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A J P Kenny - O Mito Cartesiano

consiste na ideia de que existem dois mundos. Existe o mundo físico, que contém a matéria e a energia, todos os objetos tangíveis do universo, incluindo

1 O Mito de Descartes. Anthony J. P. Kenny. § O Dualismo consiste na ideia de que existem dois mundos. Existe o mundo físico, que contém a matéria e a energia, todos os objetos tangíveis do universo, incluindo os corpos humanos. Existe um outro universo denominado mundo psíquico: eventos mentais e estados mentais que pertencem ao mundo privado que é inacessível à observação pública. Conforme a concepção Dualista, estes dois âmbitos, separados, interagem através de uma conexão que transcende as regras normais da causalidade e da evidência. § A mais impressionante defesa do Dualismo foi apresentada na filosofia de Descartes no Séc. XVII. Suas ideias principais podem ser expressas na forma de proposições concisas num cartão-postal. Contudo foram profundamente revolucionárias que alteraram o curso da filosofia por séculos. § Se desejarmos colocar as ideias centrais de Descartes em proposições concisas, precisaríamos apenas de duas sentenças: o ser humano é uma mente pensante; a matéria é extensão em movimento. Todas as coisas conforme o sistema de Descartes, devem ser explicadas conforme este dualismo de mente e matéria. Assim, devemos a Descartes a ideia de que devemos pensar a mente e a matéria como as duas grandes divisões mutuamente exclusivas e mutuamente exaustivas do universo que habitamos. § Para Descartes a coisa essencial sobre os seres humanos é que são substâncias pensantes. A essência total do ser humano é a sua mente: na vida atual, nossa mente está intimamente unida com nosso corpo, mas são nossos corpos que nos fazem o que somos. Seria possível um estado de vida em que permaneçamos 2 essencialmente o que somos, mas sem termos nossos corpos. A essência da mente é a consciência: a possibilidade de que pessoas possuam seus próprios pensamentos e os objetos dos mesmos. O ser humano é o único habitante consciente no mundo físico; todos os outros animais, conforme Descartes, são como máquinas complicadas sem consciência. § Novamente: segundo Descartes a matéria é extensão em movimento. Por “extensão” ele se refere àquilo que possui propriedades geométricas, tais como forma, tamanho, divisibilidade, etc. Estas são as únicas propriedades fundamentais a serem atribuídas à matéria. Ao mesmo tempo, Descartes buscou fornecer explicações do fenômeno do calor, luz, cor e som em termos do movimento de pequenas partículas materiais de tamanhos e formas diversas. Ele foi o primeiro expoente sistemático da ideia de que a ciência moderna deveria ser uma combinação de procedimentos matemáticos aliada a métodos experimentais. § Os grandes princípios do Cartesianismo – agora sabemos – se mostram falsos. Mesmo durante a sua vida, se descobriu fenômenos que não permitiam uma explicação direta em termos de matéria em movimento. A circulação do sangue e a ação do coração, tal como descobriu o médico Inglês William Harvey, demandam a operação de forças para as quais não há lugar para explicação dentro do sistema cartesiano. Mesmo assim, seu ponto de vista científico quanto a origem e natureza do mundo, ainda estava em voga por mais de um século após a sua morte; sua concepção dos animais como máquinas foi depois ampliada, por alguns de seus discípulos que argumentaram, para escândalo de seus contemporâneos, que os seres humanos também eram máquinas complexas. § A concepção de Descartes da mente perdurou muito mais tempo que a sua noção de matéria. Mesmo entre pessoas educadas no Ocidente e que não são filósofos profissionais é ainda amplamente divulgada a concepção cartesiana quanto à nossa 3 mente. A maioria dos filósofos contemporâneos se assume distante do Dualismo Cartesiano, mas mesmo para aqueles que explicitamente renunciam a ele, ainda se pode perceber que são profundamente influenciados pelo mesmo. § Muitas pessoas, por exemplo, acompanham Descartes ao identificarem o âmbito do mental ao âmbito da consciência. Pensam na consciência como um objeto de introspecção, como algo que pode ser observado introspectivamente quando olhamos para dentro de nós mesmos. Ao mesmo tempo, consideram que a correlação entre a consciência e a linguagem como não é essencial, é contingente à expressão na fala e no comportamento. A consciência, assim concebem, é algo para o qual cada um de nós tem acesso direto, no caso pessoal. Outros, diferentemente disto, apenas podem inferir algo sobre nossa consciência e estados mentais conscientes ao aceitar nosso testemunho ou por realizarem inferências causais a partir de nosso comportamento físico. § Numa reação extrema ao Dualismo Cartesiano surgiu no séc. XX uma corrente denominada (ou autodenominada) por Behaviourismo. Esta escola nega a existência de um âmbito mental. Segundo eles, quando atribuímos estados mentais ou eventos mentais para ou em outras pessoas estamos, na verdade, fazendo afirmações a respeito de seu comportamento físico atual e hipotético no caso futuro. Uma versão do Behaviourismo foi por muito tempo influente entre os psicólogos. Algumas versões mais sutis foram defendidas por filósofos contemporaneamente. § O Behaviourismo tenta reduzir os itens mentais, tais como crenças e desejos, à disposições físicas e movimento corporal. Muito trabalho foi elaborado a fim de apresentar as crenças como disposições físicas. Como uma tendência, a crença pode ser considerada como, sob certas circunstâncias, um som ou marcas no papel. Uma dificuldade que se apresenta para este tipo de tentativa é que movimentos corporais do queixo e da língua, por assim dizer, e que expressam a crença, em alemão, de 4 que o mundo é redondo, são movimentos muito diferentes do francês que expressa a mesma crença. Assim, é duvidoso então, que a crença de que o mundo é redondo possa ser analisada como uma tendência para realizar certos movimentos corporais. Se, hipoteticamente, uma classe de movimentos é buscada a fim de identificar aqueles que possuem os mesmos significados ou significados equivalentes, perceberemos que a noção de significado apresenta a mesma, e não menor, dificuldade para o Behaviourismo, tanto quanto à sua análise da crença. § Ambos, Dualismo e Behaviourismo tentam pôr em dúvida aspectos de nossas vidas que todos consideramos como verdadeiros: behaviouristas duvidam de aspectos de nossas mentes, os quais conhecemos muito bem; dualistas questionam nossas crenças no que diz respeito a se outras pessoas possuem mentes, enquanto que conversamos entre nós a partir desta crença (a saber: que outras pessoas pensam e têm consciência). § Na sua forma mais extremada o Behaviourismo tenta nos dizer que não temos nenhum dos pensamentos ou sentimentos que guardamos conosco e não exibimos publicamente; isto sabemos ser falso. No final das contas [at the very last…], o Behaviourismo tenta nos dizer que nossa consciência de todos nossos pensamentos e sentimentos é apenas uma inferência circular a partir de hipóteses sobre nosso comportamento público e aberto, passado, em várias circunstâncias, o que é obviamente absurdo. § O Dualismo, por outro lado, conduz ao ceticismo quanto à existência de outras mentes e põe em questão a existência da consciência em pessoas que não sou eu. Quando olho para dentro de mim mesmo, sob o ponto de vista Cartesiano, vejo minha consciência. Contudo, não é uma irresponsabilidade generalizar a partir de meu próprio caso para o de outras pessoas? Não posso olhar para dentro de outras pessoas: é da essência da introspecção que ela seja algo que as pessoas podem fazer 5 apenas por si mesmas. Posso fazer uma dedução causal a partir do comportamento de outras pessoas? Não, pois não posso começar por estabelecer uma correlação entre a consciência de outra pessoa para com seu comportamento, quando o primeiro passo da correlação é inobservável, a princípio. Claro, posso pensar que observo a correlação no meu próprio caso, mas é precisamente esta correlação que parece difícil de sustentar ou de generalizar. Sob tal ponto de vista, eu observo em mim próprio a consciência, além do meu comportamento, mas observo nos outros meramente seus comportamentos. A amostra para a qual tenho base (meu próprio caso) é ridiculamente pequena para permitir qualquer extrapolação. § Afortunadamente o Dualismo e o Behaviourismo não exaurem as alternativas abertas ao estudioso da filosofia da mente.. O mais significativo filósofo do séc. XX, Ludwig Wittgenstein acreditava que tanto Dualistas, quanto Behaviouristas, eram vítimas de confusão. A posição pessoal de Wittgenstein era um meio termo [middle instance] entre ambas as concepções. Eventos e estados mentais, acreditava ele, não são redutíveis às suas expressões comportamentais ou corporais (tal como argumentavam os Behaviouristas) nem totalmente separáveis dos mesmos (tal como propunham os Dualistas). Mesmo quando entretemos nossos pensamentos privados e espirituais, argumentava ele, o fazemos através de nossa linguagem que é essencialmente ligada à sua expressão pública e corporal. Diferentemente dos Behaviouristas, Wittgenstein não negava a existência de pensamentos privados e secretos, por assim dizer, por outro lado, ele demonstrou a incoerência da dicotomia Cartesiana entre corpo e mente. § Segundo Wittgenstein a conexão entre processos mentais e suas manifestações comportamentais não é uma conexão causal a ser descoberta, tal como outras conexões de tipo causal, as quais se fundam na regular concomitância entre dois tipos de eventos. Para usar um termo técnico cunhado por Wittgenstein, a 6 expressão física de um processo mental é um critério para tal processo, isto implica dizer, que faz parte do conceito de um processo mental, de tipo particular, que ele deve ter um tipo característico de manifestação. Para compreender o próprio significado de palavras como “dor”, “tristeza” devemos saber que dor e tristeza estão ligados a manifestações físicas particulares. Para compreender a noção de um certo tipo de estado mental, a pessoa deve compreender que tipos de comportamentos contam como evidência para a ocorrência do mesmo. Nestes casos a relação entre evidência comportamental e o estado mental não é do tipo indutivo. Isto é, não é do tipo de conexão estabelecida através da observação de co-ocorrências de dois tipos de conjuntos de eventos independentemente identificáveis. § Precisamos distinguir, argumentava Wittgenstein, entre dois tipos de evidências que podemos ter para a ocorrência de estados de coisas: devemos distinguir entre critérios e sintomas. Ali onde a conexão entre um certo tipo de evidência e conclusão pode ser obtida, a partir dela é uma questão de descoberta empírica através da teoria e da indução, então a evidência pode ser denominada como sintoma do estado de coisas. Onde a relação entre evidência e conclusão não é algo que possa ser descoberto por investigação empírica, mas algo que deve ser apreendido [grasped] por qualquer pessoa que possua o conceito do tipo relevante de coisa, então a evidência não é um mero sintoma, mas é um critério para o estado de coisas em questão. Um céu vermelho à noite pode ser um sintoma de bom tempo na manhã do dia seguinte, mas a ausência de nuvens e brilho do sol, etc, em conjunto são não apenas sintomas, mas critérios para o bom tempo. § Usando esta distinção podemos dizer que certos estados ou eventos no cérebro podem ser sintomas para determinados estados mentais, mas não podem ser critérios para os mesmos, ao menos não da forma que o comportamento apropriado pode ser. Assim, por exemplo, certos padrões elétricos no cérebro podem ser ou 7 talvez algum dia venham a ser sintomas da posse do conhecimento da língua inglesa por uma pessoa cujo cérebro apresenta aquele padrão elétrico. Mas uma pessoa que esteja apta [ready to] a usar o inglês como língua, e não apenas um sintoma do conhecimento de Inglês, mas critério para seu conhecimento de Inglês. § Os filósofos da mente estão ocupados [conccerned] ou preocupados com a análise do relacionamento entre a mente e o comportamento. Quando compreendemos, respondemos e avaliamos as ações uns dos outros, fazemos isto com o uso constante de conceitos mentais. A partir do que as pessoas fazem e, a fim de dar sentido ao que elas fazem, atribuímos a elas certas crenças e desejos. Adscrevemos a elas ações e escolhas e invocamos, a fim de explicar suas condutas, várias intenções, motivos e razões. Tais conceitos mentais, como por exemplo: desejos, crença, intenção, motivo e razão são o tema da filosofia da mente. Na ação humana buscamos por um elemento mental; na filosofia da ação humana, estudamos as relações entre o elemento mental e o comportamento aberto e público da pessoa ou pessoas que escolheram certo rumo ou direcionamento nas ações que desempenharam. § Conceitos mentais não podem ser compreendidos a parte de suas funções na explicação e busca de inteligibilidade no comportamento dos agentes humanos. Mas isto não deve ser compreendido de forma equivocada: quando explicamos a ação em termos de desejos e crenças não estamos propondo [putting forward] nenhuma teoria explicativa da ação humana. Ainda que atribuamos estados mentais para as pessoas com base em seus comportamentos abertos e públicos, seria errôneo sugerir que o nosso ponto de partida é o conhecimento direto de movimentos físicos dos corpos das pessoas e então criamos [frame] hipóteses quanto às causas mentais ocultas e que subjazeriam a estes movimentos. § É verdade que desejos e crenças explicam a ação, mas a explicação não é do mesmo tipo de uma hipótese causal. Não é como se as ações dos seres humanos 8 constituíssem um conjunto de dados causais brutos e movimentos físicos inidentificáveis nos seus rostos sem certos tipos de ações nas quais se envolvem e para as quais buscamos uma certa hipótese explicativa. Normalmente é para nós muito mais fácil fornecer descrições mentais ou mentalistas para o comportamento das pessoas (“Ele estava tentando abrir a porta”, “Ele estava ameaçando”) do que fornecer relatos precisos de seus movimentos físicos. Dessa forma, crianças aprendem a responder e a reagir conforme o ânimo de seus pais; adivinhar [guess] suas intenções, muito antes de ter adquirido a linguagem para fornecer descrições objetivas dos comportamentos de seus pais. § Muitas coisas que os seres humanos fazem não são identificáveis como ações de um tipo particular a não ser que elas sejam vistas e interpretadas como provenientes de um conjunto particular de desejos e crenças. Uma breve reflexão é suficiente para mostrar que este é o caso quando consideramos ações como comprar e vender, prometer e casar, mentir e contar histórias. Mas este parece também ser o caso de ações mais básicas e aparentemente físicas, tais como matar e deixar morrer [killing and let die]. Se um feiticeiro [witch – doctor] age através de um ritual cujo propósito é afastar uma falsa testemunha do tribunal e isto resulta na morte da testemunha é muito mais difícil dizer se o feiticeiro, de fato, matou a testemunha do que decidir qual era, de fato, a intenção do feiticeiro. § Normalmente, quando atribuímos alguma intenção para a ação humana estamos atribuindo ao agente certas razões para a ação. Quando, por exemplo, dizemos que Jane agiu por certa razão, estamos atribuindo a ela, tanto um desejo por um certo estado de coisas que ocorrerá ou que resultará e uma crença de que uma certa forma de agir ajudará a fazer com que aquele estado de coisas ocorra. Assim, estamos atribuindo a Jane estados mentais cognitivos e afetivos. 9 § Estados mentais cognitivos são aqueles que pressupõem que a pessoa tem informação (verdadeira ou falsa): coisas como crenças, reconhecimento [awareness], expectativas, certeza, conhecimento. Os estados afetivos não são nem verdadeiros nem falsos, mas consistem em uma atitude de busca ou evitação: propósitos, intenções, desejos, volições ou vontades, esperança e medo, por exemplo, envolvem tanto estados de expectativa, quanto à perspectiva de que tal estado aconteça e o julgamento de que de o mesmo é bom ou ruim. § Assim, quando inferimos a partir do comportamento e do testemunho a fim de atribuir estados mentais e atividades mentais, não estamos elaborando inferências indutivas em bases inseguras para propor a existência de eventos num âmbito inacessível. Os próprios conceitos de estados mentais tem como sua função nos permitir ou proporcionar tanto interpretar, quanto compreender a conduta e os proferimentos dos seres humanos. A mente, em si própria, pode ser definida como a capacidade para um comportamento complexo e para o uso de tipos simbólicos que constituem atividades linguísticas, sociais, morais, econômicas, científicas, culturais entre outras que são características dos seres humanos na sociedade. § A definição acima sugerida para a mente é muito diferente da definição Cartesiana com a qual iniciamos este texto. Para Descartes a característica definitória da mente é a consciência e não qualquer capacidade para a atividade simbólica. A fim de apresentar a magnitude da revolução Cartesiana na filosofia é interessante explicar como os limites da mente humana eram traçados por ele em um lugar muito diferente daquele traçado pelos seus predecessores da antiguidade e da Idade Média os quais tinham como pano de fundo a filosofia de Aristóteles. § Para os Aristotélicos, anteriores a Descartes, a mente era essencialmente uma faculdade ou um conjunto de faculdades que separava os ser humano dos demais animais. Tanto humanos como animais partilham de certas habilidades e 10 atividades: cães, vacas, porcos e gatos e seres humanos podem ver, ouvir e sentir; todos tem a faculdade comum ou faculdades das sensações. No entanto, apenas os seres humanos podem ter pensamentos elaborados e tomar decisões racionais: eles se distinguem dos outros animais pela posse de um intelecto e da vontade e são, essencialmente, estas faculdades que constituem a mente. Os Aristotélicos cristãos acreditavam que a atividade intelectual era, em sentido particular, imaterial, enquanto que a sensação era uma faculdade impossível sem o corpo material. § Para Descartes e para a geração de filósofos e psicólogos que estavam sob sua influência, os limites entre mente e matéria era traçado em outro ponto. Era a consciência e não a inteligência ou racionalidade que seria o critério definidor do mental. A mente, sob o ponto de vista Cartesiano é o âmbito de tudo aquilo que é acessível pela introspecção. O reino, por assim dizer, da mente incluía não apenas a compreensão e a vontade, mas também a capacidade humana de ver, ouvir, sentir dor e prazer. Para cada forma de sensação humana, segundo Descartes, existiria um elemento que era espiritual e não material, um componente fenomenal apenas contingentemente conectado a casos corporais, de expressão e mecanismos corporais. § Descartes teria concordado com seus predecessores aristotélicos que a mente é o que distingue os seres humanos de outros animais. Contudo, para ele esta tese era muito diferente do sentido em que era verdadeiro para os Aristotélicos. Para estes o que fazia tal tese verdadeira era que a mente estava restrita ao intelecto e à vontade. No entanto, para Descartes o que fazia tal tese ser verdadeira era que a mente pensante incluía a sensação e apenas os humanos possuem sensações genuínas. Tal como foi dito, Descartes considerava que apenas seres humanos possuem consciência genuína. A maquinaria do corpo, que acompanha a sensação nos seres humanos, pode ocorrer também nos corpos de animais, mas num animal 11 um fenômeno como o da dor era um evento meramente mecânico desacompanhado da sensação que é sentida pelos humanos quando sentem dor. § A distinção mais óbvia entre seres humanos e outros animais parece ser a de que os humanos são usuários da linguagem e os outros animais não. Por esta razão quando queremos nos referir a outros animais de forma breve e rápida os chamamos de “animais bestas”. Esta é também uma das razões para a tradicional definição dos seres humanos como animais racionais. § A razão pela qual Descartes podia utilizar os dons específicos da capacidade de uso da linguagem para distinguir a consciência animal é que ele identificava a consciência com “autoconsciência”. É verdade que a autoconsciência não é possível sem a linguagem: sem a linguagem não há diferença entre estar no estado de dor e ter o pensamento “Eu estou com dor”. Mas os predecessores de Descartes estavam corretos ao acreditar que pode ocorrer consciência sem a autoconsciência, logo pode ocorrer dor, sem linguagem para expressar a dor. § Ao introduzir a consciência antes que a racionalidade como caráter definitório da mente, Descartes tornou natural conceber a mente como um âmbito especialmente escondido e privado. § A racionalidade não é algo particularmente privado. Conforme os predecessores de Descartes o que distingue os humanos dos outros animais era a capacidade humana de fazer coisas como compreender aritmética ou o desejo pela fama. Nem a compreensão da aritmética ou o desejo por fama são estados especificamente privados. O sujeito não tem autoridade especial para se pronunciar na presença ou na ausência destes estados. Posso acreditar que compreendo uma operação aritmética particular, mas meu professor após me testar, poderá me mostrar que, na verdade, não compreendo. Similarmente pode que um amigo, particularmente sensível, me convença que estou apoiando uma certa campanha política, não por 12 amor à justiça, mas de forma que meu nome apareça nos jornais como notícia. Nestas questões tal como na compreensão da aritmética e a busca por fama, meu próprio e sincero proferimento não são a última palavra possível. § Por outro lado, se quero saber quais as impressões sensíveis que uma pessoa está tendo, então devo dar aos seus proferimentos sobre o fato algum status especial. A maneira natural de saber o que se passa numa pessoa, o que ela ouve, vê, o que está imaginando e dizendo para si mesma é solicitar que me diga. O que ela disser em resposta não necessariamente precisa ser verdade – ela pode ser insincera ou se enganar quanto às palavras que usa – mas não pode estar enganada. Experiências deste tipo parecem estar isentas de dúvidas da pessoa que as tem. Descartes considerava este tipo de indubitabilidade como propriedade característica do pensamento. Tais experiências são privadas a seu proprietário no sentido em que, ainda que outras pessoas possam duvidar das mesmas, ela própria não pode. A privacidade, então, se torna a marca do mental dentro do sistema Cartesiano. § É bastante claro que este tipo de privacidade é muito distinta da racionalidade. A descoberta do Teorema de Pitágoras foi um exercício de racionalidade e sabemos disso sem precisar saber se Pitágoras trabalhou no seu teorema apenas na sua mente ou primeiro na sua mente e depois por desenhá-la na areia. § Intelecção e sensação não são as únicas capacidades e atividades humanas que podemos considerar como pertencendo à mente humana e que alguns filósofos identificaram como fenômenos mentais. Além da habilidade de perceber e compreender, os seres humanos possuem memória, imaginação, paixão ou emoção. Descartes e seus predecessores concordavam ao classificar memória e imaginação como sentido interior. Consideravam estas faculdades como sentidos, pois consideravam que suas funções eram a produção de imagens e o pensamento como imagem interna seria uma espécie de réplica dos objetos exteriores aos sentidos. 13 Consideravam que tais faculdades eram internas devido às atividades das mesmas, diferente da atividade dos sentidos que não eram controlados por estímulos exteriores. § Argumentarei em capítulo posterior que a concepção dos sentidos interiores é um engano e que a relação entre sensação e imagens mentais foi incorretamente explicada tanto por Descartes, quanto por seus predecessores. Descartes se diferenciava de seus predecessores a este respeito, no sentido de que considerava a imaginação como parte da mente. A imaginação, tal como sensação, eram para ele uma operação mental acompanhada por atividade mecânica do corpo. A atividade mecânica da imaginação – e Descartes estaria preparado para identificar uma localização para ela – era algo que poderia ocorrer dentro do animal, tanto quanto no ser humano. Mas a pura atividade mental da imaginação era peculiar aos humanos e poderia ter lugar na alma desincorporada. § Para os predecessores de Descartes a imaginação não era parte da mente, mas era completamente corporal; almas e espíritos aos quais faltava um corpo, faltaria também a imaginação. Para alguns sucessores de Descartes, por outro lado, os sentidos internos se tornaram a mente por excelência. Os filósofos empiristas britânicos, na verdade, concebiam todo relacionamento entre a mente e a matéria em termos do relacionamento das operações dos sentidos interiores e as operações dos sentidos exteriores. § Na psicologia de David Hume, o que era fornecido pelos sentidos exteriores são impressões, já o que era fornecido pelos sentidos internos, são ideias. O conteúdo de nossas mentes, a base fenomenal sobre a qual o mundo pode ser construído, consiste em nada mais que impressões de ideias. Acima de tudo, os significados das palavras de nossa linguagem consiste nas suas relações para com impressões e ideias. É o fluxo das impressões e ideias em nossas mentes que faz com que nossos 14 proferimentos não sejam sons vazios, mas a expressão de pensamentos e se não se pode mostrar que uma palavra esta referida a uma impressão ou a uma ideia, ela deve ser descartada como sem significado. § A concepção empirista da relação entre linguagem e pensamento é rígida, por assim dizer. A questão de se podem existir pensamentos sem imagens não é simples (…). Mas mesmo que asseguremos, pelo próprio argumento, que pensamento e imagens andam juntos é importante ter claro qual destas operações confere significado à outra. De fato, quando pensamos em imagens, é o pensamento que confere significado para as imagens e não o contrário. Quando falamos silenciosamente, para nós próprios, as palavras proferidas na imaginação não teriam os significados que possuem se não fosse nossa capacidade intelectual da linguagem a qual eles pertencem. E quando pensamos através de imagens visuais bem como por meio de palavras proferidas, as imagens meramente provém uma ilustração para o texto cujo significado é dado pelas palavras que expressam o pensamento. § O filósofo empirista pode desejar aceitar o argumento de que imagens possuem significado que possuem apenas quando elas estão na mente do usuário da linguagem. Mas ele deverá sustentar que a capacidade [mastery] da linguagem é algo que deverá ser explicado em termos de leis de associação entre imagens em sucessão. Mas isto parece um engano. A aquisição da linguagem apenas pode ser explicada se postularmos uma habilidade específica para o Ser Humano. Os animais domésticos, vivem no mesmo ambiente sensorial dos bebês humanos, ainda que sejam incapazes de alcançar a mestria em termos abstratos e universais os quais a criança alcança enquanto se desenvolve. Se desejamos falar do “eu” em termos de sentido internos, deveremos, sem dúvida, atribuí-los aos animais também, não menos que para os seres humanos; mas no que diz respeito a aquisição da linguagem tanto Aristotélicos, quanto Cartesianos insistirão que o sentido interno 15 não é suficiente, é necessário um intelecto. Sob o ponto de vista empirista da mente, estes filósofos anteriores falharam em reconhecer qualquer coisa que poderiam denominar por intelecto. O programa empirista pode, na verdade, ser descrito como o empreendimento de eliminar o intelecto em favor do sentido interno. § Nas últimas duas décadas têm ocorrido um “revival” surpreendente do Cartesianismo. Isto se deve a duas razões principais, quais sejam: primeiro por uma insuficiente compreensão , por parte dos filósofos, do golpe mortal desferido pela filosofia de Ludwig Wittgenstein às noções cartesianas da consciência; em segundo lugar, pelo ressurgimento de certos aspectos da filosofia de Descartes defendidos pelo linguista Noam Chomsky. § Uma das teorias de Descartes era a de que algumas ideias que desempenham papel fundamental na compreensão humana não adquiridas através da experiência, mas eram partes inatas da estrutura da mente. Esta tese, historicamente, recebeu duras críticas por parte dos filósofos empiristas que simpatizavam com a filosofia de Descartes. Na Psicologia dos sécs. XIX e XX estas teses cartesianas eram consideradas como errôneas pela grande maioria dos praticantes. § Chomsky, diferentemente disso, defendeu a concepção Cartesiana como sendo a melhor estrutura teórica para a compreensão da linguagem humana. Os dados apresentados a uma criança, argumentou Chomsky, são muito fragmentários para constituírem uma base a partir da qual pudesse ser adquirida por meio de qualquer procedimento tradicional de aprendizagem. A mudança no aprendizado da linguagem que ocorre na criança e que ela exibe, pode apenas ser explicada a partir de uma teoria que tenha por base a proposta de alguma habilidade inata específica nos seres humanos. 16 § A teoria de Chomsky, ao menos em sua forma inicial, era uma hipótese empírica. Ele argumentava que a mente possuía, de forma inata alguns princípios organizadores de uma gramática universal, tal como um sistema básico de comportamento. A existência ou não de tal modelo deveria ser defendida em termos de sua necessidade ou adequação para explicar certas atividades linguísticas humanas, bem como certas técnicas particulares a construção de sentenças bem formadas e com vários graus de complexidade. § Nem todos os leitores de Chomsky estavam convencidos de que as estruturas da mente postuladas por sua teoria linguística tinham algo mais que o nome em comum com as ideias inatas de Descartes. Na verdade, muito do aparato teórico de Chomsky foi visto com certa desconfiança pelos que simpatizavam com a filosofia de Descartes. Por exemplo, Chomsky reintroduziu a noção de “faculdade” e forneceu a esta importância relevante na psicologia, a qual não simpatizava com tal noção já a vários séculos. Ele distingue, por exemplo, entre linguagem como uma faculdade específica e diferente da faculdade do aprendizado dos números; argumenta que o fenômeno da aquisição da linguagem pelos seres humanos mostra que deve existir uma faculdade da linguagem específica da espécie, que é muito distinta da capacidade para computação matemática, que pode ser comum não apenas para seres humanos, mas para outras espécies em outros planetas e que, por suas especificidades, poderiam superar as faculdades humanas. Descartes, por outro lado, considerava a noção de “faculdade” como um anacronismo Aristotélico que apenas ficava no caminho de qualquer progresso científico. § Ainda, Chomsky acreditava que usando a linguagem nós mostramos conhecimento tácito que consiste em operar com regras e princípios que não são passíveis de serem explicitadas por uma formulação consciente. Ou seja, as regras que manipulamos estão como que codificadas em nossas mentes. Ora, Descartes, 17 que definia o conteúdo da mente em termos de”consciência”, seria obrigado a rejeitar qualquer apelo tácito a um conhecimento não formulado, isto é, que não fosse consciente. § Acima de tudo, o apadrinhamento por parte de Chomsky, de uma linguística Cartesiana forneceu nova vida a muitas ideias provenientes do cartesianismo. Em particular a noção cartesiana de consciência a qual muitos filósofos acreditavam ter sido ferida mortalmente pela filosofia de Ludwig Wittgenstein, ressurgiu dos mortos de forma notável. Este “revival” foi dignificado por alguns filósofos e comentadores da teoria de Chomsky como a “revolução mental” dos anos de 1970. § Não há nada filosoficamente relevante que se possa fazer objeção nos postulados de Chomsky quanto a estrutura mentais inatas. Obviamente, os seres humanos nascem com certas habilidades para o aprendizado. Se a habilidade para adquirir a gramática de um certo tipo é uma habilidade para aprender ou uma habilidade para “amadurecer” o aprendizado, sob certas circunstâncias, é uma questão filosoficamente aberta e que pode ser avaliada através de investigações empíricas. § Novamente, a noção de faculdade não merece a má reputação [obloquy] em que caiu durante séculos. Na verdade, se uma faculdade é tomada como um órgão imaterial ou como impulso para-mecânico, a noção é oferecida como uma paródia filosófica destrutiva. Mas, se por faculdade nós desejamos simplesmente dizer que é um tipo particular de habilidade mental, então está além de qualquer dúvida que os seres humanos possuem várias faculdades mentais. § Mas é algo digno de nota que a noção Cartesiana de consciência tenha voltado a ter aceitação entre alguns dos admiradores de Chomsky sob a roupagem da noção cartesiana de ideias inatas e a própria noção não-Cartesiana de faculdades mentais. É agora comum que nos falem de estados mentais em adição a qualquer relação que possam ter com “inputs” ou “outputs” que possuem uma natureza interna e 18 qualitativa que fundamentalmente é inexprimível. No caso das sensações elas são denominadas por “qualia sensorial”. Por exemplo, as dores possuem uma qualidade intrínseca que é revelada pela introspecção a qual é muito distinta de qualquer outro critério para dor, o qual pode ser conferido por um observador externo. Qualquer filosofia da mente adequada, nos dizem, deve obrigatoriamente ser capaz de encontrar lugar na teorização para estes “qualia” inefáveis. § A alegada existência de qualia é tomada como apresentando um problema para a atual filosofia da mente que está na moda. O Funcionalismo é popular não apenas entre os filósofos e psicólogos, mas também entre os pesquisadores da área de Inteligência Artificial e nas Ciências Cognitivas. Os investigadores destas áreas e principalmente da Inteligência Artificial procuram produzir um computador que irá não apenas resolver problemas, mas solucioná-los da mesma forma com que os seres humanos o fazem. Em relação aos programadores e designers computacionais podemos compará-los a engenheiros aeroespaciais que estão ocupados, não em construir aviões e artefatos eficientes, mas em construir uma ave artificial. Os devotos das Ciências Cognitivas podem operar em diferentes disciplinas: filosofia, psicologia empírica e inteligência artificial. O nome não é tanto a descrição de uma área de estudo mas um manifesto de crenças de que as características da mentalidade humana serão eventualmente explicáveis de forma desmitologizante através de alguns procedimentos científicos atualmente em voga. § O Funcionalismo é também apresentado de forma a ser uma modificação sofisticada do Behaviorismo. Enquanto que o Behaviourismo considerava que cada estado mental pode ser definido em formas de sua expressão comportamental ou por meio de seu “output” comportamental em conjunção com seu “input” de contexto, o Funcionalismo aceita que estados mentais não podem ser definidos a não ser em relação a outros estados mentais. Segundo funcionalistas o que será 19 definido em termos de input externo e output observacional, mesmo sob o ponto de vista mas otimista, não serão estados mentais individuais, mas apenas a rede de estados mentais inter-relacionados e processos que constituem a história natural da mente. § Ainda que muitos funcionalistas aceitem com vários graus de relutância, a existência de qualia inexprimível nos seres humanos, a referência à palavra “função” na sua denominação filosófica é usada para enfatizar que o mais relevante quanto aos estados mentais não é seu “sentido interno”, mas seu relacionamento com as noções de input e output. O elemento crucial na mentalidade, alegam os funcionalistas, não é nem o sentimento de uma qualidade dos estados mentais, nem o “hardware” em que os estados mentais estão incorporados, mas a estrutura das atividades mentais e, ainda, qual “hardware” permite suportá-los. § Nesta concepção o Funcionalismo incorpora uma verdade importante: seres humanos são criaturas de carne e sangue, com certas habilidades que constituem suas mentes. Nada há na natureza da mente humana que indique não ser ela “encarnada” ou “materializada” em criaturas com constituições físicas bem diferentes. Acima de tudo, mesmo no caso de humanos compostos de carne e sangue, não há nada na natureza de nossas mentes que prove para nós próprios que não sejamos artefatos extremamente habilidosos. § É possível fantasiar a seguinte fábula: algum dia baterão em sua porta e será o representante, claramente identificado, de uma grande corporação da área de computação que lhe dirá “Senhor, represento a corporação XYZ e venho lhe oferecer um upgrade para sua vida mental”. Claro que isto é uma fantasia absurda, mas sei que não sou um computador com vida mental ou humanizado, da mesma forma que sei que gatos não nascem em árvores. Sei disto não através de algum tipo de argumento do tipo “penso, logo não sou um artefato”. Se, contudo, sou 20 cético a respeito do tipo de argumentos elaborados atualmente por “cientistas cognitivos” e experts em inteligência artificial, não o faço por crer que existe um argumento a priori que demonstre que nenhum computador poderá ter consciência ou ter uma mente. Certamente não será por crer, tal como Descartes, que existe um âmbito da consciência totalmente diverso do âmbito físico no qual o software é elaborado [designed] e o hardware é manufaturado. Minha crença se deve a razão exatamente oposta: creio que a herança de Descartes impede [prevents] aqueles que trabalham nestes campos de realmente compreenderem os problemas que estão buscando solucionar, a estrutura mental que estão tentando gerar. Por tal razão, acredito, novamente, que é válido tentar destruir o mito cartesiano. OBS: o texto originalmente é o capítulo 1 de The Metaphysics of Mind, publicado pela Oxford University Press em 1992, pgs. 1 – 16. Tradução e adaptação Arturo Fatturi. O símbolo “§” indica o parágrafo original no texto. Algumas palavras em inglês marcadas com [english] permitem uma tradução diferente em nossa língua ou a tradução apresentada não é literal.