), pensando no envolvimento de representantes do Estado com o
crime organizado, aponta que o essencial para qualquer definição sobre o fenômeno é
pensar na questão da corrupção de funcionários públicos que asseguram a continuidade das
29
operações, bem como proteção contra a concorrência. Para Albanese, existem ainda outras
características conhecidas do crime organizado que se destacam, como: a corrupção, a
violência, a sofisticação, a continuidade, a estrutura, a disciplina, a ideologia (ou falta dela),
o envolvimento de várias empresas criminosas, e envolvimento em empresas legais.
Para os juristas Gomes e Cervini (1997, p. 95) o crime organizado no Brasil pode
ser entendido e percebido a partir de:
1) sua previsibilidade de acumulação de riquezas a partir de fontes ilícitas;
2) apresentar constituição hierárquica;
3) apresentar planejamento empresarial que envolve desde a programação do fluxo
de mercadorias até ao planejamento dos itinerários dos “produtos” oferecidos;
4) uso de meios tecnológicos sofisticados;
5) recrutamento de pessoas e divisão funcional de atividades;
6) conexão estrutural ou funcional com o Estado ou com agentes do Estado, a ponto
de constituir uma simbiose, decorrente do seu alto poder de corrupção e do seu poder de
influência13;
7) oferta de prestações sociais, no âmbito da saúde pública, segurança, transportes,
alimentação e emprego, sendo esta uma atribuição menor que pode incorrer ou não em
alguns grupos;
8) divisão territorial das atividades ilícitas;
9) alto poder de intimidação;
10) real capacidade para fraude, de forma a lesar o patrimônio público;
11) apresentar conexão local, regional, nacional ou internacional com outras
organizações criminosas formando “parcerias”.
Ao contrário da Convenção de Palermo, estas não são apenas diretrizes para se
entender e localizar uma organização criminosa tipicamente transnacional, elas apresentam
elementos que implicam no uso da violência, atuação territorial definida, imbricação de
agentes do Estado, hierarquia e divisão de tarefas que a identificam como uma iniciativa
local. Um exemplo de organização que combina algumas dessas características são as
13
O sociólogo Michel Misse chamou o fenômeno como um todo de “politicas”, explico o conceito mais
adiante quando for aborda-lo com mais propriedade.
30
organizações narcotraficantes que se valem da interface com o Estado através da figura dos
policiais corruptos de fronteira que fazem “vista grossa” às cargas de narcóticos que
chegam ao país, infiltradas entre bens legais.
Citado pela jurista Ana Luiza Almeida Ferro (2009, p. 333), John Scheb defende
que a diferenciação entre os crimes de colarinho branco e o crime organizado está “na
questão da mistura (ou não) entre atividades lícitas ou ilícitas e no emprego (ou não) de
ameaças ou violência para a consecução do fim pretendido”. Em cima disso, argumenta a
jurista que, ao mesmo tempo que nem todo crime de colarinho branco é praticado por uma
organização criminosa, nem toda organização criminosa se dedica à prática do colarinho
branco.
Hagan (1983, in VARESE, 2010) é um dos criminologistas que mais avançou ao
tentar sistematizar o conceito de crime organizado a partir de uma revisão de outros
estudiosos do tema. Alguns pontos de convergência desse levantamento são: 1) o crime
organizado precisa do estabelecimento de uma empresa criminal, i.e., uma empresa que
obtém benefícios mediante atividades ilícitas; 2) faz uso da violência; 3) a corrupção de
agentes do Estado faz parte de seu modelo de ação básico. Em seu artigo The organized
crime continuum, o autor fala sobre a existência de uma linha contínua e muito sútil que
separa o crime organizado das demais empresas não criminais e que permite redefinir os
grupos em organizações do crime organizado e organizações do crime semi-organizado,
variando conforme o grau de organização, uso de violência, corrupção de agentes do
Estado, hierarquia, códigos de sigilo, etc. O grupo de motoqueiros Hell’s Angels seria um
exemplo de organização do crime semi-organizado, uma vez que não possui relação com
aparelhos e representantes do Estado, enquanto que a Cosa Nostra se apresentaria como um
representante legítimo do crime organizado, por apresentar todas as características citadas.
Um dos pioneiros a relativizar o caráter empresarial do crime organizado foi
Abadinsky (201014, p. 362), que influenciou o pensamento jurídico sobre a flexibilidade no
modelo de organização criminal empresarial, chegando, inclusive a compará-lo com as
redes de distribuição de cocaína norte americanas, cujas estruturas informalmente
14
Primeira edição foi publicada em 1981.
31
constituídas operavam de forma fluída e transnacional15. Vale lembrar que Abadinski está
escrevendo a partir de um momento-chave da sociedade criminal americana: instalada na
mudança das velhas máfias para novos paradigmas organizacionais impostos por novos
adversários, como as “células terroristas”.
Para entender melhor essa passagem de um paradigma a outro, é necessário
entender o que são "estruturas hierárquicas" e como as mesmas tem se transformado. Em
termos gerais, o termo “hierarquia” designa uma forma de organização de diversos
elementos que, combinados, formam um determinado sistema organizado em termos de
ordem e subordinação, onde a graduação de autoridade correspondente às diversas camadas
de seus elementos participantes (WEBER, 1982), a "máfia" e os cartéis seriam bons
exemplos. A esta definição, acrescenta Abadinski, um grupo do crime organizado poderia
ser visto como um negócio que busca o lucro com um portfólio que engloba negócios
ilícitos em empresas lícitas16, acrescentando um novo elemento às hierarquias, fazendo com
que, a exemplo dos cartéis colombianos, apresente novas características, como mudanças
estruturais resultantes de relações com outros cartéis, como os mexicanos, que são
conhecidos por se apresentarem como unidades compartimentalizadas que operam
independentemente umas das outras, mas que são hierarquicamente controladas.
Geralmente com os cargos de liderança deixados a membros da família, essas organizações
envolvem milhares de indivíduos com papéis especializados – de chefes de segurança
armados a marqueteiros, contadores, consultores financeiros e especialistas em lavagem de
dinheiro17.
15
Segundo a UNODC (2010) e o DEA (Drug Enforcement Administration), os grupos apontados como
constituidores do “crime organizado” estão se tornando cada vez mais heterogéneos e dinamicamente
organizados em termos estruturais, optando por se organizar redes ao invés de antigas estruturas piramidais,
como nas hierarquias mafiosas.
16
(...) “an group should be viewed as a business firm pursuing profit with a portfolio that encompasses illicit
as well as licit enterprises” ABADINSKY, 2010, p. 362.
17
The relationship with the Colombians also led to structural changes, with some Mexican drug groups
modeling their organizations along Colombian lines—compartmentalized units operating independently of
each other but controlled hierarchically. The leading syndicates “are highly and efficiently organized. Often
led by family members at the top, they involve hundreds of individuals with specialized roles—from security
chiefs to hired guns to marketing agents, accountants, financial consultants, and money-laundering specialists.
ABADINSKY, 2010, p. 177.
32
***
No Brasil, segundo Silva e Machado (2009, p. 188/89) o crime organizado é
definido no Código Penal de maneira genérica e sem uma rigorosa análise e
contextualização:
Também destaca que a Recomendação n. 3/2006 do Conselho Nacional de
Justiça (CNJ) propõe a adoção do conceito de “crime organizado” estabelecido
na Convenção de Palermo, bem como a jurisprudência do STF e do STJ não
diverge desse entendimento. Por fim, ressalta que não procedem as alegações de
inépcia da inicial, pois a denúncia aponta fatos que, em tese, configuram o crime
de formação de quadrilha para prática de crimes de lavagem de dinheiro e
contra a Administração Pública, bem como que somente o detalhamento das
provas na instrução criminal esclarecerá se houve e qual foi a participação da
paciente nos delitos imputados pelo Parquet.
Lançando mão do argumento de Callegari (et. all., 2008, p. 25) é possível notar que
o Código Penal brasileiro através da Lei n.9.034/95 não definiu as organizações criminosas,
apenas as equiparou às quadrilhas, bandos ou associações criminosas, optando por
definições abertas, com traços próximos ao do crime habitual ou da formação de quadrilha,
o que para o autor, é um grande equívoco.
Para Oliveira Lucas (2007), cuja preocupação é o tipo de enfrentamento ao crime
organizado que tem sido dado pelo Judiciário, o primeiro problema que se apresenta é
definir o fenômeno que, longe de ser uma questão teórica e conceitual apenas, adquire
importantes consequências políticas, criminais e práticas, tais como os métodos invasivos
de atuação policial para as organizações criminosas, previstos no código penal brasileiro,
como a infiltração de agentes policiais, a escuta ambiental e a ação controlada – “artigo 2o
da Lei n.9.034/95” (OLIVEIRA LUCAS, 2007, p. 108).
Esse é um dos pontos críticos para Zaffaroni (1996) que orienta que o crime
organizado não é um conceito criminológico, mas uma tarefa imposta aos criminólogos
que, de um lado, tentam combinar quatros possíveis fontes discricionais como o dos
policiais, criminólogos, criminosos arrependidos e a de políticos para, de um jeito ou de
outro, tentar trazer à tona toda e qualquer informação sobre o assunto do crime organizado.
Entretanto, não importando qual fosse a fonte, as informações sobre esse assunto sempre
virão da polícia que monopoliza não apenas as informações mas também as diretrizes e
33
usos que se farão destas, logrando em um alto nível de servilismo e simbiose que em certa
medida até mesmo acaba por favorecer organizações do crime organizado ao não condenar
certas práticas como crime organizado (por exemplo, a lavagem de dinheiro sob a alcunha
de “investimentos no exterior”) e abrir uma brecha para diferentes leituras e interpretações
do código que variam de magistrado para magistrado.
CRIME ORGANIZADO SOB A PERSPECTIVA DA SOCIOLOGIA
Na chave da Sociologia internacional, os estudos sobre o crime organizado
apresentam
inúmeras
definições
para
o
fenômeno,
muitas
delas
são
críticas
contextualizadas e atentas aos interesses políticos existentes por trás das definições dadas
pelo Direito e aceitas pelos governantes.
Um dos pioneiros no estudo sociológico do crime organizado, Cressey (1969, 1972)
sugere que uma característica fundamental do fenômeno é a divisão altamente desenvolvida
do trabalho - tão desenvolvida que o seu modo de organização poderia muito bem servir
como um modelo de negócios. Ele apresenta uma definição complementar que, foi além
dos tradicionais estudos em jurisprudência e por muitas décadas foi usado pelo Federal
Bureau of Investigation (FBI). Cressey define o crime organizado como um crime cometido
por uma pessoa que ocupa, em uma divisão de trabalho, uma posição específica para o
cometimento de crimes e para o estabelecimento de corrupções. Assim, o crime organizado
é visto como qualquer grupo que apresente uma estrutura formal cujo objetivo primário seja
obter dinheiro através de atividades ilegais. Tais grupos mantêm suas posições através do
uso de violência, funcionários públicos corruptos, concussão ou extorsão, e geralmente têm
um impacto significativo sobre as pessoas em suas localidades, região ou país como um
todo. Além disso, podem apresentar diferentes graus de organização, se pensarmos em
diferenças familiares, étnicas, etc. Esta última característica, segundo a análise crítica de
Zaffaroni (1996, p. 50) diz respeito à ideologia racista que a política migratória nos EUA
apresentava no período entre-guerras e que segregou imigrantes em guetos e permitiu a
formação de gangues.
Conklin (2010) por outro lado, acredita que uma das características fundamentais
34
do crime organizado seja permitir que uma continuidade inter-geracional aconteça, ou seja,
a sobrevivência da organização é garantida pela permanência intergeracional de seus
membros. Levando seus seguidores a acreditar na consistência das velhas máfias.
Nesse grupo de sociólogos que buscaram entender o crime organizado sem olhar
por detrás dos ombros da polícia, buscando diretamente suas fontes, Ziegler (1998) se
destaca por ter estudado organizações russas, italianas e colombianas. Ele afirma que o
crime organizado funciona fora de toda transparência e em uma clandestinidade quase
perfeita, realizando uma espécie de maximização de si mesmo, quando acumula sua mais
valia em uma velocidade sem igual. Opera também a cartelização na esfera territorial,
quando há divisão e a necessidade de cartelização a fim de estabelecer uma dominação
monopolística – criando oligopólios. Além disso, para Ziegler, o crime organizado não
teme as sanções judiciárias nem as comissões de controle, uma vez que a noção de contrato
social lhes é completamente estranha. Eles agem no imediatismo e com uma liberdade
quase total. Tanto que seu capital atravessa fronteiras territoriais sem obstáculos. Para além
dessas características, o autor nos dá uma definição do crime organizado:
Escutemos os experts do Fundo Nacional Suíço de pesquisa cientifica: Há o
crime organizado (transcontinental) como uma organização cujo funcionamento
está próximo de uma empresa internacional, praticam uma divisão com pontos
axiais, estruturas hermeticamente próximas, concebidas de maneira metódica e
durável, e que se esforça por realizar papéis tão elevados quanto possível no que
tange ao cometimento de infrações e participação na economia ilegal. Por essas
razões, a organização recorre à violência, intimidação e procura exercer sua
influência sobre a política e a economia. Ele apresenta geralmente, uma
estrutura fortemente hierarquizada e dispõe de mecanismos eficazes para impor
suas regras internas. Seus protagonistas estão amplamente intercambiáveis
(ZIEGLER, 1998, p. 47 – tradução da autora).
Concordando com as premissas estabelecidas pela ONU18, Ziegler acredita que, tal
como as organizações mafiosas tradicionais, as organizações do crime organizado se
mostram heterogêneas, mantendo um conglomerado de redes, de famílias que disputam, se
ajudam, aliam e se encorajam. Para ele, atualmente, o crime organizado e a máfia são
sinônimos. Nessa lógica, as alianças acontecem entre pares, i.e., a máfia só se alia com
outras famílias mafiosas, bem como os grupos do crime organizado somente se aliam entre
18
Comentadas nas seções seguintes.
35
si.
Ziegler também vê diferenças entre o crime organizado e a criminalidade
econômica. Para ele, os mestres do crime organizado adquiriram seu capital de maneira
ilegal e, para crescer, utilizaram igualmente, de estratégias criminais. Já o agente da
criminalidade econômica procede de maneira diferente: seu capital é formado de empresas,
indústrias, comércios, bancos, etc. Sua origem é proveniente de compra, herança ou foi
criado de maneira legal. Mas ao longo de sua história, com obstáculos surgindo, acabou por
recorrer a meios criminais para defender esse capital.
Maillard (2010), em uma análise bastante aproximada dos demais autores citados,
também examina o crime organizado na mesma chave das máfias.
O mais fácil é reconhecer que estas são organizações criminosas. Eles são
[assim definidos] porque empregam métodos de uso de violência e intimidação
sociais, elas exploram a satisfação das necessidades do grupo de artigos
proibidos (drogas, prostituição, jogo ilegal, etc.) Ou adquirem riqueza por meios
proibidos (roubo, extorsão, fraude, usura, etc.). Mas elas não são apenas
organizações criminosas, são também são uteis para cumprir funções sociais,
muitas vezes por estarem no interior da sociedade, outras vezes através da
transgressão das normas jurídicas (MAILLARD, 2010, 233/234 tradução da autora).
Com essa definição, Maillard conclui que o mafioso se torna um sujeito
empresarial, não mais agrário, como narrado por Tilly acerca do início da máfia no sul da
Itália. Às tais mudanças, o autor acrescenta que não estaríamos caminhando para uma
criminalidade organizada apenas, mas para uma criminalidade sistêmica que funciona como
intermediária legítima entre a economia legal e a ilegal.
Essa passagem entre o legal e o ilegal, segundo Naím (2005) também traz consigo
mudanças nos sistemas organizacionais adotados por estas organizações. Se concentrando
nos estudos sobre redes19 do crime organizado, ele descreve algumas redes de indivíduos
motivados pelo crime. Para o autor, essas redes independem de relações locais ou nacionais
e são formadas única e exclusivamente por interesses mundializadores de um crime que não
é subterrâneo e tampouco organizado, como eram as velhas máfias.
(...) O crime organizado, em si, está mudando - cada vez menos organizado, no
sentido tradicional das estruturas de comando e controle, e tornando-se mais
descentralizado. Ele tenta compensar o que as redes de comércio ilícito já
19
Tratarei desse assunto nas seções seguintes.
36
estabeleceram (...) [Então] sugere que alguns comerciantes se especializam em
determinados tipos de bens que são agora obsoletos (...) Na verdade, as
oportunidades econômicas e o uso de técnicas oferecidas pela globalização
tornaram mais fáceis para os traficantes combinar seus produtos ou mudar de
um para o outro, evitando assim ter de lutar para garantir as previsões do
começo ao fim da cadeia. Eles mudaram, centrando-se mais nas competências
que nos produtos (NAÍM, 2005, p. 49 – tradução da autora).
É com essas características que Naím observa a máfia colombiana, por exemplo,
como organização mais ou menos vertical que se consagra ao comércio ilegal de um único
produto apenas. Diferentemente dos mexicanos, que se dedicam a inúmeros mercados
paralelos ao tráfico de drogas na fronteira com os EUA.
Kokoreff (2004, 2010) pensando sobre o tráfico de droga em grande escala, assinala
que o crime organizado se apoia em uma rede de relações antigas, forjadas por ligações
duráveis e laços de confiança que se articulam entorno do principal organizador do tráfico
mas que, atualmente, se organizam de maneira mais flexível, adotando o sistema de redes.
Nas palavras do sociólogo:
Diz-se quadrilha de tráfico quando supõe-se destacar uma organização
estruturada, resultado de um modelo de organização piramidal. No entanto,
como vimos, as relações não são apenas hierárquicas. Elas mostram a presença
de "velhos amigos", para não mencionar as relações que envolvem um tipo
específico de ligação. Além disso, não existe nesta organização “curtocircuitos”, caminhos paralelos que surgem, violência, adultério e vingança.
Finalmente, as posições são móveis, especialmente quando a ação policial
começa a cobrar seu preço: o capanga se transforma em entregador, e os
clientes do varejo, na ocasião, são motoristas. Trata-se mais de grupos ou
panelinhas do que de uma estrutura hierárquica (KOKOREFF, 2004, p. 24
- tradução da autora).
Assim, para Kokoreff, o crime organizado está mais próximo das redes com
estruturas alternativas do que das máfias hierarquicamente organizadas. Essa mutação ele
constatou em campo, ao estudar grupos criminosos na França e Leste europeu.
Van Duyne (1996) em uma pesquisa pioneira sobre o crime organizado na Holanda,
afirma que a velha imagem do crime organizado como extensão hierárquica de famílias
criminosas organizadas em estruturas de autoridade não se aplica à realidade criminal
holandesa. O autor percebeu, através de uma pesquisa sobre empresas do crime organizado
na Holanda, uma imagem diferente daquela das famílias mafiosas. O crime organizado no
noroeste da Europa se parece mais com mercados que se projetam de duas formas
37
diferentes: 1) são aqueles com bens e serviços proibidos ou ilícitos e, 2) aqueles cujos bens
e serviços considerados legais assumem caminhos ilegais.
O autor realizou estudos de caso sobre o tráfico de drogas e crime organizado e
percebeu que, enquanto as empresas do crime organizado realizam o comércio através de
fronteiras nacionais, mesmo que estejam realizando comércios internacionais, elas não
estendem sua estrutura de autoridade internacionalmente, contrariando os estudos sobre a
máfia que mostrava que a hierarquia prevalecia, mesmo no crime organizado transnacional.
Nesse esquema, os empresários do crime organizado constituem um desafio sutil a ser
compreendido uma vez que questionam e transformam aos valores básicos e morais dessa
esfera da sociedade, especialmente quando a empresa criminosa está ligada à níveis de
poder mais altos da sociedade, como o Estado.
***
No caso brasileiro, o tema do narcotráfico foi tratado por muitos pesquisadores,
interessados, sobretudo, em compreender a dinâmica da violência nas metrópoles
brasileiras (KANT DE LIMA, MISSE e MENDES DE MIRANDA, 2000, dentre outros).
Todavia, o crime organizado tem sido tratado apenas como uma temática coadjuvante nas
ciências sociais brasileiras, e mais como um meio de se abordar o problema da violência
urbana do que como um fenômeno em si. Dentre os autores que estudaram, mesmo que
periférica e superficialmente o fenômeno do crime organizado, merecem destaque os
trabalhos de Caldeira, 1991; Misse, 1999; Adorno e Salla, 2007; Feltran, 2008; Sinhoretto,
2006; Dias, 2011; Grillo, 2008, dentre outros.
Entre os poucos estudiosos brasileiros das ciências sociais que se dispuseram a
abordar pontualmente o tema do crime organizado, Alba Zaluar (1985) se destaca como
uma das pioneiras que se propôs a pensar no fenômeno do tráfico de drogas em bairros
cariocas. Ela tocou no tema do crime organizado, tornando seus mecanismos de
organização e atuação evidentes. Zaluar (1985; 2004; 2007) se arriscou na construção de
um conceito de crime organizado e, para isso, perspassou as definições clássicas, baseadas
na hierarquia e tradicionalmente relacionadas com a definição e as características extraídas
38
dos estudos da máfia, sobretudo, no que se refere a divisão do trabalho e à obtenção dos
lucros. Todavia, Zaluar não avançou muito no que se refere a examinar a possibilidade de
se pensar e conceitualizar o crime organizado fora dos paradigmas americanos, italianos, da
ONU, etc., lançando mão de elementos que constituem a criminalidade brasileira, mesmo
tendo a oportunidade de lançar-se em uma pesquisa de campo tão fértil como a que realizou
em Cidade de Deus, por exemplo.
Guaracy Mingardi (1998, p. 82), por outro lado, foi um dos que mais avançou na
definição do conceito, sinalizando a existência de dois “tipos ideais” de organizações ditas
‘criminosas’: o Crime Organizado Tradicional e o Crime Organizado Empresarial, o
primeiro tipo trata de um “grupo de pessoas voltadas para atividades ilícitas e clandestinas
que possui uma hierarquia própria e capaz de planejamento empresarial, que compreende a
“divisão do trabalho e o planejamento de lucros”, fazem uso da violência para manutenção
do controle sobre o território e relação de clientela com o Estado através de pagamentos de
propinas, por exemplo. O segundo tipo, “empresarial” é mais complexo e “sua
característica mais marcante é transpor para o crime métodos empresariais, ao mesmo
tempo que deixam de lado quaisquer resquícios de conceitos das organizações tratadas
como Honra, Lealdade, Obrigação, etc.” (MINGARDI, 1998, p. 88).
Para o autor, estes dois tipos de organização podem ter sua origem em: a) prisões; b)
união de pequenas quadrilhas; c) laços de consanguinidade reestabelecidos no exterior (por
exemplo, a organização da “Cosa Nostra” nos EUA); d) associação de grupos interessados
no monopólio de uma mercadoria ou serviço.
Dentre as múltiplas atividades do crime organizado brasileiro, Mingardi (1998)
inclui: o tráfico de entorpecentes (embora com organização menos definida), as empresas
de lavagem de dinheiro ou de receptação e o jogo do bicho (considerado como o mais
próximo do “crime organizado” tradicional).
Mingardi (1994; 1998; 2001; 2007), salienta que as particularidades das atividades
criminosas se destacam como operacionalizadores dessas organizações. Para tanto, utiliza
as explicações que definem as ações de grupos criminosos em diversas atividades, como o
jogo do bicho e o narcotráfico. O livro O Estado e o “crime organizado” (1998) é resultado
de uma pesquisa teórica e empírica (baseada em investigações policiais) muito esclarecedor
39
e que contribuiu para elucidar o fenômeno: informando sobre tipos de organização
utilizados pelo crime organizado no Brasil, mercados envolvidos, indivíduos, etc. Na
primeira parte de seu livro, Mingardi abordou os diversos aspectos que envolvem o
conceito de Crime Organizado, preocupando-se, sobretudo, com a tríade Estado/corrupção/
organização criminosa. O exame das modalidades criminosas, "jogo de bicho" e tráfico de
drogas e sua ligação com organizações criminosas empresariais, geraram, como
consequência, a denominada "lavagem de dinheiro".
Guaracy também investigou as ligações de policiais com as organizações
criminosas em São Paulo, e percebeu que estas assumem contornos de uma realidade
especifica e morosa estabelecida a partir das infindáveis apurações de inquéritos policiais.
Esses inquéritos, segundo o autor, competem com as cifras "negras" da criminalidade
oculta, que não são conhecidas pelo sistema oficial, as quais identificam os criminosos que
têm o poder político e o exercem impunemente para seu próprio benefício, ou de uma
minoria ou ainda que dispõem de um poder econômico que se desenvolve em detrimento do
conjunto da sociedade e os situam fora do sistema penal. Desse ponto de vista, tal exemplo
ajuda a mostrar que organizações de tipo mafioso, pra retomar os “tipos ideais” que
apresentam estruturas dotadas de organização de tipo empresarial, não são produtos atípicos
das sociedades capitalistas, nem fenômenos patológicos de sociedades intrinsecamente
profícuas, mas produtos orgânicos de um ecossistema social também globalizado.
Nesta revisão destaca-se ainda o trabalho de Thiago Rodrigues (2002; s/d), que
adota uma linha de pesquisa voltada ao estudo do papel do Brasil no tráfico internacional
de drogas. A ele interessam as disputas entre “cartéis”, as ações policiais de repressão, as
missões militares de combate ao tráfico, os debates de legalização e as facções do crime
organizado. Segundo o autor, os esquemas do crime organizado conectam grupos
transnacionais e gangues de rua, além de mobilizar forças policiais e militares.
Aprofundando ainda nos lucros econômicos gerados de forma legal e ilegal, nos
efeitos políticos pouco debatidos e nas mudanças sociais provocadas por essa prática
realizada por organizações criminosas em todo o mundo, Rodrigues aponta na direção do
antiproibicionismo para discutir a legalização de certas drogas no Brasil e procura
40
convencer o leitor de que a descriminalização poderia ser um caminho apropriado de
resolver as consequências negativas que o tráfico de drogas tem para a sociedade.
Adriano Oliveira (2007), é um dos autores que se dedicou ao tema e defende que
apenas Mingardi se aventura a uma definição um pouco mais acurada do conceito de crime
organizado, enquanto que os demais autores não se arriscam a uma definição (sociológica)
do tema, ficando apenas nas etnografias e pequenas descrições sobre o cotidiano de
algumas organizações. Todavia, tal crítica só poderia ser feita se o mesmo tivesse também
realizado estudos sobre a temática do crime organizado. Contudo, Oliveira optou por seguir
por outro caminho e lançou mão das ferramentas da economia associadas às análises de
redes sociais e chegou à máxima da Economia e da divisão do trabalho que preconiza que
um indivíduo associa-se a outro com a intenção de aumentar os seus ganhos. Quando
escreve com Jorge Zarevucha (2010), tal como Mingardi, Oliveira dá um passo para além
das pesquisas de campo, se debruça também sobre inquéritos policiais e CPIs e chega a
uma definição do crime organizado baseada em alguns estudos realizados no estado do
Pernambuco. Para eles, a definição de crime organizado nem sempre deve apresentar todas
as caraterísticas listadas pelos diversos estudos do fenômeno, a saber:
1) Crime organizado é todo grupo que pratica atividades ilícitas;
2) Crime organizado é todo grupo que exerce atividades clandestinas;
3) Crime organizado é todo grupo que pratica atividades ilícitas e clandestinas, tem
hierarquia organizacional, pratica a divisão de lucros, tem planejamento empresarial e faz
uso de intimidação;
4) Crime organizado existe quando um grupo atua em simbiose com o Estado e
exerce, em dado contexto, controle territorial mediante monopólio do uso da violência, etc.
Para Oliveira e Zarevucha (2012), o crime organizado pode ser visto de
perspectivas diferentes e, dentre estas, apresentar caraterísticas distintas, tais como a) Crime
organizado pode ser exógeno (cooperativo ou não cooperativo); b) Crime organizado pode
ser endógeno (cooperativo ou não cooperativo) e c) Crime organizado pode ser híbrido.
Nesse estudo os autores constatam que
as organizações criminosas nascem em ambientes estatais, como também na
sociedade. O número de funcionários públicos detidos em virtude das operações
comprova que alguns grupos organizados nascem no Estado, e este é um ator
41
estratégico para a dinâmica da criminalidade organizada, uma vez que os
criminosos o procuram em busca de cooperação ilícita. A presença da
criminalidade organizada de origem endógena sugere que o Estado brasileiro
precisa ser reconstruído, porque vários de seus integrantes criaram ou cooperam
com organizações criminosas. Saliente-se que a literatura internacional
apresentada argumenta ser impossível entender o fenômeno da criminalidade
organizada sem considerar o Estado. Este artigo mostra que é impossível
entender o crime organizado no Brasil sem considerar que o Estado é fonte de
grupos criminosos, e o Estado não está interessado, como devia, em se auto
investigar (OLIVEIRA e ZAREVUCHA, 2012, p. 441).
Para além das presentes definições e estudos sobre o fenômeno é notável que elas
lançam luz sobre a problemática, entretanto, nenhuma se dedicou a caracterizar as
particularidades do crime organizado brasileiro e a afirmar qual a forma adotada pelo
mesmo no Brasil.
PARTE 2
ORGANIZAÇÕES EMBLEMÁTICAS DO CRIME ORGANIZADO
A presente seção procura mostrar, através de exemplos canônicos e amplamente
conhecidos de organizações do crime organizado, como os mesmos se comportam. Para
tanto, revisitarei bibliograficamente o exemplo da máfia (italiana, por ser a mais conhecida
e estudada), cartéis (mexicanos) e gangues (americanas e salvadorenhas). O objetivo dessa
revisão é mostrar como historicamente essas organizações nasceram, quais são seus
principais atributos e formatos organizacionais, para então lançar as bases para pensar as
organizações brasileiras do crime organizado investigado no capítulo VI a partir de
paradigmas já existentes afim de compará-los.
MÁFIA
A máfia, como sendo um dos maiores expoentes do crime organizado é, até os dias
atuais, a organização mais estudada e comentada por apresentar características que a
tornam uma organização sui generis, que apresenta uma liderança oculta, que utiliza-se de
42
estratégias de infiltração nas instituições governamentais e sociedade civil, e que possui os
chamados “homens de honra”20.
A história da máfia segundo Catanzaro (1991); Cretin (1998); Gambetta (1993);
Lupo (2002); Marino (2009); Pezzino (1993); Puzzo (1992) e Santino (2001) remonta à
Itália na segunda metade do século XIX, aonde é possível recuperar as observações de Tilly
sobre a formação do Estado descritas no princípio deste capítulo. Destes autores, alguns
relatam que nesse período a aristocracia italiana pouco a pouco ia perdendo espaço para
uma burguesia em ascensão, sobretudo no que se referia a gestão e posse de terras e
propriedades. À medida que as taxações aumentavam e os antigos camponeses pobres do
sul perdiam suas terras, as diferenças entre o norte rico e o sul pobre se mostravam
determinantes para que o fenômeno da máfia eclodisse. Nesse cenário, o mafioso de baixo
escalão era o antigo camponês que se transformara em um indivíduo às margens da
sociedade. Paralelamente, existia ainda o mafioso rico, que em oposição ao marginal, era
responsável pelo recolhimento das taxas de propriedade e pelas expulsões dos camponeses
que não concordavam com os novos métodos da “máfia” que nascia. É nesse contexto que
se desenvolveu a máfia: na convivência da extrema pobreza e da riqueza conquistada pela
força do capo, ou chefe da organização, que tomava as decisões pelo grupo no controle,
expandia seu território de ação e decidia sobre o pagamento do pizzo, que é uma taxa
cobrada pelos mafiosos aos comerciantes para que possam continuar a trabalhar sem serem
importunados pelos criminosos.
Após as revoluções italianas de 1848 e 1860 a Sicília, considerada por muitos
estudiosos do fenômeno mafioso como o berço da máfia (ARLACCHI, 1983; DICKIE,
2010; MARINO, 2009), era assombrada pelas disputas por terra e pela luta entre ricos e
pobres. Nesse contexto, os primeiros mafiosos, armavam e sustentavam os bandos “fora-dalei” com o objetivo de destruir a polícia e os pobres na região, aproveitando-se do caos
instalado (DICKIE, 2010).
Com o novo governo instalado após a unificação dos estados italianos (1861), ficou
claro que a máfia deveria adotar outros métodos, como proteger as plantações e as nobrezas
20
Indivíduos que aderem a uma organização que se opõe às instituições tradicionais legais e que exibem
coragem e superioridade para enfrentá-las. (ARLACCI, 1997)
43
locais em troca de “benefícios” políticos e econômicos. Assim, ela assumiu a posição
estratégica de ligação entre os bandos, controlando-os e estabelecendo um ambiente
“seguro”, sobretudo, na região siciliana. Com isso, adotou o duplo papel de organizadora da
criminalidade e de “policiamento” para aqueles bandos ainda não controlados (TILLY,
1996). Nesse contexto, o atrito entre a Igreja Católica e o Estado italiano em surgimento só
aumentou o caos e deu vantagem aos bandos criminais existentes na Sicília que incitaram
os moradores da região a não colaborarem com a polícia, vista como uma representante do
Estado e um elemento contrário à Igreja. Aproveitando-se desse cenário, os grupos
mafiosos instalaram os chamados roubos de “proteção”, as corrupções de funcionários do
Estado e os “pedágios” instalados para alguns comerciantes que não colaboravam com a
máfia. Desta maneira, ela conseguiu penetrar, pouco a pouco na política e na economia do
país (ZIEGLER, 1998).
Vale acrescentar que na Itália, a relação da máfia com o poder político existia como
troca de bens numa espécie de mercado de proteção recíproca: a máfia garantia votos com
suas intimidações e, assim, produzia consenso social; o político, por seu lado, garantia
impunidade, contratos, licenças, etc., para o grupo máfioso que o apoiou (CRETIN, 1998).
A história de mais de 150 anos de existência da máfia mostra o entrelaçamento de
atividades políticas e da corrupção - embora algumas teses atuais falem sobre a superação
da mediação política externa pela eleição direta de “quadros” internos das próprias
organizações mafiosas. Nessa ótica, uma das fontes da corrupção do poder público estaria
no financiamento de campanhas políticas por organizações de tipo mafioso, onde, a
conquista de cargos públicos eletivos não seria paga somente com doações, mas também
com dinheiro ilegal ou pecúnia non olet. O “cheiro do dinheiro” apareceria somente na
lesão do patrimônio público por contratos viciados, leis de encomenda e infinitas
modalidades de favores pessoais garantidos pela gestão clientelista da “coisa pública”,
controlada por governos privados de tipo mafioso (RUGGIERO, 1992).
Quando se fala sobre máfia, o nome do juiz Giovani Falcone, imediatamente se
destaca: ele foi um dos que mais combateu a máfia na Itália e que mais se preocupou em
entendê-la para depois combatê-la. Foi um dos pioneiros a se apoiar na investigação dos
“crimes fiscais” para chegar aos mafiosos. Falcone se amparou nas narrativas de
44
“arrependidos” e nas investigações biográficas para entender de onde vinham as regras e
normas intrínsecas às máfias e às quais o judiciário mais temia combater, inspirando assim
inúmeras outras pesquisas que viriam após seu assassinato em 1992, tais como os trabalhos
de Marino (2009) que reconta a história da máfia siciliana e sua evolução até a construção
de uma “máfia globalizada”; o trabalho de Lupo (1999) que descreve a história das máfias
na Itália, procurando um caminho diferente do mitológico; Dickie (2010) que mostra a
ascensão e o percurso trilhado pela Cosa Nostra italiana; Gambetta (1993) que apresentou
uma nova perspectiva sobre a máfia como uma instituição extralegal ressaltando o papel da
demanda do mercado de proteção e dos rituais e comportamentos que lhes conferem
sentido organizacional; Pezzino (1993) que nos fala sobre o uso da violência como
elemento estruturante da máfia italiana; Pizzorno (1992) que aborda a importância da
corrupção e da cooptação das estruturas e aparelhos do Estado; Puzzo (2000), que narra a
história da máfia através de seus elementos míticos; Santino (2000) que trata da máfia
como uma empresa; Sciarrone (2000), que descreve o papel do capital social dentro das
instituições mafiosas.
Dos autores que estudaram a máfia italiana, um se destaca e merece comentários
mais alongados: Pinno Arlacchi (1997) que escreveu sobre o mafioso arrependido
Tommaso Buscetta. Em um livro quase autobiográfico o mafioso relata sua trajetória na
máfia, como se tornou um de seus principais líderes e por que resolveu denunciá-la. Preso
no Brasil em 1984, Buscetta desde então vive escondido e protegido pelo FBI. Ele continua
sendo o homem mais procurado pelas poderosas famílias da Cosa Nostra, cujos capi21
foram capturados em função de suas revelações. O mafioso fez um relato minucioso sobre a
estrutura e funcionamento da máfia, desmistificando várias “lendas” sobre o sistema
simbólico e arquitetônico do interior desta sociedade secreta.
Em outra obra (Mafia Business, 1987) Arlacchi mostra como a máfia tem se
beneficiado de uma mitologia que ela própria criou e que se baseia em sua imagem como
uma espécie de bando que rouba dos ricos e dá aos pobres – ao estilo Robin Hood. Tudo
isso graças a um código de honra e respeito que, por muitos anos inverteu a máxima de que
os policiais são os heróis e os criminosos (eles), os bandidos. Imagem esta que só foi
21
Líderes.
45
mudada após a iniciativa de Falcone e outros que vieram após este e que não se deixavam
corromper pelas máfias.
Pino Arlacchi, é um sociólogo que se empenha até hoje em quebrar esses mitos. Em
sua carreira ele busca entender as fontes de poder da máfia e os frutos do seu trabalho. No
citado livro de 1987, Arlacchi aproxima a máfia italiana dos empresários, cunhando um
jargão conhecido entre os sociólogos que se debruçam sobre o tema: a máfia empresarial.
Trata-se de uma máfia que ajunta somas astronômicas (de dinheiro) nos negócios ilícitos
através da combinação da ética mafiosa com o espírito do capitalismo. Esta nova máfia é
resultado de um longo caminho estabelecido em conjunto com um bom uso de regras das
finanças internacionais.
De modo geral, Arlacchi procurou traçar o declínio da velha máfia para então
mostrar como se deu a ascensão da nova – a máfia empresarial. Para o autor, a principal
mudança se deu na Sicília, logo depois da guerra, quando um grupo de democratas-cristãos
centralizou o poder e passou a utilizar o fluxo substancial de dinheiro público destinado ao
desenvolvimento da região para expandir o alcance da nova máfia a partir de construtoras e
empreiteiras. Assim, nas décadas de 1950 e 1960, a máfia siciliana se tornou efetivamente
um grupo de clientes da maioria governista. Além disso, a mudança também se deu no uso
da violência: o número de assassinatos diminuiu a partir do momento em que o Estado
estabeleceu um monopólio efetivo sobre o uso da violência, encabeçado e apoiado pela
nova máfia, obviamente.
Na década de 1970, quando se deu uma grande onda de terrorismo na Itália, o
Estado começou a perder seu poder e um dos beneficiários foi a máfia. Com a retração nos
fundos de desenvolvimento (sobretudo nas construções encabeçadas pelo Estado), houve
uma grande migração de italianos do sul para o norte em busca de trabalho, o que aumentou
o nível de violência local. Nesse contexto, o uso da violência se deu devido à necessidade
de estabelecimento dos mafiosos e da conquista de novos territórios de atuação.
A nova máfia era simultaneamente moderna e racional, mas também levantou
dinheiro da maneira antiga: através de sequestros e extorsões. Paralelamente, começou a
investir em empreendimentos que muitas vezes dependiam de financiamento do Estado.
46
Para lidar com o problema de concorrência no mercado, a máfia agia da forma antiga, i.e.,
eliminando a concorrência.
Em seus dois últimos capítulos do livro, Arlacchi trata da economia da heroína e da
ascensão de outros mercados ilegais. Para ele, os conceitos de “oferta” e “demanda”, são a
base de sua lógica. Elas combinam três elementos ideais que conduzem à receita do sucesso
para o negócio da droga: o capital, a violência física e a inação da polícia e do Judiciário.
Nessa lógica, é necessário ao mafioso erguer uma barreira para desencorajar a entrada de
possíveis rivais no negócio e proteger-se, pois, cada negócio de alto risco gera um alto
retorno. Arlacchi então mostra como alguns empresários que trabalhavam com heroína
eram suficientemente competitivos mas caíram diante de seus rivais. Para o autor, o tráfico
de drogas, de certa forma se comporta como um comércio como outro qualquer, exceto
porque opera sob uma enorme quantidade de regulamentações informais. As teses de
Arlacchi (1983) e Catanzaro (1991) afirmam que o sujeito econômico é composto por uma
burguesia mafiosa organizada em torno de empresas cujo objetivo é a acumulação de
capital alcançada através de métodos de violência e de intimidação ao nível da organização
do trabalho e da condução dos negócios, além das vantagens competitivas do
desencorajamento da concorrência, da compressão salarial e da disponibilidade ilimitada de
recursos financeiros de origem ilícita.
Para além das citadas características da máfia, outras tantas podem ser listadas,
como por exemplo, a estrutura organizacional que supõe um engajamento recíproco de seus
membros e um certo número de regras internas ao grupo. Uma dessas regras é, segundo
Dickie (2010), o mito existente em torno da máfia e de seus homens de honra, sua origem
estaria na importância que esta deposita sobre certos símbolos de comportamento
considerados honrados, como a proteção da honra da família. Além disso, o temor imposto
pelo uso da violência é recorrente na máfia na medida em que é utilizado para alcançar a
riqueza ou para proteção da organização, de seu território de ação e, sobretudo, intimidar
seus adversários.
A ligação da máfia com as classes políticas e instituições públicas, seja em escala
regional ou nacional também garante a penetração da mesma nessas esferas e a ascensão a
determinados recursos públicos. Em certos casos, ela chega a agir com tamanha
47
impunidade, corrompendo até mesmo o judiciário, uma vez que detém influência sobre as
classes políticas (PEZZINO, 1993).
Ruggiero (1992), por seu lado, trabalha com a tese de uma estrutura simbiótica de
capital legal e ilegal, em relação de recíproca sustentação: o capital ilegal contribuiria por
meio do tráfico de armas, objetos preciosos, obras de arte, e de ainda, com vastos recursos
financeiros; a empresa legal garantiria acesso ao mercado financeiro, aos investimentos e
parcerias empresariais, que direcionam o capital ilegal para a produção econômica e a
especulação financeira.
A leitura desses autores permite dividir a economia mafiosa em três partes distintas:
a economia legal, a economia ilegal e a economia legal-mafiosa. As duas primeiras estão
descritas pelos juristas como Cretin (1998) e sociólogos como Ziegler (1998), entretanto, é
preciso esclarecer um pouco mais a especificidade da economia legal-mafiosa uma vez que
não se trata de uma economia do “submundo do crime” em seu estrito senso, nem de uma
economia legal com pagamento de impostos e taxas ao governo. São empresas que
pertencem a mafiosos que prestam serviços públicos ou privados, falsa ou indevidamente
contratados, cujo valor pago serve muitas vezes para “lavar o dinheiro” obtido com outras
atividades notadamente ilícitas (LUPO, 2002).
Na leitura de Sciarrone (2000) o princípio organizacional da máfia pode ser
encontrado na velha fórmula “os amigos dos amigos”, baseando-se em um conjunto de
ligações recíprocas e bastante coesas. Todavia, as organizações mafiosas vão um pouco
além disso: seus arranjos adquirem o caráter de “obrigações” e honra, aonde cada membro
estão enraizados na sociedade local e, originalmente, são caracterizados pela
sua baixa extensão, seguida de uma alta densidade, ou seja, uma "malha fina" e
uma baixa especialização (SCIARRONE, 2000, p. 46 – tradução da
autora).
Esse “enraizamento” por parte da máfia em sociedades, como a italiana, mostra o
quão flexível pode ser a adaptação e o aliciamento de seus membros: de empresários e
gerentes de bancos à administradores públicos. Todavia, segundo o citado autor essa
capacidade de adaptação e enraizamento é de todo modo fraca, uma vez que as relações
dela
resultantes,
mesmo
que
multiplicando-se
rapidamente,
produzem
relações
consideradas “frouxas” entre os sujeitos participantes. No final, tudo depende da
48
capacidade de criar, a nível local, as relações de alta densidade, ou seja, com múltiplas
interconexões e uma forte capacidade de aproximação entre diversos atores (SCIARRONE,
2000, p. 46).
Um traço interessante a ser notado na construção destas organizações é o papel que
o capo desempenha ao manipular e construir suas interconexões e regras. Segundo
Sciarrone (2000), lideranças mafiosas também podem desempenhar o papel de “pontes22”
nas redes criminais, estimulando dessa forma, o processo de cooperação entre grupos
criminais diferentes e organizando (ora horizontal, ora verticalmente) o grupo como um
todo.
O mafioso se encontra no interior das redes relacionais particularistas e
privilegia as formas locais de interação, é o que lhe permite ativar e gerar
relações personalizadas. A pluralidade de lealdades particularistas e suas
intersecções favorecem igualmente a participação em redes relacionais
ampliadas e mais ou menos descontextualizadas (SCIARRONE, 2000, p. 47
– tradução da autora).
Se servindo de fontes organizacionais ilícitas, as máfias criaram uma forma de
relação intermediária entre uma organização clânica e uma burocracia, onde, a
solidariedade étnica, política, religiosa ou territorial seriam algumas das responsáveis pela
expansão e manutenção da coesão no interior do grupo.
Interessante notar que do ponto de vista de sua estrutura organizacional, os grupos
mafiosos apresentam uma dupla tendência: ora transitam entre a centralização interna
baseada na omertá 23 , ora convergem à fluidez organizacional e alcançam, inclusive,
organizações estabelecidas no formato de rede.
22
Rapidamente, uma ponte é uma aresta cuja remoção desliga um grafo. Para aqueles que não estão
familiarizados com a linguagem da análise de redes sociais, uma ponte pode também ser entendida como um
ator que no interior de dado grupo desempenha o papel de anfitrião, i.é., conhece todos no grupo e apresenta
os novatos, sendo ele a ligação entre alguns membros do grupo e outros. O capital social ‘mafioso’ é acionado
na medida em que ele se encontra na intersecção de diversas redes criminais diferentes da sua rede primária:
“Idéalement on peut imaginer que le réseau personnel d'un mafieux s'élargit dans au moins trois directions:
vers le bas - la criminalité; vers ses pairs - les autres dirigeants de la mafia; vers le haut - les hommes
éminents qui le protègent et qu'il protège» (SCIARRONE, 2000, p. 47). Com isso, o mafioso congrega o
capital social necessário para transitar entre seus pares e realizar, através da confiança que neles deposita, uma
ampliação da sua rede criminal pessoal.
23
Omertá um termo de origem napolitana e sua definição vai de encontro á de umiltà (humildade). Em linhas
gerais, a omertá é a submissão total do neófito às regras da máfia.
49
A primeira concerne aos afiliados aos grupos mafiosos e se manifesta sobre um
território relativamente circunscrito; a segunda é o inverso relativo às redes de
alianças e de contatos mafiosos com outros atores e pode se manifestar em
lugares mais dispersos do ponto de vista espacial (...) De um ponto de vista
morfológico, a imagem do conjunto que se pode obter observando um grupo
mafioso é aquela de uma rede fechada sob seu núcleo organizacional, que se
torna menos densa em sua trama periférica, mas que continua manter númerosas
linhas de conexão (mesmo se elas estão dispersas) em númerosas redes sociais,
algumas dessas constituem grafos de relações fechadas (SCIARRONE,
2000, 48/49 – tradução da autora).
A adoção de modelos organizacionais diferentes das tradicionais hierarquias, como
é o caso da organização em rede também foi enunciada por Dino (2010) como uma
mudança interna pela qual as máfias estariam passando no final do século XX, salientando
o interesse destas pelos contextos internacionais orientado por um sistema criminoso mais
flexível, como seria o caso das redes (DINO, 2010 in DINO e MAIEROVITCH, 2010).
Para Dino, o início do século XXI foi marcado pelo surgimento de um complexo sistema de
alianças e de redes, no qual se juntaram atividades econômicas consideradas legais à
interesses mafiosos, borrando a fronteira entre a esfera do lícito e do ilícito e modificando a
ordem normativa existente.
CARTÉIS
No dicionário de sociologia, o termo cartel designa uma associação baseada em
acordos contratuais entre empresas que atuam no mesmo ramo de negócios, as quais detém
uma certa independência legal associada ao exercício de uma influência monopolística
sobre o mercado (SMELSER e BALTES, 2001). Essa mesma descrição uma vez aplicada
ao universo criminal, pode ser obtida se substituir um produto lícito, por um ilícito, de onde
tem-se a descrição de uma “continuidade sociológica e histórica com os sindicatos do
crime” (CRETIN, 1998, p. 05).
A denominação criminal utilizada aqui para identificar os “cartéis” se restringe às
organizações criminais centro e sul-americanas, como é o caso dos grupos que controlam o
mercado de drogas e armas na Colômbia, México, Venezuela, Honduras, etc.
Segundo Gonzáles (2009) o México entrou na onda de violência dos cartéis de
droga durante os anos de Proibição americana (1917-1933) ou a chamada Lei Seca, mas as
50
sementes para o crescimento a longo prazo e a surpreendente rentabilidade do comércio
ilegal de drogas entre o México e EUA foram semeadas muito antes, quando os opiáceos
(morfina e heroína) tornaram-se um negócio em franco crescimento nos Estados Unidos
durante a Guerra Civil Americana (1861-1865) e as duas guerras mundiais (1914-1918 e
1939 -1945). Desde o século XIX, agricultores do noroeste do México vinham expandindo
suas plantações de papoulas de ópio a fim de satisfazer essa demanda. Por essa época, o
México se tornou uma das portas de entrada para cocaína e heroína. Na década de 1880
desenvolveu um mercado de massa nos Estados Unidos prescrevendo o ópio e a cocaína
para tudo – de clareadores para dentes escurecidos até flatulência. Contrabandistas dos
países andinos e suas redes americanas utilizavam o México e o Caribe como gateways
para abastecer o mercado ilegal que servia Hollywood e Nova York na década de 1950 e
1960; nesse período a cocaína era considerada como um item de luxo que poucos podiam
pagar – essa panacéia durou até o início de 1980, quando o crack invadiu as ruas das
grandes cidades dos Estados Unidos, causando estragos particularmente nos bairros afroamericanos e hispânicos. O mercado da maconha, por outro lado, começou em 1920
introduzida por trabalhadores mexicanos que fumavam as folhas de cannabis. Um mercado
de massa para o consumo de cannabis não se desenvolveu até o surgimento da
contracultura dos anos 1960 e 1970. Por último, um amplo mercado para drogas sintéticas
como as anfetaminas se desenvolveu nos EUA durante a década de 1990, e os cartéis de
drogas mexicanos tornaram-se fornecedores dominantes desses itens também.
Como mostrado, durante décadas, o México e os EUA têm buscado estratégias
muito diferentes para combater ao tráfico de drogas. Enquanto que os EUA seguiram pela
tradicional "guerra contra as drogas" iniciada no governo Nixon no início de 1970. O
México, por outro lado, optou por um sistema que visava trabalhar em duas frentes: com as
autoridades mexicanas e traficantes, isso aconteceu entre os 1940 e 1990. Essa segunda via
de combate, definitivamente não deu resultados, mas isso não quer dizer que os presidentes
ou políticos mexicanos estiveram de fato envolvidos no tráfico de drogas, significa apenas
que, devido às políticas territoriais complexas e fragmentadas no México, os governadores
do país, prefeitos, oficiais militares e chefes de polícia mantiveram uma certa autonomia
para fazer avançar os seus interesses e os dos seus aliados (inclusive os traficantes de
51
drogas), sendo que alguns até mesmo chegaram a “comprar o acesso da fronteira” MéxicoEUA lhes permitindo expandir sua produção e atividades de contrabando. As autoridades,
por sua vez enriqueceram mas mantiveram a paz ao invés da destruição dos sindicatos da
droga. Após o final dos anos 80, aumentou a pressão americana sob o México para que
começasse um definitivo combate ao tráfico, até que, depois de anos de subsídio americano,
o México finalmente começou a se ver livre de alguns líderes de cartéis, todavia, os
esquemas de corrupção envolvendo políticos e policiais continuou e as lideranças foram
substituídas.
Um dos líderes mais emblemáticos no cenário dos cartéis de droga foi um ex-agente
policial mexicano, Angel Gallardo. Foram suas ações para tentar monopolizar o mercado
que, na década de 80, o tornaram chefe de um dos grupos mais violentos do México.
Payan (2006) analisando os anos 80 e a ascensão de Gallardo acrescenta que além
da violência contra e entre os cartéis, existiam ainda as disputas dentro de um cartel entre
duas figuras poderosas para o controle da organização, particularmente quando um líder era
morto ou preso, fato que poderia se dar com certa frequência. Se o líder preso não pudesse
mais controlar o cartel, mesmo de dentro de sua cela na prisão, seus “tenentes” entravam
em concorrência para se tornar seu sucessor. Isso muitas vezes levou a um derramamento
de sangue intra-cartel. Os membros e os trabalhadores de um cartel tomavam partido e
usavam a violência para eliminar os partidários do grupo concorrente; foi o que Gallardo
fez. Isso resultou em um nível elevado de violência visível, porque os corpos dos
executados muitas vezes eram depositados em terrenos baldios ou becos nas cidades de
fronteira.
Para os cartéis, o controle do território e dos mercado específicos são duas das
características mais importantes. Mas, diferentemente das máfias, o controle hierárquico se
restringe apenas aos líderes do grupo, podendo outros níveis, adotar, formas diferentes de
organização. Além disso, não existem códigos ou “fórmulas” aglutinantes entre seus
membros.
Essa ausência de uma linhagem mafiosa explica em parte uma prática de poder
que rompe com todos os códigos de honra da velha escola de Felix, de Fonseca
ou de Carrillos24 (STERN, 2011, p. 176 – tradução da autora).
24
Antigos líderes de cartel.
52
Ao mesmo tempo que a adoção dessa postura descentralizada em baixos níveis
possa ser perigosa aos cartéis, ainda assim, é uma estratégia considerada “mais barata”.
Ao lado dos grandes grupos criminais os menos estruturados ganharam um lugar
ao sol. Seus meios são menos importantes que suas “cifras” de segundo plano,
hierarquicamente menos elevados, mais locais, em uma palavra, menos caros.
(STERN, 2011, p. 181 - tradução da autora).
Não muito diferente é a situação dos cartéis colombianos. Segundo Bagley (1990) e
Kenney (2007), os barões da droga colombianos são inimigos cruéis e imensamente
poderosos. Embora a Colômbia seja um pequeno produtor de coca, os cartéis de Medellín e
Cali controlavam no final do século XX entre 75 e 80% do tráfico de cocaína da região
andina, ganhando entre US$ 2 bilhões e US$ 4 bilhões/ano (referência dos anos 90 utilizada
pelo autor). Desde meados da década de 1970, eles usaram sua riqueza para organizar
milícias privadas, comprar armas sofisticadas, e para subornar, intimidar e aterrorizar a
justiça colombiana e sistemas políticos. Seu dinheiro, poder de fogo e influência política
eram tão grandes que não existia um plano do governo colombiano capaz de sustentar a luta
contra os cartéis. Por essa razão, a Colômbia se baseou fortemente nas políticas americanas
de luta contra o tráfico.
Essa maneira de organizar-se - menos hierarquizada – adotada pelos colombianos e
mexicanos permite também que haja mais flexibilidade em sua estrutura organizacional
(KENNEY, 2007), porém, também demanda que o controle nos níveis mais baixos da
organização sejam mais eficazes, por essa razão o controle do território mostra-se tão
importante e o uso da violência é corrente.
GANGUES
Outra forma ainda mais barata de se organizar e manter a ordem dos negócios, pode
se dar através das gangues. As gangues são definidas como grupos com organização
primária cuja origem data das sociedades medievais nas quais as condições de fronteira
como a ausência do Estado e condições de desordem política levavam às aparições de
agregações de bandidos que mais tarde se organizaram em ordens tribais que superavam os
53
interesses comuns do grupo e agruparam os indivíduos que compuseram as gangues do
período industrial (SMELSER e BALTES, 2001). A quebra das agências do Estado e do
controle social nas fronteiras, a facilidade para se escapar da autoridade e da vida em
família levaram à formação das primeiras gangues que mais se aproximam dos padrões
atuais. Algumas características que as definem são:
1) a constituição do grupo – são geralmente compostas por jovens que estão às
margens da comunidade na qual residem e que carregam essa desordem social para o grupo
do qual farão parte, ou seja, as gangues;
2) com formação espontânea em resposta às certas condições de vida – a gangue se
forma pelo conflito;
3) é um importante alimentador para as máfias, sobretudo no que se refere às
extorsões e seus membros mais jovens são amplamente influenciados por essas
organizações e membros mais velhos;
4) o que os motiva é a busca por novas experiências vividas em um mundo de
aventuras difíceis para um adulto compreender, dada o uso da violência e os
comportamentos viciantes;
5) assumem alguns aspectos das unidades de polícia e exército, sobretudo no que se
refere às relações de hierarquia e poder;
6) são territorialistas;
7) seus membros assumem características étnicas que garantem sua alteridade frente
à seus inimigos – nesse sentido, a punição serve como uma ferramenta que mantem a
unidade e a solidariedade no interior do grupo.
Por trás da quadrilha e dos roubos está o político e as estruturas de gangues
facilitam uma aliança corrupta entre crime e política. A influência do político
muitas vezes começa mesmo com o grupo adolescente para os quais ele insinuase através de subsídios de vários tipos. (ENCYCLOPAEDIA OF SOCIAL
SCIENCES, 1930, p. 566 – tradução da autora).
De acordo com as definições dadas, observei que a exceção da associação e do
envolvimento entre agentes do Estado e membros da organização, as gangues poderiam
facilmente serem identificadas como crime organizado. No entanto, mesmo que elas não
possam ser, de modo geral, incluídas e descritas como parte do crime organizado, alguns
54
exemplos de organizações de gangues, como os maras salvatruchas estão aprimorando seu
modus operandi e, como será mostrado, em muito se assemelham com os grupos
revisitados à pouco, como as máfias e, sobretudo, os cartéis e podem, em breve, figurarem
entre os exemplares do crime organizado.
Ribando (2007) é um dos especialistas em gangues que debate acerca da definição
formal do termo "gangue" e os tipos de indivíduos que devem ser incluídos em suas
definições. Em geral, há um consenso de que as gangues costumam ter um nome e um
sentido de identidade identificada por símbolos, como roupas, pichações, e os sinais de mão
que são únicos para a quadrilha.
Para o autor, as gangues são pensadas como unidades compostas por membros com
idade variando entre 12 e 24 anos, mas alguns membros de gangues são adultos maiores de
24 anos de idade – em geral, estes ocupam postos mais altos na organização.
As gangues se envolvem em atividades criminosas menores que vão desde
pichações, vandalismo, pequenos furtos, roubos e assaltos até às atividades criminosas mais
graves, como tráfico de drogas, lavagem de dinheiro, tráfico de pessoas, prostituição,
extorsão, invasão à domicílio, assassinato e outros crimes violentos.
Elas diferem de outras organizações criminosas, como a máfia e os cartéis, porque
normalmente não têm a estrutura hierárquica de liderança, capital e mão-de-obra
necessárias para sustentar uma empresa criminosa sofisticada. As gangues assumem
modelos de organização mais horizontais, com pequenos subgrupos e pouca estratégia que
configure liderança central e disciplina. Um exemplo de como esses grupos estão alocados
dentro da estrutura organizacional é mostrado na Figura 1.
55
FIGURA 1: Estrutura organizacional dos Maras.
25
FONTE: BORAZ e BRUNEAU, 2006 .
Apesar de algumas gangues estarem envolvidas na distribuição de drogas no varejo,
por exemplo, alguns grupos ou membros estão envolvidos em nível mais altos da
distribuição de drogas no atacado, cuja orientação organizacional se aproxima àquela
adotada por uma empresa ou pelos cartéis de drogas, sindicatos ou outras organizações
criminosas mais sofisticadas.
Os maras, por exemplo, são gangues armadas envolvidas principalmente em
negócios de tráfico de drogas, homicídios, roubos de carros e outros tipos de atividades
ilícitas. Se organizam, nos níveis superiores, em estruturas de tipo mafioso associadas ao
modus operandi paramilitar. Seus membros, os “mareros” provém de países como El
Salvador, Honduras, Guatemala e Nicarágua e são muito ativos nos EUA e México.
Entretanto, Aguilar e Carranza (2008) são consistentes ao afirmar que é altamente
improvável que os membros da gangue, que são geralmente jovens de rua, são os gênios
por trás do movimento de cocaína para os Estados Unidos, ao contrário, a maioria do
tráfico de drogas, especialmente da cocaína que circula na região para os Estados Unidos,
está nas mãos de cartéis mexicanos. Além disso, embora alguns grupos de maras
25
http://usacac.army.mil/CAC2/MilitaryReview/Archives/oldsite/portuguese/NovDec06/boraz.pdf
56
estabeleçam ligações com quadrilhas de tráfico de drogas, as relações entre os dois grupos
pode variar de uma região para outra ou mesmo entre os membros de uma mesma
quadrilha. A relação mencionada é baseada principalmente em transações comerciais, a
partir de atividades orquestradas por máfias ou cartéis. Isso indica que não há uma ligação
orgânica entre essas organizações, mas sim das relações contratuais em que um ou mais
membros realizam, eventualmente, em algumas atividades. Nesse sentido, sua participação
no narcotráfico internacional é mais de personagem coadjuvante do que principal. Por essa
razão, ainda se discute sobre os maras serem ou não um grupo do crime organizado.
Segundo Sullivan (2008) a origem dos maras remonta a 1980, quando estourou uma
guerra civil em El Salvador que durou 12 anos e provocou a mudança de milhões de
refugiados para os EUA. Estes mantinham contato com uma violenta gangue de rua
salvadorenha. O envolvimento desses com antigos grupos paramilitares deu origem aos
maras nos EUA.
Como outras gangues de rua, os maras inicialmente foram formados com o fim de
proteção, mas rapidamente ganharam a fama de gangue violenta e muito organizada.
Alguns membros, depois de terem sido condenados por crimes e alguns delitos nos EUA,
foram reenviados a El Salvador e lá continuaram suas organizações agora, com vínculos
americanos.
A iniciação dos novos membros homens consiste em ser surrado pelos outros
membros durante 13 segundos, para as mulheres é ser estuprada por membros da gangue26.
Não existe limite de idade para participar do grupo: até mesmo crianças são iniciadas.
Algumas das regras essenciais aos maras é recrutar novos membros para o grupo,
entregar o dinheiro dos roubos à gangue e respeitar os códigos do grupo. Originalmente, só
os salvadorenhos poderiam se tornar maras, hoje muitos são escolhidos em função de sua
herança étnica (latino-americanos), apontando com isso para um obstáculo étnico entre
membros que está sendo modificado.
Eles agora estão integrados em uma estrutura criminal cujas ramificações se
estendem ao ritmo das renovações de fronteira, dando a esse fenômeno uma
dimensão internacional (STERN, 2011, p. 228 – tradução da autora).
26
http://www.zimbio.com/MS+13+(Mara+Salvatrucha)/articles/OdGjpcYncs1/Gangsta+Girls ou vide Knox
(2004).
57
Segundo Aguilar e Carranza (2008) os maras podem ser consideradas organizações
transnacionais, uma vez que nasceram em Honduras e migraram para os EUA aonde
formalizaram sua situação criminal. Segundo dados dos autores, nos países investigados da
América Central (Panamá, Nicarágua, Belize, Honduras, Costa Rica e El Salvador) existem
75 mil membros de gangues ativos.
Todavia, o livro de Wolf (2010) procura corrigir essa visão predominante de que o
maras é um tipo de organização criminosa transnacional que ameaça o Hemisfério
Ocidental. Para a autora, a preocupação maior sobre o tema dos maras diz respeito aos seus
vínculos com cartéis de drogas e à aparência física de seus membros. Imagens de membros
desse grupo mostram tatuagens, e relatos dramáticos da violência de gangues, que incitam à
fascinação com esses grupos que os tornaram quase emblemáticos e provocaram uma
proliferação de investigações jornalísticas e estudos acadêmicos. Para Wolf é necessária
uma nova pesquisa sobre a gangue dos maras a fim de desenvolver políticas eficazes para
acabar com o ciclo de violência que prejudica desnecessariamente a vida dos jovens e das
comunidades em que vivem.
Se trata de grupos formados majoritariamente de adolescentes do sexo masculino,
oriundos de famílias urbanas, marginalizadas e com problemas disfuncionais, com
históricos de abandono da escola na fase do ensino médio. Muitos desses adolescentes são
usuários de drogas e com tendências à delinquência, especialmente ao roubo. São tatuados
com símbolos especiais ao grupo e ingressaram na gangue, incialmente, por diversão.
Uma das formas de comunicação e organização da gangue se dá através dos
símbolos utilizados: 1) as tatuagens são representações e homenagens a entes que
morreram, a embates e às vitórias; 2) os gestos são carregados de significados – podem
indicar ordens a serem cumpridas, indicam pertencimento quando a resposta a um
determinado gestual é corretamente interpretada, etc.; 3) palavras e sinais, feitos
manualmente ou representados em grafite, são escolhidos cuidadosamente uma vez que
também são sinais e importantes marcadores da gangue, uma vez que as mensagens mal
entendidas podem custar a vida de alguém.
Habituados a matar desde a idade mais jovem, eles estão totalmente equivalentes
ao novo paradigma dos cartéis. (STERN, 2011, p. 231– tradução da autora).
58
Aguilar e Carranza (2008) realizaram uma investigação temporal que traçou as
variações no perfil dos integrantes do maras ao longo de 10 anos e mostrou como o padrão
do membro da gangue mudou entre os anos 1996 e 2006 e, sobretudo, como as razões para
o ingresso no grupo se tornaram ainda mais heterogêneas: o vazio existencial seguido dos
problemas familiares são os dois principais motivos pelos quais esses jovens procuram
conforto nas gangues.
Segundo os autores, dentre os fatores que estão por trás do surgimento e
desenvolvimento das gangues na América Central algumas grandes categorias se destacam:
a) os processos de exclusão social; b) cultura da violência; c) o rápido e desordenado
crescimento urbano; d) migração; e) desorganização da comunidade; f) presença de drogas;
g) dinâmica da violência; h) famílias problemáticas; i) vazio existencial; j) influência de
amigos; k) falta de compreensão; l) falta de proteção ou de defesa, e m) dificuldades na
construção da identidade pessoal. Todas estas categorias cumprem uma série de condições
específicas que atuam diretamente sobre o comportamento dos jovens e facilitam a sua
integração no grupo, a sua operação como um grupo e a sua evolução como um fenômeno
social.
PARTE 3
TEMÁTICAS RELACIONADAS AO CRIME ORGANIZADO
Esta seção aborda duas27 práticas e mecanismos utilizados pelo crime organizado
para realização de seus objetivos. Trata-se da descrição do que vem a ser os esquemas de
corrupção e as “mercadorias políticas” adotadas como ferramentas pelo crime organizado.
Como será mostrado, ambos os esquemas congregam elementos como o uso de violência e
o acesso a mecanismos de controle por parte de agentes do Estado.
27
Embora existem outros recursos utilizados pelas organizações criminosas, abordarei apenas essas duas, por
estarem evidentes, tal como será mostrado nos casos analisados nos capítulos posteriores.
59
CORRUPÇÃO
Apesar de tratar-se de um conceito amplo e volátil, a International encyclopedia of
the social & behavioral sciences (SMELSER e BALTES, 2001) define a corrupção como
um fenômeno político que afeta a habilidade e a eficácia política, variando de acordo com
as características organizacionais singulares de cada país, concorrendo assim, com a boa
governança. Assim, a corrupção cresce aonde há o declínio da ética pública e aonde as
regras não são claras e aplicáveis.
A mudança da natureza do Estado e o borrão entre o que é público e o que é
privado tem estado no coração da problemática sobre a corrupção nos anos
recentes (MÉNY, 1992 e DELLA PORTA 1992, apud SMELSER e
BALTES, 2001, p. 2829).
Partindo dos estudos clássicos sobre a corrupção, Nye (1967) se destaca por definila como um “desvio dos deveres formais associados a um cargo público, em função de
benefícios privados” (SMELSER e BALTES, 2001, p. 2824 e
SPECK, 2000, p. 06). Outra
visão sobre o tema é introduzida por Heidenheimer (1970) e, segundo Speck (2000) aponta
para uma nova linha de investigação, caracteristicamente indutiva, e que sugere a divisão
do conceito de corrupção em três categorias:
“corrupção preta” — quando lei e norma social coincidem; “corrupção cinza”
— quando os atores avaliam determinado comportamento de forma controversa;
e “corrupção branca” — quando a lei reprova, mas a maioria da população ou
se mostra tolerante ou sequer reconhece determinado comportamento como
moralmente questionável. (SPECK, 2000, p. 06).
Falando sobre os EUA, Mény (1996) aponta que a corrupção nos anos 80 e início
dos anos 90 caminhou cada vez mais para o centro da agenda política. O autor acredita que
a escola neo-liberal contribuiu muito para o debate e considera a corrupção como uma
consequência do mercado negro que surgiu por causa da excessiva intervenção do Estado.
Em contraste, aqueles que viam o Estado mais benigno, ou que não colocavam tanta fé no
valor intrínseco dos mercados livres encontraram outras razões para o crescimento da
corrupção. Para eles, a corrupção representou uma diminuição dos valores sociais e
comunitários e do declínio do Estado como garantidor do bem comum.
60
Analistas de corrupção tem visões diferentes acerca da extensão desse problema.
Para alguns, isso afeta ainda outras esferas da vida, e está proliferando em Estados
democráticos, tendo meios insuficientes para reprimir a corrupção. Outros analistas não
negam a existência da corrupção, mas acreditam que é exagerada pelos meios de
comunicação de massa.
Segundo Mény, a definição legal de corrupção é ainda limitada, pois a corrupção é
um fenômeno cada vez mais transnacional. Definições de corrupção que incidem
exclusivamente sobre mudanças nos mercados financeiros ou à diversidade de corrupção
contemporânea não se mantém se não levarem em conta a natureza transnacional do
fenômeno.
A corrupção é inerentemente diferente de fraude ou crime veicular porque solapa os
princípios democráticos e do Estado de direito, e nega a distinção entre interesses privados
e públicos, a igualdade de tratamento dos cidadãos e a transparência das transações de
negócios.
Kluger, Verdier e Zenou (2004) analisaram um modelo de oligopólio no qual
diferentes organizações criminosas competiam globalmente em atividades criminosas e se
envolviam em corrupção local para evitar a punição. Seu objetivo era compreender melhor
a complexa relação entre o crime organizado, a corrupção e a eficiência do sistema de
justiça. Concentrando-se no fato de que as organizações criminosas subornam agentes da
lei, os autores mostraram resultados sobre a eficácia limitada de dissuasão de crimes típicos
em ambientes de governança fraca. Quando os custos de suborno são baixos, aonde existem
policiais, juízes, advogados mal-pagos e desonestos, trabalha-se em um ambiente de
governança fraca. Policiais são úteis para grupos criminosos, passando-lhes informações
sobre as investigações e ataques planejados. Nesse contexto, a corrupção de policiais é
facilitada pelo fato de que eles estão mal pagos e, portanto, sujeitos à tentação do alto
ganho fácil. Além disso, como o Ministério Público e os membros dos júris, os aplicadores
da lei podem ser coagidos por meio da violência. Uma vez que alguns policiais foram
corrompidos, eles farão grandes esforços para garantir que os seus colegas também sejam:
um policial honesto que tenta informar sobre seus colegas corruptos sofrerá pressões de
seus colegas. Por outro lado, quando as rendas dos policiais são suficientemente altas, os
61
autores descobriram que há um aumento do policiamento e as sanções podem gerar maiores
taxas de criminalidade uma vez que o efetivo se empenha mais no trabalho das apreensões
de criminosos, elevando com isso as estatísticas. Em contrapartida, novos aumentos na
punição podem criar incentivos para o crime organizado estender seus tentáculos de
corrupção e impunidade resultando em uma queda de punição real que rende em maiores
índices de criminalidade.
Conforme os citados autores, as organizações do crime organizado são muito
difíceis de eliminar. Elas são capazes de proteger-se por uma combinação de meios: 1) a
corrupção de autoridades de aplicação da lei, 2) a violência física contra informantes e
testemunhas, 3) as ameaças de violência contra promotores, juízes e membros dos júris, 4)
utilização de advogados para manipular o sistema legal e, 5) contribuições financeiras para
campanhas políticas.
Naím (1995), diferencia a corrupção comum do processo político e da corrupção
relacionada às atividades do crime organizado. Ele acredita que diferentes estratégias são
necessárias para combater essas diferentes formas de corrupção. Por exemplo, uma
perspectiva diferente é necessária para lidar com a lavagem de dinheiro relacionado com o
tráfico de drogas, ou com a corrupção relacionada com a obtenção de contratos com o
governo.
Naím examina três formas de corrupção: a corrupção empresarial, a corrupção
promovida pelo crime organizado e a corrupção política. Em certo momento o autor interrelaciona esses três tipos e afirma que a corrupção corporativa ou empresarial, ao contrário
da realizada pelo crime organizado, não depende de uma sistemática violação da lei. Como
o crime organizado cada vez mais usa os lucros do tráfico de drogas para entrar em
negócios legítimos, as empresas recém-financiadas, não hesitam em usar práticas corruptas
como um núcleo de seus negócios. Por exemplo, Naím sugere que o crime organizado em
Nova York não hesitaria em utilizar subornos para manter o seu monopólio da coleta de
lixo. Para o autor, a crescente internacionalização dos grupos criminosos organizados em
níveis inéditos de lavagem de dinheiro tornaram a corrupção política associada com o crime
organizado cada vez mais visível e importante.
62
Segundo Buscaglia e Van Djik (2003) o crime organizado e a corrupção são
moldadas pela falta de força de controle dos mecanismos de Estado e da sociedade civil.
Para os autores, esses dois tipos de crime complexos se reforçam mutuamente. Para
identificar e isolar os fatores de influência por trás do crescimento da corrupção no setor
público e do crime organizado apresentaram e analisaram dados qualitativos e quantitativos
em uma grande amostra de países e territórios em todo o mundo, representando a
diversidade estratificada por nível de desenvolvimento socioeconômico. O estudo teve
como objetivo identificar os padrões institucionais que determinam a vulnerabilidade de um
país para o aceite e incentivo desses crimes complexos. Os resultados apresentados pelos
autores confirmam as ligações entre o crescimento do crime organizado e da corrupção no
setor público em um grande número desses países estudados.
Na leitura de Van Duyne (1997), a corrupção inata ao crime organizado é percebida
como uma ameaça externa à estabilidade política e à integridade, bem como às atividades
comerciais ortodoxas, baseada, por sua vez, em uma série de motivos e intenções dos
criminosos. Criminosos estes que estão preocupados com os negócios legais e ilegais, onde
o suborno de funcionários públicos e o envolvimento com as atividades comerciais
tradicionais fazem parte do negócio.
Para que o crime organizado possa aproveitar os lucros do seu negócio, devem
subverter as sociedades que eles negociam. Na tentativa de fazer isso, analisam as ameaças
de canalizar os recursos de forma mais eficaz, mas também desencorajar as figuras públicas
e negócios lícitos em seu benefício permitindo que o mesmo seja tolerado nas sociedades a
que se supõe ser uma ameaça externa.
Segundo o autor, exteriormente, não existem muitas diferenças entre a corrupção, o
crime organizado e a corrupção praticada por empresários legítimos. Todavia, certos
“empresários do crime” vão sempre tentar se passar por empresários legítimos, certamente
como aqueles na categoria de "misturados". Por esta razão faz sentido organizar uma
política especial contra a corrupção de um modo geral, e não apenas contra a corrupção do
crime organizado pois uma política anticorrupção deve ter um impacto geral. Não importa
se o crime praticado por empresários vai realmente corromper funcionários públicos ou
apenas usar as instalações governamentais para promover seus objetivos ilegais. O simples
63
uso de instalações governamentais com intenções criminosas já pode ser considerado como
uma abertura à corrupção, porque isso pode resultar em uma dependência de um segmento
governamental, sobre os resultados positivos das relações comerciais estabelecidas com
uma empresa criminosa. Essa dependência pode afetar consideravelmente alguns setores
mais vulneráveis, tais como: o setor financeiro, contratos públicos e sistema jurídico.
É imperativo ao crime organizado embrenhar-se no Estado, arregimentando atores
estatais que deveriam se encarregar do combate à criminalidade, como policiais, ou mesmo
no campo penal, tributário, previdenciário, etc. O alto poder de corrupção do crime
organizado, fazendo com que pessoas do Estado participem da atividade, causa inércia e
paralisa o combate ao crime e ainda causa uma falsa sensação de segurança.
“MERCADORIAS POLÍTICAS”
No Brasil, o acionamento da corrupção por criminosos e agentes do Estado recebeu
o nome de “mercadorias políticas” (MISSE, 2007). Segundo Zaluar (2007), o mercado das
drogas, os roubos de carros, homicídios, e jogos do bicho são apenas uma parte do sistema
de funcionamento do crime-negócio, que funciona em diversos setores, utilizando redes e
mecanismos similares para fazer parecer operações limpas e legais. Ante essa assertiva, o
crime organizado é capaz de utilizar métodos corruptos e cooptar agentes do Estado e,
desse modo, blindar-se à ação repressiva da lei.
No entanto, é difícil distinguir onde há cooptação e onde há apenas mais um
mercado ilegal, um mercado que transaciona mercadorias políticas (MISSE,
2006) e que, como tal, não se distinguiria de nenhum outro mercado ilegal, a não
ser pelo fato de que “oferece” uma mercadoria muito especial, constituída por
relações de força e poder ou extraída simplesmente da autoridade pública, como
uma fração privatizada e mercantilizada da soberania do Estado (MISSE,
2007, p. 141).
Em seus estudos sobre as “mercadorias políticas”, Misse (2008) chamou a atenção
para uma ideia essencial presente na análise dos mercados ilegais. Existe, na negociação
das mercadorias, uma pacífica convivência entre a ordem legítima garantida pelo agente do
Estado e as mercadorias ilegais. Conforme o autor, o mercado de proteção é, originalmente,
constituído por “mercadorias políticas”, definidas, por sua vez, como mercadorias que
64
combinam custos e recursos políticos para a produção de um valor de troca econômico, seja
na forma de um poder expropriado da autoridade pública, seja através do controle local
mediante a prática de extorsão. Conforme Misse (2007, p. 142), estas mercadorias podem
ser vistas como frutos da extorsão que resultam em um valor de troca interpretado como
“uma fração privatizada e mercantilizada da soberania do Estado”.
Misse explica essas relações escusas formadas entre o poder público, representantes
do Estado e criminosos:
Não se trata apenas de uma “corrupção” de costumes, ou de um “desvio”, mas
da constituição de uma ordem ilícita funcional para o tratamento,
encaminhamento e solução de contradições sociais em escala micro-social,
interindividual, algo como uma “ordem legítima” paralela, em convivência
contraditória, mas não necessariamente conflitual com a ordem legítima legal, e
que se baseia na legitimação “tácita” desse tipo de trocas e desse tipo de
mercado (MISSE, 2008, p.04).
Exemplarmente, nas investigações da CPI no caso Rio de Janeiro e São Paulo como
será mostrado no capítulo VI, muitos policiais foram acusados de extorquir traficantes
presos em “flagrantes montados”, i.e., flagrantes realizados em hora e lugar estabelecido,
justamente para a realização da extorsão e do pagamento da propina mensal realizada por
um grupo de policiais corruptos. Além do pagamento da propina exigida para a soltura do
preso, em muitos casos também houve uma negociata entorno da droga que deveria ficar
retida na delegacia e que, nesse caso, retornaria posteriormente para o esquema de tráfico.
Esse “acerto” entre policias e traficantes é um exemplo simples de aplicação das
“mercadorias políticas” que ajudam, por sua vez, a definir o perfil do crime organizado no
Brasil e a perceber como representantes do Estado e criminosos dialogam.
CONCLUSÕES E RESUMOS SOBRE O CRIME ORGANIZADO
Dividido em três partes o presente capítulo procurou realizar uma revisão
bibliográfica sobre o fenômeno do crime organizado, passando inicialmente por suas
diferentes conceitualizações, exemplos de atuação e sistematizações adjacentes.
A definição do que vem a ser o crime organizado é importante mas ao mesmo
tempo, controversa. É importante porque a forma como o problema do crime organizado é
65
definido trilha um longo caminho até determinar como o mesmo deverá ser legalmente
enquadrado, interferindo nas investigações e processos, nas pesquisas realizadas e, cada vez
mais, como a assistência jurídica através das fronteiras nacionais são prestadas.
Na medida em que existem diferenças substanciais de opiniões e pontos de vista de
que o crime organizado é delimitado e caracterizado pelas diferentes práticas acima
mencionadas, torna-se ainda mais complicado encontrar uma definição única e que atenda à
todas as perspectivas.
Um exemplo da dificuldade em definir o crime organizado pode ser encontrado no
trabalho da Convenção das Nações Unidas contra a criminalidade organizada
transnacionalmente, estabelecido no final de 1990. A busca de uma definição unigênita
provou ser uma das questões mais difíceis para os pesquisadores, e eles acabaram chegando
a uma definição bastante ampla que se tornou a base para a Convenção de Palermo.
No presente capítulo foram estudadas algumas das mais proeminentes formas de
organização do crime organizado a fim de entender os conceitos e visões de diferentes
disciplinas como Direito e Sociologia sobre o fenômeno.
Intencionalmente, procurei realizar um apanhado geral dessas diferentes visões de
modo a entender a mudança de perspectiva e nomenclatura sobre o fenômeno a fim de
aplicá-las posteriormente quando da análise dos casos elencados pela CPI do Narcotráfico.
Atualmente, o conceito de crime organizado, tem se apresentado de modo mais
complexo que as velhas máfias, uma vez que prescinde de diversos elementos já
comentados por Mingardi (1998) como a estrutura empresarial de grandes empresas,
aplicadas às empresas criminais. Hierarquia, poder econômico e financeiro, poder de
representação, poder de mobilidade, uma fachada legal, demanda de mercado, uso de
modernos meios tecnológicos, uso de meios corruptos e alto poder de intimidação são
algumas das outras características gerais que acompanham o conceito. O conjunto dessas
características persegue os mesmos objetivos traçados no mundo empresarial e seu objetivo
comum é o lucro. Contudo, as regras do jogo utilizadas, divergem bastante: de um lado,
negociam no mercado ilícito do tráfico de drogas, armas, cargas roubadas; de outro,
procuram se defender de uma competitividade setorial bastante agressiva que não mede
66
esforços para atingir os seus fins – é nesse momento que o uso da violência se mostra
tácito.
Tanto Abadinski quanto Albanese na primeira parte deste capítulo concordam que o
indivíduo não está sujeito apenas aos fatores externos que o impulsionam às práticas
ilícitas, mas aos fatores internos que lhe permitem a associação a outros indivíduos e à
fundação de uma organização criminosa. Todavia, nem toda organização criminosa pode
ser chamada de crime organizado, uma organização criminosa pode ser formada de
pequenos delinquentes ou “ladrões de galinha organizados”. Já o crime organizado, dentre
todas as características, tentativas de enquadramento e classificação pode ser caracterizado
basicamente pelas suntuosas quantias de dinheiro de origem ilegal investido em atividades
legais, caracterizando a lavagem de dinheiro. O poder econômico, de barganha, comércio e
a aproximação com o Estado através de seus agentes são outros fatores iniciais que ajudam
a distinguir crime organizado de organizações criminosas em geral.
Após contemplar essas diferentes formas de caracterização do fenômeno, considero
incorreto afirmar que todos os grupos criminosos, para serem classificados como tais,
precisam ter todas as características apontadas pelos autores citados para serem definidas
como crime organizado. Ao longo do capítulo notei que algumas perspectivas mudaram em
relação ao ponto de vista adotado, seja ele da Sociologia (mais cultural e simbólico), seja
do Direito (mais conservador, econômico e político) e, de modo a sistematizar todas essas
perspectivas, proponho a Tabela 1.
67
TABELA 1: Sistematização das Características do Crime Organizado, segundo as
perspectivas do Direito e da Sociologia e exemplos de organizações criminosas:
Campo/
Características
Áreas de Concentração e estudo
Hierarquia
x
x
x
x
x
x
x
x
x
x
x
Sociologia
Violência
Regra Interna
Empresa
Infiltração no Estado
Mito Inicial
Divisão do Trabalho
Gueto étnico/familiar
Org. descentralizada
Ilícito
Território
Difere de quadrilha ou bando
Exemplos de organizações
criminosas
Máfia
Cartel Gangue
Direito
x
x
x
x
x
x
x
x
x
x
x
x
x
x
x
x
x
x
x
x
x
x
x
x
FONTE: produzido pela pesquisadora.
Das citadas características mais proeminentes para as áreas estudadas, destaca-se: 1)
a formação de hierarquias, 2) o uso da violência, 3) infiltração no Estado, 4) presença de
um mito inicial e, 5) territorialização, como as características correntes do crime
organizado. Essas características serão analisadas em maior profundidade nas seções
seguintes, todavia, nada impede que outras características sejam acrescentadas para falar
sobre o crime organizado identificado nos casos estudados.
Segundo Naím (2006), os chamados “negócios ilícitos” – como é o caso da droga e
das cargas roubadas - passaram por importantes reestruturações desde a década de
1990. Todavia, esse cenário pode se alterar ainda mais graças às mudanças demográficas,
migracionais, de urbanização, conflitos, economia e consumo. Por exemplo, na visão de
Abadinsky (2010, p. 264), o tráfico de drogas é uma das atividades das organizações
criminais que não se atém única e exclusivamente ao “tradicionalismo” no interior da
organização, antes, abre possibilidades para que membros de outras organizações possam
prestar serviços e até mesmo serem admitidos como membros esporádicos no grupo, a
exemplo das gangues, o que, como mostrado, altera substancialmente a organização como
um todo.
68
Até então, parecia haver consenso de que as organizações criminais na América
Latina e EUA eram altamente elaboradas, estando, inclusive, envolvidas no crime
organizado transnacional. Llorente (2002, p. 08) descobriu o contrário: entre os cartéis de
Bogotá, a violência concentrava-se em uns poucos focos (no centro da cidade e em zonas
periféricas), onde havia a presença de organizações criminais associadas a mercados ilegais
e atividades ilícitas, como o roubo e furto de veículos, furto a residências e a
estabelecimentos comerciais, prostituição, extorsão e sequestro, venda de drogas, tráfico de
armas, assassinatos, etc. Essas organizações eram bastante diferentes do “tradicional” crime
organizado colombiano, com seus cartéis do narcotráfico, seus grupos guerrilheiros e
paramilitares. Além disso, os estudos mostram que nem todos os grupos criminosos
necessariamente mantem as mesmas características que os classificaria como crime
organizado. Essa assertiva vai de encontro à constatação de Llorente e permite refletir sobre
a emergência de novas estruturas organizacionais para o crime organizado estudado no
Brasil que fogem do enquadramento da Convenção de Palermo e que abrem uma brecha
para se pensar em novos paradigmas.
69
70
CAPÍTULO III.
OS ESTUDOS MICRO E MACRO E A IMPORTÂNCIA DOS ESTUDOS
MESO
O presente capítulo tem por finalidade introduzir um novo escopo de análise aos
estudos sobre o crime organizado, diferente das tradicionais pesquisas de campo e
etnografias e dos macro estudos.
Inventor da QCA – Qualitative Comparative Analysis28, Charles Ragin (1989) é um
dos precursores de uma metodologia que mistura dois níveis de análise (micro e macro)
para gerar um terceiro nível, o meso. Propõe o autor: aspectos estruturais e ligados aos
indivíduos podem ser combinados e gerar uma "teoria de médio alcance".
Além disso, Ragin argumenta que os estudos de nível meso contribuem para um
melhor conhecimento do universo estudado, além de permitir a comparação entre diferentes
níveis de análise. Os estudos de nível meso podem ser obtidos de duas formas distintas:
através da comparação e mistura entre os níveis analíticos macro e micro e, através de uma
fonte de dados que remeta ao universo existente entre o global e o local. É o segundo tipo
que compõe o rol de casos estudados aqui.
Não dispondo de todos os relatos, da vivência de uma etnografia ou de uma
pesquisa de campo, nem dos números sobre as toneladas dos variados tipos de drogas que
circulam pelo globo para compor uma narrativa meso, optei por procurar uma fonte de
dados que remetesse a esse nível de análise, para tanto, o relatório da CPI do Narcotráfico e
demais relatórios complementares pareceram propícios e excelentes fontes de dados sobre o
crime organizado porque abrangem tanto as estatísticas quanto os indivíduos por trás delas.
Todavia, olhar sobre os ombros de pesquisadores como antropólogos, sociólogos,
cientistas políticos, juízes, advogados, estatísticos, médicos, jornalistas, militantes e
políticos, cada qual com sua ferramenta de trabalho, ainda é pertinente e fundamental, uma
vez que esses investigadores que procuram reconstruir uma colcha de retalhos, contribuindo
28
Análise Comparativa Qualitativa (QCA) é uma técnica desenvolvida por Charles Ragin em 1987, para
resolver os problemas que são causados por se fazer inferências com base em apenas um pequeno número de
casos. O método é baseado na lógica binária de álgebra booleana, e tenta maximizar o número de
comparações que podem ser feitas através dos casos investigados.
71
com um pequeno recorte que se situa ora um extremo micro, ora em um macro e que
capacita ao pesquisador a preencher as lacunas existentes entre um extremo e o outro.
Uma das contribuições da presente pesquisa é justamente esse esforço de tentar
preencher a lacuna entre o micro e macro, ou seja, fornecer respostas ao meso, contribuindo
para entender o que acontece com as organizações criminosas entre a droga que entra (ou
sai) em nossas fronteiras e as rotinas das “bocas de fumo”, por exemplo. No limite, a
importância do estudo de escopo meso está no arremate entre um conjunto de coisas e
outro, procurando compreender como os recortes (micro e macro) se encaixam uns com os
outros e permitem que vejamos uma (nem sempre) bela colcha ser costurada.
Avançando para além das metodologias de meso, Robert Merton (1970) foi um dos
pioneiros a estruturar efetivamente os métodos de estudo da Sociologia com rigor
científico, para tanto, ele estruturou alguns conceitos, dentre os
quais, é possível
reconhecer as “teorias de médio alcance”. Para ele, a Sociologia é ainda uma ciência jovem
e por isso, não pode apresentar um discurso que possa ser generalizado para todos os
fenômenos sociais. Por essa razão, propôs uma “teoria de médio alcance”, opondo-se ao
chamado “sistema total de teoria sociológica”.
Assim, Merton definiu as "teorias de médio alcance" como as teorias que se
encontram entre os micro e os macro estudos e que se empenham em explicar as
uniformidades observadas do comportamento, da organização e mudança social. Não são
teorias com a pretensão de serem teorias gerais, abrangentes, mas, teorias que se compõem
de um conjunto limitado de hipóteses organizadas de forma lógica e que podem ser
empiricamente comprovadas. Tais teorias não estariam isoladas, mas em constante conexão
umas com as outras, formando redes de teorias.
Desta forma, as “teorias de médio alcance” se situam em uma posição intermediária:
são, de um lado, o suficientemente abstratas para poderem ser aplicadas em diferentes
esferas do comportamento e estrutura social e, de outro, dão conta de realidades específicas.
Associadas ao escopo dos estudos de meso análise, as “teorias de médio alcance”
contribuem para fechar a lacuna instalada entre os macro e o micro existentes sobre o crime
organizado.
72
MICRO ANÁLISE
Uma revisão bibliográfica sobre os estudos de micro análise brasileiros permite
perceber que nossas pesquisas que abordam (mesmo que indiretamente) o fenômeno do
crime organizado variam segundo três eixos diferentes do ponto de vista micro
(PASTANA, 2005): 1) existem os trabalhos que analisam a continuidade das práticas
ilegais do período da Ditadura brasileira e após a abertura política (CALDEIRA 1991;
ZALUAR, 1997 e ADORNO 1998); 2) no segundo eixo, a violência está conectada à
pobreza e à exclusão social, consideradas como a causa da criminalidade (ZALUAR,
1985). O trabalho de Zaluar se destaca ao abordar o tema do tráfico de drogas em meio a
um quadro mais amplo de aumento da violência urbana, expondo que, quando vistas de
perto, as categorias bandido, trabalhador, malandro e mesmo policiais, longe de se
mostrarem estanques ou indicarem tipos sociais e morais específicos, são cotidianamente
formuladas a partir de representações, valores e condições objetivas que constituem toda
uma vida social local; 3) no terceiro eixo estão as pesquisas que investigam as causas da
violência popular, a revolta coletiva contra o sistema oficial de justiça, os linchamentos e a
atuação dos grupos de extermínio (SINHORETTO, 2006).
A esta seleta lista de estudos, pode-se acrescentar um quarto eixo de pesquisa, que
são as etnografias e os trabalhos de campo a respeito da violência e sobre áreas “pobres e
degradadas”. São trabalhos clássicos e que têm se mantido bastante atuais nas Ciências
Sociais, por constituírem a base da Antropologia e Sociologia urbana e seguirem um
percurso intelectual que remete à “Escola de Chicago” e às chamadas “etnografias da
cidade”.
Entre os trabalhos de campo, chamados aqui de micro análises dos cenários
constituidores do crime organizado no Brasil, a tese desenvolvida por Daniel Hirata (2010)
inova ao abordar o tráfico de drogas à luz de sua correlação com outros tantos ilegalismos
populares, como a pirataria, o transporte coletivo informal (perueiros), comércios ilegais,
etc., que, há muito, compõem o rol de ação que as populações mais pobres utilizam para
encontrar meios de “sobreviver na adversidade”. O trabalho de Hirata coloca em
perspectiva lugares com alta incidência do controle social e suas redes, partindo de três
73
pontos de observação: uma pequena birosca, o transporte clandestino e um ponto de venda
de drogas. Também propõe estudar as condutas nestes pontos, procurando perceber as
dinâmicas entre o informal, ilegal e ilícito, a vida e a morte.
Na cidade do Rio de Janeiro, o trabalho de Carolina Grillo (2008) aborda os jovens
cariocas de classe média que fazem parte das redes de tráfico de drogas. A pesquisadora
utiliza duas categorias para diferenciar o comércio da droga “no morro” e “na pista”,
mostrando como as relações nesses dois espaços são marcadas pela “amizade”, por redes
“pulverizadas” nestes dois territórios distintos. As formas de auto-reconhecimento revelam
ainda a distinção dos indivíduos estudados em não se aceitarem como “traficantes”, uma
vez que acreditam que o rótulo os associaria ao “bandido do morro”, do qual eles fazem
questão de se distinguir.
A tese de Gabriel Feltran (2008) remete à realidade institucional em uma periferia
de São Paulo comparada ás regiões “centrais” do município. A categoria “fronteira” foi
acionada pelo autor para mostrar a regulação dos fluxos que atravessam e conectam
centro/periferia e foi evidenciada através da pesquisa realizada em dois níveis: o estudo de
trajetórias e da vida cotidiana de adolescentes e famílias envolvidos com o mundo do crime
da zona leste de São Paulo e o estudo das rotinas de um Centro de Defesa dos Direitos da
Criança e do Adolescente. Segundo Feltran, tratar da relação entre as periferias urbanas e o
mundo público, em São Paulo, significa discutir as relações entre política e violência. Nesta
pesquisa de campo, um trecho chama bastante atenção e leva a reflexão sobre a
complementaridade que o tráfico de drogas tem em relação aos circuitos descritos por
Feltran (2008, p. 120-1), fechando um ciclo que não está restrito à favela apenas, mas que
cruza fronteiras geográficas e tem impacto em outros pontos da cidade. Para tanto,
generaliza Feltran:
nos circuitos de classe média e de elite, é muito comum que o consumo de drogas
ilícitas esteja em boa parte desvinculado, como relação social, do tráfico
profissional. Assim, o consumo não passa pela vinculação com a violência que o
caracteriza internamente, ou em suas relações com a polícia. A moça
publicitária que trabalha na Berrini quer fumar um baseado no final de semana,
compra alguns gramas de seu amigo, que não vive disso, mas que comprou um
pouco de outro amigo para dividir com conhecidos. Esse tem o contato de
alguém que conseguiu uma boa quantidade, fez um telefonema e recebeu um
pouco em casa, ou passou de carro rapidamente por alguma biqueira. Quem
enviou a encomenda, ou quem trabalha na biqueira, sim faz algum dinheiro com
74
o tráfico. E quem os chefia faz um pouco mais. E assim por diante. (...) O
consumo, nestas circunstâncias, isola-se do circuito direto do tráfico de drogas,
dos interesses que o disputam e da violência que o cerca. Isolado deste circuito,
ainda que simbolicamente, o consumo é despojado da carga de violência que
caracteriza o tráfico. (...) Não é assim, definitivamente, que a droga ilícita é
percebida nos bairros das periferias, onde ela é igualmente consumida. Até
porque não são os mesmos circuitos que operam sua distribuição. Não é,
tampouco, da mesma forma que se vivencia, nestes bairros, a experiência ampla
que conforma o universo de relações com o “mundo das drogas”. Ali, se um
adolescente fuma maconha nos finais de semana, é quase certo que suas relações
sociais vão passar diretamente por pessoas que vivem, ou obtém parte
significativa da sua renda, do tráfico de drogas. Mais do que isso, é quase certo
que estas relações sociais estarão marcadas pela violência – dos traficantes, dos
indivíduos vinculados a eles, que participam de outras atividades criminosas, de
dependentes e, principalmente, da polícia. Em suma, se um adolescente fuma
maconha, por exemplo, é quase certo que em algumas esferas da sua vida ele
passa a se relacionar com o “mundo do crime”. Nas periferias, por isso, é
praticamente a mesma coisa dizer “o mundo das drogas”, ou “o mundo do
crime”, ou “a violência”.
Camila Caldeira Nunes Dias (2011) apresentou a tese que visava compreender o
processo de expansão e consolidação do Primeiro Comando da Capital (PCC) no sistema
prisional paulista e a figuração social que se constituiu nas prisões como resultado da
monopolização das oportunidades de poder pelo PCC. Seu trabalho foi composto por dois
eixos de análise: eixo horizontal/processual e eixo vertical/figuracional. O eixo de análise
horizontal ou processual abordou o fenômeno de um ponto de vista macrossociológico,
cujo foco estava no processo social de desenvolvimento do PCC tendo em vista fatores
sociais, políticos e administrativos que direta ou indiretamente foram atrelados a ele. O eixo
de análise vertical ou figuracional teve como objetivo a compreensão da dinâmica social
produzida a partir deste processo. Considerando uma figuração social como ponto de
partida da análise, denominada figuração “pré-PCC”, ela apresentou as transformações
ocorridas no universo prisional e que constituíram uma nova figuração social. A estrutura e
organização do PCC, sua dinâmica política e o controle social que adquiriu a forma de
imposição do autocontrole individual compusera o eixo vertical, o qual foi finalizado com
uma discussão sobre a relação de dependência do PCC em face da administração prisional,
em que o dispositivo do Regime Disciplinar Diferenciado (RDD) é central na manutenção
do equilíbrio de poder que garante a hegemonia do PCC e a estabilidade da ordem social do
universo prisional.
Em seu trabalho de tese Magalhães (2006) analisou os relatos de presos sobre suas
75
trajetórias de vida e o seu envolvimento com o crime. Magalhães partiu da premissa de que
esses relatos podem ser compreendidos com base no conceito de “sujeição criminal”, ou
seja, o processo de construção social do agente de práticas criminais como “sujeito
criminoso”. Orientado pelo conceito de “sujeição criminal” ele procurou verificar se e de
que maneira os entrevistados associam a infância, as condições socioeconômicas, a
influência dos outros e o local de moradia com o envolvimento com atividades criminosas.
Também se preocupou em entender como são abordadas as questões relacionadas aos
custos e benefícios inerentes à prática de crimes, bem como a dimensão moral da atividade
criminosa, avaliando ainda a pena que lhes foi imposta. Concluiu que os relatos são
construídos a partir da premissa de que são “sujeitos criminosos”, no entanto, assumem
diferentes posicionamentos em relação ao processo de sujeição: a aceitação, a amenização e
a neutralização.
Essa breve revisão de algumas etnografias e pesquisas de campo sobre cenários
cotidianos permitem-me pensar sobre a desconexão que existe entre as diferentes realidades
criminosas abordadas. Ao mesmo tempo em que elas parecem se conectar e fazerem
referência umas às outras, como os trabalhos de Hirata, Feltran e Camila, de outro lado, são
representações de “ilhas de dados” que não formam um arquipélago pois falta dados que os
aglutinem. É na ausência de informações que se encaixam os números lançados anualmente
pela UNODC - United Nations Office on Drugs and Crime (comentados na sequência),
pois permitem relacionar o crime cometido nos presídios ao crime cometido na Zona Leste
de São Paulo, unificando o conjunto de pequenas estórias sobre o cotidiano da “vida nua”
(AGAMBEN, 2002) em uma única narrativa.
Embora essas micro análises não falem explicitamente no fenômeno do crime
organizado é possível ver, escondidos, pequenos indícios, como o apontado pelo fragmento
da tese de Feltran que permitem ampliar os horizontes de pesquisa tal como será mostrado
mais adiante com a meso análise.
76
MACRO ANÁLISE
Procurando entender e sistematizar as diferentes formulações e maneiras de
adaptação que o crime organizado vem apresentando internacionalmente, no ano de 2003
entrou em vigor a Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional
ou Convenção de Palermo (NATIONS UNIES, 2004) estabelecendo um perfil e diretrizes
para se pensar o crime organizado no mundo. Nos anos seguintes, as Nações Unidas criou
um High-level Panel on Threats, Challenges and Change (NATIONS UNIES, 2005), um
estudo periódico e regional que visa identificar os grupos criminosos organizados em torno
de diferentes mercados criminais, como a prostituição, o tráfico de pessoas, pirataria, dentre
outros, e que identificou o tráfico de drogas como um dos mais ameaçadores aos Estados
democráticos europeus e países da América Latina e do Norte.
A Convenção de Palermo, foi considerada como o principal instrumento global de
combate ao crime organizado. Aprovada pela Assembleia-Geral da ONU em 2000, entrou
em vigor em setembro de 2003. Ela representa um passo importante na luta contra o crime
organizado transnacional e simboliza o reconhecimento por parte dos Estados-membros
sobre a gravidade do problema, bem como a necessidade de promover e de reforçar a
estreita cooperação internacional a fim de enfrentar o crime organizado.
No Brasil, a Convenção de Palermo só foi promulgada quatro anos depois, com a
edição do Decreto 5.015, de março de 2004 que contou com três protocolos adicionais à
Convenção de Palermo e foram acolhidos pelo Brasil por meio de Decreto presidencial,
após aprovação pelo Congresso Nacional por Decreto legislativo (art. 49, inciso I, da
Constituição), e adquiriu força de lei ordinária.
Mas a escolha de Palermo para abertura dos respectivos instrumentos e adicionais
para assinatura não foi aleatória. A Convenção homenageia os magistrados Paolo
Borsellino e Giovanni Falcone assassinados em combate ao crime organizado na Itália.
Essa convenção abordou os mercados criminais utilizados pelo crime organizado
como tipos penais deste grupo, quais são: corrupção, lavagem de dinheiro e obstrução de
justiça; e estabeleceu as recomendações gerais com relação ao âmbito de aplicação,
77
vigência, protocolos adicionais, cooperação jurídica internacional, confisco de bens,
treinamento e investigação.
A definição de organização criminosa promulgada pela Convenção traz a seguinte
explicação: um grupo estruturado de 3 ou mais pessoas, existente há algum tempo e
atuando em conjunto com o propósito de cometer uma ou mais infrações graves como
corrupção, lavagem de dinheiro e obstrução de justiça, etc., com a intenção de obter, direta
ou indiretamente, um benefício econômico ou outro benefício material. As infrações graves
ou sérias estão ligadas aos crimes para os quais a legislação de cada país que adotou a
Convenção preveja a pena máxima igual ou superior a quatro anos.
Considerando os protocolos adicionais, pode-se dizer que o crime organizado
transnacional atua também através do tráfico ilícito de armas e munições, de pessoas e
imigrantes.
Apesar da Convenção de Palermo servir de diretriz para nossas leis brasileiras de
combate ao crime organizado, todas as infrações por ela enunciadas versam sobre a
criminalidade transnacional. Logo, não é qualquer criminalidade organizada que se encaixa
nessa definição. Sem a singularidade da transnacionalidade não há que se falar em
adequação típica, do ponto de vista formal, todavia, ela serve de base para se pensar nos
padrões de organização adotados no Brasil.
Seguindo as pistas deixadas pela tese de Werner (2009), tomei conhecimento de um
estudo piloto elaborado pelo Escritório de Drogas e Criminalidade da Organização das
Nações Unidas29 a partir da coleta de informações de 40 grupos do crime organizado que
atuam transnacionalmente em 16 países, no qual foram identificados cinco tipos diferentes
de organizações.
Esses dados devem estar no coração de qualquer compreensão da natureza do
fenômeno do crime organizado transnacional, como são os próprios grupos
criminosos que constituem os blocos de construção do sistema [com isso] a
construção de uma base de dados substancial sobre a natureza e as atividades de
grupos do crime organizado de todo o mundo constituirá um recurso importante
em qualquer esforço futuro para acompanhar as tendências globais do crime
organizado. (UNITED NATIONS, 2002, p. 07 – tradução da autora).
29
UNITED NATIONS, Global Program Against Transnational Organized Crime: Results of a pilot survey of
forty selected organized criminal groups in sixteen countries, 2002.
78
Nesse estudo, o Escritório de Drogas e Criminalidade investigou dez variáveis,
comentadas no quadro abaixo e que constituem alguns dos padrões e comportamentos que
serão observados no capítulo VI que estudarei os casos investigados pela CPI do
Narcotráfico. Mesmo sendo variáveis aplicáveis aos casos transnacionais estudados pelo
Escritório de Drogas da ONU, são indicadores interessantes para se pensar o crime
organizado presente nos casos estudados que, como será mostrado, é tanto regional,
nacional, quanto transnacional.
QUADRO 1: Quadro avaliativo de organizações do crime organizado:
DEFINIÇÕES PARA A MATRIZ SOBRE GRUPOS DO CRIME ORGANIZADO
ESTRUTURA
A – Hierarquia Rígida – Único chefe. Organização ou divisão em muitas células que se reportam ao
centro (chefia). Forte sistema de disciplina interno.
B – Hierarquia delegada – Estrutura hierárquica e linha de comando. Estrutura regional com liderança e
hierarquia própria, apresenta um grau de autonomia sobre o funcionamento cotidiano.
C - Conglomerado hierárquico – Associação de grupos do crime organizado com uma única liderança.
Esta ultima pode variar de um tipo de organização guarda-chuva com um regime de supervisão mais
flexível.
D – Grupo criminal central – Associações que variam de grupos relativamente flexíveis até grupos
coesos de pessoas que atuam em seu núcleo, todos consideram trabalhar para a mesma organização.
Apresenta estrutura horizontal em vez de estruturas verticais.
E – Rede de organizações criminosas – Definida pelas atividades de seus membros que se engajam em
juntos em atividades ilícitas realizando alianças. Eles não necessariamente se veem como uma
organização na qual todos colaboram. Os indivíduos são ativos na rede através de suas habilidades e do
capital social que possuem.
TAMANHO
Que inclui não somente os membros centrais do grupo, mas todos os associados e colaboradores
individuais.
A – de 1 a 20 membros
B – de 20 a 50 membros
C – de 50 a 100 membros
D – mais de 100 membros
ATIVIDADES
A – Apoia-se em uma única atividade ilegal principal
B – De duas a três atividades centrais
C – Múltiplas atividades
NIVEL DE TRANSAÇOES TRANSNACIONAIS
A – Limitada (1 ou 2 países)
B – Media (3 a 4 países)
C – Ilimitada (5 ou mais)
IDENTIDADE
A – Organização sem identidade social ou étnica forte
B – Organização de bases sociais com membros vindos de uma mesma referencia social ou com
interesses sociais comuns
C – Organizações baseadas na etnia ou na família com membros estritamente originários de um mesmo
grupo étnico/região/país.
NIVEL DE VIOLENCIA
79
Interna e externa
A – Pouco ou nenhum uso de violência
B – Uso de violência ocasional
C – A violência é essencial para as atividades criminais (acumulação ou lucro) da organização.
USO DA CORRUPÇÃO
A – Pouco ou nenhum uso da corrupção
B – Uso da corrupção ocasional
C - A corrupção é essencial para as atividades criminais (acumulação ou lucro) da organização.
INFLUÊNCIA POLÍTICA
Os dados nessa categoria nem sempre estão disponíveis. Se suspeita-se de corrupção, embora nao haja
evidencia de que a mesma ocorra, deve-se optar pelas categorias C e D.
A – Nenhuma
B – Nível local/regional
C – Nível nacional no país pesquisado
D – No exterior.
PENETRAÇÃO NA ECONOMIA LEGAL
A – Nenhuma ou limitada
B – Algum investimento dos lucros do crime em atividades legais
C – Extensivo cruzamento entre atividades legais e ilegais no interior do grupo.
NIVEL DE COOPERAÇÃO COM OUTROS GRUPOS CRIMINOSOS
A – Nenhum
B – Cooperação no país sede
C – Cooperação exterior
D – Cooperação no país sede e exterior.
FONTE: UNITED NATIONS, 2002, p. 18 (tradução da autora).
O conjunto de dados recuperados e analisados pelo citado Escritório resultaram em
cinco tipos ideais de estruturas organizacionais criminosas, dentre as quais foi possível
identificar um certo número de semelhanças importantes entre os grupos em questão.
Para elaborar esse repertório de cinco tipos de estruturas criminosas, o Escritório
das Nações Unidas justificou a importância das tipologias para proporcionar maior
esclarecimento do conceito de "crime organizado transnacional". A identificação dos tipos
proporciona uma visão clara do que está aludido pelo fenômeno da criminalidade
organizada transnacional. Além disso, tem importantes implicações políticas para as
agências de formulação e aplicação da lei, propondo estratégias diferentes de sua aplicação
que devem ser utilizadas no confronto com diferentes tipos de grupos do crime organizado.
Essas tipologias também podem fornecer um mecanismo importante para classificar
e monitorar as tendências transnacionais do crime organizado, ao identificar que tipos são
os mais comuns em um determinado contexto social. Sobretudo, as tipologias fornecem
uma estrutura útil na qual a informação sobre as tendências futuras podem ser coletadas e
classificadas.
80
QUADRO 2: Definição de modelos de organização do crime organizado, segundo
UNODC:
ESTRUTURA
DEFINIÇÃO
Hierarquia padrão: grupo hierárquico com fortes sistemas
internos de disciplina.
• único líder
• hierarquia claramente definida
• sistemas fortes de disciplina interna
• conhecido por um nome específico
• identidade social forte ou étnica
• violência é essencial para as atividades
• muitas vezes têm controle sobre o território definido
Hierarquia
regionalizada:
grupos
hierarquicamente
estruturados, com fortes linhas internas de controle e
disciplina, mas com relativa autonomia para componentes
regionais.
• liderança única
• linha de comando a partir do centro
• grau de autonomia a nível regional
• distribuição regional
• múltiplas atividades
• identidade social forte ou étnica
• violência essencial para atividades
Clusters: Conjunto de grupos criminosos que tenham
estabelecido um sistema de coordenação / controle, variando
de fraco a forte, ao longo de todas as suas várias atividades.
• consiste de uma série de grupos criminosos
• administração e arranjo em clusters
• forte identidade entre os grupos constituintes
• grau de autonomia para os grupos constituintes
• formação fortemente ligada ao contexto social /
histórico
• relativamente raro
Grupo central: um grupo bem organizado, mas não
estruturado, cercado em alguns casos, por uma rede de pessoas
envolvidas em atividades criminosas.
• núcleo rodeado por uma rede solta
• número limitado de indivíduos
• estrutura muito bem organizada
• tamanho interno pequeno
• disciplina
• identidade raramente social ou étnica
• somente um número limitado de
• casos conhecidos
81
Rede criminosa: uma rede solta e fluida de pessoas, muitas
vezes recorrendo a indivíduos com habilidades específicas,
que se constituem em torno de uma série contínua de projetos
criminosos.
• definido por atividades de indivíduos-chave
• destaque em rede determinado por contatos e
competências
• lealdades pessoais marcadas por identidades
sociais/raciais
• conexões de rede estabelecidas em torno da uma série
de projetos criminosos
• baixo perfil público - raramente conhecido por
qualquer nome
• reformas de rede após a saída de indivíduos-chave
FONTE: UNITED NATIONS, 2002, p. 34 e segs. (tradução da autora).
Estudos e dados como este são frequentes nos relatórios da UNODC. Apesar de
parecerem distantes e frios, procuram entender o crime organizado transnacional
e
proporcionar a integração de respostas nacionais nas estratégias internacionais.
Exemplificando o distanciamento da UNODC (1999) com a realidade local, é
possível citar os relatórios30 Global Illicit Drugs Trends sobre o tráfico de drogas e The
Globalization of Crime como aqueles que tratam do tema do crime organizado em seus
diferentes mercados como os mais ricos em termos de informação e que foram consultados
ao longo da presente pesquisa.
No primeiro relatório, é apontado um aumento no consumo europeu de cocaína em
relação aos anos 80 pontuando que a cocaína e a heroína se destacavam no tráfico
internacional como aquelas cujos índices cresciam proporcionalmente ao aumento dos
crimes violentos, lavagem de dinheiro, comércio de outros produtos ilícitos. Todavia, essa
não era uma realidade nos países latino americanos, aonde o relatório Global Illicit – Drugs
Trends - Statistics
31 do ano seguinte destacou a maconha32 (UNODC, 2000) como a droga
30
Cf. UNODC, Global Illicit – Drugs Trends, UNODCCP, New York, 1999.
Cf. UNODC, The Globalization of Crime, UNODC, New York, 2010.
31
Cf. UNODC., Global Illicit – Drugs Trends - Statistics, UNODCCP, New York, 2000.
32
Em se tratando da produção da maconha, o cenário é quase que generalizado em todos os países da América
Central e do Caribe. Os maiores produtores da América do Sul são o Paraguai, Colômbia, Brasil e países do
Caribe. A queda na produção de maconha na Colômbia aparentemente é resultado do aumento da produção
em outras partes da América do Sul, especialmente no Paraguai. Embora o Brasil não seja destaque no
relatório como um importante produtor de maconha, o país se destaca pelos grandes volumes que importa do
Paraguai.
82
mais consumida nesse lado do planeta. Foi nesse mesmo relatório que Bolívia, Peru e
Colômbia 33 se destacaram, como países produtores e exportadores da cocaína para o
mercado europeu e norte americano. Notável é a avaliação do citado órgão da ONU
afirmando que grande parte do mercado da cocaína estaria condensado nas mãos de redes
que nada mais seriam que “operadores criminais”, que usariam um grande número de
operações lícitas, como importações e exportações a partir da América Latina para camuflar
a droga – como o comércio de sacos de carvão ou de maquinários e aditivos agrícolas34. Por
esta razão, o tráfico de drogas esteve mascarado e envolvido em muitas outras atividades
legais e ilegais simultaneamente (UNODC, 2000, p. 19).
Parágrafos à frente, nesse mesmo relatório a UNODC apontou que nos últimos anos
estaria havendo uma mudança nos esquemas do tráfico de drogas que poderia influenciar
suas análises, colocando para os sistemas de saúde e segurança pública um novo paradoxo:
para identificar o alto fluxo do tráfico de diferentes drogas a polícia não poderia mais se fiar
somente no alto volume das transações realizadas em torno da droga, seria necessário um
esforço à mais de voltar os olhos para os pequenos laboratórios de outras drogas, tais como
crack, oxi; e sintéticas, como o ecstasy, GHB, etc., que vinham crescendo a partir de 1997 e
que, por origem, não demandam muita matéria prima “importada” como é o caso da
heroína ou cocaína. Paralelamente, no Brasil, no mesmo período observou-se a instalação
de laboratórios similares, especializados na produção do crack que, tal como as drogas
sintéticas, demandava apenas um pequeno volume de pasta base de cocaína (MINGARDI,
2001), que passariam despercebidos pelas autoridades em uma travessia de fronteiras.
Sustentando esse cenário se encontra a enorme lucratividade que o narcotráfico
representa hoje no mundo, que segundo a UNODC (2007) tem uma rentabilidade de
aproximadamente 3.000%. Os custos de produção somam 0,5% e os de transporte gastos
com a distribuição (incluindo subornos) 3% em relação ao preço final de venda.
33
De todas as apreensões mundiais, segundo a UNODC, a maioria continua concentrada nas Américas (85%).
Anos mais tarde (2007), o país mencionado com mais frequência na rota para a Europa foi a Venezuela,
seguida do Equador e do Brasil. Além disso, a República Dominicana, o México e a Argentina vinham
ganhando (no período) importância como países da rota do tráfico.
34
http://www.dgabc.com.br/News/90000171216/conteiner-brasileiro-e-descoberto-com-700kg-decocaina.aspx?ref=history,
http://www.clicrbs.com.br/anoticia/jsp/default2.jsp?uf=2&local=18&source=a3111427.xml&template=4187.
dwt&edition=15910§ion=2000
83
Em 2009, o Brasil foi o país de trânsito mais proeminente das Américas –
considerando o número de apreensões e de remessas de cocaína apreendidas na Europa. O
número de casos de apreensões que envolveram o Brasil como país de trânsito subiu de 25,
em 2005 (cerca de 339kg de cocaína), para 260, em 2009 (equivalente a 1.5 toneladas).
De acordo com a Organização Mundial de Aduanas (OMA), em 2009 os países
mais importantes de distribuição secundária de cocaína foram a Venezuela, o Equador, o
Brasil e a Argentina (classificados em ordem de peso total de remessas apreendidas, saindo
do respectivo país). No que diz respeito à cocaína destinada à Europa, a OMA também
observou a grande quantidade de cocaína proveniente do Equador e a crescente importância
do Brasil e do Suriname. No que diz respeito à cocaína com destino à África, o citado órgão
observou que o Brasil foi o único país sul americano mencionado como um país de saída
para as apreensões aduaneiras realizadas na África em 2009. Nesse sentido, a UNODC se
preocupa com o avanço da globalização e com o declínio dos mecanismos de governança
global, vendo, inclusive, uma deficiência na produção de um tipo de regulação estabelecida
a partir da qual é criado um vácuo do qual o crime organizado transnacional se aproveita
para poder crescer.
***
Diferentemente dos micro estudos (pesquisas de campo e etnografias) sobre
organizações e comunidades violentas, aonde o crime organizado quando é detectado,
geralmente aparece associado ao tráfico de drogas e outros mercados ilícitos menos
proeminentes, nos estudos macro, como os relatórios da ONU ou as pesquisas do campo de
Relações Internacionais, este nunca mostra a face de seus idealizadores, antes, se destaca
como uma entidade que apenas fornece números monstruosos sobre o tráfico de drogas,
roubos, pirataria, prostituição, etc., ou seja, através dos estudos macro, conhecemos os
números, mas não sabem quem fez ou faz o quê, enquanto que nos estudos micro,
conhecemos os atores, mas não temos noção do impacto de suas ações.
No campo dos macro estudos brasileiros sobre o fenômeno do crime organizado,
vale lembrar que boa parte da bibliografia recente é produzida no campo da Ciência Política
84
e das Relações Internacionais, como a tese de Werner, (2009) que procurou compreender
como os Estados e os órgãos de segurança articulam-se no combate do crime organizado
transnacional. O autor analisou o crime organizado transnacional sob três perspectivas: 1)
identificação das mudanças ocorridas no crime organizado que levaram à superação do
conceito tradicional de organização hierárquica para a sua nova articulação através das
redes difusas; 2) definição da influência da transnacionalização do crime na mudança da
percepção dos Estados em relação à segurança; e 3) observação da influência que os valores
compartilhados exercem nos órgãos destinados à manutenção da segurança. Para o autor, o
crime organizado transnacional é a associação estratégica de indivíduos que atua de forma
supranacional e têm por meta o ganho ilícito. O termo transnacional denota algo que ocorre
em um plano distinto do estatal, sem observar os limites impostos pelas fronteiras dos
Estados, onde os atores não são os governos e seus representantes, mas sim os interesses
particulares específicos lícitos e ilícitos, podendo ou não coexistir com os interesses dos
Estados. As duas principais vertentes de análise: associativa (identificada como hierarquias
e redes) e de mercado (atividade econômica que objetiva o ganho ilícito), possibilitaram ao
autor identificar a superação do conceito tradicional de organização hierárquica e
identificar a associação estratégica através das redes difusas de atuação econômica,
comprovando-se tal atuação através da análise do narcotráfico e do terrorismo35. Suas
conclusões apontaram uma necessidade de se alterar os paradigmas de análise do crime
organizado, sob duas perspectivas: a) Perspectiva Global: que busca a ampliação das
técnicas policiais e das normas jurídicas de proibição das atividades ilícitas de forma
homogênea por todas as nações, indistintamente, ao redor do mundo, sendo tal perspectiva
de ação o objetivo institucional perseguido pela Interpol; b) Perspectiva Regional: as
medidas adotadas pelos países de uma determinada região, próximos ou vizinhos que
compartilham os mesmos objetivos e apresentam vínculos culturais ou ideológicos, como
observado no continente Europeu nas várias medidas de cooperação e nos arranjos entre
países durante as guerras e durante a guerra-fria, culminando com a criação da Europol; c)
35
Para Werner (2009), o terrorismo é uma manifestação do crime organizado transnacional que adota o
modelo das redes difusas de atuação econômica, ao utilizar células com grande fluidez em sua estruturação
organizacional e as atividades ilícitas como fonte de financiamento, concordando com o que propôs Tusikov
(2009), comentado no capítulo anterior.
85
Afastamento da Perspectiva Individual impositiva do Estado hegemônico que dita as
políticas de repercussão internacional a serem adotadas, como no caso dos Estados Unidos
na Guerra contra o Terrorismo.
Larizzatti (2012) procurou identificar as principais características do fenômeno da
globalização e suas consequências para o aumento das organizações criminosas. Ao final,
chamou a atenção para um redesenho dos tratados e acordos internacionais que buscam
encontrar os melhores métodos para o combate do crime organizado sob o panorama da
cooperação e da integração transnacionais.
Pereira (2011) procurou examinar o crime organizado transnacional sob a ótica das
relações internacionais com o objetivo de analisar a alocação do fenômeno na agenda de
segurança nacional americana, especialmente no que tange à distinção entre as noções de
segurança doméstica e internacional baseadas na mídia, nos especialistas e no Congresso
americano e impactos nas políticas brasileiras.
Outra característica que tornam as macro análises operacionalizadores distanciados
do universo criminal propriamente dito é a exclusão dos atores das operações criminosas
por eles orquestradas – é como se o tráfico (ou qualquer outro crime conexo) não tivesse
nome nem face. São relatados apenas os circuitos e seus fluxos: a cocaína que sai da
Bolívia, passa pelo Brasil e vai para a Europa. Mas como isso se dá? Quem leva? O que
acontece no meio do caminho? Como combater esse mercado se tudo o que se conhece é,
de um lado, a vida na “boca de fumo” e de outro, as toneladas que “aparecem” do outro
lado do Oceano Atlântico? É necessário dar corpo, forma e completar esse cenário. Nesse
sentido, os dados do relatório da CPI do Narcotráfico contribuem para informar sobre
aquilo que nem os trabalhos de campo nem os dados da UNODC e demais estudos
informam.
CONCLUSÃO SOBRE O ESCOPO DE ANÁLISE MESO
O presente capítulo procurou situar o objeto de análise da presente pesquisa – o
relatório da CPI do Narcotráfico e relatórios adjacentes – como fragmento de um universo
86
de estudos sobre o crime organizado ainda desconhecido, o chamado escopo meso de
análise.
A soma dos métodos e ferramentas de pesquisa ajudaram a enxergar alguns
elementos e categorias que, de um lado, ajudam a reforçar noções já conhecidas da
Sociologia da violência, da criminologia e do Direito, e de outro, acenam para novos
elementos complexificadores acerca do objeto estudado.
Situado entre os micro estudos etnográficos e pesquisas de campo e os macro
relatórios da UNODC, a perspectiva meso dá visibilidade aos interstícios que se desenrolam
entre o tráfico de drogas realizado nas “bocas de fumo”, os roubos de carga das estradas e
as grandes toneladas de cocaína exportadas para a Europa e EUA. Nesse ínterim se
desenvolvem as lavagens de dinheiro, o arranjo entre mercados e as organizações são
capazes de deixar transparecer todos os seus níveis. Tentar estabelecer um diálogo desse
nível de análise com os micro estudos e com os macro panoramas é um dos desafios dessa
pesquisa.
Um exemplo de pesquisa etnográfica que se propõem caminhar para o sentido dos
macro estudos e que será tomada aqui como referência de um estudo (quase) meso, é o
trabalho de Silva de Sousa (2006) que, ao longo de sua tese descreveu a capacidade que
agentes poderosos têm para transformar e determinar relativamente o campo de
possibilidades dos indivíduos em países com inserção subordinada no sistema
internacional. Mais especificamente, descreveu alguns dos resultados da política
internacional antidrogas na atividade cotidiana das pessoas relacionadas ao cultivo de coca
no Chapare, região boliviana onde realizou sua pesquisa de campo. Sousa procurou
demonstrar, em relato etnográfico e histórico, de que maneira a extensa legislação
antidrogas pode ser considerada para se compreender o presente da Bolívia, desde que seja
levada em conta nessa explicação a história e culturas locais. Finalmente, argumentou que
jamais será compreendido o que acontece com as pessoas nessa região produtora de coca,
se não for levado em consideração as ideias características do Ocidente sobre consumo de
drogas e sua maneira de lidar com elas.
Para além do exemplo de Silva de Sousa, a proposta de realizar um estudo meso
aplicado aos dados da CPI do Narcotráfico associados às citadas pesquisas de campo e
87
relatórios da UNODC pode se tornar uma nova maneira de olhar, recontar e tentar entender
o crime organizado no Brasil. Assim, o estudo de meso alcance analítico nada mais é que
um ponto de confluência para entender o que acontece fora do território brasileiro e a
relação que estabelece com o cotidiano das favelas e periferias. Acredito que os casos
investigados no capítulo VI podem ajudar, de certa forma, a preencher a lacuna existente
sobre os estudos meso sobre o crime organizado, informando sobre os nomes e as faces
daqueles que participam e compõem esse cenário, funcionando quase como uma pesquisa
de campo ao mesmo tempo em que permite que tenha acesso às informações sobre os
mercados que compõem esse cenário e que somente poderiam ser percebidos em macro
estudos. Concordando com Sousa, acredito que é preciso conhecer as especificidades
culturais e históricas do crime organizado, relacionando individuos e merados criminais, e
os estudos meso podem ajudar nesse sentido.
88
CAPÍTULO IV
O RELATÓRIO DA CPI DO NARCOTRÁFICO COMO FONTE DE
DADOS
O presente capítulo procura informar acerca da natureza do documento utilizado
como principal fonte de dados na presente pesquisa; realizar uma crítica da fonte a fim de
expor os limites da mesma e mostrar como eles impactam e resultam em limites à essa
pesquisa; e por fim, mostrar as potencialidades da fonte como documento informativo sobre
uma perspectiva meso acerca do fenômeno do crime organizado.
O uso de documentos e registros governamentais e secundários sobre eventos
significantes não são novidade nas Ciências Sociais 36 e os problemas acerca da
autenticidade e veracidade dos fatos e narrativas são problemas comumente relatados e
enfrentados pela maioria dos pesquisadores que fazem uso dessas fontes. Tratar dessas
dificuldades com a fonte de pesquisas é uma tarefa que, comumente vem sendo enfrentada
por esses pesquisadores e que não será negligenciada na presente tese.
Por essa razão, ao utilizar o relatório da CPI do Narcotráfico como fonte de dados
esta pesquisa foi conduzida para um registro histórico que retrata um momento da história
do Brasil - final dos anos 90, no qual os paradigmas acerca do crime (sempre presente nas
periferias) estiveram em transformação, uma vez que tornou-se público o envolvimento de
políticos com o universo criminal. Mais tarde, o surgimento do PCC e demais organizações
revelou importantes dados acerca de possíveis transformações nas organizações do crime
organizado.
Finalmente, me deterei nos fatos e narrativas referentes à primeira quebra de
paradigmas – final dos anos 90, por acreditar que esse contexto nos ajuda a pensar sobre
como as organizações criminosas investigadas podem ter servido de trampolim para
organizações atuais.
36
Platt, J. 1981; Scott, J. 1990; Vaughan, D. 1996; Mogalakwe, M. 2006.
89
BRASIL: FINAL DOS NOS 90, BREVE CONTEXTO
O cenário brasileiro do final dos anos 90 sobre o qual a comissão parlamentar de
inquérito esteve imersa, começa, no âmbito político, a partir da Constituição de 1988, dada
a grande movimentação dos grupos esquerdistas da Igreja, do movimento sindical e da
comunidade de direitos humanos, culminando em uma maior participação cívica dos
processos eleitorais, e na eleição de Fernando Collor de Melo.
No entanto, na década seguinte, Collor sofreu o primeiro processo de impeachment
da história do Brasil. Ao final da década de 80, com o fim da guerra fria, ganha corpo o
modelo neoliberal de governo pelo mundo, alavancando o processo de globalização
econômica. Nos anos seguintes, ampliou-se no Brasil o processo de abertura econômica a
partir desse paradigma.
Paralelamente a esse cenário político e econômico, crimes como homicídios,
latrocínios e estupros tornaram-se evidentes por força da mídia. Estes crimes disputam as
manchetes dos jornais e a atenção dos noticiários com outro crime pouco reconhecido à
época: a corrupção. Esse conjunto de temas, sobretudo a corrupção, foram investigados
pela maioria das CPIs estabelecidas no final dos anos 90 e se destacaram no cenário
político como “instrumento poderoso nas disputas por poder e prestígio político”
(SCHILLING, 1999).
Além de um instrumento de confronto entre os Poderes dentro de uma dada
conjuntura política, as CPIs desse período foram marcadas pela presença da imprensa
questionando os processos investigativos das CPIs e provocando sua continuidade a partir
do levantamento de novos fatos; e o papel dos depoimentos que trouxeram consigo
revelações inesperadas. Assim como outras CPIs, a do Narcotráfico se comportou como
uma “bola de neve” que começou com um conjunto mínimo de fatos marcantes e terminou
com o levantamento de mais de 4 toneladas de materiais investigativos.
90
O QUE SÃO AS COMISSÕES PARLAMENTARES
A importância das Comissões Parlamentares de Inquérito se deve ao seu poder de
fiscalização e investigação sobre a administração e o governo, visando defender os
interesses da sociedade e auxiliar a função legislativa das Câmaras e do Senado. Elas
podem ser instauradas em qualquer nível - federal, estadual ou municipal - devendo apurar
um determinado fato e respeitar certos limites, que são a independência entre os poderes, a
forma federativa de Estado e os direitos e garantias fundamentais (CAMPINHO, 2000).
Sabendo disso, qualquer análise do texto da CPI do Narcotráfico deve ser realizada tendo
em mente tratar-se de um documento político por detrás do qual existiam inúmeros
interesses que não necessariamente tocavam o tema do tráfico de drogas ou demais crimes
abordados.
Sendo assim, ao contrário de servir como instrumento de informação da opinião
pública e corresponder aos anseios da coletividade na defesa de seus interesses a CPI do
Narcotráfico se tornou, antes de qualquer coisa, uma plataforma política para alguns e uma
“fonte de renda” para outros.
Conforme Barroso (2008), registros históricos mostram que a primeira Comissão
Parlamentar de Inquérito teria se dado na Inglaterra, no fim do século XIV ou no princípio
do séc. XVIII. Diante de tais variações históricas, importa notar que, antes do
estabelecimento das citadas comissões, se passava na Inglaterra uma transformação da casa
parlamentar de modo a criar uma comissão para ouvir depoimentos e tomar informações
diretamente da população, procurando atender às reclamações do povo que versavam,
invariavelmente, sobre as eleições. Como resultado, em 1921 as funções das Comissões
passaram a se chamar “Tribunal de Inquérito”.
No entanto, foi nos Estados Unidos que as CPIs tiveram o seu maior
desenvolvimento. Ao longo de sua história federalista, os EUA se tornaram o Estado
ocidental onde mais proliferaram as comissões parlamentares de inquérito, desdobradas em
comissões federais e estaduais. Não obstante as comissões tenham se desenvolvido também
em outros países, como a França e a Alemanha – foi a influência norte-americana que
estimulou a sua constitucionalização no Brasil.
91
A primeira Constituição no Brasil a considerar as comissões parlamentares de
inquérito alternativas de governança foi a de 1934 (artigo 36), mas esta funcionou somente
na Câmara dos Deputados, chegando a ser implantada nas duas casas parlamentares
somente em 1946. Até que em 1967 a Constituição permitiu que se realizassem comissões
mistas de deputados e senadores.
Finalmente, a atual Constituição (1988) 37 , regulamentou as CPIs, prevendo
comissões (mistas
ou
não),
permanentes ou temporárias
e
outorgando
aos
seus
representantes, poderes de investigação próprios das autoridades judiciais, devendo suas
conclusões, quando fosse o caso, serem encaminhadas ao Ministério Público38, para que
promovessem a responsabilidade civil ou criminal dos infratores.
Em linhas gerais, a instalação de uma CPI depende de requerimento de um terço dos
membros da Casa (Senado ou Câmara dos Deputados) e, se for CPI mista, um terço de
deputados e de senadores.
Sua finalidade é apurar um fato determinado ou um acontecimento de relevante
interesse para a vida pública e para a ordem constitucional, legal, econômica e social do
país, como foi o caso das CPIs que investigaram a Máfia das Sanguessugas, o Narcotráfico,
o Roubo de Cargas, o Tráfico de Armas, etc.
Como regra geral, as CPIs tem prazo certo para acabar39, i.e., não são comissões
permanentes, podendo, no máximo, serem prorrogadas. Uma outra regra relevante é que as
CPIs podem ter poderes de investigação próprios das autoridades judiciais, além de outros
previstos nos regimentos internos das respectivas Casas. Sendo assim, a CPI, tem poderes
para "inspecionar pessoas ou coisas" a fim de obter esclarecimento sobre os fatos que
interessem ao objeto da investigação; "determinar as medidas provisórias que julgar
37
Na Constituição de 1988, as CPIs estão regulamentadas no Art.58, Parágrafo 3º : As comissões
parlamentares de inquérito, que terão poderes de investigação próprios das autoridades judiciais, além de
outros previstos nos regimentos internos das respectivas Casas, serão criadas pela Câmara dos Deputados e
pelo Senado Federal, em conjunto ou separadamente, mediante requerimento de um terço de seus membros,
para a apuração de fato determinado e por prazo certo, sendo suas conclusões, se for o caso, encaminhadas
ao Ministério Público, para que promova a responsabilidade civil ou criminal dos infratores.
38
Infelizmente, quando se dá o encaminhamento ao Ministério Público dos processos para apurar e punir são
muitas vezes morosos ou são frustrados pela insuficiência das provas em face das garantias do devido
processo legal, esse é um dos maiores limitadores dos resultados das comissões.
39
Os trabalhos devem durar 120 dias podendo ser prorrogados.
92
adequadas" quando houver fundado receio de serem os trabalhos de investigação
prejudicados por atos lesivos "de difícil reparação". Todavia, as CPIs são órgãos
colegiados, por isso, nenhum integrante de uma CPI pode fazer uso de tais poderes
investigatórios sem a autorização do demais membros.
Contudo, é possível observar, ao menos na CPI do Narcotráfico, certa “invasão” da
esfera dos tribunais, tomando, muitas vezes, os depoimentos prestados à CPI como
“inquéritos policiais”, dos quais se omitiu os fatos e contextos para conhecimento público e
se apresentou apenas os indiciamentos. Sendo assim, ao contrário de servir como
instrumento de informação da opinião pública e corresponder aos anseios da coletividade
na defesa de seus interesses, a CPI do Narcotráfico se tornou uma plataforma política para
alguns, uma “fonte de renda” para outros, mas ainda assim um inquérito sério para os
demais.
CPI DO NARCOTRÁFICO
Em 199940 foi aberta a CPI do Narcotráfico (CÂMARA DOS DEPUTADOS, 2000)
encarregada de investigar os traficantes de drogas com conexões no Brasil, Bolívia e Peru.
Conforme Rodrigues (2002, p. 107),
a "meta-inquisição" das comissões parlamentares torna público o fato de
que o Brasil não poderia mais ser tomado como um passivo "corredor de
exportação" para a cocaína andina, mas que, ao contrário, contava
efetivamente com centros consumidores importantes, redes de
distribuição de drogas e uma intrincada conexão entre políticos, na
esfera federal e estadual, juízes, roubos de cargas e caminhões e tráfico
de cocaína e maconha.
A CPI do Narcotráfico, produziu um relatório de 1200 páginas, dividido em 27
“casos”. Cada “caso” corresponde a um Estado investigado pela CPI ou a uma “ocorrência
40
Comissões de inquérito precedentes à CPI do Narcotráfico (2000) já apontavam para um cenário
preocupante que viria a ser revelado anos mais tarde: em 1991, foi formada a primeira Comissão Parlamentar
de Inquérito (CPI) no âmbito do congresso nacional brasileiro para investigar a suposta participação de
deputados e juízes com o tráfico de drogas. Dentre as descobertas, um dos fatos marcantes do relatório levou
um deputado federal a ser destituído do cargo por manter relações comerciais com traficantes de seu estado
natal.
93
específica” que relata sobre um ou mais mercados criminais acionados pelas organizações
criminosas investigadas.
O relatório apresenta análises heterogêneas: de um lado são encontrados casos
resumidos a partir de alguns fragmentos de depoimentos (ou de adaptações de
depoimentos) considerados relevantes; de outro são narrativas que retraçam contextos
históricos importantes para as investigações realizadas e, por fim, são encontradas breves
considerações e propostas de políticas públicas possíveis de serem realizadas. Portanto, não
se trata de um material em estado bruto com seus depoimentos facilmente acessíveis ao
público41 – em sua maioria, os depoimentos prestados foram registrados nas atas dos Diário
Oficial da União (DOU), todavia, muitos dos depoimentos mais relevantes prestados à CPI
foram realizados em sessões secretas sem a presença da imprensa e de audiência – é o caso,
por exemplo, do depoimento de Fernandinho Beira Mar e alguns depoimentos de Jorge
Meres e William Sozza.
Ao seu término, a CPI do Narcotráfico recolheu 4 toneladas de documentos e
depoimentos prestados versando sobre o crescimento do tráfico internacional de drogas nos
anos 80 e 90, roubo de cargas e carros, homicídios, sequestros, lavagem de dinheiro, jogo
do bicho e bingos, predação de erários municipais, desmanches de veículos, tráfico de
armas, etc. De modo geral, são casos que ilustram o panorama do crime organizado
atravessado por diversos “mercados ilegais”42.
O relatório também aborda o envolvimento de pessoas das mais variadas classes
sociais e profissões envolvidas com o comércio da droga - além do tradicional “traficante” e demais mercados ilegais conexos. Todavia, os dados apresentados no relatório não estão
disponíveis de maneira organizada, devendo o pesquisador realizar um esforço de leitura e
interpretação do mesmo. Além disso, em boa parte do texto foram suprimidos depoimentos
considerados relevantes para o contexto, enquanto que textualmente o relator encarregado
tomou outras direções de investigação que não seguiram a ordem natural investigativa.
Essas descobertas só foram possíveis graças a uma leitura do relatório da CPI do
41
Agradeço ao prof. Dr. Michel Misse que cedeu-me uma cópia digitalizada desses depoimentos. Recebido
em agosto de 2012.
42
A temática dos mercados ilegais será tratadas nos próximos capítulos.
94
Narcotráfico realizada em sincronia com as notícias veiculadas pelos jornais da época e
com o arquivo de testemunhos disponíveis no Diário Oficial da União. Foi possível notar
que alguns indivíduos interrogados não constam da lista de interrogatórios prestados na
CPI, que alguns depoimentos e que fragmentos relevantes dos mesmos foram suprimidos.
Por exemplo, o depoimento de suma importância prestado pelo narcotraficante Fernandinho
Beira Mar que, não consta das notas do relatório da CPI, nem que o mesmo tenha sido
realizado em sigilo. Tem-se conhecimento do fato graças às revistas Isto é e Época que
noticiaram43 o evento, sem, contudo, revelar seu conteúdo.
Além disso, o envolvimento de 5 relatores da CPI com indivíduos indiciados
chamou atenção quando foi percebido que alguns destes se posicionavam justamente entre
os indivíduos depoentes e aqueles que foram ocultados pelo relatório.
Os casos investigados pela CPI do Narcotráfico privilegiaram a descrição de
organizações de pessoas, de rotas de transporte e fluxos de negócios do comércio da droga.
Os traficantes que vendem a droga para o consumidor final aparecem desempenhando
papéis secundários em relação às organizações e aos personagens principais evidenciados
na trama relatada pela CPI do Narcotráfico.
Na minha leitura com relação ao tráfico de drogas foram privilegiadas as
atividades que envolvem a introdução de grandes quantidades de cocaína no território
brasileiro, o seu transporte até os centros distribuidores e as conexões com as redes de
distribuição local ou o envio da droga a outros centros, como Europa e EUA. Por ser o
tráfico de drogas o objeto central das investigações da CPI do Narcotráfico e ser dada uma
atenção secundária à ligação do mercado da droga à outras atividades criminosas, como o
tráfico de armas, o roubo de cargas, a lavagem de dinheiro, a corrupção de juízes, policiais
e políticos e até um caso envolvendo oficiais da Força Aérea Brasileira no transporte
internacional de cocaína, fui buscar maiores informações sobre esses mercados conexos nas
CPIs do Roubo de Cargas e do Crime Organizado pois elas são fundamentais para construir
minha argumentação acerca do crime organizado. A intenção de privilegiar a análise desses
43
http://www.istoe.com.br/reportagens/36972_OS+SEGREDOS+DE+BEIRA+MAR
http://revistaepoca.globo.com/Revista/Epoca/0,,ERT142775-15223-142775-3934,00.html
95
mercados foi de tentar compreender as tramas que envolvem o crime organizado que
conecta múltiplos mercados criminais de modo a conhecer os caminhos percorridos para
além dos limites das periferias até chegar às fronteiras internacionais do país.
No que tange aos outros crimes investigados pela CPI, o roubo de cargas, os
homicídios e a lavagem de dinheiro são os que mais se destacam. Tamanha foi a
repercussão desses casos que o roubo de cargas ganhou uma CPI especial para investigar os
roubos, homicídios e a lavagem de dinheiro que lhes deram origem; anos depois, foi a vez
da CPI do Crime Organizado que investigou alguns dos casos iniciados pela CPI do
Narcotráfico.
Com relação ao roubo de cargas, a maior preocupação da CPI do Narcotráfico foi
entender (e verificar) a estória contada por um caminhoneiro integrante de uma quadrilha
de roubo de carretas. Seu nome era Jorge Meres e sua narrativa incluía desde quadrilheiros
do interior da Bahia, Pernambuco e Maranhão até deputados e empresários do Acre,
Alagoas e São Paulo.
Todavia, os relatores da CPI se basearam também em informações provenientes
ora de investigações policiais anteriores, ora de outras CPIs de âmbito estadual, de
processos investigados pelo Ministério Público em alguns casos, e de organizações de
defesa de direitos humanos em outros. A obtenção dessas informações rendeu investigações
que versaram a respeito de um nível de operação do tráfico de drogas que exigiria um maior
grau de organização, de profissionalização das atividades e que lidaria com grandes somas
de dinheiro. Por isso, a força dos dados da CPI está na contribuição que trouxe para a
compreensão do funcionamento do crime organizado de um ponto de vista meso.
Ao longo das análises realizadas observou-se que o relatório apresentou
modificações em seu conteúdo, sugerindo tratar-se de uma versão “editada” dos crimes do
narcotráfico e seus crimes conexos no Brasil. Um exemplo disso é a suposta relação
estabelecida entre o caminhoneiro Jorge Meres, o empresário William Sozza e os políticos
Augusto Farias e Hildebrando Pascoal. Essa relação pode ser melhor entendida a partir da
compreensão da morte de Stênio, um delegado de polícia, assassinado em São Luiz (MA)
quando investigava as ações de uma quadrilha de ladrões de carga que era integrada por
dois deputados estaduais (Chico Caíca e José Gerardo), dois empresários (um paulista –
96
William Sozza, outro maranhense – Joaquim Laurixto), um delegado de polícia44 e alguns
“pistoleiros” eventualmente contratados para os serviços de homicídio.
As investigações começaram quando uma carreta roubada foi encontrada na
garagem de uma casa. O motorista responsável pelo transporte da carga de São Paulo (SP)
para São Luís (MA). Meres disse que foi atacado por bandidos que lhe tomaram o veículo.
Ele trabalhava secretamente para Bel, um “pistoleiro” da região cujas conexões se
estendiam até aos deputados envolvidos. Orientado por Bel, Meres desviou a carreta de seu
destino e, após descarregá-la, escondeu-a na citada garagem; em seguida deu falsa queixa
de roubo. Um policial, ex-guarda-costas de um dos deputados envolvidos, em um momento
de desentendimento com Meres, informou ao delegado Stênio, mais tarde assassinado,
sobre a garagem onde estava escondida a carreta que foi apreendida. Identificado como
executor do crime, Bel e seus comparsas, foram presos dias depois em Belém (PA).
Apurou-se através da mídia45 que Sozza, o empresário interessado na morte de
Stênio era sócio de Gerardo, protegido de um conhecido desembargador no estado do
Maranhão e publicamente afilhado de um importante senador (ainda no poder); além disso,
consta na imprensa da região46, informações sobre a influência no Tribunal de Justiça,
especialmente junto a alguns desembargadores que, mesmo constatada a importância na
organização, não foram citados no relatório da CPI.
Bel e seus comparsas foram mortos quando voltavam de uma audiência judicial em
Santa Luzia (MA). A CPI do Narcotráfico descobriu que o juiz de Santa Luzia, a pedido do
delegado encarregado do caso, solicitou a convocação do bando para depor em outro
processo de homicídio, no qual não eram envolvidos. Levantei através da mídia47 que a
caravana foi cercada e rendida por assassinos desconhecidos, sugerindo que os bando fora
“chacinado” em uma “queima de arquivo”. No relatório da CPI essa narrativa está resumida
e é difícil compreender os interstícios dessas relações.
44
O mesmo foi judicialmente inocentado deste crime.
http://epoca.globo.com/edic/19991108/brasil2.htm
46
http://www.senado.gov.br/noticias/OpiniaoPublica/inc/senamidia/historico/1999/11/zn110557.htm
47
http://www.jornalpequeno.com.br/2007/7/26/Pagina60864.htm
45
97
Essa “queima de arquivo”, provocou sérios abalos no sistema estadual de Segurança
do Estado do Maranhão (estas informações constam apenas na mídia48
e não nos arquivos
da CPI): a governadora do Estado demitiu o secretário estadual de segurança, que estaria de
alguma forma envolvido no caso, e deu carta branca a um novo secretário para que
efetuasse a prisão de Caíca, Gerardo, Sozza, Bel e dos “pistoleiros” suspeitos de estarem
envolvidos na morte de Stênio.
Dos culpados, Gerardo foi acusado de integrar a cúpula de uma organização de
traficantes em parceria com outros 2 deputados federais (Hildebrando Pascoal do Acre e
Augusto Farias do Alagoas) e com Sozza. Os quatro teriam decidido a morte de Stênio em
uma reunião realizada no hall de um hotel em Campinas (SP), mas a polícia nunca
descobriu em qual hotel e em qual data essa reunião foi realizada.
Vale esclarecer que Sozza era até então conhecido como um pequeno comerciante
envolvido com boates e revenda de automóveis e que comprava mercadorias (suspeitas de
provirem de carregamentos roubados) abaixo do preço de mercado. Foi este quem
empregou o caminhoneiro Meres encarregado da carreta apreendida no Maranhão. Meres
foi motorista de Sozza durante seis meses, sendo demitido em 1997 após um episódio de
tentativa de estupro em Itarumã (GO), se tornando inimigo do ex-chefe depois.
À CPI, Sozza declarou categoricamente que não sabia sequer da existência de
Stênio ou de Gerardo, que nunca esteve no Maranhão, nem conhecia ninguém naquele
estado, tanto que a quebra de seu sigilo telefônico não localizou uma única chamada de ou
para alguma localidade no Maranhão, ou para os supostos cúmplices no Acre e Alagoas.
Quem trouxe ao mundo a suposta reunião de cúpula realizada em Campinas (SP) foi
Meres, o motorista de caminhões após ser preso no Maranhão por envolvimento no roubo
de uma outra carreta. E, nunca se esclareceu por que motivo um simples motorista era
admitido nas conversas dos supostos líderes do bando49, uma vez que, mesmo nas mais
48
http://jornalpequeno.com.br/edicao/2008/11/09/governo-roseana-deixou-livre-pistolagem-e-crimeorganizado/
49
Dez anos depois do assassinato do delegado maranhense e da transformação do bando do pistoleiro
maranhense em arquivo morto, os principais acusados estão nas ruas, beneficiados pela redução ou progressão
das penas ou pela lentidão ou pouco interesse do Ministério Público e da Justiça. Entretanto, por mais
intrincados ou até eventualmente deformados que sejam os fatos, praticamente ninguém acredita na inocência
98
simples organizações (não criminais, inclusive) a hierarquia sempre está presente.
Aparentemente, tudo começa e termina no ex-motorista que escapou da condenação por
haver colaborado com a CPI e a Justiça.
Da maneira como hoje são apresentadas, as informações disponíveis no relatório da
CPI devem ser utilizadas com rigor e cuidado. Devem ser consideradas e comparadas com
outras
fontes
de
informação
–
como
fazem
os
historiadores,
por
exemplo
(ENZENSBERGER, 1967) - para entender em profundidade um determinado fenômeno ou
recontar uma estória.
Por essa razão, recomenda-se que a apreciação do fenômeno do crime organizado
no relatório da CPI possa ser analisado em conjunto com outras informações recolhidas de
outras CPIs como as do Roubo de Cargas e do Crime Organizado e artigos da imprensa a
fim de formar um sistema triangular de informações.
Além disso, o relatório deve ser entendido como uma representação do cenário do
tráfico de droga do final dos anos 90 por meio do qual são relatadas diversas estórias, que
expõem um ou vários lados de uma mesma narrativa, mas que, no fundo, torna metafórica a
presença do crime organizado no Brasil através do tráfico de drogas, roubo de cargas e do
envolvimento de agentes do Estado com mercados criminais.
VIESES NOS DADOS DA CPI
Durante o período em que a CPI do Narcotráfico esteve ativa (entre 1999 e 2000),
dentro e fora do Congresso circularam documentos citando o envolvimento de alguns dos
parlamentares que integraram o seleto grupo encarregado de investigar os crimes que
fizeram parte dos inquéritos. As acusações apontavam para o seu envolvimento com crimes
por eles investigados e atingiram a reputação de 05 dos 19 relatores da CPI, listados na
tabela abaixo. As denúncias os apontavam como amigos de traficantes, como sócios de
deles. Condenado, o empresário paulista é um dos poucos que continua preso em regime fechado. O deputado
maranhense está em regime semiaberto.
99
empresários e políticos envolvidos com a “lavagem de dinheiro” do tráfico, enfim, ligações
que facilmente os enquadrariam como pertencentes às organizações criminosas.
TABELA 2 : Parlamentares, estado de origem e tipo de envolvimento com as investigações
da CPI:
Nome do
Parlamentar
Moroni Torgan
DEM
CE
Função que desempenhou na
CPI ou casos que investigou
Relator
Magno Malta
PTB
ES
Presidente da CPI
Suposto envolvimento com Gratz e sua quadrilha
- corrupção política, lavagem de dinheiro,
pistolagem
Wanderley
Martins
PSB
RJ
Conexão Africana, FAB, Rio de
Janeiro
Suposto envolvimento com Beira-Mar – tráfico de
drogas
Laura Carneiro
PFL
RJ
Amapá, Ceara, Goiás, DF, FAB,
Paraguai, Rio de Janeiro, Suriname
Suposto envolvimento com Beira-Mar – tráfico de
drogas
Eber Silva
PDT
RJ
Maranhão
Nada consta
Padre Roque
PTB
PR
Paraná
Nada consta
Nilton Baiano
PP
ES
Bahia, Goiás, DF, Pará, Prevenção ao
narcotráfico
Suposto envolvimento com Gratz – corrupção
política, lavagem de dinheiro, pistolagem
Robson Tuma
PFL
SP
São Paulo
PDT
RS
Amapá, SP, Paraná
Suposto envolvimento com PC Farias – lavagem
de dinheiro
Nada consta
PSDB
MA
Nada consta
PMDB
MG
Goiás, DF, Maranhão, Prevenção ao
narcotráfico
Espirito Santo, Minas Gerais, Piauí
Fernando Ferro
PT
PE
Espirito Santo, Pernambuco
Nada consta
Reginaldo
Germano
PP
BA
FAB, Maranhão, Mato Grosso,
Pernambuco
Nada consta
José
Antônio
Almeida
Lino Rossi
PSB
MA
Maranhão
Nada consta
PSDB
MT
Nada consta
Waldemir Moka
PMDB
MS
Espirito Santo, Maranhão, Mato
Grosso, Mato Grosso do Sul,
Pernambuco
Mato Grosso do Sul, Paraguai, Piauí,
Prevenção
Celso
Russomanno
Elcione Barbalho
PP
SP
Pará, São Paulo, Suriname
Nada consta
PMDB
PA
Pará, Prevenção, Suriname
Nada consta
Paulo Baltazar
PSB
RJ
Prevenção ao narcotráfico e Rio de
Janeiro
Nada consta
Pompeo
Mattos
Sebastião
Madeira
Cabo Júlio
Partido
de
UF
Tipo de envolvimento com o caso
investigado
Nada consta
Nada consta
Nada consta
FONTE: Relatório Final da CPI do Narcotráfico/Câmara dos Deputados.
A primeira suspeita de envolvimento de relatores com membros das organizações
criminosas acomete o nome de Wanderley Martins – deputado do RJ – e sua relação
criminosa com Fernandinho Beira-Mar, o mais importante traficante conhecido na cidade
do Rio de Janeiro. Foi enviada à comissão uma foto mostrando o deputado e o traficante
lado a lado durante um comício realizado em uma favela de Niterói na campanha para as
eleições de 1998. Até aí, não haveria maior problema, uma vez que os políticos que “sobem
100
o morro” em época de eleição devem pedir autorização a seu “dono” (BARCELLOS,
2010).
Todavia, o que chama a atenção é o que aconteceu depois disso: conforme foi
noticiado à época da CPI (24/03/2000) o citado traficante teria realizado contato oficial por
telefone com a CPI e com a Polícia Federal, em uma conversa que durou aproximadamente
uma hora e meia e sobre a qual não se soube acerca do seu conteúdo, a não ser pelas
impressões de outra relatora da CPI, supostamente envolvida com o traficante - Laura
Carneiro, que afirma que o conteúdo da conversa não acrescentara nada às investigações.
Sua avaliação na ocasião foi a seguinte: “Fui ameaçada por esse bandido e para mim pouco
importa o que ele fale. O objetivo dele é apenas denegrir todos os que têm atrapalhado seus
negócios monstruosos”50.
Tempos depois Beira Mar foi convidado a depor à CPI, em uma seção sigilosa que
durou três horas e que, segundo os dois relatores envolvidos com o caso, não resultou em
qualquer informação relevante para a CPI, tanto que sequer constou de seus anais51.
Todavia, graças aos dados fornecidos por outros depoentes foi possível reconstruir a rede
formada pelos indivíduos da organização encabeçada por Beira-Mar e perceber o
envolvimento desses dois políticos.
Somente após o fim da CPI o conteúdo do telefonema veio a público: conforme
Beira-Mar, alguns policiais da Polícia Civil do Rio e um policial federal haviam recebido
mais de US$ 500 mil para não levar suas irmãs presas. Segundo ele, o policial52 federal
envolvido no esquema estaria ligado na CPI ao deputados Wanderley Martins e Laura
Carneiro: “Porra. Achei que a CPI era séria, mas o que vejo é um funcionário da CPI
extorquindo minha família. Imagina como me sinto. No meu lugar você confiaria na
CPI?”53, perguntou Beira-Mar.
Mas esse tipo de envolvimento criminoso por parte de Martins não foi novidade: ele
respondeu ainda a um outro inquérito por corrupção quando ainda trabalhava na Polícia
50
http://www.istoe.com.br/reportagens/43125_AS+FITAS+DE+BEIRA+MAR
Vários casos da CPI contém o relato da prisão de Beira-Mar.
52
O policial federal a que o traficante se referiu na conversa com a CPI é agente da Polícia Federal no Rio e
até o final do ano passado (2010) esteve ligado ao gabinete do citado deputado, que é ex-delegado da Polícia
Federal.
53
http://www.istoe.com.br/reportagens/43125_AS+FITAS+DE+BEIRA+MAR
51
101
Federal em 1994. Consta que o parlamentar recebera um depósito bancário no valor de CR$
10 milhões - cerca de US$ 2,5 milhões – de um doleiro libanês, preso por lavagem de
dinheiro e contrabando de armas.
Além do envolvimento desses dois parlamentares com traficantes, agentes da
lavagem de dinheiro e tráfico de influência, foi noticiado na mídia o envolvimento de
outros parlamentares54: o mais emblemático é a acusação que um indiciado pela CPI
apresentou contra o parlamentar Robson Tuma de ter recebido dinheiro proveniente do
comércio de ilícitos para sua campanha eleitoral. Além disso, à época, Tuma também
estaria sendo investigado pela Receita Federal por indícios de sonegação do Imposto de
Renda e importação de mercadoria não declarada. Durante o período da CPI do
Narcotráfico, Tuma também estava trabalhando na CPI dos Medicamentos, uma das
possíveis razões que o levou a Campinas e às investigações também sobre o caso do
empresário de uma indústria química55 com quem também esteve envolvido e que, por sua
vez, estava imbricado em um dos maiores escândalos políticos que culminou no
impeachment do ex-presidente Fernando Collor.
É interessante notar nesses relatos que os envolvimentos dos parlamentares
(investigadores) com os crimes investigados obedeceu um padrão nas correlações que se
estabeleceram: os indivíduos indiciados pela CPI do Narcotráfico foram identificados e
investigados a partir de seus locais de atuação, correspondentemente, os parlamentares
envolvidos também apresentaram envolvimento com esses indivíduos a partir de seus locais
de investigação, os quais são, para muitos, seus locais de origem. É curioso perceber como
a proximidade dos relatores com seus Estados de origem culminou em corrupção.
Segundo Amorim Neto e Santos (2001) existe uma maior probabilidade que pessoas
do mesmo Estado ou que partilhem a mesma atividade comercial/ profissional estabeleçam
conexões, corrompidas ou não56. Uma forma utilizada pelos deputados para proteger seus
54
http://www.istoe.com.br/reportagens/32924_INCOMODO
http://epoca.globo.com/edic/19991122/brasil1c.htm. O empresário Alexandre Negrão foi posteriormente
inocentado dessas acusações.
56
Tratando do tema das emendas dos parlamentares ao orçamento da União favorecem, Ames (1995(a),
1995(b)), aponta para a existência a prática do “pork-barrel politics”, que é a troca de favores entre atores
políticos, como por exemplo, a liberação de verbas para as emendas dos parlamentares em seus territórios
eleitorais em troca de apoio no Congresso. Trata-se de um padrão consagrado não apenas na política
55
102
“protegidos” foi encobrir seus depoimentos ou até mesmo isentá-los de serem convocados a
prestar depoimentos frente à CPI. Por isso, no relatório foram encontradas inúmeras
divergências de informações somente percebidas quando as redes criminais dos casos
investigados foram reconstruídas. Essas divergências foram interpretadas nas análises dos
casos como “buracos estruturais”, ou seja, espaços que deveriam ser ocupados por alguém
ou alguma relação, mas nos quais constam apenas informações desencontradas e vestígios
de quem poderia ocupá-los. A identidade de alguns desses indivíduos foi recuperada,
todavia, não é possível ter toda a certeza sobre as mesmas.
CONCLUSÕES DO CAPÍTULO
No presente capítulo apresentei dados sobre como são produzidos os relatórios
parlamentares de inquérito e como o relatório da CPI do Narcotráfico foi realizado, com a
finalidade de demonstrar os entraves, limites e vieses com os quais a presente pesquisa teve
de lidar ao usar como fonte uma série de dados secundários que passaram pelo olhar e
interesses de seus investigadores – no caso, os parlamentares que compuseram a comissão
da CPI do Narcotráfico.
Outra razão pela qual esse capítulo se faz relevante foi a realização de uma crítica
da fonte procurando mostrar como as narrativas do relatório formaram padrões e como
esses padrões trouxeram à luz as relações escusas desenvolvidas por esses parlamentares
durante as investigações da CPI. Esses diferentes padrões apontam para a necessidade de se
estabelecer um padrão científico para o uso de fontes de dados como as CPIs que leve em
conta o fator não judicial da comissão e que garanta que as fontes investigadas não estejam
limitadas ao crivo inquisitório dos parlamentares de seus Estados de origem.
Dessa forma, de saída, o material utilizado como base para a presente pesquisa – o
Relatório da CPI do Narcotráfico - apresenta alguns problemas: ora oferece dados bastante
conexos e estórias compreensíveis e instrumentalizáveis à análise, ora são textos de difícil
compreensão, desconexos, para os quais precisarei lançar mão de diagramas e desenhos
brasileira. Todavia, se valendo do conceito cunhado por Ames, segundo Amorim Neto e Santos (2001), este
padrão, tradicional no Brasil, amplia a probabilidade de corrupção.
103
para alcançar um nível de compreensão razoável sobre o que o relator encarregado de cada
caso em particular quer dizer (ou aonde quer chegar) com os dados apresentados. Nesse
sentido, as ferramentas computacionais de pesquisa que serão aqui utilizadas e comentadas
na seção metodológica, contribuiram para estruturar e organizar a leitura desse material.
Além disso, o caráter político do texto da CPI chama muita atenção e à todo o
momento da análise é necessário que seja mantida uma cautela duplicada com relação ao
afastamento e questionamento: até que ponto essa informação faz parte de uma “jogada
política” ou não? Por essa razão, serão utilizados como referências de apoio os relatórios
das CPIs do Crime Organizado, Roubo de Cargas, os testemunhos integrais prestados à
Comissão da CPI do Narcotráfico e a verificação na mídia disponível na internet sobre as
informações registradas. Assim, acredito que será possível reduzir o viés que o relatório
final da CPI do Narcotráfico apresenta.
Também, o relatório parece estar comprometido pela implicação de alguns
parlamentares encarregados de investigações que se envolveram com indivíduos
investigados e, em troca de “favores” (políticos e financeiros) tentaram “esconder” o nome
desses indivíduos no relatório da CPI. Tentarei resgatar alguns desses nomes através da
mídia, mas pode ser que outros mais ainda fiquem encobertos.
Além disso, é necessário que seja padronizado o tipo de relato e narrativa utilizadas
na composição dos relatórios, uma vez que, cada trecho é investigado e exposto por um
relator diferente, gerando incompatibilidades estilísticas de narrativa e privilégio do que
vem a ser relevante para a CPI como um todo. Estas são algumas medidas que poderiam
ajudar a não criar um viés nos inquéritos e que desencorajaria a corrupção entre os
relatores.
Finalmente, procurei mostrar que o pesquisador que lida com relatórios de
comissões parlamentares deve ter um olhar crítico sobre sua fonte de dados, sobretudo,
quando se trata de documentos cujas finalidade são políticas. Todavia, esta postura requer
um rigor metodológico tal que permita localizar e controlar os vieses detectados. Abordarei
os métodos empregados para controlar esses vieses no próximo capítulo.
A novidade do uso desse tipo de material está no potencial analítico do ponto de
vista do nível meso de análise que somente seria possível a partir de um documento de igual
104
porte como o da CPI do Narcotráfico. Acredito que esta pode ser uma das maiores
contribuições que investigações e relatórios de Comissões Parlamentares de Inquéritos
poderiam oferecer: a possibilidade de transitar dos pequenos crimes às espantosas cifras,
conectando-os e dando sentido à um e outro. Como essas CPIs utilizam fontes de dados da
Polícia Federal e de outras agências de polícia internacionais (como Interpol e FBI), isso
permite que os “verdadeiros” e “grandes nomes” do crime organizado, muitas vezes
encobertos em um extremo e outro das micro e macro investigações, sejam trazidos à tona.
Assim, não apenas os grandes traficantes ganham evidência e nome, bem como os crimes
que orbitaram a atividade principal e os indivíduos que as praticam vem à tona.
105
106
CAPÍTULO V
MÉTODOS DE ANÁLISE E SOFTWARES EMPREGADOS
A metodologia empregada nesta pesquisa se baseou em um estrutura formada por
três pilares distintos que congregou métodos qualitativos, quantitativos e informacionais. A
opção por esse tipo de construção metodológica é fruto de uma necessidade percebida ao
longo do percurso dessa pesquisa de buscar metodologias diferentes das tradicionalmente
utilizadas pela Sociologia, e muitas vezes oriundas de diferentes tradições (como a
matemática, por exemplo) e que dessem conta de um objeto que parece ser amplamente
conhecido, como o crime organizado, mas que ao mesmo tempo ainda apresenta ampliada
ausência de informações, como mostrado no capítulo II.
Pareceu-me bastante promissor perseguir um caminho metodológico que
combinasse as bases conceituais da metodologia positivista da Grounded Theory - que
preconiza que a teoria é indutivamente construída ao longo da pesquisa, associada às
ferramentas que auxiliam nas leituras dos citados relatórios e na quantificação de dados
qualitativos deles extraídos (NVivo) e, finalmente a adoção de ferramentas informacionais
de visualização de grafos (UCINET, Pajek e Tulip) que me permitissem resistematizar os
dados do relatório no formato de redes. Este pareceu ser um bom caminho a trilhar57.
TRIANGULAÇÃO
A combinação do método da Grounded Theory associado à duas ferramentas de
pesquisa (NVivo e softwares de visualização de grafos) permitiu pensar na metáfora da
“triangulação”. A “triangulação” tenta extrapolar a divisão canônica existente entre os
métodos quantitativos e métodos qualitativos, na medida em que
A inter-relação de dados de diferentes fontes permite uma epistemologia
relativista, que justifica o valor do conhecimento de muitas fontes, ao invés de
57
Esses três elementos: Grounded Theory, NVivo e Análise de rede serão comentados na sequência.
107
utilizar uma fonte única de conhecimento. Aqueles que tomam uma abordagem
favorável à triangulação em termos convencionais são mais propensos a
trabalhar a partir de uma percepção da continuidade de todos os esforços de
coleta e análise de dados (...) Eles são mais propensos a considerar todos os
métodos como privilegiados: as qualidades que permitem um tipo de informação
de ser coletada e entendida acaba por encerrar a possibilidade de que outros
tipos de informação possam ser acessados (FIELDING e SCHREIER,
2001, p. 50 – tradução da autora).
O principal objetivo da integração de métodos é fazê-los convergir para que se
possa alcançar resultados de investigação suficientemente válidos, que conduzam às
mesmas conclusões.
Existem diferentes tipos de triangulação: “triangulação de dados”, “triangulação do
pesquisador”, “triangulação teórica” e “triangulação metodológica” (DUARTE, 2009).
Entretanto, a que mais interessa aqui é a “triangulação metodológica”, descrita como uma
composição metodológica composta por vários métodos que se amparam mutuamente para
estudar um determinado problema de pesquisa (DUARTE, 2009).
Acredito que mesmo os dados contraditórios extraídos da “triangulação
metodológica” também oferecem pistas ao entendimento de um problema de pesquisa, uma
vez que acenam para a invalidade de um ou de ambos os métodos usados ou para os
resultados alcançados, por essa razão, tudo deve ser considerado: o dito e o não dito. De
fato, diz Duarte (2009, p. 14), “não é possível assumir, unicamente, que os resultados
provenientes de diferentes métodos se vão corroborar mutuamente”, isso pode acontecer,
certamente. Todavia, a triangulação ainda deve ser vista como uma forma de
complementaridade (KELLE, 2001), como forma de descoberta de paradoxos e
contradições (KELLE e ERZBERGER, 2005), ou como forma de desenvolvimento, no
sentido de utilizar sequencialmente os métodos para que o recurso ao método inicial
informe a utilização do segundo método (GREENE et al., 1989), essa saída parece ainda
mais interessante.
Para tanto, Denzin (1989) distingue dois subtipos de “triangulação metodológica”: a
triangulação intramétodo – que compreende a utilização de um mesmo método em
diferentes ocasiões – e a triangulação intermétodos – que utiliza diversos métodos para
108
estudar um mesmo objeto de estudo. Essa segunda opção é a que melhor coube a presente
pesquisa.
Apostando na carga holística e complexa que a triangulação pode fornecer sobre o
objeto estudado Paul (1996) e Kelle (2001) salientam que, o recurso fundamental da
triangulação de diferentes métodos é que, juntos, eles podem produzir um retrato mais
completo do fenômeno em estudo que não poderia ser alcançado com o uso de um único
método apenas. Por exemplo, no caso da análise do relatório da CPI do Narcotráfico: não
seria possível sistematizar as informações sobre o tráfico de drogas e roubo de cargas não
fosse pela comunhão entre a análise de redes sociais e a sistematização das informações
através de ferramentas como o NVivo. Do contrário, teríamos apenas um amontoado de
informações que, eventualmente poderiam ser sistematizadas estatisticamente, mas não
passaria disso.
GROUNDED THEORY
A Grounded Theory (GT) é um método de análise de dados, particularmente
sensível à compreensão do sentido de determinadas situações e que permite que a teoria
seja indutivamente construída e verificada através da coleta e análise de dados referentes ao
fenômeno estudado (STRAUSS e CORBIN, 1998). Em linhas gerais, a Grounded Theory
favorece as pesquisas de natureza exploratória em que deseja-se gerar uma teoria, mais do
que verificar; explicar um processo, ação ou interação; ou quando a pesquisa é orientada
para os dados. Por essas razões, tal método parece ser o ideal à presente pesquisa uma vez
que possibilita que novos conceitos e categorias não recorrentes nos estudos sobre a
temática do crime organizado sejam acionados e predomine a “originalidade” dos dados
sob as teorias canônicas e até então aceitas para explicar o fenômeno de um modo geral.
Para além das diferentes visões epistemológicas da Grounded Theory há elementos
comuns que a caracterizam: a) a lógica indutiva; b) a análise sistemática dos dados, através
do método de comparação constante, e c) o desenvolvimento de uma teoria a partir dos
mesmos.
109
Segundo seus criadores (GLASER e STRAUSS, 1967), a Grounded Theory propõe
o desenvolvimento de teorias aonde uma ou mais categorias são centrais. Segundo Strauss e
Corbin (1998), a teoria desenvolvida é fruto dos dados e representa uma abstração,
portanto, passível de má representação do universo estudado, necessitando com isso de
validação posterior. Um dos caminhos utilizados para validar um modelo teórico é o de
retornar aos dados e comparar a teoria recém desenvolvida com os novos dados brutos,
replicando o modelo no universo estudado, uma vez que este deve ser capaz de explicar o
universo estudado.
Para a Grounded Theory os dados deveriam ser coletados até que cada categoria
estivesse saturada, ou seja, até que: 1) nenhum dado relevante ou novo surgisse; 2)
a categoria estivesse bem desenvolvida e, 3) estivesse configurado o relacionamento entre
as categorias, caso houvessem outras.
Glaser e Strauss, após a criação da Grounded Theory divergiram: enquanto que o
primeiro adotou uma abordagem positivista, o segundo defendia uma abordagem na qual,
mais importante do que uma estrutura de análise correta, seria o processo de recolha de
dados e a subjetividade de cada participante, estando esta postura relacionada ao legado do
interacionismo. Enquanto Glaser manteve a sua visão positivista ao pesquisar sobre
organizações empresariais, Strauss associou-se a Corbin e publicaram Basics of Qualitative
Research: Techniques and procedures for developing Grounded Theory (1998) ao
estudarem interações em hospitais, no qual apresentaram o método de análise e um
conjunto de técnicas para desenvolver a sensibilidade teórica e verificação da teoria
emergente. Apesar de seguir por uma via mais próxima do interacionismo simbólico, as
premissas iniciais propostas por Glasser e Strauss ainda servem como fundamento e forma
de classificação para a presente pesquisa.
Glaser e Strauss acreditavam que toda forma de dados é, em essência, proveitosa
tanto para a verificação quanto para a geração de teorias (GLASER e STRAUSS,
1967). Nessa construção metodológica, o pesquisador deve deixar em suspenso seu
conhecimento inicial sobre o objeto estudado para que a teoria possa emergir. Em geral,
todo pesquisador possui algum conhecimento teórico sobre o objeto que abordará, bem
110
como conceitos e etc., mas somente conhecerá a relevância destes a priori ao longo do
processo de pesquisa (FLICK, 2004).
Na Grounded Theory, os dados são coletados, compilados e examinados de forma
ordenada e simultânea até o adensamento teórico, ou seja, até que não sejam mais
encontrados dados (ou achados) novos ou relevantes para a pesquisa. Para isso, os autores
recomendam que se lance mão da “sensibilidade teórica”, compreendida como a habilidade
para olhar os dados com o objetivo de verificar a relevância dos mesmos e distinguir o que
é ou não é pertinente ao estudo (STRAUSS e CORBIN, 1998).
A seleção da amostra é a base para a construção teórica que será empreendida no
futuro. Sua representatividade é a garantia da relevância dos dados recolhidos. Os critérios
de preferência desses dados, na Grounded Theory, se baseiam exclusivamente nos
insights do pesquisador. Nessa perspectiva, as decisões sobre o grupo estudado são de
exclusivo cuidado do pesquisador.
Muitas técnicas de coleta de dados podem ser utilizadas na Grounded Theory, como
observação participante, entrevistas, discursos, cartas, biografias, autobiografias, pesquisa
bibliográfica, depoimentos policiais, dentre outros. Independente do método utilizado para
coletar os dados, é conveniente enfatizar que o enfoque se concentra na interpretação desses
dados.
PASSO A PASSO DA COLETA AO TRATAMENTO DOS DADOS
SEGUNDO A GROUNDED THEORY
De saída, os 25 casos que compunham o relatório da CPI do Narcotráfico
constituíram a amostra dentre os quais foram procurados os eventos que fossem indicativos
de categorias interessantes ao universo estudado. A seguir, é apresentado de maneira
sucinta, um roteiro das etapas seguidas no decorrer da análise dos dados e do tratamento
que foi dado à citada amostra:
1) Após a coleta dos dados qualitativos - contidos no relatório da CPI do Narcotráfico,
apoiados nos relatórios da CPI do Crime Organizado e Roubo de Cargas - o primeiro
111
momento do processo de análise foi o de “interação com os dados” que me permitiu uma
imersão nos mesmos.
2) O passo seguinte foi o processo de “codificação”, em que os dados foram examinados
cuidadosamente, aonde concentrei-me, sobretudo, nos depoimentos, quando os mesmos
eram transcritos, linha por linha, procurando extrair as propriedades e dimensões das
experiências relatadas pela CPI, como mostrado no exemplo abaixo extraído do Caso FAB
onde está relatado o uso de aviões do Correio Aéreo Nacional (CAN) da Força Aérea
Brasileira (FAB) para o tráfico internacional de drogas.
FICHA CATALOGRÁFICA GT -1
Trecho do caso FAB
Que, o Ten. Cel. Washington pediu para que
ele levasse três caixas de cachaça e uma
caixa de café para o irmão do Cel. Pereira,
em Las Palmas.
Que, para mandar essas caixas seria
necessário ser feito um manifesto nacional e
um internacional. O que foi colocado ao
Ten. Cel. Washington, como não havia
tempo hábil para se fazer os manifestos, as
caixas não foram enviadas.
Que, no domingo pela manhã, o Ten. Cel.
Washington ligou pedindo para que fosse
até o avião para embarcar uma sacola de
café e para que ele verificasse se os volumes
do Cel. Pereira estavam a bordo.
Que, após verificar se estava tudo a bordo
do avião da FAB, ligou para o Ten. Cel.
Washington para lhe informar (CAMARA
DOS DEPUTADOS, 2000, p. 47).
Código do caso
“Favores”
Organização
FONTE: Relatório Final da CPI do Narcotráfico / Câmara dos Deputados.
Este processo é denominado “codificação aberta” (STRAUSS e CORBIN, 1996)
definido de maneira geral como um processo de desmembramento, análise, comparação e
categorização dos dados. Durante esse processo formulei algumas questões para me guiar.
Como por exemplo: “Como o crime organizado, através dos seus inúmeros mercados, se
relaciona com o Estado? Que mercados são esses? Como os indivíduos envolvidos se
organizam? Quais são os mecanismos acionados?”. Procurei por respostas para estas
questões nos casos que compõem o relatório da CPI, bem como identificar suas
propriedades e dimensões buscando por padrões. O trecho acima responde à pergunta sobre
112
a organização adotada e aos mecanismos acionados para estabelecer a relação da
organização criminosa com agentes do Estado, dada através da concessão de “favores”.
Como dito, a interpretação dos dados recolhidos é o coração da pesquisa qualitativa
(FLICK, 2004), sua função é desenvolver a teoria, ajudando na tomada de decisão sobre
quais dados serão trabalhados. A codificação refere-se aos procedimentos utilizados para
rotular e analisar os dados coletados, podendo ser definida, como o marco principal para
conceitualização dos dados. Nela, os novos códigos se abrem às novas questões e lhes dão
respostas temporárias sobre novas categorias e seus relacionamentos.
A codificação dos dados compreende uma comparação entre fenômenos, casos e
conceitos, que levam ao desenvolvimento de teorias (FLICK, 2004). Os procedimentos de
codificação foram chamados por Glaser e Strauss (1967) de codificação aberta, codificação
axial e codificação seletiva e foram entendidos como três formas distintas de se tratar os
dados, muito mais do que meras etapas de pesquisa. Nas páginas seguintes, examino esses
três procedimentos sob a perspectiva da presente pesquisa.
CODIFICAÇÃO ABERTA
Strauss e Corbin (1998) chamaram de codificação aberta o processo analítico
através do qual os conceitos são identificados e desenvolvidos em relação às suas
qualidades e grandezas. Esse processo envolve as atividades de fragmentar, estudar,
confrontar, conceituar e categorizar os dados que serão concentrados em uma lista de
códigos e categorias originadas dos rótulos atribuídos livremente a cada frase, linha ou
parágrafo.
Na codificação aberta, a comparação e os questionamentos que se empreende a
respeito das categorias atingidas são dois procedimentos analíticos básicos que
proporcionam exatidão e especificidade, características fundamentais aos conceitos. Para
rotular os dados, são levantadas perguntas e comparações que ajudam a procurar
similaridades e diferenças entre cada caso analisado. Nessa fase, os eventos semelhantes
são comparados e agrupados para formar categorias.
113
A aplicação da codificação aberta pode ser realizada pela análise do discurso “linha
a linha”, “frase a frase”, “parágrafo a parágrafo” ou de documentos inteiros, dependendo do
escopo da pesquisa, ou estilo do pesquisador. O resultado disso tudo é geralmente uma lista
de códigos e categorias que deve ser complementada pelas notas em código (um tipo de
memorando)
criadas
para
explicar
e
definir
o
conteúdo
dos
códigos
e
categorias (STRAUSS e CORBIN, 1998).
Com relação às categorias: os autores sugerem que elas sejam nomeadas de forma
abstrata e que sejam representativas dos grupos de conceitos de modo a serem
desenvolvidas analiticamente a posteriori.
FICHA CATALOGRÁFICA GT - 2
Trecho do caso Acre
Que, vários estavam encapuzados.
Que, é difícil descrever quem participou dos
crimes porque “ninguém conhecia ninguém e dali
saía cada um para suas casas”.
Que, depois do início da CPI, HILDEBRANDO
PASCOAL já determinou a morte do DR.
GERCINO e do DR. PAIXÃO.
Que, depois da ameaça de cassação reuniu cerca
de 12 homens e determinou: “que caso fosse
cassado, todas as pessoas envolvidas, que o
estariam perseguindo, deveriam ser mortas”.
Que, 2 matadores estão em Brasília, por ordem
de HILDEBRANDO PASCOAL, e que um deles é
de Goiânia e o outro de Brasília.
Que, os capangas de HILDEBRANDO PASCOAL
mataram HUGO no Piauí e trouxeram-lhe sua
cabeça.
Que, HILDEBRANDO tem um “esquema” muito
grande, inclusive de informantes. Que tem “gente
espalhada para todo lado”, no Rio, São Paulo,
Brasília, Paraná, Espírito Santo...
Que, no mínimo, HILDEBRANDO é responsável
por 60 mortes de bandidos e inocentes.
Que, o mentor intelectual é HILDEBRANDO
PASCOAL.
Que, transporta droga para Rio de Janeiro, São
Paulo, Parnaíba, Fortaleza e para o exterior.
Que recebia droga da Bolívia.
Que, HILDEBRANDO começou a narcotraficar
depois de eleito deputado estadual. Antes “já
matava”.
Que, por várias vezes, HILDEBRANDO quando
ia “buscar droga” era o “batedor”.
Código do caso
Organização
Vítimas
Mercado de proteção
Dimensão da organização
Liderança da organização
Mercado
Organização
114
Que, HILDEBRANDO PASCOAL era “o dono do
Acre”. Que, HILDEBERNDO não tem sócio.
Que, ou é o chefe ou não se envolve.
Que, HILDEBRANDO, já deputado federal,
continuou traficando. Que, HILDEBRANDO
almejava ser governador do Acre (CAMARA
DOS DEPUTADOS, 2000, p. 96).
Controle do território
Relação com o Estado
FONTE: Relatório Final da CPI do Narcotráfico / Câmara dos Deputados.
“Desvendar as categorias” é considerada uma das etapas mais difíceis do trabalho
de pesquisa no qual a Grounded Theory é utilizada, uma vez que ainda estão em processo
de construção. No exemplo acima, algumas categorias como violência, organização e
mercado surgem relacionadas às outras categorias e subcategorias que deverão ser
entendidas ainda, como a presença de representantes do Estado, o uso da violência para
controle do território, etc. No entanto, a dificuldade de se utilizar fontes secundárias como o
relatório da CPI, cujos depoimentos, em sua maior parte, sofreram algum tipo de alteração
por parte da relatoria dificulta os questionamentos e a continuidade de algumas etapas do
método da Grounded Theory.
Durante o processo de codificação e nomeação de categorias e subcategorias, a
tomada de notas58 a partir de ideias que surgiram a respeito das categorias e relações entre
estas, se mostrou ser a “alma do método”. Esse é um procedimento recomendado pelo
criadores da Grounded Theory por ajudar na organização dos dados. Por exemplo: “Quando
Hildebrando Pascoal (caso Acre) transportava droga para o Rio de Janeiro, São Paulo,
Paraíba, Fortaleza e para o exterior. Como ele fazia? Quais mecanismos utilizava? Sua
organização se estendia até esses estados ou ele possuía “parcerias” com outras
organizações? Que tipo de forma organizacional adotavam? É possível reconhecer essas
estruturas organizacionais?” A partir destas questões, busquei nos discursos apresentados,
possíveis respostas que serão expostas nas análises dos casos, posteriormente.
Para Flick (2004) as codificações funcionam como um modelo que permite ao
pesquisador se movimentar entre o pensamento indutivo e dedutivo. Aproveitando o
exemplo de Hildebrando Pascoal, o salto entre a indução e a dedução se dá quando olhamos
58
Nessa etapa, usei um software de pesquisa qualitativa (NVivo8) sobre o qual falarei posteriormente.
115
para sua organização, tradicional, hierárquica exemplificada na Ficha Catalográfica GT-2, e
é possível pensar em duas conexões diretas: 1) as máfias italianas podem ser vistas como
correspondentes diretos da organização liderada por Pascoal, e 2) por situar-se no estado do
Acre, essa realidade apontada por Pascoal, pode ser tratada como uma situação típica de
fronteira. Observações que serão desenvolvidas no capítulo VI.
CODIFICAÇÃO AXIAL
Segundo Strauss e Corbin (1998, p. 132), o próximo passo da análise é denominado
codificação axial, na qual
a questão importante não é tanto de identificar e listar quais são as condições
casual, interveniente, ou contextual. Em vez disso, o que o analista deve focar é o
complexo entrelaçamento de eventos (condições) que conduzem a um problema,
uma questão, ou a um acontecimento para o qual as pessoas estão respondendo
através de alguma forma de ação/interação, com algum tipo de consequência.
Além disso, o analista pode identificar alterações em relação à situação inicial
(se houver), como resultado da ação/ reação (tradução da autora).
O foco é dirigido para uma determinada categoria ou fenômeno, cuja análise deve
dar exatidão às subcategorias e possibilitar o estabelecimento de suas relações. Por
exemplo, no trecho do caso Acre apresentado anteriormente (vide Ficha Catalográfica GT2), o foco está nos homicídios e no tráfico de drogas praticados por Hildebrando. A análise
do relato mostrou que as categorias mais representativas do discurso nesse trecho eram o
“uso da violência para controle do território” e a relação do mercado do tráfico de drogas
com outros mercados. Resta descobrir, em análise, como essas duas categorias se interrelacionam.
O objetivo dessa etapa consiste em aperfeiçoar as categorias obtidas com a
codificação aberta. O pesquisador elege as categorias mais relevantes e as propõe como
fenômeno essencial para organizar as relações entre as categorias e subcategorias. Nesse
sentido, a codificação axial é um conjunto de procedimentos utilizados após a codificação
aberta na qual os dados são analisados sob uma nova perspectiva: a das relações entre as
categorias.
116
Tanto a codificação aberta quanto a axial são procedimentos analíticos essenciais à
Grounded Theory, que podem ser melhor entendidos ao se considerarem três pontos
importantes (GASQUE, 2007):
•
na codificação aberta inúmeras categorias são identificadas. Algumas dessas
referem-se a fenômenos específicos como condições, estratégias ou consequências,
outras não. Porém todas estão juntas em um mesmo conjunto;
•
como dito, essas categorias não estão agrupadas segundo sua especificidade, cabe
ao pesquisador identificá-las como tais;
•
cada categoria ou subcategoria possui propriedades específicas que podem ser
dimensionadas, oferecendo outras especificações para as categorias, onde, as
propriedades são específicas para cada caso, ou seja, variam conforme cada
fenômeno.
Na codificação axial, as subcategorias são descritas por meio de um modelo de
codificação. Esse modelo torna possível a sistematização dos dados por meio das relações
estabelecidas entre as categorias e subcategorias com a utilização dos termos (STRAUSS e
CORBIN, 1998, p. 99 apud GASQUE, 2007):
A
Condições causais
B
Fenômeno
C
Contexto
D
Condições intermediárias
E
Estratégias de ação/interação
F
Consequências
CODIFICAÇÃO SELETIVA
A codificação seletiva refina todo o processo identificando a categoria central da
teoria, com a qual todas as outras estão relacionadas. A categoria central deve ser capaz de
integrar todas as outras categorias e expressar a essência do processo social que ocorre
entre os envolvidos. Esta categoria central pode ser uma categoria existente, ou uma nova
117
categoria pode ser criada. A tarefa é elaborar a categoria essencial, em torno da qual as
outras categorias desenvolvidas possam ser agrupadas e pelas quais são integradas
(GASQUE, 2007).
A construção de categorias tem início com a formulação da história do caso
estudado. O objetivo é oferecer um panorama geral descritivo para situar o leitor e situar o
próprio pesquisador quando este estiver em níveis mais altos de abstração.
O passo seguinte envolve a alteração da narrativa simples para a conceitualização
por meio da elaboração de uma linha da história de modo que as codificações anteriormente
realizadas sejam listadas e dessa maneira, o pesquisador possa olhar para as categorias e
avaliar qual delas é abstrata o suficiente para englobar todas as outras descritas. O resultado
deve ser uma categoria central que aglutine as categorias relacionadas a ela.
Essa categoria central é essencial para a conectar todos os elementos da teoria, pois
é a partir dela que os atributos devem ser identificados, pode ser, por exemplo, uma
metáfora, desde que conecte-se às demais categorias. Após essa etapa, novamente deve-se
utilizar o paradigma dado na seção anterior – condições, contexto, estratégias e
consequências – nas relações entre as categorias.
Portanto, Strauss e Corbin (1998) advertem que as várias fases da Grounded Theory
devem se desenrolar concomitantemente, permitindo ao pesquisador fazer as modificações
necessárias no transcorrer do processo. O procedimento de retroalimentação constante com
os dados da pesquisa, possibilita uma melhor compreensão do fenômeno estudado.
Finalmente, a parte final da análise consiste em perceber a categoria central, ou seja,
aquela que estabelecerá o elo entre as subcategorias e permitirá inferir o macro através da
análise do micro. Essa tarefa integra todas as categorias para formar a teoria fundamentada
nos próprios dados. Através do processo de inferência são usados fatos conhecidos para se
falar sobre fatos ainda desconhecidos - é a teoria formada a partir da indução que torna-se
dedutiva.
118
MATRIZ CONDICIONAL
Dada a natureza da Grounded Theory como método de análise que permite
examinar o caráter interativo dos eventos, Strauss e Corbin (1998 apud GASQUE, 2007)
sugeriram a utilização de uma matriz condicional como instrumento analítico que permite:
a) ajudar o pesquisador a ser suficientemente sensível para alcançar as condições em que se
insere o fenômeno estudado; b) habilitar o pesquisador a ser teoricamente sensível para
perceber as consequências potenciais que resultam das suas ações em campo e, c) auxiliar o
pesquisador a expor sistematicamente condições, ações em campo e as consequências para
o fenômeno.
As características gerais dos níveis da matriz segundo Strauss e Corbin (1998) incluem
desde os contextos mais amplos situados nos círculos mais externos até a ação pertencente
ao fenômeno estudado no centro da matriz:
● Nível internacional compreende a política internacional, normas governamentais,
cultura, valores, filosofia, economia, história, problemas internacionais e questões
ambientais nos quais o objeto de pesquisa está envolvido.
● Nível nacional compreende a política nacional, normas governamentais, cultura,
história, valores, economia, problemas e questões nos quais o objeto de pesquisa está
envolvido.
● Nível comunitário compreende os itens citados acima no contexto que possui
características demográficas próprias nos quais o objeto de pesquisa está envolvido.
● Nível organizacional e institucional compreende as características peculiares do
local estudado nos quais o objeto de pesquisa está envolvido.
● Nível sub-organizacional e sub-institucional compreende as características
particulares de um sub-local dentro de um local mais amplo onde o estudo acontecerá.
● Nível coletivo, grupo e individual compreende as biografias, filosofias,
conhecimento e experiências das pessoas e familiares quanto ao interesse do grupo
(interesses especiais, profissionais e científicos).
119
● Nível interacional compreende a interação - refere-se às atividades que as pessoas
fazem juntas ou relacionadas, conversas e processos de pensamento que acompanham o
fazer dessas coisas no âmbito do fenômeno estudado.
● Nível da ação compreende a dimensão estratégica e de rotina. Representa a forma
individual da ação, expressão da pessoa ou de outra interação realizada para gerenciar e
responder ao fenômeno.
A matriz condicional ajuda a mostrar especificamente como, quando, onde, com
quais consequências, a um determinado evento ou fato no nível macro tem tido impacto no
micro e as estratégias para ser usadas.
Finalmente, para construir uma tese baseada na Grounded Theory deve-se ter em
vista dois procedimentos básicos e necessários: 1) começando pelo desenvolvimento de
uma análise diacrônica que incorpore os elementos relevantes da história e, 2) além disso é
preciso esclarecer a definição e uso dos conceitos elencados, bem como as principais linhas
de desenvolvimento que impactam na construção teórica.
FERRAMENTA DE PESQUISA ASSOCIADA À GROUNDED THEORY:
NVIVO 8
Em meados dos anos 80, os cientistas sociais Lyn e Tom Richards projetaram a
primeira versão do NUD*IST, uma sigla para Non-Numerical, Unstructured Data Indexing,
Searching and Theorinzing, software criado para auxiliar em uma pesquisa em ciências
políticas, que rapidamente foi adotado por outros pesquisadores. Segundo Tavares dos
Santos (2001), o NUD*IST auxilia o pesquisador na proposição de questões, a construir e a
testar teorias. Suas ferramentas permitem ligar documentos com ideias, de modo a:
clarificá-las, descobrir temas e armazenar anotações sobre as informações; construir e testar
teorias sobre as informações; gerar relatórios, incluindo o texto, códigos de categorias e
sumários estatísticos; expor matrizes e construir modelos, ligando com softwares de
exposição gráfica.
Desde então, os dois pesquisadores vem introduzindo novas funcionalidades. Na
metade dos anos 90 fundaram a empresa Qualitative Solutions and Research Pty Ltd - QSR
120
International, que passou a comercializar o NUD*IST agora patenteado pelos Richards
(RICHARDS, 2002). No final dos anos 90, o NUD*IST mudou seu nome para N4, seguido
do software NVivo, até que em 2006, a QSR unificou ambos os softwares e lançou a versão
7 do NVivo (com parceria da Microsoft), que aliava as funcionalidades dos dois
aplicativos, adicionando uma nova estrutura de banco de dados e a capacidade de trabalhar
com altos volumes de informações textuais (RICHARDS, 2002).
Estes instrumentos computacionais tendem a ser especialmente úteis dentro da
dinâmica de uma pesquisa qualitativa que requer a análise de um grande volume de dados,
ajudando inclusive àqueles que se interessam pela análise de conteúdo e análise do
discurso, uma vez que permite quantificar dados qualitativos. Além disso, ele ainda permite
o cruzamento de informações a partir das categorias dos sujeitos de pesquisa, como idade,
gênero, escolaridade, origem, etc.
Na metade de 2008, foi lançada a versão 8, que adicionou a possibilidade de
trabalhar não apenas com dados textuais (formato Microsoft Word ou arquivos de texto),
mas também com arquivos em formato PDF, fotos, vídeos e som, e hospedar links
“linkados” na Internet. Em 2010, a QSR mudou a arquitetura do software e lançou a versão
9 do NVivo permitindo o trabalho em grupo, hospedagem em servidores, possibilidade de
trabalhar com dados armazenados em outros bancos de dados, interface com outros
aplicativos, maior sofisticação dos recursos gráficos, disponível em outras línguas que não
apenas o inglês59, etc.
Após o advento de softwares utilizados em pesquisa qualitativa como o NUD*IST e
NVivo - que trabalham com volumes extensos de informação e carga bibliográfica, a
codificação dos dados, o gerenciamento das fontes de informação, os mecanismos de busca
e as facilidades para categorização durante o processo de codificação - tem sido difícil
desvinculá-los das novas pesquisas em Ciências Sociais que demandam condições de
análise parecidas com as mencionadas no uso desses softwares. Inclusive, é possível
acrescentar que o NVivo foi criado também para auxiliar os pesquisadores nas Análises de
Conteúdo, facilitando a vida dos pesquisadores sobretudo através de uma ferramenta
implementada no software e que permite codificar àquilo que remeteria à conceitos chave
59
No ano de 2010, uma versão do NVivo foi lançada também em português.
121
para a pesquisa.
Embora tenha crescido exponencialmente o número de usuários, existem também os
pontos negativos do uso do software. Lage e Godoy (2008) argumentam que os principais
aspectos contra o uso de softwares como o NVivo estão relacionados com a possibilidade
do pesquisador perder o controle da direção da pesquisa no processo de codificação,
adequando sua metodologia às funcionalidades da ferramenta e não o contrário. Além
disso, salientam, há o risco de se confundir a ferramenta com a metodologia. Em
contrapartida, os benefícios obtidos com o uso do NVivo são inúmeros: aumento da
proximidade do pesquisador com seus dados, otimização do tempo para deduções,
permissão do registro das etapas executadas durante o processo de análise e viabilização de
pesquisas qualitativas com grande volume de dados (RETTIE et al., 2008 apud LAGE,
2011).
PRINCÍPIOS BÁSICOS DO NVIVO
O software NVivo pode ser entendido como um sistema que relaciona e ajuda o
pesquisador a extrair informações qualitativas de uma unidade de análise qualquer (um
texto) e organizá-las de modo a tentar questioná-las e, quiçá, levantar hipóteses. Trata-se de
um sistema que
possibilita realizar uma pesquisa qualitativa de mensagens e de discursos, mas
também de materiais visuais, mediante um conjunto de meios para descobrir e
explorar os sentidos das informações alfanuméricas não-estruturadas
(TAVARES DOS SANTOS, 2001, p. 132).
Disponibilizando ferramentas informacionais para codificar/sistematizar a leitura de
documentos, o NVivo possibilita a codificação das informações por ele gerenciadas. Além
disso, ele também é capaz de gerenciar categorias do entendimento, bem como ajudar na
formulação de questões sobre as informações, construir, testar hipóteses, amostras teóricas
e auxiliar em análises de conteúdo.
Trabalhando a partir de esquemas de projeto (BRINGER, JOHNSTON e
BRACKENRIDGE, 2006), o NVivo procura armazenar em um extenso banco de dados as
informações do projeto, os dados produzidos durante o processo de análise e as categorias
edificadas.
122
Entre os principais mecanismos de um projeto NVivo estão os Nodes ou ‘nós’,
que podem ser do tipo Free Node (um nó isolado) ou Tree Node (uma árvore de
nós). Um nó é uma estrutura para armazenamento de informações codificadas e
pode assumir significados diferentes, dependendo da abordagem metodológica
utilizada na pesquisa. Por exemplo, se for utilizada análise de conteúdo, os nós
irão receber os códigos (fragmentos de textos) formando categorias de
informação. Se essas categorias tiverem subcategorias, então será utilizada uma
estrutura de árvore de nós. (LAGE, 2011, p.203).
Tavares do Santos (2001) explica que o Sistema de Indexação (The Index System) é
construído por Nós, que podem ser entendidos como pastas para ideias e pensamentos sobre
o material pesquisado. Essas ideias são chamadas de Categorias. Os Nós armazenam as
Categorias construídas pelo usuário, registrando-as na memória interna do software.
Com a Categoria, são armazenadas as seguintes informações: título, definição
da Categoria, anotações sobre elas e as referências às partes do documento
codificadas pelo Nó (op. cit., p. 133).
De maneira geral, os Nós são os recipientes para codificações e para ideias. A
codificação dos Nós, ou as Categorias, se organizam hierarquicamente por classes,
subclasses, etc., permitindo desde leituras de diferentes níveis até criar uma base para a
matriz conceitual.
Os Nós, por sua vez, podem ser ligados aos documentos originais através dessa
memória interna do software que os transforma em links. Os links por sua vez, ajudam nos
procedimentos de busca que possibilitam pesquisar tanto os documentos textuais, quanto
codificá-los para descobrir e explorar padrões e temas, testar ou construir teorias.
NVIVO APLICADO À PRESENTE PESQUISA
Na presente pesquisa, o NVivo foi primeiramente utilizado como sistema de banco
de dados de documentos (The Document System) on-line ou off-line – como será mostrado
na Figura 2. Foi empregado como ferramenta de leitura, estruturação, organização e
quantificação dos dados qualitativos presentes no Relatório final da CPI – foram analisados
os 25 casos que correspondiam às investigações nos estados da federação60, o caso FAB e
os demais casos que contemplavam fluxos de tráfico operacionalizados por organizações
60
Não foram utilizados os dados disponíveis nos casos Conexão Suriname e Conexão Africana por trataremse de investigações extraídas e aprofundadas a partir dos casos estaduais já contemplados.
123
internacionais.
Para construir e estruturar o banco de dados mostrado na imagem abaixo foram
utilizadas as categorias do banco de dados ACCESS desenvolvido por Jacqueline
Sinhoretto61 para que, juntamente com a mesma, pudesse compartilhar informações dentro
da pesquisa e realizar análises conjuntas. Durante sua pesquisa de pós doutorado,
Jacqueline, sob a supervisão da prof. Dra. Angelina Peralva desenvolveu um “guia” com
algumas categorias e questões a serem respondidas a partir dos dados extraídos do relatório
da CPI do Narcotráfico. Essas questões e categorias deram origem a um banco de dados
hospedado em uma base ACCESS. As categorias desenvolvidas para esse banco foram
reutilizadas para formar a base hospedada em NVivo e utilizada na presente pesquisa.
FIGURA 2: Dados da CPI inseridos no Software Nvivo:
FONTE: Relatório Final da CPI do Narcotráfico / Câmara dos Deputados.
Posteriormente ao início das leituras, percebi que dentre os mais de mil nomes
listados e investigados pela CPI, havia alguns com alta recorrência, mergulhei então em
uma busca “transversal” que atravessou todos os casos nos quais esses nomes eram
recorrentes para tentar compreender quem eram os indivíduos e os crimes aos quais
estavam ligados, e como estes dialogavam entre si, se haveria ou não alguma inter-relação
61
Docente no Departamento de Sociologia na UFSCar/Brasil que gentilmente cedeu a base de dados de sua
pesquisa para a formação da base utilizada em NVivo.
124
entre os indivíduos e os casos. Por isso, criei um sistema de codificação e exploração dos
documentos que possibilitou ligá-los às categorias elaboradas no sistema de indexação, no
qual o NVivo ajudou na reconstrução do perfil dos mais de 1800 indivíduos investigados
pela CPI em relação aos mercados ilegais nos quais atuavam, local de atuação, conexão
com outros indivíduos, etc., segundo as seguintes categorias de análise criadas, mostradas
na Figura 3.
•
Indivíduos – os quais poderiam ser depoentes e/ou envolvidos/citados
•
Atividades econômicas conexas (Lícitas)
•
Atividades Ilícitas (crimes conexos e mecanismos de proteção – exemplo, homicídios)
•
Lugares.
FIGURA 3: Categorias inseridas no Software Nvivo – Representação nós
FONTE: Relatório Final da CPI do Narcotráfico / Câmara dos Deputados.
De modo geral, o software NVivo 8 foi utilizado nesta pesquisa mesmo depois da
coleta dos dados, passando pela análise quantitativa dos materiais da CPI, provendo um
melhor acesso aos dados recolhidos e seu gerenciamento, análise e quantificação,
classificações, triagens, organização de informações dos mesmos e, funcionando, antes de
tudo, como uma ferramenta de apoio sem a qual, leituras imprescindíveis e pontuais não
poderiam ser realizadas em tempo hábil. Além disso, afim de fechar as lacunas e evitar os
vieses da fonte de dados (já comentados no capítulo precedente) lancei mão de uma
ferramenta62 de busca on-line - indexada ao NVivo - que permite que sejam anexados
documentos disponíveis na Internet como artigos de jornais e vídeos e com isso ampliei a
base empírica do meu banco de dados realizando buscas em jornais e revista editadas
durante o período no qual a CPI estava instalada (1999 a 2000) de modo a verificar a
62
Esta ferramenta está disponível apenas no NVivo 8 e softwares sucessores.
125
procedência das informações disponíveis no relatório, corroborando-as, confrontando-as ou
completando-as.
ANÁLISE DE REDES SOCIAIS63
A análise de redes aplicada às Ciências Sociais tem suas origens em diferentes
campos de pesquisa, como o trabalho de Moreno (1934), que desenvolveu um enfoque que
ficou conhecido como sociometria - nela, as relações interpessoais foram graficamente
simuladas. Outros campos de pesquisa veem a análise de redes como um apêndice do
estruturalismo de Lévi-Strauss (1969).
Para Barnes (1972) as estruturas das redes se aplicam em qualquer campo teórico,
tanto que, encontra-se em Simmel (1983) e em sua análise formal da vida social as origens
para a escolha das análises de redes sociais na presente pesquisa. É interessante notar como
nos escritos simmelianos do século XIX as relações já ganhavam notoriedade. Nelas, as
redes sociais e a influência estabelecida entre os indivíduos se desenvolviam por inúmeras
razões e em muitos contextos e, para entendê-los Simmel lançou mão da sociologia baseada
em análise de estruturas, a qual deixava claro que as estruturas sociais, bem como as
oportunidades, as restrições e os vínculos influenciavam mais o comportamento humano do
que normas culturais ou outras condições subjetivas.
Em 1903, Simmel já apresentava indícios em seus estudos de que os aspectos
quantitativos da vida social influenciavam as possibilidades sociais do indivíduo uma vez
que ampliavam os horizontes cultural, intelectual e economicamente – e estabeleciam
novos tipos de individualidade. Nessa linha de raciocínio, os referenciais de grupo
dividiriam espaço com o mundo do trabalho, com as atividades culturais e sociais, e
estabeleceriam os aspectos estruturais dos grupos, como seu tamanho, subdivisões, relações
inter e extra-grupais e influenciariam na formação de tipos básicos de relações: díades e
tríades – temas que serão abordados mais adiante.
63
Quem conhece sobre o uso de análise de redes sociais e seus preceitos pode, se assim desejar, pular para o
próximo capítulo, no qual descrevo os casos analisados.
126
A noção de rede está presente indiretamente na configuração dessas relações na
medida em que é um conceito central para a compreensão dos processos estruturadores da
sociedade, indo além de ser considerada como um mero instrumento metodológico de
análise de processos interativos.
Bebendo dos ensinamentos de Simmel, Wellman (1983, 1988) afirma que os
processos interativos são o segredo para o entendimento dos fenômenos estabelecidos por
detrás das organizações sociais. O fato de conhecer as inserções dos indivíduos (a partir de
suas redes pessoais) em suas práticas cotidianas de sociabilidade permite inferir sobre as
suas possibilidades de acessar determinados recursos e, portanto, falam sobre qual é a
posição que o indivíduo ocupa na sociedade; seguindo o mesmo princípio é possível
conhecer os mecanismos existentes por trás das complexas inter-relações entre as
organizações. Com isso, Wellman coloca como ponto central de análise as posições que os
indivíduos e as organizações ocupam em uma determinada sociedade segundo os padrões
de estruturação das redes em que estão inseridas, deslocando o foco dos indivíduos apenas,
para a vida que levam em sociedade. Deste modo,
A pesquisa de análise de rede procura por estruturas profundas de sociabilidade
- padrões de redes regulares sob as superfícies muitas vezes complexas de
sistemas sociais. Eles tentam descrever esses padrões e usar suas descrições
para aprender como as estruturas de rede restringem o comportamento e a
mudança social (WELLMAN, 1983 p. 157 – tradução da autora).
Assim, a análise de redes é também muitas vezes entendida como um subtipo
dentro da sociologia (ou antropologia) estrutural. Trata-se de uma abordagem segundo a
qual as estruturas sociais, restrições ou oportunidades são vistas como influenciadoras do
comportamento humano mais até do que as normas ou outras condições particulares.
A influência da sociologia formal de Simmel sobre esse ramo da sociologia, provém
de sua inquietação com as propriedades formais da vida social. Para o sociólogo, as
relações sociais seguem padrões que assumem características semelhantes em contextos
diferentes. Para Simmel, as formas e padrões que essas relações sociais assumem são,
muitas vezes, mais importantes do que seu próprio conteúdo.
Um dos princípios básicos da análise de redes sociais é que a estrutura das relações
determina o conteúdo das mesmas, assim como o conteúdo informa sobre a natureza dessas
127
relações. Desta forma, indivíduos ou organizações não podem ser considerados como meras
combinações de características, uma vez que estas encobrem aquilo que pode ser
considerado como a matéria principal da vida social, ou seja, as redes de relações sociais.
CONCEITOS- CHAVE DE ANÁLISE DE REDES
“Relação” é a expressão chave para a compreensão desse método de pesquisa, uma
vez que toda a base empírica é formada entorno dos vínculos estabelecidos entre os
indivíduos que compõem os grupos. Assim, os dados relacionais constituem a base sob a
qual diferentes formas de vínculo entre os indivíduos podem ser compreendidas,
sistematizadas e diferenciadas segundo a) suas propriedades, como coesão, poder,
posicionamento social, prestígio, etc., e b) suas formações sociais, como redes, grupos,
organizações hierárquicas, etc.
O campo metodológico das análises de redes sociais é constituído basicamente pela
classificação de determinados grupos que formam o que são consideradas estruturas sociais.
Estas, por sua vez, são alcançadas através da observação dos padrões de relações sociais64
estabelecidos entre os indivíduos que compõem esses grupos.
Nesse sentido, a utilização do termo “redes” não é metafórica, pois possibilita o
seu estudo num plano menos abstrato. Uma das vantagens do uso dessa
metodologia é que a estrutura social ou relacional pode ser definida a partir de
resultados empíricos e não de uma estrutura formal e/ou normativa ou préestabelecida. A análise de redes, portanto, permite o estudo das relações entre
atores sociais, que são irredutíveis a propriedades individuais dos agentes,
permitindo observar a estrutura e a dinâmica dos processos sociais (PAVEZ,
TOLEDO e GONÇALVES, 2009, p. 13 – grifos meus).
Dito isto, verifica-se na bibliografia específica65 sobre análise de redes sociais uma
grande recorrência ao papel dos vínculos sociais como canais transmissores de recursos,
informações, influências, bens, capital social, etc. e dos modelos de articulação e
64
A social network consists of a finite set or sets of actors and the relation or relations defined on them. The
presence of relational information is a critical and defined feature of a social network (WASSERMAN e
FAUST, 1999, p. 20).
65
Barabasi (2003); Borgatti et.al (1999); Brandes (2005); Busch (s/d); Cook (1977); Emerson (1964);
Emirbayer (1994); Granovetter (1973); Gurza Lavalle et.al (2007); Kadushin (2004); Marques (2006);
Marteleto (2001); Muniz et.al (s/d); Tomael et.al (2005); Wellmann (1999), entre outros.
128
mobilização adotados como reveladores dos efeitos resultantes da constituição desses
vínculos.
Os indivíduos ou organizações (atores) são representados nas redes por “nodos” ou
“nós”, que são, por sua vez, entendidos a partir de sua inserção em uma estrutura de rede
social. Sua inserção pode se dar de duas ou mais formas: através de díades e tríades (ou
mais nodos), que são um conjunto de atores que podem se unir por laços relacionais,
conexões ou relações estabelecidas entre eles.
A discussão proposta por Simmel (1983) a respeito de díades e tríades explica os
princípios básicos da sociologia formal, na qual a estrutura das relações sociais afeta seu
conteúdo. Não só a entrada de uma terceira pessoa num encontro entre duas outras altera a
natureza da relação entre as duas primeiras, bem como, remodela a natureza da relação,
constituindo em uma tríade – vide Figura 4. Essas duas estruturas, díades e tríades, segundo
a teoria das redes, dão origem às formas de interação entre os membros do grupo.
FIGURA 4: Díades e Tríades:
FONTE: produzido pela pesquisadora.
Para Simmel, as díades detém o desenho e material que dão origem às formas
sociais mais complexas. Segundo o autor a diferença entre as díades e grupos maiores
consiste no fato de que as díades possuem uma relação diferente para com cada um dos
seus dois elementos, do que grupos maiores possuem com seus membros. Nas díades, as
relações tendem a ser fortes e o fluxo de informações continuado. Nos grupos maiores,
podem haver interrupções nesses fluxos. A estrutura social se baseia em seus dois
membros, e o desacordo de um deles pode extinguir a díade.
129
Para entender melhor as díades, Simmel propõe que esta seja observada em
oposição às tríades. Nas tríades, cada membro é um intermediário entre os outros dois.
Entre uma relação de X e Y numa tríade, por exemplo, também está implícita de forma
indireta a relação dos dois em comum com um outro sujeito Z. Entre três sujeitos X, Y e Z,
o ator X pode estabelecer uma relação diádica com Y mas também ter uma relação indireta
com Z através de Y. Dessa forma, Y pode alterar a força ou natureza da relação entre X e Z,
solidificando uma aliança ou mediando um conflito – o qual desempenha um papel
estruturante e central na interação social. Se X e Z não interagem diretamente, Y pode ser
uma “ponte” entre eles, o que pode resultar em maior poder para Y a partir dessa posição
intermediária.
Theodore Caplow (1968) seguiu as premissas de Simmel e postulou que no contexto
da tríade, o conflito é uma situação presente e corrente entre os indivíduos de uma relação e
que manifesta-se ao nível da interindividualidade, ou seja, pode acontecer entre dois
indivíduos (díade) ou sob a forma da tríade, sendo esta forma a mais próxima à da
organização social. A tríade ou mais concretamente, o terceiro indivíduo da relação, pode
desempenhar três funções diferentes: a de mediador, a de tertius gaudens (ou um semeador
do conflito entre os outros dois membros em seu proveito) e a de déspota.
Desta forma, Caplow acredita que não existe igualdade em uma relação triádica,
para ele a característica primordial da tríade é a tendência a se dividir e formar uma
coalizão “de dois contra um”, com o objetivo da conquista e manutenção do poder de uma
das partes.
Essa hipótese [a igualdade de poder] não se encaixa em muitas tríades nas quais
o ganho típico advém da dominação sobre os outros membros da tríade, e não de
uma recompensa externa a ser obtida por uma determinada coalizão
(CAPLOW, 1956, p. 489 – tradução da autora).
Para tanto, a sua formação depende da combinação de dois critérios: 1) a divisão
das forças entre os indivíduos que varia conforme a situação se modifica e 2) o surgimento
de novas associações. Nesse sentido, a ideia de conflito para este autor assume diversas
formas, sendo susceptível de surgir em diferentes contextos.
Apesar de hoje em dia termos redes com milhões de indivíduos, as estruturas
primárias de rede - díades e tríades – constituem a base de análise de redes, uma vez que
130
todas as redes sociais podem ser vistas de certo modo como uma coleção de díades e tríades
que se reúnem e desenvolvem formas mais complexas.
O desenho da rede, por sua vez, posiciona este ator em uma posição correspondente
à trajetória decorrente de sua postura e atitude na estrutura social, e referente às suas
experiências vividas. A posição que este ator ocupa na rede e o conjunto de atores ligados a
ele por crenças, oportunismo, fidelidade, amizade, dentre outras razões, constituem um
grupo, o qual pode se subdividir em muitos outros subgrupos.
As trajetórias dos indivíduos são, por sua vez, determinadas por um conjunto de
fatores, dentre os quais, faz parte a posição que o indivíduo ocupa na estrutura social.
A sua inserção em uma estrutura de redes, embora de certa forma condicionada
por sua posição na estrutura social, lhe garante um certo grau de liberdade na
escolha de estratégias de ação, possibilitando deslocamentos na estrutura social
(SOUTO MAIOR FONTES e EICHNER, 2003, p. 08).
Nesse sentido,
a análise de redes une as perspectivas micro e macro porque permite ao
pesquisador focar sua atenção tanto na ação individual quanto no
comportamento inserido em um contexto estrutural mais amplo.
(GALASKIEWICZ, 1994, p. 08).
Finalmente, a representação gráfica dessas relações em análise de redes é chamada
de grafo. É importante destacar o contexto no qual as ações dos indivíduos se desenvolvem
pois isso dá pistas sobre a importância das posições dos atores em diversos contextos de
sociabilidade como resultantes da heterogeneidade social encontrada nas sociedades
contemporâneas. Tais processos sociais que posicionam os indivíduos nas estruturas
também são desenvolvidos no cotidiano e carregam consigo importantes traços dos perfis
dos atores e de suas possibilidades de entrada em repertórios diversos de ações sociais.
Na tabela 3 defino alguns conceitos primários em análise de redes, comentados
anteriormente e que serão utilizados ao longo do presente estudo, sobretudo, no capítulo VI
quando os contextualizo na análise dos casos.
131
TABELA 3: Resumo das definições de conceitos primários em análise de redes.
CONCEITO
DEFINIÇÃO
AUTOR
São indivíduos ou organizações
considerados objetos de estudo
na análise de redes sociais.
Conexão formada entre um par
LAÇO RELACIONAL
de nodos.
Ligação estabelecida entre dois
DÍADE
nodos.
Conjunto de três nodos e os
TRÍADE
possíveis laços estabelecidos
entre eles.
Conjunto de nodos e as ligações
SUBGRUPO
entre eles.
Conjunto de nodos relacionados
GRUPO
limitados por preceitos e
medidas.
Conjunto de ligações de um tipo
RELAÇÃO
particular
entre
nodos
pertencentes a um grupo.
Representação
gráfica
das
GRAFO
ligações, onde, os pontos
representam
os
sujeitos
(individuais ou coletivos) e as
linhas representam as relações
ou conexões e são chamadas de
“links”, “elos” ou “arestas”.
Essas
linhas
representam
“canais”
por
onde
são
conduzidos “fluxos” de recursos
(materiais ou não) como
informações.
FONTE: produzido pela pesquisadora.
ATOR OU NODO
WASSERMAN, S., FAUST, K.
(1994)
WASSERMAN, S., FAUST, K.
(1994)
DEGENNE E FORSE (1994) –
com base em SIMMEL (1983)
DEGENNE E FORSE (1994) –
com base em SIMMEL (1983)
WASSERMAN, S., FAUST, K.
(1994)
WASSERMAN, S., FAUST, K.
(1994)
WASSERMAN, S., FAUST, K.
(1994)
WASSERMAN, S., FAUST, K.
(1994)
PROPRIEDADES DAS REDES
Segundo Augusto de Franco (2008) o essencial para compreender uma rede social
está ligado à sua topologia e estrutura. Por essa razão, as redes possuem algumas
propriedades que são comumente observadas em suas análises, e que ajudam a
compreender o tipo de relação e as conexões estabelecidas entre os indivíduos, bem como,
entender sua posição na estrutura social através destas relações e propriedades.
De um modo geral as redes estão conectadas tanto no ramo estrutural como na
subjetividade de suas conexões, além de caracterizar sua busca pela necessidade individual
132
e do coletivo. Essa busca por equacionar os interesses individuais aos da rede como um
todo indica que as conexões das redes ou o estabelecimento de relações entre os nodos não
são construídas de forma aleatória e sem um padrão pré-estabelecido (BARABÁSI, 1999).
Elas apresentam uma ordem dinâmica em suas estruturas que por sua vez, influenciam nas
formas das redes, no número e na qualidade das conexões que os indivíduos estabelecem.
Essa qualidade das conexões pode indicar coesão ou um aumento na densidade da rede.
Nessa linha de raciocínio, Barabási aponta para a existência de grandes concentrações de
ligações em um mesmo nodo que influenciam e tendenciam à reprodução em grande escala
de novas conexões secundárias.
Se tudo está centralizado em alguns nodos, estes são considerados hubs (ou lugar
aonde muitos pontos se conectam), pois possuem o maior número de conexões na rede,
sendo apontado como um nodo (ou conjunto de nodos) que, uma vez em evidência, tem a
tendência a receber e aumentar muito mais suas conexões em relação aos demais da rede.
Barabási afirma ainda que a posição singular de alguns atores indicam a
centralidade destes na rede; essa centralidade permite que os mesmos tenham maiores
oportunidades e maior acesso às informações e ao controle da rede como um todo e
influenciem boa parte das outras relações na rede, porque tudo está direcionado ao mesmo
tempo em certos pontos como esse. Todavia, isso pode gerar problemas para a rede se esses
atores forem desconectados – fragmentaria e causaria problemas na comunicação para a
rede toda. A ação centralizadora desses nodos recebem o título de “autonomia estrutural”
por conferir uma posição privilegiada a esse ator. Contudo, vale lembrar que este não é um
ator central, mas apenas um nodo bem posicionado.
A posição que os nodos ocupam, associado às relações que estabelecem podem
indicar a existência de um “caminho”, como um nodo intermediário estabelecendo-se entre
uma díade ou tríade. A situação inversa desse “caminho” é a presença de “buracos
estruturais” ou nodos cuja posição parece ser imprecisa dentro das redes, apesar da mesma
se mostrar imprescindível para todo o conjunto.
Granovetter (1978, 2007) defende ainda a existência de dois tipos diferentes de
conexões possíveis: 1) aquelas que apresentam laços fracos e que são de suma importância
133
dentro de uma rede por integrarem diferentes meios dentro da rede; e 2) os laços fortes, que
são os contatos íntimos e com peso e influência mais contundente no resto da rede.
Para o autor, nas redes aonde estão presentes os laços fortes há uma identidade
comum, por essa razão, as dinâmicas geradas nas interações entre os indivíduos não se
estendem além dos grupos a eles restritos. Essas são redes aonde a tomada de decisões é
seguida com alto nível de credibilidade e influência, justamente por participarem de um
mesmo círculo social. De maneira distinta e considerável, os indivíduos que apresentam
relações de laços fracos são importantes porque conectam com vários outros grupos,
rompendo o estigma dos grupos (como ilhas isoladas) e assumindo a configuração de rede.
Em linhas gerais, as relações baseadas em laços fortes definem a configuração das
relações na rede de conexões entre os indivíduos, e as relações de laços fracos funcionam
como “pontes” desses grupos antes isolados. Nesse sentido, os laços fracos são essenciais
para a integração dos indivíduos à sociedade, uma vez que os sistemas sociais simples que
se revelam carentes de laços fracos apresentam-se fragmentados e desconexos. Todavia,
sobretudo entre redes criminosas, que como será mostrado, a confiança é um dos bens vitais
para a manutenção do grupo, para que os indivíduos se conectem a outros é necessário que
haja sentimentos de identificação e confiança entre os mesmos, o que remete ao papel dos
laços fortes.
FIGURA 5: Esquema de laços fortes e laços fracos de Granovetter:
FONTE: Diagrama realizado a partir do esquema de GRANOVETTER, 1978.
134
Na tabela abaixo, resumo todas propriedades analíticas citadas anteriormente.
Lembrando que tratam-se de aproximações e traduções de conceitos extraídos de campos
diversos, como a matemática ou computação e que, aos poucos, foram sendo reformulados
a adaptados às pesquisas e estudos em ciências humanas.
TABELA 4: Resumo de propriedades analíticas em análise de redes:
PROPRIEDADES
ANALÍTICAS
CENTRALIDADE
DENSIDADE
COESÃO
AUTONOMIA
ESTRUTURAL
CAMINHO
BURACO ESTRUTURAL
PONTE
DEFINIÇÃO
AUTORES
O nodo central possui uma posição
singular,
sendo
um
ponto
referencial para os demais nodos.
Por sua posição, possui as
oportunidades e o acesso a recursos,
poder e informações dos outros
nodos.
Mostra
a
amplitude
do
entendimento entre dois nodos
onde, quanto maior a interconexão,
maior a troca entre os dois nodos
consolidando
ainda
mais
o
relacionamento entre eles.
Medida de força de uma conexão
em conexões fortes ou fracas.
WASSERMAN, S., FAUST, K.
(1994); HANNEMAN (2001);
SCOTT (2000); FREEMAN
(1979)
O nodo é intermediário na interação
com e entre outros nodos. Essa
posição confere a este alguns
privilégios, tais como o acesso a
informações, poder, status, controle,
recursos, etc. Difere do nodo central
pois este é apenas intermediário nas
relações, e não influenciador das
mesmas.
Aonde há a possibilidade de haver
algum tipo de relação entre dois
nodos, existe um “caminho”.
Mesmo que não exista uma ligação
direta entre eles, ainda que haja
uma ligação indireta por meio de
um terceiro nodo, com o qual
ambos têm ligação, ali existe um
caminho.
Resultam da ausência de ligações,
pode levar a um entendimento
impreciso de como a informação se
espalha por uma dada rede.
Ligações entre dois nodos situados
em agrupamentos diferentes e não
conectados, a não ser por essa
ligação que se torna a ponte entre os
dois grupos.
FONTE: produzido pela pesquisadora.
135
WASSERMAN E FAUST
(1994)
SCOTT (2000); WASSERMAN
E FAUST (1994);
GRANOVETTER (2007)
WASSERMAN
E
FAUST
(1994)
WASSERMAN
(1994)
E
FAUST
BURT (1992)
GRANOVETTER (1978, 2007)
COMO AS REDES ESTÃO PRESENTES NESTA
FERRAMENTAS ASSOCIADAS À ANÁLISE DE REDES
PESQUISA
E
Desde os anos 80, o tratamento computacional das informações contidas nas
matrizes se popularizou, sobretudo, face ao acesso ampliado aos microcomputadores. A
criação e a aplicação de modelos algébricos e estatísticos de análise e o desenvolvimento de
programas computacionais específicos para a análise e visualização de redes - tal como
alguns que utilizei nessa pesquisa e sobre os quais comentarei a seguir - permitiram a
visualização das redes dos casos analisados, possibilitando a análise de modelos de
agrupamentos discutidos, até então, somente no plano teórico, tal como os modelos
hierárquicos e de rede, presente em organizações como a máfia, cartéis, gangues, por
exemplo.
De modo geral, a computação aplicada à análise de redes passou a ser considerada
um elemento central do processo cognitivo, “chegando inclusive a influenciar na
capacidade própria da investigação científica” (VON FOERSTER, apud PESSISPASTERNAK, 1993, p. 203, apud TAVARES DOS SANTOS, 2001, p.119) na medida em
que permitiu “novos olhares” sobre o objeto estudado, como um telescópio para se olhar as
estrelas ou, como um microscópio – que é o caso dessa pesquisa – para se ver de perto o
comportamento de um organismo vivo, ainda que congelado no tempo.
Nesse sentido, essas ferramentas informacionais de pesquisa me ajudaram a
desenvolver reflexões analíticas, modelagens, hipóteses e testes destas, etc., contribuindo
para uma melhor visualização (em forma de grafo) daquilo que antes não era visível no
relatório da CPI, como as formas de organização e a inter-relação (indireta) entre os
indivíduos investigados.
Para a presente pesquisa, a compreensão do papel dos dados relacionais e dos
vínculos sociais se mostrou essencial no momento da coleta de dados, quando, em meio aos
depoimentos, notícias da imprensa, relatórios da CPI do Narcotráfico e outras CPIs
adjacentes, pude organizar os indivíduos registrados nessas diferentes fontes de acordo com
136
seus vínculos em uma matriz66 e, posteriormente criar outras matrizes para seus dados
relacionais.
Para articular e compreender os dados disponíveis no relatório da CPI em forma de
modelos organizacionais, utilizei os softwares UCINET67, PAJEK68 e TULIP69 por serem
excelentes visualizadores de redes e utilizados com sucesso em inúmeras pesquisas,
trabalhando em conjunto com o NVivo.
De forma geral, para a visualização de grafos esses softwares utilizam alguns
algorítimos matemáticos como recursos de análise e representação das redes estudadas.
Como contribuição, os softwares selecionados disponibilizam para seus usuários
ferramentas que ajudam a detectar grupos e subgrupos, medir centralidade, fluxos entre
nodos da rede, influências de um nodo sobre o outro, etc., enfim, medidas sistêmicas que
ajudam a revelar dados que poderiam estar invisíveis ao olhar do pesquisador.
Para melhor entender e reconstruir as redes do crime organizado investigadas pela
CPI foram utilizadas como variáveis as inter-relações local, nacional e transnacional dos
indivíduos, procurando perceber como os mesmos se relacionam entre si e constituem
padrões de organização. As conexões criminosas, parentesco, função que ocupam nas
redes, local de atuação, etc., também serviram como referenciais para a reconstrução desses
modelos de organização, na medida em que exibem o substrato da mesma e ajudam a
perceber aonde suas ramificações alcançam outras esferas, como o Estado, por exemplo.
A SELEÇÃO DA AMOSTRA
De um modo geral, no relatório da CPI do Narcotráfico foram citados e
investigados mais de 1800 indivíduos. Nem todos apresentaram uma relação direta e
explicita com o universo estudado, tratam-se de indivíduos que prestaram testemunhos
66
A organização dos dados em formato de matrizes é uma rotina de organização adotada pela matemática
desde a década de 30. Através dos trabalhos de Kurt Lewin e Jacob Moreno (1943) esta passou a utilizar a
teoria dos grafos (estudo matemático que organiza padrões relacionais expressos nas matrizes em modelos
que utilizam linhas e pontos) para formalizar as representações das configurações sociais. Este foi o passo
inicial para a fundamentação da metodologia de análise de redes sociais tal como é atualmente conhecida.
67
O UCINET é um Software desenvolvido pela Analytic Technologies, disponível no site:
http://www.analytictech.com/.
68
http://vlado.fmf.uni-lj.si/pub/networks/pajek/
69
http://tulip.labri.fr/TulipDrupal/
137
meramente informativos sobre a natureza das relações e sobre os fatos criminais marcantes
da localidade, são eles: agentes de ONGs, prestadores de serviços públicos, secretários de
saúde e segurança dos estados e municípios, etc., enfim, indivíduos sem qualquer relação
com os fatos em si e que estiveram perante a CPI apenas para informar e orientar os
parlamentares em suas investigações posteriores. Portanto, esse universo composto de mais
de 1800 indivíduos investigados pela CPI não foi utilizado em sua totalidade justamente
pelas citadas características de alguns indivíduos e pela ausência de informação e conexão
que muitos desses apresentaram em relação ao conjunto dos casos analisados.
Sendo assim, após realizada uma “limpeza” na base de dados, excluindo os
indivíduos desconectados dos casos, foi utilizada uma amostra composta por 360
indivíduos, selecionados segundo a presença de relações verificáveis com outros indivíduos
da amostra70. Esses 360 selecionados são indivíduos com algum tipo de conexão relevante,
i.e., cuja ausência no interior do grupo criminoso causaria algum impacto ou cuja presença
impactaria no conjunto da rede. Por exemplo, um líder de alguma micro-rede, como um
traficante secundário poderia facilmente ser substituído por outro indivíduo, ao contrário de
um indivíduo que chamarei de “ponte”71 cuja ausência do grupo abalaria a estrutura das
relações e impediria que determinadas atividades fossem realizadas com sucesso, por
exemplo, um grande traficante ou policial responsável pelo abastecimento de uma rede de
distribuição de cocaína numa determinada localidade.
Esses 360 indivíduos selecionados mostraram ter relações emblemáticas e são
representativos dos casos selecionados para o presente estudo, uma vez que ocupam postos
de poder, ostentam relações baseadas na confiança, lançam mão do oportunismo, exercem o
controle social em territórios específicos, fazem uso de sistemas de alinhamento de
interesses, de seleção de fornecedores, etc. Em análise de redes esses indivíduos ocupam
70
O conjunto desses 360 indivíduos que compõem a amostra dessa pesquisa teve suas informações sobre
relações estabelecidas com outros indivíduos investigados pela CPI confirmadas através de outras fontes
como os depoimentos da CPI do Roubo de Cargas e a mídia impressa. Optei por não redesenhar a rede de
todos os indivíduos investigados pela CPI do Narcotráfico por se tratar de um universo com mais de um mil
indivíduos cujas relações não puderam ser confirmadas em sua totalidade. Além disso, muitos desses
indivíduos ora constam do relatório, ora constam na mídia e as informações nas duas fontes não são coerentes.
Por essas razões, fez-se necessário o levantamento de uma amostragem para a completude do presente estudo.
71
Esse ponto ficará mais claro quando estudarmos o caso São Paulo e observarmos a presença de um exdelegado envolvido com o narcotráfico e o crime de roubo de cargas.
138
uma posição estrutural e relacional ímpar que possibilita que participem de uma rede sólida,
constituída a partir de relações concretas, da mesma forma como também podem participar
de organizações difusas, atemporais e informais, dependendo dos “negócios” realizados e
dos mercados acionados. Dimensionar estas propriedades permite compreender quais são
os modelos, posicionamento estrutural e relacional adotados pelo crime organizado a partir
dos dados da CPI.
CONCLUSÃO DO CAPÍTULO
O presente capítulo tratou das bases metodológicas e de ferramentas utilizadas nesta
pesquisa, começando pela Grounded Theory, uso do NVivo como software utilizado para a
realização de análise de conteúdo, somadas às análises e visualizações de rede.
Para alcançar essa construção metodológica partí das necessidades analíticas que a
própria fonte de dados (o relatório da CPI do Narcotráfico) apresentou: tratava-se de um
texto longo, com muitos vieses (tal como mostrado no capítulo anterior) e que exigia uma
ferramenta de leitura e organização capaz de dar conta de suas mais de 1200 páginas. Para
tanto, comecei realizando uma análise exploratória utilizando-me de alguns recursos da
Grounded Theory, logo, passei a utilizar o software NVivo para sistematizar e melhor
organizar a compreensão daquilo que vinha estudando.
Sem perder tempo, percebi que boa parte das informações contidas no relatório
poderiam ser sistematizadas em modelos organizacionais, por isso, lancei mão das
ferramentas de análises de redes.
Para tornar a análise mais confiável, equalizei a amostra desprezando os indivíduos
que prestaram depoimentos e que não tinham qualquer ligação direta com os casos
investigados, com isso, pude repetir o procedimento utilizando a Grounded Theory, NVivo
e análise de redes.
Esse capítulo remonta essa trajetória e dá pistas e definições importantes sobre
como algumas dessas ferramentas e métodos foram utilizados, bem como define conceitoschave que serão utilizados ao longo das análises realizadas nos próximos capítulos.
Também aponta para a necessidade do uso de “triangulações” e a combinação de variados
139
métodos e ferramentas de pesquisa de modo a melhor abordar o objeto estudado, cercandoo por diferentes frentes.
140
CAPÍTULO VI
ENTRE POLÍTICOS, EMPRESÁRIOS E “BANDIDOS”: A ANÁLISE
DOS CASOS
Na presente seção serão discutidos, sob a perspectiva da Grounded Theory e
Análise de Redes, seis casos da CPI do Narcotráfico. Nessa análise, procurei observar as
formas de organização, bem como o conteúdo que as orienta pois, partindo de um dos
princípios básicos de Simmel sobre esse assunto, as formas e os conteúdos nos ajudam a
alcançar a objetivação de tudo aquilo que existe nos indivíduos, ou seja, seus instintos, suas
motivações, desejos, interesses, elementos que, juntos, caminham para a ação social, para
as interações, para a sociação e por fim, constituem a vida. Interessa-me portanto, entender
a vida criminal in situ, para perceber como as características do crime organizado se
manifestam, ou seja, como os laços de parentesco e de amizade se cruzam com a mitologia
original criada entorno das organizações criminosas, com as intersecções familiares, com o
uso da violência e de outros mecanismos para a manutenção do grupo.
Seguindo o fio da meada introduzido nos capítulos anteriores, destacarei duas
categorias de análise (indivíduos e mercados) sobre as quais aprofundarei no capítulo
subsequente.
CONSTRUÇÃO DA AMOSTRA DOS CASOS ILUSTRATIVOS DA CPI DO
NARCOTRÁFICO
Dos 25 casos investigados pela CPI do Narcotráfico, foram selecionados seis casos
considerados os mais emblemáticos sobre o crime organizado por conterem traços
heterogêneos e significativos a respeito dos fatos e crimes investigados pela CPI. São casos
que relatam a importância e o envolvimento de diferentes mercados criminosos com o
crime organizado. Nesses casos, também são abordadas particularidades decorrentes da
presença (e da ausência) de representantes do Estado, distinções sobre a formação regional
e política do estado estudado, além de se tratarem de exemplares selecionados também pela
141
disponibilidade de informações integrais captadas através da transcrição das audições e
depoimentos prestados.
Em linhas gerais, esses casos versam sobre flagrantes de narcotráfico internacional,
roubo de cargas, tráfico de influências, lavagem de dinheiro, jogo do bicho, pistolagens,
etc., a partir das quais as atividades das quadrilhas revelam uma dinâmica que, acredito,
esboçam características típicas do crime organizado brasileiro (ZALUAR, 2007;
MINGARDI, 1998). Nessa trama, indivíduos e formas de organização despontam como
categorias sob as quais o Estado e o mercado exercem pesos relativos e tomam posições
estratégicas.
Para reconstruir as tramas dos casos selecionados o ponto de partida é a pista
deixada por Enzensberger (1967, p. 08/09) que procura mostrar que um exemplo de crime
fala mais do que sua definição canônica:
Um crime é, por exemplo, um assassinato. A frequência desta resposta não
fornece nenhuma relação com as estatísticas de criminalidade, onde crimes
completamente diferentes desempenham papéis principais. Embora relativamente
raro, o assassinato, na consciência popular, ocupa uma posição chave. É através
de seu exemplo, que começamos a escapar da captura o que é um crime.
Diz o autor que, uma vez tomado um exemplo, descrevendo-o e desconstruindo-o
somos capazes, dentre outras facetas analíticas, de perceber como forma e conteúdo
(SIMMEL, 1983) se misturam e se confundem para formar os modelos analíticos
(WEBER, 1982) preciosos a essa perspectiva de análise.
ANÁLISE RELACIONAL
Para compor o desenho analítico deste capítulo, não posso deixar de mencionar o
uso das análises relacionais como recurso metodológico utilizado na análise de redes. Já
comentei na seção Metodologia o que vem a ser as análises de rede e sua importância para
o que se pretende aqui, por isso, aqueles que já conhecem extensamente o assunto, podem
seguir direto para o estudo dos casos. Todavia, gostaria de retomar rapidamente o assunto
das relações para introduzir a importância do tema do conteúdo existente por trás das
142
relações que, muitas vezes é negligenciado em alguns estudos da análise de redes e que será
aqui aprofundado no decorrer do exame dos casos.
Uma rede de relações sociais pode ser descrita como uma representação cuja
estrutura é composta por pessoas ou organizações, conectadas por um ou vários tipos de
relações (HANNERZ, 1980), que partilham (ou não) objetivos comuns. Ela modela
diversas dimensões ou atributos das relações sociais através de um sistema de nodos72
conectados por ligações. Cada nodo pode representar alguém ou alguma coisa e suas
ligações podem ser relações sociais, transações comerciais, relações de parentesco, etc.
(NAÍM, 2005).
Os estudos sobre redes relacionais aplicados ao cenário criminal variam dentro de
alguns temas, tais como o tipo de relação e o papel que esta exerce na organização. Nesse
sentido, alguns trabalhos como o de Von Lampe (2003) e alguns estudos sobre a máfia,
acabam por abordar o peso destas relações qualificando-as. Assim, elas variam dentro um
espectro que vão de relações fortes como o parentesco e amizade, por exemplo, às relações
fracas, registradas no leque das associações fugazes e momentâneas. Todavia, o que mais
interessa ao citado pesquisador preocupado com os tipos de relações é o “cimento”, ou seja,
aquilo que consolida as relações e que existe por trás desses encontros e desencontros entre
os indivíduos, que são, por exemplo, a confiança estabelecida entre os criminosos.
Von Lampe (2003) ainda assinala que, na base de qualquer relação, seja ela
criminosa ou não, impera um conjunto de normas e regras entre os atores que integram a
organização e que devem ser observadas, uma vez que são elas as responsáveis pelo suporte
às atividades ilegais realizadas. Uma dessas regras básicas é a experiência dos laços de
confiança cuja noção é utilizada para explicar a predisposição e a capacidade de cooperação
existente entre organizações criminais. Essas análises apontaram a existência de quatro
tipos básicos de confiança em meio criminoso: a) confiança no indivíduo – ou relações
pessoais entre sujeitos; b) confiança baseada na reputação que o sujeito adquire frente a um
determinado grupo; c) confiança genérica – que é a confiança adquirida dentro do grupo,
por exemplo, a confiança que os membros de um grupo mafioso têm entre eles e, d)
confiança gerada a partir de sistemas abstratos ou em sistemas exteriores ao indivíduo –
72
Para saber mais sobre os nodos, consulte o capítulo sobre Metodologia.
143
como exemplo é possível citar a confiança nos sistemas bancários, sistemas de saúde, etc.
A confiança dos grupos criminais nos sistemas abstratos baseia-se na forma pela qual estes
independem dos desejos dos indivíduos para estabelecerem uma ordem, se manter e se
consolidar. Um bom exemplo de confiança nos sistemas abstratos está na lavagem de
dinheiro através de contas bancárias localizadas em “paraísos fiscais”.
Esses quatro tipo de relações de confiança são interessantes para a presente pesquisa
pois variam conforme a necessidade e o momento e podem ser observadas uma vez que a
rede de relações que os indivíduos estabelecem permeia todos os casos aqui estudados e é
um reflexo da confiança que depositam uns nos outros - ela ajuda a tornar claro os diversos
mecanismos existentes no relacionamento entre os atores econômicos e a tipologia das
organizações criminais – é por essa via que a presente tese irá reconstruir e analisar as
relações estabelecidas pelos indivíduos investigados.
A confiança não é condição sine qua non para que a cooperação possa existir, em
casos, por exemplo, aonde uma das partes não tem escolha senão cooperar ou aonde o risco
causado pela cooperação é baixo ou minimizado por outros sujeitos “confiáveis”, a
cooperação, nesses casos é realizada mesmo na ausência da confiança.
De maneira geral, o custo de transações de atividades, grupos, redes ou mercados
ilegais está ligado ao grau de confiança existente nas relações estabelecidas entre os
envolvidos, grau que depende igualmente dos princípios de comportamento individual dos
mesmos, tal como a racionalidade e o oportunismo que produzem um risco existente em
qualquer tipo de relação.
Um exemplo de como a confiança é um elemento central das redes criminais, é
encontrado em Centeno e Portes (2003) quando analisam como a economia informal se
apoia na confiança produzida por redes pessoais acionadas em detrimento de instituições
que se alimentam e se nutrem da provisão de condições necessárias para a efetivação de
contratos impessoais.
Obviamente, não se trata de negar a existência de enraizamento no interior de
atividades econômicas ilegais, mas, de reconhecer que a forma pela qual as redes criminais
ou ilegais são geralmente construídas, i.e., baseadas em relacionamentos pessoais que
acabam por sedimentar a importância dos contratos edificados com base na pessoalidade.
144
No interior das redes criminais, a confiança se destaca como o cimento a partir do
qual as demais conexões são acionadas. As relações estabelecidas no interior da máfia são
um bom exemplo disso: Diego Gambetta (1993) estudou a máfia siciliana e mostrou como
uma série de rituais e gestuais utilizados pelos mafiosos apontam para a existência da
confiança nas relações estabelecidas entre eles. O mesmo é verificado em alguns dos casos
investigados pela CPI do Narcotráfico, como o caso FAB, por exemplo, aonde as relações
variam de laços de amizade e laços familiares até “parcerias comerciais” eventuais. Já no
caso Acre, as relações variavam dos laços familiares à adoção (e reprodução) do
corporativismo da Polícia Militar local. Através do corporativismo essas duas organizações
reproduzem seus ritos e mitos.
Todavia, Waarden (1992) aponta para a existência de outras esferas que devem ser
consideradas na hora de analisar as relações estabelecidas entre os indivíduos: 1) o número
e o tipo de indivíduos; 2) a função da rede; 3) a estrutura da rede; 4) a institucionalização;
5) as regras de conduta; 6) as relações de poder e, 7) as estratégias dos atores. Essas são
características igualmente importantes na hora de classificar e entender as relações
estabelecidas no interior de uma organização.
Cada uma dessas dimensões expõe e ajuda a melhor compreender a função do
sujeito no interior da organização e sobretudo, a relação entre ele e o restante da mesma. O
tamanho, os limites da rede (restrita ou acessível), a estrutura das conexões (caótica ou
ordenada), e intensidade ou força da relação (frequência e duração da interação), a
densidade, simetria ou reciprocidade da interconexão, os tipo de coordenação, a
centralidade, a natureza das relações (conflita ou cooperativa), etc., são algumas das
dimensões secundárias que serão levadas em conta neste capítulo para entender as relações
estabelecidas nos casos investigados.
ANÁLISE DOS MERCADOS CRIMINAIS ACIONADOS
Uma forma de ver o enraizamento do crime no interior dos mercados ilegais
acionados nos casos investigados pela CPI é proposta a partir da teoria de nichos de
mercado desenvolvida por Harrison White (1981). O autor mostrou que o mercado é um
145
tipo de estrutura social que se reproduz e se mantém ao longo do tempo mesmo no cenário
criminoso. Para tanto, formulou a teoria dos mercados produtivos como conjuntos de
empresas que partilham certas percepções e que são vistas por terceiros como um grupo.
Nessa teoria as empresas honram compromissos de acordo com o volume da produção e do
preço da mercadoria, variável de acordo com outras empresas que eles consideram integrar
o mesmo mercado. É através da observação recíproca entre empresas que as mesmas
localizam e se constituem como um nicho específico para seus produtos no mercado.
Quando orientou o trabalho de tese de um dos precursores dos estudos de análise de
redes sociais, Mark Granovetter, White sustentava a tese de que, no nicho de mercados, os
preços são compostos a partir das relações entre os produtores e não pelo “regateio” entre
os consumidores ou pelo equilíbrio entre oferta e procura. Anos mais tarde, mas ainda
seguindo essas premissas, White, criou os black models ou modelos nos quais a força das
relações novamente induzia a formação de nichos a partir das preferencias relacionais dos
indivíduos (ou seja, as relações são baseadas em gostos e em padrões institucionais e
delimitadas por estes).
Anos mais tarde, baseando-se nessas pistas deixadas por White, Granovetter (1994)
então levou adiante estudos sobre grupos de negócios e, sobre a abordagem dos mercados
como sendo resultado da organização de certos atores e não de seu contato efêmero numa
instância ocasional. A partir daí, celebrizou a expressão "força dos laços fracos", mostrando
como o mercado de trabalho funciona com base em relações que em nada se assemelham à
neutralidade impessoal do mercado neoclássico.
Como mostrado no capítulo V, a importância dos laços fracos é que eles abrem
oportunidades para a incorporação de novas ideias no interior do grupo. O argumento é de
que os contatos distantes (laços fracos) ampliam a rede de indivíduos conhecidos no grupo
e isso contribui com novos conhecimentos e oportunidades para o grupo. Os laços fracos
são o inverso dos laços fortes aonde estão presentes os contratos de confiança estabelecidos
entre os indivíduos; paradoxalmente, de um lado, os laços fortes ao mesmo tempo que
impedem que a confiança seja abalada, de outro potencializam a possibilidade de
fragmentação e concentração social no interior do grupo.
146
As premissas dos nichos de mercado e das forças dos laços fracos serão melhor
examinadas nos casos Acre e São Paulo, aonde a presença de empresários garante a
constituição de um mercado da droga no primeiro caso e do mercado do roubo de cargas no
segundo e consolidam em nichos cujos diferenciais estão justamente na participação de
segmentos não criminosos em suas bases, ampliando as possibilidades de associação,
legitimando-os e consolidando-os.
CASOS
Os 25 casos examinados pela CPI do Narcotráfico abordam o crime do tráfico de
drogas associado a diferentes outros mercados criminais, como as quadrilhas especializadas
em homicídios, corrupção de agentes de altas esferas do Estado, lavagem de dinheiro,
roubo de cargas, tráfico de armas, etc.
Um breve resumo de cada um desses casos está descriminado na tabela abaixo. Ela
dá uma visão geral do relatório da CPI e permite compreender porquê os casos FAB, Acre,
Alagoas, Espírito Santo, Rio de Janeiro e São Paulo foram os escolhidos e contemplados na
presente pesquisa.
TABELA 5: Resumo dos casos da CPI do Narcotráfico, crimes contemplados e perfil dos
indivíduos:
RESUMO DO CASO
CRIMES
ATIVIDADE
CASO
CONTEMPLA
DOS
1. CASO FAB
2. ACRE
Trata do envolvimento de alguns oficiais da Força Aérea
Brasileira com o tráfico de drogas internacional e a
formação de quadrilha em um esquema de envio de drogas
para a Espanha através de aeronaves da FAB. Foram
levantadas irregularidades em procedimentos de transporte
de carga realizados no interior da organização, tal como o
transporte de pequenas mercadorias em nome de uma
“amizade”, e a prática de “troca de favores” entre amigos e
familiares de oficiais no que concerne a utilização dos
serviços do Correio Aéreo Nacional .
Durante anos a família Pascoal dominou um grande grupo
da PM acreana utilizando-o para a criminalidade. O mito
sobre a família Pascoal foi fortalecido quando na década de
80, eles mataram um médico do Exército e foram
absolvidos. Esse mito de que enfrentavam o Exército, gerou
no povo, a concepção de que tinham poder. Relata-se que na
147
tráfico
internacional
de drogas
tráfico
drogas
homicídios
corrupção
de
OU
PROFISSÃO
DOS
INDIVÍDUOS
ENVOLVIDO
S
Oficiais
da
FAB
Empresários
Ex policial
traficantes
Policiais
militares
Políticos
Empresários
Traficantes
3. ALAGOAS
4. AMAPÁ
5. BAHIA
6. CEARÁ
7. ESPÍRITO
SANTO
época de eleição, as pessoas eram coagidas a votar em
Hildebrando Pascoal.
Houve um outro fato impune que gerou toda a audácia da
família: quando Hildebrando Pascoal, se envolveu num
tiroteio no meio da rua com um Policial Civil, chegando
inclusive a correr atrás da pessoa baleada, que pegou um
ônibus, Hildebrando mandou o ônibus parar para que ele
entrasse e acabasse de matar. O inquérito foi arquivado. Daí
em diante, cadáveres apareceram mutilados no meio da rua,
mulheres e crianças foram sequestradas e autoridades
afrontadas.
Hildebrando tinha um “esquema” de trafico de drogas, com
parceiros no Rio, São Paulo, Brasília, Paraná, Espírito
Santo, transportando a droga vinda da Bolívia para Rio de
Janeiro, São Paulo, Parnaíba, Fortaleza e para o exterior.
A suspeita de envolvimento de pessoas do estado do
Alagoas com o crime organizado foi reforçada a partir do
depoimento do ex-motorista Jorge Meres. Na oportunidade,
ele apontou a existência de uma organização criminosa
com ramificações em vários estados do Brasil, envolvendo
empresários, políticos, magistrados e policiais, que estariam
ligados de forma direta ou indireta ao tráfico de drogas,
roubo de cargas, homicídios e outros crimes.
Foi relatada a existência do narcotráfico no Amapá, bem
como o crescimento do consumo de drogas e aumento no
número de prisões de traficantes nos últimos dez anos,
principalmente a partir de 1990.
É relatada a existência de um grupo de extermínio atuando
no município de Camaçari, com a participação de policias
militares. Sobre a ação do referido grupo existem graves
acusações de que este controlava o tráfico de drogas do
município utilizando os homicídios como forma de eliminar
grupos rivais e manter o controle do território. São relatados
os envolvimentos de serventuários da justiça e policiais civis
no esquema de favorecimento do esquema criminoso.
Foi possível apurar que a Bahia está na rota do narcotráfico
e que uma das formas da ação dos narcotraficantes no estado
se dá através da ação da quadrilha de roubos de cargas de
Vander Dorneles e seu cunhado de prenome Nivaldo um dos
braços de William Sozza. O depoimento de Jorge Meres
identificou Nivaldo como parceiro de William Sozza (SP)
Levantou-se a evidencia da proliferação de investimentos
estrangeiros no Ceará, em especial provenientes da Itália.
São efetivados negócios de alto valor, resultando no
questionamento sobre a licitude destas operações, uma vez
que trata-se de organizações criminosas que utilizariam o
mercado imobiliário, através da compra e venda de
edifícios, hotéis e flats, na prática do crime de “Lavagem de
dinheiro”.
Relatou-se também o caso denominado “dólares falsos”, que
retrata a prisão em flagrante no Aeroporto Internacional de
São Paulo/Guarulhos de João Bosco Meneses de Castro,
Brian Keith Gomez e Martha Lucia Gomez Herrera,
portando em
suas malas (João e Brian) cerca de
US$1.400.000,00 em moeda falsa e Francisco Antônio
Almeida Da Silva que portava US$1.000.000,00 em moeda
falsa preso no Aeroporto Internacional de Foz do Iguaçu.
Foram relatados diversos casos de homicídios no qual os
executores desses extermínios pertenciam a uma associação
denominada Scuderie Le Cocq envolvendo os Políticos
como o Deputado ex Presidente da Assembleia Legislativa,
Sr. José Carlos Gratz, o Ministro da Defesa, Sr. Élcio
Álvares, o Prefeito de Cariacica, Sr. Dejair Camata, o
Deputado Gilson Gomes, o Vereador José Coimbra e o
Delegado Cláudio Guerra.
A associação dos extermínios com a Scuderie e o
148
Pistoleiros
lavagem
dinheiro
tráfico
drogas
roubo
cargas
homicídios
tráfico
drogas
homicídios
tráfico
drogas
roubo
cargas
corrupção
de
de
Políticos
Empresários
Doleiros
de
de
de
de
Traficantes
Pistoleiros
Empresários
Pistoleiros
Policiais civis e
militares
Agentes
do
Estado
Traficantes
Ladrões
de
cargas
lavagem
de
dinheiro
tráfico
de
moeda falsa
Empresários
Máfia italiana
homicídios
tráfico
drogas
Políticos
Empresários
Policiais civis e
militares
Juízes
Bicheiros
Traficantes
de
8. GOIÁS
9. MARANHÃO
10. MATO
GROSSO
11. MATO
GROSSO
DO SUL
12. MINAS
GERAIS
13. PARÁ
Narcotráfico, residia no fato de que vários dos acusados,
membros da Scuderie, terem sido presos com grandes
quantidades de cocaína, a exemplo dos ex-soldados da PM
Luiz Cláudio e Paulo Jorge. Aqueles que cometeram crimes
eram da Scuderie Detetive Le Cocq, e quem apurava
também pertencia a Le Cocq, sendo fato que em alguns
casos, os autos eram encaminhados para Promotores e
Juízes da Scuderie Le Cocq, acarretando assim, a completa
impunidade dos criminosos.
Trata-se das acusações formuladas contra dois Juízes em
atividade e os magistrados aposentados Érico Antônio de
Azevedo e Jurandir Inácio Moreira pela venda de habeas
corpus para traficantes de drogas, que cumpriam pena em
outros estados e após serem transferidos para a jurisdição
desses magistrados foram postos em liberdade sem terem
cumprido o mínimo legal da pena, até mesmo em tempo
recorde como 24 hs após a chegada ao Estado de Goiás.
Foram denunciados como intermediários no esquema de
liberação dos traficantes os advogados Semy Hungria
Pereira, Vivaldo Alves Batista, Palmestron Francisco
Cabral, Mamhud Ahmad Sara e Sandra Mara Barreto de
Souza.
A maior parte das atividades do crime organizado
verificadas no Maranhão estavam no roubo de cargas e
carretas – eventualmente trocadas por drogas que eram
encaminhadas ao Maranhão ou a Campinas – e na prática de
homicídios para manutenção do território.
A CPI procurou entender os problemas vividos pela
população do Mato Grosso, investigando como ocorria o
tráfico, por onde entravam as drogas, quem eram os maiores
produtores e traficantes e quem eram os maiores
colaboradores com o narcotráfico. Existiam denuncias de
concessão de benefícios de progressão de regime dado a
alguns presos de alta periculosidade e traficantes de cocaína.
Durante as diligências ao Mato Grosso do Sul, ficou
comprovada a ligação da Família Morel com o tráfico
internacional de drogas. Esta família foi citada nos
depoimentos de testemunhas e pessoas acusadas de
participação no narcotráfico e crime organizado,
concluindo-se que o cartel Morel fora responsável pela
venda de 60% da maconha que era consumida no Rio de
Janeiro e deu proteção ao traficante Fernandinho Beira-Mar,
quando este esteve foragido no Paraguai.
A testemunha Laércio da Cunha acusou o empresário do
ramo de automóveis Paulo César Mota Santiago de ser
traficante de drogas e de “lavar” o dinheiro do traficante
Fernandinho Beira Mar. Disse que a droga chegava até
Montes Claros/MG nos aviões do empresário Paulo César,
não sabendo informar de onde vinha e nem o local exato em
que os aviões pousavam na cidade, no Aeroporto Municipal
ou na fazenda do empresário, e que após o desembarque, as
drogas seguiam em carros pequenos, geralmente com uma
pessoa só para não chamar a atenção da Polícia, para o Rio
de Janeiro e nordeste do Brasil. Além disso, Fernandinho
Beira Mar financiou a campanha do Deputado Estadual
Arlen Santiago, irmão de Paulo César.
A apuração dos fatos no Pará se deu a partir de um trabalho
desenvolvido pela Superintendência de Polícia Federal no
Estado, que havia descoberto três grandes organizações
criminosas que se utilizavam de pistas de pouso no estado
para trazer a droga da Colômbia, movimentando a partir daí
suas conexões com o exterior para fornecimento dos Estados
Unidos, Europa, Japão – e para troca por armas no
Suriname.
No decorrer dos trabalhos foram recebidas as denúncias
contra diversos políticos e funcionários de prefeituras do
estado que estariam fazendo lavagem de dinheiro através de
149
Advogados
Pistoleiros
corrupção
lavagem
dinheiro
de
Juízes
Traficantes
Policiais
militares
Advogados
Empresários
roubo
cargas
homicídios
de
tráfico
drogas
corrupção
de
tráfico
drogas
de
Traficantes
tráfico
drogas
de
Empresários
Traficantes
Políticos
tráfico
drogas
lavagem
dinheiro
de
Traficantes
Empresários
de
Ladrões
de
cargas
Pistoleiros
Traficantes
Traficantes
Juízes
14. PARANÁ
15. PERNAMBU
CO
16. PIAUÍ
17. RIO DE
JANEIRO
negociações com empresas-fantasmas. O caso mais sólido
aconteceu em São Félix do Xingu.
As audiências em Curitiba resultaram na identificação da
seguinte situação: envolvimento da alta cúpula da Secretaria
de Segurança Pública do Estado e da Polícia Civil no tráfico
de drogas e no roubo e desmanche de carros, além de
ligações com extorsões, achaque, tortura, enriquecimento
ilícito, entre outros. Os personagens centrais, foram: o exDelegado-Geral da Polícia Civil, Dr. João Ricardo Keppes
de Noronha e o ex-Delegado-Chefe do COPE (Centro de
Operações Policiais Especiais) Dr. Mário Ramos. Eles
tinham ligações diretas, recebendo propina mensal, com
dois acusados de participar do esquema de roubo de carros e
desmanche, juntamente com o narcotráfico, Paulo Mandelli
e Juarez Costa França (vulgo “Caboclinho” ou “Kadu”).
Estes policiais faziam “vistas grossas” à passagem da droga.
O estado se caracterizou por ser rota de passagem, sobretudo
através de Foz do Iguaçu e Guaíra, cidades fronteiriças, em
rotas que se ligavam a São Paulo e Rio de Janeiro. A
lavagem de dinheiro no estado também foi constatada: Foz
do Iguaçu foi levantada como a terceira cidade neste tipo de
procedimento no país, ficando atrás apenas de São Paulo e
Rio de Janeiro.
No estado de Pernambuco foi reconhecida a existência do
comércio de drogas no chamado “quadrilátero da maconha”,
conhecida região do semi-árido nordestino. Esta área era
conhecida pela produção de “maconha”, para consumo em
outras regiões do país.
As denúncias no Piauí relataram o envolvimento do Coronel
PM Viriato Correia Lima com o homicídio do policial
Leandro Safonelli, ocorrido em Parnaíba. O Delegado Arias
Filho, encarregado das investigações, também foi
assassinado na porta da Secretaria de Segurança, e o
assassinato de Zé Quelé, a mando do Coronel Correia Lima,
após a contratação de seguro de vida no valor de R$
376.000,00 (R$ 600.000,00 à época da CPI).
O
caso
Rio
de
Janeiro
apresentou
diversos
desmembramentos. Os principais foram:
1.A quebra do sigilo bancário do traficante Fernandinho
Beira Mar e de 66 pessoas e empresas acusadas de
ligações com ele, mostraram que foram movimentados
entre 1995 a 1998 16.950 milhões de reais, sendo que
mais de 90% desse total era incompatível com as
declarações de rendas apresentadas. Os depositantes de
cerca de 85% do valor total, o equivalente a 13.670
milhões de reais não foram identificados. No caso dos
principais doleiros de Beira-Mar, Omar Ayoub e Khaled
Aragi, mais de 95% dos depósitos não foram
identificados. O esquema de lavagem de dinheiro passava
pelos mesmos bancos paraguaios usados pela empresa
administrada pelos doleiros INCAL-OK para desviar
recursos do TRT/SP. A empresa La Siesta, paraguaia,
apareceu na maioria das contas dos cúmplices de BeiraMar. A droga saia da Colômbia e Bolívia e seguia para
Pedro Juan Cabalero e Capitan Bado e de lá a Coronel
Sapucaia/MS e Ponta Porã/MS e de lá era distribuída para
Minas Gerais, São Paulo, Rio de Janeiro e Espirito Santo.
Em depoimento reservado no Espírito Santo foi
denunciado que Beira-Mar comandava esquema ultra
sofisticado de tráfico internacional que consistia na
remessa de grandes quantidades de cocaína que eram
jogadas ao mar por aviões em tonéis, e recolhidos por
iates que conduziam a droga diretamente a navios em alto
mar e de lá seguia para EUA e Europa. Beira-Mar
também fornecia armas para os guerrilheiros da FARCs
em troca de apoio estratégico e logístico para enviar sua
cocaína para fora do Brasil. As armas chegavam à
150
tráfico
drogas
roubos
desmanche
carros
homicídios
lavagem
dinheiro
tráfico
drogas
de
e
de
Policiais civis
Traficantes
Ladrões
de
carros
Doleiros
de
de
Traficantes
homicídios
Pistoleiros
Policiais
militares
Políticos
tráfico
de
drogas
homicídios
lavagem
de
dinheiro
corrupção
transformação
de
aviões
utilizados
no
tráfico
Traficantes
Doleiros
Empresários
Políticos
Juízes
18. RIO
GRANDE
DO SUL
19. SÃO PAULO
Colômbia via Suriname. Beira Mar também foi apontado
como sócio dos traficantes internacionais da Família
Morel (MS), Irineu Soligo (RS), Lila Mirtha Ibañes
(FAB) e John Michael White (FAB) denunciados em
outros casos.
2.Relatou-se o envolvimento da Juíza aposentada Valdeci
Lopes Pinheiro com narcotraficantes baseados no Morro
do Cavalão em Niterói/RJ, e em Miracema/RJ. Essa
suposta ligação depreendeu-se do fato da Juíza ter sido
empregadora do Sr. Manoel Antônio Silva, que foi seu
motorista por um período de cinco anos, tendo o mesmo
sido preso na chácara do traficante Antônio Gonçalves
dos Santos, vulgo Tony.
3.Relato do esquema de adulteração de aeronaves: consistia
em buscar na Bolívia aeronaves furtadas no Brasil, trazêlas para Atibaia e “adulterá-las” em um hangar para
posterior comercialização ou utilização para transporte de
entorpecentes, como a troca de prefixos, a legalização de
documentos, a ampliação de tanques, a criação de
compartimentos secretos.
O trafico no território gaúcho começou a ser investigado
com a maconha que saía do Paraguai, e a cocaína da Bolívia
e da Colômbia. Como fornecedores, destacaram-se Irineu
Soligo, vulgo “Pingo”, Nei Machado e João Morel. A droga
chegava ao estado, principalmente, por avião e era
arremessada em tambores de leite, em lugares previamente
estabelecidos. O papel de Irineu Soligo nessa rota era
fundamental: ele buscava a droga na Bolívia e distribuia
para o Rio Grande do Sul, fazendo do estado um dos
maiores mercados de consumo e de distribuição do país
através de Beira Mar.
Um dos meios de financiamento do narcotráfico, no Rio
Grande do Sul era o tráfico de armas. Nesse caso, o caminho
feito pelos traficantes parecia ser o inverso. As armas
passavam pelo Estado, provenientes, principalmente, do
Uruguai e seguiam até o Paraguai, para depois ser usada
como moeda de troca na compra de drogas, na Bolívia e na
Colômbia. Outro expediente usado para garantir recursos ao
tráfico de drogas era o roubo de cargas e caminhões. A
carga roubada era sempre valiosa e com mercado constante,
sendo rapidamente convertida em dinheiro para ser usada na
compra de drogas. Já o caminhão roubado tinha preço certo,
principalmente, na Bolívia, onde era moeda de primeira
linha na troca por cocaína.
A cocaína distribuída no estado era muitas vezes importada
em consignação e procedente da Bolívia e Colômbia.
Entrava no Brasil pelas fronteiras secas dos estados do Mato
Grosso, Mato Grosso do Sul e Paraná ou por avião
diretamente para os estados de São Paulo e Paraná. Eram
usados aviões de pequeno porte, monomotor ou bimotor,
adaptados com tanques sobressalentes, a fim de dar maior
autonomia para as aeronaves, permitindo travessias de longa
distância. Quando a droga vinha da Colômbia, passava
sempre pelo Amazonas, fazendo escala em Mato Grosso
para chegar ao estado de São Paulo. Já, através da Bolívia
ela podia percorrer diversos caminhos: ora entrando no
Mato Grosso do Sul e chegando ao interior do estado de São
Paulo; ora vindo por cima do território Paraguaio, entrando
pelo Paraná e chegando ao estado de São Paulo.
Dentro do estado de São Paulo a droga era descarregada em
pistas de pouso clandestinas ou despejada em canaviais,
geralmente, na região de Presidente Prudente (Rota Caipira)
e, a partir daí, seguia para as regiões onde estavam os
maiores focos do narcotráfico, tais como: 1) região de
Presidente Venceslau, Presidente Prudente e Marília; 2)
depois a região de São José do Rio Preto, Catanduva,
Votuporanga, Jales, Fernandópolis; 3) a região de Ribeirão
151
tráfico
drogas
roubo
cargas
tráfico
drogas
roubo
cargas
de
de
de
de
Traficantes
Ladrões
de
cargas
e
caminhões
Empresários
Traficantes
Doleiros
Advogados
20. CAMPINAS/
SP
21. LAVAGEM
DE
DINHEIRO
22. CONEXÃO
AFRICANA
23. CONEXÃO
PARAGUAI
24. CONEXÃO
Preto, região de Sorocaba, Campinas, Atibaia, Capital; 4) a
região do Vale do Paraíba, São José dos Campos e, 5)
Baixada Santista e litoral norte.
Por via terrestre, a droga costumava chegar no estado de São
Paulo, através do Mato Grosso do Sul, proveniente da
Bolívia e da Colômbia, sempre com paradas no Mato
Grosso do Sul, para abastecimento de combustível. Os
traficantes usavam, normalmente, a Rodovia Anhanguera a
Rodovia Castelo Branco ou a Rodovia Fernão Dias para a
entrada da droga no Estado. Rodovias importantes do estado
cujas policias já se encontrava corrompida pelas propinas
pagas pelos traficantes para a liberação dos comboios e
carros que transportavam a droga quando a mesma chega na
região.
O roubo de cargas aparecia ligado ao narcotráfico. A
preferência dos assaltantes era por cargas de cigarros,
medicamentos, cosméticos, gêneros alimentícios, produtos
químicos, etc. Essa carga roubada, geralmente era vendida
para compra da droga ou mesmo para troca.
Com as denúncias feitas por Jorge Meres relacionando os
crimes praticados por criminosos no estado do Maranhão
com criminosos da cidade de Campinas, foram realizadas
investigações para descobrir quem era William Marques,
que seria o chefe da organização criminosa de Campinas,
envolvido com roubo e receptação de cargas e troca de
caminhões roubados por droga.
A CPI apurou que um elevado fluxo de dinheiro "sem
origem" foi canalizado para o sistema bancário nacional por
via de contas-correntes abertas em nomes de empresas de
"fachada", algumas com supostas sedes no exterior,
operadas por "laranjas", que permitiam o anonimato dos
verdadeiros titulares. Nesse esquema, os reais donos do
capital clandestino somente surgiam oficialmente na etapa
final do processo de limpeza, quando os ativos ilegais, após
sucessivas movimentações, misturavam-se aos negócios
regulares e transformavam-se em transações lícitas,
sobretudo nos mercados imobiliário e de capital. Através de
processo de engenharia financeira, eram realizadas
sucessivas operações bancárias, no circuito nacional e
internacional.
A partir de 1986 foram registradas ocorrências de nigerianos
que usavam o Brasil como base no tráfico da cocaína.
Inicialmente havia só a prisão esporádica de “mulas” com
pequenas quantidades da droga, principalmente nos
aeroportos do Rio de Janeiro e São Paulo. Daí seguiam por
rodovia para a fronteira com Bolívia e Colômbia, onde
adquiriam a droga, retornando aos aeroportos e daí indo
distribuí-la na Nigéria e outros países africanos e na Europa.
As organizações fornecedoras estavam baseadas em
Corumbá/MS, Ponta Porã/MS, Campo Grande/MS,
Dourados/MS, Cáceres/MT, Cuiabá/MT, Barra Do
Garça/MT, Campinas/SP, São Paulo/SP, Araçatuba/SP e
Salvador/BA. As atividades de traficantes nigerianos
estendiam-se a outros países da América do Sul,
principalmente aos produtores de cocaína, mas
frequentemente o Brasil fora utilizado como ponto de apoio
para as referidas transações. As autoridades inglesas e
italianas informaram que a Máfia italiana estaria utilizando
os nigerianos no transporte da droga, visando aumentar o
abastecimento na Europa.
A CPI apurou o envolvimento de Beira Mar no Paraguai e o
possível envolvimento deste com o ex presidente paraguaio
Oviedo. Também levantou que aproximadamente 30 vôos
diários em pequenas aeronaves eram realizados entre Brasil
e Paraguai, sem qualquer controle.
A CPI descobriu uma rota internacional do trafico de
152
roubo
cargas
de
lavagem
dinheiro
de
Policiais civis
Ladrões
de
cargas
Doleiros
Advogados
Empresários
Doleiros
Empresários
tráfico
internacional
de drogas
Traficantes
Máfia italiana
tráfico
internacional
de drogas
Traficantes
tráfico
Traficantes
SURINAME
25. CONEXÃO
AMAPÁSURINAME
drogas: aviões saiam do Brasil, às vezes de São Miguel do
Araguaia/GO, às vezes de pistas clandestinas deste estado, e
do estado do Pará seguindo viagem até Barranco
Minas/Colômbia no vôo de sete horas e trinta minutos,
chegando à Colômbia, no início da noite. As aeronaves eram
carregadas com a droga e com mais gasolina que lhes davam
nova autonomia. Em seguida as aeronaves seguiam com
destino ao Suriname, vôo que perdura sete horas, onde a
carga de cocaína era deixada bem próximo a Paramaibo
(pista clandestina de Barranco Minas/Colômbia). Outras
vezes voavam do Brasil para o Suriname, levando ouro
contrabandeado, deixando o ouro no Suriname em troca de
armas, compradas pelo Exército do Suriname de fabricantes
internacionais, forjando furtos no quartel para venderem as
armas. Carregavam os aviões de armas, voltavam para o
Brasil e então rumavam para a Colômbia, vendiam as armas
às Farc em troca de cocaína para abastecer o mercado
brasileiro e para remessas ao exterior. Leonardo Dias
Mendonça, desde a época em que residia em Roraima,
coordenou e comandou um esquema de transporte de
cocaína que saía do Brasil (Fazenda Belauto/Pistas
clandestinas
sob
a
responsabilidade
de
Sílvio
Finotti/Fazenda do Osmar), chegava até a Colômbia, onde a
droga era carregada e seguia, às vezes para o Suriname e
Guiana Inglesa, às vezes para o Brasil (Buriticupu/MA,
Cocalinho/MT, Buriti/SP).
A Conexão Suriname interligava os estados do Amapá, Pará
e a Guiana Francesa. Além de Leonardo Dias Mendonça e
seu grupo foi apontada a existência de uma quadrilha
liderada pelo político Jorge Salomão. Foi remarcada a
utilização do território amapaense como rota de tráfico
internacional de entorpecentes e armas, acentuando
principalmente a utilização de pequenas embarcações por
sua região costeira; bem como o uso de helicópteros por
garimpeiros brasileiros, que transportariam entorpecentes
para o Suriname, retornando com armamento.
internacional
de drogas
tráfico
de
armas
Empresários
Politicos
tráfico
internacional
de drogas
tráfico
de
armas
Traficantes
FONTE: Relatório Final da CPI do Narcotráfico / Câmara dos Deputados.
A leitura preliminar do Relatório da CPI permitiu perceber a existência de interrelações entre os casos e a constituição de uma rede única que interliga alguns casos e isola
outros, conforme mostrado na Figura 6 que aponta no mapa do Brasil a posição ocupada
por cada um dos indivíduos investigados bem como a relação que estes estabelecem uns
com os outros. Por essa razão, alguns dos casos selecionados para análise fazem referência
a outros estados que não apenas ao investigado e permitem perceber a interconexão interregional, a qual aponta traços da força e dinâmica do crime organizado como difuso e que
não está restrito à um mercado apenas.
153
FIGURA 6: Mapa do Brasil com os casos apontados através das relações dos indivíduos
investigados:
FONTE: produzido pela pesquisadora.
Finalmente, é possível estabelecer que a escolha dos casos a serem investigados em
maior profundidade se baseou na heterogeneidade dos mesmos, na diversidade de áreas de
atuação dos diferentes mercados criminais investigados, na diversidade de localidades
envolvidas, nos diferentes formatos das organizações descritas em cada um desses casos e
na emblematicidade do caso quanto à sua repercussão na mídia da época. Para tanto, abro
minha análise com o caso FAB que contempla a atuação de uma rede especializada no
tráfico internacional de cocaína envolvendo oficiais da Força Aérea Brasileira. Sigo com a
análise de um dos diversos crimes investigados no estado do Rio de Janeiro, que é a
organização de Fernandinho Beira Mar, a qual apresenta uma lógica organizacional que,
como será demonstrado, aponta para um perfil organizacional particular.
154
O caso São Paulo esboçou contornos de uma organização criminosa especializada
no roubo de cargas e sua associação periférica com o tráfico de drogas e com a lavagem de
dinheiro. Tratou-se de uma falácia a especificidade desse caso se basear no roubo de cargas
e no tráfico interiorano de drogas no estado de São Paulo, como se não houvesse nem
tráfico de drogas, nem homicídios na capital paulista. Sigo então com o caso Acre que
apresentou uma situação típica dos estados que fazem fronteira com outros países na
América do Sul, sobretudo, países produtores de drogas como a cocaína e maconha. No
caso Acre foram apresentados contornos de um nível bastante primário do tráfico de
drogas, com o uso indiscriminado da violência para a delimitação de territórios criminais,
por exemplo. Além disso, trata-se de um caso que contemplou o envolvimento de policiais,
políticos e empresários no universo dos homicídios e do tráfico.
O caso Alagoas exemplifica uma terceira face do crime organizado, envolvendo a
especialização na lavagem de dinheiro e o envolvimento de políticos, o que conferia a essa
organização e a esse caso um alto grau de sofisticação em suas ações.
Por fim, fecho esse grupo de análises com o caso Espírito Santo que apresentou a
Scuderie Le Cocq como uma típica organização do crime organizado com estruturas que
avançavam para dentro do Estado através de seus agentes, associadas às outras
organizações especializadas no jogo do bicho e em homicídios qualificados. Por essa razão
é possível afirmar que trata-se de um caso que apresenta situações de “estado de fronteira”
como o caso Acre, com a ausência da presença do Estado sentida através de seus aparelhos
e agentes e o uso indiscriminado da violência para a consolidação territorial dos grupos
criminais.
Acredito que com esse seis casos, contemplo as diversidades dos casos investigados
pela CPI do Narcotráfico e posso oferecer ao leitor uma visão geral sobre formas e
conteúdos produzidos por diferentes estruturas e relações de poder observadas no interior
dos mesmos.
***
155
6.1 CASO FAB
O caso FAB investigou o envolvimento de oficiais da Força Aérea Brasileira (FAB)
com traficantes internacionais de drogas baseados na cidade do Rio de Janeiro. Para ilustrar
seus mecanismos de ação e organização, será registrada nas próximas páginas as
informações relativas às categorias acionadas, tais como: indivíduos, mercados criminais,
organização e tipos de relações estabelecidas (se de amizade, parentesco, confiança,
intimidação/coerção/uso da violência, cooptação, etc.) e que podem ajudar a melhor
entender esse caso.
Las Palmas, Espanha, 1999
Era início de 1999, um oficial da FAB - Luís Cezar e o empresário Roberto Zau
partiam para a Espanha à procura de “oportunidades de negócios” e, uma vez detectada,
Luís retornaria ao Brasil para se certificar que tudo sairia perfeito. Imediatamente Luís
entra em contato com seu irmão Paulo Sergio e o superior dele na FAB, Washington para
quem anuncia uma oportunidade de negócios na Espanha. Aparentemente, trata-se de um
festival de música, do qual Zau é produtor e Luís se encarregará da infraestrutura. Todavia,
o festival de música (que nunca aconteceu) é apenas a fachada para uma empreitada de uma
empresa fantasma envolvendo o tráfico internacional de cocaína.
Rio de Janeiro, Brasil, 1999
Em uma favela não identificada, um traficante de confiança de Washington e Zau
recebia um telefonema: deveria se encontrar com Washington - oficial da FAB -, e o expolicial Adilson Nunes (Gina) em uma lanchonete modesta localizada perto da base aérea
carioca.
O oficial Washington tinha um “negócio grande” e precisaria de cerca de 33kg de
cocaína pura para exportação. O traficante sabe aonde conseguir a droga e imediatamente
liga para seu “contato” 73 : uma empresária boliviana encarregada da “exportação” da
73
http://clipping.radiobras.gov.br/anteriores/1999/sinopses_0812.htm
156
cocaína para o Brasil, Lila Lopes. Rapidamente, Lila liga para sua irmã na Bolívia e
retransmite “o pedido”. Com isso, uma rede de negócios, motivada por desejo de ganho
fácil e baseada na confiança é rapidamente acionada.
Alguns dias depois, a droga chegava ao Rio de Janeiro camuflada em um caminhão
de uma conhecida transportadora brasileira. Seguia então para uma favela qualquer para ser
embalada em pequenos pacotes de presentes infantis com a estampa do Mickey e ser
acondicionada em uma mala.
Feito isso, o traficante avisa o ex-policial que a encomenda está pronta para ser
entregue: seria a vez do oficial da FAB, Washington organizar uma operação de transporte
aéreo com os irmãos Paulo e Luís que acionam seus contatos corporativos e utilizam um
dos meios de transporte menos evidentes: o Correio Aéreo Nacional (CAN). Paulo, que
também é oficial da FAB se encarregaria de despachar a mala através do CAN com destino
à Espanha.
Na semana da “entrega”, o ex-policial Gina liga para Luís e combina o dia e a hora
da entrega da mala.
Semana do transporte da droga do Brasil para Espanha
Luís, “representante” dos interesses de Roberto Zau no Brasil acompanha de perto o
embarque da droga. Enquanto isso, dois outros oficiais são cooptados e encarregados de
acompanhar a mala até Las Palmas, garantindo que ela chegue intacta ao seu destino.
Luís deixa a mala com os oficiais e pega um voo comercial para Las Palmas para
não despertar atenção para a operação e se prepara para se encontrar com o empresário
Roberto Zau na Espanha e se certificar que a entrega da mala foi bem realizada, que o
“negócio” foi concluído e ninguém traído.
Na Espanha, um taxista de confiança de Zau seria aquele que deveria retirar a mala
na base aérea e a entregar a Luís que ajudaria Zau na revenda do “produto”, caso a
operação não tivesse sido interceptada pela Polícia Federal – como aconteceu.
157
A lavagem do dinheiro da operação
Não se sabe ao certo quantas operações como esta foram realizadas antes do
flagrante. Tudo o que se tem notícia, é que uma vez de volta ao Brasil, Zau, Luís, Paulo e
Washington procurariam a empresária no ramo de investimentos imobiliários, Zalfa Nassar,
que se encarregaria da “lavagem” do dinheiro proveniente do negócio da droga.
O esposo de Zalfa é um traficante então preso nos EUA e, por isso, ela conhece bem
os tramites necessários à lavagem de dinheiro sujo.
De maneira geral, o caso FAB é peculiar por ser um dos poucos investigados pela
CPI do Narcotráfico onde o mercado abordado é única e exclusivamente o tráfico
(internacional) de drogas.
Análise das relações
No testemunho do Tenente Coronel da FAB - Paulo Sérgio - à CPI do Narcotráfico,
são destacadas as relações estabelecidas entre ele, seu irmão, o empresário Roberto Zau e o
traficante/ex-policial Gina. Elas apontam para três bases distintas: 1) os laços familiares
estabelecido entre os irmãos, 2) os laços de amizade estabelecidos entre Paulo e
Washington e 3) os laços de confiança estabelecidos entre todas as partes através de
Washington e Gina. O conteúdo dessas interações é marcado por diferentes motivações:
laços familiares, aonde a consanguinidade é o fundamento da relação; laços de amizade
entre dois indivíduos da mesma corporação, o que revela uma confiança corporativa
baseada, por sua vez, em ganhos financeiros; e os laços de confiança estabelecidos entre
Washington e Gina sustentados por motivações financeiras exclusivamente.
No mercado da droga, o papel da confiança e dos laços familiares merecem uma
atenção especial. Segundo os estudos de Gambetta (2000b) sobre a máfia siciliana, a
confiança encontra-se em um nível bastante particular de interação entre os indivíduos,
aonde são avaliados os comportamentos de um lado e de outro baseados na relação de
sangue existente entre os mesmos. Nesse contexto, a incerteza é quase que nula, porém para
que a confiança seja bem compreendida e instalada ela precisa estar, de alguma forma,
presente, mesmo que apenas na simples dúvida. Desta forma, a confiança só é relevante
aonde existe a possibilidade de que uma traição incorra a uma das partes.
158
No caso das redes do tráfico de drogas operacionalizada com a ajuda de oficiais da
FAB, por se tratar de um comércio ilegal, mesmo que haja laços de amizade, família e
confiança, não há qualquer regulamentação formal das atividades que garanta que o
parceiro cumprirá com a sua parte nos contratos. Ademais, a ausência da violência
intensifica a incerteza de que o acordo será cumprido pois a base para tais acordos está na
“palavra empenhada”, nas amizades e laços construídos através do tempo e da corporação.
Em caso de traição, o custo incorrerá apenas ao traidor, abalando a sua reputação entre seus
pares e fatalmente, excluindo-o de operações futuras. Portanto, trata-se aqui de um processo
marcado pelo não uso da violência para a resolução desse tipo de problema no interior do
grupo, diferentemente do que ocorre com a organização encabeçada por Hildebrando
Pascoal no Acre ou Gratz no Espírito Santo, como será mostrado mais adiante.
Não é apenas nos interesses que se fundamenta a cooperação nas relações de
crédito, mas também nos vínculos pessoais e nos valores morais compartilhados
que permitem ao indivíduo confiar no outro (GAMBETTA, 2000). Esta
modalidade desse comércio ilegal se constitui através de redes relacionais
baseadas nos laços de amizade entre os traficantes, e são reproduzidas
expectativas positivas em relação ao comportamento dos outros, tomando por
referência a crença no valor de amizade. (GRILLO, 2008, p. 35)
Traçando um paralelo com a máfia italiana, tem-se um exemplo de organização
baseada nos laços familiares que oferece “proteção” à indivíduos e organizações menores
que estejam sofrendo com problemas de desconfiança entre seus pares (GAMBETTA,
2000).
Evidentemente, a desconfiança, mesmo nas transações mercantis de bens e
serviços legais, é um forte indicador de mercado desregulado. Um dos fatores da
desconfiança (e portanto da desregulação) é a baixa expectativa de um
individualismo moral nas transações, ou o baixo desenvolvimento da autoregulação das paixões pelos interesses na sociedade (e, portanto, também no
interior do Estado e contra seu princípio ideal de soberania). (MISSE, 1999,
p. 55).
Além disso, a confiança e os laços familiares ou de amizade, considerados pelos
autores das análises de redes sociais como laços fortes (WASSERMAN e FAUST, 1999)
diz respeito não apenas à atividade criminosa, mas também ao universo social de origem
dos agentes – como no caso dos irmãos Paulo e Luís ou dos empresários Roberto Zau e
Zalfa – indivíduos oriundos de classes altas. Nesse sentido, o baixo uso da violência no
159
interior do grupo para manter a confiança são indicadores da existência de um certo
controle no interior do seleto grupo – o que está em jogo não é o dinheiro perdido apenas,
mas o status, a palavra empenhada e a possibilidade de ser banido do grupo.
Mesmo que na modernidade a confiança esteja deslocada dos ambientes de
interação e se assente cada vez mais sob sistemas abstratos, também chamados de “sistemas
peritos” (GIDDENS, 1991), tais sistemas, nem sempre podem ser tidos como
identificadores do que acontece na vida cotidiana dos mercados ilícitos – como o que
acontece na lavagem de dinheiro, por exemplo, por se tratar de um evento paralelo e de
suporte ao tráfico. A lavagem de dinheiro realizada por Zalfa, era baseada muitas vezes nos
investimentos imobiliários. Essa prática tradicional nos ajuda a entender a instalação dos
velhos hábitos de confiança mesmo nas relações sociais mais modernas e sofisticadas,
como as lavagens de dinheiro, algumas vezes realizadas por “especialistas” através de
contas bancárias no exterior.
O conceito de “risco” de Beck (2010) se encaixa bem nesse exemplo pois distingue
dois processos de modernização na história recente das sociedades: a primeira está ligada
ao processo de industrialização e “construção da sociedade de massas”, nela a família
exerce papel central – no caso da lavagem de dinheiro, estaria ligada às tradicionais práticas
de lavagem por investimentos imobiliários, a maioria das vezes realizadas em nome de
“laranjas” e pessoas da família do criminoso; a segunda modernização, Beck denominou
de “modernização reflexiva”, e está ligada à globalização e ao amplo desenvolvimento
tecnológico, colocando no centro da sociedade o indivíduo e não mais a família. É mais ou
menos isso o que fazem alguns especialistas em lavagem de dinheiro no exterior através de
contas abertas em paraísos fiscais. Nesse sentido, acrescenta Lopes Jr. (2009, p.57),
a centralidade do risco é diretamente proporcional à marginalidade do destino.
Na medida em que esta implica na pressuposição de um futuro pré-determinado,
mas desconhecido e fechado à colonização do presente, a confiança, cada vez
mais alicerçada em um conhecimento do mundo que se supõe racional, alimentase e nutre uma cultura do cálculo. E é o cálculo (base sobre a qual traçamos
prospectivamente os cenários futuros) que nos conduz à colonização do futuro.
E, na medida em que, com base em cenários prospectados, fazemos escolhas,
apostas e tomamos decisões coletivas ou individuais, confiança e risco tornam-se
cada vez mais importantes em nossas vidas.
Somando o pensamento de Beck ao de Giddens, alcanço a seguinte premissa: nos
160
mercados criminais a possibilidade do “desencaixe” e a “perda de controle das pessoas
sobre o espaço e o tempo locais” é baixíssima, uma vez que estão fadados aos velhos
hábitos da confiança irrestrita. Nesse sentido, o risco que determinadas atividades
sofisticadas, realizadas por “especialistas”, como a lavagem de dinheiro ainda pode ser
controlado pelo tradicionalismo através do qual as mesmas são realizadas, como os
investimentos imobiliários.
No caso da organização da FAB, o conceito do risco ainda pode ser entendido em
outras ações criminosas, tais como a ativação da rede de contatos e investimentos
criminosos, o tráfico em si e a mistura entre a organização criminosa e a corporação militar,
que reproduzem uma situação na qual as ligações e o comprometimento entre os indivíduos
participantes não são apenas necessários, mas fortalecem e constroem a organização como
um todo. O aprofundamento da confiança é mantido pelo risco que se teme de que a
organização possa ser traída por um indivíduo. Nesse caso, não é o uso da violência que
garantirá a manutenção da confiança no interior do grupo, mas o tráfico de influências e as
perdas que cada um dos indivíduos teria caso a operação naufragasse. Por essa razão e
nesse caso em especial, a modernidade das infraestruturas ativas caminha ao lado da
tradição das relações corporativistas da Força Aérea e das opções de lavagem de dinheiro
acionadas.
Rede de relações internacionais
A presente organização foi considerada pelo Relatório Final da CPI do Narcotráfico
responsável por consolidar uma das rotas do tráfico internacional de drogas do Brasil em
direção à Europa. Não se trata de uma das rotas que transportou os maiores volumes de
cocaína à Europa, mas sem dúvida, uma das mais audaciosas e arriscadas por envolverem
ferramentas da Força Aérea Brasileira no esquema.
De modo geral, essa organização é apresentada como o exemplo de um esquema
cíclico, que tem início quando alguns empresários (investidores no mercado do tráfico de
drogas) recrutam intermediários (os oficiais da FAB) com a promessa de lucros vantajosos
em troca de um trabalho ‘fácil’.
161
A Figura 7 esquematiza em formato de um grafo as relações estabelecidas pela
organização descrita acima segundo o local de atuação e de conexão de cada membro da
rede, bem como caracteriza suas atividades, facilitando a compreensão de todo o esquema e
exemplificando o modelo de organização do grupo.
FIGURA 7: A Rede internacional da FAB:
FONTE: produzido pela pesquisadora.
Como mostrado, trata-se de uma rede organizada em três frentes transnacionais –
Brasil, Bolívia e Espanha. A frente brasileira é a que mais recruta mão de obra, gerando
com isso uma alta conectividade no interior da rede, indicativo de que os recursos
acionados nessa etapa do tráfico internacional estão dispersos e controlados por diferentes
membros, sinal de um perfil organizacional descentralizado (ou com fraca centralidade),
não hierarquizado, estabelecido em forma de rede, com possibilidade de mobilidade e
continuidade quando algum de seus membros sai do esquema. Para perceber isso, basta
observar as relações estabelecidas entre Washington, Paulo Sérgio e um terceiro indivíduo
não identificado: trata-se do uso de uma velha e conhecida fórmula bastante acionada pela
máfia italiana, identificada por Sciarrone (2000) como “amigo dos amigos” e que permite
que ligações reciprocas e coesas estabelecidas em um momento, se transformem em
relações frouxas em outro. O conteúdo dessa relação está baseado no desejo pelo poder,
162
desenvolvida a partir de Washington, cujo agrupamento é estabelecido entorno do tema do
transporte das malas, sendo que Washington e Paulo Sérgio recrutam o terceiro indivíduo
para se encarregar de que as malas cheguem bem a Las Palmas, uma vez que é um
tripulante do fatídico voo.
Enquanto isso, nas frentes espanhola e boliviana são encontrados indivíduos
“especialistas” que desempenham atividades pontuais e cruciais para a organização:
fornecendo a droga e revendendo-a.
Nesse conjunto de relações é mostrada uma mudança que também acometeu às
organizações mafiosas, onde geralmente eram encontrados membros de uma mesma família
atuando em segmentos diversos do mercado criminal. Com exceção dos irmãos Paulo e
Luís todos os demais membros da rede são conhecidos uns dos outros, i.e., trabalham ou
trabalharam juntos em outras bases aéreas e compartilham as mesmas atividades
econômicas, etc. Estes indivíduos não desenvolvem relações fortes e permanentes uns com
os outros quando não estão praticando atividades criminais, ou seja, apenas se juntam e
seus “serviços” são acionados quando há uma necessidade e finalidade criminal concreta,
reforçando a tese de Sciarrone mencionada anteriormente. Seu sustento não tem origem
única e exclusivamente de atividades ilícitas (como o tráfico de drogas ou a lavagem de
dinheiro) e as praticam apenas por uma ocasião de aproveitamento de oportunidades. Tratase, portanto, de um exemplo de organização oportunista, sobre a qual tratarei no próximo
capítulo.
Comparadas com as redes investigadas pelo Escritório de Drogas e Crime da ONU
(2002), a rede da FAB apresenta características de redes que se comunicam com certa
autonomia, mas que mantém entre si uma forte identidade social ou baseada nas atividades
realizadas.
Em geral, as redes investigadas pela ONU assumem perfis hierarquizados, são
caraterizados por organizações com altos níveis de centralidade, que possuem liderança e
sub-redes, diferentemente da organização da FAB, que em geral, apresenta um aspecto
plano no qual os indivíduos desempenham papéis, tarefas e perfis bastante parecidos uns
com os outros. Uma ilustração desse conjunto de relações pode ser apreendida através do
organograma abaixo (Figura 8) no qual se vê a distribuição de relações definidas a partir
163
das organizações às quais pertencem os envolvidos. Trata-se de uma rede de relações
horizontalizada pelas organizações que definem o perfil das relações. Os indivíduos
pertencentes à FAB parecem (idealmente) liderar a organização uma vez que desenvolvem
relações corporativas entre seus pares. Os empresários, por sua vez, seriam facilitadores e
financiadores da operação, agindo em cooperação com os membros da FAB. Já os
traficantes e os indivíduos envolvidos com a lavagem de dinheiro são apresentados como
uma rede de apoio à organização, cujo papel é dar suporte à atividade criminosa praticada
pelos membros da FAB.
FIGURA 8: Organograma Caso FAB
FAB
Tra7icantes
Empresários
Lavagem
de
Dinheiro
FAB
FONTE: produzido pela pesquisadora
Em contraste com as redes hierárquicas tradicionais, a rede da FAB não mostra
centralidade exclusiva em um único indivíduo apenas, sendo essa liderança partilhada com
outros dois indivíduos. O uso da violência também não está registrado na investigação do
caso. Na definição das Nações Unidas (2002), a rede pode ser identificada como um
modelo de grupo central com um número limitado de indivíduos e de ações desempenhadas
e estrutura bem organizada.
A seguir, será realizado um exercício analítico para o qual a modelagem da rede da
FAB será repetidamente utilizada de modo a examinar três diferentes conjuntos de relações
observados: relações familiares, relações de amizade e exclusivamente as relações de
164
confiança. As relações onde não estão indicadas a presença de laços de parentesco ou
amizade, mas há a presença de confiança, estão assinaladas na primeira imagem em
vermelho.
Para começar, apresento a rede da FAB completa, com todos os seus participantes
identificados segundo a escala de aparições e centralidade na rede que identifica os mais
proeminentes com círculos em amarelo. O tipo de relações que estabelecem entre si é
marcado pelas cores das arestas. Em azul escuro são marcadas as relações de parentesco,
azul claro as relações de amizade, laranja as de corporativismo FAB e em vermelho as
relações baseadas estritamente na confiança, sem demais identificações (aprofundadas em
outros casos analisados posteriormente).
FIGURA 9: Rede Geral do Caso FAB:
FONTE: produzido pela pesquisadora
Legenda: azul escuro: parentesco; azul claro: amizade; vermelho: confiança e laranja: corporativismo FAB.
A distinção dessas relações entre familiares, amizade, confiança e corporativismo
permitem pensar sobre a força dos laços estabelecidos pelos indivíduos no interior dessa
organização. Esses, por sua vez, informam sobre o conteúdo da mesma e dão pistas sobre a
forma adquirida, trabalhadas nas análises posteriores.
165
Relações Familiares
Muitas vezes presentes em agrupamentos mafiosos as relações familiares são
indicativos de que um padrão mafioso foi estabelecido no conjunto das ações criminosas
praticadas por esses indivíduos. No caso FAB, que não é identificado por um padrão
mafioso, elas atuam de outra forma: acenam para o envolvimento de membros de uma
mesma família (irmãos e cônjuges) em fronteiras não consideradas centrais na rede com a
finalidade de manter a coesão entre os indivíduos e impedir possíveis atos de traição entre
os mesmos. No caso da máfia se dá o contrário, as famílias desempenham papéis centrais
na estrutura das organizações, i.e., são lideranças. O exemplo dos irmãos Luís Cesar e
Paulo Sérgio é ilustrativo: Luís foi o primeiro a ser contatado por Zau para a realização do
esquema. Em seguida, Luís contatou o irmão Paulo que acionou Washington, os outros
membros da FAB e os traficantes. Nesse caso, Luís e Paulo parecem elementos centrais na
rede, mas não são eles que a movimentam afetivamente – quem faz isso é Washington. Por
isso, a importância desse laço familiar no interior dessa rede serve apenas para consolidar
suas relações e impedir traições.
FIGURA 10: Rede Caso FAB – Foco na relação de Paulo e Luís:
FONTE: produzido pela pesquisadora
166
É possível observar na figura 10 que Paulo e Luís somente são necessários nessa
rede por estarem conectados a Washington. Esse último sim, associado indiretamente
(através de Luís) a Zau garante que as fronteiras entre Brasil e Espanha sejam acionadas.
Uma outra forma de estabelecer essas relações e garantir que o empreendimento tenha
sucesso
seria
passando
por
um
“caminho”
mais
curto
estabelecido
entre
Washington>Zau>Gina. Todavia, esse caminho seria arriscado, uma vez que não haveria
alguém suficientemente influente dentro da FAB que garantisse o transporte da droga até
Las Palmas. Por essa razão, o “caminho” estabelecido entre Washington > Luís > Paulo >
Zau utilizado foi o mais confiável uma vez que a presença dos irmãos diminui
consideravelmente o risco de traição entre eles e conta com a presença de Paulo, cuja
influência, posição e status dentro da FAB, garante o sucesso do empreendimento –
baseando-se assim em laços de sangue e status dentro da FAB, do que na mera “amizade”
ou na “confiança” entre os indivíduos. Por isso, esta organização pode ser identificada
como uma rede que conta com laços fortes em seu nível embrionário. Para ilustrar essa
explicação sobre a importância da família e de laços de sangue dentro da rede da FAB, sem
qualquer vocação para se tornar uma organização mafiosa, sugiro observar a figura 11, com
atenção para a relação de Gina, Zau, Washington e dos irmãos Luís e Paulo, assinalada.
FIGURA 11: Rede Caso FAB – Foco na relação de Washington e Zau:
FONTE: produzido pela pesquisadora
167
A forma da organização criminosa pode ser examinada da seguinte maneira: a
relação estabelecida entre o Washington, Luís, Paulo e Zau aponta para uma “tríade” cujo
poder é dividido entre o oficial da FAB Washington e o empresário Zau, considerados “os
cabeças” dessa operação. Nessa relação, o conteúdo que permite que as mesmas sejam
estabelecidas é motivado pelo oportunismo baseado em uma percepção sobre a demanda do
tráfico de cocaína da Bolívia via Brasil para a Espanha, utilizando os aviões da FAB para o
empreendimento.
Relações de Amizade
A análise do conjunto das relações de amizade estabelecidos entre os indivíduos da
rede da FAB é uma continuidade das análises sobre as relações familiares pois cumprem o
papel de contentores aonde existiriam possíveis “buracos estruturais” 74 nas relações
estabelecidas.
Observando a Figura 12, Zau é amigo de Luís e de Washington simultaneamente, o
que lhe confere um papel central nessa relação. Todavia, Washington, também é central na
relação de amizade que estabelece com Zau e Paulo. Nesse conjunto, Luís e Paulo assumem
o papel de “asseguradores” de que qualquer problema nas negociações e no transporte da
droga não venha a surgir, uma vez que são irmãos e que controlam duas esferas da rede: do
lado de Zau, sobre a venda da droga e do lado de Gina, da compra da droga e no transporte
da mesma.
74
A definição de “buracos estruturais” pode ser encontrada no capítulo V.
168
FIGURA 12: Rede Caso FAB – Foco na relação de Washington, Paulo e Zau:
FONTE: produzido pela pesquisadora.
Analisando a forma assumida pela relação de amizade, trata-se de uma rede
composta de quatro lados com dois pontos com conexões remotas (ligados a Washington e
a Paulo respectivamente). Trata-se de um tipo de interação bastante restrita, marcada pelo
tempo de amizade estabelecida entre os envolvidos. O conteúdo dessa rede, ao contrário da
anteriormente analisada, aponta para uma relação de complementaridade entre os
indivíduos aonde suas relações parecem mostrar que existe “poder” disputado entre “os
cabeças” do empreendimento, mas que não é isso o que realmente importa nessa rede – o
que importa é a garantia de que a droga chegue a seu destino, por isso os contatos mais
próximos e os amigos são acionados. Por isso:
“ (...) o Ten. Cel. Washington continuou insistindo. Quando o depoente foi
transferido para Manaus, o Ten. Cel. Washington o encontrou e solicitou
novamente que enviasse as malas para a Espanha. Que, diante da insistência,
acabou mandando as malas, mesmo sem saber o que existia nelas. Que, conhece
o Ten. Cel. Washington desde 1971 ou 1972. Que, mandar encomendas pelos
aviões da FAB é uma coisa normal.” (CÂMARA DOS DEPUTADOS,
2000, p. 57).
Olhando diretamente para o diagrama acima, que mostra os laços de amizade é
possível inferir que trata-se de uma organização com alto grau de conectividade entre os
169
indivíduos – aonde apenas poucos indivíduos na rede estão conectados à todos os demais
através de díades ou tríades. Por essa razão, a forma dessa organização é identificada como
rede uma vez que uma “teia” é, de certa forma, tecida entorno das figuras de Washington e
Michael White.
Relações de Confiança
Como mostrado anteriormente, a confiança é parte importante das organizações do
crime organizado. Ela se impõe através da figura dos indivíduos, uma vez que estes
asseguram - seja por meio do estreitamento de laços, seja por meio da ameaça - que o risco
seja eliminado e que não hajam traições no interior da rede. Somente quando o
estreitamento de laços não surte efeito é que parte-se para a ameaça e para o uso da
violência, apontando assim para uma possível perda de poder.
No caso da rede FAB não há registros de uso de violência por parte de qualquer
membro da rede, acenando para um traço bastante característico das organizações
(criminosas) tipicamente empresariais ou que estabeleçam seus contatos assumindo o
formato de redes relacionais 75 (ABADINSKI, 2010). A partir das oportunidades que
aparecem para Zau, que as compartilha com Washington e Luís, a partir daí todo o restante
da rede é acionado, todos os indivíduos participantes da rede são aliciados e motivados a
participar do negócio criminoso pelo desejo do lucro.
75
“A rede relacional é todo o campo relacional de um indivíduo, a totalidade das suas relações definidas num
determinado contexto espaço-temporal” (TORRADO, 2006, p. 13).
170
FIGURA 13: Rede Caso FAB – Foco nas relações de confiança:
FONTE: produzido pela pesquisadora
A Figura 13 mostra o conjunto de indivíduos acionados pelos laços de confiança no
interior da rede. Trata-se de indivíduos envolvidos diretamente com o tráfico de drogas, que
veem na confiança mantida pela violência – em última análise, a única forma de controle da
traição em seu meio. Misse (1997, p. 10) explica que a organização baseada na confiança é
bastante problemática, principalmente em um ambiente social que transaciona, com recurso
à violência e uso de mercadorias criminalizadas. Segundo o autor, diferentes formas de
violência articularão (ou desarticularão) as construções imaginárias da confiança. Um
exemplo dessa confiança é a articulação que os indivíduos realizam entorno de seus entes.
No limite, ser traído por um desconhecido é mais simples do que ser traído por um parente,
na medida em que os laços não apenas aprisionam as construções da confiança, bem como
reforçam que a traição contra um é uma traição contra a família como um todo.
Outra forma de ver a manutenção desse conjunto de relações é observá-la a partir
dos indivíduos que compartilham o mesmo meio social e, por conseguinte, o mesmo
ambiente, favorável, por sua vez, ao desenvolvimento de suas “empresas criminosas”.
Esses indivíduos enxergaram no “Diferencial Associativo” (SUTHERLAND, 1955) uma
oportunidade de associação entre “pares”.
O “diferencial associativo” foi definido por
171
Sutherland como o crime que é apreendido a partir das relações pessoais estabelecidas
pelos indivíduos, nessas relações são transmitidas as crenças e “expertises” necessárias para
a realização de um determinado delito. No caso da rede da FAB, essa disposição ao
descumprimento se basearia na busca pela satisfação das necessidades pessoais e
financeiras do indivíduo. A associação entre pares para a realização dessas necessidades
contribuiria para o sucesso na realização do delito.
Na rede da FAB existem dois fatores que permitem que a confiança no interior do
grupo seja mantido: os laços de sangue, marcados pela figura dos irmãos Paulo Sérgio e
Luís Cezar, laços de amizade (e corporativos) estabelecidos entre Paulo Sérgio e
Washington, e o “diferencial associativo”, marcado pela figura de Zau que ostenta um
perfil centralizador e que exerce pressão sobre Gina, o qual é responsável (junto com Lila)
pela compra da cocaína para ser transportada. Zau, Gina e Lila constituem a base do
“diferencial associativo” nessa rede e, juntos, contribuem para que a droga seja 1)
importada da Bolívia; 2) embalada e preparada para viagem e 3) distribuída em Las Palmas.
O conteúdo dessas relações envolve uma gradual e bem definida “divisão de tarefas”, como
uma “empresa” ou um tipo comum de comércio envolvendo importação e exportação no
qual a burocracia se faz presente para organizar e definir “quem faz o que, quando e como”.
Nessa divisão de tarefas Washington junto com Paulo orquestram o esquema de
transporte das malas de cocaína, Zau e Luís organizam, inspecionam o mercado e se
encarregam da venda da droga na Espanha. Michael White, que aparece nos grafos
mostrados anteriormente e que aparece indiretamente ligado à rede da FAB, é um poderoso
traficante que se destacou nas investigações da CPI pelo dinamismo e pelo envolvimento
remoto com a rede da FAB através de Washington e Lila. A presença de White nessa rede a
coloca em um nível de organização e dinamismo capaz de até mesmo figurar nas
investigações e nas análises da UNODC. White, conectado a Washington acabou por ligar,
remotamente a rede da FAB à membros da Camorra Italiana, como Carlos Rojos.
Finalmente, ainda é possível inferir que, caso os indivíduos da FAB saíssem do
esquema de envio de cocaína para a Espanha, e a organização perdesse o apoio de suas
aeronaves, para que o esquema continuasse, o arranjo teria que ser feito por algum
traficante com ampla influência, como por exemplo, Beira Mar, apontado como um dos
172
fornecedores de Gina (não confirmado pelas investigações da CPI) e, um forte indicado
para liderar o processo.
6.2 CASO RIO DE JANEIRO – Beira Mar
O caso Rio de Janeiro apresentou uma série de crimes heterogêneos cometidos por
diferentes categorias de indivíduos, são relatos de crimes cometidos por empresários e
políticos, como o uso de ambulâncias para transporte de material político, desvio de verbas
(investigados pela Polícia Federal sob a alcunha de “Máfia das sanguessugas” ou “Máfia
das ambulâncias”); o envolvimento de uma Juíza (aposentada) com narcotraficantes
baseados no Morro do Cavalão em Niterói/RJ e na cidade de Miracema/RJ e que a
colocaram em um esquema do tráfico de drogas que envolvia inclusive narcotraficantes
internacionais do calibre de Irineu Soligo; o esquema de adulteração que consistia em
buscar na Bolívia aeronaves furtadas no Brasil, trazê-las para Atibaia e “adulterá-las” em
um hangar em Atibaia ou hangares na região de Maricá/ RJ, para posterior comercialização
ou utilização para transporte de entorpecentes, envolvendo a troca de prefixos, a legalização
de documentos, a ampliação de tanques e a criação de compartimentos secretos; e
finalmente, os crimes de narcotráfico praticados pelo traficante Fernandinho Beira Mar e
pessoas a ele associadas, envolvendo suas empresas de fachada e as possíveis conexões
criminosas utilizadas por ele para "lavar" o dinheiro proveniente do narcotráfico. Esses são
alguns dos tópicos que marcaram o caso Rio de Janeiro no relatório da CPI do Narcotráfico,
todavia por se tratar de um caso bastante heterógeno, me concentrarei apenas nos relatos
sobre a investigação de Fernandinho Beira Mar e na análise sobre o caráter de sua
organização.
Quem é “Fernandinho Beira Mar”
Começarei a análise do Caso Rio de Janeiro a partir da biografia do traficante Luiz
Fernando da Costa (vulgo Fernandinho Beira Mar) por se mostrar como um bom exemplo
de trajetória criminosa de alguém que estruturou uma grande e poderosa organização. A
importância de relatar sua trajetória se baseia na relação estabelecida (e que será
173
demonstrada) entre seu passado, suas relações familiares e seus “negócios”76. Nasceu em
Duque de Caxias/RJ em 04 de Julho de 1967, não conheceu o pai e foi criado somente pela
mãe que morreu quando Beira Mar tinha 21 anos. Entre os 18 e 20 anos, quando serviu ao
Exército, ele começou a praticar seus primeiros assaltos a lojas, bancos e depósitos de
materiais militares. Nesse período foi acusado de furtar armas do Exército e de revendê-las
para traficantes77. Será mostrado que Beira Mar continuou adotando práticas parecidas anos
mais tarde, quando estabeleceu relações com as FARCs.
1987, aos 20 anos, ainda no Exército, foi preso por assalto e condenado a dois anos
de prisão. Se afastou da carreira militar e ainda na prisão entrou em contato com vários
outros criminosos e aprendeu sobre o tráfico de drogas. Quando saiu da cadeia, já com 22
anos, começou a colocar em prática as lições aprendidas e, aos poucos isolou e liquidou o
criminoso que controlava a favela Beira Mar e tornou-se um dos "cabeças" do tráfico local.
Tinha início uma das carreiras criminosas de maior renome na cidade do Rio de Janeiro.
Em pouco tempo Beira Mar já vislumbrava a oportunidade de expandir seus territórios para
além dos limites da sua favela e das favelas cariocas: começou contatos em todo o país e
também no exterior, passou - a partir de 1995 - a ser considerado um dos maiores
traficantes de armas e drogas da América Latina.
A CPI apurou que durante o ano de 1999, Beira Mar esteve sob a proteção das
78
FARCs na Colômbia, de onde comandava a distribuição de cerca de 80% da droga
comercializada no estado do Rio de Janeiro, além da distribuição para outros estados. A
proteção foi realizada por Torías Medina Caracas, o Negro Acácio, chefe da frente 16 da
76
O exercício de recuperação da biografias somente será realizado na presente análise por partir da tese de
que no caso de Fernandinho Beira-Mar, seu passado aponta e justifica parte considerável de suas ações
presentes, tais como o formato organizacional adotado.
77
http://www.istoe.com.br/reportagens/43128_COMO+SE+FAZ+UM+TRAFICANTE?pathImagens=&path=
&actualArea=internalPage
78
Forças Armadas Revolucionárias Colômbia–Exército do Povo - FARC , é uma organização de
inspiração comunista, autoproclamada guerrilha revolucionária marxista-leninista, que opera mediante táticas
de guerrilha. Lutam pela implantação do socialismo na Colômbia. São consideradas uma organização
terrorista pelos governos da Colômbia, Estados Unidos, Canadá e pela União Europeia. Elas afirmam
defender o pobre agricultor na luta contra as classe favorecidas colombianas e se opõem à
influência americana, particularmente o Plano Colômbia. Outros proeminentes interesses das FARC incluem
a luta contra a privatização dos recursos naturais, as corporações multinacionais, e as forças paramilitares. As
FARC dizem que estes objetivos motivam os esforços do grupo a tomar o poder na Colômbia por uma
revolução armada. Tais esforços são principalmente a extorsão, sequestro, e participação no tráfico ilegal de
drogas.
174
FARCs em Barranco Mina, localizado na região de Guaniare, área de produção cocaleira e
de laboratórios que processam 80% da produção de pasta de cocaína da Colômbia. Negro
Acácio em 1990 já era apontado pelos militares colombianos como peça chave do sistema
que dominava a estrutura financeira e logística das Forças Revolucionárias.
No final dos anos 90, Beira Mar, também fornecia drogas para os Estados Unidos e
Europa e armas79 para os guerrilheiros da FARCs em troca de apoio estratégico e logístico
para enviar sua cocaína, inclusive para o interior do Brasil.
Foi preso em 2002 e desde 2008 vem sendo transferido constantemente,
de presídio em presídio, para evitar fuga e contato com outros integrantes do tráfico que
possam levar seus recados e comandos à quem está em liberdade. Além disso, o Regime
Disciplinar Diferenciado (RDD)80 lhe imputa uma série de outras restrições que o impedem
de arquitetar uma possível rebelião. Atualmente cumpre pena na Penitenciária Federal de
Segurança Máxima de Catanduvas, no Paraná.
Desde que foi preso, Beira Mar continuou controlando seus “negócios” no Rio de
Janeiro81: sob sua chefia, sua organização comprava maconha do Paraguai e cocaína da
Bolívia e revendia para o mercado interno e também para o Exterior; além disso, em
dezembro de 2010, durante a ocupação do Complexo do Alemão, foram encontradas cartas
79
As armas chegava, à Colômbia via Suriname, uma nova conexão utilizada pelo traficante.
O Regime Disciplinar Diferenciado (RDD) é objeto da Lei brasileira nº 10.792 que alterou a Lei de
Execuções Penais e o Código de Processo Penal no país. Motivada pela organização de facções criminosas,
atuantes em presídios, principalmente nos estados de São Paulo e Rio de Janeiro, a Lei foi criada com
argumento motivacional de buscar dificultar as ações organizadas e supostamente lideradas por internos
dos presídios, tais como o Comando Vermelho (CV), no Rio de Janeiro, e o Primeiro Comando da
Capital (PCC), em São Paulo. A Lei passou a vigorar a partir de 2 de janeiro de 2003 no Brasil, aprimorando
normas relativas ao interrogatório e instituiu o Regime Disciplinar Diferenciado (RDD). Baseou-se em
experiências efetuadas no estado de São Paulo, nas penitenciárias de Avaré, Taubaté e no presídio de
segurança máxima de Presidente Bernardes. A Lei prevê a aplicação do RDD para o reeducando que estiver
cumprindo pena por condenação ou estiver temporariamente em reclusão. No RDD o preso é mantido em cela
individual 22 horas por dia, podendo ser visitado por até duas pessoas em uma semana, tomando um banho de
sol por dia de duas horas no máximo. Não é permitido ao preso receber jornais ou ver televisão, enfim
qualquer contato com o mundo externo. O preso poderá ficar sob este regime por 360 dias, renováveis por
mais dias, mas não poderá exceder 1/6 da pena a ser cumprida, tendo que retornar ao regime prisional
tradicional. O artigo 52 da Lei de Execuções Penais foi alterado, determinando a aplicação do RDD caso haja
práticas, por parte do detento, de fatos previstos como sendo crime doloso e que ocasione a subversão da
ordem ou disciplina interna. A Lei prevê ainda a possibilidade de isolamento preventivo do preso, 10 dias
antes da autorização judicial para que o preso seja submetido ao regime. Outras medidas ainda foram
tomadas, visando manter o isolamento dos presos, tais como a instalação de detectores de metais nos presídios
e utilização de bloqueadores de celular e rádio transmissores.
81
http://www.midiamax.com/noticias/732293
80
175
atribuídas a Beira-Mar, possivelmente enviadas da prisão, no Mato Grosso do Sul. Nessas
cartas, Beira Mar sugeria que seus comandados se aliassem às milícias do Rio de Janeiro e
organizassem sequestros de autoridades para trocá-las por milicianos que se encontravam
presos. Com base na apreensão das cartas, Beira-Mar voltou a ser enquadrado no Regime
Disciplinar Diferenciado (RDD) e, como dito, está de volta a Catanduvas.
A organização em suas múltiplas faces
A organização de Beira Mar dispunha de mais de 50 pessoas envolvidas
diretamente com o tráfico de drogas. Segundo dados sobre os indiciados pela CPI do
Narcotráfico, estes indivíduos estavam distribuídos em uma sofisticada divisão do trabalho
criminal. Na leitura de Silva de Souza (2004) esta organização é definida como parte de um
“comando” (o Comando Vermelho - CV), constituído como um “mal necessário” para
manter a ordem e impedir o estado generalizado de guerra entre os grupos do crime
organizado – definição análoga a que Charles Tilly propôs sobre o Estado e o crime
organizado e a tese de que uma das características que os grupos criminais tem em comum
com o Estado – na fase de consolidação – é a tendência a monopolizar e concentrar os
meios e o uso da violência.
No caso da organização de Beira Mar é possível situar os diferentes indivíduos que
a constituem como integrantes desse “comando”. Uma definição simples segundo Silva de
Souza (2004), o “comando”, tal como o CV, é uma organização com múltiplas lideranças
que se associam umas com as outras a fim de dominar uma determinada área ou um
determinado mercado criminal. A descrição dessa organização começa nos “cabeças”: o
chefe de uma das organizações afiliadas ao CV, como Beira Mar, em geral é um exemplo
de pessoa que ganhou o respeito do grupo por seu carisma e pelo uso da força. Ele pode ou
não ter uma relação de parentesco e amizade com chefes de outras organizações que
participam do mesmo “comando”, mas deve manter uma relação de estrita confiança com
seus subchefes ou “donos de bocas de fumo” que estão sob seu controle. Segundo o autor, o
recrutamento desses indivíduos subordinados se baseia sempre em uma interconexão entre
a autoridade pessoal do líder e de seus seguidores ou traficantes que compõem a
organização. Portanto, ninguém se torna chefe sem ter uma rede de amizade dentro do
176
“comando” na qual confie em situações de perigo ou de auxílio em alguma “guerra de
facções”.
Abaixo de Beira Mar ou dos chefes de outras organizações, vem as seguintes
posições, conforme levantado no relatório da CPI:
1) “donos de bocas de fumo”;
2) tesoureiro responsável por organizar o pagamento de todo o grupo;
3) segundo tesoureiro, encarregado de pagar os adiantamentos e comissões dos traficantes
que trabalham diretamente nas “bocas de fumo”;
4) armeiros, que são os responsáveis pela custódia e distribuição de armas no grupo;
5) contadores são os encarregados da contabilidade e da “lavagem de dinheiro” da
organização;
6) “testas-de-ferro”, indivíduos responsáveis por manter os negócios legais adquiridos com
o dinheiro do tráfico, encarregados de comprar bens e de manusear o dinheiro sujo através
de suas contas correntes até torná-los impossíveis de serem rastreados;
7) contatos ou negociadores são indivíduos encarregados da compra e transporte da droga
da fronteira até imediações da cidade do Rio de Janeiro;
8) seguranças pessoais, indivíduos responsáveis pelo chefe e membros importantes do
grupo;
9) doleiros ou intermediários eram indivíduos que realizavam a compra e venda de dólares
no mercado negro e do envio ilegal de somas de dinheiro à contas situadas em paraísos
fiscais que “lavavam” o dinheiro da organização;
10) receptores: eram encarregados de transportar e se desfazer de veículos roubados
utilizados como moeda de troca do grupo por mais drogas na tríplice fronteira do Brasil;
11) armazenadores eram encarregados de guardar grandes quantidades de droga – em
geral, isso acontecia em alguma empresa fantasma – ou em galpões nas imediações do Rio
de Janeiro;
12) falsificadores eram responsáveis pela emissão de documentos falsificados ou roubados
que eram utilizados pelos membros do grupo, para saídas do Brasil para negociações de
droga e fugas.
177
Os três primeiros cargos são geralmente ocupados por membros da família do chefe
ou por indivíduos de sua estrita confiança, no caso Beira Mar, suas duas irmãs e suas exesposas se encarregavam da compra de bens e imóveis e da administração de contas
bancárias abertas no nome de “laranjas” visando realizar a “lavagem” de dinheiro da
organização. Sua posição na organização também lhes conferia o poder de comando caso
Beira Mar fosse preso (sendo incapacitado de gerenciar seus negócios) ou morto.
Nos níveis mais baixos da organização e sob a supervisão direta dos “donos das
bocas de fumo” estende-se uma outra hierarquia com as seguintes categorias, muitas das
quais não foram elencadas e investigadas pela CPI do Narcotráfico por tratar-se de uma
fração relativamente microscópica dos níveis de atuação de Beira Mar, porém, estão
amplamente comentados pela bibliografia que trata do assunto82:
1) Gerente da “boca de fumo”, subdividida em duas categorias (maconha e cocaína):
são os responsáveis pelos locais que comercializam cocaína ou maconha, uma vez
que os dois tipos de drogas apresentam responsáveis diferentes (gerente “da branca”
e gerente “de preto”);
2) Gerente da endolação: responsável pelo empacotamento e armazenamento da
droga.
3) Endolação ou Empacotadores de droga: os empacotadores geralmente são
moradores da favela desempregados que encontraram na endolação uma fonte de
renda. Trabalham por “empreitada” e estão sujeitos ao rígido controle do gerente da
endolação, que muitas vezes os submetem a trabalharem nús e em ambientes
fechados para evitar roubos e perdas das cargas de droga a serem empacotadas;
4) Segurança pessoal da “boca” ou soldados: são responsáveis pela segurança na boca
de fumo e do gerente desta, podem ser oriundos da categoria vendedores que
ganharam a confiança do gerente da boca a ponto de lhe prestar segurança pessoal e
de seu negócio;
5) Segurança da área ou contenção: atuam nos limites da favela e fazem a proteção do
perímetro e, no caso de algum “bonde” atuam como soldados, auxiliando seu chefe
82
DOWDNEY, 2003; GRILLO (2008); MISSE (1997), dentre outros.
178
na invasão de alguma área inimiga ou “fortalecendo” o “bonde” de algum chefe ou
gerente amigo;
6) Vendedores – atuam na venda direta ao consumidor. São dois tipos: vapores (tráfico
dentro da favela) ou aviõezinhos (tráfico externo);
7) Olheiros ou vigias: são moradores locais, geralmente crianças ou adolescentes que
vigiam os limites da favela e avisam aos soldados através de sinais, rojões ou
celular sobre a chegada da polícia ou de algum “bonde” inimigo.
Michel Misse, em um artigo de 1997, traz um organograma ilustrativo dessa divisão
de tarefas:
QUADRO 3: Estrutura básica de uma organização criminosa estabelecida em uma
favela carioca:
FONTE: MISSE, M. 1997, p. 11.
Conforme a pesquisa de campo de Silva de Souza (2004) esta estrutura hierárquica
mostrada por Misse baseia-se na confiança e funciona como uma grande empresa cuja
divisão do trabalho é azeitada de tal forma que o trabalho de realizado por um indivíduo
interfere diretamente no dos demais.
179
Ajustando o foco de análise para a organização de Beira Mar, temos o seguinte
organograma que mostra como o traficante é, de um lado, peça chave do seu grupo e, de
outro, divide a liderança com outros dois “braços direitos” e familiares.
FIGURA 14: Organograma de Fernandinho Beira Mar:
Che$ia
Beira
Mar
Empresários
Equipe
de
comando
geral
Familiares
Braço
direito
1
Braço
direito
2
Trá$ico
Equipe
da
contabilidade
e
lavagem
de
dinheiro
Doleiros
Trá$ico
Trá$ico
FONTE: produzido pela pesquisadora
Esse organograma mostra também que existem campos da organização de Beira
Mar que são conduzidos por “especialistas”, ou seja, experts em determinada atividade,
como os doleiros responsáveis pela lavagem de dinheiro do traficante.
Também, observa-se que as atividades encabeçadas pelos dois indivíduos
considerados os “braços direitos” do traficante são o tráfico e a coordenação de atividades
realizadas por empresários, tais como alguns investimentos do traficante em revendas de
carros registrados no caso Minas Gerais ou cassinos no Espírito Santo.
“Negócios”
Comandando seus negócios a partir de esconderijos ou mesmo da prisão, Beira Mar
construiu um “império” do tráfico de drogas e armas. Entre o início e a metade dos anos 90,
abriu canais próprios de distribuição de drogas, tanto no atacado, quanto no varejo.
Segundo dados da CPI, alguns morros cariocas como o Morel, Rocinha, Chapéu Mangueira
e a favela do Vidigal eram abastecidos com drogas e armas entregues em carros de suas
empresas de fachada, como a Kombi da padaria ou o carro da fábrica de gelo.
180
Já o grande volume de armas e drogas que seriam distribuídos nos morros chegavam
por vias distintas: 1) por via marítima, via a costa do Rio de Janeiro através de pequenas
embarcações que descarregavam a droga de grandes cargueiros em alto mar na calada da
noite; 2) por meio dos “formiguinhas” 83 , pessoas que as transportavam em veículos
particulares; 3) pelos grandes traficantes que faziam encomendas de quantidades que
chegavam ao Brasil via terrestre, por caminhões – escondidos entre safras de grãos e pilhas
de pneus, e 4) pelo ar – por caixotes e tonéis contendo drogas lançados em canaviais
paulistas (para serem recolhidos e transportados até o Rio de Janeiro) ou no oceano,
próximos à costa para serem resgatados.
Também haviam os “escambos”, aonde Beira Mar pagava suas contas com trocas de
produtos. É o caso da rota Brasil-Suriname por ele utilizada para importar os fuzis AK-47 e
metralhadoras antiaéreas: as armas compradas nessa rota geralmente eram pagas com
drogas vindas do Paraguai.
Organização “familiar”
No período em que esteve foragido, e que comandou seus negócios à distância,
Beira Mar montou uma “megaestrutura” através da associação de terceiros: recrutou para
sua organização diversas pessoas de sua mais estrita confiança, como parentes e amigos, e
os utilizou como "testas de ferro" - em nome de quem registrava os imóveis adquiridos,
movimentava vultuosas quantias em contas bancárias e legalizava seus ganhos ilícitos em
"empresas de fachada" inventariadas pela CPI e registradas no Apêndice I ao final desta
tese.
A organização investigada pela CPI era composta por mais de 50 pessoas,
envolvendo desde familiares, outros traficantes, doleiros, policiais, políticos, empresários,
etc., como mostrado na Figura 14. São pessoas que estavam ligadas direta e indiretamente a
Beira Mar e que ajudaram-no a organizar e a manter sua organização criminosa mesmo
após sua prisão. Reconstruindo essa rede são encontrados dois conjuntos de relações
marcadas por dois referenciais distintos:
83
O chamado “tráfico formiguinha” é caracterizado pelas pequenas “encomendas” (drogas, armas, etc.)
transportadas pelos indivíduos autônomos, que muitas vezes não possuem ligação anterior com o tráfico.
181
1) as relações longas, duradouras, marcadas pela proximidade e/ou consanguinidade
entre alguns membros dentro da organização;
2) as relações curtas e oportunistas estabelecidas por indivíduos isolados e com
vínculos estritamente comerciais com a organização, como freelancers “contratados” sem
qualquer restrição de fidelidade ou exclusividade.
A Figura 15 mostra a organização de Beira-Mar como um conjunto composto
dessas duas esferas de ação pensadas a partir do tipo de relações. Essas relações podem ser
expressas por meio das relações (leia-se “ligações” diretas e indiretas) estabelecidas entre
Beira Mar e seus “associados”. Abstratamente, esses dois tipos de ligações podem
representar diferentes tipos de relações, por exemplo, as ligações diretas sugerem tratar-se
de um conjunto de relações locais estabelecidas pelo próprio Beira Mar, enquanto que as
ligações indiretas, indicam um conjunto de relações globais e mais afastadas do cotidiano
do traficante, nestas últimas estão inclusos os esquemas de lavagem de dinheiro e as
diversas empresas legais mantidas por seus familiares, contadores, advogados, doleiros, etc.
para esse fim. Esse segundo tipo seria um exemplo de relações marcadas estritamente pelo
trabalho prestado e pelas oportunidades, não havendo portanto, o estabelecimento de laços,
afinidades e conflitos entre os envolvidos.
Nas ligações diretas estabelecidas entre os indivíduos e Beira Mar são encontradas
pessoas que se dedicam ao tráfico de drogas em alguma escala – seja atuando como
gerente, soldado ou como endolador.
No geral, parecem duas redes diferentes, unificadas por “pontes”84 ou seja, por
indivíduos que não são “chave” na rede, mas que se excluídos, desconectaria parte da
estrutura da rede que eles interligam, sobretudo as ligações indiretas de Beira Mar, é o caso,
por exemplo de Alan Nascimento, Alessandra Costa, Marcos Chapolin encontrados na rede
assinalada no grafo.
84
Em análise de redes, pontes ou “bridges” são indivíduos que, apesar de terem poucas conexões, conectam
pontos importantes da rede.
182
FIGURA 15: Organização de Beira Mar:
FONTE: produzido pela pesquisadora.
É interessante notar que, uma forma do poder público (ou outras organizações
criminosas) combater organizações como a de Beira Mar é procurar essas “pontes” a fim de
eliminá-las do circuito (LUI, et. all., 2010), promovendo uma “crise” no interior da
organização, geralmente resolvida com a formação de facções e uma guerra interna pelo
controle do novo grupo que surgiria.
Relações de parentesco, amizade e profissionais
Conforme relatado anteriormente, a organização de Beira Mar se baseia em alguns
pilares tradicionais para garantir que não haja uma quebra de confiança no interior de sua
rede, tais como a participação de familiares em níveis e posições estratégicos dentro da
organização. Beira Mar também faz uso de laços de amizade e da contratação de
profissionais que desempenham atividades específicas, tais como a lavagem de dinheiro e o
arranjo de um dos braços de sua organização em municípios vizinhos ao Rio de Janeiro.
Na figura 16, estão apontados os diferentes tipos de conexão acionados por Beira
Mar para manutenção de sua organização.
183
FIGURA 16: Organização de Beira Mar com tipos de relações:
FONTE: produzido pela pesquisadora.
Legenda: amarelo - relações de parentesco; vermelho - relações profissionais; verde - relações de prestação de serviços;
azul - relações de amizade.
Para Urry (2000 apud Ruggiero, 2002, p. 188), os diferentes tipos de relações
acionados são formas distintas de se operacionalizar fluxos de informações e de solidificar
relações que ajudam a constituir a organização. Os traços familiar e de amizade são
marcantes, na organização de Beira Mar mas não obedecem ao mesmo perfil étnico que
muitas vezes é acionado por organizações mafiosas, alguns cartéis e gangues sul
americanos.
É interessante notar que, mesmo com diferentes modelos de associação adotados, a
organização ainda pode ser caracterizada como crime organizado na medida em que,
segundo Finckenauer (2005, p. 81), o que define mesmo o crime organizado é o uso da
violência para controle do território e de um determinado mercado criminal. Mesmo que
não fosse esse o foco da CPI do Narcotráfico nas investigações, ainda assim é notório e
estão registrado alguns atos violentos e de extrema frieza praticados a mando de Beira Mar
contra seus oponentes e traidores.
184
Hierarquia, centralidade, rede e descentralidade na organização
As hierarquias são definidas como qualquer corpo graduado e escalonado de
pessoas e suas relações, uma vez que refletem suas diferenças, como poder, autoridade e
prestígio (Dicionário de Ciências Sociais, 1986). Foucault (1985, 2001) considera que o
arranjo espacial de algumas organizações espelham às pirâmides de autoridade hierárquica
que, na metáfora de um edifício qualquer que à medida que se sobe nos seus andares vai-se
estando mais próximo do poder, nessa lógica, na base se encontra o trabalho mais
desqualificado. Nesse sentido, quem está mais no topo, tem, por exemplo, maior acesso ou
o controle de determinada informação (COSTA, 2004).
No campo criminal as hierarquias exercem papel central, tal como mostrado ao
longo do capítulo II, no qual revisei a temática das máfias, cartéis e gangues. De acordo
com Cressey, a Cosa Nostra invoca códigos culturais tradicionais sicilianos, e se organiza
de forma hierárquica e "racionalmente projetada", muito próxima da burocracia de Max
Weber (CRESSEY, 1969).
Sieber (1997 apud PAOLI, 2002), depois de entrevistar vários especialistas sobre o
crime organizado chegou à conclusão de que as grandes organizações hierárquicas são
"caracterizadas por uma forte centralização e uma clara organização interna" (1997, p. 70),
tal como as máfias. Na organização de Beira Mar esse modelo de organização é encontrado
no topo da organização marcado pela posição que o traficante e sua família ocupam. Esses
indivíduos detém o controle da organização, do dinheiro, das informações, fazendo uso,
sobretudo da violência impingida contra aqueles que não se adequarem às regras da mesma.
O papel da centralidade nesse esquema garante a manutenção da hierarquia nos níveis mais
elevados da organização. Na figura 17 está assinalado no organograma da organização de
Beira Mar os pontos exatos aonde estas hierarquias de tipo mafioso são encontradas.
185
FIGURA 17: Organograma da organização de Beira Mar - hierarquia 1 assinalada:
FONTE: produzido pela pesquisadora
Essa hierarquia constituída pelo próprio Beira Mar e sua família (que cuida dos
negócios legais do traficante) é seguida de indivíduos “especialistas” em certas atividades,
como os doleiros especializados na lavagem de dinheiro e os empresários na manutenção
de empresas com as quais Beira Mar mantem parcerias. Esses indivíduos detém uma
relativa autonomia dentro de uma estrutura hierárquica centralizada, chegando inclusive a
adotar a forma de redes descentralizadas e ocasionalmente acionadas para se organizarem.
Na figura 18 estão assinalados os pontos nos quais as estruturas de rede são detectadas,
lembrando que estas são relativamente autônomas porque ainda continuam subordinadas às
ordens de Beira Mar – todavia, funcionam de modo independente, como uma rede que pode
até usar mão de obra subcontratada e freelancers para a realização da lavagem de dinheiro.
Para melhor entender essa mudança da organização hierárquica para o acionamento
de redes no interior da organização de Beira Mar, é preciso saber que o conceito de rede foi
introduzido pela primeira vez para o estudo do crime organizado como uma ferramenta
descritiva para explorar as características essenciais das relações interpessoais
(BRUINSMA e BERNASCO, 2004) visando olhar para o fenômeno do crime organizado
através de suas relações interpessoais, dos níveis de associação, tipos e estruturas de
organização, etc. O princípio das redes, nesse caso, nos ajuda a entender o processo e a
186
dinâmica adotados por Beira Mar dentro de uma organização que, conforme observado
anteriormente no capítulo 2, deveria ser tradicionalmente hierarquizada.
Todavia, na visão de Lopes Jr. (2009) a adoção de redes em organizações
criminosas tem mostrado que o crime organizado adotou um processo situado em um
continuum que vai da atividade legal até o evento criminoso, dinamizados, por sua vez,
pelas redes estabelecidas entre processos. O autor argumenta que o intercâmbio de bens
produzidos ilicitamente (pirataria, por exemplo) são um traço comum à economia formal e
à economia ilícita, respectivamente. Entretanto, na economia ilícita, como, por exemplo, o
mercado da droga, coexistem uma multiplicidade de "mercados" ilegais ativos em todo o
ciclo - da produção ao consumo. Lopes Jr. acredita que todas as etapas dessa economia são
dinamizadas por redes sociais criminosas que, de alguma forma almejam tornar legal
(mesmo que apenas na fachada) sua atividade criminosa.
Todavia, tal abordagem deve ser relativizada, pois, alguns dos mercados ilegais
estão imbricados com mercados tradicionalmente legais, como a logística e os negócios
imobiliários acionados. Trata-se de uma forma extremamente fecunda que substancia a
análise das pontes e fronteiras entre as economias legal e ilegal, sobretudo, no que tange ao
contexto social e das instituições que emergem na “zona cinzenta” de intersecção (entre
esses dois campos) que podem fornecer importantes elementos para uma leitura econômica
e sociológica do fenômeno do crime organizado.
Outra característica localizada na organização de Beira Mar e que será melhor
visualizada na figura 18 é a formação de redes, vista como uma forma de proteção de “seus
membros contra a prisão e a condenação, as quais incluem executores da lei, representantes
do Estado e políticos” (SCHABBACH, 2008, p. 60). O tema abordado por Schabbach
associado às redes acaba por conduzir aos estudos sobre os esquemas de proteção que
incluem o aliciamento de agentes do Estado em um conjunto de “compensações” que
Michel Misse (2010) identificou e denominou como “mercadorias políticas”.
Baseada em estudos sobre delinquência realizados na década de 60 nos EUA –
Schabbach sugere que um dos fatores que permitem que as ligações entre indivíduos
diferentes pertencentes a mercados diferentes (incluindo os agentes do Estado e demais
atores da sociedade civil que desenvolvem atividades consideradas de natureza lícita) se
187
desenvolvam, é necessário que exista uma “integração entre estruturas de oportunidades
legítimas e ilegítimas” (SCHABBACH, 2008, p. 62) uma vez que, para ampliarem suas
operações e circularem livremente no mundo lícito, “os criminosos necessitam do apoio de
pilotos, banqueiros, procuradores, advogados, juízes, tesoureiros, especialistas financeiros,
etc.” (op. cit., p. 62).
Estas organizações assemelham-se, em certos aspectos, ao capitalismo
aventureiro do contrabando e da pirataria marítima, pois a sua lógica não é
tanto a agregação livre de interesses em torno de um empreendimento coletivo
ou a solidariedade comunitária, mas a subjugação pela violência
(SCHABBACH, 2008, p. 63).
FIGURA 18: Organograma da organização de Beira Mar - rede assinalada:
FONTE: produzido pela pesquisadora.
O papel desses dois conjuntos de indivíduos que se estabelecem em rede na
organização de Beira Mar, a saber, os empresários e doleiros, é atuar como
descentralizadores para que a mesma flua e os negócios continuem. A descentralidade é
mostrada no grafo abaixo através dos indivíduos que assumiram a postura de
“especialistas”.
Esses “especialistas” são justamente esses indivíduos citados que eventualmente
estão associados à Beira Mar e que desempenham atividades como doleiros, contadores e
empresários; atividades estas consideradas secundárias para o tráfico, mas essenciais para a
manutenção e continuidade da organização.
188
Por trás dos “especialistas”, das redes paralelas e da hierarquia familiar no interior
da organização de Beira Mar estão a centralidade e a descentralidade. Esses dois
mecanismos de organização constituem a base sob a qual o traficante erigiu seu negócio.
FIGURA 19: Organização descentralizada:
FONTE: produzido pela pesquisadora.
A descentralidade nesse contexto assume o papel de fragmentadora da organização,
permitindo a entrada de “especialistas” que, de um lado, desempenham papéis centrais mas,
de outro, não usufruem de seu papel de chefia em alguma instância. Os indivíduos
responsáveis pela descentralização na organização são os “especialistas” em lavagem de
dinheiro, como doleiros, empresários e suas irmãs, administrando as contas bancárias e a
compra e venda de grandes cifras de droga quando Beira Mar precisa “desaparecer por uns
tempos” ou está preso e, finalmente, os indivíduos que realizam o tráfico de drogas em
outros munícipios do país, fora do controle direto do traficante.
Já a centralidade é um papel que cabe única e exclusivamente a Beira Mar, sua
família e seus “braços direitos”. São papéis centrais que mantem o caráter hierárquico da
organização entorno de seu chefe.
189
A relação entre a centralidade e a descentralidade na organização de Beira Mar
permite que a mesma mantenha-se rígida em alguns aspectos, como no tráfico em si,
quando a hierarquia e a burocracia mantém a organização funcionando, mas também
permite que a organização ganhe flexibilidade em outras esferas aonde um trabalho
especializado e confiável, como da lavagem de dinheiro, precisa ser realizado sem a
pressão do grupo todo.
Uma análise da figura 19 sobre a descentralidade de Beira Mar permite observar a
importância da família do traficante para a configuração de seus negócios. Nesta rede, as
irmãs e mulheres do traficante assumem o papel de “pontes” entre os negócios lícitos e
ilícitos que o mesmo indiretamente comanda.
DÉBORA CRISTINA DA COSTA – vulgo “Bianca” - Presa - É também "testa de
ferro" do irmão, "FERNANDINHO BEIRA-MAR", agindo intensamente em
movimentar quantias em dinheiro na forma por ele determinada e figurando
como proprietária de bens móveis, imóveis e como dona de empresas destinadas
à lavagem do dinheiro do tráfico ilícito de entorpecentes, assegurando o proveito
das atividades criminosas. (…) ALESSANDRA DA COSTA - Presa - Irmã de
“Beira- Mar”, é "testa de ferro" de "BEIRA-MAR" na Fábrica de Gelo Bipolar
Ltda, negócio de fachada para encobrir o tráfico de drogas. (…) ELIZETE DA
SILVA LIRA - Atual esposa de "BEIRA- MAR" viajava com frequência para
visitá-lo, auxiliando-o na realização dos contatos entre os integrantes da
quadrilha, sendo certo, ainda, que o mesmo utilizava-se de sua conta corrente
para remessa de dinheiro proveniente do tráfico. (...) ALDA INÊS DOS ANJOS
OLIVEIRA - Presa - Uma das 3 namoradas de "FERNANDINHO BEIRA-MAR",
fazia os contatos de "BEIRA-MAR" com viciados da alta sociedade e
intermediava a venda da droga para os mesmos. (...) SUELI MARIA DA PENHA
- Presa - Agia como “testa de ferro” de “Fernandinho Beira-Mar”, emprestando
seu nome para as aquisições de imóveis realizadas pelo mesmo, inclusive em
outros Estados do País. A denunciada agia, ainda, na administração dos vários
imóveis pertencentes ao chefe da quadrilha situados no interior do Parque BeiraMar, sendo certo que era a encarregada de repassar o dinheiro obtido com os
mesmos para ALESSANDRA e DÉBORA (rés no Processo no 26.926) (...)
JACQUELINE ALCÂNTARA DE MORAIS - Uma das namoradas de "BEIRAMAR", recebe depósitos em sua conta para "lavar" o dinheiro do mesmo e
comprou em seu nome um aparelho de telefone celular IRIDIUM para uso
pessoal de "BEIRA-MAR", com o qual o mesmo fazia contato com sua quadrilha.
(…) JOELMA CARLOS DE OLIVEIRA - Ex-namorada de "BEIRA-MAR",
viajava com frequência para visitá-lo, auxiliando-o na realização dos contatos
entre os integrantes da quadrilha, sendo certo, ainda, que o mesmo utilizava-se
de sua conta corrente para remessa de dinheiro proveniente do tráfico. Viajava
ao Paraguai para informar-lhe os acontecimentos, enquanto lá esteve o
traficante homiziado. Foi assassinada por ter “traído” “Fernandinho BeiraMar” com Michel Anderson do Nascimento morto em agosto de 1999. Consta
que o corpo de Joelma foi esquartejado e exibido em um “carrinho de cimento”
ao longo da Comunidade Beira-Mar, intimidando seus moradores. Foi Joelma,
também, quem policiais do Rio de Janeiro detiveram na fronteira e por isso
190
respondem a inquérito de extorsão, tendo inclusive sido gravadas conversas
entre os policiais e o traficante. (CAMARA DOS DEPUTADOS, 2000,
p. 772 e segs.).
Essas são relações que, em geral, assumem a forma de tríades por serem relações
bilaterais estabelecidas entre Beira Mar, seus parentes e seus subordinados ou parceiros
conforme se vê quando Débora Costa e Alessandra Costa, irmãs de Beira Mar estabelecem
com o traficante uma ponte entre ele e Maria Rodrigues (ex-delegada de polícia militar)
através de quem as irmãs garantiam proteção policial para seus negócios em Minas Gerais.
Essa relação é marcada pelos laços de família com Beira Mar e pela amizade entre as irmãs
e Maria Rodrigues.
Outra relação descentralizada que assume a forma de duas tríades é estabelecida
entre Beira Mar, Alan Nascimento e Bruno França. Nela, o poder de comando de Beira Mar
é delegado a estes dois indivíduos que o exercem sob seus subordinados. O conteúdo dessa
relação é marcado pela amizade e confiança estabelecidas entre os três. Prova disso é que
Bruno esteve cotado para ser o possível sucessor do traficante (no caso de Beira Mar ser
morto), rivalizando apenas com Marcelinho Niterói - outro amigo de confiança do
traficante.
A associação de “especialistas” na organização como os doleiros encarregados da
lavagem de dinheiro aponta para uma mudança no perfil adotado pela organização de Beira
Mar: não se trata mais do registro do tráfico local realizado na favela, mas da necessidade
que a organização teve de expandir os negócios para outras esferas, inicialmente, através de
seus familiares, com a compra de “empresas fantasmas”, fazendas, veículos, etc., com a
finalidade de resguardar os lucros de seus negócios da polícia e do fisco.
Todavia, a organização de Beira Mar não é a única a realizar esse movimento entre
o tráfico e a diversificação de mercados criminais como a associação entre o tradicional
investimento em negócios imobiliários e o uso de sofisticados movimentos financeiros
realizados através de doleiros e contadores. Segundo análises preliminares da UNODC
(2010) sobre alguns grupos criminosos tradicionais, mostraram que organizações
hierárquicas (como máfias e cartéis) têm perdido espaço para organizações com estruturas
celulares em forma de rede, também observadas em grupos terroristas ou em partidos
191
políticos clandestinos. Parece que, na visão da UNODC, esses grupos sempre existiram no
tráfico transnacional, mas eram menos visíveis para as autoridades policiais. Entre suas
estratégias estaria a opção por se mostrarem como uma resposta adaptativa aos grupos
criminosos tradicionais.
A novidade na organização de Beira Mar está na adoção dessas duas formas de
organização (hierarquia e redes/células) combinadas simultaneamente, na medida em que a
organização começa de cima para baixo, como uma hierarquia, seguida de uma rede de
“especialistas” (atuando geralmente na lavagem de dinheiro) e que retorna à forma de
hierarquia nos níveis mais baixos de sua estrutura (aonde se dá a venda de droga no varejo).
Assim, sob o controle da família de Beira Mar e de seus “braços direitos” (traficantes) é
mantida uma estrutura hierárquica “clássica” para o tráfico realizado nas “bocas de fumo”
(descrita anteriormente). Ela está assinalada na figura 20, aonde pode-se ver que o
posicionamento da mesma está na base da organização, portanto, assume o perfil
hierárquico apenas para controle dos indivíduos que dela participam.
FIGURA 20: Organograma da organização de Beira Mar - Hierarquia 2 assinalada:
FONTE: produzido pela pesquisadora
Olhadas pela lente de Simmel (1983), essas diferentes maneiras de se organizar
assumem arquétipos que, de um lado, colocam o traficante como figura central influente
sobre seus “parceiros” de negócios, dando forma centralizada à sua rede. De outro,
192
permitem que dada a adoção de certas ferramentas, como empresas legais que “lavam” o
dinheiro da droga ou a divisão de tarefas, a organização assuma uma postura de
organização semi-flexível.
Skaperdas (2001) acrescenta que, ao lado de muitas máfias, como a siciliana, cuja
forma de organização adotada é a hierarquia, alguns grupos de jovens, como as gangues de
Los Angeles optam por uma estrutura plana organizacional com a liderança informalmente
reconhecida, outras, como muitas gangues de Nova York, assumem uma estrutura
hierárquica formal com diferenciação considerável de tarefas entre seus membros
(JANKOWSKI, 1991 apud SKAPERDAS, 2001). Isso mostra que esses grupos são
organizados hierarquicamente, formal ou informalmente. Todavia, em algum momento
fizeram uso de outros recursos organizacionais, como as redes, por exemplo. Um grupo que
aciona esses mecanismos correntemente são os maras.
Vista pela lente do Escritório de drogas e crimes da ONU (2002), a rede de Beira
Mar apresenta uma estrutura mista de hierarquias e redes. Em geral, consiste em uma série
de grupos criminosos com arranjos administrativos, forte identidade de pertencimento e a
presença de familiares, grau de autonomia para os grupos constituintes, uso da violência e
hierarquia regional.
Tal como as hierarquias ou as redes, as formas de organização adotadas por Beira
Mar acenam para a peculiaridade com que articulam centralidade e hierarquia – de tipo
mafioso - ao mesmo tempo em que permite que construções descentralizadas surjam e se
desenvolvam, sem afetar seus “negócios”.
6.3 CASO SÃO PAULO
No final dos anos 90, foram identificadas diferentes rotas do tráfico de drogas
passando pelo estado de São Paulo, e mais alguns mercados ilícitos, como o roubo de
cargas e a adulteração de aeronaves, que pareciam estar relacionados ao tráfico de drogas.
O caso São Paulo explorou essas duas vertentes e incluiu nas análises as complexas
relações expostas no relatório da CPI do Narcotráfico sob a alcunha do “Caso Campinas”.
193
Tráfico de drogas
Para construir o caso São Paulo a CPI do Narcotráfico se baseou nos dados
recolhidos a partir da CPI Estadual do Narcotráfico85, bastante rica em detalhes sobre o
processo de importação e exportação da droga. Para além dos dados dessa CPI estadual, o
caso São Paulo se tornou notório pela figura do empresário Wiliam Sozza - atuante no
mercado do roubo de cargas na região dos municípios envolvidos com o tráfico – a
chamada Rota Caipira
(ALMEIDA GALLO, 2012).
Fiscalizações realizadas (relatadas pela CPI estadual) em pistas de pouso comerciais
pelo Departamento de Aviação Civil em conjunto com a Polícia Federal denunciaram que
quem financia a conservação dos aeroclubes e pistas de pouso/ decolagens que compõem a
Rota Caipira é o narcotráfico.
Segundo depoimentos prestados à CPI estadual eram usados aviões de pequeno
porte, como monomotores ou bimotores, adaptados com tanques sobressalentes, permitindo
travessias de longa distância, como por exemplo, partindo da Bolívia até chegar ao estado
de São Paulo sem, necessariamente reabastecer (quando acontecem, os pousos para
abastecimento podem também ser usados para descarregar parte da carga). Vinda através da
Bolívia a droga podia percorrer diversos caminhos: ora entrando no Mato Grosso do Sul e
chegando ao interior do estado de São Paulo; ora vindo por cima do território paraguaio,
entrando pelo Paraná e chegando a São Paulo. Por via terrestre, a droga costumava chegar a
São Paulo, através do Mato Grosso do Sul, proveniente da Bolívia e da Colômbia, sempre
com paradas no estado do Mato Grosso do Sul, para abastecimento de combustível.
Uma vez dentro do estado de São Paulo a droga era descarregada em pistas de
pouso clandestinas ou lançada em canaviais, geralmente, na região de Presidente Prudente
e, a partir daí, seguia para as regiões onde estão os maiores centros populacionais e focos
do narcotráfico, tais como:
1) região de Presidente Venceslau, Presidente Prudente e Marília;
2) região de São José do Rio Preto, Catanduva, Votuporanga, Jales, Fernandópolis;
3) a região de Ribeirão Preto, região de Sorocaba, Campinas, Atibaia e São Paulo;
85
CAMARA DOS DEPUTADOS ESTADO DE SÃO PAULO, Comissão Parlamentar de Inquérito do
Narcotráfico, São Paulo, 2001.
194
4) a região do Vale do Paraíba, São José dos Campos e,
5) Baixada Santista e litoral norte.
A partir daí, o transporte da droga era realizado pelas Rodovias do estado de São
Paulo: os traficantes usavam, normalmente, as Rodovias Anhangüera, Castelo Branco ou a
Fernão Dias.
Outros casos de tráfico de droga no interior paulista foram relatados quando a CPI
estadual apurou a existência de hangares de montagem de aviões e pistas de pouso
clandestinas situadas no interior paulista, sobretudo na região de Atibaia.
A denúncia realizada por um ex-piloto de avião levou a Polícia Federal a investigar
uma série de pistas de pouso e hangares clandestinos localizados na região de Atibaia. Eles
eram utilizados para a manutenção das aeronaves e para a descarga de cocaína no estado. A
família de traficantes Morel, os traficantes Raul Salvia, Valdenor Marchezan e Irineu
Soligo localizados no Paraguai, e estados do Mato Grosso do Sul e Rio Grande do Sul,
respectivamente mereceram destaque pelos audaciosos transportes de droga da Bolívia e
Paraguai até seus estados de origem e depois para o estado de São Paulo.
A figura 21 mostra parte da organização empreendida para a realização desses
transportes que acabaram por configurar parte da Rota Caipira paulista.
Os citados traficantes se utilizavam de alguns mecanismos para transportar a droga
para São Paulo, tais como pilotos de avião, motoristas de caminhão e policiais que
garantiam que a droga alcançasse seu destino sem problemas; o dinheiro arrecadado com o
tráfico, por sua vez, ficava a cargo de “especialistas” em sua lavagem, como doleiros,
contadores e empresários.
195
FIGURA 21: Rede de traficantes do interior paulista:
FONTE: produzido pela pesquisadora.
Legenda: bandeiras: traficantes fornecedores e grandes receptores; cifrão: grandes centros de venda e lavagem de
dinheiro; aviões: pistas de pouso; caminhões: locais aonde a droga é descarregada ou arremessada (como canaviais);
ferramentas: oficinas de reparos para os aviões.
Apresentando condições bastante favoráveis por suas características e proximidades
com países produtores de drogas, o estado de São Paulo apresenta ainda grande densidade
populacional, alta renda per capita, ampla infraestrutura como portos, aeroportos e
rodovias, tornando-se um chamariz para o desenvolvimento de toda a forma de atividade,
inclusive o tráfico. Sua malha rodoviária é bastante densa, composta por estradas de grande
fluxo, estradas secundárias e vicinais que se interligam com os estados vizinhos, facilitando
o transporte de todo o tipo de mercadoria. Contudo, as deficiências da atividade
fiscalizadora por parte dos organismos policiais e de fiscalização de aduanas é o que mais
chamou a atenção da Secretaria de Segurança Pública do estado durante a CPI do
Narcotráfico. Um exemplo, extraído da CPI Estadual do Tráfico de Drogas aponta para a
facilitação que esta infraestrutura produz no tráfico de drogas e outros bens ilegais,
reproduzido na sequência e comentado na seção seguinte:
O Estado de São Paulo é considerado, pelos traficantes, o Estado propício para
passagem da droga que é remetida para a Europa e E.U.A. Geralmente,
embarcada pelo Porto de Santos que não sofre nenhuma fiscalização, pois a
movimentação do Porto é muito grande, facilitando, com isso, o suborno e a falta
total de fiscalização. Ainda assim, temos que refletir sobre uma mudança da
196
legislação nas zonas aduaneiras, pois da forma que é feita não gera efeito
nenhum. Analisamos apreensões feitas pela Receita Federal, nos últimos anos,
conforme a declaração do Inspetor chefe da Receita Federal, em Santos, durante
seu depoimento, quando a CPI esteve instalada na Assembleia Legislativa do
Estado São Paulo. Enquanto o mesmo dizia que não havia tráfico de droga, nem
contrabando de armas, no Porto de Santos, recebemos denúncia da testemunha
de codinome “Rogério Gonçalves”, de que só a Sônia Aparecida (Maria do Pó),
enviava a cada 18 dias, por uma pessoa de nome Simone, 100 Kg. de cocaína
para a Europa, pelo Porto de Santos. Recebemos também, denúncia de que as
armas provenientes de Miami, entram por esse Porto com destino ao Paraguai,
misturada geralmente, com peças de motocicletas e automóveis e muitas vezes
são descarregadas no próprio território Paulista, refutando, assim, as
declarações do Inspetor Chefe, de que desconhecia qualquer contrabando de
armas ou tráfico de drogas. O que se nota, ao longo de nosso trabalho é que o
tráfico movimenta tanto dinheiro que os sistemas de fiscalização do Estado
acabam colaborando para a passagem da droga. (CAMARA DOS
DEPUTADOS, 2000, p. 949).
O Caso Maria do Pó ou Caso Campinas
O caso do tráfico de drogas no município de Campinas e cidades da região86
relatado na CPI teve início no ano de 1999, quando aproximadamente 323 quilos de
cocaína foram apreendidos por acaso durante uma perseguição à supostos assaltantes
de banco. Policiais suspeitaram de uma chácara na estrada que liga Indaiatuba à Itupeva e
resolveram revistar o local. Em vez dos assaltantes de banco, encontraram cinco traficantes
e a droga escondida em latas de leite em pó localizadas em fundos falsos de quatro carros.
Foram presos em flagrante quatro brasileiros e um peruano. Eles disseram que a
cocaína chegara ao Brasil de avião. O carregamento, segundo eles, estava acondicionado
dentro de latões, que foram jogados pelo avião num matagal. Ela seria vendida a traficantes
de São Paulo e do Rio de Janeiro. Os homens presos foram enviados a diferentes
penitenciárias do estado para evitar uma ação de resgate.
Essa foi uma das maiores apreensões de droga no estado de São Paulo relatada no
período. Estranho foi o fato de que a polícia a armazenou no Instituto Médico Legal de
Campinas (localizado ao lado do 1o Distrito Policial de Campinas), sem nenhum esquema
de segurança, para incinerá-la depois. Sonia Aparecida Rossi (a Maria do Pó), a líder de
uma organização criminosa situada na região de Campinas solicitou ao então delegado da
86
http://www2.uol.com.br/JC/_1999/0202/br0202j.htm
197
Polícia Civil Ricardo Lima87 a recuperação dessa droga alegando que a mesma era de sua
propriedade.
A droga desapareceu cinco dias após sua apreensão e os ladrões levaram 291
pacotes de cocaína sem serem notados por ninguém. Para a promotoria do estado, o
delegado responsável deveria ter mantido a droga em local adequado e o IML não era esse
local.
A organização de Maria do Pó investigada pela CPI era encabeçada pela citada
traficante contando com a ajuda de outros dois indivíduos-chave, considerados “os
cabeças” do tráfico de drogas orquestrado por Maria do Pó. Tratam-se do marido de Maria
(Bruno) - aonde prevalecem os laços familiares, e do braço direito da mesma (Glauco) onde estão presentes os laços de amizade e confiança.
Casado com SÔNIA APARECIDA ROSSI, conhecida como "A RAINHA DO PÓ".
Relatou como foi preso na cidade de Indaiatuba/SP com os 340 KG de cocaína,
que posteriormente sumiu do IML de Campinas. A droga era destinada ao Rio de
Janeiro e São Paulo. Quando foi fazer a negociação para a compra dos 340 KG,
fez contato com um boliviano no Hotel Nacional na cidade de Corumbá/MS. A
droga, avaliada em mais de um milhão de dólares, veio de avião até Indaiatuba e
foi arremessada em cima de um canavial, tendo sido arrecadada por BRUNO ou
CLÁUDIO ou GILBERTO, pelo peruano Walter Tazano e por um elemento
conhecido por Eduardo (mencionado nos autos do processo) transportada na
Camioneta Ranger que também foi apreendida (p. 1011) (…)Que, quando da
transferência da droga, o depoente entregou R$ 50.000,00 (cinquenta mil reais)
a cada um dos quatro policiais ali presente. São eles: Juarez, Nivaldo, Nilton e
Lima. A transferência da droga foi escoltada pelos policiais até que o depoente
se encontrasse com “Maria do Pó” e um rapaz chamado Sandro que levou a
droga para o destino desconhecido pelo depoente. Esclarece o depoente que um
indivíduo chamado Glauco, residente na rua Serra do Botucatu, no 963 –
Tatuapé/SP, é sócio de “Maria do Pó”, e fez fortuna com suas atividades ilícitas.
Após sofrer um atentado contra sua vida, o depoente, ficou sabendo por um dos
autores do atentado, de nome Nilton, que sua cabeça (do depoente) está cotada
em R$ 50.000,00 (cinquenta mil reais). (CAMARA DOS DEPUTADOS,
2000, p. 985)
A figura 22 destaca Maria do Pó, seus aliados e o delegado Ricardo Lima que a
ajudou no resgate da droga de dentro do IML de Campinas. O delegado Ricardo de Lima
foi indiciado pela CPI do Narcotráfico, sob acusação de irregularidades na realização do
flagrante de apreensão da citada cocaína, mas foi posteriormente inocentado.
87
Um ano depois, a Justiça inocentou o ex-delegado Ricardo de Lima da acusação de tráfico de drogas e
facilitação para o furto da cocaína.
198
Interessante notar que, apesar da ascensão do uso do Crack e outras drogas
sintéticas em São Paulo já terem sido detectadas no final da década de 90, o relatório da
CPI do Narcotráfico não cita este tipo de droga. Bem como, não cita a existência do
Primeiro Comando da Capital em momento algum dos relatos, embora a origem deste, date
do início dos anos 90 e à época, já estivesse se responsabilizando pelos interesses de presos
e ex-apenados.
FIGURA 22: Rede de Maria do Pó – parcial da rede de Sozza:
FONTE: produzido pela pesquisadora.
A forma estabelecida pela organização de Maria é uma variante hierárquica
presente entre organizações com fortes sistemas internos de disciplina, liderança única,
controle de território, etc. Nela, os indivíduos estão conectados com a líder, Maria do Pó,
com quem mantem relações comerciais baseadas nos laços de confiança e no temor do uso
da violência. Dela recebem a cocaína que redistribuem em suas cidades de atuação
localizadas no interior de São Paulo. Nas investigações realizadas pela CPI do Narcotráfico
não está descrito como Maria do Pó lavava seu dinheiro proveniente do tráfico, o que é
conhecido é que a droga por ela distribuída tinha origem na Bolívia.
A forma é a estrutura burocrática estabelecida, baseada, por sua vez, nos laços
comerciais estabelecidos: todos compram e vendem exclusivamente para Maria do Pó.
199
Caso Sozza
Conforme o depoimento de Jorge Meres, um integrante remoto do grupo
encabeçado pelo empresário William Sozza, o delegado Ricardo Lima tinha relacionamento
de natureza criminosa com Sozza e foi apontado como um dos principais dirigentes de uma
organização criminosa na cidade de Campinas.
Para esclarecer isso, o irmão de Sozza e o motorista Jorge Meres passaram por uma
acareação. Meres afirmou ainda que Sozza revendia cargas roubadas de medicamentos para
a Associação Brasileira da Indústria Farmacêutica. Além disso, foi acusado do
envolvimento com o “caso PC Farias” através das pessoas de Hildebrando Pascoal, José
Gerardo e Augusto Farias – relatado mais adiante no Caso Alagoas. Essa rede se estende e
se conecta remotamente ainda com a rede de Maria do Pó através da figura do delegado
Ricardo Lima, conforme mostrado na figura 23.
A rede mostra a dinâmica e a expressividade da organização encabeçada por
William Sozza. A ela está vinculada à rede de Maria do Pó (através da conexão
estabelecida pelo delegado Ricardo Lima – se Lima cai, a conexão entre Maria do Pó e
Sozza se fragmenta e os recursos de “mercadorias políticas” de Sozza e de Maria do Pó
ficam escassos)88. Na figura 23 estão mostradas as conexões entre o Esquema PC Farias
(estabelecida através da figura de José Ricardo Xavier e dos doleiros encarregados da
lavagem de dinheiro do empresário PC Farias), conexões com o roubo de cargas (através de
Carlos Waldir e demais indivíduos a ele associados, como policiais, empresários, etc.).
Enfim, trata-se de uma rede que envolve múltiplas formas de associação e diferentes
mercados criminais. Pode ser caracterizada, segundo a conceitualização da ONU (2002),
como um conjunto de grupos criminosos que estabeleceram um sistema de coordenação e
controle, o qual varia a intensidade de suas relações (de fraca a forte) ao longo de suas
varias atividades.
88
Essa conexão e sua importância (bem como as conexões subsequentes) somente puderam ser constatadas a
partir da triangulação. Primeiramente, foram levantados os nomes envolvidos nesse caso, bem como as
relações estabelecidas entre eles. Então, esses nomes e suas ralações foram inseridas em um software de
análise de redes sociais que permitiu visualizar que um grupo estava conectado a outro a partir da figura de
um indivíduo (Ricardo Lima) cujo papel e importancia somente seria levantado depois desse procedimento.
200
A partir dos depoimentos prestados e das narrativas da CPI, percebi que a
organização de Maria do Pó é composta quase que exclusivamente de relações fracas,
caracterizadas como aquelas baseadas no medo e no uso da violência, indicadores de que a
confiança e outros laços não são requeridos nessa organização. Por outro lado, a
organização de Sozza e PC Farias é composta por laços fortes baseados na amizade e em
uma sociedade estabelecidas pela confiança e pelo caráter comercial/empresarial, na qual,
segundo Mingardi está presente a divisão do trabalho (criminal). Cabe aqui esclarecer que a
divisão do trabalho criminal nos casos analisados é um dos traços marcantes do crime
organizado que se estabelece independentemente da forma organizacional adotada.
De modo geral, a figura 23 apresenta uma série de grupos criminosos, administrados
e arranjados em forma de cluster, com forte identidade estabelecida dentro dos
agrupamentos constituídos, mas com um grau de autonomia relativo entre os grupos,
formação fortemente ligada ao contexto social no qual exercem suas atividades e segundo
as características profissionais dos indivíduos participantes.
FIGURA 23: Interconexões entre as redes de Sozza, Maria do Pó, Roubo de Cargas, PC
Farias.
FONTE: produzido pela pesquisadora.
Legenda: Linhas azuis: relações fracas; Linhas vermelhas e amarelas: relações fortes.
201
A forma assumida por essa rede é um misto de tríades e pontes com conexões
indiretas, que caracterizam uma série de redes. Seu conteúdo é variável segundo os
interesses e o tipo de relações estabelecidos entre os indivíduos da rede, por exemplo: a
porção da rede estabelecida entorno de Sozza, Waldir, Burdini, entre outros, se liga aos
casos de roubo de carga com o fim de dar vazão às mesmas no mercado legal. Já a relação
de Sozza com o advogado Arthur Eugenio Mathias se caracteriza pela lavagem de dinheiro
de Sozza e pela legalização de suas empresas.
Além do que foi falado por Jorge Meres, nas buscas efetuadas no escritório de
seu ADVOGADO ARTUR EUGÊNIO MATHIAS, foram encontrados vários elos
de ligação entre William, Artur Eugênio, Carlos Eduardo Valdir, Antônio Carlos
Viotti, José Valdir Júnior, Marco Aurélio Sozza, Geraldo da Silva Bordini Júnior
e Anselmo Lopes Miyabara, o que pode ser caracterizar a formação de uma
quadrilha organizada para o crime de roubo a carga na região do Estado de São
Paulo, onde William e Marco entrariam com os barracões, legalização, venda e
distribuição da carga. Geraldo seria o "testa de ferro" e "laranja" de William.
Viotti, José Valdir e Carlos Valdir, seriam os encarregados do roubo da carga e
controle até a legalização por parte de William, e Artur Eugênio seria, em
principio, o "jurídico" da organização, sabendo de tudo, efetuando os acertos
legais quando alguém da quadrilha fosse preso, repassando as informações a
William. (CAMARA DOS DEPUTADOS, 2000, p. 994)
Dentro da organização de Sozza, por sua vez, são encontrados diferentes tipos de
relações e de atividades desempenhadas por seus membros: os policiais, por exemplo,
realizam a função de segurança e acionam as “mercadorias políticas” para garantir que a
operação funcione sem a ação punitiva ou flagrante de outros policiais; os empresários, por
sua vez, realizam o trabalho do roubo de cargas, revenda das mesmas e lavagem do
dinheiro arrecadado. A inter-relação entre essas diferentes atividades desempenhadas no
interior da organização podem ser verificadas na Figura 24 que evidencia ainda o caráter
centralizador de Sozza. Na seção seguinte é possível entender como as operações que
deram origem a essas relações, funcionavam.
202
FIGURA 24: Organização de Sozza:
FONTE: produzido pela pesquisadora.
Legenda: Vermelho: empresários; amarelo: policiais e advogados; cinza: ladrões de cargas.
Roubo de Cargas
Nos anos 90 o roubo de cargas cresceu espantosamente: no estado de São Paulo, a
preferência dos assaltantes era por cargas de cigarros, medicamentos, cosméticos, gêneros
alimentícios, determinados produtos químicos, etc. Essas cargas (e também os caminhões)
geralmente eram revendidas ou trocadas por cocaína na fronteira Brasil/Paraguai
(CAMARA DOS DEPUTADOS, 2000, p. 992 e segs.).
Dados da Associação Nacional do Transportes de Cargas (ANTC) e a
Confederação Nacional de Transporte (CNT) revelam que, de janeiro a
junho de 1999, foram registrados 1.493 ocorrências de roubo de cargas
de caminhões resultando em prejuízo de R$247,4 milhões em apenas seis
meses. No ano passado, a ANTC/CNT registraram 4.200 ocorrências e um
prejuízo de R$315 milhões. (DIÁRIO DO SENADO FEDERAL,
2003, p. 06).
Inúmeras rotas foram utilizadas para esse tipo de crime, mas a principal era a rota de
São Paulo, passando pelo Vale do Paraíba e chegando ao Rio de Janeiro através da Rodovia
203
Presidente Dutra. Era justamente nesse trecho que aconteciam os roubos de cargas e
também o transporte de drogas89.
Um evento bastante emblemático envolvendo o grupo de Sozza foi denunciado pelo
caminhoneiro Jorge Meres que prestou depoimentos à CPIs do Narcotráfico e do Roubo de
Cargas.
Até a denúncia de Meres, Sozza era conhecido apenas como um pequeno
comerciante envolvido com boates, revenda de automóveis e que comprava mercadorias
(suspeitas de serem oriundas de carregamento roubado) abaixo do preço de mercado. Foi
Meres, contratado por Sozza, quem denunciou o esquema que “chocou” a CPI por sua
engenharia e organização: ele teria trabalhado em alguns roubos de cargas e caminhões e
estaria presente no momento da decisão sobre a morte de um delegado maranhense que
estaria investigando os crimes da organização realizados também no Maranhão.
Meres descreveu em detalhes como se davam as operações: geralmente um carro
com policiais interceptava os caminhões (alvos), seqüestrava seu motorista, o levava para
um cativeiro provisório enquanto um outro grupo conduzia o caminhão para o transbordo
da carga e para efetivar o roubo do veículo. Em seguida o motorista era solto e os
indivíduos se dissipavam. A carga era distribuída através de revenda para supermercados da
região de Campinas à baixo-custo e o caminhão era conduzido até o Paraguai aonde era
trocado por drogas e armas90.
A estrutura de negócios do roubo de cargas descrita acima constitui um nicho de
mercado 91 com os laços fracos verificados por Granovetter como reuniões efêmeras
realizadas, por sua vez, em um tipo de organização cuja divisão do trabalho azeitava de tal
maneira a engrenagem criminosa estabelecida entorno do roubo de cargas dispensando a
presença de uma liderança para que a mesma funcionasse sem problemas. Tal como aponto
no fragmento abaixo, extraído do relatório da CPI do Roubo de Cargas (2003).
Durante os trabalhos, revelou-se a complexa teia de relações entre as pessoas
envolvidas no roubo de cargas, a evidenciar a existência de intricado esquema
criminoso, em que várias quadrilhas interagiam, de modo a formar uma grande
rede de roubo e receptação. Cada elemento dessa rede tinha seu papel e sua
89
Nessa região existem muitas pistas de pouso e decolagens utilizadas para o tráfico.
Em tom de ficção, Christino (2003), faz um relato bastante parecido no livro “Por dentro do Crime”.
91
O conceito de nichos de Mercado serão melhor explorados no capítulo seguinte.
90
204
especialização, como elos de uma corrente tracionadora do crime de roubo de
cargas. (op. cit., p. 205).
A morte do delegado Stênio
Era 1997 e um caminhão roubado estava sendo investigado pelo delegado Stênio no
estado do Maranhão. O caminhão fora levado de São Paulo para o Maranhão por Meres a
mando de Sozza. Mas pertencia a um outro ladrão de cargas conhecido no Maranhão pelo
codinome “Bel”. Notório ladrão da região de Santa Inez/MA, Bel se especializara no roubo
de carros e cargas e eventualmente assassinava quem lhe causasse problemas.
Sobre o caminhão roubado, Stênio descobrira que Meres, juntamente com Bel, o
havia descarregado no meio do caminho, em uma fazenda do Vale do Buriticupu/MA jamais localizada - para depois escondê-lo em uma garagem utilizada pelos deputados
estaduais Chico Caíca e José Gerardo e pelo empresário Joaquim Laurixto, todos
conhecidos de Bel. Com isso o delegado Stênio estava chegando perto dos “cabeças” do
crime.
Tudo ficaria bem, não fosse o assassinato do delegado em plena luz do dia. Meres
fora preso juntamente com o bando de Bel, e decidiu prestar testemunho na CPI do Roubo
de Cargas e depois na CPI do Narcotráfico para tentar reduzir sua pena.
Em um dos seus primeiros depoimentos, o caminhoneiro contou sobre uma suposta
reunião de cúpula realizada na cidade de Campinas/SP, aonde decidiu-se sobre a morte de
Stênio.
Ele contou também que os mandantes do crime foram Hildebrando Pascoal,
William Sozza e o ex-deputado alagoano Augusto Farias 92 - a CPI acreditou - mas
investigações da Polícia Federal revelaram que o bando de Bel, com a colaboração de
policiais e inspiração de Caíca e Gerardo (amigos de Bel) foram os verdadeiros mandantes
e assassinos do delegado. Pouco tempo depois de preso o bando de Bel fora chacinado no
interior do Maranhão. Morreu com eles os fatos.
92
Que foi inocentado desse crime.
205
Uma vez nas mãos da polícia, Meres criou uma versão para o homicídio de Stênio e
contou inúmeras estórias93 sobre um suposto “acordo” de cooperação existente entre grupos
criminais atuantes no Acre, no Alagoas e em São Paulo/Maranhão visando o tráfico de
drogas, roubo de cargas e carretas e a lavagem do dinheiro obtido com essas operações. A
partir das leituras do relatório da CPI, associadas às informações retiradas da mídia, não é
possível dizer se foi somente Meres o arquiteto dessa “fábula” ou se membros da própria
CPI do Narcotráfico o “inspiraram” a produzí-la. A impressão causada é que trata-se de um
acordo de cooperação insinuado (ou o incentivo de redução de pena na prisão que Meres
obteve após seus depoimentos), que poderia estar encobertando outros indivíduos
verdadeiramente envolvidos com o tráfico de drogas, roubo de caminhões e crimes conexos
no estado de São Paulo. Nesse caso, mais uma vez, a estratégia dos “buracos estruturais”
pode estar sendo acionada para encobertar os verdadeiros chefes do crime organizado.
Perfil dos envolvidos
Em sua maioria são discriminados homens com ampla influência econômica, como
empresários e advogados responsáveis pela “cobertura” dada ao esquema do roubo de
cargas.
O caso São Paulo apresentou uma classe de cidadãos considerados “poderosos” em
suas regiões de atuação,
que participavam, organizavam e sustentavam uma organização
interestadual, relativamente autônoma. O caso também apresentou alguns poucos agentes
do Estado cuja função era garantir que as operações transcorrecem com sucesso e sem
imprevistos, como é o caso dos policiais envolvidos com Sozza que atuavam no transbordo
e abordagem dos caminhões roubados nas estradas. É o que mostra o trabalho desenvolvido
por mim em conjunto com as professoras Angelina Peralva e Jacqueline Sinhoretto:
93
Ao longo dessa seção recapitulei brevemente algumas dessas estórias, todavia, muitas delas nunca foram
confirmadas e, inúmeros trechos do depoimento do citado caminhoneiro não foram confirmados, como por
exemplo, a participação do caminhoneiro na fatídica reunião de cúpula ou sequer a existência física do citado
hotel em Campinas. Essas incongruências nos fatos foi percebida após a triangulação dos dados do relatório
da CPI com a análise de redes, aonde foram constatadas inconstâncias e falhas no relato dos fatos. Essas
brechas foram fechadas a partir de dados levantados em outras fontes, como a mídia local:
http://www.oimparcial.com.br/app/noticia/urbano/2013/03/25/interna_urbano,132055/envolvido-no-caso-damorte-de-stenio-mendonca-vai-a-juri-popular.shtml e http://www.dgabc.com.br/Noticia/330007/caica-mudadepoimento-e-nega-acusacoes
206
Parece haver neste caso maior autonomia organizativa das redes criminais em
relação ao Estado, com um funcionamento do mercado da droga menos
dependente das redes políticas strictu sensu (...) os indivíduos paulistas
aparecem desempenhando as atividades centrais, de distribuição no atacado,
serviços judiciais (especialmente importantes em portos, aeroportos e estradas),
recursos financeiros e lavagem de dinheiro. Atividades bastante especializadas e
centrais para todo o mercado da droga (PERALVA, SINHORETTO e
ALMEIDA GALLO, 2010, p. 14 e segs).
O mesmo apontou Michel Misse (2007), ao assinalar que as redes sociais que
interligam mercados legais e ilegais percorrem completamente o conjunto do tecido social,
econômico, político, tanto local quanto global.
Com isso, se de um lado, não há estereótipos e indivíduos estigmatizados, como
traficantes, ladrões e bandidos, como é o caso de alguns empresários e políticos, de outro,
importantes segmentos sociais acionam novas redes que fazem emergir relações de poder
escusas que demarcam territórios políticos e alcançam as fronteiras do Estado, defendidas
por seus representantes legais. É o caso, por exemplo, de alguns indivíduos que constam na
mídia como investigados pela CPI, mas que não aparecem no relatório. Alguns desses são
vereadores de Campinas, presidente de clube de futebol e empresários que foram acusados
de terem pago suborno aos relatores da CPI que se encarregaram desse caso e hoje figuram
como possíveis “buracos estruturais” na composição da organização94.
Possivelmente seja esta a razão pela qual alguns indivíduos foram “inocentados”
dos casos investigados pela CPI antes de mesmo de passarem pelo crivo da Justiça – a
exemplo de um empresário da região de Campinas que foi investigado pela CPI por fazer
parte do esquema narrado por Meres que envolveria organizações dos estados de São Paulo
e Alagoas sob o comando do ex-tesoureiro de Fernando Collor de Mello, PC Farias.
Segundo a Revista Istoé95, o citado empresário teria sido investigado por realizar doações
de campanha para Collor, por lavagem de dinheiro de PC Farias e por tráfico de materiais
químicos utilizados no refino de cocaína. Todavia, suas declarações nunca constaram do
relatório da CPI e o parlamentar encarregado desta investigação, Robson Tuma, aumentou
94
Esses “buracos estruturais” puderam ser percebidos a partir da triangulação metodologica utilizada na
presente pesquisa e, de certa forma, serem eliminados a partir de informações levantadas pela mídia da época.
Todavia, certas informações, apesar de sua importância, não se encaixaram na reconstrução das organizações
estudadas, como o exemplo a seguir: http://www.terra.com.br/brasil/2000/12/06/137.htm
95
http://www.istoe.com.br/reportagens/32189_SOU+UM+BAGRINHO+ e
http://revistaepoca.globo.com/Revista/Epoca/0,,EMI166202-15518,00.html
207
sua fortuna pessoal na ocasião, sendo acusado pela imprensa de ter aceitado propina96.
O caso São Paulo, destaca-se também pelas figuras públicas que o acompanham.
Elas dizem respeito ao tipo de crime realizado e sobre o perfil e extensão do sigilo e
confiança existente entre os envolvidos. Trata-se de uma rede que combina empresários que
trabalham e incentivam o roubo de cargas, empresários que “esquentam” as cargas
roubadas em seus estabelecimentos, doleiros e advogados que somam forças para tornar
lícita as atividades ilícitas do grupo e, finalmente, policiais que dão cobertura ao esquema.
Um organograma dessa organização adquire o seguinte perfil:
FIGURA 25: Organograma da organização liderada por Sozza:
Empresário
(SOZZA)
Esquema
PC
Advogado
Roubo
de
Cargas
Policiais
Lavagem
de
dinheiro
FONTE: produzido pela pesquisadora
Analisando os empresários e empresas envolvidos com os esquemas ilegais de
Sozza, é notável que não se tratam de associações intrinsecamente ilícitas, mas de empresas
que conciliam atividades lícitas e ilícitas em diferente medidas e variando conforme a
necessidade que se apresenta. A lavagem de dinheiro, por exemplo, é um mercado
duplamente envolvido com o legal e o ilegal: de um lado apenas realiza negócios de
compra e venda de imóveis, compra e venda de mercadorias (sem questionar sua
procedência) e de outro, atua como ilegal quando tem conhecimento do dinheiro sujo com o
qual trabalha e ainda assim continua trabalhando com ele.
Fora dos casos de verdadeiras associações ilícitas, não há um limite claro e nem
sequer aproximado que permita distinguir, entre uma empresa “legal” e outra
“ilegal”, porque sempre combinam atividades, sendo inclusive muito raro que
uma empresa “licita” não incorra em alguma atividade ilegal.
(ZAFFARONI, 1996, p. 62).
96
http://www.istoe.com.br/reportagens/32189_SOU+UM+BAGRINHO+
208
A soma desses mercados acionados nos fala sobre o caráter empreendedor que
existe nos indivíduos do caso São Paulo. Todavia, esse conjunto também pode estar
encobrindo realidades que parecem não existir nesse estado, tais como as chacinas, o uso da
violência e o tráfico em grande escala – este último abordado no estudo sobre a Rota
Caipira, mas ausente das investigações e análises posteriores.
Finalmente, a figura 24 (exibida anteriormente), associada ao organograma 25 nos
dá pistas sobre a forma de rede empresarial e descentralizada adotada por Sozza. Nela,
estão contidas muitas tríades que trabalham autonomamente, mas que sempre dialogam e se
conectam com seus “chefes”. Por exemplo, a rede formada por Geraldo Burdini, Carlos
Valdir, Anselmo Lopes, José Valdir, Antônio Viotti e Arthur Eugenio – trata-se de uma
rede especializada no roubo de cargas e no “esquentamento” da mesma. Ela trabalha
autonomamente à liderança de Sozza, mas sempre se reportando a este. O conteúdo dessa
rede é o interesse pelo roubo de cargas, motivado pelo ganho fácil. Todavia não parece
existir qualquer disputa por liderança, traços de traição, ou desconfiança entre seus
membros, antes, a cooperação e o trabalho realizado em conjunto a tornam uma rede
dinâmica e flexível. A forma adotada, portanto, é a organização em redes autônomas,
também analisadas como “oportunistas”.
“Empresa criminal”
A especificidade dos relatos do caso São Paulo, tais como os crimes de roubo de
cargas, tráfico de drogas e o crime de lavagem de dinheiro praticados no “esquema PC
Farias”97 acenam para um caminho aonde não são relatados fatos violentos. É como se no
estado de São Paulo as organizações não fizessem uso da violência, o que, sabe-se que não
é um retrato da realidade paulista.
Trata-se de “empresas criminais” que assumem diferentes formatos, variando
segundo seu campo de atuação, quais sejam: roubo de cargas, tráfico de drogas e lavagem
de dinheiro. Na figura 26 é possível observar como esses três campos “dialogam” e se
interconectam.
97
O esquema PC será melhor detalhado no caso Alagoas, neste mesmo capítulo.
209
Tratam-se de “empresas” do crime organizado que apresentam algumas
características típicas (MINGARDI, 2007) tais como um formato organizacional peculiar,
como a máfia, cujos (alguns) atributos são: a presença de hierarquias, previsão de lucros,
divisão do trabalho, planejamento empresarial e simbiose com o Estado. Atualizado, esse
formato organizacional também pode assumir a forma de redes (LOPES JR, 2009) na qual
os indivíduos integrantes se interconectam sem necessitar responder a uma autoridade
organizacional direta, diferente do que observamos, muitas vezes, com o tráfico de drogas,
aonde se vê um líder e uma rede hierárquica e divisão do trabalho constituídos em torno de
um indivíduo central na rede.
No caso da rede organizada entorno de William Sozza, ele é o indivíduo central e
articula todo o restante da rede. Todavia, existem núcleos de atividades específicas, como o
da abordagem dos caminhões a serem roubados e o de “desenrolar” das mercadorias
roubadas que funcionam com uma relativa autonomia.
FIGURA 26: Relações entre Roubo de Cargas, Tráfico de Drogas e o Caso PC Farias:
FONTE: produzido pela pesquisadora
De modo geral, os dois primeiros mercados criminais listados, a saber, o roubo de
cargas e a rede de apoio ao esquema PC (caracterizando a lavagem de dinheiro) se
comportam como empresas, por apresentarem redes descentralizadas ou minimamente
centralizadas entorno de alguns indivíduos que dividem a liderança.
210
Diferentemente, a rede estabelecida entorno da traficante Sonia Rossi (Maria do Pó)
que se comporta como uma típica hierarquia comandada por ela, com a ajuda do esposo e
de mais um indivíduo de sua confiança. Sob suas ordens encontram-se outros traficantes
que subdividem e ampliam a rede de ação de Maria do Pó.
Os referenciais analíticos do Escritório de drogas e crimes da ONU (2002) também
podem ser utilizados no presente caso para mostrar como as redes estudadas apresentam o
padrão de redes hierárquicas (típicas) e redes com camadas regionalizadas, aonde, no
padrão hierárquico típico, predomina a forma piramidal presente em hierarquias, enquanto
que nas hierarquias regionalizadas a forma predominante são as redes com um alto grau de
centralização entorno de alguns indivíduos (líderes).
No caso São Paulo, essa mistura entre redes hierárquicas típicas e regionais ajudam
a entender como a existência de lideranças únicas presentes em cada um dos exemplos
investigados definem, com relação ao caso de Maria do Pó: 1) presença de uma hierarquia,
2) sistemas de disciplina interna, 3) o uso de violência para controlar atividades, 4) a clara
influência ou controle sobre o território definindo associados em um grau relativo de
autonomia a nível regional aonde cada traficante no varejo poderia organizar seu ponto de
vendas da maneira que bem entendesse.
No exemplo do roubo de carga praticado pelo grupo de Sozza, o diferencial fica por
conta da distribuição regional de múltiplas atividades criminosas que coincidem e se
associam para formar uma estrutura centralizada e regionalizada, por sua vez, conferida a
partir de uma série de “especializações” dos indivíduos em torno de cada um dos
“mercados criminais” acionados. Nesse caso, temos 1) a presença de uma hierarquia que se
desdobra em redes autônomas, 2) especialização dos indivíduos associados, 3) autonomia
regional dos indivíduos baseada nas atividades desempenhadas, 4) não está registrado o uso
da violência – mas é conhecido que para a prática do roubo de cargas, o motorista do
caminhão geralmente é sequestrado, mas raramente morto.
211
6.4 CASO ACRE
O “caso Acre” é um misto de relatos de terror e extensas conexões entre grupos de
extermínio, narcotraficantes, policiais, empresários e políticos. Seu maior ícone foi o exdeputado federal Hildebrando Pascoal, ex-oficial da Polícia Militar do estado e articulista
de uma série de crimes bárbaros que impressionaram a opinião pública. Remontando a
estória que assombrou os acreanos é possível entender a essência e o medo que o nome de
Hildebrando trouxe a esse estado.
Década de 80 – o mito inicial
Nos anos 80 dois grupos de policiais militares disputavam o poder e o controle dos
esquadrões da morte no Acre. Hildebrando era na época apenas um sargento e não pensou
duas vezes em assassinar quase todos os membros do “alto clero” (codinome dado ao seu
grupo rival) e assumir o controle dos esquadrões da morte da Polícia Militar acreana. Como
resultado, durante anos a família Pascoal dominou um seleto grupo da Polícia Militar (PM),
tendo levado esse domínio para o caminho do crime organizado apenas no final dos anos
80.
O mito criado em torno da família Pascoal foi fortalecido pela impunidade quando,
na citada década, além da extinção do “alto clero”, eles mataram um médico, capitão do
Exército98 e foram absolvidos. Esse mito de que enfrentavam o Exército, matando inclusive
um capitão, gerou no povo, o medo de seu poder que ia além da Segurança Pública. Por
meio da estratégia da “falsa onipotência”, estratégia estrutural também utilizada pelas
máfias italianas quando corrompem políticos e policiais de modo a parecerem
“invencíveis” frente a sociedade, Hildebrando garantiu a invencibilidade de seu grupo.
Hildebrando
selecionava
cuidadosamente
seus
alvos,
subjugando-os
psicologicamente e alimentando com isso seu mito. Trata-se de uma estratégia mafiosa
também adotada pela Cosa Nostra na qual
as possibilidades de manipular o coletivo, orientando a representação de medo,
incutindo a paranoia e a impotência, recorrendo à consciência histórica da
98
Segundo Hildebrando Pascoal, o referido médico não teria prestado devido socorro a sua mãe que veio a
falecer em seguida.
212
opressão são credencias que conferem à Cosa Nostra, quase por um direito
historicamente adquirido, a licença para o domínio prepotente. Certamente as
duas dimensões, a realista e a simbólica, são cindidas, interagem e compõem um
único quadro diabólico, já que as instrumentalizações psicológicas conduzem
para formar dados reais, circularmente, reforçando mitologias (LO VERSO e
COPPOLA, 2010, in DINO e MAIEROVITCH, 2010, p. 133).
Década de 90 – os anos do COE
Dez anos mais tarde, em 1996 o primo de Hildebrando Pascoal, Aureliano Pascoal,
foi encarregado do Comando da PM e criou um grupo chamado Comando de Operações
Especiais (COE), com uma parte de seu batalhão fardado e outra ‘à paisana’. Todos os
policiais que já trabalhavam anteriormente para Hildebrando passaram a integrar esse
grupo, e desde então começaram a surgir os crimes bárbaros que o tornaram “famoso”.
Quando o irmão de Hildebrando Pascoal, Itamar, foi morto por um rival em 1996, as
ações do COE se tornaram ainda mais cruéis: a partir da caçada aos possíveis assassinos do
irmão, cadáveres apareceram mutilados no meio da rua, crianças e mulheres foram
sequestradas e autoridades afrontadas.
O resultado mais chocante e que atraiu a CPI para o Acre foi a execução de
“Baiano”. Baiano era motorista de José Hugo (já morto à época da CPI), inimigo de Itamar,
e foi executado em 1996 por ter sido cúmplice no assassinato de Itamar. Hildebrando
espalhou cartazes com a foto de José Hugo e a oferta de R$ 50.000,00 (na época) a quem
fornecesse informações sobre o paradeiro do inimigo. Por ignorar a localização do
comparsa, Baiano foi torturado e, ainda vivo, teve os membros lentamente decepados com
uma motosserra e os olhos extraídos. No início, o Baiano só pedia para não morrer,
descreveu Ezequiel, codinome de um dos pistoleiros de Hildebrando que depôs na CPI.
Hildebrando acompanhou de perto o martírio de Baiano com notável prazer e filmou toda a
ação.
Ele chorava e dizia que era inocente, [lembra a testemunha Ezequiel]. Ele estava
deitado de costas, amarrado, quando cortaram os braços e as pernas dele. O
tempo todo gritava que era inocente. O Hildebrando assistia a tudo friamente,
como quem vê a matança de um animal. O Baiano continuava vivo mesmo depois
de ter sido serrado. Pedia para morrer rápido (CÂMARA DOS
DEPUTADOS, 2000, p. 94).
Hildebrando finalizou a vingança desferindo diversos tiros contra a vítima. 48 horas
213
depois, o filho de Baiano foi queimado vivo com ácido e brutalmente assassinado.
Modo de ação e versões dos fatos
A organização de Hildebrando era dividida em duas partes: a primeira composta
pelos policiais que faziam parte do COE, que equivalia ao primeiro escalão do esquadrão
de extermínio do Estado do Acre; e a segunda composta pelos presidiários que eram
selecionados e recebiam uma carta de soltura redigida por Hildebrando para cumprirem
algumas ‘tarefas’ fora do presídio, como homicídios, tráfico de drogas, etc. e voltarem em
seguida para a prisão. Muitos desses, logo após cumprirem as ‘tarefas’ eram assassinados
como “queima de arquivo” pelo “esquadrão” de Hildebrando.
Além dos assassinatos e do terror imposto, Hildebrando também mantinha o
controle e o poder político local: durante o período eleitoral, sob suas ordens, seus policiais
iam na casa dos eleitores, pegavam seus títulos, anotavam o número do título de eleitor e a
seção em que votavam e diziam: Se nessa seção não tiver X votos (em Hildebrando), vão
ver (CÂMARA DOS DEPUTADOS, 2000, p. 65).
Hildebrando também foi acusado de pagar por alguns desses votos com droga. Daí
surgiu a conhecida Operação Marmitex, noticiada na mídia da época: “Os criminosos
entregavam cocaína em recipientes de marmitex” (...) “Era uma maneira de comprar votos
da população e garantir que Hildebrando continuasse no poder”99.
Houve um outro fato impune que gerou toda a audácia da família, quando o então
Major Hildebrando Pascoal, se envolveu num tiroteio no meio da rua com um Policial
Civil, chegando inclusive a correr atrás da pessoa baleada, que entrou em um ônibus para se
esconder, Hildebrando mandou o ônibus parar, entrou no veículo e matou o policial. Assim
que foi instaurado, o inquérito foi arquivado.
Além dos homicídios e da compra de votos, segundo a CPI, Hildebrando também
controlava inúmeros pontos de venda de drogas em vários munícipios acreanos e em outros
estados para onde ele enviava drogas, como Espírito Santo e Alagoas. Utilizando a
estratégia de manutenção do território pelo terror, a maioria das execuções eram
99
http://veja.abril.com.br/blog/augusto-nunes/o-pais-quer-saber/,
http://agazetadoacre.com/noticias/hildebrando-pode-ter-direito-a-regime-semi-aberto-a-partir-de-novembro/ e
outras fontes.
214
contratadas com o objetivo de dominar as "bocas de fumo" e eliminar traficantes vindos “de
fora”. Os traficantes adversários vinham geralmente da Bolívia, com grandes volumes de
cocaína. Após serem mortos, os membros do grupo de extermínio se apropriavam de suas
cargas bem como de seus pontos de venda.
A formação do estado acreano lança luz sobre o mito dos Pascoal no Acre
As narrativas sobre o caso Acre lançam luz à questão da articulação entre o poder
público e a criminalidade. Assinalando que a relação que se estabeleceu entre grupos
criminais e política pode ter se tornado formal e não aleatória, tal como as máfias italianas
que segundo Tilly (1996), controlaram por muitos anos os setores militares e milicianos e
influenciaram na formação do Estado italiano através do uso da violência e da guerra entre
grupos criminosos. No limite, é possível afirmar que
a estrutura do estado emergia sobretudo sob a forma de produto secundário dos
esforços dos governantes para adquirir os meios de guerra (TILLY, 1996, p.
61).
Todavia, a guerra por si só encerra a combinação de outros fatores – que
determinam a forma do Estado, tais como a concentração de capital, concentração de
coerção e mesmo da posição do Estado dentro do sistema internacional. Tal como o Estado
italiano que se formou com base em fortes alianças entre príncipes beligerantes e senhores
de terras armados, num esquema de mútuo favorecimento e exploração do campesinato
(TILLY, 1996, p. 213), também é possível pensar na formação do estado acreano. A partir
das batalhas e disputas pela terra que resultaram na chamada revolução acreana no século
XIX.
O desenvolvimento do Acre, dado a partir da revolução acreana (KLEIN, 2010), se
destaca como fenômeno típico de penetração moderna na história do Brasil, acompanhada
de importantes contribuições na projeção econômica do país (SILVA, 2007). Exercendo
papel de destaque na exportação nacional até 1913, quando a borracha foi introduzida nos
mercados europeu e norte-americano, o Acre conheceu um período de grande prosperidade,
de migração intensa e também de selvageria para com os povos indígenas que se
215
encontravam na região: na passagem do século, em menos de uma década, já contava com
mais de 50.000 habitantes.
Todavia, a anexação do Acre ao Brasil não se deu rapidamente e o Acre seguia
sendo governado por prefeitos departamentais escolhidos pela presidência da república até
1910 quando a revolta de Cruzeiro do Sul depôs o Prefeito Departamental do Alto Juruá e
proclamou criado o Estado do Acre, seguida por outras duas revoltas sufocadas pelo
governo federal brasileiro.
Coube ao governo federal reorganizar o sistema político administrativo com o
intuito de enfraquecer os movimentos autonomistas e centralizar a administração
territorial. Assim, em 1920, “pacificado e nacionalizado” o território do Acre
transfere sua recém capital de Sena Madureira para Rio Branco. Localizada no
rio Acre, a jusante de Xapuri, cresce e assume importante função na
convergência da produção e comercialização da borracha na região. A nova
capital firmou-se politicamente devido à posição geográfica importante para a
economia acreana e ao novo sistema administrativo centralizado, que extinguiu
os departamentos do Alto Acre, Alto Purus e Alto Juruá. (...)Na verdade, sequer
o auge da riqueza das exportações foi capaz de sanar uma série de mandos e
desmandos do governo federal em relação a administração do território acreano.
Dentre os principais problemas estava a falta de comunicação entre os vales do
rios Purus e Juruá, outro dizia respeito aos cargos federais empossados no Acre,
fossem militares ou representantes do judiciário, que via de regra não tinham
nenhum comprometimento com a região e sua presença em território acreano
era sempre passageira. Ademais, a riqueza que saía da região não retornava na
forma de verbas, investimentos ou infraestrutura. Porém, o que mais afetava a
vida administrativa eram as constantes mudanças na divisão territorial e a
inadequação nas medidas de organização interna do Acre. Um projeto de 1908
do senador da república Francisco Sá propunha a extinção das prefeituras e
estabelecia para o território um só governo.
(PIRES e NOBREGA, 2005,
s/p)
Desta feita, o Acre foi considerado “terra de ninguém” por muitas décadas e até os
dias atuais o estado ainda recebe essa conotação negativa, tudo porque sua organização se
tornou independente da ação do capital comercial, confiando fortemente na coerção para
obtenção dos resultados vislumbrados, aonde o mais forte dominava o território e, por sua
vez, o mercado. Nesse sentido, é possível dizer que onde prosperaram os senhores da terras
acreanas, nasceu um estado cujos habitantes não hesitam em empregar a coerção (TILLY,
1996, p. 224) e o uso da violência como formas de controle e manutenção de poderes e
território. Fatos bastante parecidos com o sul da Itália retratado por Tilly em Coerção,
216
capital e estados europeus (990-1992) e com as ações da família Pascoal para manutenção
de seu domínio político, ideológico e de atividades ilegais.
Tráfico de drogas100, empresas e empresários
Como dito, o crime organizado no estado do Acre estabeleceu-se a partir das
disputas pelo controle do território associadas ao capitalismo rural crescente na metade do
século XX em diante. Nessa lógica, empresários, homicidas e políticos desenvolveram uma
sinergia que permitiu-lhes prosperar uma vez que não estavam à margem, antes,
constituíam a sociedade acreana.
Das investigações realizadas pela CPI é possível inferir que o fenômeno do tráfico
de drogas no Acre vai muito além da figura de Hildebrando, mobilizando amplos
segmentos institucionais (polícia, justiça e políticos) e segmentos econômicos significativos
na região (como empresários e fazendeiros), tal como é possível verificar na figura a seguir.
FIGURA 27: Classificação das atividades dos indivíduos envolvidos com a organização de
Hildebrando:
FONTE: produzido pela pesquisadora
Legenda: Classificação dos indivíduos: amarelo: políticos e policiais; azul: atividades criminais; vermelho: empresários e
fazendeiros. Classificação das relações: verde: parentesco; vermelho: tráfico; azul: grupo de extermínio; preto:
corporativista da PM; laranja: associação profissional.
100
Nos casos investigados pela Comissão Parlamentar estão listados apenas eventos ligados ao tráfico de
cocaína, ignorando a expansão quase epidêmica do OXI no estado e o tráfico de drogas sintéticas que também
passavam pela fronteira Brasil/Colômbia na mesma época.
217
A inter-relação estabelecida entre Hildebrando e os citados empresários acreanos é
marcada pela existência de uma necessidade de expansão dos negócios ilegais do tráfico de
drogas operacionalizado por Hildebrando: ele está em contato com empresários locais que
podem ajudá-lo com suas exportações. Surge então o nicho de mercado da droga controlado
por Pascoal e seus empresários. Não se tratam de relações comerciais apenas, são conexões
que constroem e fortalecem o mercado da droga no Acre e que, segundo White e
Granovetter, constituem um nicho de mercado baseado em relações fracas, constituídas a
partir de um interesse financeiro e de uma oportunidade momentânea. Tratam-se de
ligações bastante efêmeras que acabam por se consolidar em um nicho.
No caso da aliança ascendente entre empresários, políticos e polícia, também é
nítido que as atividades econômicas lícitas não se beneficiam menos do que as ilícitas das
chamadas “mercadorias políticas” (MISSE, 2010). Para exemplificar isso, são apresentadas
nas linhas seguintes um breve resumo sobre as atividades desenvolvidas por alguns
indivíduos de prestígio e cujos ‘negócios’ se destacam entre as atividades lícitas e ilícitas
investigadas no estado do Acre.
•
Um dos empresários mais citados no relatório por suas ligações com o narcotráfico foi
Edilberto Morais101, vulgo Betão, proprietário de uma empresa frigorífica. Betão explicou à
CPI que obteve a exclusividade do abate do gado durante o governo estadual de Orleir
Cameli porque os demais matadouros não tinham condições de higiene, ao contrário do seu.
À época da CPI Betão possuía seis casas de carne e sublocava 16 outros pontos de venda,
para os quais detinha o monopólio do fornecimento no estado. Abatia no seu frigorifico de
3 a 4 mil cabeças de gado/mês, criados em fazendas de sua propriedade; o resto era de
terceiros. Vendia carne para Manaus, São Paulo e Rio de Janeiro. Nos inquéritos da CPI,
alguns depoentes acusaram-no de transportar cocaína da Bolívia para Manaus (AM) e Porto
Velho (RO) em carretas, misturada à carne congelada, ou ao couro do gado, cujo cheiro
forte impediria uma rápida identificação da droga. Por intermédio de um piloto acusado de
tráfico de drogas, vendeu uma fazenda de sua propriedade que esteve envolvida em uma
apreensão de drogas. Em outra fazenda de sua propriedade foi apreendido um avião com
carregamento de cocaína, mas ficou provado que ele nada tinha a ver com isso.
101
Não indiciado.
218
Hildebrando Pascoal e seu grupo do COE prestaram serviços de proteção ao frigorífico de
Betão durante os anos do final da década de 90. Ao final da estória contada por Betão e,
sabendo que o mesmo era amigo de Orleir Cameli que, como será mostrado, também esteve
envolvido com Hildebrando e com o tráfico de drogas no estado, tudo leva a crer que o
casos das apreensões de droga em suas terras não foram meras coincidências.
•
Raimundo Damasceno102, residente em Tarauacá (AC), era proprietário de uma empresa de
transporte fluvial de materiais de construção, alimentos, etc. Possuía balsas e três pequenos
aviões ligados à uma empresa de táxi aéreo (empresa do seu grupo). Á época da CPI seus
aviões transportavam pessoas e perecíveis de Rio Branco para Tarauacá. Possuía também
outras duas empresas de representação comercial em Porto Velho (RO). Sua carreira
empresarial foi meteórica: trabalhou até 1983 com o pai com projeção de filmes em um
cinema, depois até 1988 numa empresa pertencente a um importante empresário da região,
na qual foi gerente e onde ganhava 24 salários mínimos. Mantinha relações muito próximas
ao ex-governador do Acre Orleir Cameli. Possuía uma outra firma de transporte fluvial no
município de Envira (AM). Seu filho de sete anos foi sequestrado e morto, segundo
depoimentos, porque Raimundo devia dinheiro da droga a narcotraficantes colombianos. O
suposto assassino de seu filho, “Zé da Marieta” foi achado enforcado na delegacia onde
estava preso sob a vigilância de um delegado ligado à Hildebrando Pascoal. Raimundo é
outro empresário que possuía as “ferramentas” necessárias para transportar a droga do Acre
para o restante do país, era amigo de Cameli e foi “ajudado” por Hildebrando na captura do
assassino de seu filho.
•
O empresário “Carlinhos”, dono de uma empresa aérea era supostamente protegido de um
senador acreano, cujo nome não consta dos autos da CPI, ajudando-o na lavagem de
dinheiro. “Carlinhos” foi preso em 1982, na Fazenda Americana em Cerqueira César (SP),
transportando 100 quilos de cocaína. Sua empresa até hoje faz a rota Acre-Peru. Ele mesmo
teria uma pista de pouso dentro da sua propriedade para o transporte da droga. A
propriedade de “Carlinhos” era vizinha da Fazenda Baixa Verde, sobre a qual constavam
várias referências relativas a pouso de aviões com cargas de droga e de propriedade de um
102
Não indiciado.
219
empresário conhecido como “Alemão”, dono de duas das maiores empresas de abate de
gado do norte do país, concorrente do, já citado, empresário “Betão”.
•
Pela gestão de 1995 a 1998, o ex-governador do Acre, Orleir Cameli, foi acusado de
improbidade administrativa numa ação civil pública movida pelo Ministério Público do
Acre. Ele se apropriou de milhões de reais sem nem sequer apresentar um recibo de
pagamento. O Tribunal de Contas do Estado (TCE) do Acre constatou que não houve
prestação de contas do montante sacado de uma "verba secreta”. Cameli, estudou até a
quarta série do antigo primário, nasceu em Cruzeiro do Sul, no extremo oeste do país, a
partir de onde se tornou um dos empreiteiros mais poderosos da região Norte. Chegou a
possuir quatro CPFs e durante sua gestão foi flagrado no aeroporto de Cumbica (SP)
contrabandeando o carregamento irregular de um Boeing proveniente dos EUA. Responde
a dezenas de processos e já foi condenado na Justiça por invadir terras indígenas para
exploração de madeira103. Durante sua gestão como governador do Acre, Cameli, segundo
o ex-presidente do Conselho de Entorpecentes do Estado do Acre (CAMARA DOS
DEPUTADOS, 2000, p. 181), teria feito um “contrato de intenção” com uma empresa de
energia que se propôs emprestar US$165.000 ao estado do Acre, em troca da utilização por
dez anos, em regime de comodato, de um terço do território acreano. Tal empresa seria tida
como ‘fachada do cartel de Cali’. Cameli seria o importador da droga fornecida pelo cartel
de Cali no Brasil, através de uma empresa de propriedade de sua família e precisava de um
“álibi” para explicar a intensa movimentação aérea que seria provocada na região. Também
era o verdadeiro proprietário de uma empresa de taxi aéreo que constava como sendo de
“Carlinhos”, descrita anteriormente. Sâmia Haddock Lobo, ex-mulher de um traficante
chamado “Curica”, que pilotava para o ex-governador, foi presa em 1991 com 413 quilos
de cocaína, e em 1994, no Tocantins, com 7 toneladas de cocaína. A droga negociada por
Cameli seria transportada até Manaus e recepcionada pelo administrador do porto, um
parente seu.
•
A história de vida de Sâmia, piloto de Cameli, é bastante emblemática e produto do
universo criminal acreano, que mistura atividades econômicas, políticas e ilícitas: segundo
103
http://terramagazine.terra.com.br/blogdaamazonia/blog/2009/11/16/stj-mantem-condenacao-contra-exgovernador-por-exploracao-de-madeira-na-terra-indigena-ashaninka/
220
a reportagem das revistas eletrônicas Veja (30/06/1999) 104 e Folha de São Paulo
(12/11/1999)105 ela é descendente de uma família tradicional em São Paulo e, com apenas
34 anos foi acusada de chefiar uma quadrilha de traficantes de cocaína. Apaixonada por
aviões, abandonou o curso de direito aos 20 anos e tirou brevê de piloto. Contra a vontade
da mãe e com o apoio do pai, mudou-se para o Acre, onde se empregou em uma companhia
de táxi aéreo em Rio Branco. Passou dois anos transportando garimpeiros e conta que,
nesse período, chegou a ficar oito dias perdida na selva por causa de um acidente e comeu
até carne de macaco. Deixou a empresa quando comprou o próprio avião. Segundo Sâmia,
o transporte de garimpeiros lhe rendeu o suficiente para comprar quatro aviões, três
fazendas, uma empresa de extração de ouro, uma transportadora fluvial e uma companhia
de frete de lanchas no Amazonas. A Secretaria Nacional Antidrogas, inventariou que ela
possuía mais de 10 milhões de dólares em depósitos e bens na Suíça. Ela assegurava
possuir, no máximo, 1/20 desse montante, e que o conseguiu vendendo aviões e
transportando garimpeiros na Amazônia. À época da CPI os processos que tramitavam na
Justiça contra ela envolviam uma série de remessas ilegais de dinheiro para o exterior e seu
envolvimento no tráfico de drogas (1994) aonde a Polícia Federal invadiu uma fazenda no
Estado do Tocantins, e realizou uma das maiores apreensões de cocaína da história: 7
toneladas da droga. Uma das pessoas presas disse que a fazenda havia sido alugada por
Sâmia. Como foi casada com um traficante que na época encontrava-se preso, suspeita-se
que assumiu o seu lugar no comando dos negócios.
De modo geral, esses breves perfis e narrativas de negócios irregulares citados no
caso Acre ajudam a construir um substrato para analisar os negócios ilícitos realizados á luz
do Estado. No caso acreano, o crime organizado, não pode ser visto apenas como um setor
informal em franco crescimento, como Centeno e Portes (2003) assinalam, mas como um
mercado político completamente corrompido e ilícito que utiliza meios e mecanismos de
transporte e distribuição aparentemente lícitos para se consolidar.
104
105
http://veja.abril.com.br/300699/p_047.html
http://www1.folha.uol.com.br/fsp/brasil/fc1211199911.htm
221
As relações de Hildebrando
As relações estabelecidas por Hildebrando e seus parceiros no caso Acre levaram a
constituição de uma complexa organização tipicamente hierarquizada e encabeçada pelo
mesmo, conforme mostrado na figura 28 anteriormente apresentada.
A tipologia dessas relações aponta traços do conteúdo que está por trás das mesmas:
evidencia que as relações corporativas, por exemplo, são sustentadas por conteúdos como a
manutenção e o respeito por estruturas militares já calcificadas pelas corporações de polícia
militares através das quais Hildebrando coordenou seus subordinados; por outro lado, as
relações de parentesco e confiança apontam para um conteúdo baseado no medo e no
desejo de manutenção da organização sem a possibilidade (ainda que remota) de traição; as
relações profissionais, de sociedade e prestação de serviços são baseadas nos interesses do
lucro. De um modo geral, esse conjunto de relações remete à forma de uma hierarquia
consolidada, cujo conteúdo se baseia no medo, na confiança, no lucro e no respeito pela
tradição militar.
A gênese dessa organização aponta para uma estrutura cuja estória e formação
remetem às antigas máfias sicilianas, nas quais a palavra empenhada e a honra tinham um
valor simbólico altíssimo. Comparativamente às máfias, Hildebrando exerceria o papel de
capo e sob seu comando estariam alguns familiares e indivíduos de confiança que
retransmitiriam suas ordens a seus súditos. Esses indivíduos podem ser identificados como
constituidores de “sub-grafos”, como mostrado na figura 29 aonde é possível observar
como Hildebrando centraliza seu comando sobre os policiais, empresários, pistoleiros e
alguns traficantes e daí se formam sub-organizações que apoiam a organização principal.
222
FIGURA 28: Rede de Hildebrando com Subgrafos:
FONTE: produzido pela pesquisadora.
Legenda: sub-grafo 1: relações de Hildebrando com delegados (membros do COE); sub-grafo 2: grupo de extermínio e
tráfico de drogas liderado por Alex; sub-grafo 3: COE; sub-grafo 4: organização dos empresários e traficantes liderados
por Cameli.
A relação estabelecida entre os “sub-grafos” e a organização principal diretamente
liderada por Hildebrando aponta para a existência de uma hierarquia que se fragmenta em
pequenos grupos razoavelmente autônomos, com exceção apenas da organização de
pistoleiros, na qual Hildebrando apresenta estrito controle e se mostra diretamente ligado a
todos os integrantes do grupo. É possível realizar uma rápida comparação com a
organização de Beira Mar, apresentada no caso Rio de Janeiro, que mantém a hierarquia em
alguns pontos da organização e permite o estabelecimento de redes em outros níveis da
mesma – a organização de Hildebrando age de maneira relativamente análoga, todavia,
quando alcança o nível dos “sub-grafos” lança mão novamente da centralidade das
hierarquias para se reorganizar nessa micro organização surgida, sobretudo entorno dos
sub-grafos 2 e 4, gerenciados pelo “braço-direito” de Hildebrando, Alex e pelo exgovernador do Acre, Cameli.
No caso da família Pascoal é possível notar através dos depoimentos recolhidos
pela CPI que a hierarquia e o comando giram entorno de Hildebrando, todavia, distribuídos
na organização do mesmo, encontram-se outros membros da família, dispostos em pontos
223
estratégicos da organização, como o comando da PM, a coordenação do COE, esquadrões
de apoio aos homicídios, etc. O organograma abaixo procura tornar mais clara essa
distribuição de tarefas e comandos dentro da estrutura organizada entorno de Hildebrando e
da família Pascoal:
FIGURA 29: Organograma da Família Pascoal:
CHEFIA
Familia
Pascoal
Politicos
Polícia/
Pistoleiros
COE
Pistoleiros/
Tra7icantes
Empresários
FONTE: produzido pela pesquisadora.
Na imagem acima é possível perceber o papel central que Hildebrando e a família
Pascoal exercem na estrutura da organização como um todo. Em uma comparação com as
redes criminosas estudadas pelo Escritório de drogas e crimes da ONU (2002), é possível
dizer que a organização de Hildebrando apresenta uma clara semelhança com as chamadas
redes de hierarquias regionais, cujas principais características são: 1) grau de autonomia de
nível regional, uma vez que parece estar conectada às organizações de Sozza em São Paulo,
Farias no Alagoas e Gerardo no Pernambuco e Maranhão; 2) distribuição regional de
múltiplas atividades, com as fazendas acreanas exercendo o papel de “portos” para a
chegada de remessas de cocaína vindas da Bolívia e as empresas de transporte de carnes e
frigoríficos atuando como transportadores de droga para o sudeste do Brasil; 3) estrutura de
liderança única marcada pela figura de Hildebrando enquanto capo de uma estrutura
mafiosa baseada no mito da família que nada teme, e mata até militares se for preciso; 4)
linha de comando centralizada entorno de Hildebrando e seu encarregado, o policial Alex,
responsável por repassar as ordens de Hildebrando e de organizar as equipes para o
cumprimento de cada uma destas; 5) uso de violência essencial para manter as atividades e
224
para o controle do território, sobretudo na capital acreana para a manutenção do controle da
família Pascoal e dos pontos de venda de droga.
6.5 CASO ALAGOAS
O caso Alagoas foi marcado pelos escândalos e desvios de verbas que
caracterizaram o “Esquema PC”, o envolvimento de Paulo César Farias e seus familiares
com o tráfico de drogas e roubo de cargas, e pelos casos de venda de alvarás de soltura
expedidos por juízes a narcotraficantes. Dentre as informações mais preponderantes do caso
PC, a CPI do Narcotráfico optou por explorar os fatos subsequentes aos escândalos, que
envolviam a morte de PC Farias e sua namorada e o fato de Augusto Farias assumir os
negócios escusos do irmão.
1996
Para melhor entender o caso Alagoas, é preciso voltar no tempo, mais precisamente
ao ano de 1996 – ano da morte de PC Farias, ex-assessor do ex-presidente Fernando Collor.
Conforme investigações do jornalista do jornal A Folha de São Paulo, Lucas
Figueiredo que deram origem ao livro Morcegos Negros (2000) a Polícia Federal (PF)
acreditava que o “Esquema PC” movimentou mais de US$ 1 bilhão dos cofres públicos
para as contas do ex-presidente Collor e de seu assessor106.
Segundo o Relatório Final da CPMI que apurou fatos do “Esquema PC”
(CONGRESSO NACIONAL, 1992), PC Farias teria controlado quase todos os ministérios
durante o governo Collor e diversos setores da economia, manipulado grandes contratos do
governo, indicado funcionários seus para atuarem no segundo e terceiro escalões com a
intenção de alterar documentos, criar contas fantasmas e desviar verbas que deveriam ser
aplicadas em obras públicas, educação, saúde, segurança e previdência social.
106
Ao longo de investigações no Brasil e no exterior a polícia localizou contas de PC Farias na Europa, de
onde foram feitas transferências para contas em Nova York e Miami (onde o ex-presidente Collor viveu seu
exílio até o final de 1999).
225
As contas mantidas por PC no exterior eram operadas por seus procuradores
argentinos: La Salvia 107 e Angelo Zanetti, que mantiveram comprovada relação com
membros da máfia italiana108 entre os anos de 1990 e 1994109, antes de seu envolvimento
público com PC (FIGUEIREDO, 2000). Por esta razão a PF nunca levantou exatamente
qual foi o grau de envolvimento de PC com a máfia ou tradicionais grupos criminosos.
Todavia, a relação entre parlamentares, traficantes e mafiosos italianos foi constatada pela
Polícia Federal (e está presente também no relatório da CPI do Narcotráfico) em outros
estados brasileiros como o Espírito Santo, Ceará e o Alagoas.
Sobre um outro procurador de PC, o advogado uruguaio Luís Felipe Ricca,
pesavam denúncias sobre evasão de divisas para o exterior, dada a grande movimentação
financeira que realizou no Rio de Janeiro entre 1990 e 1991 – caracterizando “lavagem de
dinheiro”. O citado procurador era responsável por duas contas bancárias milionárias do
tipo CC-5110, que contavam à época com o montante superior a US$ 300.000.000,00, em
nome de uma empresa fantasma com sede no Uruguai.
O que fez ruir o castelo de cartas marcadas montado por PC Farias foi o
impeachment de Collor (1992) e culminou na sua morte e de sua namorada, ocorridas em
23 de junho de 1996, logo após os dois terem sido alvo de inquérito parlamentar e pouco
antes de PC depor em uma CPI subsequente ao impeachment. O casal foi encontrado morto
107
La Salvia, respondia a processo no Brasil por crime previsto na Lei 7492/86, conhecida por Lei do
Colarinho Branco.
108
A partir do ano de 1995 as autoridades italianas passaram a investigar movimentações financeiras
realizadas em seu país por intermédio de integrantes do “Esquema PC”, isto porque rastrearam transferências
típicas de lavagem de dinheiro, envolvendo de um lado um membro importante da máfia italiana e de outro o
próprio PC, por intermédio de seus dois procuradores argentinos.
109
http://www.lanacion.com.ar/nota.asp?nota_id=339302
110
As contas CC5 foram criadas, em l969, através de um documento do Banco Central chamado "Carta
Circular 5", daí acabaram conhecidas como CC5. Essas contas são voltadas para brasileiros residentes fora do
Brasil, empresas exportadoras e financeiras com vínculo no exterior. Assim é permitido sem autorização
prévia do Banco Central do Brasil, repassar um determinado valor em reais que se transformam em dólares
para outros países e resgatar dólares do exterior que se transformam em reais para o Brasil. Posteriormente,
foi permitido que outras pessoas, desde que devidamente identificadas, depositassem nas CC5 para que o
dinheiro fosse sacado pelo titular no exterior, o que facilitou o envio de divisas para fora do país por um
sistema que ficou conhecido no mercado como "barriga de aluguel". Várias autoridades e políticos famosos e
seus assessores usaram as contas para transferir, para o exterior, dinheiro fruto de desvio dos cofres públicos.
O esquema com o CC5 era feito normalmente com o uso de "laranjas", que são pessoas que tem seu nome
usado para desviar o dinheiro de outras pessoas. Existe também as "empresas laranjas", criadas artificialmente
para ajudar no desvio de dinheiro.
226
por volta das 11h na casa de praia do empresário, em Guaxuma, litoral norte de Maceió
(AL). Na noite anterior eles jantaram com o irmão de PC, o ex-deputado federal Augusto
Farias 111 , no mesmo local. Segundo levantou Figueiredo (2000) existe uma série de
incongruências nas investigações sobre a morte do casal. A CPI do Narcotráfico esforçouse por tentar entender e fechar essas lacunas, todavia, tudo o que se sabe é que houve
evidente e comprovada manipulação das provas e dos exames de corpo de delito, que
levaram ao indiciamento do médico e professor da Unicamp Badan Palhares.
“Esquema Alagoas/São Paulo”
Ciente de que o esquema Alagoas/São Paulo seria remanescente da organização
montada por PC, a CPI do Narcotráfico voltou sua mira para seu irmão, herdeiro da
tradição e dos negócios da família Farias. Conhecido como um “gangster” no estado do
Alagoas, ele figurava nos inquéritos da CPI como um dos cabeças de um grande esquema
envolvendo desde tráfico de drogas até roubo de cargas, lavagem de dinheiro112 e tráfico de
influência113. O ex-parlamentar também foi acusado de tramar o assassinato do irmão.
As conexões entre os esquemas encabeçados por PC Farias e as investigações da
CPI podem ser apreendidas através do “Esquema Alagoas/São Paulo”, com atuação
particular de Augusto Farias em Maceió/AL e Campinas/SP, denunciadas por Jorge Meres,
111
http://veja.abril.com.br/arquivo_veja/capa_03071996.shtml.
e
http://www.terra.com.br/noticias/especial/pc/morte.htm
112
No patrimônio pessoal do deputado alagoano foram descobertos vários imóveis não declarados, fatos que
parecem indicar dois caminhos: sonegação fiscal e/ ou lavagem de dinheiro. Através de inúmeros extratos
bancários descobriu-se a existência de um doleiro misterioso que operaria com três identidades diferentes e,
nenhuma delas citada no documento da CPI. Ele seria um dos principais “testas-de-ferro” do esquema de PC e
desde 1996 trabalharia para o deputado irmão de PC. Dias antes de ser assassinado, Paulo César teria entregue
a esse doleiro US$ 54 milhões, em cheques do Commerzbank AS, de Genebra. O dinheiro foi transferido para
uma conta do Merchants Bank, de Nova York, aos cuidados de uma funcionaria do Merchants, e voltou para o
Brasil, já lavado e com deságio de 20%, na forma de supostos empréstimos. Com os recursos disponíveis,
usando o nome de outro “laranja”. A seguir, o doleiro investiu em uma empresa de turismo de Juiz de Fora
(MG), mais tarde transformada em Táxi Aéreo, movimentando mais de US$ 75 milhões entre março e agosto
de 1997. Dessa maneira se fecha a triangulação que lavaria uma pequena parte do dinheiro das propinas
arrecadadas por PC e, acusadas de terem continuidade com o irmão de Farias.
113
Não se sabe ao certo até que ponto o ex-deputado esteve realmente envolvido em todos esses crimes dos
quais sofreu acusações, ou se tratou de perseguição política por parte dos parlamentares da CPI, uma vez que
o deputado sempre foi conhecido no meio político por sua audácia e facilidade em escapar de indiciamentos
em CPIs anteriores. Outras fontes como jornais, revistas e os arquivos da CPI foram consultados para se
chegar o mais próximo dos fatos e, até mesmo algumas hipóteses foram levantadas para explicar essas
escapatórias de Farias.
227
um caminhoneiro cuja denúncia já foi citada no caso São Paulo e que acusou o irmão de PC
de ser sócio de Hildebrando Pascoal, William Sozza e José Gerardo e, através destes de
estar envolvido com roubos de cargas. Todavia, fica em suspenso até o dia de hoje essa
conexão, tanto que Augusto Farias nunca foi indiciado por esses crimes tamanha sua
influência, poder político e controle sob os aparelhos policiais em seu estado natal.
Uma característica dos “negócios” praticados por Augusto Farias merece destaque:
ele foi acusado de praticar a lavagem de dinheiro e dar continuidade aos negócios escusos
do irmão falecido, assim, o mercado dos negócios bancários lícitos nas mãos do grupo de
Farias, se confunde com os negócios ilícitos que marcam a lavagem de dinheiro, seja este
rendimento oriundo do tráfico ou não. As conexões ficam mais claras quando se olha para o
organograma dessa organização. Ela mostra como a família Farias controla três grandes
frentes essenciais de negócios ilegais, como 1) o roubo de cargas realizado por indivíduos
diretamente ligados a Farias, 2) a lavagem de dinheiro realizada por quatro doleiros e 3) a
influência política realizada com a ajuda de outros parlamentares, como Pascoal e Gerardo.
Esses dois últimos conjuntos (a lavagem de dinheiro e a influência política) garantem uma
fachada legal às práticas criminosas do grupo.
FIGURA 30: Rede de PC Farias:
FONTE: produzido pela pesquisadora
Legenda de relações: vermelho: relações de prestação de serviços; verde: relações de sociedade; preto: relações de
amizade. Legenda de atributos dos indivíduos: vermelho: empresários; amarelo: políticos; Lilás: criminosos (ladrões de
carga).
228
A figura 30 retrata como a organização realizada entorno de Augusto e PC Farias se
desenvolve: em geral são acionadas conexões baseadas no entendimento profissional onde
o lucro e o risco da traição da organização estão presentes e incorrem no risco de que os
“negócios” da organização sejam descobertos.
Outra informação bastante importante que a figura 30 permite extrair é sobre a
forma assumida pela conexão Alagoas/São Paulo como uma rede, centralizada em torno de
PC apenas em alguns aspectos, mas descentralizada e redirecionada para Augusto Farias e
Gerardo em outros aspectos. Não é possível classificá-la como uma rede em estado puro e
nem como uma hierarquia, todavia, ela mescla características dessas duas fontes,
consolidando-as em uma mesma estrutura. É possível verificar como as mesmas aparecem
no organograma a seguir, aonde vemos um “sub-grafo” surgindo apenas quando as relações
entre políticos/empresários/traficantes é estabelecida.
FIGURA 31: Organograma da Família Farias:
CHEFIA
Familia
Farias
Lavagem
de
dinheiro
Políticos
Empresários
Roubo
de
cargas
Trá7ico
de
drogas
FONTE: produzido pela pesquisadora
De um modo geral, nesta organização existe uma linha tênue entre o lícito e o
ilícito, sobretudo quando se trabalha com a lavagem de dinheiro, no que se refere à origem
do dinheiro a ser lavado e na relação entre políticos, empresários e o tráfico de drogas. Essa
linha se apaga e tudo se confunde quando o dinheiro desses negócios ilícitos entra nas
transações (legais) bancárias do tipo CC-5, mencionadas anteriormente, que permitem que
dinheiro limpo e dinheiro sujo se misturem; também se confundem quando o investimento
229
de dinheiro limpo de empresários passa à mão de traficantes. Daí em diante, não existe
mais um marco visível entre aquilo que é legal e ilegal.
O conteúdo dessa organização é o desejo do poder, advindo do lucro e do controle
político. A forma, por sua vez, é de uma hierarquia com alguns “sub-grafos” articulados em
forma de rede.
Venda de alvará de soltura de traficantes
Além dos “crimes do colarinho branco” descritos anteriormente, o caso Alagoas
ainda abordou uma corrupção judiciária profunda encabeçada por juízes dos estados do
Alagoas e Mato Grosso que “vendiam” sentenças, habeas corpus, alvarás de soltura e
transferências de penitenciárias à traficantes de drogas e homicidas. Esses indivíduos não
estavam envolvidos com o caso PC Farias, por isso, suas atividades e nomes não constam
nos organogramas e figuras apresentados. Todavia, a importância do crime praticado por
membros do judiciário denota sua importância e relevância para constar da seleção de casos
analisados na presente pesquisa.
Nesse esquema, prisioneiros condenados em regime fechado, foram removidos de
penitenciárias com melhores condições de segurança, para precárias cadeias públicas no
interior do estado ou transferidos para outros estados, sem qualquer estrutura de recursos
materiais ou humanos para garantir a adequada execução da lei penal sobre o crime
cometido. Esse favorecimento à impunidade de criminosos pode ser traduzido em manobras
de progressão no regime de cumprimento da pena, servindo como meio para facilitar fugas,
permitindo alcançar irregularmente a liberdade. Dois documentos e bons exemplos são
dados pelos casos dos traficantes "Branca" e “Paulinho Alagoano”.
No início de 1997, Branca foi transferida do Presídio da Mata Grande, em
Rondonópolis para a Cadeia de Atalaia/AL de onde deveria fugir. O plano foi descoberto a
tempo e Branca acabou sendo transferida para o Presídio da Papuda, em Brasília.
Outra transferência suspeita, se deu com "Paulino Alagoano", condenado a 13 anos
e quatro meses de prisão na Comarca de Barra do Bugres. Após dois anos, ele foi
transferido para a cidade de Flecheiras, próximo de Maceió. O plano de fuga do traficante
foi descoberto, mas ainda assim, após “negociar” com o traficante, a juíza local deixou que
230
ele ficasse próximo de familiares cumprindo a pena. No final da década de 90 ele estava
cumprindo sua pena em prisão semiaberta.
Segundo dados da CPI do Narcotráfico, entre os anos de 1997 e 2000, pelo menos
15 pessoas envolvidas com três grandes apreensões de drogas foram condenadas pela
Justiça Federal por tráfico internacional. As penas somadas ultrapassaram 100 anos, mas
boa partes desses indivíduos foi transferido para cadeias municipais e fugiram.
É conveniente lembrar que nos dois casos de transferência para Alagoas de
traficantes de drogas, os magistrados agiram ao inteiro arrepio das normas
previstas na Lei 7210/84 (Lei das Execuções Penais), que estabelece que o
cumprimento da pena de reclusão em regime fechado se dará em penitenciária
(art.87), devendo as cadeias públicas se destinarem ao recolhimento de presos
provisórios (art. 102). Sobre as referidas remoções de presos, foram instaurados
processos disciplinares pela Corregedoria Geral de Justiça de Alagoas,
destinados a apurar a responsabilidade dos magistrados envolvidos, estando
ainda os procedimentos sem decisão no Conselho de Magistratura daquele
Estado. (CAMARA DOS DEPUTADOS, 2000, p. 196).
A figura 32 modela o comportamento das relações entre os envolvidos nesses dois
casos. Observa-se a centralidade do juiz Daniel Accioly em relação a outros juízes e
policiais, responsáveis pelo transporte dos detentos e pela falsificação de laudos e
assinaturas sobre as cadeias de destino dos condenados, cuja centralidade na organização é
notória. A relação juízes/ réus é de três para um o que aponta para uma imagem de uma
corrupção arraigada ao sistema e que necessita de “braços” (advogados, policiais,
delegados) para que as vendas de alvarás de soltura sejam postas em prática.
231
FIGURA 32: Rede de venda de alvarás de soltura:
FONTE: produzido pela pesquisadora
Legenda dos atributos dos indivíduos: amarelo: juízes e policiais; azul: indivíduos criminosos; vermelho: profissionais
liberais.
Legenda de relações: vermelho: relações de prestação de serviços; verde: relações de sociedade; preto: relações de
amizade.
A forma adotada por esses dois grupos que se dedicam ao comércio de alvarás de
soltura e transferência de presos é hierárquica e de redes, uma vez que se baseiam em
instâncias diferentes: no grupo maior, a figura central é o juiz Daniel Accioly, entorno dele
orbitam policiais, delegados, advogados e uma traficante. Essa constituição mostra as
diferentes etapas da negociação dos alvarás – não basta a traficante pagar a quantia
negociada com o juiz: entre eles transitam uma série de figuras sectárias que buscam
legalizar e legitimar a fraude. Na segunda rede (menor), a centralidade está entorno do
traficante Paulinho Alagoano: advogados e delegados se articulam entorno daquele que
detém o poder monetário. De modo geral, é possível afirmar que trata-se de uma estrutura
centralizada em um indivíduo-chave que detém o poder (financeiro ou legal) no grupo e
que pode reestabelecer ou mudar os fatos. O conteúdo dessas relações baseia-se na compra
e venda – quem pode comprar e quem pode vender os alvarás de soltura, intermediados por
advogados, delegados e policiais.
232
Assassinatos e roubos de carros
A maior parte das informações sobre possíveis fatos delituosos relativos à Alagoas
foram trazidos à tona quando políticos do estado se envolveram com o crime organizado na
região através da contratação de assassinos e da cobertura dada a ladrões de carros.
Uma série de denúncias graves sobre o envolvimento de políticos e policiais em
atividades criminosas veio à público a partir do depoimento de um ex-integrante de uma
quadrilha de assaltantes de bancos, roubo de cargas, tráfico de armas e homicídios, que
atuava nos estados de Alagoas, Pernambuco e Paraíba. Afirmou que a sua quadrilha
normalmente passava um certo tempo praticando assaltos a bancos e roubos de carros em
Pernambuco e na Paraíba, e em seguida fugia para o Alagoas, onde se escondia por um
determinado período.
Tanto no Alagoas, quanto no Pernambuco contavam com a proteção de pessoas
influentes, como prefeitos que lhes garantiam esconderijos seguros ou cobertura policial e
ainda, como o apoio de advogados quando presos. Esta ajuda decorria do contínuo interesse
dessas pessoas no resultado dos crimes, porquanto os valores saqueados das vítimas eram
divididos entre os membros do bando e aqueles que os protegiam.
Um dos esconderijos da quadrilha em Alagoas localizava-se na fazenda de
propriedade do ex-prefeito do município de Batalha, onde foi levantado também o
envolvimento de vários ex-policiais militares, que forneciam ao grupo uniformes da PM
para serem usados nos assaltos.
Alguns dos fatos delituosos praticados pelo grupo incluíam o roubo de diversos
automóveis em Pernambuco e na Paraíba que eram levados para Alagoas e trocados por
armas como pistolas Glock e fuzis AR-15, contrabandeados do Paraguai e enviados a
Alagoas via Arapiraca/AL. Os veículos utilizados eram sempre com placas de outros
estados, pois isso facilitava serem empregados também em crimes de pistolagem contra
adversários políticos, como o que aconteceu com o ex-prefeito de Batalha/AL, que mandou
assassinar um ex-empregado. Depois dos crimes, os carros eram abandonados ou
queimados.
O ex-policial militar, chefe da segurança da fazenda do ex-prefeito de Batalha foi
morto a mando do próprio ex-prefeito. O motivo do homicídio foi que o ex-policial
233
emprestou, sem autorização do patrão, cinco fuzis a um dos membros da quadrilha e as
armas acabaram sendo roubadas.
O morto, embora tenha sido abatido a tiros, foi enterrado como se tivesse sofrido
um acidente fatal numa suposta queda de cavalo (CAMARA DOS
DEPUTADOS, 2000, p. 208).
O medo, o uso da violência, a traição e a confiança são traços marcantes nesses dois
grupos que se encarregavam dos roubos de carros e dos homicídios investigados pela CPI
em Alagoas. As formas de organização adotadas podem ser avaliadas como variantes de
tríades com a centralidade marcada entorno de alguns indivíduos, por exemplo, como as
relações dos indivíduos PC Farias>Iolanda>Augusto Farias.
Na rede apresentada, os indivíduos centrais são lideres dos grupos, mas não
necessariamente os criminosos responsáveis diretos pelos delitos cometidos. São
indivíduos-chave com extensas ligações, como por exemplo Jorge Bandeira de Mello que
está conectado a Augusto Farias, conectado a José Gerardo apontado no caso investigado
pela CPI no estado do Maranhão pelo homicídio de um delegado e de inúmeros roubos de
caminhões na região. Como dito, trata-se de uma rede de assassinos que não
necessariamente se ocupava diretamente dessa atividade, mas sob a qual pesavam muitas
acusações e relatos narrados na CPI.
Um conjunto de relações
Comparativamente com os grupos criminosos estudados pela ONU (2002), as redes
do caso Alagoas apresentam características bastante próximas das organizações
hierárquicas por exporem caraterísticas como liderança única no seu cluster principal de
atuação; sistemas fortes de disciplina interna; forte identidade social; uso da violência para
a manutenção das atividades; influência ou controle sobre um território definido. Além
dessas características, as relações estabelecidas pelos indivíduos que compõem a
organização criada entorno de Augusto Farias são formadas por laços familiares que não
impedem a traição entre irmãos, como é o caso da suspeita – nunca comprovada – de que
Augusto teria mandado matar PC. Já as relações estabelecidas entre os traficantes
234
condenados e os juízes que lhes expedia os alvarás de soltura são baseadas no comércio
desses alvarás, gerando, portanto, uma relação estritamente comercial e oportuna.
As conexões estabelecidas entre os prefeitos e assassinos/ladrões alagoanos são
marcadas pelas oportunidades baseadas nos laços de confiança criados entre os envolvidos.
Não se tratam de amizades ou de relações estritamente comerciais, mas de laços
estabelecidos a partir de uma mútua confiança baseada por sua vez no medo e no uso da
violência. O uso do medo e da violência para a imputação da confiança em uma
determinada relação pode ser percebida também no depoimento do Cel. da PM do AL
Manoel F. Cavalcante que diz que:
Entre as várias mortes por razões políticas, citou os casos do Sargento da PM
AGRIPINO, Vereador que teria sido assassinado por ordem do Deputado
CELSO LUIZ, por se negar a filiar-se ao seu partido político; O Vereador BEMTE-VI MATA GRANDE brigou por razões políticas com CÉSAR MALTA, e
poucos dias depois foi morto em Mata Grande; O Deputado CICERO FERRO,
invadiu a casa de um Vereador, queimou carro, retirou os móveis para a rua, e
tocou fogo; A ex-Prefeita de Flexeiras, ARLENE DA COSTA, já teria mandado
matar várias pessoas; Forneceu ainda os nomes dos Deputados ANTONIO
ALBUQUERQUE, JUNIOR LEÃO, CHICO TENÓRIO e FÁTIMA CORDEIRO,
como mandantes de crimes de homicídio. (CAMARA DOS
DEPUTADOS, 2000, p. 210)
Nas figuras anteriores são verificados três tipos de relações estabelecidos por laços
econômicos, familiares e de confiança. Tratam-se de relações baseadas na contratação de
trabalho que não se baseia no oportunismo unicamente, mas na especialização do trabalho
prestado, como o exemplo da lavagem de dinheiro realizada pelos representantes de
Augusto e PC Farias, cujos os laços econômicos se sustém pelos potenciais ganhos, como
também ocorre no caso das vendas dos alvarás de soltura do juiz Accioly. Os laços
familiares, por sua vez, indicam a sustentação de uma fidelidade irrestrita entre seus
membros que pode falhar em alguns núcleos familiares, como se imagina no exemplo dos
Farias. Já os laços de confiança podem estar presentes em todos os exemplos estudados,
uma vez que independem da natureza do crime cometido ou do mercado ilegal acionado
para ocorrerem, antes são relações nutridas por laços de amizade e parentesco que impedem
que a traição incorra no interior do grupo. A confiança, segundo Von Lampe e Johnsen
(2003) é condição sine qua non para que uma relação seja estabelecida no interior de uma
organização criminal qualquer e ela influencia diretamente na configuração dos laços fracos
235
e fortes, presentes respectivamente em relações estritamente econômicas e de
parentesco/amizade.
Segundo os autores, a opção por um laço ou outro é uma questão baseada na escolha
racional, onde, no espectro da racionalidade à irracionalidade, a confiança ocupa um espaço
entre o cálculo puramente racional das probabilidades e da fé cega irracional. Em uma
extremidade do espectro, encontramos os proponentes da teoria da escolha racional de
Coleman, que pressupõe que um agente racional confiará na razão quando estiver em uma
situação na qual a probabilidade de ganho em relação à probabilidade de perda é maior do
que a real quantidade da perda em relação ao potencial do ganho em si. Para os autores,
fora do paradigma da escolha racional, parece haver um amplo consenso de que a
confiança, por definição, envolve alguns elementos da irracionalidade, pois a noção de
confiança, só pode ter significado em situações de incerteza na qual a pessoa confiante tem
conhecimento incompleto das probabilidades de comportamento da pessoa confiável. A
confiança, então, não é baseada exclusivamente na medida das probabilidades, mas também
em fatores tais como emoções, sentimentos e indução de valores.
A combinação dos fatores (laços econômicos, familiares e de confiança) existentes
dentro da organização encabeçada por Farias aponta para uma organização hierárquica
voltada exclusivamente ao ganho e baseada na fidelidade que seus membros tem na busca
pelo lucro, mesmo que para isso custe a vida deles. Esse tipo de combinação acena para a
composição de um modelo mafioso/econômico baseado em redes que auxiliam a hierarquia
formada em torno da família Farias.
6.6 CASO ESPÍRITO SANTO
A instalação dos trabalhos da CPI, no Espírito Santo, foi precedida de ruidosa
campanha articulada nos meios de comunicação encabeçada pelo ex-presidente da
Assembleia Legislativa do estado (então deputado estadual José Carlos Gratz) e outras
autoridades, com o objetivo de convencer a opinião pública da inexistência de narcotráfico
e do “crime organizado” no estado. Todavia, a campanha contrariava as estatísticas e
236
informações de órgãos oficiais como a UNODC que apontavam a Grande Vitória como a
região mais violenta de todo o país entre os anos de 1998 e 2000.
Anos 1990 – os anos da Scuderie Detetive Le Cocq
A impunidade era fator determinante para a escalada de criminalidade no Espírito
Santo. No rastro dessa afirmação, a CPI voltou seus olhos em direção à “Operação
Marselha” da Polícia Federal que tornou públicos os atos da Associação Scuderie Detetive
Le Cocq, encabeçada pelo deputado José Carlos Gratz, sobre a qual pesavam inúmeras
acusações de crimes hediondos, roubos de prefeituras, envolvimento de parlamentares com
o jogo do bicho e tráfico de drogas.
Não se trata de uma tétrica fama sem motivo, eis que sua atuação foi responsável
por um verdadeiro mar de sangue, compreendendo desde a cruel matança de
meninos de rua em Vitória, o covarde assassinato da colunista social Maria
Nilce e outras mulheres, até um elevado número de homicídios de motivação
política no Estado do Espírito Santo, sempre matizados por uma costumeira
impunidade. Não foi sem razão que o jornalista Caco Barcelos rotulou Vitória
como “A capital do crime organizado”, e alguns anos depois o New York Times,
denominou a cidade capixaba como “A Medelín brasileira”. Uma plêiade de
pistoleiros profissionais, à soldo de empresários inescrupulosos mancomunados
com políticos corruptos, chocaram repórteres policiais experientes,
principalmente pelo fato dos assassinos serem policiais na sua grande maioria,
ou seja, justamente aqueles profissionais que tinham o dever legal e funcional de
proteger a vida humana: o maior bem jurídico tutelado (BADENES, s/d).
A Scuderie era identificada pelo símbolo da caveira apoiada sobre duas tíbias
cruzadas. Usava como disfarce para suas atividades reais a aparência de uma entidade
filantrópica, que ocultava a sua finalidade ilícita, além de meios e recursos próprios das
milícias e "contribuições empresariais". Incorporava, em seus quadros de associados,
centenas de policiais (civis, militares e federais, sendo alguns destes ainda na ativa e outros
já aposentados), serventuários da Justiça, delegados, advogados, funcionários da
administração pública, Promotores de Justiça e Juízes de Direito, Desembargadores,
políticos, empresários, comerciantes e banqueiros de jogo do bicho.
Ela surgiu como um meio operacional de apoio à criminalidade organizada no
estado, realizando basicamente os seguintes serviços: intermediação nos chamados “crimes
de mando”; execução de homicídios; acobertamento e desvirtuação nas investigações
237
policiais pertinentes a estes assassinatos e garantia de impunidade na esfera judiciária.
A clientela da Scuderie era composta basicamente por empresários e políticos que
se associaram com indivíduos com histórico criminal de homicídios, tráfico de drogas,
roubos e envolvimento com jogo do bicho que acabou constituindo o que veio a ser
conhecido como o “crime organizado” no Espírito Santo. Essa clientela articulou esquemas
de violência (contando com o “sistema operacional”114 da Scuderie para tal), com o intuito
de controlar o Poder Político das Administrações Municipais do estado. Detinham o
controle de diversas prefeituras, com o objetivo de se coligarem para realizarem a pilhagem
do erário municipal. Constituíram grupos especializados para a execução dos crimes de
mando, cujos executores eram recrutados de dentro da Scuderie, ou por intermédio dela,
através de associados dentro das polícias (civil e militar), nas prisões (cujos presos se
beneficiavam de regalias e fugas) ou eram recrutados a partir do tráfico de drogas.
Um dossiê da Polícia Federal caracterizou a SDLC (Scuderie Detetive Le Cocq)
como “O maior grupo de criminosos organizados de que se tem notícia no
Brasil, para roubar, traficar, matar e espalhar o terror”. O Procurador da
República no Espírito Santo, ao condenar a S.D.L.C no estado, notou que “Há
informações de que grandes empresários sonegadores seriam mandantes de
crimes de homicídio para a manutenção de seus esquemas de sonegação”
(BADENES, s/d).
A CPI concluiu que a associação dessa organização com os extermínios e o
narcotráfico, residia no fato de que vários dos acusados, membros da Scuderie, teriam sido
presos com grandes quantidades de cocaína, a exemplo de dois ex-soldados da PM,
condenados como traficantes. Também é ilustrativo dessa situação o caso do traficante
apelidado de "Toninho Mamão", cujo advogado era o próprio Presidente da Scuderie.
Nesse caso, é notório que aqueles que cometiam os crimes pertenciam à Scuderie, quem os
defendia era igualmente membro da Scuderie e quem apurava também fazia parte da
associação, sendo fato que em alguns casos, os autos eram encaminhados para Promotores
e Juízes pertencentes à Scuderie, acarretando assim, a impunidade dos criminosos na
maioria dos casos.
114
O chamado “sistema operacional” da Scuderie consiste na dinâmica estabelecida entre políticos,
empresários, advogados e juízes que garantem que nenhum membro da organização seja ultrajado
publicamente através de uma ação penal qualquer, ou seja, que seja encarcerado, processado ou arrolado em
uma investigação policial. Esse sistema consiste no estabelecimento de uma rede que suporta e legaliza as
ações dos companheiros de organização, sejam eles homicidas, traficantes, políticos, policiais ou empresários.
238
Em linhas gerais é possível afirmar que a Scuderie elevou o crime organizado no
estado do Espírito Santo ao patamar de um sistema de dominação política no qual o regime
de ilegalidade era compartilhado com autoridades constituídas e se apoiava em três pilares
centrais: 1) a pilhagem do erário dos municípios, 2) a impunidade dos homicídios, e 3) a
lavagem de dinheiro do tráfico de drogas (realizado em outros estados através de casas de
bingos e jogos do bicho).
Os crimes - de e contra – políticos e os roubos aos cofres públicos
O ex-prefeito de Serra/ES, Adalton Martinelli participava de um esquema de “caixa
de campanha”, que funcionava da seguinte forma: para se eleger prefeito, o indivíduo
deveria obter ajuda financeira de um dos empresários da Scuderie: Antônio Roldi, Alberto
Ceolin ou do próprio Adalton. Porém, se eleito, quando o candidato assumisse o cargo teria
que retornar o dinheiro empregado na tal “ajuda de campanha” com os juros, tal como o
lucro de um investimento qualquer.
Os prefeitos cooptados arrecadavam o dinheiro a ser retornado através do
superfaturamento das obras da prefeitura realizando-as por meio das empresas dos citados
empresários. O ex-prefeito de Serra, Feu Rosa teria sido um desses que fez negócios de
superfaturamento com os empresários e acabou morrendo por não “devolver” à tempo o
“lucro” do dinheiro “investido”. Segundo o depoimento do delegado Francisco Badenes à
CPI, com a morte de Feu Rosa, Adalton Martinelli, um dos empresários envolvidos no
esquema, assumiu a prefeitura de Serra afim de expropriar as divisas municipais:
Que Adalton Martinelli está preso, juntamente com Alberto Ceolin e já foram
denunciados e pronunciados, como mandantes do assassinato de Carlos Batista
de Freitas, José Maria Feu Rosa e seu motorista Itagildo Coelho, além do
homicídio do ex sargento PM Valdeci Apelpheller. O empresário Antônio Roldi,
também foi denunciado e pronunciado, como um dos mandantes destes
homicídios, com prisão preventiva decretada, mas se encontra foragido; Que
Adalton Martinelli assumiu como prefeito de Serra logo depois que Feu Rosa foi
assassinado. Que Adalton e sua turma participava de um esquema de caixa de
campanha, que funcionava da seguinte forma: a pessoa para se eleger prefeito
vai obter ajuda financeira de um desses empresários, Antônio Roldi, Alberto
Ceolin ou o próprio Adalton Martinelli. Porém, quando o candidato assume tem
que retornar o dinheiro com os juros, com o lucro do investimento. E isso será
feito através de superfaturamento das obras da prefeitura, com as empresas dos
citados empresários. Que Cabo Camata fez os mesmos negócios de
superfaturamento com os mesmos empresários. Que em Viana, atua o Antonio
239
Roldi, com o mesmo esquema de espoliação do erário público, através de
licitação fraudulenta e superfaturamento de obras (CAMARA DOS
DEPUTADOS, 2000, p. 360-1)
A figura 33 mostra a “máfia dos municípios” e seu envolvimento com a Scuderie,
deixando claro como a mesma é, na verdade, um dos “braços” e desempenha uma das
atividades da citada organização.
FIGURA 33: Scuderie Le Cocq, assinalada a rede dos envolvidos com as “Máfias dos
Municípios”:
FONTE: produzido pela pesquisadora
Legenda: azul: criminosos; amarelo: políticos; vermelho: empresários.
Outra “máfia” indiciada foi a rede envolvendo Dejair Camata. Ela contava com um
grupo de assassinos, coordenados por João Pedro e o já citado grupo de empresários
composto por Antônio Roldi, Alberto Ceolin ou Adalton Martinelli. Todos estes
trabalhavam para a mesma finalidade: expropriar o erário dos munícipios cujos prefeitos
foram eleitos com o apoio da Scuderie (Serra e Cariacica são dois exemplos) e, caso fosse
240
necessário, realizar o homicídio do indivíduo que não colaborasse com a organização. Foi o
que aconteceu a Feu Rosa.
Esta organização é apenas um braço da Scuderie Le Cocq que corrompeu e cooptou
para si prefeitos, deputados, advogados, bicheiros, etc. Esse braço da Scuderie é marcado
pela presença dos citados empresários e de prefeitos que, de um lado “roubavam” as
prefeituras e, de outro, orquestravam os assassinatos de seus oponentes.
Pela presença dos assassinos e dada a quantidade de indivíduos mortos nesse
contexto - entorno de 6 mortos reconhecidos - é notória a traição e o medo de ser
assassinado. Portanto, a violência é o fator aglutinante desse grupo, sendo considerada aqui
como o conteúdo desse braço da organização que assume a forma de uma rede por não
apresentar liderança única.
Tráfico de drogas
A presença de quadrilhas de traficantes internacionais, no estado de Espírito Santo,
chama atenção pela sua relação direta com a lavagem de dinheiro. Fernandinho Beira Mar,
se destaca nesse cenário: foi acusado da montagem de operações bancárias de lavagem de
dinheiro do narcotráfico em Guarapari (ES), de ter trocado cocaína por carros, investido em
construções e a partir daí instalado todo um esquema que favorecia ao “crime organizado”
local, entrando em “acordo” com membros da Scuderie Le Cocq para manter seus negócios
no estado.
Outras formas de lavagem de dinheiro utilizadas no estado do Espírito Santo foram
o jogo de bicho e os bingões, incluindo nessa equação a corrupção de policiais e a
participação remota do Cartel de Cali mostrado na figura 34 na qual é tratada a rede de jogo
do bicho e cassinos orquestrada por Gratz, o líder da Scuderie.
O braço da Scuderie Le Cocq que se entrelaça com o tráfico de drogas obedece a
uma forma bastante peculiar de inter-relação: com a designação de atividades passando de
um membro a outro da rede, caracterizando um sistema hierárquico, com apenas um núcleo
central (Gratz). O conteúdo dessa rede é o desejo por tornar legal aquilo que não o é. O
traficante carioca Beira Mar se destaca pela lavagem de seu dinheiro através de
investimentos imobiliários realizados em Guarapari.
241
Dentre os papéis exercidos é possível destacar Gratz como a figura central e
investidor em cassinos e bancas de jogo do bicho, Paulo Jorge é um dos encarregados da
segurança da organização, assassinando aquele que apresentasse algum empecilho ao
tráfico de drogas, jogo do bicho, etc. Martins Filho era traficante e investidor do jogo do
bicho em Vitória. José Américo era membro da Scuderie Le Cocq e um dos advogados de
Toninho Mamão, traficante. Geraldo Ferraz também era traficante nos estados do Rio de
Janeiro e Espírito Santo, e mantinha-se abastecido pelo traficante paraguaio Luiz Amaral,
cujo quartel general é a cidade de Pedro Juan Cabaleiro.
FIGURA 34: Tráfico de drogas:
FONTE: produzido pela pesquisadora
Agindo em conjunto com os "bicheiros", os traficantes constituem uma seção à
parte no caso Espírito Santo por serem um grupo de indivíduos que detinham grande poder
e influência política e econômica na região. Eles elegeram representantes nas Câmaras de
242
Vereadores das principais cidades do Espírito Santo, bem como na Assembleia Legislativa,
sendo o seu ex-presidente, José Carlos Gratz, ligado ao falecido bicheiro carioca Castor de
Andrade e posteriormente à César de Andrade, sobrinho de Castor, que comandava o jogo
do bicho em Guarapari, Cachoeiro do Itapemirim e em outros municípios capixabas. Essa
relação entre Gratz e Andrade tinha uma explicação, segundo Misse (2011, p. 16):
O jogo do bicho espalhou-se por todo o país ainda nos anos 1950, sem que
houvesse um controle centralizado ou uma única estrutura vertical. Os bicheiros
de cada estado mantêm sua autonomia em relação ao Rio de Janeiro, mas
mantêm relações com os mais proeminentes bicheiros do Rio.
E continua a explicar como se deu a histórica relação entre bicheiros, policiais e
políticos:
Como o jogo do bicho sempre foi criminalizado no Brasil, mas também sempre
obteve adesão popular, com centenas de milhares de apostadores, criou-se um
ambiente favorável à corrupção de policiais, de membros do poder Judiciário e
de políticos. Políticos recebiam votos em troca de tolerância ao jogo, policiais
recebiam propinas regulares nos pontos de jogo ou constavam na folha de
pagamento, junto com pistoleiros, jogadores de futebol, artistas e membros do
poder Judiciário. (...) No Rio de Janeiro o jogo continua sendo oferecido em todo
o estado, geralmente próximo a bancas de jornais, por apontadores sentados em
cadeiras ou em improvisados bancos feitos de caixas de frutas. A polícia recebe a
sua parte e, eventualmente, detém apontadores e apreende os talões de jogos,
provavelmente em combinação com os contraventores, pois o jogo continua
sendo jogado normalmente e os resultados anunciados nas paredes de prédios e
postes próximos ao ponto (ou "banca") do jogo do bicho. (MISSE, 2011, p.
17).
Observando a organização encabeçada por Gratz, é possível ver que as coisas no
final dos anos 90 continuavam as mesmas desde os anos 80. Os bicheiros ainda investiram
em hotéis e cassinos após o surgimento da loteria oficial realizada pela Caixa Econômica
Federal, com Guarapari e Cachoeiro do Itapemirim como os “espelhos” do que se sucedeu
com o jogo do bicho no Rio de Janeiro: ele ainda é ilegal, assim como os cassinos e os
caça-níqueis, mas não deixou de existir nos anos 90, senão na ilegalidade e muitas vezes,
deliberadamente apoiados por alguns políticos que, como Gratz, garantiram seus votos dos
entusiastas do jogo. Além disso, continuou sendo uma das principais fontes de lavagem de
dinheiro do tráfico de drogas, o que é interessante notar na imagem abaixo e no relatório da
CPI do Narcotráfico. Sobre isso, Misse afirma que a polícia não possui provas concretas
para afirmar sobre a exitência da conexão entre uma coisa e outra, todavia, a conexão
243
mostrada na imagem não se dá entre os bicheiros do Espírito Santo e Rio de Janeiro e
traficantes regionais, mas dos primeiros em relação a um cartel colombiano.
O conteúdo assumido pelo braço da Scuderie conectado ao jogo do bicho conta com
a presença de inúmeros bicheiros e proprietários de cassinos associados. Sua sociedade é,
até certo ponto, centralizada por Gratz – em parceria com alguns bicheiros de Guarapari, e
depois assume a forma que a torna razoavelmente autônoma quando os bicheiros assumem
o controle dos negócios, mostrando-se sob a forma de hierarquia e redes.
FIGURA 35: Bicheiros e traficantes:
FONTE: produzido pela pesquisadora
A conexão dos perfis e o “crime organizado”
Ao falar sobre políticos, bicheiros e traficantes mencionados no caso Espírito Santo
procurei mostrar como vários perfis não necessariamente criminais estão organizados.
Verifiquei que em algumas biografias, o indivíduo – genericamente identificado como
244
empresário – é essencial para a organização, uma vez que este detém o capital inicial para
começar o negócio. O papel dos políticos e policiais é secundário, uma vez que dão suporte
e “legitimam” as transações ilegais praticadas pelo grupo. Por fim, os traficantes e
homicidas são os últimos da escala da organização, dando cobertura e resolvendo
problemas - em geral, se tratam de indivíduos que, associados a empresários, constroem
fortuna e poder locais.
Mas essa relação entre política, empresariado e crime não é nova e nem particular
ao caso Espírito Santo, conforme informa a análise de Scarpinato (2009, in DINO e
MAIEROVITCH, 2010, p. 110) sobre o caso italiano:
Os bem-sucedidos, os que ocupam os degraus mais altos da pirâmide, a essa
altura praticam a ilegalidade à luz do dia. É praticamente imensa a lista de
ministros, subsecretários, parlamentares, conselheiros regionais, prefeitos,
administradores e por aí a fora que utilizam seus poderes para cuidar de seus
interesses, esbanjando financiamentos públicos, concessões, créditos facilitados
para empresas de família ou nas quais tem interesses, que distribuem
consultorias de ouro para pessoas próximas deles, que assumem parentes e
clientes na administração pública, protegidos pela discricionariedade política e
administrativa.
Tanto as chacinas e homicídios praticados com fins políticos, como a participação
de políticos em fraudes e crimes do “colarinho branco” apontam para os representantes da
classe dirigente que lançam mão de métodos “mafiosos” como procedimento de gestão do
poder e instrumento político a fim de manter o status quo baseado nos privilégios pessoais.
Esses indivíduos surgem como protagonistas do crime organizado no Espírito Santo,
lideram a máfia local e desempenham papéis centrais nas organizações criminais das quais
participam.
Relações
A organização Scuderie Le Cocq apresenta relações de estrita confiança entre seus
membros, muitas das quais baseiam-se em último recurso no uso da força de um lado para
estimular o medo e o apoio de outro. Por tratar-se de uma organização construída nos
moldes tradicionais como a máfia, seus membros partilham de fortes laços de confiança
entre si, aonde a traição não é admitida e é punida com a morte.
Não se trata de um conjunto simples de relações como os demais grupos criminais,
245
seu desenho é tradicional, baseado na hierarquia e na centralidade dos membros mais
proeminentes do grupo, o qual pode ser exemplificado através do seguinte organograma.
FIGURA 36: Organograma Scuderie Le Cocq:
Chefe
Gratz
Políticos
Empresários
Bicheiros
Esquadrão
da
Morte
Juizes/
advogados
Esquadrão
da
morte
Lavagem
de
dinheiro
FONTE: produzido pela pesquisadora
A imagem abaixo mostra como os diferentes indivíduos que participavam da
Scuderie Le Cocq se organizavam entorno da figura do ex-deputado Gratz. A figura mostra
ainda a formação de agrupamentos entorno de indivíduos delegados por Gratz e que
coordenam grupos de atuação específica, como os policiais, que se conectam a outros
policiais e, eventualmente a um juiz ou à algum grupo de pistoleiros – atuando no mercado
de proteção ou em “esquadrões da morte”.
246
FIGURA 37: Scuderie Le Cocq sob a chefia de Gratz:
FONTE: produzido pela pesquisadora
Legenda de Relações: azul: diretamente ligadas a Gratz; verde: relações de negócios; vermelhas: confiança.
Uma última análise sobre essa organização permite alcançar que a forma geral
utilizada pela Le Cocq é a de uma organização tradicionalmente hierarquizada com
aspectos de hierarquia regional, tal como indicado pelos estudos do Escritório de drogas e
crime da ONU (2002), ou seja, que apresentam liderança única, linha de comando a partir
do centro, grau de autonomia estabelecido em nível regional, distribuição regional de
atividades, exercício de múltiplas atividades e violência como elemento essencial para o
desenvolvimento destas.
CONCLUSÕES DO CAPÍTULO
No presente capítulo foram estudados seis casos investigados pela CPI do
Narcotráfico: FAB, Acre, Rio de Janeiro, São Paulo, Alagoas e Espírito Santo ilustrativos
247
sobre crimes como o tráfico de drogas, roubo de cargas, roubo dos cofres públicos,
homicídios e o uso de mercadorias políticas e corrupção de juízes.
As análises desses casos giraram entorno de três vertentes: 1) os indivíduos e suas
relações, 2) as organizações por eles formadas, e 3) os mercados criminais acionados.
Essas vertentes permitiram entender:
a)
que uma organização que a princípio pratica o crime de tráfico de drogas
como a encabeçada por Beira Mar pode assumir um caráter familiar
b)
que uma organização que realiza o roubo de cargas acena para relações
distantes e baseadas numa divisão de trabalhos calcada na especialidade
daqueles que as praticam, ilustrado por Sozza.
c)
que uma organização formada quase que exclusivamente por empresários,
políticos e policiais entra em sinergia com esquadrões da morte e
homicidas, tal como apresentadas pela organização de Hildebrando e pela
Scuderie Le Cocq.
d)
que a cooptação de parcerias e a realização de negócios ilegais no interior da
FAB passa pelo domínio da hierarquia e do habitus da corporação
e)
que o legado de PC Farias passou para as mãos de seu irmão, permitindo a
este, dar continuidade à lavagem de dinheiro por meio de contas
estrangeiras.
De outro lado, a análise das estruturas organizacionais adotadas nesses seis casos
permitiram ir além do simples desvelamento dos fatos: os resultados dessas análises
apontam para uma variedade de associações do crime organizado que misturam elementos
já existentes e caracterizadores do crime organizado tradicional, como aqueles utilizados
pela máfia italiana, por exemplo, com elementos de grupos mexicanas como os cartéis, e de
outros tipos como os bandos e maras, discutidos em capítulos anteriores. Combinadas,
essas formas levaram-me a pensar na existência de uma particularidade organizacional do
crime organizado encontrado nos casos estudados, a qual abordarei e desenvolverei nos
próximos capítulos.
Além disso, é preciso acrescentar que a triangulação que combinou métodos de
Grounded Theory e análise de redes, associados à novos fatos, nomes e eventos
248
recuperados a partir da mídia do período no qual a CPI esteve ativa, permitiu que conexões
não evidentes fossem reconstruídas e alguns vieses no relatório fossem neutralizados.
Finalmente, os mercados criminais acionados e o perfil dos indivíduos investigados
se destacaram como duas categorias a partir das quais retomarei, nos próximos capítulos, os
casos estudados e procurarei melhor entender como o macro (representado pelos mercados)
e o micro (perfil dos indivíduos) são problematizados no universo do crime organizado, e
podem constituir padrões.
249
250
CAPÍTULO VII
DO MICRO AO MACRO: INDIVÍDUOS E MERCADOS
Seguindo a proposta metodológica da Grounded Theory apresentada no capítulo
anterior, procurei descrever e depois analisar alguns casos investigados pela CPI do
Narcotráfico onde duas categorias se destacaram como sendo essenciais para entender os
fenômenos descritos no Relatório da CPI, são elas: os indivíduos envolvidos e os mercados
envolvidos com o crime organizado. A partir dessas duas categorias é possível alcançar um
nível de análise baseado em tipos-ideais de organizações que será aplicado nas análises dos
casos realizada no capítulo subsequente.
Partindo da micro esfera dos indivíduos e suas identidades até chegar à macro esfera
dos mercados criminosos, essas categorias funcionarão como “guias” no entendimento do
crime organizado no nível meso de análise e ajudarão a compor um panorama explicativo
que contemplará o papel do Estado.
Por vezes, a categoria mercado tem sido apontada por pesquisadores115 como uma
categoria essencial para compreender o universo do crime organizado. Segundo a United
Nations (2002), os mercados e as mercadorias estão localizadas em um nível mais exterior
das relações criminosas, ou seja, enquanto os indivíduos e grupos se mostram no nível
micro, os mercados se encontram no registro macro. Segundo a UNODC - órgão da ONU esses grupos tornaram-se menos importantes do que os mercados com os quais eles se
envolvem, tanto que atualmente
O crime organizado parece ser menos uma questão de um grupo de indivíduos
que estão envolvidos em uma série de atividades ilícitas, e mais uma questão de
um grupo de atividades ilícitas nos quais alguns indivíduos e grupos estão
atualmente envolvidos. Se esses indivíduos são presos e encarcerados, as
atividades continuam, porque o mercado ilícito, e os incentivos que geram,
permanecem (UNODC, 2010, p. 03 – tradução da autora).
Sendo assim, como qualquer outra mercadoria, o tráfico de drogas, armas ou a
pirataria também são produtos das forças do mercado: a demanda para o uso de drogas e o
115
Maillard (2001); Ruggiero (2000); Castels e Portes (1989); Centeno e Portes (2003).
251
comércio de outros produtos ilícitos estão igualmente associados. O consumo destes
últimos carrega em si um baixo estigma moral, e são poucas as chances de apreensão nos
círculos aonde estão situados os consumidores. Sendo assim, a demanda permanece, apesar
de dramáticas mudanças adaptativas na produção e tráfico do contrabando (MAILLARD,
2001).
Esta abordagem em camadas permite o reconhecimento fragmentado de problemas
da criminalidade organizada, com cada etapa reforçando a próxima. Por essa razão, optei
por iniciar a análise a partir dos indivíduos para então chegar no nível dos mercados.
PARTE 1
PERFIL DOS INDIVÍDUOS: OS ESTIGMATIZADOS
A discussão realizada entorno de possíveis categorias de análise utilizadas no
relatório para nomear e identificar os indivíduos investigados recai, invariavelmente, sob
designações bastante conhecidas da Sociologia da violência, tais como “bandido”,
“traficante”, “criminoso”, entre outras que serão abordadas na presente seção.
O ESTIGMA DO “BANDIDO”
Michel Misse trabalhou com a categoria “bandido” e suas pesquisas apontaram a
presença de vários tipos de etiquetagens que indicam que um indivíduo pode ser
considerado pelo senso comum como “criminoso” pelo simples fato de não ser
revolucionário, não ser democrático, não ser igualitário e não estar voltado ao bem comum.
Segundo Misse (2010):
o mais conhecido desses tipos é o sujeito que, no Brasil, é rotulado como
“bandido”, o sujeito criminal que é produzido pela interpelação da polícia, da
moralidade pública e das leis penais. Não é qualquer sujeito incriminado, mas
um sujeito por assim dizer “especial”, aquele cuja morte ou desaparecimento
podem ser amplamente desejados. Ele é agente de práticas criminais para as
quais são atribuídos os sentimentos morais mais repulsivos, o sujeito ao qual se
reserva a reação moral mais forte e, por conseguinte, a punição mais dura: seja
252
o desejo de sua definitiva incapacitação pela morte física, seja o ideal de sua
reconversão à moral e à sociedade que o acusa (MISSE, 2010, p. 17).
Em se tratando desses indivíduos, Misse é categórico ao afirmar que se trata de um
processo de subjetivação cujo resultado reflete o ponto de vista da sociedade,
representando-o como um indivíduo que reside em um mundo à parte, geralmente habitado
por bandidos, traficantes, malandros, matadores, enfim, indivíduos considerados
representativos do mundo do crime.
A essas observações, o autor acrescenta: é como se alguns fatores sociais se
retroalimentassem, gerando uma “causação circular acumulativa”, onde, de um lado haveria
a acumulação de desvantagens para um segmento da população e, de outro, estratégias
adquiridas e partilhadas tanto por agentes criminais quanto por agentes encarregados de
reprimí-los. Trata-se de uma fórmula realizada a partir de um ajuste na estratificação social
associada à composição de diferentes graus de legitimação social, os quais, variam
conforme interesses políticos e econômicos que, segundo Misse vão além da simples
associação entre acumulação de vantagens e (des)criminação preventiva de certos “tipos
sociais”. Tal dinâmica estabelece algo como uma “cultura” associada a esses indivíduos.
Traçando um paralelo com os casos investigados pela CPI, grosso modo, são
retratados indivíduos que podem ser facilmente comparáveis aos “empreendedores”
mafiosos italianos, que investem naquilo que mais pode lhes render lucro sem
necessariamente “sujar suas mãos” (ARLACHI, 1983). Por essa razão pode-se considerar
que
a sujeição criminal é um processo de “criminação de sujeitos”, e não de “cursos
de ação”. Trata-se de um sujeito que “carrega” o crime em sua própria alma;
não é alguém que comete crimes, mas que sempre cometerá crimes, um bandido,
um sujeito perigoso, um sujeito irrecuperável, alguém que se pode desejar
naturalmente que morra, que pode ser morto, que seja matável. No limite da
sujeição criminal, o sujeito criminoso é aquele que pode ser morto (MISSE,
2010, p. 21).
253
Essa discussão pode ser melhor entendida observando o exemplo de “Nivaldo”
relatado no caso Amapá116 da CPI do Narcotráfico. Trata-se de um policial, envolvido com
tráfico de drogas e um homicídio, que, no momento em que foi identificado na CPI, foi
rotulado por seus “pares” como bandido e não mais como policial.
FICHA CATALOGRÁFICA GT – 3
Trecho do Caso Amapá
“...O Nivaldo era investigador. Ultimamente já
vinha usando drogas também, entendeu?
Inclusive até num tempo na delegacia deram um
flagrante nele numa boca de fumo, uma coisa
assim. E ele tava investigando essa morte do
Valdson. De repente, foi minha surpresa, ele já
foi acusado aí. Prenderam o Nivaldo. Já matou
gente aí. Quer dizer que virou bandido...”
(CAMARA DOS DEPUTADOS, 2000, p. 279)
Código do caso
Indivíduo investigado: policial
Bandido
FONTE: Relatório Final da CPI do Narcotráfico / Câmara dos Deputados.
No texto da CPI, a categoria “bandido” aparece em oposição à categoria “inocente”.
Todavia, a categoria “policial” que é a atividade oficial de “Nivaldo” concorre com a
categoria “bandido” e, estranhamente, não se opõem a ela. É possível notar ainda uma sutil
“decadência” que é imposta à relatada trajetória de Nivaldo: primeiro ele usava drogas,
depois foi flagrado em uma “boca de fumo” (local aonde um policial não deveria estar
frequentando), depois foi preso e então se transformou em assassino.
O “bandido” é uma categoria acionada pela CPI para separar aquele que comete
crimes dos demais indivíduos investigados. É uma categoria que pode ser considerada
nativa apenas em alguns contextos e em uma relação na qual os indivíduos se autointitulam a partir do referencial jurídico que lhes é imputado. Dentre as categorias
acionadas para identificar os indivíduos investigados pela CPI a que mais apresenta
divergências é a categoria “traficante”: nela nem sempre os indivíduos envolvidos com o
tráfico são classificados com o título, conforme será mostrado na seção seguinte.
116
O caso Amapá, bem como outros tantos que serão contemplados no presente capítulo não será analisado no
capítulo subsequente. Sendo abordado apenas em caráter exemplar.
254
O ESTIGMA DO “TRAFICANTE” E DO “LADRÃO DE CARGAS”
De um modo geral, boa parte da definição de “traficante” apresentada pelo senso
comum tem sua origem na solução jurídica na qual o traficante é oficialmente definido
como o popular “criminoso” que faz ou comanda o tráfico, isto é, o transporte e a
comercialização
de
entorpecentes
não
legalizados,
tais
como cocaína, heroína,
maconha, crack, e etc., entre bairros, cidades, estados ou mesmo continentes.
Resumidamente, o traficante de drogas é designado como um criminoso, na medida em que
viola a lei Federal (Lei no. 11.343/06) que proíbe o comércio e o transporte de narcóticos e
está sujeito à reclusão. Interiorizando o estigma legal e social do “criminoso”, o indivíduo
se torna tal; tese que é geralmente resultado de um julgamento, sendo reforçada pelo
sistema penal. O mesmo ocorre com o “ladrão de cargas” e demais “especializações”
criminais encontradas no relatório.
No relatório da CPI fica evidente que nem todos os indivíduos envolvidos com o
tráfico de drogas, roubo de cargas, lavagem de dinheiro, etc., foram designados sob a
alcunha de “traficantes”, “ladrões”, “bandidos”. Isso se deve ao fato de que haveria uma
tendência entre os relatores em identificar um sujeito como traficante, por exemplo, pela
sua maior ou menor proximidade com a droga, seja como transportador, armazenador ou
comprador. No caso dos ladrões de cargas, apenas os motoristas eram identificados como
tais117. Nos casos investigados pela CPI do Narcotráfico, um investidor, um empresário, um
banqueiro, juiz, doleiro ou advogado indiretamente envolvido com o tráfico, seja através da
lavagem de dinheiro ou de investimentos, não recebe o rótulo de “traficante”, mesmo que
comprovada sua associação com o tráfico.
Seguindo uma tendência jurídica em rotular o indivíduo a partir da definição prévia
de alguns comportamentos como culposos ou eleger e estigmatizar indivíduos como
criminosos segue algumas das diretrizes do sistema penal no que se refere à
dimensão estabelecida pela criminologia da reação social, que rompe
definitivamente com o paradigma etiológico da criminologia positivista, a qual
investiga as causas da criminalidade a partir de definições antropológicas e
patológicas centradas no ‘criminoso’ (ZACCONE, 2008, p. 42).
117
Vide caso São Paulo – capítulo VI – a estória de William Sozza.
255
O “traficante”, “ladrão”, “bandido”, se enquadra nesses limites na medida em que é
um sujeito rotulado a partir do sentimento de “desprezo que provoca na sociedade”
(BECKER, 2009). Pioneiro na teoria da etiquetagem e rotulação, Howard Becker aponta
que as diferenças no exercício de se fazer regras e aplicá-las às outras pessoas é o que
possibilita o estabelecimento de diferentes formas de poder. Os grupos (político e jurídico)
cuja posição social lhes dá armas e poder para criar essas regras estão em melhor posição118
para implantá-las.
Desta maneira, para compreender o processo de rotulação utilizado pela CPI a partir
da perspectiva da lógica de Becker, proponho deslocar o objeto de estudo da criminologia,
cujo paradigma é estabelecido pelo crime, para a criminalização realizada por civis. Nela, a
criminalidade se destaca não como um objeto, mas como um produto da reação social.
Como o próprio nome desta corrente informa, a maneira pela qual se dá a interação entre
indivíduo e sociedade é que irá designar o conceito de desvio e desviante, sendo que tal
processo irá ocorrer através da formação da identidade social, ou seja, da socialização dos
indivíduos frente à mesma e aos valores que representa (através dos processos de rotulação
e etiquetamento) e, por fim, da concretização de tais valores na lei. Nesse sentido, os
sujeitos desse processo são os indivíduos investigados, enquanto que os atores são os outros
políticos que se encarregam de “julgar” e rotular “quem fez o que” e como esse indivíduo
deve ser socialmente reconhecido. Assim,
o papel que o controle social realiza na construção da realidade social de forma
que as agências controladoras não detectam ou declaram a natureza criminal de
uma conduta, [mas] a geram ou produzem ao etiquetá-las assim (BECKER,
2009, p. 43).
Por essa razão, Becker reconhece que o desvio é criado a partir das respostas que as
pessoas (e a Justiça) dão diante de um tipo particular de conduta e, por etiquetar esta
conduta como desviante, ele acredita que devemos ter em mente que as regras criadas e
mantidas por esta etiquetagem não são universalmente aceitas, mas, objeto de conflito e
desacordo no seio da sociedade.
118
Para Becker, as diferentes faixas etárias, sexos, etnias e classes estabeleceriam diferentes formas de
exercício do poder.
256
Eu não quero dizer com isso o que se compreende normalmente, ou seja, que as
causas do desvio estão localizadas na situação social do desviante ou nos
“fatores sociais” que induzem a ação. Quero dizer mais do que isso, que os
grupos sociais criam o desvio ao fazer as regras cuja infração constitui o desvio
e ao aplicar essas regras a pessoas particulares e rotulá-las como marginais e
desviantes. Deste ponto de vista, o desvio não é uma qualidade do ato que a
pessoa comete, mas uma consequência da aplicação por outras pessoas de
regras e sanções a um “transgressor”. O desviante é alguém a quem aquele
rótulo foi aplicado com sucesso; comportamento desviante é o comportamento
que as pessoas rotulam como tal (BECKER, 2009, p. 60).
Desta maneira, Becker nos ensina que o mesmo comportamento pode ser uma
infração (ou não) em um momento (ou outro), dependendo somente de quem a comete.
Completando essa premissa, Zaccone (2008) sugere que alguns fatores podem ter impacto
no momento de etiquetagem de uma situação como criminosa, tais como: a) o tempo – em
qual conjuntura política e/ou momento histórico se deu o evento considerado criminoso; b)
o grau – em que grau o ato criminoso pode ser tratado como desviante está diretamente
dependente de quem o comete e de quem foi por ele prejudicado.
Sabe-se ainda que para uma boa compreensão do sujeito rotulado é necessário que
se observe as condições de “sujeição” (MISSE, 2010, p. 15).
Muitas contribuições recentes à teoria do sujeito têm argumentado que a
experiência de tornar-se sujeito está vinculada fundamentalmente à experiência
da subjugação. Nesse sentido, o sujeito seria o pressuposto da agência, já que
não se pode explicá-la sem a intervenção ativa que contrapõe a estrutura. Se
tomarmos estrutura como poder (mesmo no sentido amorfo weberiano), então a
experiência
da sujeição (no
sentido
de
subjugação,
subordinação, assujetissement) seria também o processo através do qual a
subjetivação, a emergência do sujeito se ativa como contraposto da estrutura,
como ação negadora. O sujeito, nesse sentido, é o efeito de ser posto pela
estrutura (poder) e de emergir como seu ser contraposto e reflexivo (potência).
Para compreender esse par de opostos (poder e potência) que constroem o sujeito
criminoso para Misse, a “Teoria da Etiquetagem” de Becker é novamente requerida: a
observação do desvio como resultado de uma ação coletiva maior ajuda a desmistificar os
fenômenos a ela ligados levando em conta a problemática moral que interliga estreitamente
a pessoa que emite o julgamento de desvio ao “desviante”, colocando em evidência
grupos sociais criam desvio ao fazer as regras cuja infração constitui o desvio, e
ao aplicar essas regras a pessoas particulares e rotulá-las como outsiders. Desse
ponto de vista, o desvio não é uma qualidade do ato que a pessoa comete, mas
uma consequência da aplicação por outros de regras e sanções a um ‘infrator’
(BECKER, 2009, p. 22/23 grifos meus).
257
A Teoria da Etiquetagem considera ainda que os desviantes fazem o que fazem com
base nas observações sobre as ações dos outros, provocando com isso uma série de linhas
de ação recíprocas, de concessões mútuas e interações entre os mais diversos indivíduos
com sistemas de ação coletiva distintos.
Considerando o viés estimulado pela criminologia e a “Teoria da Etiquetagem”
como referenciais para tentar entender como a relatoria da CPI do Narcotráfico rotulou este
ou aquele como “bandido”, “traficante”, “ladrão”, etc., observou-se que dois fatores podem
ser considerados como influenciadores na tomada de decisão sobre quem receberia qual
rótulo: 1) os relatores se basearam na biografia dos indivíduos investigados e nos relatos
sobre o processo de “deterioração”, como registrado na Ficha Catalográfica GT – 3, na qual
o policial Nivaldo recebe a alcunha de “bandido”; 2) os relatores se basearam na fórmula
jurídica, assumindo que o “desvio” tem sua origem não no comportamento do “desviante”
em si, mas na interação entre a pessoa que comete o ato desviante e aqueles que reagem a
esse ato, no caso, a polícia.
ALGUNS DADOS ESTATÍSTICOS SOBRE O PERFIL DOS INDIVÍDUOS
INVESTIGADOS
Como dito na introdução da presente tese, uma parte dos dados disponíveis no
relatório da CPI do Narcotráfico foram analisados em conjunto com as Profas. Angelina
Peralva e Jacqueline Sinhoretto. Ao longo de cinco anos de pesquisa119, foram extraídos
alguns dados a partir do banco de dados120 que versam sobre o perfil dos indivíduos e
atividades criminosas investigadas pela CPI do Narcotráfico, publicados em dois artigos e
que serão citados e comentados na presente seção.
O perfil dos indivíduos investigados apresenta algumas considerações que serão
utilizadas a partir de dados disponíveis em um de nossos artigos (PERALVA,
SINHORETTO e ALMEIDA GALLO, 2010), no qual os mais de 1800 indivíduos
119
Por razões de agenda, a pesquisa sobre os perfis estatísticos e a análise do Banco de Dados conduzida pela
profa. Jacqueline Sinhoretto se encontra temporariamente suspensa. Por essa razão, algumas análises
apresentadas são apenas resultados parciais da pesquisa.
120
Esse banco de dados Access criado por Sinhoretto ditou as diretrizes e bases utilizadas na presente
pesquisa.
258
investigados pela CPI são acionados e suas características organizadas segundo os dados
relativos à ocupação. Algumas subcategorias como os policiais militares, civis, graduados e
não graduados, federais, etc., foram usadas para complementar esse perfil e colaborar para
uma imagem geral do perfil dos indivíduos investigados. Foram utilizados alguns gráficos
extraídos do artigo que mostram quais são as principais atividades criminais acionadas pelo
crime organizado, tal como mostrado na Tabela 6 abaixo.
TABELA 6: Ocupação dos Indivíduos Acusados (casos citados apenas), Brasil, 2000:
Ocupações
Ocupações no Estado
Policial Civil
Policial Civil Graduado
Policial Militar
Policial Militar Graduado
Policial Federal
Policial
Ex-policial
Legislativo
Executivo
Judiciário
Gabinete Segurança
Militar graduado
Militar
Funcionário Público
Ocupações Civis
Empresário
Aviação
Advogado
Doleiro
Motorista
Professor
Trabalhador rural
Contador
Detetive particular
Diretor banco
Estivador
Funcionário
Gerente
Gerente banco
Médico
Segurança Particular
Sindicalista
Superintendente Receita
Federal
Trabalhador
Atividades Criminais
Frequência
374
145
67
49
15
2
6
2
29
20
15
9
11
1
3
107
59
16
8
4
4
2
2
1
1
1
1
1
1
1
1
1
1
1
%
50,3
19,5
9,0
6,6
2,0
,3
,8
,3
3,9
2,7
2,0
1,2
1,5
,1
,4
14,4
7,9
2,2
1,1
,5
,5
,3
,3
,1
,1
,1
,1
,1
,1
,1
,1
,1
,1
,1
1
102
,1
13,7
259
Traficante
95 12,8
Pistoleiro
5
,7
Falseador de documentos
1
,1
Sequestrador
1
,1
NI
161 21,6
Total
744 100
FONTE: Peralva, Sinhoretto e Almeida Gallo,
2010.
Legenda: N.I – não informado.
De modo geral, tais dados versam sobre 5 casos (Acre, FAB, São Paulo, Rio de
Janeiro, Alagoas 121 ) investigados pela CPI e revelam a existência de uma grande
diversidade na composição social dos indivíduos inquiridos, mostrando a inexistência de
um padrão uniforme de cooptação do crime organizado.
A primeira questão que chamou nossa atenção nesse momento da pesquisa foi a
interconexão entre o perfil dos sujeitos e suas relações com o Estado, sendo que mais de
50% dos indivíduos investigados nos citados casos são agentes do Estado.
Partindo de um artigo de Charles Tilly (2000), citado anteriormente, que situa a
formação histórica do Estado na perspectiva de um monopólio exercido sobre um nicho
particular do mercado, o da “proteção” de bens e pessoas, é possível entender que a
formação do Estado mantém uma estreita relação com os fenômenos de extorsão e o crime
organizado, tendo, no entanto, a vantagem da legitimidade no uso da violência.
Esse axioma e a sugestão de Tilly são partilhados pela presente pesquisa e o uso da
violência pode ser entendido não apenas como recurso legítimo do qual o Estado lançaria
mão apenas em situações extremas, mas como um elemento constitutivo dele próprio122,
engajado em relações de força com diferentes grupos dentro e fora do território nacional.
A abordagem histórica que Tilly propõe acerca do Estado se mostra tensionada
entre duas lógicas extremas: de um lado, a lógica do contrato e da centralidade da
referência à lei; de outro, a lógica do crime organizado 123 . Para mostrar como esse
panorama se encontra replicado nos casos estudados, o Gráfico 1 informa sobre as
Ocupações dos indivíduos acusados e sua relação com o Estado.
Na categoria Ocupações no Estado estão reunidos todos os indivíduos investigados
ocupantes de cargos no Executivo, Legislativo e Judiciário - incluindo neste último, o
121
Na presente pesquisa acrescentei o caso Espirito Santo aos demais casos analisados em conjunto com
Peralva e Sinhoretto.
122
O sentido público e “legítimo” do uso da força pelo Estado aparece, portanto, como estreitamente
dependente das relações de força e poder que atravessam a experiência democrática (...) O Estado oferece
“proteção”, palavra de conotações contrastadas: de um lado, ela significa afastar o perigo; de outro, quer
dizer extorsão – tributo pago para que uma ameaça (vinda justamente de quem oferece a proteção) não se
torne efetiva. A qualidade da proteção depende portanto da efetividade da ameaça e do preço, mais ou menos
justo, pago para ser protegido. (PERALVA, SINHORETTO e ALMEIDA GALLO, 2010, p. 09).
123
A escolha de uma ou de outra é uma questão ligada às condições históricas de construção do Estado e
também da democracia.
260
Ministério Público, bem como integrantes das corporações que atuam na segurança pública,
incluindo todas as categorias de policiais até as chefias e os cargos políticos importantes da
Secretaria de Segurança Pública.
GRÁFICO 1: Ocupação dos indivíduos acusados (resultados parciais):
NI
22%
Atividades
Criminais
14%
Ocupações
no
Estado
50%
Ocupações
Civis
14%
FONTE: Peralva, Sinhoretto e Almeida Gallo, 2010.
Legenda: N.I são os indivíduos não identificados ou sobre os quais não constam maiores informações no relatório da CPI.
Os indivíduos que apareceram identificados no relatório da CPI por sua profissão ou
por sua atuação no mercado formal foram reunidos sob a categoria Ocupações civis, na
qual se destaca a qualificação de empresário, onde foram classificados também os
fazendeiros e proprietários de empresas de todos os tipos e tamanhos.
Na categoria Atividades criminais estão agrupados os indivíduos citados no relatório
como “criminosos”, são os chamados “traficantes”, “pistoleiros”, “sequestradores”,
“ladrões”. Ao contrário do que se poderia esperar de uma investigação sobre o crime
organizado, essa não foi a categoria que reuniu o maior número de indivíduos, mostrando
com isso a importância do relatório da CPI para investigação do tema dos mercados ilegais.
No citado artigo também classificamos os indivíduos no interior das categorias
criminais com a intenção de mostrar como as três esferas (do Estado, atividades civis e
criminais) se posicionam e dialogam através dos casos relatados pela CPI.
Embora seja sugerida uma hierarquia de posições, é preciso ter em mente que
alguém posicionado no mercado internacional da droga ou na distribuição no
261
atacado, também pode realizar tarefas de proteção ou de venda direta aos
consumidores. O contrário é que nem sempre é verdadeiro, o que permite fazer
uma escolha de classificação; isto é, um vendedor do varejo não tem
necessariamente acesso direto ao comércio internacional de drogas, ou um
policial corrupto não necessariamente tem acesso à manipulação de documentos
judiciais ou à administração de grandes capitais. (PERALVA,
SINHORETTO e ALMEIDA GALLO, 2010, p. 18).
Todavia, a relação entre essas ocupações e sua classificação como pertence às
esferas do Estado, crime ou sociedade civil, variam igualmente segundo a estratificação
social, a qual está condicionada, no mínimo, às profissões desenvolvidas e à renda dos
indivíduos.
Afim de comparar com os casos estudados pela equipe e publicados nos citados
artigos, dispus em um novo gráfico os casos estudados pela presente pesquisa e os dados
que informam sobre o volume de indivíduos envolvidos em atividades criminais, Estado e
atividades civis. No Gráfico 2 é possível verificar o peso que essas três categorias tem para
cada um dos 6 casos investigados, sobretudo, para entender melhor sobre as relações
estabelecidas entre as diversas atividades desempenhadas dentro de cada caso. Ele ajuda a
perceber o peso que cada um desses conjuntos de atividades tem para o contexto de cada
caso estudado.
GRÁFICO 2: Gráfico dos casos analisados – número absoluto de indivíduos envolvidos,
segundo atividade:
FAB
Acre
Rio
de
Janeiro
Atividades
criminais
Ocupações
no
Estado
São
Paulo
Ocupações
civis
Alagoas
Espirito
Santo
0
10
20
30
40
50
60
FONTE:
Relatório Final da CPI do Narcotráfico / Câmara dos Deputados.
262
Assim, o Gráfico 2 mostra que: 1) nos casos Acre e Espírito Santo, tal como foi
apontado no capítulo anterior, no qual explorarei cada um desses casos, o volume de
acusações e de homicídios é dos maiores relatados pela CPI do Narcotráfico; 2)
contrariamente, nos casos São Paulo e Rio de Janeiro o volume de atividades civis aumenta,
caracterizando dois estados no qual os mercados de lícitos e ilícitos se confundem; 3) nos
casos Alagoas e São Paulo observa-se o maior volume de envolvimento de ocupações no
Estado, o que mostra que ao inverso do uso da violência, agentes do Estado tem se
envolvido em casos caracterizados pela não violência, talvez ai haja um indicativo de que o
Estado ainda detém o uso legítimo da violência e a mesma não fora registrada pela CPI na
chave das atividades criminais.
PERFIL DOS INDIVÍDUOS INDICIADOS
Ao término das investigações, a CPI do Narcotráfico indiciou apenas 824 124
indivíduos125 dos 1800 depoentes. Estes, estão identificados no gráfico abaixo segundo suas
ocupações.
GRÁFICO 3: Indiciados pela CPI do Narcotráfico, segundo ocupação (em %)
Atividades
Criminais
18%
NI
13%
Ocupações
Civis
44%
Ocupações
no
Estado
25%
FONTE: Relatório Final da CPI do Narcotráfico / Câmara dos Deputados.
124
Não utilizei a totalidade dos 824 indivíduos indiciados pela CPI na presente pesquisa, pois muitos desses
apenas foram indiciados e seus testemunhos e informações não constam no relatório da CPI do Narcotráfico.
125
http://www2.uol.com.br/JC/_2001/2605/cd2605_3.htm
263
Este gráfico mostra que as ocupações civis (aonde se destacam os empresários)
sobressaem como aquela com mais indivíduos indiciados, ao contrário das Ocupações no
Estado que se destacavam no Gráfico 1 com 50% dos investigados (resultados parciais),
mas que ao final da CPI apresentou apenas 25% do total de indivíduos indiciados.
De um modo geral, os indiciados em ocupações civis foram divididos em duas
categorias: de um lado, advogados e de outro, pecuaristas, médicos, dentistas, professores,
motoristas, comerciantes, empresários e investidores; no caso dos representantes do Estado,
foram indiciados policiais e políticos e, dentre os indivíduos com ocupação criminal foram
indiciados “traficantes”, “pistoleiros”, “assaltantes” e “ladrões”. No caso dos indivíduos
não identificados, é possível inferir que são indivíduos com algum tipo de predominância
(política ou econômica) em suas regiões de atuação – a chamada “cifra negra” da
criminologia (THOMPSON, 1998).
Thompson deu o nome de “cifra negra” aos delitos cometidos que nunca chegavam
ao conhecimento das autoridades constituídas. Apesar de gerarem um procedimento
investigatório, esses delitos não resultavam necessariamente em processo criminal. Quatro
fatores, de um lado, explicam a “cifra negra” mas, de outro, não dão conta do caráter
“blindado” que seus representantes assumem, são eles: 1) a visibilidade da infração; 2) a
adequação dos autos ao estereótipo do criminoso constituído pela ideologia prevalente; 3) a
incapacidade do agente em beneficiar-se da compensação ou prevaricação; e 4) a
vulnerabilidade à violência (THOMPSON, 1998, p. 87).
Embora trate-se de um conceito jurídico, a “cifra negra”, por abarcar os casos sem
solução investigados pela polícia, ajuda a entender como a categoria “desviante” cunhada
por Becker (2009) e representada no gráfico anterior pelas “atividades criminais” se mostra
como atividade secundária exercida pelos indivíduos investigados pela CPI. Não se trata de
um exagero afirmar que a maioria dos indivíduos presentes na classificação dos “indivíduos
indiciados” seja composta por representantes do Estado e não indivíduos diretamente
envolvidos com “atividades criminais”. Trata-se de um caso de “cifra negra” onde, o
“bandido” parece portar outra vestimenta: ele é o empresário, o político, o policial, enfim,
trata-se de um sujeito que não consta e não constará dos autos judiciais. Um exemplo
interessante de desconstrução da imagem do traficante em função do recurso da “cifra
264
negra” encontra-se disponível em Grillo (2008). Com ela é possível entender como a
imagem do “bandido” é construída em função da posição que este ocupa na estrutura social
e nas estruturas de poder.
Os traficantes que estudei incorporam talvez um estigma que os desacredita
junto àqueles que tomam conhecimento de suas práticas. Porém, lhes é reservada
a possibilidade de abandono desse rótulo, oportunidade essa que não se quer
sacrificar através da posse de armas e da identificação com práticas violentas
que lhes arrancariam da classe dos tão somente “passadores de drogas”. Em um
artigo no Jornal do Brasil, o desembargador Siro Darlan comenta sobre a
facilidade com que João Guilherme Estrela, ex-traficante de drogas de classe
média, teve a sua “regeneração” publicamente aceita, ao passo que Tuchinha,
ex-traficante “do morro”, jamais deixou de ser percebido como um “bandido”,
apesar do empenho devotado nessa empreitada. O repúdio ao emprego da força
até mesmo para a cobrança dos débitos envolve, portanto, um cálculo de custo e
benefício que lhes é acessível, dadas as circunstâncias privilegiadas sob as quais
praticam o tráfico de drogas. A desigualdade que persiste na sociedade
brasileira reproduz-se também no narcomercado. (GRILLO, 2008,
p.145/46)
Para melhor entender como a estratificação social influencia na construção da
imagem do indivíduo “bandido”, Misse (2010) sugere uma reflexão a partir da sujeição
criminal, e do pensamento de Becker. Para ele, a estratificação social do indivíduo é uma
variável que interfere diretamente na possibilidade ou não deste sofrer a sujeição criminal.
Nesse caso, o que parece demarcar a diferença não é tanto o tipo de mercadoria ou a
rede de comercialização, mas os efeitos diferenciais de violência que seu comércio pode
produzir.
Pode-se, então, propor a hipótese de uma seleção social da sujeição criminal,
que o processo de incriminação reproduz ampliadamente. Essa seleção
tendencialmente acompanha as linhas da estratificação social mais abrangente.
Do mesmo modo, as linhas de reiteração das práticas criminais dependem
também de recursos de poder que, geralmente, acompanham a estratificação
social, por dependerem de diferentes “poderes sociais de disposição” de bens
materiais ou simbólicos (MISSE, 2010, p. 29).
Dez anos antes, em sua tese de doutorado, Misse (1999, p. 182) já mencionara que
“a estratificação social reproduz-se na estratificação criminal”. Ele reconhece que existe um
tratamento diferencial dado pela justiça a uns e a outros, variando segundo os recursos e as
posições sociais.
Quando, eventualmente, um dos poderosos cai nas malhas da justiça estatal,
quando acontece de ser legalmente incriminado, a autonomia moral (ou amoral)
de sua opção, em relação à sua posição de classe, ganha reforço, pois ele é posto
265
publicamente, e preventivamente, contra os ricos ou as elites e as classes médias,
como um caso à parte, um desviante. (MISSE, 1999, p. 182).
Misse atribui o título de “desviante” ao indivíduo que cai nas “malhas da justiça”,
mas que, de início, não tem o perfil juridicamente indicativo do “criminoso”. E continua:
No entanto, raramente se assujeita à sua identificação com o bandido, pois
parece, de alguma maneira, saber da diferença. O que é isso que ele sabe, que
lhe permite escapar à sujeição criminal ou que lhe permite (e permite aos outros)
saber que ‘ele não é exatamente um bandido’? A classificação dominante tende a
pôr o mais rico na posição do desvio, da divergência ou da incriminação efêmera
ou eventual, raramente na posição da sujeição criminal (...) Ao contrário do
bandido, ele parece se representar como alguém que não rompeu inteiramente
com as regras do jogo da sociabilidade, apenas excedeu-se na aposta na esfera
dos interesses. Ultrapassou os limites no jogo de interesses, mas não na
sociabilidade: é preferentemente um corrupto. Pode até mesmo ser chamado
publicamente de «ladrão», por exemplo, mas a extensão do atributo é limitada e
menos eficiente quando comparada ao tipo social de ladrão convencional.
Quando acusado de servir-se de meios violentos, ou mandar utilizá-los contra
outros, pode ser chamado de «assassino», mas diferentes atenuações confortarão
sua identidade pública e íntima. (MISSE, 1999, p. 182).
Para esse indivíduo, caracterizado como “desviante”, predomina o rótulo de
“ladrão”, mas apenas como uma caracterização efêmera, não criminal, que lhe é imputada
pela sua trajetória e pela tradição do seu papel, tal como Hildebrando Pascoal (caso Acre) o
fez:
Uma tradicional fusão da imagem do poder (e, portanto, do poderoso) com
algum tipo de «legitimação» ancestral do exercício desse poder acima da moral
comum, inclusive com recurso à força, parece protegê-lo do opróbio reservado
ao seu equivalente «sem poder». A sua violência é, geralmente, indireta,
executada por outros, ou mesmo desnecessária, inútil e indesejada. O indivíduo
não é subjetivamente afetado, apenas sofre pelo fracasso de sua aposta e pela
deterioração momentânea de sua identidade pública, mas ele tem recursos para
manipulá-la mais à frente. Sabe-se fracassado, derrotado na aposta, mas sabe-se
capaz de refazer a sua inserção social. Não é exatamente um bandido, seu tipo
social não se condensa facilmente com a sujeição criminal. Apenas os que
investem criticamente contra essa classificação ou aqueles que têm interesses em
denegri-lo insistirão em chamá-lo - contra o senso comum - de «bandido». Ele
próprio rejeita essa classificação que o coloca não como criminalmente
«condenável», o que é aceitável, mas sob a absurda (para ele) posição da
sujeição criminal. (MISSE, 1999, p. 182).
A elegante e consistente explicação dada por Misse para a rotulação de “bandido”
(aplicada a uns em detrimento de outros), pode ser complementada por uma análise mais
próxima da formação do Estado (TILLY, 2000), uma vez que trata-se de aplicar a rotulação
266
de “bandido” à políticos e agentes do Estado. Para compreender como a estratificação
social e estruturas de poder uma vez associadas à figura do Estado podem ser utilizadas
para explicar a rotulação de “bandido” aplicada apenas à alguns indivíduos, lançarei mão
do pensamento Weber sobre a máxima de que o Estado detém o monopólio do uso legítimo
da violência física e simbólica em um território determinado e sobre o conjunto da
população correspondente. Para ele, o Estado não é um monólito que se relaciona de forma
homogênea com todo o conjunto da população, antes, ele é o resultado de um processo de
concentração do capital de força física ou coerção carregado de um peso simbólico.
O “bandido” é o indivíduo que mais se distancia do Estado, revelando que suas
relações com agentes do Estado são menos prováveis, mas não impossíveis, uma vez que a
possibilidade de trocas de “favores” através das “mercadorias políticas” sempre existe.
Como, no processo de sujeição social quem rotula o criminoso (e que coincide com o início
do processo de incriminação) é sempre um representante do Estado e da Justiça, a partir de
uma interpretação contextualizada, realizada por agentes, baseado naquilo que Misse
(1999) chamou de sujeição criminal (comentada anteriormente). A sujeição, para o autor é
definida a partir de 3 dimensões:
A primeira dimensão é a que seleciona um agente a partir de sua trajetória
criminável, diferenciando-o dos demais agentes sociais, através de expectativas
de que haverá, em algum momento, demanda de sua incriminação; a segunda
dimensão é a que espera que esse agente tenha uma ‘experiência social’
específica, obtida em suas relações com outros bandidos e/ou com a experiência
penitenciária; a terceira dimensão diz respeito à sua subjetividade e a uma dupla
expectativa a respeito de sua auto identidade: a crença de que o agente não
poderá justificar sensatamente seu curso de ação ou, ao contrário, a crença em
uma justificação que se espera que esse agente dê [...] para explicar porque
segue reiteradamente nesse curso de ação criminável. (MISSE, 1999, p. 67)
Somando a proposta de Misse à de Weber, a sujeição criminal pode ser
reinterpretada como um jogo de poderes simbólicos realizados no campo de domínio do
Estado. Essas relações, resultam em um rótulo de “bandido” aplicado apenas à alguns e ao
uso de violência reservado à outros. É como se houvesse um rótulo reservado apenas aos
“peixes pequenos” enquanto que políticos e empresários de maior “calibre” se esquivariam
do rótulo jogando o jogo de poderes simbólicos garantidos pelos status político e
econômico que detém.
267
A maioria dos “empresários” investigados pela CPI apresentaram fortes ligações
com o tráfico de drogas, roubo de cargas ou lavagem de dinheiro, mas foram tratados como
indivíduos que apenas estavam se empenhando no “ganho livre”, seja este através de uma
empresa, da prestação de serviços ou de investimentos e que não receberam o rótulo de
“bandido” dado seu estrato social mais elevado; distintamente, o piloto de aviões que
transportou cocaína escondida em seu avião, no final esteve sujeito à acusação criminal e
foi rotulado como “traficante”, ficando evidente que o processo de rotulação utilizado pela
CPI está condicionado ao estrato social original do qual o indivíduo é oriundo. Entretanto,
tal análise é melhor entendida e abordada a partir da biografia de alguns dos indivíduos
investigados a fim de exemplificar e tentar entender como o complexo processo de
tipificação, se baseia e atravessa a subjetividade dos indivíduos investigados, sua trajetória
de vida e o caráter do crime cometido. Nesse caso, os policiais investigados, em sua
maioria, pelo cometimento de crimes de homicídio e tráfico de drogas foram classificados
não como “matadores” ou “traficantes”, mas como policiais corrompidos.
BIOGRAFIAS
Na seção anterior fica claro que no relatório da CPI “empresários”, políticos,
doleiros não são analisados a partir das dimensões investigadas por Misse, tais como a
trajetória criminosa ou a experiência criminal do indivíduo. Isso se deve ao fato de que
Diferentes tratamentos legais são dispensados às mesmas infrações, dependendo
da situação social ou profissional do sujeito” (KANT DE LIMA, 1995, p.1).
Segundo Misse, “o problema é que no Brasil, o Estado nunca conseguiu
completamente o monopólio do uso legítimo da violência, nem foi capaz de
oferecer igualmente a todos os cidadãos acesso judicial à resolução de conflitos”
(MISSE, 2008, p.374 apud KHALED Jr., 2010, p. 300).
Essa explicação dada por Khaled Jr. (2010), ajuda a entender que o processo de
rotulação adotado pelos relatores da CPI além do critério da estratificação social e do
detrimento do poder, comentados anteriormente, se deu com base na biografia do indivíduo
investigado e não na ação praticada.
268
Analisando o código penal brasileiro e também o americano, Khaled Jr. percebeu
que o modelo acusatório deixa claro seu caráter pouco acusatório.
É por essa razão que Kant de Lima (1989) insiste na existência de uma imprecisão
em nosso sistema processual que, de um lado, apresenta um sistema autodenominado
“misto” e, de outro, adota práticas policiais que “transacionam” e constituem uma tradição
inquisitorial. Seguindo argumentação semelhante, Michel Misse sugere que a fase policial
do processo de incriminação apresenta certa autonomia em relação ao restante do processo,
por essa razão, ele acrescenta que no processo de incriminação são destacados o grau de
exclusão e segregação social do acusado afim de distinguí-lo.
Dependendo de como se estabeleça a relação entre sujeição criminal e distância
social, podem se alargar extensões sociais da sujeição criminal para ruas,
favelas, bairros ou uma parte inteira da cidade, bem como todos os traços
sociais distintivos de classe, gênero, idade e raça (MISSE, 2007, p.23-24
apud KHALED, 2010, p. 301).
Nesse sentido, Kant de Lima e Michel Misse concordam que o “processo
acusatório” acaba ficando a cargo da polícia, que se dá de modo diferenciado em
conformidade com a condição social do indivíduo investigado. E esse processo acusatório
acaba por se tornar uma negociação que assume o caráter de sujeição, especialmente para
“populações em situação de risco” (KHALED, 2010).
Sobre essas negociações, Misse infere que as mesmas, uma vez transferidas para a
polícia, se tornam, ilegalmente, um mercado clandestino aonde são trocadas “mercadorias
políticas”. “Cria-se uma dimensão de negociação “moral”, microssocial, do legalismo e das
normas sociais gerais (MISSE, 2007, p.18-19 apud KHALED, 2010, p. 301).
É nesse sentido que a afirmação de Kant de Lima (1989, p. 76) de que “no Brasil
o réu deve provar na prática, sua inocência” desperta também outras
indagações, pois no sistema brasileiro, a previsão constitucional é de um
processo acusatório (KHALED, 2010, p. 303).
E esse processo acusatório, no caso da CPI do Narcotráfico foi transferida da esfera
da polícia para a esfera do Legislativo, essa é uma das críticas das Comissões
Parlamentares de Inquérito (SILVEIRA, 2010). Entretanto, parece ter sido justamente esse
o processo adotado pela CPI do Narcotráfico.
269
No que compete à rotulação dada pelos relatores da CPI, os indivíduos com
conexões com o Estado foram identificados por suas profissões, enquanto que aqueles sem
qualquer ligação com o Estado ou agentes do mesmo foram identificados por suas conexões
com o universo criminal 126 , indicando com isso uma escala de maior ou menor
possibilidade de estigmatização, variável segundo a proximidade ou distanciamento do
Estado.
Nesse caso, a biografia pessoal do indivíduo transgressor (e aí incluo sua
proximidade com os agentes poderosos do Estado), ao menos no relatório da CPI, se
destaca com um peso maior do que sua ligação com a transgressão em si, invertendo a
máxima de Svensson (1997) aonde o processo de rotulação é associado ao crime cometido.
Para exemplificar esse processo de rotulação dois exemplos de biografias de pessoas cuja
proximidade com o Estado é baixíssima no primeiro caso e alta, no segundo127 parecem
bastante oportunos.
Exemplo 1 - O traficante carioca Marcinho VP128 teve sua biografia contada por
Caco Barcellos em Abusado (2010). Sua biografia revela a conhecida trajetória do “típico”
traficante que nasceu, cresceu e começou sua carreira na favela, não completou o ensino
médio, não teve oportunidades de trabalho formal (com “carteira assinada”) e, finalmente,
acabou por entrar na “guerra” contra “os alemão” (inimigos) pelo controle do tráfico no
morro. Depois, sua vida se resumiu a fugas da polícia e dos inimigos para acabar morrendo
em um conflito dentro de um estabelecimento prisional.
Apresentando alguns elementos diferenciais e que o tornaram um traficante sui
generis, Fernandinho Beira-Mar, foi ainda mais audacioso que VP: apresentou uma história
de vida parecida que não sucumbiu aos muros da prisão onde reside até hoje. Beira Mar
assumiu a postura de um “microempresário” e agregou à sua “equipe de trabalho” diversas
pessoas de sua mais estrita confiança, como parentes e amigos, utilizando-os como "testas
126
Mingardi (1998) nos apresenta uma categorização bastante interessante para aqueles a quem eu estou
chamando de “políticos” – o autor chamou-os de “homens públicos”, que são ex-parlamentares, presidentes
de empresas, enfim, um “mandante politico local”. Os “empresários”, o autor designou como “novos ricos”
que classificam “donos de várias empresas.
127
Para recontar essas trajetórias, busquei no site do Supremo Tribunal de Justiça as informações necessárias
para compor minha argumentação.
128
Assassinado em 2003.
270
de ferro" e em nome de quem registrava os imóveis e empresas adquiridos como Fábricas
de Gelo, Padarias, Lojas de Material de Construção, Empresa Transportadora de Carga
Aérea, Confecção, etc. Enfim, enquanto esteve em liberdade, Beira-Mar manteve seu
controle do morro e, depois de preso, se tornou um “empresário”.
Exemplo 2 - Distantes da biografia de Beira Mar e Marcinho VP e próximas das
biografias de alguns “empresários mafiosos” são as histórias de vida de alguns dos políticos
investigados pela CPI. A biografia de Augusto Farias, empresário, advogado e político
alagoano apresenta uma trajetória política que começou na Secretaria de transportes do
estado do Alagoas e que o elegeu como deputado em vários mandatos. Em 2003 foi preso,
acusado de manter mão de obra escrava em uma fazenda no Pará. Bastante parecida é a
história de vida do político italiano Marcello Dell’Utri – atualmente preso, acusado de
fraude fiscal e envolvimento com a máfia (MARINO, 2009). Dell’Utri desde cedo se
associou a Berlusconi129, foi diretor esportivo de um clube de futebol em Palermo e
executivo de um órgão da imprensa italiana – período em que se associou a máfia
palermita. Anos mais tarde, galgou os postos de deputado e senador.
A trajetória desses dois indivíduos tem em comum o envolvimento com a lavagem
de dinheiro e com negócios “escusos” - como cassinos e pessoas ligadas ao “crime
organizado”. Em ambas as trajetórias não é registrada uma clara transgressão da lei – são
relatados negócios escusos realizados através de terceiros e os dois políticos não estiveram
diretamente envolvidos com os crimes dos quais, eventualmente, seriam acusados. Todavia,
a proximidade com os aparelhos e representantes do Estado é garantida por suas biografias
que os conduziu aos postos de poder dentro de governos.
No complexo processo de sujeição criminal adotado pela CPI (e, posterior
rotulação), não parece haver uma ligação direta entre o indivíduo que pratica o crime e o
rótulo atribuído pela CPI ao mesmo; no processo adotado pelos relatores da CPI, o rótulo é
indireta e subjetivamente operacionalizado a partir de uma exacerbação do que há de pior
no indivíduo e em sua biografia, em detrimento de suas ações – a exemplo, o caso
Hildebrando Pascoal, que, mesmo tendo protagonizado tráfico de drogas e homicídios foi
chamado de ex-deputado e policial militar pela CPI. No segundo exemplo, diferentemente
129
Político italiano – acusado de envolvimento com a máfia.
271
do que ocorre no primeiro, parece que o indivíduo não deve provar que é inocente, porque
sua trajetória já traz consigo a premissa de que o seja, mas deve provar que não se encaixa
no processo acusatório e, portanto, não tem porque respondê-lo. No fundo, trata-se de um
grande jogo de poderes em escalas: partindo do cidadão comum, alcançando o nível dos
agentes do Estado e entrando em negociações escusas.
Misse (1999) falou a respeito das negociações existentes no mercado da corrupção
policial e da sujeição criminal em sua tese. Tomei emprestadas suas considerações sobre
“sujeição criminal” para tentar compreender o processo de rotulação adotado pelos
relatores da CPI e concluir que no processo de sujeição criminal adotado pela Justiça
brasileira, a exemplo de Augusto Farias, não faria sentido lhes conferir o rótulo de
“criminosos” uma vez que tanto a justiça como os relatores os viram apenas como políticos
envolvidos, em alguma medida, com o crime. Para descrever esse tipo de envolvimento,
Misse lançou mão do conceito de corrupção. A partir da relação estabelecida entre crime e
representantes do Estado, Misse chegou ao axioma das “mercadorias políticas”, comentado
no capítulo II. Para tanto, admitiu que a corrupção inerente a esse mercado é irrompida no
ciclo a partir do qual
um bem ou serviço econômico ilícito que depende, para sua produção ou oferta,
de uma negociação de força ou poder, subtraída ao Estado ou contrária ao seu
monopólio da violência e às leis, rompe-se o núcleo moral regulador da
universalidade do Estado-Nação. Não é à toa que sua prática receba
modernamente o nome moral de «corrupção», quando analisadas da perspectiva
da soberania do Estado (...) quando vistas sob o prisma da lógica do mercado e
das relações de poder, isto é, da objetividade dos interesses frente aos valores e
às paixões, a existência dessas mercadorias indicam apenas um transbordamento
do mercado para dentro das represas reguladoras da sociabilidade e a invasão
do princípio do mercado para dentro do princípio da soberania do Estado
(MISSE, 1999, p. 55).
A estigmatização dos indivíduos do primeiro exemplo passa, então, por um processo
objetivo de conexão entre o sujeito transgressor e objeto da transgressão, onde sujeito e
objeto da transgressão se confundem. Beira Mar – a quem o rótulo “traficante” é utilizado
no mesmo instante em que começam as investigações policiais, por sua posição na
estratificação social, não transita pela mesma esfera de poder que os indivíduos do segundo
exemplo. A estes últimos, fica clara a existência de uma conexão subjetivamente
estabelecida entre o sujeito transgressor e objeto da transgressão, passando por um processo
272
de culpabilidade realizada por terceiros, defendida pela biografia e pela proximidade desses
indivíduos com o Estado. Quando acontece o processo de estigmatização de políticos,
empresários, juízes, etc. - o que é raro - a mesma alcança um status de reconhecimento
público e o indivíduo é imediatamente rotulado como criminoso, todavia, nem sempre sua
trajetória anterior perde o sentido, a exemplo de Hildebrando Pascoal que continua sendo
rotulado como ex-político.
PARTE 2
OS MERCADOS COMO CATEGORIAS INFORMATIVAS SOBRE O
CRIME ORGANIZADO
A definição sociológica acerca dos mercados requer um retrocesso ao pensamento
de Weber e Durkheim como os pensadores que lançaram as bases para os estudos
sociológicos do mercado em termos de construção social e boa parte das premissas que
orientaram a nova sociologia econômica da década de 1970.
A definição durkheimiana de mercado considera este fenômeno econômico como
um fato social. Durkheim (1975) identifica o mercado como uma das instituições relativas
de troca; no quadro de análise das instituições relativas à produção de riquezas, à troca e à
distribuição. Associada à sua análise do mercado encontra-se a noção de contrato: é por
essa razão que Durkheim afirma que a sociedade moderna é uma sociedade de mercado, ou
seja, uma sociedade contratual, onde a cada instante contrai-se vínculos; dada, por sua vez,
pelo poder de compra e venda.
Com isso, Durkheim lançou algumas pistas para pensar a especificidade sociológica
da relação mercantil a partir da solidariedade orgânica e das interdependências decorrentes
da especialização e da divisão do trabalho. Nesse jogo, a ordem social não decorre da busca
egoísta dos interesses dos indivíduos apenas: existe uma cooperação harmônica que dá
condições ao estabelecimento da colaboração e das relações sociais entre os indivíduos – as
regras formais e as tradições se encarregam de organizá-las. Essas relações sociais geradas
273
a partir das trocas não se esgotam na troca em si, mas são enraizadas na reprodução das
instituições sociais como reflexos dos laços criados.
A definição weberiana de mercados tem seu ponto de partida nas análises das
categorias sociológicas fundamentais da economia, tais como a competição, a oportunidade
das trocas e o equilíbrio estabelecido uma vez que a troca é consumada. Para Weber o
mercado é visto como o resultado de duas formas de interação social – a troca, que está
simultaneamente orientada para o parceiro e para os concorrentes, e a competição (luta
sobre os preços entre o cliente e o vendedor ou entre concorrentes). O autor institui então
uma ideia fundamental em relação à visão econômica do mercado, que é a noção de luta e,
consequentemente, de poder, que introduz uma dimensão política ao fenômeno econômico.
Para Weber o mercado é o resultado da coexistência entre relações associativas racionais
que determinam a troca e, por essa razão, é também o espaço para relações sociais e para a
interação entre os indivíduos. Todavia, o impacto socializador da relação mercantil é
limitado pela troca, responsável por reduzir as relações sociais às fugacidades restringidas
pela compra e venda. Por essa razão, a relação mercantil em Weber também é entendida
como uma relação social racional, orientada para a concorrência, o lucro e a possibilidade
da realização de bons negócios.
Enquanto Durkheim desenvolve uma análise das instituições econômicas a partir da
dependência que a relação mercantil tem de um fundo institucional composto pela
associação de costumes mentais e comportamentos enraizados na repetição da troca ao
longo do tempo e também pelas regras jurídicas, que não são nada mais que a cristalização
desses costumes; Weber acredita que para se chegar à uma análise das instituições é preciso
analisar os diversos “tipos de regularidades” implícitos nas atividades sociais. Entre os
tipos mais destacáveis ele descobre a busca do interesse mútuo, o respeito às regras
tradicionais e às regras jurídicas, que podem ser traduzidas como o uso ou o costume, a
convenção e o Direito.
Uma maneira de entender a passagem desta forma clássica de ver os mercados para
a moderna identidade dos mercados criminosos se dá através das “zonas cinzentas”
(TELLES, 2007) que separam e confundem o trabalho precário, o emprego temporário e as
atividades ilegais, clandestinas ou delituosas. Elas nos ajudam a entender a fórmula criada
274
por Ruggiero (2000) expressa através da metáfora do “bazar metropolitano” - visto como o
resultado da precarização do trabalho que modificou a relação estabelecida entre
trabalho/desemprego/“expedientes de sobrevivência” e que refletem diretamente na
definição moderna de mercado. Nesse sentido, o bazar conjuga a informalidade e a
clandestinidade do trabalho com modernas (e legais) formas de produção, voltadas para a
geração de produtos lícitos e também ilícitos. Nesse sentido, a instituição do mercado
parece permanecer imersa nas “zonas cinzentas” das irregularidades e da ausência das
regras weberianas que estabelecem valores às relações mercantis. Por essa razão, os
mercados ilegais funcionam de maneira diferente dos demais mercados (ZUESSE, 1998).
Evidentemente, imperam certas regras informais que condicionam as transações nesses
mercados, mas que, por definição, não obedecem às regras formais (como leis, normas,
convenções de bolsas de valores, etc.).
Nesse contexto, a definição de mercados ilegais tem como ponto de partida a
explicação dada a partir de mercados ilícitos apresentada no trabalho de Manuel Castells e
Alejandro Portes (1989). A distinção fundamental – cerne dessa definição - foi realizada
entre as atividades informais e ilegais, na medida em que cada uma delas apresentou
características diferentes entre si. Castells e Portes (1989) mostraram que os “negócios
ilegais” envolvem a produção e a comercialização de bens que são definidos como ilícitos.
Entretanto, empresas informais também lidam com mercadorias lícitas (OIT, 2006). Os
autores procuraram esclarecer esta distinção através de uma figura reproduzida abaixo, que
mostra que a diferença básica entre o formal e o informal não depende só do caráter do
produto final, mas da maneira pela qual ele é produzido. Assim, artigos como roupas,
calçados, alimentos, matérias primas utilizadas na indústria de informática, etc., são
perfeitamente lícitos, o que os difere é a forma como foram produzidos, i. e., empregando
atividades formais, informais ou ilegais.
275
FIGURA 38: Tipos de Atividades Econômicas e suas inter-relações:
I. DEFINIÇÕES:
Processo de
Produção e Distribuição
+
+ = Licito
Produto Final
Tipo de Economia
+
+
-
Formal
Informal
Criminal
– = Ilícito
II. RELACIONAMENTOS:
Formal
C
D
AB
Criminal
E
F
Informal
A.
B.
C.
D.
E.
F.
Interferência do Estado, a concorrência de grandes empresas, as fontes de capital e tecnologia.
Bens de consumo mais baratos e insumos industriais, reservas flexíveis de trabalho.
Interferência do Estado e ruptura, o abastecimento de certos produtos controlados.
Corrupção aluguéis de “gatekeeper" para funcionários estaduais selecionadas.
Capital, a demanda por bens, novas oportunidades de geração de renda.
Mercadorias mais baratas e reservas flexíveis de trabalho.
FONTE: CASTELLS e PORTES, 1989, p. 14 – tradução da autora.
Usando os referenciais de Castells e Portes (1989) é possível notar a semelhança
existente entre a economia informal e a economia ilegal, uma vez que as fronteiras entre
uma e outra são suficientemente incertas e dependentes de acomodações políticas frágeis e
passageiras. Seguindo essa lógica, a economia informal se mostra alicerçada em uma
confiança produzida a partir de redes sociais compostas por indivíduos e organizações que
se alimentam das relações pessoais.
Obviamente, não se trata de negar a existência de um certo enraizamento
276
(embeddedness) 130 (GRANOVETTER, 1985) das atividades ilegais nas atividades
econômicas legais mas, de reconhecer que, as redes de relacionamentos pessoais (e a
confiança que elas alimentam) são importantes (CENTENO e PORTES, 2003) e que
nenhuma economia moderna sobrevive sem a sedimentação de instituições que deem
garantia aos contratos construídos na impessoalidade.
No que diz respeito à vida econômica tradicional (legal), a economia informal
assume um papel tipicamente funcional, já que na vida econômica ilegal, onde age o crime
organizado, os pontos de contato vão além da mobilização das redes sociais que o
suportam. Segundo Lopes Jr. (2009, p. 56),
o inevitável conflito entre os atores da economia informal e o Estado é agudizado
em situações nas quais setores ou territórios da vida social são subtraídos do
exercício do monopólio da violência legítima. O recurso à violência, amenizado
pela inclusão da corrupção, torna-se mais acentuado, dado que, geralmente, esse
é o instrumento que se tem à mão para o enfrentamento dos rompimentos
unilaterais do contrato.
A confiança que emerge desses laços é frágil para a construção de alicerces
confiáveis e para a emergência de instituições que deem suportes à investimentos de médio
e longo prazo. É por essa razão, conforme o autor, que os lucros obtidos com os negócios
ilegais, geralmente sejam investidos em aquisições mais seguras, como ouro, dólar, imóveis
e empresas legais, sobretudo no setor de transportes, entretenimento e turismo.
A Figura 7 de Castells e Portes (1989) reproduzida anteriormente também assinala
que, para definir os mercados ilegais como tal, é necessária uma combinação de caráter
ilícito entre os processo de produção e o produto final: ambos devem ser ilícitos para que o
mercado seja caracterizado como criminal. Para complexificar ainda mais essa definição, os
autores apontam para a existência de uma combinação entre a interferência do Estado,
garantindo a permissividade da circulação de produtos controlados e a interferência de
130
Traduzido como “encrustement” é um conceito cunhado por Granovetter (1985) que diz que relações entre
empresas, grupos de pessoas ou indivíduos são melhor estabelecidas no interior de uma rede já consolidada. O
embeddedness define-se de duas formas distintas: o estrutural e o relacional. Granovetter diferenciou o
embeddedness estrutural pela ênfase dada a posição estrutural de um sujeito na rede que pode afetar o seu
comportamento; já o relacional foi definido como a dependência do comportamento dos sujeitos com a
estrutura, baseadas por sua vez, nas expectativas criadas. Segundo a análise de Rowley at all (2000) sobre o
tema, uma das funções do embeddedness é agir como um elemento de controle em termos do comportamento
e cooperação dos parceiros de uma aliança e como estes devem se comportar e cooperar.
277
agentes do Estado nesse sistema. Tal explicação remete à noção de “mercadorias políticas”
proposta por Michel Misse (2002) já comentada no princípio desta tese.
Na lógica analítica desenvolvida por Misse, o Estado exerce o “monopólio” sobre
os mecanismos presentes nas “mercadorias políticas” através das autorizações de soltura,
licenças, processos judiciais geralmente expedidos por representantes do Estado, como
juízes, policiais, promotores, etc., envolvidos em diversos “mercados ilegais” como o roubo
de cargas, compra de alvarás de soltura e documentos de legalização de mercadorias ilícitas
por parte de agentes do Estado.
Nessa lógica, o Estado se destaca como o responsável indireto pela legitimação da
oferta de serviços obscuros, como aqueles oferecidos pela máfia a comerciantes sicilianos isso somente foi possível quando a população concordou com esse tipo de atividade e
pagou por ela. Na leitura de Tilly (1996), esta lógica é vista como um elemento constitutivo
do próprio Estado.
Procurando compreender como essa lógica da construção do Estado a partir de
bases ilícitas se destaca como sendo intrínseca às suas ações e à atividade normativa da lei,
acredita-se que a proibição do comércio de drogas possa ser encarado como um elemento
paradoxalmente constitutivo do mercado, na medida em que “regula” a oferta e a demanda.
O mesmo pode ser dito sobre o mercado de peças de carros roubados ou de cargas
roubadas, aonde a regulação entre oferta e demanda se deve ao próprio mercado a partir do
qual são constituídos.
O surgimento do novo mercado informal/ilegal é outro fio do paradoxo
brasileiro. Os mercados informais sempre existiram no Brasil, e constituíram
uma fonte de renda importante para pessoas com pouca qualificação ou
desempregadas. Esses mercados criaram redes e regras para organizar o
comércio de artesanatos nas principais ruas dos maiores centros urbanos.
Entretanto, nas últimas décadas, essas ruas foram ocupadas pelos vendedores
ambulantes de objetos roubados de caminhões, de residências e de passantes. O
comércio informal, tradicionalmente uma saída para o desemprego e o trabalho
subalterno, tornou-se misturado com empreendimentos econômicos criminosos.
Esses também estão presentes em alguns ferros-velhos, ourivesarias, oficinas
mecânicas e antiquários, que viraram centros de receptação e de lavagem de
dinheiro. Empresas do setor de transportes participavam da rede de roubo de
carga nas estradas brasileiras. Isso não se passa sem estratégias eficazes de
corrupção (ZALUAR, 2007, p. 41).
278
Nesse sentido, a participação de agentes do Estado no mercado da droga, de cargas
roubadas ou desmanches de veículos se destaca como um elemento que garante que este
mercado, mesmo que ilícito, possa continuar suas atividades uma vez que o Estado seria o
“regulador” das incertezas existentes por trás dessa economia criminal na medida em que
ele se sobressai como mais um elemento do mercado, cuja competição se dá em caráter
simples de oferta e demanda.
Desta forma, “para existir, os mercados – lícitos ou ilícitos – devem adotar
estratégias de redução da incerteza” (PERALVA, SINHORETTO e ALMEIDA GALLO,
2010, p. 07), seja por meio do estabelecimento de “segurança jurídica”, “nichos”131 ou de
“perfis distintos de mercado”, seja através do uso de “mercadorias políticas”, ou não.
A inter-relação entre os mercados lícitos e ilícitos – e como estes se transformam
em mercados ilegais – pode ser melhor compreendida se olharmos o conjunto dos mercados
abordados nas investigações da CPI e a inter-relação que estabelecem entre si. A imagem a
seguir é uma representação das relações entre os diferentes mercados investigados pela CPI
do Narcotráfico, percebidos através das diversas atividades que os indivíduos investigados
realizavam. Para realizá-la, foi utilizada a base analítica de Bruisnma e Bernasco (2004, p.
83) reproduzida abaixo:
As relações de colaboração não são necessariamente específicas do mercado
criminal. Afinal de contas, parece que nem todos os criminosos são sempre
especialistas (...) Um grande número de criminosos estão envolvidos em vários
tipos de crimes (...) Isso pode ser explicado quando se considera que certas
características e habilidades podem ser utilizados em diferentes atividades
criminosas, como a vontade de assumir riscos, a capacidade de ocultar
atividades ilegais, a capacidade de ameaçar a violência, a vontade de usar a
violência, e de ter uma extensa rede de contatos criminais.
Esse conjunto de perícias constitui a base sob a qual o contato entre diversos e
distintos mercados (lícito e ilícito) é estabelecido.
131
Utilizo a definição de “nichos de mercado” desenvolvida por Harrison White (2008). Para ele, os nichos
são socialmente construídos pelas decisões tomadas por “consumidores típicos”. Na visão de White nichos
são segmentos de Mercado nos quais os consumidores concordam com uma suspensão de comportamentos
estratégicos e competição em troca de maior controle do comportamento desse Mercado ou do seu
monopólio.
279
FIGURA 39: Conexões entre Mercados – CPI Narcotráfico:
LOGÍSTICA*
TRÁFICO*DE*DROGAS*
MERCADO*DE*PROTEÇÃO*
LAVAGEM*DE*DINHEIRO*
MERCADORIAS*POLÍTICAS*
ROUBO*DE*CARGAS*
FONTE: produzido pela pesquisadora.
Legenda: Linhas contínuas: mercados tradicionalmente ilegais; linhas pontilhadas: mercados legais sendo usados para fins
ilegais.
Na doutrina jurídica estes mercados ilegais são compostos por um conjunto de
“crimes conexos” - delitos relacionados entre si como causa e efeito e/ ou unidos por um
ponto comum. Por exemplo, o crime de homicídio, executado para eliminar a testemunha
de um roubo de cargas seria um crime conexo ao roubo de carga, prevalecendo este último
como o delito motivacional principal.
Denominam-se “crimes conexos” as atividades ilícitas praticadas em conformidade
com alguma outra atividade principal (lícita ou não). Não se tratam de atividades
secundárias, mas atividades realizadas em contexto com alguma outra atividade
considerada principal, assumindo com isso o papel de coadjuvantes em relação ao mercado
estudado.
Uma leitura transversal do relatório da CPI do Narcotráfico permitiu a identificação
de diferentes mercados constituidores do crime organizado. São eles: Logística (atividade
legal acionada para o transporte de drogas, armas e cargas), Roubo de cargas, Mercado de
transferência de capitais (ou lavagem de dinheiro – atividade mercantil legal utilizada para
um fim ilegal), Mercado de Jogos de azar (bingos e jogo do bicho) e Mercados de proteção
apresentado juntamente com as “mercadorias políticas”, que por sua vez, envolve a
presença de agentes do Estado. Muitos desses mercados não são originalmente criminais,
280
como por exemplo, o mercado de transferência de capitais (apontado na Figura 39 como
lavagem de dinheiro), que foi assim denominado pelo seu caráter transformador atribuído
ao capital de vários tipos (imobiliário, veicular, dinheiro, armamento, droga, cabeças de
gado, etc.), nele participam indivíduos cujas atividades são consideradas tradicionalmente
legais, como empresários, investidores, doleiros, diretores de casas de câmbio,
empreiteiros, fazendeiros, etc. Todavia, o que os aproxima de um possível mercado
criminal são as lacunas que esses sujeitos descobriram no sistema financeiro (seja através
de “empresas de fachada”, através de operações de transferências de divisas ao exterior sem
o pagamento dos impostos devidos, injeção no mercado imobiliário, etc.,) e que são
favoráveis às operações fiscais de grande porte, dando origem à lavagem de dinheiro.
Os paraísos fiscais, as cidades de fronteira sem lei, o prestigiado mundo virtual
financeiro e de capitais, todos servem como abrigos para lavanderias de dinheiro
(bem como sonegadores e scrocs de todos os tipos) para "trabalhar o sistema" e
disfarçar ou esconder os fluxos financeiros ilícitos (...) A fronteira entre os
movimentos e a utilização de fundos lícitos e ilícitos absolutamente não está
definido (NAÍM, 2005, p. 202).
A proposta de análise de Bruinsma e Bernasco de que não existe um mercado
específico dedicado à uma única atividade – por mais ilegal que ela seja, aliada á Figura
acima mostraram a existência de uma interconexão entre os diferentes mercados acionados,
informando que a maioria dos mercados estão atuando, em alguma medida, conectados
entre si, exibindo um grau de organização entre mercados legais e ilegais que permite que
os mesmos se confundam. Por exemplo, a relação estabelecida entre o tráfico de drogas e a
logística permitiu que uma sinergia entre esses dois mercados fosse desenvolvida. Ela
mostra que de um lado, o tráfico de drogas é dependente da logística, mas que, de outro, o
inverso não é verdadeiro. Ao contrário do que acontece entre o mercado da droga e a
lavagem de dinheiro: a sinergia e a dependência existente entre os dois os motiva a
permanecerem inseparáveis. Tal sinergia não aponta apenas a existência de laços
estabelecidos entre esses mercados, mostra ainda que a divisão do trabalho existe também
aí e cada “peça” desse sistema desempenha um papel específico em todo o circuito
(OLIVEIRA, 2007).
Segundo Kopp (2006), a intersecção de diferentes “economias
criminais” constitui um dos traços marcantes do crime organizado.
281
MERCADOS, NICHOS E ESTADO
Segundo Maillard (2001), a correspondência entre a dinâmica dos diversos
mercados ilegais e sua ligação com agentes do Estado pode se dar por diversas vias: a
negociação de mercadorias políticas, a lavagem de dinheiro através de mercados
considerados “lícitos” ou a negociação de habeas corpus para presos já condenados, são
algumas delas.
Correlacionar diferentes modalidades de atividades consideradas criminosas com
atividades legais, implica em observá-las como atividades mercantis aonde cada
especialização pode ser consagrada como um nicho132 particularizado (WHITE, 2008),
dependente da lógica do mercado, da oferta e da procura.
A definição de nicho, segundo White tem início com o mecanismo utilizado pelo
mercado no momento da fabricação dos produtos a serem comercializados que
dependeriam diretamente de posições que emergiriam a partir das interações entre ligações
e fluxos estabelecidos entre produtores, fornecedores, compradores e usuários. Nesse
sentido, a definição de um nicho teria seus limites no ambiente de produção e consumo do
qual ele faria parte, incluindo em seu cálculo os rivais com os quais seus produtores
competiriam.
Seguindo o raciocínio de White, como os demais mercados, o mercado de “objetos e
atividades criminais” seria organizado a partir da lógica da oferta e da procura,
independente dos sujeitos dele participantes. Seus nichos seriam formados em torno das
especialidades requeridas pelo mercado estabelecido. Um exemplo da formação de um
desses nichos é descrita no caso São Paulo a respeito do roubo de cargas que levou ao
indiciamento de 4 empresários, 1 advogado e vários policiais. Todos foram acusados de
envolvimento com o roubo de cargas, lavagem de dinheiro, e alguns responderam também
por crime de sonegação fiscal. Este grupo disputava a centralidade do mercado do roubo de
cargas com um outro grupo estabelecido no Maranhão. A especificidade do trabalho do
132
A noção de nicho de mercado desenvolvida por White deve ser compreendida aqui com restrições: onde,
cada nicho seria orientado segundo o tamanho mais adequado para o mercado do qual participaria, levando-se
em consideração a qualidade comparativa de seus companheiros e rivais.
282
grupo paulista era o roubo de cargas, garantida, por sua vez, pela diversidade, participação
e ocupação de seus membros – empresários que realizavam a comercialização da carga
roubada, advogados que ajudavam na lavagem de dinheiro e policiais que faziam a
“escolta” do grupo no momento do roubo. Diferentemente do grupo maranhense, formado
por salteadores e especializado apenas no momento do roubo das carretas. Observando a
constituição do grupo paulista, é possível notar que em torno do mercado do roubo de carga
estão estabelecidos outros dois mercados associados que constroem esse nicho, são eles: o
mercado de proteção, garantido pelos policiais e o mercado da “lavagem de dinheiro”
estabelecido para a “legalização” das cargas roubadas133. Essa associação de múltiplos
mercados em torno de um nicho (de mercado) que se deseja conquistar torna-se um
impeditivo à concorrência que poderia vir a ser estabelecida, dada a diversidade de
operações oferecidas dentro de um único mercado.
Isso fica claro no caso dos bancos, do mercado imobiliário e das companhias de
transporte que fornecem serviços para os negócios ilegais e os mecanismos
principais da lavagem de dinheiro sujo. Mas não se trata de um mercado aberto
(Luppo, 2002), mesmo aqueles que sempre funcionaram de forma imperfeita e
com restrições de vários tipos. Pois nesse só podem começar a funcionar e ser
admitidos em tais negócios tão lucrativos os que gozam da confiança e têm a
permissão das pessoas mais bem localizadas na rede do crime. (ZALUAR,
2007, p. 33).
Complexificando um pouco mais as análises de White, acrescento a assertiva de
Bruinsma e Bernasco (2004) que, estudando o mercado da droga nos Países Baixos,
constataram que “as formas de redes sociais e infraestrutura, não são a priori, criminais,
trabalham a partir de uma colaboração criminal”, ou seja, os nichos sobre os quais fala-se
aqui não são todos, a princípio, criminais. Trata-se de uma complexa construção econômica
que inclui diversos mercados legais, ilegais, criminais, etc., cuja especialidade, por um
lado, constitui os nichos sobre os quais falou White e, por outro, se aplica à função que essa
especialização desempenha no circuito do mercado criminal, ou seja, ela demanda seus
próprios especialistas.
133
A lavagem do dinheiro do roubo de cargas não difere muito dos demais patrimônios adquiridos com outras
atividades ilícitas. O patrimônio do roubo adquirido a partir da renegociação do produto “esquentado” (ou
não) no mercado negro era reinvestido em patrimônios adquiridos em nome de parentes ou “laranjas” a fim de
transformar o dinheiro “sujo”.
283
Estes “especialistas” são indivíduos que ajudam na formação dos nichos de mercado
e que não agem sozinhos, compõem um mercado criminal diferenciado, por sua vez, a
partir de outros mercados de produtos lícitos e ilícitos. Falarei mais sobre o papel dos
“especialistas” no capítulo seguinte quando os contraponho à figura dos “oportunistas”.
CONCLUSÕES DO CAPÍTULO
No presente capítulo trabalhei com duas perspectivas, mercados criminais e perfil
dos indivíduos, que considero excelentes categorias para se entender como os micro e
macro estudos acerca do tema do crime organizado dialogam. Procurei entender, de um
lado, como diferentes mercados criminais e não criminais são acionados no relatório da CPI
do Narcotráfico e, de outro lado, como se deu o processo de rotulação dos indivíduos
investigados pela CPI.
Na primeira parte do capítulo, meu olhar se voltou para os indivíduos investigados
pela CPI. Primeiramente foram analisados os perfis desses indivíduos e uma das
descobertas foi a presença de uma maioria absoluta de indivíduos com ocupação no Estado
que se mostraram envolvidos com o crime organizado. Esses indivíduos representam, não
só a infiltração do crime em aparelhos do Estado, bem como uma tentativa de legalizar, via
Estado, práticas ilegais, como por exemplo a venda de habeas corpus e alvarás de soltura
praticadas por juízes do Alagoas.
Depois, busquei compreender o processo de “rotulação” realizado no relatório da
CPI que identificou alguns indivíduos como “traficantes” enquanto que outros foram
classificados como “empresários”, mesmo estando ambos envolvidos com uma mesma
atividade criminal. Esse processo de rotulação caminhou em duas direções concorrentes:
ora passando pelo crivo da legislação que determina legalmente quem é “traficante”,
“criminoso”, “bandido”, etc. e outra, que passa pela biografia dos indivíduos e que remonta
seu passado para condená-lo a uma infração atual.
Na segunda parte do capítulo, o destaque foi a essência criminal, legal ou ilícita dos
mercados acionados e investigados pela CPI. A presença e relação desses mercados com o
crime organizado e com o Estado deram o tom ao processo de incorporação do crime pelo
284
Estado. Essas relações entre mercados legais e ilegais com o Estado (através de seus
agentes) são produtoras de mercadorias que, em última instância (lícitas ou ilícitas),
reforçam a lógica clássica do mercado, sobretudo no que se refere à sua auto-regulação.
Nesse sentido, a produção de mercadorias pelo crime organizado independe do status da
mercadoria engendrada e, em um caso idealizado de descriminalização das drogas, por
exemplo, apenas reforçaria a citada lógica dos mercados.
285
286
CAPÍTULO VIII
EXPLORAÇÃO EM ESCALA DOS CASOS: A FORMA DO CRIME
ORGANIZADO
Dentre os 25 casos investigados pela CPI do Narcotráfico, seis casos se destacaram,
por apresentarem relatos heterogêneos sobre os mais diversos crimes investigados pela CPI.
Além disso, tratam-se de casos bastante representativos do universo do crime organizado
estudado também através dos relatórios da CPI do Crime Organizado e Roubo de Cargas.
Selecionei esses seis uma vez que os demais casos ora tratam de crimes já contemplados
nestes, ora são pontuais no que se refere às particularidades de cada região investigada,
como os casos do Ceará, Paraná, Rio Grande do Sul, Pará, Pernambuco, Piauí e Maranhão;
ora são relatos inconsistentes, cujos fatos, por se encontrarem imersos em meio a narrativas
muito fragmentadas, impossibilitam a leitura e a compreensão sobre os fatos narrados.
Em geral, os seis casos selecionados versam sobre o roubo de carros, chacinas,
disputas políticas que terminaram em homicídios, envolvimento de policiais com o tráfico
de drogas e desmanche de carros, jogo do bicho, e também a vendas de alvarás de soltura
realizadas por juízes. De um lado, são particularidades locais que se espraiam e se
confundem com acontecimentos semelhantes em outros estados do Brasil e que acabam por
se entrecruzar de alguma forma, ora porque um mesmo indivíduo é citado em diversos
depoimentos e em diferentes localidades, ora porque um mesmo crime relatado tem
influência e repercussão em outro estado. De outro lado, tratam de eventos e crimes
recorrentes na literatura sobre o crime no Brasil e por isso, podem contribuir para o
entendimento acerca do comportamento organizacional em termos de formas e conteúdos
implícitos nas relações e na postura assumida pelos indivíduos que integram essas
organizações.
Uma rápida comparação entre os seis casos mostra que, por exemplo, o caso Acre
apresenta uma forma hierárquica resultante dos laços e conteúdos partilhados pelos
envolvidos uma vez que se trata predominantemente de um “esquadrão da morte” no qual o
conteúdo é a morte em troca de dinheiro ou a vingança propriamente dita. Todavia, essa
287
organização ainda assim aciona traços e características das organizações em rede, sobretudo
quando ocorrem as associações entre o COE, políticos e empresários locais para o tráfico.
Comportando-se de forma similar, o caso Espírito Santo também apresenta forma
hierárquica no que se refere à organização Scuderie Le Coq e seu conteúdo varia segundo a
atividade desenvolvida. Por exemplo, no caso dos “esquadrões da morte”, a violência, o
medo e a própria morte são seus conteúdos, e no caso da “máfia dos municípios” aonde
registra-se a presença de uma rede de ladrões (empresários) especializados em “pilhagem
dos erários municipais” o conteúdo é o roubo dos cofres públicos. Tanto no caso Acre
como no Espírito Santo, as relações de poder e dominância estabelecidas entre os
envolvidos são marcadas pelo respeito à hierarquia e à corporação militar da qual seus
envolvidos fazem parte. Todavia, a livre associação e a contratação de “especialistas”
também está presente, em menor proporção e apenas se dá entre os empresários
participantes que contribuem para a formação de redes no interior de organizações
tradicionalmente hierarquizadas, como essas.
Os casos São Paulo, Alagoas e FAB apresentam predominantemente as formas de
rede e, apenas no espaço das liderança é que assumem a forma hierárquica; seu conteúdo
envolve diferentes crimes, como o roubo de cargas, lavagem de dinheiro e tráfico de
drogas. Essa heterogeneidade é marcada por relações baseadas em outros fatores, diferentes
das relações de poder e ganho, como nos casos Acre e Espírito Santo, são relações muitas
vezes estabelecidas por uma amizade anterior, cujo denominador comum é a certeza do
pagamento pelo trabalho prestado. Os envolvidos estão nessas atividades por esperarem
ganhar algo com isso, não porque são ameaçados ou temem e respeitam seus superiores.
Segundo a literatura sobre redes, um dos marcadores para o estabelecimento de redes é a
liberdade que seus participantes tem de ir e vir e de realizar “parcerias” e “prestações de
serviços” a outros, o que reflete diretamente nesses conteúdos acionados.
Finalmente, o caso Rio de Janeiro parece apresentar a mais peculiar forma de todos
os seis casos estudados, é um mistura equilibrada de hierarquia e redes em uma mesma
organização, que chamarei aqui de “híbrido” por não encontrar na literatura sobre o tema
um termo aplicável. Essa forma híbrida abriga entre seus conteúdos, relações de poder,
laços de confiança, liberdade das redes através de terceirizações de algumas atividades e o
288
ganho de capital. De certa forma ela também está presente, ainda que em menor proporção,
nos casos Acre e Espírito Santo, São Paulo e Alagoas todavia, quando deverei lançar mão
de exemplos, extrairei os mesmos do caso Rio de Janeiro por apresentar uma mistura mais
emblemática de formas organizacionais canônicas.
OS CASOS ESTUDADOS E A BIBLIOGRAFIA SOBRE O CRIME
ORGANIZADO
Todos os casos estudados apresentam os elementos básicos que a Convenção de
Palermo sugere para oficialmente caracterizar o crime organizado, tais como:
1. que as organizações apresentam uma certa complexidade e sejam minimamente
secretas;
2. dediquem-se à prática da criminalidade convencional (tráfico de drogas,
contrabandos, contrafações, estelionatos, etc.);
3. possuam em algum grau, hierarquia;
4. utilizem comumente da violência para atingir seus objetivos e causem um grande
temor na sociedade.
As citadas características não estão presentes simultaneamente e a todo o tempo nos
casos estudados mas, como dito, todos apresentam esses elementos. Por isso, eles podem
ser classificados como crime organizado por apresentarem uma das características que
Mingardi considera como uma das mais marcantes, que é a presença do Estado ou de
representantes do Estado em organizações criminosas, atuando como “facilitadores” de
uma possível institucionalização da criminalidade organizada no país, a exemplo dos
estudos que tratam das características das máfias, cartéis, etc. Nesse caso, o exemplo se
destaca na organização de Beira Mar: a hierarquia está presente apenas em um de seus
campos e a presença do Estado não é de todo, óbvia – ao menos ela não está presente nos
documentos da CPI que se referem ao Rio de Janeiro, podendo ter sido “censurada”, como
o ocorrido no caso São Paulo. Mas em outros casos, como Espírito Santo, nos quais Beira
Mar é citado ora por lavagem de dinheiro, ora por tráfico de drogas e armas, a sua ligação
com agentes do Estado é factível.
289
Essas quatro características elencadas pela Convenção de Palermo, juntas, apontam
apenas para alguns paradigmas que podem estar ou não presentes nas organizações. Assim,
considero interessante olhar para elas colocando em evidência os conteúdos e mercados
criminais que nutrem as relações entre os indivíduos envolvidos nas organizações
estudadas.
Não é totalmente estranha a comparação entre o tráfico de drogas e o roubo de
cargas ou os crimes de lavagem de dinheiro se pensarmos que eles podem se
complementar, confundir e serem acionados pela mesma organização. Tratam-se de
diversos conteúdos que se juntam em uma mesma forma de organização e podem dar
origem à novas formas, as quais abordarei na sequência.
Quando tratei da temática das formas de Simmel no capítulo I, pretendi alcançar os
modelos organizacionais adotados, através dos discursos e da distribuição das pessoas no
interior das organizações. Todavia, nesse percurso, ocorreu-me que o processo analítico e o
material com o qual estava lidando me proporcionavam muito mais elementos para pensar e
analisar o crime organizado do que propriamente modelos e “tipos ideais” como a máfia, os
cartéis, gangues, etc., com os quais poderia estabelecer comparações no cenário estudado.
Portanto, agora, retorno à bibliografia não mais para buscar elementos e substanciar
minha pesquisa nesse campo apenas, mas para diferenciar as análises ali objetivadas das
minhas, colocando em evidência o potencial analítico que nossas organizações apresentam.
De um modo geral, crimes como a prática de homicídios, que envolvem o uso da
violência como forma de manter a ordem dentro e fora do grupo são frequentes entre
organizações tradicionais que apresentam estrutura hierárquica, como a máfia e os cartéis
que ainda hoje adotam a inserção de membros da família para tornar a rede mais confiável e
segura. Essas organizações geralmente apresentam o envolvimento com múltiplos
mercados criminais, mas o tráfico de drogas é o mais popular dentre eles. Dependendo do
universo no qual é praticado, nas periferias, por exemplo, o tráfico pode envolver a
violência como conteúdo, tal como mostrado anteriormente nos estudos do Escritório de
Drogas e Crime (UNITED NATIONS, 2002), mas se praticado nos domínios das elites,
como em festas de luxo e festas rave, raramente os recursos de violência são acionados e o
conteúdo muda, indo em direção à busca do lucro.
290
Essas são algumas das poucas análises micro possíveis de serem realizadas no
domínio dos “tipos ideais” das máfias (e cartéis) pois tudo o que foi conhecido e levantado
através dos depoimentos de ex-mafiosos arrependidos ou das prisões de seus membros, foi
comprimido em um “tipo ideal” hierárquico chamado de “a máfia”. O conhecimento sobre
as práticas cotidianas, sobre os casos envolvendo desde comerciantes locais (pequenos
empresários) à políticos e dirigentes de clubes de futebol foi reduzido à máxima de um
modelo que, de certa forma, captou o “núcleo duro” da organização e a transformou em um
tipo puro, distanciando-a da realidade das organizações e não reconhecendo a
complexidade do crime em seus países de referência.
Devo ressaltar que o “tipo ideal” não coincide com a realidade concreta e
dificilmente existiria na sua forma pura, nesse sentido é muito comum encontrarmos na
realidade concreta a combinação de vários “tipos ideais”. O que o “tipo ideal” representa é
apenas um conceito bem definido que estabelece propriedades cuja presença nos
fenômenos sociais permite diferenciar um fenômeno de outro. Todavia, um problema grave
que encontro na metodologia weberiana que explora as tipologias é privilegiar a totalidade
das relações sociais sem tentar se deter sobre as especificidades do empírico, assim, criando
tipos que apresentam similaridades e que, novamente, se apresentam como criações
unilaterais e não existentes, ou raramente existentes, na realidade.
Enquanto “tipos ideais”, esses modelos ajudaram-me nas reflexões iniciais sobre o
crime organizado nos casos investigados, mas bloquearam minha visão quando decidi olhar
para o material que tinha em mãos. Com olhos analíticos procurei capturar as
especificidades e particularidades de cada caso, região e indivíduo investigado, buscando
apreender as diferenças e oscilações entre os diferentes conteúdos acionados pelas
organizações e perceber como este dita as diretrizes para as formas do crime. Minha opção
foi então não tentar reduzir essas características a um “tipo ideal”, sobretudo por não
concordar que exista um “tipo ideal” de crime organizado no Brasil. Minhas análises
apontaram para a existência de ao menos três tipos, que coexistem em uma mesma
organização. Como tipificar essas organizações e deixar de lado a riqueza de informações
que ela nos proporciona?
291
Desta feita, uma das contribuições dessa pesquisa é mostrar os desdobramentos e
interstícios do crime organizado. De certa forma, em sua tese de doutorado, Guaracy
Mingardi havia começado a apontar essas sutilezas, todavia, o caminho simmeliano das
formas e conteúdos permitiu-me avançar em direção à análise das relações, procurando
mostrar como estas moldam e instituem as organizações do crime. De certa maneira,
utilizei-me da máxima antropológica da relativização dos conceitos e categorias para
dialogar com a bibliografia e mostrar que existe um paralelo sutil entre as organizações
estudadas e o universalismo das máfias e cartéis, mas que não dá conta de toda a
diversidade e riqueza de informações que as organizações estudadas oferecem.
A tabela abaixo mostra como podemos estar caminhando para mudanças no estatuto
do crime organizado, tal como foi até então conhecido. Em alguns dos casos apresentados,
por exemplo, não existe hierarquia bem visível, nem o uso da violência é condição sine qua
non para a manutenção dos laços de confiança no interior do grupo. Existem outras
maneiras de garantir que a confiança seja mantida, uma delas são os laços de amizade e
outra é o estreitamento dos laços econômicos que, se não impedem, ao menos, dificultam a
traição no grupo.
TABELA 7: Tipos de Organizações Criminosas e particularidades organizacionais:
CRIME ORGANIZADO EM
CRIME ORGANIZADO
HIERÁRQUIA
EM REDE
Hierarquia (ABADINSKI, 2010)
Laços familiares (CONVENÇÃO DE PALERMO
in NATIONS UNIES, 2004)
Uso da violência para manutenção da confiança
no interior do grupo (CONVENÇÃO DE
PALERMO in NATIONS UNIES, 2004)
Ex: Tráfico de drogas
FONTE: produzido pela pesquisadora
Redes (GIRALDO e TRINKUNAS, 2007)
Laços econômicos (ALBANESE, 2007)
Uso dos laços econômicos para manutenção da
confiança na rede
(NAIM, 2006)
Ex: Lavagem de dinheiro
Enquanto nas descrições clássicas sobre o crime organizado prevalecem os tipos
puros, como a hierarquia aonde estão estabelecidos os laços familiares e o uso da violência
é amplamente acionado contra traidores e inimigos da organização; nos novos paradigmas
sobre o crime organizado se destacam as organizações em rede aonde os laços econômicos
são acionados tanto em detrimento dos familiares quanto no lugar da violência para a
garantia da segurança, manutenção e a continuidade da organização. Enquanto o paradigma
das hierarquias aparece ligado ao tráfico de drogas e aos grupos de extermínio, por
292
exemplo, as redes podem ser encontradas sobretudo, em organizações que se dedicam às
atividades secundárias ao tráfico de drogas, como a lavagem de dinheiro, por exemplo.
Ambas as estruturas organizacionais (hierarquias e redes) estão bem documentadas
pela bibliografia e são fáceis de serem encontradas no interior das organizações estudadas,
uma vez que a forma adotada pela organização (ao menos nos casos estudados) se mostra
dependente do conteúdo que nela é processado. A tabela 8 avança além de uma mera
caracterização desses dois “tipos ideiais” e propõe mostrar a partir de alguns dos mercados
criminais, qual é o conteúdo mais recorrente cuja forma geralmente é adotada e o perfil dos
indivíduos envolvidos com essas atividades.
Em algumas etnografias e pesquisa de campo134 nota-se uma correlação direta entre
o uso da violência como conteúdo e o estabelecimento de hierarquias como formas
adotadas, possivelmente dada a natureza da atividade desenvolvida, como o tráfico de
drogas, o jogo do bicho e os esquadrões da morte. Tratam-se de atividades desempenhadas
quase que exclusivamente por criminosos rotulados (pistoleiros, traficantes, bicheiros) e
policiais, com apenas algumas poucas exceções localizadas quando é estabelecida a
sociedade destes indivíduos com políticos e empresários.
No que se refere à forma de rede é recorrente encontrar relatos de atividades que
não envolvem o uso da violência e que geralmente são desempenhadas por “especialistas”
(como empresários, advogados, juízes, doleiros, etc.), cujo conteúdo é exclusivamente a
busca do lucro. A lavagem de dinheiro, por exemplo, é vista como atividade meio, i.e., que
necessariamente está associada à alguma outra atividade criminosa, como o tráfico.
134
Arlacchi, 1997; Biondi, 2010; Dias, 2009 E 2011; Dowdney, 2003; Evangelista, 2007; Grillo, 2008; Hirata,
2010; Kokoreff, 2004; Missaoui, 2010; Pezzino, 1993; Puzzo, 2010; Rivelois, 2000; Silva De Sousa, 2006;
Sullivan, 2008; Tarrius E Bernet, 2010.
293
TABELA 8: A influência dos conteúdos sobre as formas em atividades criminosas:
ATIVIDADE
ACIONADA
Tráfico
drogas
de
FORMA
Hierarquia
CONTEÚDO
Lucro, uso
da violência
Lavagem de
dinheiro
Rede
Lucro,
atividade
meio
PERFIL DO Traficante
Empresário
empresário
INDIVÍDUO
Doleiro
ENVOLVIDO policial
FONTE: produzido pela pesquisadora
Roubo de
Cargas
e
Veículos
Rede
Lucro,
atividade
meio
Ladrão
Empresário
Venda de
alvará de
soltura
Rede
Lucro
Juiz
advogado
policial
Jogo
Bicho
do Esquadrão
da morte
Hierarquia
Lucro, uso
da
violência
Empresário
Político
Bicheiro
Hierarquia
Uso
da
violência
Homicida
policial
Observando a Tabela 8, é interessante notar que existe uma constante entre o
conteúdo adotado pela organização e o perfil dos indivíduos envolvidos: o uso da violência
aparece sempre ligado à presença de indivíduos declaradamente criminosos, como
traficantes, bicheiros e homicidas. Outra constante que se percebe no uso da violência é a
correlação entre a natureza da atividade acionada e seu conteúdo: sempre que acionadas as
atividades do tráfico de drogas, jogo do bicho e esquadrões da morte, o uso da violência se
faz necessário, muitas vezes para controle do território, visto que são atividades
necessariamente territorialistas, hierarquizadas e que exigem níveis de baixa tolerância para
com o desrespeitos às regras do grupo.
Finalmente, uma avaliação genérica permite levantar que nem todas as organizações
em rede contam com empresários em seus quadros, bem como nem toda hierarquia aciona
policiais. Isso me leva à uma indagação: por que as organizações estudadas não obedecem
e/ou se restringem aos tipos puros e canônicos de organização, como as hierarquias e as
redes?
Charles Perrow (1972) explica que a correlação entre a forma adotada pelas
organizações e o perfil dos indivíduos que as constituem, de um modo geral, passa pelo
crivo da adoção de mecanismos e “tecnologias” que interferem diretamente em seu
conteúdo. Um exemplo disso é a lavagem de dinheiro aonde a técnica adotada e o perfil dos
indivíduos incidem diretamente sobre a forma assumida - rede,
considerada a mais
apropriada para que o trabalho seja distribuído de maneira a não deixar possíveis rastros.
Concordo com a observação de Von Lampe e demais autores que se dedicaram a
investigação sobre organizações criminosas que adotaram a forma organizacional de redes,
294
e que perceberam que as organizações em rede são um advento das TIC’s. Não se trata
apenas de adotar novos mecanismos e infraestrutura tecnológica em meio criminal, mas de
uma mudança cultural dessas organizações que permite, sobretudo, a descentralização das
atividades realizadas.
RELAÇÕES ENTRE OS INDIVÍDUOS INVESTIGADOS E O CRIME
ORGANIZADO
A compreensão sobre as relações estabelecidas entre os indivíduos, sobretudo, em
um meio social considerado “criminoso” mostrou ser uma tarefa complexa em razão da
natureza da fonte de dados que, conforme comentado anteriormente, nem sempre fornecia
as informações completas e necessárias para permitir que o cenário das relações sociais
fosse remontado em sua totalidade.
Existem outras prerrogativas que dificultaram o entendimento sobre essas relações,
uma delas é a confiança, estabelecida, de um lado, pelos indivíduos que tramavam suas
relações e de outro, na veracidade dos dados disponíveis. Um indivíduo pode acusar outro
de ter praticado um ato ilícito, sem, todavia, dizer que este indivíduo é um parente seu ou
que mantém ou já manteve algum tipo de relação considerada como “laços fortes”, como as
relações de amizade, por exemplo, indicativos que colocariam em outro estágio suas
relações sociais.
Alguns exemplos de relações possíveis e que foram exploradas no capítulo anterior
são as relações familiares (parentesco) que, dada a possibilidade de comprovação jurídica,
não deixam margem para dúvidas e especulações sobre a veracidade dessas relações. As
relações de amizade e exclusivamente trabalhistas que foram declaradas no relatório da CPI
também foram apreciadas, as demais, são especulações baseadas na natureza dos
depoimentos prestados.
Para além da natureza da fonte e confiabilidade das informações recolhidas, é
importante salientar que, mais do que as relações em si, é importante também entender
quais foram os produtos dessas relações, uma vez que eles versavam sobre o perfil dos
indivíduos envolvidos e a natureza de suas intenções e as interações no interior da
organização.
295
Família
Os casos Rio de Janeiro e Acre são aqueles nos quais se observou uma estreita
relação entre a família e os “negócios escusos” encabeçados por alguns de seus membros
mais proeminentes. É marcante a conivência, aprovação e participação desses membros nos
estratos mais altos da organização e nas atividades que requerem maior confiança.
O caso Rio de Janeiro expõe a face mafiosa da família do traficante Fernandinho
Beira Mar: ele era o líder de uma organização que contava com a presença de suas irmãs e
esposas. Essas mulheres lhe davam suporte, administrando suas finanças e encabeçavam as
principais atividades que requeriam sua mais estrita confiança, como levar e trazer recados
e instruções para o restante da organização quando Beira Mar esteve foragido.
Essa confiança proporcionada por laços familiares (considerados “laços fortes”)
conferiu à essas mulheres uma certa autonomia que permitiu que pequenas organizações
surgissem dentro da grande organização encabeçada por Beira Mar. Em algumas dessas
foram encontradas famílias inteiras subordinadas às irmãs do traficante e envolvidas com o
tráfico de drogas e transporte da mesma.
Por um lado, apesar de muito parecida com uma organização mafiosa tradicional, na
organização de Beira Mar não são registrados rituais de iniciação ou juramentos de honra
como acontecem na Camorra e ‘Ndrangheta, por exemplo. Por outro, através de
testemunhos prestados à CPI foi levantado que as traições no interior da organização foram
pagas com a morte, tal como as práticas reconhecidas no interior das máfias.
No Acre, a organização criminosa dominante é encabeçada por Hildebrando
Pascoal. Ela é importante por mostrar como elementos presentes na máfia como as relações
familiares (família Pascoal) se combinam com elementos tradicionais da Polícia Militar
(que, tradicionalmente, deveria ser seu oponente), como o respeito às hierarquias e patentes.
É interessante notar ainda que o respeito e a apropriação de diretrizes hierárquicas originais
do Exército e da Polícia também estão presentes nos níveis mais baixos da organização de
Beira Mar, justamente aonde o tráfico é realizado. Conforme mostrei no capítulo VI (vide
quadro 3 elaborado por MISSE, M. 1997, p. 11), a estrutura desse nível da organização é
baseada em patentes, alcançadas, por sua vez, mediante alguma atividade ou missão
realizada aonde a meritocracia está sempre presente.
296
Na organização de Pascoal, como na de Beira Mar, os traidores eram punidos com a
morte engendrada com altos requintes de crueldade de modo a se tornar exemplar para os
demais membros e para imprimir nas crenças locais o mito da intocabilidade das famílias
regentes (Pascoal e Costa).
Os vínculos de amizade, proximidade e confiança - que indicam ligações fortes e
acentuada imediação entre os indivíduos em análise de redes sociais - estão presentes tanto
na organização de Pascoal quanto na de Beira Mar, registradas nos níveis mais altos de
ambas. Elas mostram a possibilidade de sucessão na liderança das mesmas. Por exemplo,
na organização de Beira Mar, cogitava-se a possibilidade de que Marcelinho Niterói135
assumisse o comando da organização caso Beira Mar viesse a falecer e no caso da
organização de Hildebrando, Alex, seu braço direito assumiria. Mesmo em se tratando de
organizações com características mafiosas, como o recrutamento de familiares, ambas as
sucessões se dariam por laços de amizade, apontando uma peculiaridade que não seria
percebida, caso optasse por simplesmente classificar essas duas organizações a partir de
tipos puros como hierárquicas/mafiosas (considerados canônicos na bibliografia sobre esse
assunto).
Além dos laços fortes também encontrei entre os relacionamentos investigados, o
registro sobre as relações frágeis e momentâneas estabelecidas entre os indivíduos,
consideradas como “laços fracos”. Essas ligações estabelecidas para uma determinada
finalidade e que são sustentadas apenas por um momento específico estão presentes em
contextos comerciais e também nas relações estabelecidas em níveis mais baixos da
organização de Beira Mar, como se lê no fragmento a seguir, cuja relação é um exemplo de
“oportunidade” que configura a prestação de serviços em troca de remuneração financeira,
estritamente.
ANTÔNIO PEREIRA DO NASCIMENTO FILHO - Ex-viciado, pedreiro,
residente em Duque de Caxias (RJ), declara ter sido contratado pela mãe de
MARIA DE FÁTIMA para buscá-la no Paraguai e levá-la de volta ao Rio de
Janeiro. Pelo serviço, receberia R$ 500,00. Conhece os boatos de que
“MARCELO NITERÓI” é sócio de FERNANDINHO BEIRA-MAR. Tem
passagens anteriores pela polícia por tráfico de drogas e disse ter sido absolvido
e outra passagem por porte ilegal de armas. Mesmo com as evidências de
relacionamento com MARCELO, ele nega o envolvimento.(…) RENATO ALVES
135
http://portaltj.tjrj.jus.br/web/guest/home/-/noticias/visualizar/54801
297
DE SOUZA -Residente no Rio de Janeiro, camelô, declara que foi convidado
pelo amigo ANTONIO para acompanhá-lo na viagem ao Paraguai e que
ganharia R$ 200,00. Nega envolvimento com a quadrilha, mas ouve comentários
também de que MARCELO é braço direito de FERNANDINHO BEIRA-MAR.
Que ficaram hospedados em uma residência no Paraguai, comeram, dormiram,
mas não sabe quem pagou a conta. (CAMARA DOS DEPUTADOS, 2000,
p. 567-8).
No fragmento é possível perceber que Antônio, motivado pelo convite de Maria de
Fátima, viu ali uma oportunidade de lucrar com uma viagem. Seu amigo Renato também
aproveitou o ensejo e se juntou à comitiva. O que eles não esperavam é que isso os
colocaria em contato com a organização de Beira Mar e seriam enquadrados como seus
membros.
Nas organizações de Sozza e de Augusto Farias os “laços fracos” estão
configurados a partir das figuras dos “especialistas” e “oportunistas” - indivíduos
contratados para desempenhar determinadas funções e em um dado período de tempo.
Tratam-se de relações cujo conteúdo é marcado pela remuneração financeira, tal como
qualquer outro serviços prestado no mercado. Retomarei o raciocínio sobre “especialistas”
e “oportunistas” ao final dessa seção.
Mandantes, Oportunistas e Criminosos: Produtos das Relações
Uma análise sobre as relações e as práticas verificadas nos casos investigados,
conduz ainda à uma classificação dos indivíduos investigados em três grupos aonde alguns
padrões sobressaem, tais como os mandantes, oportunistas e criminosos.
No primeiro grupo, dos mandantes, destacam-se os políticos e juízes, indivíduos de
destaque social e político que na análise de Dalla Chiesa (2010, in DINO e
MAIEROVITCH, 2010, p. 79) não estão suscetíveis a praticarem “crimes de rua” e não
usam diretamente a violência física, mas são considerados seus mandatários. Eles
constituem uma “classe criminal” tradicionalmente estabelecida, mas raramente
reconhecida e são o resultado de uma “boa combinação (privilegiada) de renda, prestígio e
poder”, contando com a proximidade e a segurança conferida por agentes do Estado.
O grupo dos mandantes são observáveis apenas nos inquéritos da Polícia Federal
(PF) ou dos relatórios de comissões parlamentares, como a CPI do Narcotráfico. Raramente
298
aparecem em investigações realizadas pelas polícias militar ou civil que se ocupam de
investigações sobre o tráfico de entorpecentes e outros crimes cometidos em pequena escala
e deixam para a PF as grandes cifras do tráfico e os crimes do colarinho branco, os quais
envolvem os citados indivíduos.
O grupo dos oportunistas é formado por indivíduos que praticam atividades legais e
ilegais que não envolvem o uso de violência e não movimentam grandes volumes de
dinheiro. Em suma, trata-se de free lancers que atuam em segmentos especializados, como
a movimentação de mercadorias roubadas, atividades cambiais e bancárias de pequena
escala, falsificação de documentos, dentre outras.
Nesse grupo estão listadas as atividades do crime organizado que envolvem
oportunidades de diversificação da atividade legal inicial via o caminho da criminalidade.
Ruggiero (2008, p. 72) os classifica como “empresários ‘limpos’ que compõem a economia
informal, operando do mesmo modo que seus colegas criminosos”. São pilotos de avião,
doleiros, caminhoneiros, bancários, empresários que negociam cargas roubadas e que
encontraram no crime organizado uma oportunidade de ampliação da margem de lucro de
seus “negócios” e talvez, se estabelecerem como empresários do ramo “legal” de comércio
e serviços, como proprietários de padarias, lojas de revenda de carros, empreiteiros, etc.
Também encontramos nesse grupo os prestadores de serviços de baixo nível, como
o caso citado no fragmento acima aonde o pedreiro Antônio e seu amigo largaram suas
ocupações no Rio de Janeiro para realizarem a escolta de uma das companheiras de Beira
Mar até o Paraguai. A quantia recebida e o nível de especialização exigidos nessa tarefa
eram extremamente baixos, todavia, não os qualificaria como criminosos, uma vez que não
estavam diretamente ligados ao traficante e às atividades de sua organização.
O grupo dos criminosos se destaca pela presença de indivíduos que aparecem nos
arquivos da PF e relatório da CPI declarados como criminosos, i.e., traficantes, ladrões de
cargas, homicidas, etc. São aqueles que, quando necessário estabelecem inter-relações com
representantes do Estado, aproximando-se de policiais e juízes corrompidos para obterem
serviços como alvarás de soltura, liberação de cargas irregulares e de drogas apreendidas.
Neste grupo são encontrados aqueles que, de fato, lotam as prisões e que se
destacam em estatísticas sobre a população carcerária (DOWDNEY, 2003). São os
299
“aviõezinhos”, os “endoladores”, os “seguranças” da “boca de fumo”, o “dono da boca”, o
“fogueteiro”, o “fiel”, etc. Em geral, segundo Ruggiero, são jovens e adolescentes vindos
de comunidades carentes que ele classificou a partir de uma pesquisa realizada na Europa,
como o “chão de fábrica” ou a mão de obra utilizada no modelo fordista de comercialização
da droga.
Este exército, com seu profissionalismo rudimentar, contribuiu para a
profissionalização do mais alto segmento da hierarquia de distribuição
(RUGGIERO, 2008, p. 24).
Tratam-se de indivíduos rotulados, que podem desempenhar outras funções dentro e
fora do universo criminal, mas que foram classificados dessa forma. Como dito
anteriormente, optei por seguir a classificação atribuída no relatório, questionando-a.
Juntos, empresários, políticos, juízes, pilotos de aviões, caminhoneiros, homicidas e
traficantes constituem o crime organizado. São “peças” de uma mesma estrutura que
combinam e estabelecem uma composição empresarial ou hierárquica (MINGARDI, 1997),
de inter-relação com o Estado, com as práticas de lavagem de dinheiro e atividades ilegais
que finalmente se dispõem em uma clara divisão do trabalho criminal.
Conteúdo
As motivações, interesses e desejos que impulsionam as três classes de indivíduos
participantes das organizações investigadas – mandantes, oportunistas e criminosos - é o
que constitui aquilo que vim chamando de conteúdo, ao longo da presente tese. Os
diferentes conteúdos podem ser exemplificados com a “sede pelo poder”, “ganância”,
“desejo de riqueza”, “expansão comercial”, “expansão territorial”, “acesso à drogas, como
maconha, cocaína”, etc., e sua importância é tal, que lançaram luz à algumas hipóteses de
investigação, como serão mostradas na sequência.
No caso da organização de Hildebrando o conteúdo são as relações de poder e
disputas por controle de território, que remetem à uma exclusividade na venda de cocaína
na região de Rio Branco.
No caso São Paulo, marcado, sobretudo, pela organização encabeçada por Sozza, o
conteúdo é estabelecido pelas relações baseadas nas especializações dos indivíduos
300
participantes e na complementariedade que estabelecem na rede, tal como a expansão
comercial da organização motivada pela ganância.
Por fim, a organização carioca de Beira Mar de um lado expõe conteúdos como as
relações de poder, disputas por território e uso de mercadorias políticas para manutenção do
poder, característicos de organizações hierárquicas, mesclados com conteúdos marcados
pelo empreendedorismo das relações de mercado e pela flexibilidade, presentes em
organizações em rede.
Por trás desses desejos e vontades que motivam e sustém os conteúdos existem dois
referenciais básicos que os animam: são as oportunidades e as especializações dos
indivíduos para o desempenho de determinadas tarefas. Tanto a motivação pela busca do
lucro fácil, como a expansão comercial ou o acesso às drogas, por exemplo, são conteúdos
que animam tanto os “oportunistas” como os “especialistas”. O que os diferencia é o
comprometimento com a organização, o qual pode ser percebido pelo conteúdo das
relações que estabelecem com os membros da mesma.
A diferença entre “oportunistas” e “especialistas” pode ser melhor entendida a partir
do exemplo extraído da organização de Beira Mar: os doleiros são identificados como um
grupo de especialistas que, para realizarem a lavagem de dinheiro aonde e como acharem
melhor, dispõem de uma autonomia relativa à sua atividade ao ponto de poderem
subcontratar outros “especialistas” para realizarem a lavagem. Trata-se de um traço
caraterístico dos “especialistas” que podem ou não fazer uso de mão-de-obra “oportunista”,
como free lancers. Todavia, a autonomia e a liberdade conquistadas pelos doleiros não
advém exclusivamente da atividade que desempenham, mas da excelência com a qual a
desempenham, que remete ao elevado comprometimento com a organização de Beira Mar.
Autonomia e liberdade, por sua vez, são características intrínsecas das organizações
estabelecidas na forma de redes. Segundo Williams (2001), esta é muitas vezes estabelecida
em função do caráter empresarial das redes e, sobretudo, dos arranjos comerciais que não
obedecem padrões hierárquicos de relação. Por serem relações de mercado, inclusive com
contratação temporária, como free lancers que realizam pequenos trabalhos temporários,
tratam-se de indivíduos que são pagos e vão embora.
301
Todavia, nem todas as relações em rede são efêmeras, existem aquelas igualmente
motivadas pelo lucro desempenhadas pelos “especialistas”, e que são baseadas em relações
duradouras e de parcerias, como acontecia com a rede de doleiros contratada por Beira
Mar (Omar, Younnes, Kaled e seus associados Fadi e Madi).
Para trabalhar com as duas categorias (“especialistas” e “oportunistas”) explicativas
dos diversos conteúdos observados nos casos estudados, utilizei como referência o
documento canadense de Beare (2000) que aponta - através de pesquisas empíricas sobre o
caráter local e global do crime organizado - para a existência de grupos especializados e
grupos oportunistas que atuam em uma mesma organização e que, facilmente seriam
encobertos e desvalorizados em uma pesquisa sobre aspectos globais do crime.
Obtive a definição desses grupos a partir de outros dois pesquisadores: Shelley
(1999) sobre os grupos especializados e Manwaring (2007) sobre os grupos oportunistas.
Os autores identificaram dois tipos de associação orientadas segundo as motivações
existentes por trás das relações estabelecidas no interior das organizações. Elas estão
definidas e exemplificadas no quadro abaixo.
TABELA 9: Características dos grupos oportunistas e especialistas:
OPORTUNISTAS
ESPECIALISTAS
Exemplo
Trecho Caso FAB
Trecho Caso Espirito Santo
Já havia grupos especializados para a
Execução dos crimes de mando. Os
executores de empreitadas de morte eram
recrutados na "Scuderie Detetive Le
Cocq", ou por intermédio dela, através de
associados dentro das polícias (civil e
militar) ou, ainda, nas prisões (CAMARA
DOS DEPUTADOS, 2000, p. 379).
Definição
Que, no domingo pela manhã, o Ten.
Cel. Washington ligou pedindo para que
fosse até o avião para embarcar uma
sacola de café e para que ele verificasse
se os volumes do Cel. Pereira estavam a
bordo. Que, após verificar se estava tudo
a bordo do avião da FAB, ligou para o
Ten. Cel. Washington para lhe informar.
(CAMARA DOS DEPUTADOS, 2000,
p. 47/48).
Manwaring
associa
os
grupos
oportunistas à primeira geração de
gangues que se forma nos EUA. Eles
tendem a ser organizados por espaços
geográficos bem delimitados e a
associação é de caráter espontâneo e
oportunista na medida em que parte da
decisão individual se associar ou não ao
grupo.
Todavia,
são
admitidas
associações temporárias ou estabelecidas
para finalidades especificas.
302
Luise Shelley notou que as estruturas
hierárquicas, do tipo mafioso, foram
substituídas
por
estruturas
mais
competitivas, adotando a forma de rede,
empregando,
inclusive
grupos
especializados em atividades licitas e
ilícitas e reduzindo com isso, a liderança
existente na organização.
Análise
No trecho acima, observa-se um
indivíduo que trabalhava na FAB e,
motivado pela obtenção de alta
remuneração financeira, concordou em
“auxiliar” um superior no transporte de
drogas através de uma das aeronaves.
No trecho acima, a Le Cocq possuía uma
rede de indivíduos especializados na
prática dos homicídios que eram acionados
quando necessário, motivados pelo poder e
pelo cumprimento do dever dentro da
organização que lhes rendia prestigio e
lucro.
FONTE: produzido pela pesquisadora.
Como o próprio título indica, os grupos especializados são grupos nos quais a
divisão de tarefas é resolvida de forma que o membro mais especializado naquela função
possa desempenhá-la sem problemas, chegando inclusive a coordenar outros indivíduos
escolhidos a partir de critérios como a meritocracia (BARBOSA, 1999) enquanto critério
lógico de ordenação social presente na sociedade contemporânea.
A formação dos grupos especializados consiste na formação criada entorno de
alguns “criminosos profissionais” que colaboram regularmente entre si no desenvolvimento
de uma atividade criminal específica, por exemplo, o roubo de cargas e a negociação das
mesmas.
Esse tipo de agrupamento é marcado por estruturas sólidas que não se desfazem e
nem são afetadas por eventuais oportunidades surgidas: o que os motiva é a realização da
tarefa no interior do grupo visando alcançar postos, status, poder e prestígio que os levarão
à maior lucratividade. Traçando um paralelo com o trabalho de Mingardi (1998), essas
organizações são bastante parecidas com organizações classificadas pelo sociólogo como
empresariais, o que faz todo o sentido, uma vez que se trata de um grupo altamente
especializado cuja mão-de-obra empregada tem origem em atividades similares realizadas
no mercado legal, como o trabalho de advogados, gerentes de bancos, doleiros, contadores
e etc. que aplicam seu conhecimento na lavagem de dinheiro realizada através de contas
bancárias do tipo CC-5 (explicadas anteriormente) que são operadas por diretamente por
esses indivíduos.
Os grupos oportunistas, por sua vez, são formados a partir de uma necessidade
imediata do grupo e do indivíduo e, seus laços e conexões são desfeitos quando a mesma é
suprida ou conforme as necessidades da organização. Nesse cenário, pode-se chegar ao
estabelecimento de uma rede de free lancers com ligações descontinuadas entre seus
303
membros. Estas ligações, no entanto, podem evoluir e os indivíduos free lancers serem
“efetivados” para dar continuidade às atividades desenvolvidas.
Os grupos oportunistas podem ser entendidos como associações desconectadas,
formadas por oportunidades de associação promovidas entre seus participantes. São
sociedades voláteis e flexíveis que podem se decompor a qualquer momento. Os indivíduos
que compõem esses grupos não têm necessidade regular de estarem em contato uns com os
outros e somente são acionados quando há a necessidade da realização de um “trabalho
específico”, como por exemplo, o papel de “olheiro e fogueteiro” nas “bocas de fumo”,
avisando aos demais membros da organização sobre a entrada de policiais no perímetro, ou
a contratação de pilotos de avião ou funcionários de fazendas para carregarem e
descarregarem cocaína de aviões em pistas de pouso clandestinas. Em ambos os exemplos
são
acionadas
estruturas
organizacionais
voláteis,
que
diferem
das
estruturas
organizacionais especializadas, tradicionais e consolidadas pelo tempo e pela rotina
estabelecida (CATANZARO, 1991; GAMBETTA, 1993).
Esses dois exemplos de associação são resultados dos conteúdos presentes nas
relações desenvolvidas, eles podem levar à produção de situações de competição e
produção de nichos. Por essa razão verifiquei que os grupos oportunistas e os grupos
especializados podem se misturar e serem encontrados em uma mesma forma ou estrutura
organizacional, assinalando a complexidade do crime organizado. Na organização de Beira
Mar, por exemplo, vemos os grupos oportunistas atuando nos trabalhos de venda e
distribuição da droga nas favelas controladas pelo traficante e os grupos especializados
atuando nas áreas de contabilidade e lavagem de dinheiro. Trata-se de uma
complementaridade entre tarefas que se desenvolve dependendo da capacidade e motivação
de cada indivíduo dentro da organização. Nesse sentido, “oportunistas” e “especialistas”
surgem como protagonistas dos conteúdos de cada relação e como influenciadores na forma
adotada pela organização.
ORGANIZAÇÕES NO CRIME ORGANIZADO: CONTRIBUIÇÃO
Para reconstruir e trabalhar com o conceito de crime organizado foram utilizadas
algumas premissas básicas da Sociologia e do Direito (MINGARDI, 1997; CONVENÇÃO
304
DE PALERMO, 2004; ZALUAR, 1987; PROCÓPIO, 1999; CIRINO DOS SANTOS,
2002; ABADINSKY, 2010; dentre outros) que descrevem o fenômeno do crime
organizado. Parti do princípio de que para elucidar o fenômeno, algumas características
precisam ser trabalhadas levando em conta o contexto da CPI do Narcotráfico e suas
descobertas. Para tanto, reproduzi as mesmas características do crime organizado
levantadas no capítulo II para, agora, retrabalhá-las no contexto específico dos casos
estudados.
Não se trata apenas de apontar se uma dada característica está presente ou não no
caso, mas de mostrar em qual grupo de indivíduos ela se aplica, variando entre a e b, aonde
a representa a presença plena da característica avaliada e, b corresponde a característica
presente de forma fortuita no caso. As características ligadas aos agentes do Estado variam
conforme a ocupação desses indivíduos: 1 - políticos; 2 – policiais/militares; 3 – juízes. No
caso das demais categorias de indivíduos, como os empresários – atribuí o número 4 para
identificá-los e 5 para os criminosos em geral.
TABELA 10: Características do Crime Organizado presentes nos casos estudados:
Campo/
Características
Hierarquia
Violência
Regra Interna
Empresa
Infiltração no Estado
Mito Inicial
Divisão do Trabalho
Gueto étnico/familiar
Org. descentralizada
Ilícito
Território (controle)
Difere de quadrilha ou
bando
(mais parecida com a
máfia)
Caso
Acre
2a
2a,
5a
2a
4b
1a
2a
4a,
5a
1a
4b
5a
2a,
5a
1a
Caso
Espírito
Santo
Caso
Rio de
Janeiro
Caso FAB
Caso
Alagoas
1a, 2a
2a, 5a
5a
5a
4b
2b, 5b
2b
-
1b
5a
2a
1b, 4b
1a
1a
4a, 5a
5a
5a
1b, 2b
5a
5a
4b
4a
2b
4a
4b
5b
1c, 2a, 5a
5a
4a
5a
5a
4b, 5a
4a
4a, 5a
-
2b
4a
2a
2b, 4a,
5b
2b
4a
2a, 5a
-
1a
1b, 4a, 3a
1a, 3a
1a
3b,
4a,
5b
1a
4a
4b, 5a
5a
1a
5a
-
-
1a
FONTE: produzido pela pesquisadora.
305
Caso
São
Paulo
A tabela acima informa sobre como cada uma das características universais que
definem os crime organizado levantados no capítulo II se comportam em relação aos seis
casos analisados. A primeira característica que mais chama a atenção é que todos os casos,
em maior ou menor grau apresentaram uma regular hierarquização em algum ponto da
organização e esta aparece ligada, sobretudo, à agentes do Estado, como policiais e
militares, seguido por políticos. Isso mostra que o envolvimento de agentes do Estado se dá
de forma regular e centralizadora nas organizações estudadas. Apenas nos casos Rio de
Janeiro e São Paulo essa conexão entre Estado e crime organizado não é evidente, apesar de
estar implícita através de indivíduos e conexões que foram suprimidas do relatório da CPI,
como mostrado no capítulo IV. Além disso, a associação entre agentes do Estado e a
proximidade com a máfia se dá, segundo a tabela, quase que exclusivamente a partir da
presença de políticos e criminosos, como assinalado nos casos Acre, Espírito Santo, Rio de
Janeiro e Alagoas.
O uso da violência é uma característica que se destaca nos citados estudos. Aqui, ela
aparece ligada a policiais/militares e à criminosos (geralmente grupos de extermínio). Notase que apenas no caso São Paulo ela é usada de forma fortuita, enquanto que nos demais
casos (com exceção do caso FAB aonde seu uso é sequer mencionado) ela se destaca com
amplitude. Na bibliografia, o uso da violência é comumente associado à outra
característica, que é o controle territorial realizado pelas organizações, e na tabela,
novamente a figura dos policiais/militares e criminosos se destaca na realização das
atividades ligadas à manutenção e controle do território.
A característica que mais aproxima o crime organizado de modelos empresariais
está associada à presença de empresários envolvidos com atividades criminosas que se
empenham em transformar as relações e a forma organizacional adotada, modificando-as
para que se pareçam com empresas, destacando-se de forma plena nos casos São Paulo,
FAB e Alagoas. Associada a essa característica sobressai a adoção da descentralização nas
organizações, novamente combinada à figura dos empresários que optam pelo uso de mãode-obra free lancer e pelos “especialistas”, organizados em forma de redes sem liderança e
autorregulados.
306
Envolvimento com aparelhos ou agentes do Estado
O envolvimento de organizações criminosas com aparelhos ou agentes do Estado é
uma das características, segundo Mingardi (1998) e Misse (2011), que mais distingue o
crime organizado de outras organizações não criminosas ou de outras tipologias criminais.
Segundo Misse a relação estabelecida entre membros de organizações criminosas e agentes
do Estado já está arraigada na cultura criminal desde muito tempo. No Rio de Janeiro,
campo de investigação do sociólogo, podem ser levantadas três formas distintas de práticas
de extorsão e corrupção acionadas pela polícia:
No Brasil são muito fortes e constantes as acusações e denúncias de corrupção
na polícia, especialmente na polícia do Rio de Janeiro. Há referências em grande
quantidade atravessando décadas, primeiramente na relação com a prostituição,
o contrabando e o jogo do bicho e, atualmente, nas ligações com o tráfico de
drogas e de armas. Em geral, observam-se três tipos de referencias ao que está
englobado na representação de corrupção na polícia brasileira: a propina em
troca da não cobrança de multa por infração de trânsito e outras infrações
codificadas em portarias, normas e leis estaduais; o arreglo ou troca negociada,
geralmente envolvendo contraventores e outros agentes de mercados ilícitos que
não envolvem necessariamente o recurso à violência; o arrego, que é a troca
assimétrica ou extorsiva, geralmente pactuada no tráfico de drogas (atacado ou
varejo) e de armas. Em qualquer dos casos, a reprodução de organizações
criminosas de todo tipo torna-se particularmente dependente de acordos e trocas
políticas com agentes públicos, dos quais policiais (que detêm o uso legal das
armas e de informações estratégicas) constituiriam um dos principais tipos.
Diferentemente do jogo do bicho, que pratica o “arreglo” (acordo negociado) ou
mesmo a cooptação de agentes públicos para sua folha de pagamento, policiais
do Rio passaram a praticar o “arrego” (extorsão) sobre os traficantes de
drogas, impondo trocas políticas assimétricas e praticamente compulsórias. Um
dos mais conhecidos traficantes do Rio de Janeiro, hoje cumprindo pena na
Penitenciária de Bangu, pagou cerca de 250 mil dólares a policiais que o haviam
prendido anteriormente, negociando sua liberdade. É corriqueira a propina, o
arreglo e o arrego no Rio de Janeiro e em outros estados brasileiros. Sem essas
mercadorias políticas, torna-se difícil compreender as relações entre violência,
organizações criminosas e lucros nos mercados ilegais brasileiros. (MISSE,
2011, p. 23).
Misse acredita que o acionamento de agentes ou aparelhos do Estado por parte de
organizações criminosas parta de duas possíveis situações: 1) da necessidade de “proteção”
para os negócios escusos e, 2) quando não há clientela espontânea para isso, ela pode ser
induzida pela prática da extorsão.
De qualquer modo, todas essas organizações dependem – de mercadoria, aquela
que pode proteger quem oferece proteção, proteger quem controla territórios,
proteger quem negocia armas e proteger quem anota apostas nas ruas. Trata-se,
307
nesse caso, de uma mercadoria que depende de um cálculo efetivo de poder e de
correlação de forças para poder adquirir características econômicas. Tenho-a
chamado, por isso, de “mercadorias políticas” (MISSE, 2011, p. 26).
Nesse sentido, as mercadorias políticas são produzidas em uma troca assimétrica,
estabelecida entre o criminoso e o agente do Estado na qual o preço dos favores prestados
varia em função do peso político empregado e do valor econômico da mercadoria criminal
negociada pela organização que “contrata” esses favores. Essa relação tipicamente
comercial, que envolve símbolos de status e relação com os aparelhos do Estado está
presente na totalidade dos casos investigados pela CPI. Esses casos mostram como um
“amigo” parlamentar, um policial corrupto ou a compra de favores de um juiz aparecem
sempre ao lado do crime organizado. Trata-se de uma sinergia alimentada pela extorsão ou
pela corrupção que sustenta o crime, e sem a qual o mesmo não galgaria o status de
“organizado” e seria incapaz de manipular estruturas que aparentemente estão distantes de
seu campo de atuação, mas sem as quais ele não sobreviveria. Um exemplo disso é a
distribuição de propina que Maria do Pó realizava nas estradas pelas quais transportava seu
carregamento de cocaína. Seguida da compra de favores de um delegado para a liberação
de uma de suas cargas apreendida.
Nessa lógica, o Estado é peça fundamental para que essas operações tenham
sucesso, trata-se, conforme Tilly, de uma condição aonde o crime organizado parasita o
Estado desde sempre. Todavia, acrescenta Andreas (1999), o Estado, através de suas
decisões legislativas, de um lado, define a fronteira do comportamento criminoso quando
persegue as organizações e, de outro, cria oportunidades de lucro para essas organizações
no nível do mercado. Nesse sentido, o ponto de vista de Cepik e Borba (2011, p. 388)
acrescenta que
o crime organizado opera na margem aceitável (por parte da elite governante)
de uso paraestatal da violência. Por razões diversas, inclusive recursos escassos
e interesses inconfessáveis, os Estados por vezes toleram diversas formas de
coerção ilegítima, que podem ir de jagunços a serviço de fazendeiros até
organizações criminosas urbanas. Trata-se de um misto de tolerância e
seletividade que permite a reprodução da organização criminosa e que, em
última instância, é dependente da disposição da elite política e dos grupos de
pressão que a influenciam. Caso os prejuízos causados pelo crime a esses grupos
superem os benefícios diretos e indiretos dele advindos, o crime organizado
excedeu essa margem aceitável.
308
O caminho a seguir pode ir em duas direções: ou a sociedade política mobiliza-se
para ações restritivas e punitivas ou caminha para a fusão dessas organizações que, por fim,
adotam uma feição política - como aconteceu na Colômbia.
Uso da violência e o controle do território
O uso da violência para controle de território e pessoas, foi abordado como uma das
características do crime organizado, todavia, ela não esteve presente em todos os casos
investigados pela CPI. O uso da violência se destacou nessas investigações apenas como
“pano de fundo” para uma série de outros acontecimentos que envolveram disputas,
relações de poder e, sobretudo, para manutenção e controle do território (ABADINSKY,
2010) e que ajudam a entender o envolvimento discreto do uso sistêmico e controlado da
violência nesses casos.
A violência tem sido citada como uma das características definidoras do crime
organizado. No relatório da CPI a difusão do medo se destaca como um traço fundamental
do crime organizado, todavia, em alguns casos, como São Paulo, Alagoas e FAB o uso da
violência é baixo. Entretanto, sabemos pela mídia que esta é ainda maior do que,
propriamente o registro de ocorrências a seu respeito, como a prática de homicídios, que se
destaca com números alarmantes nos casos Acre e Espírito Santo, aonde constata-se a
existência de “esquadrões da morte” e a respeito dos quais a CPI não poderia deixar de
investigar.
De um modo geral, a violência é um "recurso prontamente disponível e
rotineiramente aceito", usado para intimidação, disciplina e controle; ela é parte integrante
das organizações criminosas sem, no entanto, ser considerada sua principal ferramenta de
atuação. Por isso, mesmo que esteja presente nas organizações, nem sempre é utilizada em
larga escala ou se faz presente em todas as atividades desenvolvidas. No relatório da CPI,
seu uso aparece ligado às organizações mais como uma atividade conexa (um homicídio
encomendado, por exemplo) do que propriamente participante e diretamente ligada à
organização. Para esses casos, são acionados outros mecanismos para manter o controle do
grupo, como os laços de família, amizade e confiança; nesse sentido, a imposição do medo
309
é apenas um recurso extra do qual se lança mão apenas em situações críticas (como o
controle de territórios) ou quando membros do grupo saem do controle de suas lideranças.
ANOTAÇÕES SOBRE ESTRUTURAS ORGANIZACIONAIS
Uma das bases argumentativas que utilizo para mostrar que as organizações
estudadas possuem paralelos com a bibliografia internacional sobre o crime organizado,
com estruturas organizacionais que variam segundo o conteúdo acionado, se baseia na
observação de que esquadrões de extermínio e o tráfico de drogas no varejo utilizam formas
hierárquicas para se organizar, e que a lavagem de dinheiro e o roubo de carga acionam
mecanismos em rede. Nessa abordagem os modelos canônicos de organização observados
são as hierarquias e redes, como o padrão empresarial e suas variáveis. Todavia, quando
combinadas essas duas formas, elas podem resultar em uma terceira, chamada aqui de
híbrido e que possui paralelos em outras partes do mundo sem apresentar uma
nomenclatura específica que pudesse adotar na presente pesquisa.
Formas
Para delimitar os traçados de forma acionados, evoco os trabalhos de Misse (2007,
2008, 2010 e 2011), White (1981, 2001 e 2008) e Simmel (1983) observando as múltiplas
formações das organizações criminosas investigadas pela CPI do Narcotráfico como o
resultado de um arranjo estabelecido entre 1) o reflexo dos nichos de mercado nos quais
atuam; 2) as arbitrariedades do Estado expressas através da mobilização de “mercadorias
políticas” e com o agentes do Estado, e 3) os tipos de relações estabelecidas pelos
indivíduos que compõem essas organizações.
Tomando as premissas de Misse, White e Simmel como “pistas” iniciais a serem
seguidas, reanalisei o caso Rio de Janeiro a partir das ferramentas da Grounded Theory, em
diálogo com a bibliografia especializada na temática do crime organizado, e desmembrei a
estrutura da organização em dois quadros analíticos, cada qual observando um aspecto da
forma adotada pela organização. Para exemplificar essas formas, resgatei trechos do
relatório indicativos da constituição de hierarquias e redes surgidos a partir de um olhar
310
sobre um dos mercados criminais mais proeminentes em cada caso e os tipos de interrelação estabelecidos entre os indivíduos.
Esses fragmentos ajudam o leitor a se situar sobre qual aspecto do caso estou
abordando e como o mesmo pode colaborar na reflexão sobre a dinâmica estabelecida no
arranjo de cada uma das organizações investigadas.
Vale anotar que os exemplos recolhidos em cada um dos seis casos estudados levam
a pensar e observar as formas de organização em cada caso como hierarquia ou redes,
dependendo do conteúdo acionado. Elas podem se misturar dentro de uma mesma
organização que, por ventura apresente variados conteúdos. Todavia, essas formas,
consideradas puras e indicativas na bibliografia como “tipos ideais” são abstrações. Nos
fragmentos registrados abaixo, em que trato da organização de Fernandinho Beira Mar é
possível observar traços de redes e hierarquias. Portanto, não se pode afirmar que esta
organização é hierárquica, do tipo mafiosa, nem que se trata de uma organização
empresarial em rede. Uma de minhas hipóteses aqui é que sua complexidade esconde
elementos que a caracterizam como uma coisa e outra, ao mesmo tempo, sendo impossível
classificá-la nos limites dos estudos existentes sobre o crime organizado no contexto
brasileiro. No entanto, em estudos internacionais realizados por pesquisadores estrangeiros
acerca de realidades criminais mexicanas, americanas, canadenses, etc., é possível perceber
a existência de um paralelo entre essa complexidade que encontro nos casos estudados e a
percebida em outros contextos. Falarei mais sobre esses estudos parágrafos abaixo.
TABELA 11: Comparativo entre hierarquia e redes na organização de Beira Mar:
FRAGMENTO
DO CASO
Hierarquia
Redes
Como está há muitos anos foragido,
Fernandinho Beira-Mar montou uma
megaestrutura, a fim de comandar à
distância o comércio ilícito de drogas,
através de associação a terceiros. Para tanto,
Luiz Fernando da Costa amealhou para sua
"Organização criminosa" diversa pessoas de
sua mais estrita confiança, como parentes e
amigos, e os utiliza como "testas de ferro" e
em nome de quem registra os imóveis
adquiridos e movimenta vultuosas quantias
em contas bancárias (CAMARA DOS
DEPUTADOS, 2000, p. 771)
KHALED NAWAF ARAGI - Doleiro Libanês
de Corumbá proprietário da HWS ROCHA
TURISMO, utiliza vários "laranjas" para
serem titulares de contas bancárias onde eram
efetuados os depósitos da lavagem do dinheiro
do tráfico. Em sua empresa recebia os
depósitos de “Beira Mar”. (CAMARA DOS
DEPUTADOS, 2000, p. 773)
311
GRAFO
ORGANOGRAMA
ANÁLISE
Esse primeiro “fragmento” mostra 1)
as mercadorias politicas e 2) o
envolvimento com o tráfico de
drogas. Tudo indica que esses
indivíduos eram responsáveis pela
logística e distribuição do tráfico no
Rio de Janeiro. Além disso, é trazida
à tona uma rede de relacionamentos
hierárquicos formada por familiares.
Esse primeiro fragmento aponta para
a existência de uma estrutura
hierárquica no interior do grupo que
dá forma a um conteúdo marcado
pela dominação que necessita, por
sua vez, de um mercado rígido,
controlado e sem concorrência
(GOMES e CERVINI, 1997). Esse
modelo também é comumente
associado às
máfias (CRETIN,
1998).
No segundo fragmento, são mostrados
os agentes da lavagem de dinheiro de
Beira Mar. Trata-se de relações
baseadas em negócios eventuais entre
traficantes e empresários. Essa
estrutura se assemelha às estruturas de
mercado, aonde melhores ofertas,
recebem maior destaque e lucros. Este
segundo
fragmento
sugere
um
mecanismo de organização flexível
baseado no livre comércio, sua forma é
conhecida pelo nome de organização
em rede dada a liberdade de escolhas
de parcerias, negócios e mercados
(BRUINSMA, 2004) – nesse caso,
nem o Estado nem a organização
interferem na livre-concorrência dos
mercados e buscam não produzir
incertezas (WHITE, 2008) para os
mesmos. O conteúdo por trás dessas
relações está baseado na livre
concorrência. Indicativo da não
existência de exclusividade nos
negócios, eles podem se dar a qualquer
momento e com qualquer um. O “livre
comércio”
predomina
sobre
a
organização.
Esses fragmentos de análise apontam a existência de dois tipos de organização
regulares (hierarquia, redes) já observados na literatura e nos casos analisados, as quais
312
mantém, de alguma maneira, um padrão em suas relações estabelecidas com o Estado
(parceria com agentes) e mercado (formação de nichos).
Se pensarmos nas máfias e cartéis, exemplos típicos de hierarquias, e sobre os quais
podem ser encontrados estudos realizados a partir de depoimentos prestados por “mafiosos
arrependidos”, como Bruscetta. Vemos que, de fato, impera no interior desses grupos uma
constante em relação às hierarquias adotadas. Ali não existe meio termo: muda o conteúdo,
mas a forma adotada permanece. O mesmo acontece em algumas organizações em rede
sobre as quais tem-se conhecimento aprofundado, como o exemplo estudado por Von
Lampe (2005). Mudam os conteúdos, mudam os mercados acionados, mas a forma em rede
permanece. Assim, questiono: porque nas organizações aqui estudadas, como a de Beira
Mar, não existe constância entre a adoção de uma forma específica e seus conteúdos? O que
as difere das organizações internacionais? Antes, achava que era apenas uma questão sobre
a constituição de conceitos abstratos que separava o universo estudado das hierarquias
mafiosas e das redes empresariais, mas agora, relendo depoimentos, biografias e estudos
etnográficos sobre essas organizações vejo que, mesmo na complexidade do crime, ainda
imperam os modelos explicativos canônicos citados.
Ainda assim, os casos estudados na presente pesquisa carecem de uma explicação
sobre o porquê de diferentes formas serem acionadas em uma mesma organização e até
mesmo dentro de um mesmo mercado criminal; o que torna impossível sua classificação
em um “tipo” e outro. Por exemplo, nos negócios do tráfico de drogas realizados por Beira
Mar é descrita a associação de terceiros utilizados para coordenação da organização, tais
como: amigos e parentes que ajudam a “lavar o dinheiro” da droga através de imóveis,
contas bancárias e empresas de fachada; e as três mulheres do traficante que recebiam o
dinheiro administrado por uma das irmãs de Beira Mar e repassavam-no para o mesmo –
isso demonstra a formação de uma rede de confiança familiar e a adoção de uma construção
rígida nos pontos mais altos da organização. Nos níveis intermediários, Beira Mar adotava
uma forma de organização flexível formada por doleiros, conivente com o “livre mercado”,
que dividiam e lavavam o dinheiro entre suas diversas empresas fantasmas. No nível mais
baixo da organização, Beira Mar voltava a adotar uma forma hierárquica de organização
com a presença do traficante Chapolin que indica a estruturação de uma nova organização
313
localizada nas cidades da região metropolitana do Rio de Janeiro comandada,
indiretamente, por Beira Mar.
Dentro dessa estrutura cabia a Marcos Marinho dos Santos, vulgo “Chapolin”,
estruturar a quadrilha nos locais em que ela se instalava, o fazendo valendo-se
de outros integrantes da associação baseados na cidade de Duque de Caxias, de
onde vinham nos apelidados “Bondes” trazendo o entorpecente, armas e
quadrilheiros com o fim de dominar pontos de venda de quadrilhas rivais ou de
assegurar a continuidade do próprio “negócio” (CAMARA DOS
DEPUTADOS, 2000, p. 786/787).
Revendo os outros casos analisados, percebi que, de forma mais sutil, a mesma
mistura de formas organizacionais se repetia. Com isso, lanço mão de uma construção
organizacional já identificada em outras áreas da ciência como a Economia, Administração
e Biologia, chamada de híbrido, na tentativa de explicar essas construções.
DEFININDO, INSTITUCIONALIZANDO E CONTEXTUALIZANDO O
HÍBRIDO NA LITERATURA
A International Encyclopedia of the Social & Behavioral Sciences (SMELSER e
BALTES, 2001) afirma que o termo “híbrido” tem origem na biologia, e tem sido usado
pelos autores das ciências sociais como a combinação de novas estruturas, objetos e
práticas que resultam da mistura de diferentes elementos.
Lanço mão dessa nomenclatura por não encontrar paralelo nomeadamente
identificado na literatura em Ciências Sociais a respeito de combinações estruturais e
organizacionais presentes nos estudos sobre o crime organizado. Por essa razão, recorri a
outros campos e objetos de estudo na tentativa de construir a categoria que estarei
chamando de “híbrido”.
Segundo Naylor (2003), Mastrofski e Potter (1987), as organizações híbridas foram
descobertas nos estudos sobre atividades terroristas, aonde foram percebidas como a
combinação de mercados criminais e formas de organização que, uma vez associados,
permitiam realizar uma série de tarefas essenciais tanto para o crime organizado quanto
para o terrorismo. O processo de convergência entre diferentes formas organizacionais
permitiu que os dois grupos (crime organizado e terrorismo) se tornassem um só, recebendo
com isso o nome de híbrido. As principais atividades praticadas pelo crime organizado
314
nesse contexto são a extorsão e a fraude. Os grupos terroristas que também utilizam essas
atividades direcionam-nas para o financiamento de operações e captação de parceiros,
como é o caso relatado por Perri e Brody (2011) que, através de pesquisas de outros
estudiosos, tratam de organizações terroristas do Taliban, como a Al Qaeda. Os citados
pesquisadores descobriram que uma das principais características desses grupos é ter
objetivos políticos como motivadores de suas ações. Todavia, atualmente estes grupos não
são mais estritamente políticos e deixaram de seguir unicamente essas agendas, agora usam
táticas de terror por várias razões, como a busca pelo lucro. Dentre as táticas utilizadas, o
sequestro e a extorsão se destacam.
Estes autores, que trabalham com terrorismo e crime organizado, chamam de
híbrido os grupos cuja aparência remete à síndrome do "buraco negro" (MAKARENKO,
2004). A síndrome do "buraco negro" abrange duas situações: a primeira, onde as
principais motivações do grupo envolvido se desenvolve a partir de um foco
exclusivamente político. Quando este passa para um foco criminoso remete ao surgimento
de um estado de "buraco negro", condição que revela um nexo entre crime e terror,
tornando-os indistinguíveis e, segundo, aonde a tomada do poder político e econômico se
destaca, sendo as retóricas ideológica, política e religiosa usadas como pretexto para
garantir legitimidade pública e como uma ferramenta de recrutamento.
O aspecto criminoso do terrorismo e do crime organizado para os citados autores
estaria calcado na infiltração de atividades mafiosas que se alimentam da insegurança para
o ganho financeiro aliados à um policiamento ineficaz e um sistema judicial corrupto. Para
conhecer como agem e se organizam, os autores que estudaram o Taliban concluíram que
“estão agindo como uma ampla rede de organizações criminosas que lhes permite utilizar
diferentes fontes de renda” (KUNDUZ, 2009, p.05 apud PERRI e BRODY, 2011, p. 52).
Uma dessas organizações são os grupos do crime organizado transnacional que fornecem o
ópio para o mundo. Em troca da facilitação de sua distribuição juntamente com a
assistência de terroristas, adquirem uma receita perfeita para a manutenção das atividades
do grupo.
Ações parecidas são encontradas também na associação existente entre as Farc
colombianas e organizações do tráfico de drogas, como a encabeçada por Beira Mar que
315
sustentaram as ações da Farc através das trocas realizadas entre cocaína (fornecidas pela
organização colombiana) e as armas (providenciadas por Beira Mar).
O uso da violência também se destaca como uma característica marcante desses
grupos para manter o respeito às hierarquias e a manutenção do sigilo. Para Friedrichs
(2007), esse modelo de organização tende a ser mais periférico que o modelo de
organização inicialmente adotado pelos grupos terroristas, quando as finalidades políticas
ainda eram centrais para o sustento do movimento. Quando estes grupos adotam novos
conteúdos e se associam aos grupos criminosos para se manter, assim, seu modelo de
organização (ou forma) muda e passa a ser conhecido como híbrido.
Um subproduto desse processo é La Família, que originou-se na década de 80 no
México. Em seus primeiros dias, foi um grupo de vigilantes que ajudavam a proteger os
pobres de traficantes de drogas, sequestradores, e outros criminosos. Em algum ponto, foi
cooptada pelos criminosos e tornou-se aliada do Cartel do Golfo e dos Zetas. Com sede em
Michoacán, La Família é uma fusão de traficantes de drogas e religiosos cristãos, que
tornou-se, simultaneamente, um movimento religioso e criminal, parecido com o que tem
acontecido, de certa forma, com a Al Qaeda, conforme expliquei anteriormente.
Ainda que relativamente pequena, La Família está caminhando para o status de
“terceira fase” dos cartéis mexicanos com uma proposta política que inclui objetivos e
planos sociais. Estes objetivos e planos incluem a construção de uma base social como
meio de prestação de serviços, oferecendo proteção aos pobres e doutrinação e reabilitação
para viciados, e desenvolvimento, a longo prazo, de relações clientelistas com grupos
políticos que estão tentando concorrer a cargos públicos, novamente, similar à relação entre
a Al Qaeda e o Taliban. No Brasil, a organização de Beira-Mar (bem como a de Marcinho
VP (BARCELLOS, 2010) produzia pequenas “ações sociais” em favor da população
residente em suas áreas de atuação, tais como a compra de botijões de gás para aquelas
famílias desprovidas de recursos, por exemplo.
Bunker e Sullivan (2010) ao estudar as recentes transformações pelas quais os
cartéis mexicanos tem passado descobriram que estes tem adotado o uso de táticas e
treinamento militar e até à associação com “empreiteiros” e mercenários que tem se
empenhado em exterminar as gangues que disseminaram as intensas ondas de violência
316
pelo país anos atrás: o auge da Máfia Mexicana, Treinta Calle (Logan Heights) e,
posteriormente, MS-13 e pistoleiros da Calle 18 que operavam no México, está chegando
ao fim. A filosofia adotada pelos cartéis era a seguinte: ou essas gangues se ajustavam à
nova realidade militar dos cartéis ou seriam extintas.
Na bibliografia brasileira o híbrido aparece unicamente associado a outros
elementos complexificadores do cenário do crime organizado, como o Estado, por exemplo.
Os trabalhos de Zarevucha e Oliveira (2010, 2012) utilizam o termo híbrido como
referência ao caráter do crime organizado em uma chave de discussão na qual o adjetivo é
identificado para se referir às associações de diferentes tipos de atores no contexto do crime
organizado.
Os autores discutem sobre como as organizações criminosas podem estar em
simbiose com o Estado. Para eles, isso ocorre quando a organização criminosa nasce na
sociedade e tenta cooptar atores dentro do aparelho de Estado para as suas atividades
ilícitas por meio do oferecimento dos mais variados benefícios, ou quando grupos
criminosos que nascem dentro do Estado procuram apoio na sociedade. Isto lhes permitiu
estabelecer uma tipologia sobre tais grupos. A denominação adotada foi o termo “exógeno”
para aquelas organizações que nasceram à margem do poder estatal e “exógeno
cooperativo” para os grupos que detém “facilitadores” dentro do Estado, e “exógeno nãocooperativo” para aqueles que não possuem esse privilégio. Quando o grupo origina-se
dentro do Estado, é denominado crime organizado “endógeno” e, caso conquiste
facilitadores fora do Estado, chama-se “endógeno cooperativo”, caso não consiga, recebe o
nome de “endógeno não-cooperativo”. Quando não é possível identificar claramente a
origem do grupo criminoso, se partiu de dentro ou fora do Estado, os autores chamam-no
de híbrido. Marcando com isso, mais um uso alternativo ao termo e que faz referência a
uma categoria aparentemente residual acerca do crime.
Acredito, ao contrário de Zarevucha e Oliveira que o termo híbrido, ao menos nos
casos estudados, pode ser usado de maneira mais precisa, indo além da origem do
nascimento do crime organizado e de sua relação com o Estado apenas.
Na presente tese, a proposta de se usar o termo híbrido toca nos seus modelos de
organização adotados. Essa ampliação do uso do termo permite pensar ainda que são de
317
extrema importância as características econômicas e sociais dos indivíduos envolvidos com
o crime organizado como características que influenciam nos conteúdos dos mercados
criminais acionados e que podem ser estendidas aos modelos de organização adotados e na
forma de cooptação de agentes do Estado.
Outra definição de organizações híbridas é frequentemente encontrada nos estudos
sobre as comunidades de gangues canadenses136. De acordo com o boletim do órgão
americano OJJDP - Office of Juvenile Justice and Delinquency Prevention (STARBUCK,
et all., 2001) as gangues são entendidas com uma mistura significativa de dois ou mais
grupos raciais ou étnicos e são representativas desse tipo de organização considerada
híbrida.
Em uma pesquisa realizada pela OJJDP, argumenta-se que existem gangues de
jovens que não se enquadram nos moldes de qualquer categoria particular de gangue. Estes
grupos podem ter várias das seguintes características: 1) mistura de raça/etnia, 2) membros
masculinos e femininos, 3) símbolos expropriados de diferente gangues, mas com
significados diferentes dos originais, 4) podem ou não ter uma fidelidade para com uma
quadrilha tradicional, 5) seus membros podem mudar sua filiação de um grupo para outro,
sendo que não é incomum para um membro de gangue reivindicar múltiplas filiações; 6) a
gangue pode mudar seu nome ou de repente se fundir com outras gangues para formar
novos grupos; 7) outros grupos podem ser completamente independentes dos demais nas
tradições, cores adotadas, ritos, símbolos, etc. Mesmo que essa definição de híbrido seja
diferente daquela que busco trabalhar nessa pesquisa, ela está ainda mais próxima daquilo
que venho considerando como organizações hibridas, em relação à natureza da
complexidade dessas organizações, do que a definição encontrada por estudiosos de grupos
terroristas ou dos brasileiros Oliveira e Zarevucha.
Ainda segundo o OJJDP, a migração entre membros de gangues parece ter
contribuído para o crescimento dessas organizações híbridas em novas localidades. Esses
136
Nos contextos americano e canadense, os modelos de organização hibrida aparecem aplicados à área de
Segurança publica e inteligência, para saber mais a respeito, cf. http://www.dtic.mil/cgibin/GetTRDoc?Location=U2&doc=GetTRDoc.pdf&AD=ADA329699.
318
migrantes agem como portadores culturais do folclore, mitologias e outros adornos de
gangues urbanas mais sofisticadas (MAXSON, 1998, apud STARBUCK, et all., 2001).
Outro estudo sobre como agem essas organizações consideradas como híbridas
aponta para diferenciações entre hierarquias e redes entre prostitutas em Fremont/Kansas
City, MO/USA. Fleisher, o pesquisador responsável (1998 apud STARBUCK, et all., 2001)
ilustra com esse estudo uma forma única de gangue híbrida: a quadrilha não tinha conjunto
de regras, ou exigências da sociedade, e nenhum líder ou hierarquia que poderia guiar todos
os 72 membros da organização. Somente estabelecer laços com as prostitutas de Fremont já
lhe permitiam ser lentamente assimilado na vida social do grupo. Não se tratava de uma
organização coesa e não se interessavam pela estrutura ou funcionamento do grupo, a
estrutura da quadrilha era difícil de ser reconhecida à primeira vista. Esse estudo em muito
se aproxima da minha percepção sobre organizações hibridas no crime organizado porque
mostra que, mesmo nesse ambiente aparentemente caótico, ainda imperam uma hierarquia
implícita que permitia que as prostitutas mais velhas influenciassem as ações e opções das
mais novas integrantes.
Porém, o estudo que mais se aproxima do que entendo como organizações
criminosas híbridas pode ser extraído da figura proposta por Natasha Tusikov (2009), a
partir de uma pesquisa realizada no Canadá, aonde há um debate ativo sobre a maneira
como o crime organizado deve ser cotejada. Segundo a autora, a antiga visão do crime
organizado na América do Norte estava baseada em traços étnicos e hierarquicamente
estruturados. Atualmente, essa proposta é contestada pelo fato de existirem as redes e
mercados que concebem o crime organizado como algo fluido. Dentro dessa chave,
Tusikov propõe uma crítica dos modelos tradicionais do crime organizado e sugere um
modelo de hibridização composta por redes e padrões empresariais associados aos tipos
tradicionais de organizações.
No modelo híbrido proposto pela autora, as caracterizações não são mais orientadas
com base nas diferenças étnicas utilizadas para categorizar redes do crime organizado,
membros ou associados, ou como aquelas características frequentemente empregadas em
organizações hierárquicas como máfias e gangues. Etnia ou origens geográficas podem
contextualizar ou ser de alguma relevância para as unidades de informações criminais, no
319
entanto, as caraterizações desse tipo não oferecem muita profundidade analítica que
ultrapasse as citadas caraterísticas étnicas. Diferentemente, segundo Tusikov, o modelo de
rede representa melhor a natureza dinâmica do crime organizado e mostra como as
associações formadas por pessoas avulsas, e com papéis em outras empresas criminosas se
sobrepõem na estrutura tradicional. Esse modelo que exclui o perfil étnico das organizações
é o que mais se aproxima do paradigma percebido nos casos estudados uma vez que o perfil
étnico não se aplica.
Finalmente, para Tusikov, o crime organizado, não é hierárquico, ou seja, não é
regido por um sistema de regras e regulamentos explícitos e fixos. Ele se move de forma
fluida, extraindo de cada um dos modelos organizacionais considerados tradicionais o que
melhor lhe convém. Por isso, nessa lógica pragmática, o crime organizado é compreendido
como sendo constituído por múltiplas redes relativamente pequenas de criminosos
concorrentes que, eventualmente colaboram entre si de forma semelhante às empresas no
mercado legal.
Para melhor compreender essa discussão é apresentado na sequência um diagrama
desenvolvido pela autora canadense aonde o modelo híbrido é mostrado como um
subproduto das organizações em rede, combinando os modelos empresariais e de livremercado de produtos lícitos e ilícitos. Ele permite verificar aquilo que Ruggiero, Castels e
Portes vinham afirmando sobre a imbricação entre esse dois setores que deveriam ser
completamente diferentes, mas que, no universo criminal, não são. Conforme mostrei nos
capítulos anteriores e, sobretudo através dos exemplos dos casos analisados, o lícito e o
ilícito se confundem assim como os modelos empresariais e de mercado, dentro do modelo
de rede. Todavia, desejo ir além de Tusikov e mostrar que essa mistura pode ser ainda mais
rica, ao menos nos casos estudados.
320
FIGURA 40: Modelo híbrido de Tusikov:
Fonte: TUSIKOV, N. (2009).
A grande discussão canadense que impera entorno do modelo de organização
híbrida aponta que mercados lícitos e ilícitos concorrem e cooperam para formar um
ambiente operacional propício às organizações que neles operam, todavia, adotar esse
modelo não serve como padrão para o estabelecimento de leis e normas no combate ao
crime organizado uma vez que requer uma modificação na forma como o Direito enxerga e
classifica o fenômeno.
Apesar de ser este estudo o mais próximo daquilo que encontrei e que melhor
aborda a complexidade das organizações estudadas, esse é um diagrama que trata de
organizações em rede apenas. Esse modelo pode ser parcialmente verificado, mas não
explica ao conjunto das organizações criminosas estudadas, uma vez que tratam-se de
realidades mais complexas, nas quais o modelo híbrido não se restringe apenas às
organizações em redes uma vez que, como dito anteriormente, não foram encontrados tipos
organizacionais puros.
Nesse sentido, proponho uma nova leitura para aquilo que os estudos listados vem
chamando de híbrido. Trata-se de um modelo organizacional observado por pesquisadores
americanos, chineses e europeus em algumas organizações criminosas em seus países de
estudo. A definição de organização criminal hibrida utilizada é:
321
Estes são grupos criminosos que assumem a forma de hierarquias legítimas, tais
como empresas de negócios, organizações não-governamentais, e as burocracias
estatais (XIA, 2008, p. 14 – tradução da autora).
Essa definição permite observar que a rigidez das organizações de tipo mafioso
podem dar lugar à flexibilidade das redes quando necessário, dando espaço para a livre
concorrência em algumas etapas do processo.
Mastrofski e Potter (1987) e Halstead (1998) foram pioneiros nos estudos de
organizações criminais de tipo híbrido, tomando por base o cenário das organizações
criminosas estabelecidas no Canadá. Halstead (1998) afirma que a divisão histórica entre os
tipos de organização criminosa (a saber, “hierárquico” mafioso, “empresarial” em redes)
tem mudado de forma significativa e dado origem aos modelos híbridos.
O híbrido para Halstead combina elementos de rede e mercado corporativo e
representa uma mudança fundamental no enfoque dados às organizações criminosas: de um
lado, temos uma forma de se organizar focada nos modelos de rede e, de outro, uma forma
de se organizar focada nas operações que envolvem os mercados lícitos e ilícitos. Trata-se
de uma mudança significativa que impacta, inclusive na maneira como o crime organizado
é identificado e categorizado pela Justiça que ainda precisa adequar esse novo paradigma a
seus enquadramentos do que vem a ser o crime organizado.
Uma das transformações no estatuto organizacional dos grupos estudados por
Hastead modifica o traço étnico de algumas organizações do crime organizado – ele
observou no Canadá que a etnia não é mais entendida como o elemento-chave da
organização, em vez disso são retratadas uma dezena de pequenas redes flexíveis de
indivíduos de múltiplas origens que atuam em conjunto. Além disso, as organizações
criminosas compostas por redes não são exclusivamente formadas entorno do parentesco,
cultura ou origem geográfica, como outrora, os indivíduos que as compõem também
estabelecem vínculos através de experiências compartilhadas em bairros, escolas,
interações sociais, negócios ou de relações prisionais137.
A segunda mudança fundamental que o híbrido propõe está focalizada no ambiente
no qual o crime organizado se desenvolve: o mercado e os modelos empresariais orientam o
137
Para
conhecer
mais
sobre
o
assunto,
http://www.cisc.gc.ca/annual_reports/annual_report_2010/document/report_oc_2010_e.pdf
322
conferir
crime organizado na interdependência entre as economias lícitas e ilícitas e à mobilidade
dos atores dentro desses mercados. Como o modelo de rede, os modelos orientados ao
mercado funcionam como “empresas” e destacam sua natureza empresarial do livre
mercado de bens e serviços ilícitos entre os produtores e distribuidores do lado da oferta e,
dos consumidores, no lado da demanda (NAYLOR, 2003, p. 83). Essa é uma das razões
pela qual empresários criminosos não são considerados como “bandidos”, mas "parceiros
envolvidos em relações de simbiose" (MASTROFSKI e POTTER, 1987, p. 269) com os
agentes do crime e do Estado.
O híbrido na presente pesquisa
Constantemente observado nos casos investigados, o híbrido tem se mostrado como
uma solução bastante prática adotada quando seu líder deseja manter o centro de poder da
organização nas mãos de alguns poucos membros enquanto que em outras esferas admite a
“terceirização” de atividades criminosas, tais como os homicídios, lavagem de dinheiro,
etc.
Uma discussão com a bibliografia que localizou dois tipos ideais de organizações
criminosas, como hierarquias e redes permite perceber a diferença entre cada um desses
tipos tradicionais e em que nível de complexidade se situa o híbrido.
A intenção ao resgatar as características das tradicionais organizações mafiosas e
empresariais em rede – tratadas no princípio desta tese – é evidenciar os atributos mais
marcantes de cada um desses tipos organizacionais para então compará-los entre si e
procurar entender mais sobre a origem das características observadas no híbrido.
Todavia, apesar da revisão bibliográfica sobre o tema, as características do híbrido
ainda não foram propriamente referenciadas na literatura sob o estatuto de estruturas
organizacionais, sobretudo, no contexto criminoso. Às tentativas e estudos que procuraram
conceitualizá-la incluo os trabalhos de Xia (2008) e Williams (2001) que tratam da
necessidade de uma revisão na definição tradicional das organizações criminosas uma vez
que a forma por elas acionadas estão mudando. Essas duas visões bebem das assertivas
anteriormente expostas, mas são as que mais se aproximam da forma hibrida que desejo
aqui evidenciar.
323
Uma rápida análise dos trabalhos desses dois pesquisadores permite observar que a
atual complexidade do crime organizado extrapola os limites dos tipos ideais da
bibliografia internacional. Ambos tratam de mudanças nos paradigmas dos tipos puros: para
eles, não é possível falar sobre hierarquia ou sobre redes apenas, mas da mistura existente
entre essas duas esferas. No caso chinês, estudado por Xia, foi criada uma terceira forma
organizacional para dar conta do fenômeno do crime organizado: são os grupos híbridos
que se escondem sob a cobertura das hierarquias, associadas às organizações flexíveis,
como ONGs (organizações não governamentais). Williams, por sua vez, estudando o caso
colombiano acredita, assim como Kenney (2007), citado ao longo da revisão bibliográfica
realizada no capítulo II, que os cartéis vem se transformando em híbridos, aonde não
imperam mais as tradicionais estruturas hierárquicas nem as redes somente, mas a mistura
dessas duas esferas organizacionais.
Observando como se comportam esses três modelos organizacionais a partir das
citadas pesquisas, na Tabela 12 apresento algumas das características tradicionalmente
comentadas na literatura a respeito das organizações criminosas e exponho características
relevantes e perceptíveis a partir dos estudos sobre as organizações chamadas de híbridas. É
possível observar que o híbrido obedece a uma combinação de características das duas
outras formas de organização identificadas – hierarquia e redes.
TABELA 12: Estruturas Organizacionais Criminais: proposta do híbrido:
Divisão
papéis
e
Sistema
de
recrutamento
Regras e sigilo
Estrutura
Comunicação
Organização com
Estrutura
Hierárquica
Divisão do trabalho
e
especialização
(ZACCONE, 2008)
Meritocrático
(ARLACCHI, 1983)
Rígidas (CRETIN,
1998)
Vulnerável
Formal (CRETIN,
1998)
Organização em
Redes ou Horizontal
Organização com
Estrutura Híbrida
Papéis intercambiáveis
(VON LAMPE, 2005)
Divisão do trabalho e
papéis fixos
Baseado na natureza da
atividade, graus de
relacionamentos,
parentesco e contratos
(SCHIRAY, 2001).
Flexíveis e instáveis
(VON LAMPE, 2005)
Resistente
Direta (BRUINSMA e
BERNASCO, 2004)
Baseado na atividade
mas com promoção
meritocrática
para
alguns segmentos
Fonte: a autora.
324
Rígidas
Resistente
Direta
Essas características do híbrido não estão devidamente sistematizadas e bem
documentadas na literatura que trata do tema, bem como não foram abordadas pelos
pesquisadores brasileiros e muito menos discutida no campo da Sociologia no Brasil. A
Tabela acima é uma tentativa de sistematização das características identificadas nessa
forma organizacional.
Observando o panorama da novidade, acredito que a presente tese dialoga e ajuda a
pensar nas transformações pelas quais o crime organizado vem atravessando. É possível
conhecer pela revisão bibliográfica que o híbrido, tal como proponho que seja pensado a
partir dos casos estudados, foi identificado na China a partir da máfia e que no caso
canadense deriva das organizações criminosas em rede. Nos casos estudados, parece que o
fenômeno do híbrido não é um fato novo. Questiono se haveríamos passado pela “fase das
organizações hierárquicas” ou pela “fase das redes” ou se teríamos passado direto para o
híbrido, como um resultado do “jeitinho” (DA MATTA, 1980) que acabou por unificar
hierarquias e redes.
Nos casos estudados, o híbrido pode ser observado como o reflexo de uma aparente
mutação para a qual levantei três hipótese: 1) O híbrido pode ser encarado como um
“processo de evolução” das primitivas gangues para as máfias e cartéis.; 2) o híbrido é um
reflexo do “jeitinho brasileiro”, que combina diferentes referenciais interesses culturais,
econômicos, políticos, etc., em um único elemento complexo.; 3) o híbrido é um reflexo da
influência das tecnologias das informação e comunicação nas tradicionais relações, ditas
mafiosas. Acredito que essa terceira hipótese é a que melhor se aplica, uma vez que reflete
a importância das redes nas organizações e, sobretudo, acena e contempla a informatização
de certos mercados criminais que já são acionados nos mercados tradicionais, como a
lavagem de dinheiro, ou o uso dos celulares e das redes sociais no desenvolvimento e
ampliação do varejo e do narcotráfico.
Para exemplificar como esse modelo híbrido se aplicaria dentro dos casos
analisados no capítulo anterior, utilizo o exemplo do grupo encabeçado por Beira Mar,
apesar de muitas outras organizações estudadas apresentarem traços do hibrido. Na citada
organização estão envolvidos indivíduos provenientes de diferentes classes sociais e
origens geográficas. As tarefas desempenhadas pelo grupo envolvem a operação em
325
diversos mercados, como o tráfico de drogas, logística, lavagem de dinheiro, etc. Entre
aqueles que desempenham estas tarefas estão estabelecidos níveis diferentes de coesão e de
confiança, variando conforme os tipos de laços estabelecidos: se de parentesco, amizade ou
econômicos. Por exemplo, nas atividades de contabilidade são empregados familiares do
traficante, indicando a necessidade de laços sociais fortes no controle do dinheiro
“arrecadado”, como no caso da máfia ou dos cartéis. Uma das irmãs de Beira-Mar era
encarregada da negociação direta com os fornecedores paraguaios da droga; as ex-mulheres
e namoradas do citado traficante, nos momentos de fuga do mesmo, desempenhavam o
papel de “pombos correio”, levando e trazendo ordens sem serem notadas pela polícia. Na
organização deste grupo em especial, o grau de parentesco com o líder é revelador de uma
hierarquia bastante parecida com a adotada em organizações mafiosas, com os capos
ocupando os níveis mais altos.
Em níveis intermediários da organização, como na lavagem do dinheiro,
frequentemente realizada por doleiros e empresários, esses laços já não são mais tão fortes:
não são laços de sangue, mas de uma confiança mercantil, pois se trata de uma
confiabilidade baseada na “especialização” do trabalho desses indivíduos e na qualidade
com a qual o realizam. Eles tem autonomia para terceirizar e informatizar o trabalho, pois o
objetivo não é tornar conhecida a origem do dinheiro lavado, mas o contrário.
Quando se alcança os níveis mais baixos da organização, o princípio organizacional
é outro: com a adoção de um tipo de militarismo (representado por “generais” e “soldados
do tráfico” (DOWDNEY, 2003)). Além das atividades criminais como o tráfico de drogas,
venda de armas, etc., o grupo ainda promovia atividades de caridade na favela Beira Mar,
tais como a distribuição de cestas básicas, botijões de gás, remédios, etc138, que muito se
assemelham às práticas do cartel mexicano La Família, comentado anteriormente. Essa
mesma atitude era copiada por outros grupos criminosos que comandavam outras favelas,
como Marcinho VP na favela Dona Marta (BARCELLOS, 2010). A exemplo dos capos
mafiosos que chegavam inclusive a “governar” vilas inteiras no sul da Itália, instalando
infraestrutura mínima na região e dando trabalho aos camponeses locais, as atitudes de
Beira Mar se assemelham às velhas máfias. A diferença entre a forma de agir da
138
http://www.webartigos.com/artigos/gente-de-futuro-trabalho-etnografico/32302/
326
organização de Beira Mar e do mexicano La Família comparadas com as velhas máfias
italianas, é que nas duas primeiras não haviam traços de ambições e projeto político para
seus locais de atuação, ao contrário das velhas máfias que, com o tempo, se transformaram
e hoje atuam também no congresso italiano, tal como apontado no escândalo deflagrado por
Berlusconi no início dos anos 2000. Quanto a Beira Mar, resta a dúvida se quando de sua
detenção, seu império abalou-se ao ponto de impedir que esse passo pudesse ser dado.
Também agindo como as máfias, algumas relações de confiança são estabelecidas à
partir da lógica imposta pelo “terror” ou o “medo de morrer pelas mãos dos próprios
companheiros”. Essas relações são estabelecidas comumente na chave das atividades de
transporte e distribuição da droga para as bocas de fumo. No caso da organização de Beira
Mar são membros de uma mesma família que trabalham na atividade logística e que “se
ajudam” nos momentos críticos.
Estabelecendo um paralelo com o grupo salvadorenho Maras, estudado no capítulo
II, observo que nos níveis hierárquicos de organização, onde os mais altos postos são
reservados aos cargos e pessoas de confiança dos líderes, enquanto que, nos mais baixos
níveis se encontram as atividades realizadas por grupos oportunistas e que não
necessariamente são praticadas sempre pelos mesmos indivíduos, podendo se compor e
desfazer uma rede miliciana contratada para um determinado “serviço”. Na organização de
Beira Mar, os indivíduos que ocupam esses postos se sentem parte da organização e não
acreditam que componham uma organização associada – para eles, seus postos ainda estão
em outro nível e podem chegar a ocupar cargos mais altos no futuro139. Matam e morrem
pelo medo e pela crença na ascensão interna do grupo.
A novidade na documentação e análise da organização encabeçada por Beira-Mar e
demais investigadas pela CPI está na configuração adotada: enquanto que no topo da
organização é encontrado um modelo hierárquico, de tipo mafioso, com a participação da
família do traficante ocupando os cargos de confiança; na base da organização agem os
“soldados do tráfico”, adotando uma estrutura militar. Entre essas duas formas de
organização situam-se as redes, formadas por doleiros, advogados, empresários, políticos,
que “lavam” o dinheiro e dão à esta organização um caráter empresarial.
139
Vide FIGURA 1 na seção “Gangues”, capítulo II.
327
Dentre os casos examinados, os que mais se aproximariam das formas canônicas
puras (como hierarquias e redes) são os casos encabeçados por Hildebrando Pascoal e
William Sozza, ambos constituiriam fortes exemplos de organizações que apresentam
estruturas hierárquicas e organização em rede respectivamente. Todavia, ainda assim
apresentam traços de formas organizacionais diferenciadas, tanto que não foi encontrada
uma única organização que apresentasse uma única forma somente.
Dentre as organizações estudadas, a complexidade mostrou que as mesmas vinham
adotando características do tipo híbrido. Por exemplo: a organização de Hildebrando,
apesar de ser considerada como hierarquizada, com divisão de trabalho e especialização,
meritocracia, regras rígidas, comunicação formal e estrutura invulnerável, ainda assim,
apresentou pontos de rede nos quais uma pequena organização (ou cluster) surgia como um
ramo dentro da organização mestra - é o caso do cluster surgido entorno de Alex, braço
direito de Hildebrando, que coordenava uma rede de homicidas e traficantes e já
despontava como possível sucessor140.
O mesmo pôde ser notado no caso São Paulo: apresentou-se como uma organização
em rede, com papéis intercambiáveis, com sistema de recrutamento baseado na natureza da
atividade desenvolvida, estrutura resistente e comunicação direta. Apesar disso, apresenta
estrutura rígida, situada entorno de Sozza. Não há um intercâmbio de atividades e nem de
comando. Seu líder é único e insubstituível, tanto que, quando Sozza foi preso, acabaram as
notícias versando sobre as atividades de sua organização.
Esse modelo de organização chamado de híbrido é um exemplo de terceira via nos
padrões de organização adotados, como mostrado nos estudos sobre o México, Colômbia,
China e Canadá. Como levantei nas hipóteses explicativas para o mesmo, pode: 1) tratar-se
de um padrão provisório utilizado até que se possa estabelecer como um modelo de
organização formal de tipo mafioso ou cartel, tal como acontece com a La Familia que
caminha para sua terceira fase de organização e mesmo assim não se fixou em um modelo
organizacional específico141; 2) pode ser um resultado do “jeitinho brasileiro” que tende a
140
Entretanto, Alex foi preso junto com Hildebrando e seu bando.
Entrei em contato via correio eletrônico com alguns estudiosos internacionais dos fenômenos dos cartéis,
maras e máfias e destes, alguns concordaram comigo que os padrões organizacionais estão mudando,
caminhando para algo intermediário entre os tipos canônicos e outros.
141
328
somar diferentes formas; ou mesmo 3) pode ser resultado do impacto das TIC’s. Todavia,
recomendo que estudos direcionados sejam realizados na busca pelas respostas ao
desenvolvimento dessas diferentes formas acionadas.
Não se trata apenas de definir um modelo organizacional presente nos casos
estudados, mas de demonstrar como a complexidade dessas organizações impede que se
chegue a uma abstração como um “tipo puro”. Dentre as abstrações possíveis, talvez o
híbrido seja o mais adequado para explicar os casos estudados, mas muitas análises ainda
serão necessárias até que se chegue a um modelo explicativo sobre a forma adotada pelo
crime organizado no Brasil.
***
A motivação inicial deste estudo foi a de que o Relatório da CPI do Narcotráfico
poderia revelar traços interessantes, até então desconhecidos, acerca do universo do crime
organizado no Brasil. Com isso, espero estimular outras pesquisas que desejem abordar
esse mesmo tema e/ou fontes de dados do mesmo caráter utilizando inclusive os mesmos
métodos aqui sugeridos. Portanto, optei por um percurso de pesquisa totalmente
exploratório e indutivo que poderia mostrar novidades em relação ao objeto e material
analisados.
Para realizar esse percurso, construí uma metodologia considerada inovadora não só
pelo uso de softwares enquanto ferramentas analíticas que, associadas, ajudaram a pensar o
crime organizado por seus diferentes interstícios, como também, pude combinar o uso de
Grounded Theory às análises de redes sociais gerando grafos e organogramas que ajudaram
a pensar acerca das formas do crime organizado presentes nos casos estudados. Tais
práticas mostraram-se frutíferas por permitirem apontar inúmeras possibilidades
combinatórias que existem entre diferentes métodos de pesquisa e ferramentas analíticas –
muitas vezes importadas de outros campos da ciência como é o caso da análise de redes – e
que são negligenciadas em Ciências Sociais e também por possibilitarem um maior rigor e
controle sobre os vieses que uma fonte de dados, como é o caso do documento político
produzido pela CPI do Narcotráfico, poderia apresentar.
329
Optei por esse caminho metodológico por constatar a existência de uma variedade
de temas e possibilidades que o Relatório da CPI do Narcotráfico oferecia para estudar os
diferentes mercados criminais e não apenas o tráfico de drogas. Por esta razão, ao longo da
presente tese procurei mostrar como uma série de mercados ilegais que se entrecruzavam,
culminavam no crime organizado. Além do mais, o percurso adotado permitiu-me observar
os casos e explorá-los, indo além dos paradigmas já estabelecidos em renomados estudos
sobre o citado tema e, possibilitando-me pensá-lo a partir das características registradas nos
casos escolhidos para análise. Deixo esse percurso metodológico como sugestão para
pesquisas futuras que requeiram uma verificação mais acurada em relação às fontes de
dados acionadas, sobretudo àquelas que se utilizem se documentos políticos, como é o caso
das CPIs.
Uma vez realizada a primeira imersão na fonte de dados, tomei como informação
primária o fato de que dentre os casos estudados, existem organizações que podem ser
consideradas como crime organizado. E, analisando em profundidade esses casos a partir da
ótica da Sociologia formal simmeliana, procurei alcançar meu objetivo central de pesquisa
que era mostrar que o crime organizado presente nesses casos apresenta particularidades
que o tornam sui generis e de difícil identificação imediata, cujas propriedades devem ser
conhecidas para efetivo controle e combate.
Ao contrário do que os modelos canônicos revisados (máfia, cartel, gangues)
apontaram, os dados recolhidos mostraram traços singulares que, tanto os aproximou, como
os afastou desses modelos.
Através dos casos estudados procurei mostrar que as organizações criminosas
investigadas pela CPI apresentam uma complexidade pautada por contextos, indivíduos
envolvidos, mercados acionados e conteúdos diversos que diferem das características
presentes nos tradicionais estudos que tratam do crime organizado. Uma hipótese
explicativa para essa divisão de mercados, foi levantada quando analisei indivíduos e
mercados (capítulo VII), dando origem ao binômio “especialistas e oportunistas” que
ajudou a entender tanto a divisão do trabalho dentro das organizações, como a divisão dos
mercados criminais.
330
De maneira geral, os casos estudados mostraram que o crime organizado apresenta
algumas características que permitem situá-lo entre os crimes transnacionais estudados pela
ONU e os relatos das “mulas”142, pois são organizações que: 1) fazem uso da violência
quando necessário para controle do território de ação, pra punir traidores e estabelecer o
controle do grupo; 2) acionam aparelhos e agentes do Estado quando necessário, ou muitas
vezes, são os próprios agentes, como políticos, policiais e juízes, os responsáveis por
encabeçar os esquemas; 3) apresentam uma clara e bem definida divisão do trabalho; 4)
acionam mercados lícitos para lavagem de dinheiro e camuflar atividades ilícitas, a ponto
de confundir os primeiros com os mercados ilícitos; 5) se especializam em algumas
atividades através de “empresas criminais”, ou seja, são organizações criminosas que,
envolvidas com empresários, adotaram mecanismos e ferramentas provenientes de
organizações legais.
Minha conclusão principal foi de que não é possível afirmar que o Brasil apresenta
uma forma específica de crime organizado que o identificaria com precisão, uma vez que a
presente pesquisa utilizou uma fonte de dados datada e reduzida. Entretanto, esses mesmos
dados possibilitaram construir uma pesquisa pioneira na abordagem do tema das formas de
organização criminosas a partir de uma série de casos específicos. Essa imprecisão acerca
das formas presentes nos casos estudados, apontou para a existência de uma forma de
organização criminosa, até então inédita na literatura brasileira que se qualifica justamente
pela inexatidão das formas a partir das quais é composta.
Nessa investigação, o híbrido foi a forma explicativa encontrada para tratar dos
casos estudados e que pode ser considerada como uma provável tipologia organizacional a
se posicionar ao lado das hierarquias e redes. Como mostrado, ela já vem sendo encarada
como uma terceira via por outros pesquisadores em diferentes países, e que pode dar conta
da nossa realidade criminal, se testado em outros contextos e com outras organizações.
Finalmente, as formas adotadas pelas organizações têm sido negligenciadas pela
Academia, é preciso olhar com mais atenção para elas pois apontam para mudanças em sua
dinâmica, seja através da sofisticação dos crimes cometidos; de uma possível
descriminalização de alguns mercados acionados, como o tráfico de drogas; do crescente
142
Indivíduos detidos nos aeroportos trazendo drogas em suas malas e até em seu estômago.
331
envolvimento de políticos e pessoas públicas com o crime organizado; através das
pacificações em UPPs cariocas ou da constituição de um “partido” criminoso, a exemplo do
PCC. É preciso atentar para as formas adotadas, pois elas falam sobre a maneira pela qual
as organizações se estabelecem e dão pistas de como combatê-las. Acredito que nessa trilha
será possível encontrar percursos frutíferos para pesquisas futuras.
332
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354
APENDICE 1
Pertences de Beira Mar – Dados extraídos da CPI do Narcotráfico, ressistematizados.
15 EMPRESAS
1. Imóvel situado na rua Joaquim da Rosa Pinheiro, lote 03, Conselheiro Paulino, Nova
Friburgo – RJ – FRICARGO CARGA AÉREA LTDA;
2. Imóvel situado na rua Missionário Christie, nº 152, Quissamã, Petrópolis – RJ – MSJ
VÍDEO LOCADORA;
3. Imóvel situado na Avenida Cruz das Armas, nº 1773, João Pessoa - PB PANIFICADORA FRIPÃO;
4. Imóvel situado na rua Carolino Cardoso, nº 361, Praia do Poço, Cabedelo - PB -TREVO
COMERCIAL DE MATERIAL DE CONSTRUÇÃO LTDA;.
5. Imóvel situado na Rodovia Washington Luís, nº 1680, bairro Beira-Mar, Duque de
Caxias – RJ – MOTEL SKY ;
6. Imóvel situado na rua da Assembleia, nº 08, bairro Beira-Mar, Duque de Caxias – RJ –
PADARIA DOIS IRMÃOS LTDA;
7. Imóvel situado na rua da Assembleia, nº 12, bairro Beira-Mar, Duque de Caxias – RJ –
FÁBRICA DE GELO BIPOLAR;
8. Imóvel situado na rua da Assembleia, nº 10, bairro Beira-Mar, Duque de Caxias – RJ –
“FORROGODE DA MADÁ”;
9. Imóvel situado na rua Paranaguá, nº 223, Guaraituba, Colombo - PR - ARN MATERIAL
DE CONSTRUÇÃO LTDA;
10. Imóvel situado na Avenida Brigadeiro Lima e Silva, nº 1245, Bairro XXV de Agosto,
Duque de Caxias – RJ – D’MENOR CONFECÇÕES LTDA;
11. Imóvel situado na Rua Edu Rocha, nº 256, Bairro Aeroporto, Corumbá - MS – HWS
ROCHA TURISMO LTDA;
12. Imóvel situado na Rua Edu Rocha nº 776, Corumbá – MS – ATACADO CUIABÁ;
13. Imóvel situado na Avenida Marechal Fontenelle, nº 4381, Realengo - RJ – LOJA DE
AUTOMÓVEIS;
355
14. Imóvel situado na Estrada do Cacuia, nº 347, Ilha do Governador - RJ – EDJAN DA
ILHA MODAS LTDA
15. Imóvel situado na rua da Assembleia, nº 30, Bairro Beira-Mar, Duque de Caxias – RJ –
G.H. DISTRIBUIDORA DE GELO.
34 IMÓVEIS E TERRENOS
1. Imóvel residencial situado na Alameda Antônio Carlos, nº 103, Parque Beira- Mar,
Duque de Caxias, RJ;
2. Imóvel residencial situado na Rua Dídimo da Veiga, nº 418, Parque Beira-Mar, Duque
de Caxias, RJ;
3. Imóvel residencial situado na Travessa Pereira Passos, nº 123, Bairro Beira-Mar, Duque
de Caxias, RJ;
4. Imóvel residencial situado na Travessa Pereira Passos, nº 01, Bairro Beira-Mar, Duque
de Caxias, RJ;
5. Imóvel residencial situado na Travessa Pereira Passos, quadra 10, casa 10, Bairro BeiraMar, Duque de Caxias, RJ;
6. Imóvel residencial situado na Travessa Pereira Passos, nº 05 – A, Bairro Beira-Mar,
Duque de Caxias, RJ;
7. Imóvel residencial situado na Rua Cardeal Arcoverde, nº 16, Bairro Beira-Mar, Duque
de Caxias, RJ;
8. Imóvel residencial situado na Rua Marechal Bento Manoel, nº 58, Vila Operária, Duque
de Caxias, RJ;
9. Imóvel residencial situado na Rua Oreste Rosólia, nº 230 – fundos, Jardim Guanabara,
Ilha do Governador, RJ;
10. Imóvel residencial situado na Rua Carmem Miranda, nº 419, apto. 302, Jardim
Guanabara, Ilha do Governador, RJ;
11. Lote de terreno situado na rua E, lote 09, quadra 06, Freguesia, Jacarepaguá, RJ;
12. Imóvel situado na Rua Monte Castelo, nº 36, Jardim Gramacho, Duque de Caxias, RJ;
13. Imóvel residencial situado na Rua Três de Maio, nº 08, João Pessoa, PB;
356
14. Imóvel residencial situado na Rua Presidente José Linhares, nº 49, Loteamento Jardim
Américo, Bairro Bessa, João Pessoa, PB;
15. Lote de terreno situado na Rua Presidente José Linhares, lote nº 32, quadra nº 25,
Loteamento Jardim América, Bairro do Bessa, João Pessoa, PB;
16. Lote de terreno nº 17, quadra C, Loteamento Alphaville Parc, Praia de Campina,
Cabedelo, PB;
17. Imóvel residencial situado na Avenida Cruz das Armas, nº 1773, João Pessoa, PB;
18. Imóvel residencial situado na Rua João Suassuna, nº 183, Bairro Mari, João Pessoa, PB;
19. Imóvel residencial situado na Rua João Suassuna, nº 189, Bairro Mari, João Pessoa, PB;
20. Imóvel residencial situado na Rua João Suassuna, nº 201, Bairro Mari, João Pessoa, PB;
21. Imóvel residencial situado na Rua Francisco Guedes de Vasconcelos, s/nº, João Pessoa,
PB;
22. Imóvel residencial situado na Rua Francisco Guedes de Vasconcelos, nº 222, João
Pessoa, PB;
23. Imóvel residencial situado na Rua Francisco Guedes de Vasconcelos, nº 224, João
Pessoa, PB;
24. Imóvel residencial situado na Rua Francisco Guedes de Vasconcelos, nº 228, João
Pessoa, PB;
25. Imóvel residencial situado na Rua Floseolo da Nóbrega, nº 38, Funcionário I, João
Pessoa, PB;
26. Imóvel residencial situado na Rua B, quadra 09, casa 17, Vila Rica, Itaipava, RJ;
27. Imóvel residencial situado na Rua Jorge Justen, nº 232, aptº 308-6, Bingen, Petrópolis,
RJ;
28. Imóvel residencial situado na Travessa nº 04, quadra 04, nº 14, Vila Rica, Petrópolis,
RJ;
29. Imóvel residencial situado em Riograndina (Sítio Funil), 2ºDistrito de Nova Friburgo,
RJ;
30. Imóvel residencial situado na Estrada Fazenda da Laje, nº 13, Nova Friburgo, RJ;
31. Imóvel residencial situado na rua Jardim Botânico, nº 444, apto. 201, Jardim Botânico,
RJ;
357
32. Imóvel residencial situado na rua Jornalista Henrique Cordeiro, 160, apto. 207, Barra da
Tijuca, RJ;
33. Imóvel residencial situado na rua Portão Vermelho, nº 60, apto. 103, Bento Ribeiro, RJ;
34. Lote de terreno situado na rua Comendador Siqueira, lote 16, quadra “B”, Pechincha,
Jacarepaguá, RJ;
36 CONTAS CORRENTES E POUPANÇAS
1. Conta poupança de nº 1703983-6, da agência nº 1334 (Duque de Caxias), Caixa
Econômica Federal, em nome de Zelina Laurentina da Costa;
2. Conta corrente de nº 44960-7, da agência nº 0410 (Rio de Janeiro), Banco Itaú, em nome
de Alessandra da Costa;
3. Conta corrente de nº 57555-5, da agência nº 0372, Banco Itaú, em nome de Alessandra
da Costa;
4. Conta corrente de nº 749689-6, da agência nº 019, Unibanco, em nome de Jaqueline
Alcântara de Moraes;
5. Conta corrente de nº 127689-8, da agência nº 161, Unibanco, em nome de Elizete da
Silva Lira;
6. Conta poupança de nº 5237 2301 1000 0165, da agência Praia Tambaú (João Pessoa),
Banco Bradesco, em nome de Damiana Araújo de Medeiros;
7. Conta poupança de nº 87537-6, da agência 435-9, Banco Bradesco, em nome de Jean
Júnior da Costa Oliveira;
8. Conta corrente de nº 42662-1, da agência 0410 (Rio de Janeiro), Banco Itaú, em nome de
Alexsandro Cardoso dos Santos;
9. Conta corrente de nº 7705687-1, da agência 0386, Banco Real, em nome de Hermênio
Arantes da Cunha;
10. Conta corrente de nº 1160414, da agência 0246, Unibanco, em nome de Omar Ayoub;
11. Conta corrente de nº 4176-9, da agência 2275-6, Banco do Brasil, em nome de Marlete
G. da Silva;
12. Conta corrente de nº 12163-9, da agência 3510, Banco Banerj, em nome de Marinalva
Monteiro Carneiro;
358
13. Conta corrente de nº 001.002371-3, da agência 230, Banco Bandeirantes, em nome de
Marcos José Monteiro Carneiro;
14. Conta corrente de nº 001.517408-4, da agência 120, Banco Bandeirantes, em nome de
Marcos José Monteiro Carneiro;
15. Conta corrente de nº 46088-3, da agência 0222, Banco Itaú, em nome de Marinilson
Carneiro da Silva;
16. Conta corrente de nº 7821059-1, da agência 0515-0, Banco Bradesco, em nome de
Maria da Conceição Silva;
17. Conta corrente de nº 12931-3, da agência 0435-9, Banco Bradesco, em nome de João
Monteiro Gonçalves;
18. Conta corrente na agência 3159-3 ( Itaipava ), Banco do Brasil, em nome de Shirley de
Figueiredo Ângelo;
19. Conta corrente de nº 1676-4, da agência 3932-2, Banco do Brasil, em nome de Rosa
Maria Dias Rocha;
20. Conta corrente de nº 33816-8, da agência 0188-0, Banco Bradesco, em nome de Khaled
Nawaf Aragi;
21. Conta corrente de nº 709390-4, da agência 0109-1, Banco Real, em nome de Omar
Ayoub;
22. Conta corrente de nº 29832-8, da agência 0014, Banco do Brasil, em nome de Younnes
Houssain Ismail;
23. Conta corrente de nº 65266-4, da agência 0249-6, Banco do Brasil, em nome de Sueli
Campos de Oliveira;
24. Conta poupança de nº 5973656-6, da agência 0401, Banco Bradesco, em nome de
Shirley de Figueiredo Ângelo;
25. Conta poupança de nº 6678098-8, da agência 0540-1, Banco Bradesco, em nome de
Maicon Ângelo Monteiro Carneiro;
26. Conta poupança de nº 6680431-3, da agência 0540-1, Banco Bradesco, em nome de
Jéssica A Monteiro Carneiro;
27. Conta poupança de nº 6671411, da agência 0540-1, Banco Bradesco, em nome de
Shirley de Figueiredo Ângelo;
359
28. Conta poupança de nº 012353-0, da agência 230, Banco Bandeirantes, em nome de
Shirley de Figueiredo Ângelo;
29. Conta poupança de nº 300061-5, da agência 0530, Unibanco, em nome de Israel dos
Santos;
30. Conta corrente de nº 45065-4, da agência 0410 (Rio de Janeiro), Banco Itaú, em nome
de Fábrica de Gelo Bipolar Ltda.;
31. Conta corrente de nº 45998-4, da agência 0222, Banco Itaú, em nome de Fricargo Carga
Aérea Ltda.;
32. Conta corrente de nº 57867-7, da agência 0122, Banco Itaú, em nome de MSJ Vídeo
Locadora;
33. Conta corrente de nº 3191-7, da agência 1681-0, Banco do Brasil, em nome de Trevo
Comercial de Material de Construção Ltda.;
34. Conta corrente de nº 8602-9, da agência 0014, Banco do Brasil, em nome de Saab e
Saab Ltda.;
35. Conta corrente de nº 22444-8, da agência 0078-7, Banco do Brasil, em nome de
Cooperativa de Crédito Rural;
36. Conta corrente de nº 7079-3, da agência 0014-0, Banco do Brasil, em nome de HWS
Rocha;
12 VEÍCULOS
1. veículo FIAT UNO, ano 95, cor preta, placa LAE 0076, RJ;
2. veiculo GM/CORSA, ano 96, cor azul, placa GEQ 0007, PB;
3. veiculo VW/GOL, ano 96, cor branca, placa KRB 4142, PB;
4. veículo FIAT UNO, ano 96, placa KUE 6549, RJ;
5. veículo VW/GOL, ano 99, cor verde, placa KQL 3705, RJ;
6. veículo GM/KADETT, cor preta, placa LAK 0725, RJ;
7. veículo Veraneio, cor azul, placa KQD 1219, RJ;
8. veículo VW/KOMBI, ano 99, placa LCU 5740, RJ;
9. veículo GM/MONZA, ano 89, cor azul, placa LHD 6666, RJ;
10. veículo FIAT TIPO, ano 94, cor azul, placa LAE 7719, RJ;
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11. veiculo VW/POINTER, ano 95, cor cinza, placa LBD 0926, RJ;
12. veículo VW/SAVEIRO, ano 92, cor bege, placa LIX 6794.
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