Anthony Kenny
A Metafísica da Mente
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Capítulo 1
O Mito de Descartes
O dualismo é a idéia que há dois mundos. Há o mundo físico que contém matéria e energia e
todos os conteúdos tangíveis do universo incluindo os corpos humanos. Além dele, há outro mundo
psíquico: de eventos mentais e estados relacionados a um mundo privado que é inacessível à
observação pública. De acordo com o dualismo, os dois domínios distintos das realidades mental e
física interagem de uma maneira misteriosa que transcende as regras normais da causalidade e da
evidência.
A mais marcante apresentação moderna do dualismo foi a filosofia de Descartes, no século XVII.
Descartes foi um gênio de extraordinário poder. Suas idéias principais podem ser tão concisamente
expressadas que poderiam ser escritas no verso de um cartão postal; e ainda assim elas foram tão
profundamente revolucionárias que alteraram o curso da filosofia por séculos.
Se você quisesse colocar as principais idéias de Descartes no verso de um cartão postal,
precisaria somente de duas sentenças: “O homem é uma mente pensante”; e “A matéria é extensão e
movimento”. Qualquer coisa, no sistema de Descartes, é explicada nos termos deste dualismo da
mente e da matéria. Assim, realmente devemos a Descartes o fato que imaginamos a mente e a
matéria como duas grandes divisões do universo que habitamos, mutuamente exclusivas e
exaustivas.
Para Descartes o essencial para os seres humanos é que são substâncias pensantes. A essência
humana como um todo é a mente: na vida efetiva nossas mentes são intimamente unidas com nossos
corpos, mas não são nossos corpos que fazem aquilo que realmente somos. Ao invés, a vida é
possível quando permanecemos essencialmente nós mesmos, sem ter qualquer corpo para isto. A
essência da mente é a consciência: ter ciência de nossos próprios pensamentos e de seus objetos. O
homem é o único habitante consciente do mundo físico: os outros animais, conforme Descartes, são
meramente máquinas complicadas mas inconscientes.
Ainda para Descartes, a matéria é extensão em movimento. Por extensão entende-se aquilo que
tem propriedades geométricas de forma, tamanho, divisibilidade, etc. Estas são as únicas
propriedades a ser atribuídas em nível fundamental à matéria. Descartes oferece uma explicação
para todos os fenômenos de calor, luz, cor e som em termos de movimento de pequenas partículas
de diferentes tamanhos e formas. Ele foi um dos primeiros expoentes sistemáticos da idéia da
moderna ciência ocidental, como uma combinação de procedimentos matemáticos e métodos
experimentais.
Os dois grandes princípios da filosofia cartesiana eram - sabemos agora - falsos. Ainda durante
sua própria vida, foram descobertos fenômenos dos quais não se podia dar uma explicação direta e
honesta em termos de matéria e movimento. A circulação sangüínea e a ação do coração, como foi
descoberto pelo médico inglês William Harvey, exigia o recurso à forças para as quais não havia
lugar no sistema de Descartes. Apesar disso, sua concepção científica da origem e natureza do
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Kenny, Anthony. The Metaphysics of Mind. Oxford University Press, Oxford, 1992. Tradução de Ronai Rocha, para fins didáticos. Versão preliminar.
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mundo esteve em moda um século ou mais após sua morte, e sua concepção dos animais como
máquinas foi mais tarde estendida por alguns de seus discípulos que sustentavam, para escândalo de
seus contemporâneos, que os seres humanos eram também somente máquinas complicadas.
A visão de Descartes sobre a natureza da mente resistiu mais que sua visão da matéria; realmente,
entre as pessoas educadas do mundo ocidental que não são filósofos profissionais, ela é ainda a mais
difundida visão da mente. A maioria dos filósofos contemporâneos negaria a validade do dualismo
cartesiano, mas mesmo aqueles que explicitamente renunciam a ele são, muitas vezes,
profundamente influenciados por ele.
Muitas pessoas, por exemplo, seguem Descartes, identificando o âmbito mental com o domínio
da consciência. Eles imaginam a consciência como um objeto de introspeção; como alguma coisa
que podemos ver internamente quando olhamos para nós mesmos. Eles entendem que a conexão da
consciência com sua expressão na linguagem e no comportamento se trata de um fato contingente,
não essencial. A consciência, como eles a concebem, é algo a que cada um de nós tem acesso direto
em seu próprio caso. Os outros, em contraste, podem somente inferir nossos estados de consciência
pelo reconhecimento de nosso testemunho ou fazendo inferências causais a partir de nossos
comportamentos físicos.
Como uma reação extrema às idéias cartesianas surgiu, no presente século, uma escola de
comportamentalistas que negam completamente a existência do âmbito mental. Os
comportamentalistas sustentam que quando atribuímos estados ou eventos mentais às pessoas,
estamos, na verdade, fazendo rodeios em torno de seus comportamentos corporais efetivos ou
hipotéticos. Uma versão crua do comportamentalismo foi, por muito tempo, muito difundida entre
os psicólogos. Versões mais sutis do comportamentalismo têm sido também acolhidas por filósofos.
O comportamentalismo tentou reduzir itens mentais tais como a crença e o desejo a disposições
físicas para movimentos corporais. Foram feitas tentativas cuidadosas, por exemplo, para apresentar
as crenças como uma disposição corporal: como uma tendência, pode-se dizer, de se fazer, em certas
circunstâncias, certos sons ou marcas no papel. Uma dificuldade que se apresenta para a defesa de
tais tentativas é que os movimentos corporais da mandíbula e língua, digamos, que expressam uma
crença alemã que o mundo é redondo são muito diferentes dos movimentos corporais pelos quais um
francês expressa a mesma crença. É portanto duvidoso se a crença que o mundo é redondo pode ser
analisada como uma tendência para se fazer movimentos corporais. Se procuramos identificar a
classe relevante dos movimentos corporais como aquelas que têm significados equivalentes, isto nos
levaria à conclusão que a noção de significado não apresenta menor dificuldade para a análise do
comportamento do que acontece com a noção de crença.
Tanto o dualismo quanto o comportamentalismo tentam criar dúvidas sobre coisas que todos
sabemos ser verdadeiras. Os comportamentalistas colocam em dúvida aquilo que conhecemos
muito bem sobre nossas próprias mentes, enquanto que os dualistas colocam em dúvida coisas que
conhecemos muito bem sobre as mentes de outras pessoas.
Em sua forma mais radical o comportamentalismo tenta dizer-me que não há nenhum
pensamento ou sentimento que eu possa manter para mim mesmo e não exibi-los de alguma forma
pública; e isto eu sei que é falso. Em última instância, o comportamentalismo tenta dizer-me que a
minha consciência de todos os meus pensamentos e sentimentos é uma conclusão indireta a partir de
hipóteses sobre meu comportamento público em várias circunstâncias e isto é obviamente um
absurdo.
O dualismo, por outro lado, conduz ao ceticismo sobre outras mentes e põe em dúvida a
consciência de pessoas outras que não a própria. Quando olho para mim mesmo, na concepção
cartesiana, eu vejo a consciência. Mas não é irresponsável generalizar do meu próprio caso para
aquele dos outros? Eu não posso olhar no interior dos outros: é da essência da introspeção que ela
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deveria ser algo que todo mundo deve fazer por si mesmo. Posso fazer uma dedução causal a partir
do comportamento de outras pessoas? Não, pois não posso começar a estabelecer uma correlação
entre a consciência de outras pessoas e seu comportamento quando o primeiro termo da correlação é,
em princípio, não observável. Claro, posso pensar que observo a correlação em meu próprio caso,
mas é precisamente esta correlação que parece imprudente de ser generalizada. Nessa concepção,
observo comportamento e mais a consciência em mim mesmo, mas meramente o comportamento
nos outros. A amostra é ridiculamente pequena para permitir alguma extrapolação.
Felizmente o dualismo e o comportamentalismo não extinguiram as alternativas abertas para o
estudante da filosofia da mente. O mais significativo filósofo da mente do século XX foi Ludwig
Wittgenstein, e Wittgenstein pensou que ambos, o dualismo e o comportamentalismo eram vítimas
de confusão. A concepção própria de Wittgenstein foi uma posição intermediária entre o dualismo e
o comportamentalismo. Ele acreditava que os eventos mentais não eram nem redutíveis às suas
expressões corporais (como os comportamentalistas tinham argumentado) nem eram totalmente
separados deles (como os dualistas tinham concluído). Ele argumentava que mesmo quando
pensamos nossos pensamentos mais privados e espirituais, fazemos isso através da linguagem que é
essencialmente unida a sua expressão pública e corporal. Ao contrário dos comportamentalistas,
Wittgenstein não negava a possibilidade de pensamentos secretos e espirituais; mas, por outro lado,
ele demonstrava a incoerência da dicotomia cartesiana da mente e corpo.
De acordo com Wittgenstein, a conexão entre os processos mentais e as suas manifestações no
comportamento não é uma conexão causal a ser descoberta, como outras conexões causais, mas uma
concomitância regular entre esses dois tipos de eventos. Para usar o termo técnico de Wittgenstein, a
expressão física do processo mental é um critério para esse processo: o que vale dizer, é parte
integrante do conceito de um processo mental de um tipo particular que ele tenha uma manifestação
característica. Para entender o significado efetivo de palavras tais como dor e tristeza, precisamos
saber que dor e tristeza estão caracteristicamente ligadas a expressões corporais particulares. Para se
compreender a noção de algum estado mental particular temos que compreender quais os tipos de
comportamento que contam como evidência para a sua ocorrência. Nesses casos, a relação entre a
evidência comportamental e o estado mental não é algo indutivo. Isso significa que ela não é um
tipo de conexão estabelecida por observação da co-ocorrência de dois conjuntos de eventos
identificáveis independentemente.
Wittgenstein argumentava que precisamos distinguir entre dois tipos de evidências que podemos
ter para a ocorrência de estados de coisas: precisamos distinguir entre critério e sintoma. Onde a
conexão entre um certo tipo de evidência e a conclusão tirada a partir disso é uma questão de
descoberta empírica, através de teoria e indução, a evidência pode ser chamada de um sintoma do
estado de coisas. Onde a relação entre evidência e conclusão não é algo descoberto pela investigação
empírica, mas algo que precisa ser apanhado (grasped) por qualquer um que possua o conceito
relevante da coisa, então a evidência não é um mero sintoma mas é um critério do estado de coisas
em questão. Um céu vermelho à noite pode ser sintoma de bom tempo no dia seguinte; mas a
ausência de nuvens, o brilho do sol, etc., amanhã, não são apenas os sintomas, mas o critério para
um tempo bom.
Usando essa distinção podemos dizer que certos estados ou eventos no cérebro podem ser
sintomas de certos estados mentais, mas não podem ser critérios para eles, na medida que um
comportamento apropriado seria. Por isto, às vezes, certos padrões elétricos cerebrais podem ser ou
podem algum dia vir a ser sintomas da aquisição de conhecimento de inglês por pessoas cujo
cérebro está em questão. Mas a prontidão da pessoa para usar o inglês não é justamente um sintoma,
mas sim um critério para o seu conhecimento de inglês.
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Os filósofos da mente estão interessados na análise da relação entre mente e comportamento.
Quando compreendemos, respondemos e avaliamos as ações de cada um de nós, fazemos uso
constante de conceitos mentalísticos. Baseados naquilo que as pessoas fazem, e para que aquilo que
elas fazem faça sentido para nós, atribuímos a elas certos desejos e crenças. Nós atribuímos suas
ações à escolhas e evocamos, para explicar suas condutas, várias intenções, motivos e razões. Esses
conceitos mentais, tais como desejo, crença, intenção, motivo e razão, são o assunto da filosofia da
mente. Na ação humana nós procuramos por um elemento mental; na filosofia da ação humana, nós
estudamos a relação entre o elemento mental e o comportamento observável (overt).
Conceitos mentalísticos não podem ser entendidos independentemente de suas funções no
explicar e tornar inteligível o comportamento dos agentes humanos. Mas isto precisa ser bem
compreendido. Quando explicamos as ações em termos de desejos e crenças, não estamos utilizando
qualquer teoria explicativa para dar conta da ação. Apesar de atribuírmos processos e estados
mentais a pessoas baseados em seus comportamentos públicos, seria errado sugerir que começamos
com o conhecimento direto dos movimentos físicos dos corpos das pessoas e então imaginamos
hipóteses sobre as causas mentais ocultas determinantes que subjazem a esses movimentos.
É verdade que desejos e crenças explicam a ação; mas a explicação não é de tipo causal e
hipotético. Não é como se as ações dos seres humanos constituíssem um conjunto de dados básicos
(raw data) - movimentos físicos identificáveis a partir de si mesmos como os tipos de ações que eles
são - para qual então procuramos uma hipótese explicativa. Muitas vezes achamos mais fácil dar
uma descrição mentalística do comportamento das pessoas (“ele estava tentando abrir a porta”, “ele
estava ameaçando-a”) do que dar descrições precisas de movimentos físicos. Os bebês aprendem a
responder às mudanças de humor de seus pais e a adivinhar suas intenções muito antes que tenham
adquirido a linguagem para dar descrições físicas objetivas do movimento corporal de seus pais.
Muitas coisas que os seres humanos fazem não são identificáveis como ações de um tipo
particular a menos que elas já tenham sido vistas e interpretadas como derivadas de um conjunto
particular de desejos e crenças. Uma breve reflexão é suficiente para mostrar isso no caso de
algumas ações humanas como comprar e vender, prometer e casar, mentir e contar histórias. Mas
isso pode também ser verdadeiro a respeito das ações físicas mais básicas e aparentemente puras,
tais como matar ou deixar morrer. Se um curandeiro faz um ritual cujo propósito é causar a morte de
uma testemunha no caso dela mentir, e se a testemunha então súbita e misteriosamente morre, é
muito mais difícil decidir se o curandeiro realmente matou a testemunha do que decidir qual era a
intenção do curandeiro.
Muitas vezes, quando atribuímos uma intenção para uma ação humana, estamos atribuindo ao
agente certas razões para a ação. Quando dizemos que Jane agiu por uma certa razão, estamos
atribuindo a ela tanto um desejo para que um certo estado de coisas venha a ocorrer como uma
crença que uma certa maneira de agir irá auxiliar na realização desse estado de coisas. Assim,
estamos atribuindo tanto um estado cognitivo quanto um estado afetivo da mente.
Estados cognitivos da mente são aqueles que envolvem a posse pessoal de porções de informação
(verdadeiras ou falsas): são coisas como crenças, consciência, expectativa, certeza e conhecimento.
Estados afetivos da mente não são verdadeiros nem falsos, mas consistem em uma atitude de
procurar ou evitar: são coisas como propósito, intenção, desejo e vontade. Alguns estados mentais, é
claro, têm ambos os aspectos cognitivo e afetivo: esperança e medo, por exemplo, envolvem tanto
uma expectativa de um futuro estado de coisas quanto o julgamento de um estado de coisas como
bom ou mau.
Quando inferimos deste modo, partindo do comportamento e testemunho para atividades e
estados mentais, não estamos fazendo uma inferência indutiva frágil para eventos em um território
inacessível. Os próprios conceitos dos estados mentais tem como funções habilitar-nos a interpretar
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e compreender a conduta e as expressões dos seres humanos. A própria mente pode ser definida
como a capacidade para uma classe de comportamentos complicados e simbólicos que constituem a
linguagem social, moral, econômica, científica ou cultural e outras atividades características dos
seres humanos na sociedade.
A definição acima sugerida para a mente é muito diferente da definição cartesiana com a qual
iniciamos. Para Descartes, a característica fundamental da mente é a consciência, mais do que a
capacidade para atividade simbólica. Para que possamos caracterizar a magnitude da revolução
cartesiana na filosofia, é necessário explicar como os limites da mente foram delimitados por ele em
local muito diferente daquele onde eles tinham sido delineados pelos seus predecessores na
Antigüidade, na Idade Média e na tradição remontando à Aristóteles.
Para os filósofos aristotélicos anteriores à Descartes, a mente era essencialmente a faculdade ou o
conjunto de faculdades que diferenciavam os seres humanos de outros animais. Animais mudos e
seres humanos compartilhavam certas habilidades e atividades: cachorros, vacas, porcos e homens
podiam ver, ouvir e sentir, pois todos eles tinham em comum a faculdade ou as faculdades da
sensação. Mas somente os seres humanos podiam ter pensamentos abstratos e tomar decisões
racionais: eles eram diferenciados de outros animais pela posse do intelecto e da vontade (will), e
eram essas duas faculdades que essencialmente constituíam a mente. Os aristotélicos cristãos
acreditavam que a atividade intelectual era imaterial, em um sentido particular, enquanto que as
sensações eram impossíveis sem um corpo material.
Para Descartes, e para as gerações de filósofos e psicólogos que sofreram sua influência, o limite
entre mente e matéria estava colocado em outra parte. Era a consciência, não a inteligência ou a
racionalidade, o critério definidor do mental. A mente, do ponto de vista cartesiano, é o domínio
daquilo que é acessível à introspeção. O reino da mente por isso inclui não somente a compreensão e
o conhecimento humano, mas também a visão, a audição, o sentimento, a dor e o prazer humano.
Pois cada forma de sensação humana, de acordo com Descartes, incluía um elemento que era mais
espiritual do que material, um componente fenomenal que não era mais do que contingentemente
conectado com causas, expressões e mecanismos corporais.
Descartes teria concordado com seus predecessores aristotélicos que a mente é o que distingue os
seres humanos dos outros animais. Mas o sentido no qual esta tese era verdadeira para ele era muito
diferente do sentido na qual ela era verdadeira para aqueles. Para aqueles, a verdade era que a mente
estava restrita ao intelecto e ao arbítrio, e somente os humanos tinham intelecto e arbítrio. Para
Descartes a verdade era que, embora a mente incluísse sensações, somente os humanos tinham
sensações genuínas. Como tem sido dito, ele excluía que os animais tivessem qualquer consciência
genuína. A maquinaria corporal que acompanha as sensações nos seres humanos pode existir
também em outros animais; mas em um animal, um fenômeno semelhante à dor era um evento
puramente mecânico, não acompanhado pela sensação que é sentida pelos humanos na dor.
A distinção mais óbvia entre os seres humanos e os outros animais parece ser que os humanos são
usuários de linguagem e os outros animais não. E é por isso que quando queremos uma maneira
breve de nos referir a animais não humanos nós os chamamos de “animais mudos” (dumb animals);
isto também é uma razão para a tradicional definição de seres humanos como animais racionais.
A distinção entre usuários e não-usuários de linguagem de linguagem desempenha um papel em
ambas as demarcações dos limites da mente, na aristotélica e na cartesiana. Conforme a tradição précartesiana, nos seres humanos o intelecto é equivalente à habilidade em fazer o uso inteligente das
palavras e sentenças. Descartes também oferece a posse exclusiva da linguagem pelos humanos
como uma prova que somente os humanos têm mente; mas diferentemente de seus predecessores ele
pensa que não pode haver consciência sem linguagem. Para ele a consciência é a característica
definidora da mente, que conduz a habilidade lingüística em seu treino. Para seus predecessores, o
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limite entre usuários e não usuários da linguagem pode ser demarcado dentro do âmbito dos seres
conscientes.
A razão pela qual Descartes pode usar os dons específicos da linguagem da espécie humana para
diferenciar a consciência animal foi que ele identificou consciência com autoconsciência. É verdade
que a autoconsciência não é possível sem linguagem: sem linguagem não há diferença entre sentir
dor e ter o pensamento de que “estou com dor”. Mas os predecessores de Descartes estavam certos
em acreditar que pode haver consciência sem auto-consciência, e por isso pode haver dor sem
linguagem.
Ao considerar a consciência mais do que a racionalidade como a característica definidora da
mente, Descartes tornou natural conceber-se a mente como sendo um domínio misterioso e privado.
A racionalidade não é alguma coisa particularmente privada. Segundo os predecessores de
Descartes, aquilo que distingue os humanos dos animais é a capacidade humana para fazer coisas
como cálculos aritméticos ou desejar fama. Nem o entendimento de aritmética, nem o desejo por
fama ou por reconhecimento são estados especialmente privados; o sujeito não tem autoridade
especial para expressar sua presença ou ausência. Posso acreditar que compreendo uma operação
aritmética em particular, mas meu professor, após um teste, pode me mostrar que não sei. De modo
similar, pode acontecer que apenas um amigo perspicaz possa me convencer que estou realizando
uma certa campanha política não pelo amor da justiça, mas para colocar meu nome nos jornais. Em
se tratando do conhecimento de aritmética e da busca da fama, minhas sinceras considerações não
são a última palavra possível.
Por outro lado, se eu quero conhecer quais as impressões sensoriais que alguém está tendo, então
tenho que conceder uma condição especial para as suas declarações. A maneira natural para
descobrir aquilo que alguém parece ver ou ouvir, ou o que está imaginando ou dizendo para si
próprio, é pedir para que ele nos diga. Aquilo que ele nos diz em resposta não é necessariamente
verdadeiro - ele pode estar sendo insincero ou ser incompreendido nas palavras que usa – mas pode
não estar errado. Experiências desse tipo parecem ser isentas de dúvidas para as pessoas que as
experimentam. Descartes tomou este tipo de indubitabilidade como a propriedade característica do
pensamento. Tais experiências são privadas para seu proprietário, no sentido que embora outros
possam duvidar delas, ele não pode. A privacidade, portanto, torna-se uma marca do mental no
sistema cartesiano.
É claro que esse tipo de privacidade é muito distinto da racionalidade. A descoberta do teorema
de Pitágoras foi um exercício de racionalidade, e nós conhecemos isto sem saber se Pitágoras
trabalhou seu teorema primeiro em sua cabeça ou se o desenhou na areia. Por outro lado, imitar sons
de passarinho não é, por si só, algo que exiba racionalidade, quer isso seja feito em voz alta ou
somente em sussurros na privacidade da imaginação.
A intelecção e a sensação não são as únicas capacidades e atividades humanas que podemos
pensar como sendo atributos da mente e as quais alguns filósofos tenham identificado como
fenômenos mentais. Adicionalmente à habilidade para perceber e compreender, os seres humanos
possuem memória, por exemplo, e imaginação, e as paixões ou emoções. Descartes e seus
predecessores concordavam em classificar a memória e a imaginação como sentidos internos.
Consideravam essas faculdades como sentidos porque viam suas funções como a produção de
imagem, e pensavam a imagem interna como uma réplica dos objetos externos dos sentido. Eles
consideravam essas faculdades como internas porque suas atividades, diferente daquelas dos
sentidos, não eram controladas por estímulos externos.
Argumentarei no capítulo posterior que essa concepção do sentido interno é um erro, e que a
relação entre sensação e imagem mental foi incorretamente explicada por Descartes e seus
predecessores. Onde Descartes diferiu de seus predecessores, neste respeito, foi que, diferentemente
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deles, considerava a imaginação como sendo parte da mente. A imaginação, como as sensações, era
para ele uma operação mental acompanhada por atividade mecânica no interior do corpo. A
atividade mecânica da imaginação - e Descartes estava preparado para dar a ela uma localização
cerebral precisa – era algo que poderia ter lugar no interior de um animal não menos do que no ser
humano. Mas a atividade mental pura da imaginação era peculiar aos humanos e deveria ter lugar
também em uma alma desprovida de corpo.
Para os predecessores de Descartes, a imaginação não era uma parte da mente, mas era
integralmente corporal; almas e espíritos que perdessem seus corpos seriam similarmente
desprovidos de imaginação. Para alguns dos sucessores de Descartes, por outro lado, os sentidos
internos tornaram-se a mente par excellence. Os filósofos empiristas ingleses, na verdade,
concebiam toda a relação entre mente e matéria em termos da relação entre operação dos sentidos
internos e operação dos sentidos externos.
Na psicologia de David Hume, os resultados (deliverances) dos sentidos externos são as
impressões, e os resultados das sensações internas são as idéias; todo o conteúdo de nossas mentes, a
base fenomenológica a partir da qual o conjunto do mundo deve ser interpretado, consiste em nada
além de impressões e idéias. Mais ainda, o significado das palavras de nossa linguagem consiste na
relação das palavras com as impressões e idéias. É o fluxo de impressões e idéias em nossa mente
que faz nossas verbalizações não serem sons vazios, e sim a expressão do pensamento; e se não
podemos mostrar que uma palavra se refere a uma impressão ou a uma idéia, ela deve ser descartada
como desprovida de significado.
A descrição empirista da relação entre a linguagem e o pensamento é perversa. A questão sobre
se é possível existir pensamento sem imagens não é simples e mais adiante neste livro tentarei
desvendar alguma coisa de sua complexidade. Mas mesmo se aceitamos, para fins de argumentação,
que o pensamento e a imaginação muitas vezes andam juntos, é importante tornar claro quais destas
operações conferem significado para qual. De fato, quando pensamos em imagens é o pensamento
que confere significado para as imagens e não vice-versa. Quando conversamos silenciosamente
conosco mesmos as palavras que dizemos em imaginação não teriam o significado que tem senão
pelo nosso domínio intelectual da linguagem à qual elas pertencem. E quando pensamos por meio de
imagens visuais, bem como com palavras não proferidas, as imagens meramente fornecem a
ilustração para um texto, cujo significado é dado pelas palavras que expressam os pensamentos.
Um filósofo empirista poderia estar propenso a aceitar a alegação que as imagens possuem o
significado que têm somente quando elas estão na mente do usuário da linguagem. Mas ele poderia
sustentar que o domínio da linguagem é algo que é, em si próprio, explicado em termos de leis de
associação entre imagens em sucessão. Mas isso parece ser um erro. A aquisição da linguagem pode
somente ser explicada se postulamos uma habilidade específica da raça humana. Os animais
domésticos vivem no mesmo ambiente sensorial que os bebês humanos, e mesmo assim parecem
incapazes de obter o domínio dos termos abstratos e universais que uma criança adquire na medida
em que cresce. Se queremos falar de sentidos internos não podemos deixar de atribuí-los aos
animais não menos que aos humanos; mas no que diz respeito à aquisição da linguagem, tanto a
tradição aristotélica quanto a cartesiana insistiriam que um sentido interno não era suficiente, e que
um intelecto era necessário. Na explicação sobre a mente dada pelos empiristas, os filósofos
anteriores teriam falhado em reconhecer alguma coisa que eles chamariam de intelecto. O programa
de trabalho dos empiristas poderia realmente ser descrito como um esforço para eliminar o intelecto
em favor do sentido interno.
Nas últimas duas décadas ocorreu um surpreendente renascimento do cartesianismo. Isso ocorreu
devido principalmente a dois fatores: primeiro, a um entendimento insuficiente, pelos filósofos, do
golpe mortal definitivo que as críticas filosóficas de Wittgenstein trouxeram às noções cartesianas;
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e, segundo, ao renascimento de certos outros aspectos da filosofia de Descartes pelo lingüista Noam
Chomsky.
Uma das teorias de Descartes era que algumas das idéias que desempenham um papel crucial no
entendimento humano não são adquiridas através da experiência mas são uma parte inata da
estrutura da mente. Esta tese foi severamente contradita pelos filósofos empiristas que seguiram-se
à Descartes, e na maior parte da psicologia do século XIX e XX foi dado como certo que Descartes
estava errado nesse ponto e que os empiristas estavam certos.
Chomsky, em contraste, defendeu a tradição cartesiana como sendo o melhor quadro de
referência para a compreensão do uso humano da linguagem. Chomsky argumentava que os dados
apresentados a uma criança são demasiadamente fragmentados para prover uma base para a
linguagem a ser adquirida por quaisquer dos procedimentos normais de aprendizado; o rápido
domínio da linguagem pela criança somente pode ser explicado com base em uma habilidade
humana inata específica da nossa espécie.
A teoria de Chomsky, ao menos em sua forma inicial, era uma hipótese empírica. Ele sustentava
que a mente possui inatamente certos princípios organizadores da gramática universal, como um
sistema abstrato subjacente ao comportamento. A existência ou não-existência de um tal modelo era
para ser defendida em termos de sua necessidade ou adequação para explicar certas atividades
humanas lingüísticas e habilidades (skills) (em particular, a construção de sentenças bem-formadas
de variados graus de complexidade).
Nem todos os leitores de Chomsky estavam convencidos que as estruturas inatas da mente
postuladas pela sua teoria lingüística tinham mais do que o nome em comum com as idéias inatas de
Descartes. Na verdade, muito do aparato teórico de Chomsky teria sido severamente desaprovado
por Descartes. Chomsky, por exemplo, trouxe de volta a noção de faculdade e deu a ela uma
importância em psicologia que ela não tinha tido por muitos séculos. Ele distinguiu, por exemplo,
entre a faculdade-da-linguagem e a faculdade-dos-números e afirmou que o fenômeno da aquisição
da linguagem humana mostrava que deve haver uma faculdade de linguagem específica-da-espécie,
muito distinta da capacidade para a computação matemática, que poderia ser não somente de seres
humanos mas de qualquer outra espécie em outro planeta, que seriam bafejados por algo similar à
linguagem humana. Descartes, por sua vez, julgava a noção das faculdades um anacronismo
aristotélico, que atravancava o caminho do progresso científico genuíno.
Novamente, Chomsky acreditava que ao usar a linguagem nós demonstramos conhecimento
tácito, regras operacionais e princípios que não podem ser trazidos à formulação consciente de
maneira normal. Descartes, que definiu o conteúdo da mente em termos de consciência, teria sido
obrigado a rejeitar qualquer apelo ao conhecimento tácito, não formulado.
Apesar disso, o apoio de Chomsky a uma lingüística cartesiana deu nova vida a muitas idéias
filosóficas cartesianas. Em particular, a noção cartesiana de consciência, que muitos filósofos
pensavam ter sido extinta pelo trabalho de Wittgenstein, ressurgiu da morte de uma maneira
extraordinária. Este renascimento foi dignificado por alguns comentadores como a “revolução
mentalista” da década de 1970.
Não há nada de filosoficamente objetável na postulação de Chomsky sobre estruturas mentais
inatas. Obviamente os seres humanos nascem com certas habilidades, incluindo habilidades para
amadurecer bem como habilidades para aprender. Se a habilidade para adquirir gramática de uma
certa espécie é uma habilidade para aprender ou uma habilidade para amadurecer sob certas
condições, isto é uma questão filosófica aberta capaz de ser resolvida por uma investigação
empírica.
Da mesma forma, a noção de faculdade não mereceu a obscuridade na qual caiu durante diversos
séculos. Claro, se uma faculdade é pensada como um órgão imaterial ou como um impulso para8
mecânico, a noção se presta para uma paródia filosófica destrutiva. Mas se por faculdade nós
simplesmente entendermos um tipo particular de habilidade mental, então sem dúvida os seres
humanos têm várias faculdades. A noção filosófica de faculdade será analisada simpaticamente no
Capítulo 5 deste livro.
Mas é uma coisa notável que a noção cartesiana de consciência tenha retornado à fama, entre
alguns admiradores de Chomsky, no rastro da noção cartesiana de idéias inatas e da própria noção
não-cartesiana de faculdades. É comum para nós agora ouvir dizer que os estados mentais, além de
quaisquer relações que eles possam ter com impulsos e saídas corporais, têm uma natureza interna
ou qualitativa que é fundamentalmente inexprimível. No caso das sensações estas são chamadas
“qualias sensoriais” (sensory qualia). As dores, por exemplo, têm uma qualidade intrínseca que é
revelada na introspecção, que é muito distinta de quaisquer critérios para dor que possam ser
avaliados por um observador externo. Qualquer filosofia adequada da mente, diz-se, precisa ser
capaz de abrigar estes inefáveis qualia.
Diz-se que a alegada existência dos qualia apresenta uma dificuldade para aquela que é a filosofia
da mente da moda, o “funcionalismo”. O funcionalismo é popular não somente entre os filósofos e
psicólogos mas também entre pesquisadores de inteligência artificial e em ciência cognitiva.
Estudantes de inteligência artificial visam produzir computadores que não apenas resolverão
problemas, mas o farão de maneira similar a como os humanos fazem. Em relação aos projetistas
dos computadores usuais, eles podem ser comparados a engenheiros de aeronáutica que não visam
projetar a mais eficiente aeronave, mas sim construir um pássaro artificial. Os devotos da “ciência
cognitiva” podem operar em um número diversificado de disciplinas – filosofia, psicologia
empírica, inteligência artificial. O nome não é tão somente a demarcação de uma área de estudo
como um manifesto da crença que os traços característicos da mente humana eventualmente serão
explicados em forma desmistificada por certos procedimentos científicos modernos.
O funcionalismo é muitas vezes apresentado como uma modificação sofisticada do
comportamentalismo. Enquanto o comportamentalismo pensava que cada estado mental poderia ser
definido em termos de sua expressão comportamental, ou seu produto comportamental em
combinação com as entradas (input) ambientais, o funcionalismo aceita que os estados mentais não
podem ser definidos exceto em relação a outros estados mentais. De acordo com o funcionalismo,
aquilo que será definido em termos de entrada (input) externa e produto (output) observável, mesmo
na concepção mais otimista, não serão estados mentais individuais, mas somente a rede de processos
e estados mentais interrelacionados que constituem a história natural da mente.
Ainda que muitos funcionalistas aceitem, com vários graus de relutância, a existência de qualias
inexprimíveis nos seres humanos, a referencia à “função” no título de suas alegações filosóficas visa
enfatizar que aquilo que é importante nos estados mentais não é o seu sentimento interno mas a
relação externa entrada- produto (input-output). Os funcionalistas sustentam que o elemento crucial
no mental não é nem a qualidade sentida dos estados mentais, nem o hardware no qual o estado
mental está incorporado, mas a estrutura das atividades mentais que o hardware suporta.
Nesse ponto o funcionalismo incorpora uma importante verdade. Os seres humanos são criaturas
de carne e sangue com certas habilidades que constituem suas mentes. Não há nada na natureza da
mente humana que indique que ela não pode ser corporificada, ou melhor, materializada em
criaturas com constituições físicas bastante diferentes. Além do que, mesmo no caso dos humanos
de carne e sangue, não há nada na natureza de nossas mentes que nos prove que não somos artefatos
extremamente hábeis.
De tempo em tempo eu me divirto com a fantasia que um dia alguém baterá na porta, e um
técnico se apresentará dizendo: -“Senhor, Eu sou da IBM, e vim fazer seus serviços de manutenção”.
É claro que isto é uma fantasia absurda. Mas eu sei que eu não sou um homem-computador somente
9
na mesma maneira que sei que os gatos não crescem em árvores. Eu sei isso não por meio de
qualquer argumento do tipo “Eu penso, portanto não sou um artefato”.
Se sou cético acerca dos tipos de alegação feitas atualmente pelos cientistas cognitivos e
especialistas em inteligência artificial não é porque penso que há um argumento a priori que mostra
que nenhum computador jamais terá consciência ou mente. Certamente não é porque acredito, como
Descartes o fez, que há um âmbito da consciência que é totalmente divorciado do mundo físico no
qual o software é desenhado e o hardware é manufaturado. É exatamente por uma razão oposta: é
porque penso que o legado de Descartes impede aqueles que trabalham nestes campos de realmente
entender o problema que estão tentando resolver, a estrutura mental que eles estão tentando imitar. É
por esta razão que acredito que vale a pena, mais uma vez, tentar destruir o mito cartesiano
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Capítulo 2.
Corpo, alma, mente e espírito
Descartes, num tom cético, acreditou que podia duvidar da existência do mundo externo e da
existência de seu próprio corpo. Ele chegou ao fim de sua dúvida finalmente com o argumento:
“Cogito, ergo sum. - Eu penso, portanto eu sou”. Isto leva à questão: “O que sou?” A resposta de
Descartes foi que ele era uma substância na qual toda a essência ou natureza consistia em pensar e
cujo ser não necessitava lugar e não dependia de qualquer coisa material. Esta resposta envolve o
dualismo errôneo discutido no último capítulo.
Para a pergunta de Descartes, “o que sou?”, minha própria resposta é que sou um ser humano, um
corpo vivente de um certo tipo. Algumas vezes falamos como se tivéssemos corpos, ao invés de
sermos corpos. Mas ter um corpo, neste sentido natural, não é incompatível com ser um corpo; isto
não significa que há alguma coisa além do meu corpo que tem o meu corpo. Assim como meu corpo
tem uma cabeça, um tronco, dois braços e duas pernas, mas não é alguma coisa sobre ou abaixo da
cabeça, tronco, braços e pernas, assim eu tenho um corpo mas não sou alguma coisa sobre e abaixo
do corpo. Tanto quanto tenho um corpo tenho uma mente: quer dizer, tenho várias capacidades
psicológicas, incluindo especialmente um intelecto e uma vontade (will).
Dizer que tenho um intelecto é dizer que tenho a capacidade para adquirir e exercer habilidades
intelectuais de vários tipos, tais como o domínio da linguagem e a posse de informação objetiva.
Dizer que tenho uma vontade (will) é dizer que tenho a capacidade para a livre busca de metas
formuladas pelo intelecto. Meu intelecto e minha vontade são, em essência, capacidades. São
capacidades de quê? Do ser humano vivo, o corpo que você veria se estivesse aqui na sala onde
escrevo.
Você que está lendo este livro do mesmo modo tem um corpo e uma mente. Você tem uma
mente, como está provado pelo fato de que pode ler e entender aquilo que escrevi. Você tem um
corpo: o corpo no qual estão os olhos com os quais está lendo este livro, ou os ouvidos que estão
ouvindo alguém ler para você. Cada outro leitor deste livro também tem um corpo e uma mente.
Trata-se de um simples truísmo que os seres humanos em geral têm mentes e corpos – o que
equivale a dizer que eles são corpos com certas capacidades psicológicas.
É igualmente um truísmo dizer que os seres humanos têm alma? Isso depende de como
entendemos a palavra “alma”. Entendida de um jeito, dizer que um animal tem uma alma é dizer
alguma coisa mais do que dizer que ele tem uma mente. Entendida de outro jeito, é dizer algo muito
menor.
Quando os filósofos e os teólogos dizem que os seres humanos têm alma, muitas vezes querem
dizer algo mais do que apenas que os seres humanos têm mente (intelecto e vontade). Eles querem
dizer que os seres humanos têm mentes imortais: mentes que podem sobreviver à morte dos corpos
dos quais eles são a mente, mentes que podem viver sem corpos pelo menos por um certo tempo e
talvez para sempre. Esta posição (claim) é defendida algumas vezes por meio de argumentos
filosóficos, algumas vezes mediante o apelo à revelação religiosa, algumas vezes mediante a
alegação de comunicação dos mortos. Eu não desejo discutir aqui a plausibilidade das evidências
oferecidas em defesa da imortalidade. Quero simplesmente marcar a grande diferença entre essas
alegações controversas que dizem que os seres humanos têm almas e o truísmo que os seres
humanos têm mentes.
Os filósofos da tradição de Aristóteles usaram as palavras gregas e latinas correspondentes a
“alma” não para significar alguma coisa maior do que um intelecto, mas para significar algo menor.
Por “alma” Aristóteles simplesmente queria dizer “princípio de vida”, de tal forma que, por
definição, todas as coisas vivas tinham alma. E não há a suposição que as almas são necessariamente
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imateriais: a alma de uma planta pode a ser uma cadeia de DNA. Conforme a tradição aristotélica, se
a investigação filosófica mostra que a alma é imaterial ou imortal, isto é devido a algo especial para
a humanidade, não por causa de algo próprio às almas enquanto tais.
Dada a história da palavra inglesa “soul” (alma), seria equivocado dizer que as plantas têm alma.
Isto poderia sugerir que pensamos que elas têm algum tipo de consciência, ou que podem responder
quando alguém as chama. Soa menos estranho atribuir alma aos animais; mas fora do contexto
aristotélico isso também poderia ser um equívoco, sugerindo que estamos atribuindo imortalidade ao
nosso cachorrinho de estimação, pensando talvez em encontrá-lo em algum céu canino ou em um
campo de caças divino. Para evitar esses possíveis mal-entendidos, usarei a palavra “alma” (soul)
apenas no sentido teológico no qual ela se tornou o equivalente de “mente imortal”.
Eu afirmei que a mente inclui o intelecto e a vontade (the will). O intelecto e a vontade
constituem a mente ou há outras capacidades humanas que são parte da mente? Por exemplo, os
sentidos e a imaginação? No Capítulo 1 expliquei como, de acordo com a concepção pré-cartesiana
da mente, os sentidos não faziam parte da mente; e tomei partido da tradição aristotélica que
considera o intelecto como a mente par excellence. No entanto rejeitei a concepção, comum tanto
nos filósofos pré e pós-cartesianos, que a imaginação era um tipo de sentido. Neste ponto desejo
reservar meu juízo sobre se a imaginação é parte da mente. A questão será discutida no capítulo 8.
Agora, apesar dos sentidos não serem parte da mente, eles são indubitavelmente capacidades
psicológicas; de fato uma grande parte da psicologia consiste no estudo da operação dos sentidos e
dos mecanismos fisiológicos que subjazem a eles. Podemos querer ter uma palavra para nos referir
ao conjunto de capacidades sensoriais no sentido em que “mente”, em meu uso, refere-se ao
conjunto de capacidades cujos membros principais são o intelecto e a vontade. A palavra mais
apropriada parece ser “psique”. Se adotamos este uso poderemos dizer que, enquanto na terra
somente humanos têm mentes, os humanos e outros animais têm psiques.
Tendo assim delimitado a psique, deixemos ela de lado por um momento para nos concentrar na
mente. Todos nós, em um momento ou outro, somos inclinados a pensar na mente como uma
paisagem interna, uma região mais ou menos misteriosa que necessita ser explorada e mapeada.
Neste capítulo eu quero avaliar filosoficamente esta metáfora: para perguntar se, em verdade
prosaica, há uma região interna no interior de nós para ser explorada.
Os limites da mente, como vimos no capítulo 1, são colocados em diferentes lugares por
diferentes filósofos. A geografia da mente não é um assunto simples a ser descoberto, porque as
características mais básicas da mente são objeto de disputa entre os filósofos. Ela não pode ser
explorada simplesmente olhando-se para nós mesmos, para uma paisagem interna aberta às nossas
vistas. Aquilo que vemos quando damos essa olhada interna será parcialmente determinado pelo
ponto de vista filosófico a partir do qual olhamos ou, poderíamos dizer, pelos óculos conceituais que
estivermos usando.
Neste capítulo começarei pela definição da mente que foi sugerida no capítulo anterior. A mente,
disse, pode ser definida como a capacidade para comportamentos do tipo complexo e simbólico que
constituem as atividades lingüísticas, sociais, morais, econômicas, científicas, culturais e outras
atividades características dos seres humanos na sociedade.
Em seu sentido primário a mente humana é a capacidade para adquirir habilidades intelectuais. É
uma capacidade, não uma atividade: os bebês têm mentes, ainda que não exibam atividades
intelectuais. Ela é uma capacidade de segunda ordem: uma habilidade para adquirir ou possuir
habilidades. Conhecer uma língua é ter uma habilidade: habilidade para falar, compreender e talvez
ler a língua. Ter uma mente é ter uma capacidade que está em uma etapa anterior: a habilidade para
adquirir habilidades tais como o conhecimento de uma língua.
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Os seres humanos não nascem com o conhecimento de linguagem: eles aprendem línguas
enquanto se desenvolvem. E isso é verdadeiro quer seja ou não o aprendizado da linguagem pelos
seres humanos algo que possa somente ser explicado se postularmos certas tendências inatas ou
estruturas. É concebível que pudesse haver seres que falassem desde o nascimento. Seria certamente
errôneo negar que esses seres não tivessem mentes alegando-se que eles não teriam a capacidade
para adquirir conhecimento de linguagem. Assim, enquanto a mente humana é a capacidade para
adquirir habilidades intelectuais, a mente como tal é a capacidade para possuir habilidades
intelectuais.
A habilidade (skill) intelectual mais importante é o domínio da linguagem. Outras, tais como o
conhecimento de matemática, são adquiridas pelos seres humanos por meio das línguas que eles
dominaram. Assim sendo, o estudo da aquisição e do exercício da linguagem é a maneira, por
excelência, para estudar a natureza da mente humana; para estudar o conhecimento de linguagem
você terá que considerar em que consiste o exercício do conhecimento lingüístico. O exercício de
conhecimento lingüístico é comportamento lingüístico: mas “comportamento” aqui deve ser
entendido amplamente, de forma que, por exemplo, recitar um poema para mim, em minha cabeça,
imperceptivelmente, será considerado um comportamento lingüístico.
Se a mente é a capacidade para adquirir habilidades intelectuais, qual é a natureza da vontade?
Tradicionalmente o intelecto e a mente ficam lado a lado como as duas grandes faculdades da
mente. Tradicionalmente, também, a vontade é pensada como o lugar (locus) da autonomia: da
posse, pelo agente humano, de seus maiores ideais. Estas características da descrição tradicional se
encaixam bem na nossa definição. A busca de metas auto-selecionadas que vão além do meio
ambiente imediato no espaço e tempo não é possível sem o uso de símbolos para o distante, o
remoto e o universal. E, por outro lado, o próprio uso de símbolos envolve propósitos que vão além
do presente temporal e espacial. Antes de tudo, dar sentido (meaning) a alguma coisa envolve
intenções, e intenções envolvem ter propósitos: novamente, o significado é feito de acordo com
regras, e regras são, por sua própria natureza, capazes de repetidas aplicações em diversas
circunstâncias. Em segundo lugar, usar algo como um símbolo e não como uma ferramenta é usá-lo
de tal modo que qualquer efeito que ele possa ter no meio ambiente deixe de ter as características de
imediaticidade e regularidade da causalidade física. Assim, a mente, considerada como a capacidade
para habilidades intelectuais, é uma capacidade tanto volitiva quanto cognitiva, inclui tanto a
vontade quanto o intelecto.
O contraste entre o cognitivo e o afetivo, na vida humana, corta ao meio a demarcação entre a
vida dos sentidos e a vida da mente. No nível da sensação puramente animal há tanto percepção
quanto sentimentos (feelings), da mesma maneira como no nível mental há a distinção entre
intelecto e vontade. Mais ainda, assim como nos seres humanos a operação dos sentidos é deflagrada
com a conceitualização do intelecto, assim a vontade está, em maior ou menor grau, no controle das
nossas vidas, tanto animal quanto mental.
Não podemos, naturalmente, escolher aquilo que vemos quando abrimos nossos olhos. Mas
podemos escolher se vamos abrir ou fechá-los e em que direção olhar com nossos olhos abertos.
Todos os órgãos dos sentidos estão, em alguma extensão, sujeitos ao controle voluntário e por isso
ao império da vontade. A operação de imaginação, por mais desregrada que possa ser, está do
mesmo modo sob controle voluntário: pode ser difícil para nós impedir-nos de pensar em algo
injurioso ou de banir fantasias ruins, mas com um esforço adequado isso pode ser feito. Isso não é
mais difícil do que controlar ações obsessivas no mundo exterior, tais como manter a língua da gente
longe de um dente machucado ou deixar de coçar uma ferida.
A própria atividade do intelecto não está do mesmo modo sujeita ao controle voluntário. Ao
olhar para as luzes brilhantes dos anúncios de publicidade das avenidas, não podemos evitar de
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entender as mensagens. (G. K. Chesterton certa vez observou que elas seriam muito mais bonitas se
a gente não pudesse ler). Nem podemos, simplesmente sendo firmes em nossa resolução, acreditar
cinco coisas impossíveis antes do café da manhã.
Indiretamente, claro, o nosso entendimento e nossas crenças estão sob controle involuntário:
podemos fazer-nos entender certas coisas por freqüentar um curso de francês e, se lemos somente
jornais de direita e falamos somente com pessoas de direita, sem dúvida alcançaremos crenças
políticas “direitas”.
Mas se a vontade pode, à seu modo, controlar o intelecto, a própria vontade está à mercê do
intelecto. Pois a vontade é a capacidade para desejos racionais; e a vontade pode somente buscar
aquilo que o intelecto pode entender. A mente – considerada como intelecto e vontade juntos – é, se
tudo vai bem, suprema na alma humana; mas nem o intelecto nem a vontade é um imperador
autocrático; ao contrário, elas são uma junta consular, como no modelo da República Romana.
Minha definição da mente difere em duas maneiras daquelas mais familiares. Primeiro, eu não
considero a fabricação e o uso de ferramentas em si próprios como uma exibição de mentalidade. O
uso de instrumentos inertes no desempenho de uma atividade pode ou não ser a manifestação da
mente. Se é ou não, isso dependerá largamente da atividade. O uso de um relógio para dizer a hora
ou um fino estilete para cavar desenhos na rocha é uma atividade intelectual. Mas o uso de uma
estaca de bambu como uma ponte para atravessar o rio ou o uso de uma haste para coletar insetos,
não é, no mesmo sentido, uma indicação de intelecto.
Em segundo lugar, em minha definição da mente não disse nada sobre a consciência. Para
explicar por que, eu distinguirei três coisas diferentes que podemos entender por “consciência”.
Primeiro, poderíamos significar a consciência no sentido cartesiano: a característica que é comum
e peculiar aos conteúdos do mundo privado da introspeção. Eu diria que isso é um absurdo
filosófico. Pois se “consciência” é o nome para algo que somente pode ser observado pela
introspeção, então o significado deste nome deve ser apreendido por meio de uma ação
(performance) privada e não controlável. Mas nenhuma palavra poderia adquirir seu significado por
meio de tal atuação (performance); isto porque uma palavra somente tem significado como parte de
uma linguagem; e a linguagem é essencialmente algo público e partilhado. Como saber, dessa
maneira, que aquilo que batizei com o nome de “consciência” é aquilo que você batizou com o
mesmo nome? E se não dei a uma palavra um significado que eu possa comunicar algo para
qualquer pessoa, não terei dado significado algum.
Em segundo lugar, “consciência” pode significar o exercício de nossas capacidades para
percepção: a senciência e a habilidade para responder a mudanças no ambiente que são dadas por
nós pelos sentidos como a audição, a visão, o olfato e a gustação. A consciência, neste sentido, não
é um Unding de filósofos, mas uma característica importante do mundo. Não se trata, no entanto, de
uma característica definidora da mente, se a mente é aquilo que distingue seres humanos de outros
animais. Pois a consciência, nesse sentido, é partilhada por gatos, cachorros, vacas, ovelhas, não
menos do que por seres humanos.
Em terceiro lugar, distinta de “consciência” nesse sentido, há a consciência que é
autoconsciência: a consciência do que estamos fazendo e experimentando (undergoing) e por que.
Nos seres humanos a autoconsciência pressupõe consciência dos sentidos, mas não se confunde com
ela, porque ela pressupõe também a posse de linguagem. Não podemos pensar sobre nós mesmos
sem que sejamos capazes de falar sobre nós, e não podemos saber como falar sobre nós mesmos sem
saber como falar.
Esse último ponto não depende de qualquer tese genérica que o pensamento envolve a fala: isto
se fundamenta numa razão particular que une o pensamento sobre si mesmo com o falar sobre si
mesmo. Um cachorro pode pensar que está prestes a ser alimentado; mas sem linguagem ele não
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pode pensar que está pensando que está prestes a ser alimentado. Em seu comportamento não há um
repertório para expressar a diferença entre os pensamentos “estou prestes a ser alimentado” e “estou
pensando que estou prestes a ser alimentado”. Se a autoconsciência é então intimamente conectada
com a linguagem, então podemos fazer justiça à tradição que considera a autoconsciência como um
elemento essencial da mentalidade, sem explicitamente incluí-la em sua definição.
Qual é, então, a relação entre os sentido e o intelecto? De que forma essas faculdades, que
diferenciamos, interagem entre si? Falando de modo amplo, os sentidos nos fornecem a experiência,
o intelecto provê os conceitos. Tanto os conceitos quanto as experiências são necessários para que
seres humanos possam entender e lidar com o mundo em que vivem.
Para que possamos ter um conceito de algo que pode ser um objeto de experiência, não é
suficiente simplesmente ter a experiência apropriada. As crianças pequenas vêem objetos coloridos
antes que penosamente adquiram os conceito de cores; os animais podem ver e degustar uma
substância como o sal, mas não podem adquirir os conceitos que os usuários da linguagem podem
exercitar em juízos gerais sobre sal. Uma habilidade especial não partilhada pelos animais é
necessária na medida em que os seres humanos podem adquirir conceitos de experiências que
partilham com animais. Os animais partilham com os seres humanos a experiência da dor, e os seres
humanos sentem dor desde o nascimento e antes; mas nós adquirimos o conceito de dor quando
aprendemos a linguagem. Da mesma forma, os ratos podem ver e discriminar entre círculos e
triângulos; mas nenhuma quantidade de contemplação de diagramas fará de um rato um estudante de
geometria. O intelecto é a habilidade, que tanto quanto sabemos é restrita à espécie humana, para
fazer com que a experiência dos sentidos seja submetida a conceitos universais, e produzir juízos
gerais e objetivos sobre eles.
Minha posição de que o intelecto é peculiar à espécie humana não pretende ser a enunciação de
uma verdade necessária filosoficamente. A verdade filosófica é que o intelecto é a habilidade para
adquirir linguagens do tipo que os seres humanos adquirem. Se somente os seres humanos possuem
essa habilidade, isso é uma questão empírica.
Nos últimos anos, alguns pesquisadores têm alegado que outros animais além dos humanos, tais
como os golfinhos e os macacos, também possuem a habilidade para dominar linguagem. Os
trabalhos mais expressivos se referem a duas famosas chimpanzés, Washoe e Sarah.
Washoe foi criada como se fosse uma criança humana, em uma família americana que a treinou
em Ameslan, que é uma linguagem de gestos manuais usados pelos surdos. Seus treinadores
afirmam que ela adquiriu um vocabulário de cerca de 160 palavras, que em algumas ocasiões reunia
em sentenças. Quando adulta, parecia usar algum de seus sinais para comunicar-se com outros
chimpanzés que tinham sido similarmente treinados.
Sarah foi treinada em um tipo diferente de linguagem, cujas “palavras” eram símbolos plásticos
coloridos, magnetizados, que podiam formar sentenças quando eram colocados numa superfície
metálica. Seus treinadores afirmam que ela aprendeu o uso de nomes, verbos, palavras de função tais
como o sinal de negação e o condicional “se-então”, e palavras altamente abstratas, tais como: “o
mesmo” e “diferente”.
Foi e continua sendo discutido se as realizações de Washoe e Sarah verdadeiramente estão no
caminho de um uso genuíno da linguagem. Os lingüistas que estudaram as gravações de seus
desempenhos negaram que elas mostrassem qualquer domínio genuíno da sintaxe. Os simpatizantes
das chimpanzés alegam que suas performances comparam-se favoravelmente com crianças de dois
anos. Os céticos replicam que os sons feitos por crianças de dois anos são considerados como uma
linguagem insipiente somente porque estas crianças mais tarde alcançarão estágios de sofisticação
que chimpanzés nunca alcançarão.
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O debate é interessante e continuará, quer seja ou não obtida um dia uma evidência empírica de
uma habilidade não usual por parte dos chimpanzés. Entretanto, não é necessário para os propósitos
deste livro tomar partido nesse debate. Como foi dito acima, o elo entre linguagem e mente é uma
questão de filosofia; a questão se espécies não-humanas podem dominar a linguagem é matéria de
investigação científica. De minha parte estou convencido pelos argumentos daqueles que dizem que
Washoe e Sarah não demonstraram um domínio genuíno da linguagem. Mas aqueles que têm a
opinião contrária não precisam deixar este livro neste ponto. Quando, daqui para frente, eu falar em
“humanos”, eles devem interpretar isso como significando “animais que usam linguagem”; e quando
eu falar de “animais”, devem interpretar isso como “animais que não usam linguagem”. Pois todos
os argumentos que serão utilizados neste livro são compatíveis com o agnosticismo sobre a
possibilidade dos animais adquirirem linguagem genuína.
Pode ser argumentado que a definição de mente como uma capacidade intelectual é muito austera
e abstrata. Alguns podem achar que isso é uma negação perversa da realidade da mente. É certo que
a mente não é apenas uma faculdade: ela é um mundo imaterial e privado, o local de nossos
pensamentos secretos, o auditório de nossos monólogos interiores, o teatro no qual nossos sonhos
são representados e nossos planos ensaiados. Definir a mente como uma capacidade, alguém pode
objetar, é ignorar tudo isso: trata-se de um fracasso dogmático comportamentalista olhar no olho do
óbvio.
Certamente seria tolice negar que os seres humanos podem manter seus pensamentos em segredo,
podem conversar consigo mesmos sem fazer qualquer ruído, podem esboçar figuras diante de seus
olhos mentais ao invés de fazer isso sobre pedaços de papel. Mas a capacidade para a imaginação
mental desse tipo – visual, áudio-motora e outras imaginações - não é o intelecto, ou a mente, mas
uma faculdade muito diferente. Podemos chamá-la de “imaginação”, em um dos sentidos variados
daquela palavra – habilidade para fantasiar, para produzir imagens mentais (mental imagery).
A imaginação, assim entendida é, não menos que a mente, uma capacidade ou faculdade. Os
exercícios particulares da fantasia imaginativa são eventos psicológicos que ocorrem em lugares e
em horas particulares; trata-se de experiências, em relação às quais o sujeito está em uma posição de
autoridade privilegiada. Esses eventos psicológicos ocorrem com grande freqüência em nossas
vidas; eles podem desempenhar uma parte menor ou maior de nossas vidas de acordo com a
natureza mais ativa ou mais contemplativa de nosso temperamento e vocação.
Há um uso perfeitamente natural da palavra “mental”, no qual os exercícios da fantasia
imaginativa podem ser chamados de “eventos mentais”. Quando propomos às crianças que resolvam
problemas aritméticos “em sua cabeça” e não com papel e lápis, dizemos que estão fazendo
“aritmética mental”. Mas esse sentido de “mental”, ainda que natural, pode ser enganoso. O que
prova que as crianças têm mentes é que elas podem aprender a fazer aritmética; ser capaz de fazer
esse trabalho por meio de um monólogo interior é comparativamente um extra não importante. Fazer
uma soma difícil no papel pode ser uma prova muito maior de intelecto do que fazer uma conta fácil
na cabeça. É a natureza da habilidade exercitada que é o ponto fundamental; a habilidade para
exercitá-la de modo silencioso e sem movimentos não é mais do que uma graça adicional.
Da mesma forma que os proferimentos (utterances) mentais não são mais intelectuais que os
proferimentos públicos, similarmente não há razão para considerá-los como sendo dotados de
sinceridade especial e inescapável. Podemos ser insinceros quando conversamos conosco mesmos
em silêncio, não menos do que quando conversamos com os outros em voz alta. Isso é algo muito
familiar aos novelistas.
Para ilustrar isso podemos usar uma surpreendente passagem na novela de Trolloe, Rachel Ray.
A senhora Pucker, uma evangelista estraga-prazeres, constantemente considerou as atenções que o
herói, Luke Rowan dedica à heroína, Rachel Ray, como brincadeiras insignificantes. Mas quando a
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novela chega ao final, as evidências mostram que ele tem intenções sérias de casar com ela. A
senhora Pucker um dia o vê caminhando em direção à casa da heroína:
“Mas lá vai o jovem Rowan em direção ao Bragg’s End de novo”, disse para si mesma,
confortando-se, eu temo, ou esforçando-se para se confortar, com uma asserção interior que ele
não estava indo para lá por uma boa coisa. Esforçando-se para se confortar, mas não
efetivamente; pois embora a asserção fosse feita por ela e para ela, ainda assim não acreditava.
Muito embora declarasse, com palavras muito bem pronunciadas mentalmente, que Luke Rowan
não estava indo por aquele caminho com bons propósitos, ela sentia uma convicção infeliz no
fundo de seu coração que Rachel Ray triunfaria sobre ela e sobre suas desconfianças anteriores de
um feliz casamento. ( World’s Classics Edition, Oxford, 1988, p. 375)
As palavras mentais, não menos do que os proferimentos públicos, podem estar a alguma
distância da verdade genuína.
Assim como a expressão “aritmética mental” pode nos enganar, também a descrição das somas
como feitas “na cabeça” pode ser enganosa. Os eventos mentais que são exercícios da fantasia
(fancy) ocorrem em lugares e tempos particulares; uma criança pode executar um fragmento de
aritmética mental enquanto está sentada em sua classe, assim como pode ver um pardal enquanto
está correndo no jardim. Se dissermos que ela fez aritmética “em sua cabeça” isto não dá uma
localização posterior que é mais precisa que a localização “na sua classe”.
A cabeça é o local da imaginação somente nesse sentido: que as coisas que imaginamos nós
mesmos fazendo são muitas vezes coisas que fazemos literalmente com nossas cabeças ou partes
delas. Quando falamos para nós mesmos silenciosamente nos imaginamos falando; e falar é feito
com a língua, lábios e palato, de forma que a fala imaginada é sentida naquelas áreas e em outras
conectadas a elas. Naturalmente, ao fazermos aritmética mental usamos nosso cérebro; mas não é
por isso que falamos na aritmética mental como feita “na cabeça”, pois não usamos menos nossos
cérebros do que quando fazemos aritmética no papel.
Filósofos e psicólogos dedicaram muitas reflexões e investigações para responder a questão
“Onde a mente está localizada?”. Muitas vezes é dito que os antigos pensadores consideravam o
coração ou o fígado como o órgão do pensamento; atualmente sabemos mais e nos damos conta que
o córtex cerebral é a sede das capacidades humanas mais elevadas. A operação dos diferentes
sentidos pode ser atribuída (assigned) a diferentes regiões do córtex; a questão que permanece para
exploração é se podemos, de forma similar, dar uma localização precisa para as funções intelectuais.
No entanto, não podemos aceitar que a questão da localização da mente e de suas faculdades tem
um sentido claro e único. Uma capacidade não é, no sentido comum da palavra, algo que ocupa
espaço. Minha chave da porta da frente está ou não na fechadura; mas sua habilidade de se adaptar à
fechadura (que ela tem, quer esteja de fato na fechadura ou não) não é algo que possa ser
similarmente relacionado a um espaço particular. A capacidade de meu carro de fazer 180 km/h é
algo que seria tolo ser buscado debaixo do capô, da mesma forma como podemos procurar o
carburador debaixo do capô.
A mente e suas faculdades são capacidades e portanto minha mente não pode ter uma localização
estrita como meu corpo pode. Quando meu corpo está em um lugar particular, por exemplo, no topo
do Matterhorn, minha mente não está naquele lugar, exceto no sentido em que está onde está o corpo
ao qual ela pertence. Pensar que a mente está literalmente localizada no cérebro seria um erro tão
grosseiro como pensar que ela está localizada no coração ou no fígado.
Entretanto, há maneiras pelas quais podemos localizar capacidades sem incorrer em absurdos.
Um modo é localizar a capacidade apontando para o local ou a parte onde o organismo ou
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mecanismo exercita sua capacidade. Nesse sentido minha capacidade para ajoelhar está localizada
nos meus joelhos e a minha capacidade para cheirar está localizada no meu nariz. (Minha
capacidade para ficar em pé não está, do mesmo modo, localizada em minhas pernas ou nos pés, já
que, com algum treino, eu posso ficar parado sobre minhas mãos ou minha cabeça). Nesse sentido
não podemos localizar o intelecto em um local particular do corpo, pois cada parte do corpo que está
sujeita ao controle voluntário é capaz de ser usada em comportamentos que manifestam inteligência.
Pessoas deficientes aprendem a pintar com seus pés ou a escrever segurando a caneta entre seus
dentes; e muitos pensamentos inteligentes têm sido expressos por pessoas que somente podem se
comunicar operando uma prótese com mínimos movimentos da cabeça.
Uma outra maneira de localizar as capacidades consiste em se encontrar aquelas partes de seus
possuidores que são condições necessárias para o exercício das mesmas. Esta localização inclui a
localização no primeiro sentido, mas não a exaure necessariamente. A habilidade da minha chave
para se adaptar à fechadura da porta de entrada está na forma de seu desenho, tanto no primeiro
quanto no segundo sentido. Mas a habilidade do meu carro para viajar rapidamente, ainda que
localizada nas rodas, no primeiro sentido, não pode ser precisamente localizada no segundo sentido
como um todo, uma vez que muitas partes diferentes do motor e da transmissão precisam estar em
boas condições para que possa viajar na velocidade máxima. Do mesmo modo, para que eu seja
capaz de me ajoelhar não necessito tão somente de um par de joelhos, mas de músculos e nervos em
bom estado.
Os psicólogos que procuram localizar a mente freqüentemente fazem isso procurando estruturas e
áreas que sejam condições necessárias para o exercício das capacidades mentais. Eles correlacionam
a ocorrência de lesões em certas partes do cérebro com deficiências particulares no desempenho
intelectual. Assim, no século XIX, o cirurgião francês Broca descobriu que pacientes que tinham
perdido a habilidade de falar, freqüentemente, tinham injúrias em uma área particular do lobo frontal
esquerdo do cérebro. Isto tem sido tomado como evidência de que a faculdade da fala é localizada
no lado esquerdo do cérebro. Posteriormente Wernicke descobriu que a afasia também está
relacionada com lesões mais posteriores, no lobo temporal esquerdo. Entretanto, os tipos de afasia
que são características das lesões na área de Wernicke diferem daquelas associadas com as lesões na
área de Broca. Na afasia de Broca, o paciente tem dificuldade em encontrar palavras e nomes pouco
comuns, embora comumente retenha uma boa compreensão do significado das palavras funcionais
que estruturam as sentenças. Na afasia de Wernicke, o paciente é, em contraste, fluente, mas o fluxo
das palavras emitidas não constitui sentenças significativas. Aqui, portanto, temos dois déficits
altamente específicos no desempenho intelectual correlacionados com lesões em áreas precisamente
determinadas no cérebro; essas deficiências podem ser ou não acompanhadas com desordens
concomitantes na leitura, na escrita e na compreensão.
Se afirmarmos que isso prova que a faculdade da fala é localizada no hemisfério esquerdo do
cérebro, o que de fato queremos dizer é que – no caso normal – o funcionamento saudável do
hemisfério esquerdo é uma condição necessária para um ser humano exercitar a habilidade da fala.
Mas a localização – neste sentido - não parece ser universal. Pessoas nas quais o hemisfério
esquerdo é lesionado na infância podem aprender a falar perfeitamente de modo adequado e as
pessoas canhotas podem reter a habilidade de falar intacta mesmo se o hemisfério esquerdo sofre
dano.
Alguns filósofos e psicólogos parecem acreditar que as faculdades podem ser localizadas em um
sentido mais forte do que este. Isto é, eles acreditam que a condição do cérebro ou de uma área
particular dele, pode ser uma condição necessária e suficiente para a ocorrência de eventos mentais
particulares. Em defesa dessa opinião eles apelariam para experiências dos seguintes tipos.
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O cirurgião canadense Wilder Penfield estimulou a superfície do cérebro de pacientes conscientes
com correntes elétricas leves. A estimulação de uma área do cérebro – a área do toque – levou o
paciente a acusar estranhas sensações na pele; a estimulação de uma outra área – o córtex visual –
leva ao paciente relatar flashes de luz. Mais surpreendentemente, a estimulação do lobo temporal
levou ao relato de eventos mentais muito específicos: ouvir uma mãe chamar sua criança muitos
anos atrás, ouvir vozes de festa ou a visão dos carros de um circo.
Se tomamos o ponto de vista cartesiano sobre a visão e memória, pensando estas duas faculdades
como sendo essencialmente a capacidade para experimentar eventos mentais privados, então
naturalmente assumimos que experimentos desse tipo demonstram que a estimulação cerebral não
somente é necessária, mas suficiente para produzir eventos do tipo adequado. Podemos então
concluir que a visão é localizada no córtex visual, a memória no lobo temporal, talvez mais
especificamente no hipocampo.
Se não somos cartesianos teremos maior cautela com esses relatos dos pacientes, na medida em
que pretendem ser evidências para a ocorrência de eventos mentais particulares. Nos últimos
capítulos, sobre a sensação e a imaginação, tentarei mostrar o que um não cartesiano consideraria
como o quadro de referência filosófico apropriado para o entendimento de tal fenômeno.
Nesse momento gostaria apenas de sublinhar que em todos esses casos de localização, a razão
para aceitar que certos eventos mentais estão ocorrendo ou que certas habilidades mentais tenham
sido danificadas nada tem a ver com o fato de que o cérebro está em certa condição ou está sendo
estimulado de certa maneira. O critério pelo qual o investigador julga que certo evento mental está
localizado em um lugar, ou que certas habilidades intelectuais estão faltando, são os próprios
comportamentos normais: o que o paciente diz e faz, ou falha em ser capaz de dizer e fazer.
Alguns filósofos e psicólogos levam adiante seu entusiasmo pela localização da mente a um tal
ponto que eles alegam que a mente pode ser simplesmente identificada com o cérebro. Podemos
mostrar de duas formas que tal identificação é totalmente equivocada.
Primeiro, pode haver cérebros sem mentes: um cérebro humano que tenha passado toda sua vida
em uma cuba não pode ter pensamentos e por isso não tem uma mente, independentemente de
quanto ele seja similar ao cérebro humano normal, elétrica e neurologicamente. Em segundo lugar, é
concebível que existam mentes sem cérebros. Se, quando eu morrer, descobrir-se que em meu crânio
há somente serragem, isto seria um milagre surpreendente. Mas se isso acontecesse, isso não
lançaria a menor dúvida sobre o fato de que tenho uma mente, coisa que é provada sem dúvida pelo
fato de que sei inglês e o estou usando para escrever este livro.
O elo entre a mente e o comportamento que exibe mentalidade é de natureza conceitual; o elo
entre a mente e o cérebro é de natureza contingente, descoberto por pesquisa empírica. A pesquisa
empírica que une o desempenho intelectual com a função cerebral precisa pressupor e não pode,
portanto, questionar o critério comportamental pelo qual determinamos o desempenho intelectual
que fornece um dos termos da correlação a ser estabelecida.
O comportamento é comportamento de um corpo. O que isso implica quando consideramos se
podem existir coisas como mentes sem corpo? Quando eu morrer, meu corpo cessará de ser eu e não
mais existirei. Algumas pessoas acreditam que as capacidades intelectuais e volitivas podem ser
exercidas separadamente (apart) do corpo. Acho isto difícil de entender. É verdade que na vida
presente há atividades intelectuais e volitivas que não envolvem qualquer atividade corporal tais
como pensamentos silenciosos e lembranças espirituais (spiritual longings). Não há dúvida que
mesmo tais atividades dependem da atividade cerebral, mas isto parece ser mais uma verdade
contingente do que necessária. Mas não é um fato meramente contingente que a pessoa que tem
esses pensamentos e lembranças seja um corpo visível e tangível; e não acho fácil, por minha parte,
encontrar sentido na idéia de que tais atividades possam ocorrer e ser atribuídas a almas individuais,
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na ausência de corpos para individualizar as almas. Pois no sentido no qual é indubitavelmente
verdadeiro dizer que tenho uma alma, a alma parece ser minha alma simples e exclusivamente
porque é esta a alma deste corpo.
Não desejo, entretanto, neste ponto, discutir com aqueles que acreditam em almas imortais fora
do corpo. Pois o que acabei de dizer não seria necessariamente rejeitado por aqueles que acreditam
em tais almas. Podemos considerar Tomás de Aquino como um porta-voz para tais crentes. Aquino
sem dúvida acreditava que cada ser humano tinha uma alma imortal, que poderia sobreviver à morte
do corpo e continuar a desejar e pensar no período anterior à eventual ressurreição do corpo pelo
qual esperava. Apesar disso, Aquino não acreditava que pudesse sobreviver como a pessoa que era,
em um eu (self) distinto do corpo, porque não pensava que almas sem corpo fossem pessoas. Mesmo
após a morte, ele acreditava que a sua alma era a alma que era somente porque era a alma que tinha
sido a alma de um corpo em particular. De acordo com ele, a sobrevivência pessoal plena era
possível somente se houvesse uma ressurreição do corpo.
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