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Art 22 SUAS

Este trabalho tem como objetivo apresentar reflexões dentro de uma perspectiva institucionalista acerca da inserção atual dos psicólogos no campo da Assistência Social. Essa análise foi efetuada a partir da atuação dos psicólogos no Sistema Único de Assistência Social --SUAS em articulação com a formação acadêmica em psicologia. Para tal apresenta o campo do SUAS e discute a inserção micropolítica do psicólogo, a partir da Análise Institucional de René Lourau. Examina ainda o processo de institucionalização, o campo de forças entre o instituído e o instituinte e a relação demanda versus oferta, nesse contexto. Conclui--se que esse é um campo novo, que convoca a invenção.

ECOS | Volume 1 | Número 2 O SUAS e a formação em psicologia: territórios em análise SUAS and training in psychology: analysing territories Roberta Carvalho Romagnoli Resumo Este trabalho tem como objetivo apresentar reflexões dentro de uma perspectiva institucionalista acerca da inserção atual dos psicólogos no campo da Assistência Social. Essa análise foi efetuada a partir da atuação dos psicólogos no Sistema Único de Assistência Social ‐ SUAS em articulação com a formação acadêmica em psicologia. Para tal apresenta o campo do SUAS e discute a inserção micropolítica do psicólogo, a partir da Análise Institucional de René Lourau. Examina ainda o processo de institucionalização, o campo de forças entre o instituído e o instituinte e a relação demanda versus oferta, nesse contexto. Conclui‐se que esse é um campo novo, que convoca a invenção. Palavras‐chave SUAS; análise institucional; formação do psicólogo. Abstract This article intends to present some reflections within an institutionalistic approach on the current inclusion of psychologists in the field of Social Assistance. This analysis was conducted based on the performance of psychologists in National Social Assistance System ‐ SUAS in conjunction with academic training in psychology. Therefore presents the field of SUAS and discusses the micropolitics of psychologist’s insertion according to René Lourau Institutional Analysis. The force field between instituted and instituting is examining with the relationship between demand versus supply, and the process on institutionalization. We conclude that this is a new field, which calls upon the invention. Keywords SUAS; institutional analysis; psychologist professional training. Roberta Carvalho Romagnoli Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais Professora Adjunto III do Programa de Pós‐graduação em Psicologia da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. [email protected] ECOS | Estudos Contemporâneos da Subjetividade | Volume 1 | Número 2 “Tudo aquilo que em mim sente, sofre de estar numa prisão, mas a minha vontade chega sempre como libertadora e portadora de alegria. O querer liberta: é esta a verdadeira doutrina da vontade de liberdade – e, assim, a vós ensina Zaratrusta. Não mais querer e não mais determinar valores e não mais criar: ah, sempre longe de mim fique esse cansaço! Também no conhecimento, sinto apenas o prazer da minha vontade de criar e envolver; e, se há inocência em meu conhecimento, tal acontece porque há nele vontade de criação”(NIETZSCHE,1986, p.101). O SUAS e seus equipamentos Com a Constituição de 1988, reflexo de ampla mobilização social, institui‐se oficialmente em nosso país o tripé: previdência ‐ saúde ‐ assistência social, compondo um sistema de seguridade social que reconhece o direito às estruturas democráticas e à proteção social para toda a população, inclusive para os não‐segurados (BRASIL, 1988). Dissemina‐se, assim, um padrão de proteção social mais igualitário e universalista, modificando a concepção vigente de assistência social no Brasil, que, segundo Costa (2002), se fundamentava no clientelismo particularista, na ausência de parâmetros universalistas e de transparência nas ações, bem como na falta de participação da sociedade civil. Podemos afirmar que as ações nessa área reproduziam situações de sujeição e eram “(...) tradicionalmente clientelistas e assistencialistas, (...) ações que transformam o direito de ajuda e doação, sendo que quem recebe fica devendo um favor e se vê obrigado a retribuir a doação com serviços e votos” (CUNHA; CUNHA, 2002, p. 17). Essa concepção clássica da assistência social trouxe reflexos nefastos para a sociedade brasileira, tendo em vista que se mostrou inoperante no combate à exclusão social e na garantia dos direitos mínimos para os cidadãos, como salienta Costa (2002). Na tentativa de alterar esse panorama e fundamentar as políticas ligadas à infância e adolescência, ocorre em julho de 1990 a regulamentação do Estatuto da Criança e do Adolescente ‐ ECA (BRASIL, 2000) e, logo depois, em dezembro de 1993, da Lei Orgânica de Assistência Social ‐ LOAS ‐ (BRASIL, 2001), esta última visando efetivar as ações desenvolvidas no campo da assistência social propriamente dito. Tanto o ECA como a LOAS propiciaram uma guinada nessa proposta e consolidam a assistência social como uma política pública que visa garantir, a todos que dela necessitarem, sem contribuição prévia, a proteção social. Proteção esta que possui três vertentes: as pessoas, as suas circunstâncias e a família, caracterizando‐se por um esforço, a partir dessa tríade, de assegurar os diretos e promover a cidadania em segmentos excluídos da sociedade. A partir da LOAS e da IV Conferência Nacional de Assistência Social, entra em vigor o Sistema Único de Assistência Social ‐ SUAS, implantado em 2005 em todo o território nacional, que define e organiza a política da assistência social, reordenando a gestão e visando ações descentralizadas e participativas em todo o Brasil. Nesta perspectiva, o SUAS estabelece duas formas de proteção social, a Proteção Social Básica ‐ PSB e a Proteção Social Especial ‐ PSE conforme aponta o Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome (2004). A PSB sustenta ações de vigilância social que visam a prevenir situações de risco social através das potencialidades e do fortalecimento dos laços afetivos e familiares, possibilitando a inserção dos sujeitos na rede de atendimento, garantindo o acesso às seguranças básicas e aos direitos socioassistenciais. O equipamento para efetivar esse tipo de proteção é o Centro de Referência em Assistência Social ‐ CRAS, que tem como objetivo a 121 ECOS | Estudos Contemporâneos da Subjetividade | Volume 1 | Número 2 prevenção de situações de risco e a promoção social embasadas em princípios ético‐políticos do desenvolvimento humano e territorial. Nesse sentido, suas ações apostam nas potencialidades dos sujeitos, das famílias e das comunidades. Por outro lado, a PSE corresponde a ações de atendimento socioassistencial destinadas a indivíduos e famílias em situação de violação de direitos (abandono, maus tratos físicos e/ou psicológicos, abuso sexual, substâncias psicoativas, situação de rua, entre outros), intervindo em casos em que há situações de risco com ou sem rompimento dos vínculos familiares. De acordo com a tipificação nacional dos serviços socioassistenciais, a PSE se divide em programas de média complexidade e alta complexidade (BRASIL, 2009). Os programas de média complexidade visam a prestar atendimento a casos de violência e exploração sexual, ao cumprimento de medidas socioeducativas em meio aberto, abandono, maus tratos, trabalho infantil e negligência. São eles: Serviço de Proteção e Atendimento Especializado a Famílias e Indivíduos (PAEFI); Serviço Especializado em Abordagem Social; Serviço de Proteção Social a Adolescentes em Cumprimento de Medida Socioeducativa de Liberdade Assistida (LA), e de Prestação de Serviços à Comunidade (PSC); Serviço de Proteção Social Especial para Pessoas com Deficiência, Idosas e suas Famílias e Serviço Especializado para Pessoas em Situação de Rua. Os programas de alta complexidade, por sua vez, são serviços que garantem a proteção integral (moradia, alimentação, higienização e trabalho protegido) quando há necessidade de entrada no núcleo familiar ou comunitário. Os programas de alta complexidade se dividem em Serviços de Acolhimento Institucional (Abrigo Institucional, Casa‐Lar; Casa de Passagem; Residência Inclusiva); Serviço de Acolhimento em República; Serviço de Acolhimento em Família Acolhedora e Serviço de Proteção em Situações de Calamidades Públicas e de Emergências. Vale lembrar ainda que as ações do SUAS baseiam‐se na matricialidade sociofamiliar, que coloca a família como matriz, sustentáculo das suas políticas, espaço privilegiado e insubstituível de proteção e socialização primárias (MINISTÉRIO DO DESENVOLVIMENTO SOCIAL E COMBATE À FOME, 2004). Embora essencial para a sustentação das políticas públicas sociais, observamos que a centralidade da família não se efetua de forma harmônica, mas conflitiva e desafiadora para os profissionais, pois a família é em si um grupo instável, heterogêneo e portador de uma série de contradições. Aliás, segundo Costa (2002) presenciamos um alto grau de complexidade e indeterminação na implementação das mudanças garantidas pelo SUAS, em que esse fator é apenas um dos pontos a serem levantados. Tais indeterminações são sustentadas por questões políticas. De fato, acreditamos que “Tudo é política, mas toda política é ao mesmo tempo macropolítica e micropolítica” (DELEUZE; GUATTARI, 1996, p. 90). A grande diferença dessas práticas não se dá em seu tamanho, grande ou pequeno, mas sim em seus modos de funcionamento. Assim, de acordo com os referidos autores, a macropolítica insiste em sobrecodificar, segmentar o movimento da vida, enquanto que a micropolítica opera para o fluir, insiste no que escapa da sobrecodificação para criar. A macropolítica com seus segmentos possui organização visível que administra a vida de forma homogeneizante e instituída. A micropolítica, por sua vez, possui organização invisível e pode atuar tanto para oprimir, nos microfascismos, quanto para inventar nas conexões com forças que trazem o novo. Costa (2002) discute vários elementos de cunho macropolítico, tais como a fragmentação da burocracia pública, a dificuldade de gestão dos poderes locais, a precariedade de informações na aparelhagem institucional, a adesão dos municípios por indução do governo federal, entre outros. Aponta também para as dificuldades no cotidiano, na prática micropolítica, 122 ECOS | Estudos Contemporâneos da Subjetividade | Volume 1 | Número 2 muitas das vezes permeada por obstáculos que impedem a sustentação efetiva desses serviços e dessa dimensão ético‐política no trabalho com as famílias, como foi pontuado acima. Dificuldades repetidamente sustentadas por microfascismos que buscam normalizar e que com frquência atuam em conjunto com os endurecimentos promovidos pelos segmentos macropolíticos, segmentos invisíveis que prendem os profissionais em formas dominantes e já estabelecidas de atuar. Nesse contexto, acreditamos que o SUAS se faz na articulação da dimensão macropolítica que se sustenta nas instituições de âmbito representacional, com a dimensão micropolítica que se constitui no modo como os coletivos se tensionam entre assujeitamentos e conexões de expansão da vida nos diferentes territórios de trabalho. Nesse processo, as linhas macropolíticas determinam as normas de funcionamento e administração dos equipamentos do SUAS e as linhas micropolíticas dizem respeito tanto a capturas quanto à produção de soluções pontuais no exercício singular de cada equipe. Percebemos que essa articulação denuncia a cisão entre o que existe formalmente na proposta elaborada pelo Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome (2004) para o SUAS e o que ocorre na prática/cotidiano. Apesar deste modelo ser democrático e fecundo no papel, são os profissionais que trabalham no dia a dia que também vão viabilizá‐lo ou não. E estes se encontram, de modo geral, com dificuldades de construir laços coparticipativos com as famílias, direcionados à autonomia desse grupo, ao favorecimento da cidadania, à realização de conexões efetivas para expansão da vida. Nesse contexto, podemos nos perguntar: por que tantos empecilhos? O que se exige de nós, psicólogos, nesses cenários? Que dificuldades surgem na relação dos profissionais com as famílias e atravessam a realização do trabalho com as mesmas? Recorrendo também ao Conselho Regional de Minas Gerais, no que se refere à condução de nossa atuação podemos afirmar que “Neste ambiente de trabalho é preciso a presença da Psicologia, mas não exclusivamente do psicólogo. Trata‐se de um campo transdisciplinar, no que o objetivo é o empoderamento das famílias [...] (CONSELHO REGIONAL DE PSICOLOGIA, 2007, p. 11). Podemos definir a transdisciplinaridade como: (...) processos de conhecimento que concebem a fronteira como espaço de troca e não como barreira, processos que incitam à migração de conceitos, a frequentação exploratória de outros territórios, ao diálogo modificador com o diverso ou de outra forma, processos que não se esgotam na partição de um mesmo objeto entre disciplinas diferentes, prisioneiras de pontos de vista singulares, irredutíveis, estanques e incomunicados (PAULA E SILVA, 2001, p. 36). Desse modo, a transdisciplinaridade permite a articulação com diferentes disciplinas, saberes e práticas em um diálogo que inclui tanto o saber acadêmico, as artes, a tecnologia e fortemente os saberes populares. A prática trans traz uma nova proposta epistemológica, pois pretende abarcar a complexidade e a processualidade, desestabilizando as divisões entre as disciplinas, as especialidades, analisando e subvertendo as relações de poder, convocando a invenção (BENEVIDES DE BARROS; PASSOS, 2000). Nesse campo transdisciplinar é preciso ainda deslocamentos dos psicólogos pelas fronteiras da sua prática. Ao analisar a inserção da Psicologia, Afonso (2008) aponta para a necessidade de alterações na prática dos profissionais, bem como a adesão à proposta da assistência social. Nas palavras da autora: 123 ECOS | Estudos Contemporâneos da Subjetividade | Volume 1 | Número 2 A mudança na política da assistência social exige metodologia de trabalho interdisciplinar e intersetorial. [...] O CFP/ CREPOP recomenda que as equipes de trabalho se comprometam com princípios da assistência social, com seu código de ética [...] Para tal, a psicologia e a psicologia social apresentam recursos teórico‐metodológicos a serem adequados à assistência social [...] Também é fundamental produzir novos conhecimentos e instrumentos integrados à formação profissional. (AFONSO, 2008, p. 14). No nosso entender, a partir das colocações acima e da proposta do SUAS, todo esse contexto exige profissionais que consigam trabalhar e ter reflexões transdisciplinares, perseguindo o coletivo de forças presentes em suas inserções. Que consigam criar zonas de indagações entre os profissionais da equipe e com os usuários, buscando desestabilizações que possam conduzir a saídas inventivas e coletivas. Cabe ressaltar que a compreensão do coletivo se dá como um plano de coengendramento em que as dicotomias do indivíduo e da sociedade não têm lugar, como salientam Escóssia e Kastrup (2005). Para as autoras, o coletivo se sustenta nas relações e nos processos micropolíticos que viabilizam novas formas de expressão, agenciando forças potentes, que escapam ao que está estabelecido e produzem efeitos que possibilitam o novo. Agenciar é dar passagem a essas forças que emergem nesses encontros, que conduzem à invenção, a outros modos de subjetivação. Dessa maneira, o coletivo é um plano de produção conjunta que se estabelece a partir de agenciamentos, plano ético‐político que aposta no que ganha forma através dessas conexões e que potencializa ou não a vida. Além de perseguir essa postura ético‐política, entendemos que é preciso que esses psicólogos conheçam a família brasileira e os diferentes arranjos familiares presentes nas camadas sociais, contextualizando histórica e socialmente esses grupos, evitando assim julgamentos transcendentes e depreciativos dos usuários do SUAS. Ou seja, profissionais que efetuem intervenções que não sustentem o isolamento indivíduo versus social e nem a despolitização das práticas “psi”, sempre atentos aos modos de funcionamento macropolíticos e micropolíticos da realidade em que intervêm. E que estejam alerta às formas/modelos e forças/potências que circulam, nos espaços em que atuam, sensíveis à micropolítica do cotidiano. E como a formação em Psicologia está favorecendo essas dimensões, tanto na graduação como na pós‐graduação? O SUAS e a formação colocados em análise Embasados no referencial teórico da Análise Institucional de René Lourau, examinamos brevemente a formação em Psicologia e sua relação com o SUAS, com o objetivo de mapear provisoriamente o jogo de forças do instituído e do instituinte, do que se reproduz e está estabelecido e do que aponta para a construção de novas práticas no cotidiano, respectivamente (LOURAU, 1975). Esse jogo de forças está presente em todo processo de institucionalização, nesse caso, de implantação do SUAS, este mesmo fruto de movimentos sociais instituintes no Brasil que buscavam estabelecer‐se através da construção de uma base jurídico‐constitucional. Essa institucionalização diz respeito ao movimento pelo qual a instituição se (re)produz permanentemente. Para Lourau (1980) a instituição possui uma gênese teórica, que remete sempre ao âmbito do filosófico, do conceitual, mas também possui uma gênese prática associada aos movimentos e fatos sociais concretos. É importante assinalar que a gênese teórica não precede a gênese social, ambas coexistem processualmente. Nessa fase da sua obra o autor privilegia 124 ECOS | Estudos Contemporâneos da Subjetividade | Volume 1 | Número 2 a natureza dialética do universal, do particular e do singular, em que cada momento se fundamenta na negação, na superação e na conservação do precedente. Para se conhecer uma instituição deve‐se levar em conta a interação entre esses momentos e as forças que os acompanham, que não é diretamente visível e está em constante mutação e contradição, sendo ine‐ rente a todo o processo presente nas instituições. Lourau (2004a) defende que é inviável se realizar uma análise neutra e apolítica de qualquer instituição. Nesse contexto, é necessário investigar os instituídos cristalizados nos nossos campos de atuação. Para tal, sustenta a importância da implicação, que não diz respeito ao engajamento, à motivação ou à relação pessoal que mantemos com esses campos. Pesquisar a implicação é dizer, sobretudo, das instituições que nos atravessam. A implicação denuncia que aquilo que a instituição deflagra em nós é sempre efeito de uma produção coletiva, de valores, interesses, expectativas, desejos, crenças que estão imbricados nessa relação. Para se conhecer uma instituição é preciso ainda fazê‐lo de dentro dela, examinando os atos cotidianos, seus dispositivos e relações, com análises macropolíticas e micropolíticas sempre conjunturais e provisórias como nos lembra Monceau (2010). Aplicando essas ideias ao Sistema Único de Assistência Social ‐ SUAS, podemos desmembrá‐lo didaticamente e dialeticamente na ótica do universal, do particular e do singular apresentada acima. No momento da universalidade, este sistema se afirma como uma instituição, sustentando a supremacia do polo do instituído. Ou seja, o SUAS emerge como forma abstrata instituída e verdadeira, como se houvesse um único sistema e como se todos os seus serviços fossem iguais e imutáveis, em todos os níveis de proteção e complexidade, não apresentando diferenças entre eles e abarcando todos os casos particulares e singulares. É importante ressaltar que todo instituído possui um propósito que é denominado função e atua sempre para a reprodução e conservação de um sistema social. Neste sentido, toda forma social possui um caráter social que lhe diz respeito e cuja unidade é dada pela delimitação de sua função oficial, oriunda da ordem do instituído, que justifica e legitima a existência de um determinado sistema social, onde as instituições ocupam um lugar genuíno, universal e necessário. Enquanto "árvores de decisões lógicas que regulam as atividades humanas" (BAREMBLITT, 1992, p. 176), para operar concreta‐ mente sua função oficial, as instituições materializam‐se sob formas sociais de organizações e estabelecimentos, sendo que "[...] as organizações são grandes ou pequenos conjuntos de formas materiais que põem em efetividade, que concretizam as opções [...] que as instituições enunciam. Isto é, as instituições não teriam vida, não teriam realidade social, se não fosse através das organizações." (BAREMBLITT, 1992, p. 30). Por sua vez, os estabelecimentos são unidades menores que integram as organizações, podendo ser de vários tipos e possuir características muito diversas. São exemplos de estabelecimentos: uma escola, um clube, uma fábrica, entre outros. Ao concretizar‐se nas organizações, a instituição nega o instituído e sustenta o campo do instituinte que designa a potencialidade para a mutação ‐ força orientada para a transformação e materializada no momento da particularidade. Nesse momento, referimo‐nos a um serviço de assistência social específico, que se caracteriza por um programa particular com sua dinâmica de funcionamento e seus pressupostos, como cada um dos programas de proteção social, por exemplo, o CRAS. Dessa forma, ocorre uma negação do momento anterior, pois a universalidade se perde quando aplicada a condições particulares, circunstanciais. No particular, nos deparamos com a base social do conceito, transfigurada em forma social concreta, produzindo condições materiais para a atuação do instituinte. 125 ECOS | Estudos Contemporâneos da Subjetividade | Volume 1 | Número 2 Por outro lado, é no campo da institucionalização, do momento singular existente no cotidiano de cada CRAS, para usar o exemplo anterior, que ocorre tanto com a atividade de conservação que é encaminhada a conter o instituinte, o novo, quanto com a atividade cambiante encaminhada a alterar o instituído. Cada CRAS, entendido como estabelecimento, em sua singularidade e materialidade únicas, dentro de suas condições de existência, afirma e nega ao mesmo tempo a universalidade da proposição teórica e sustenta a possibilidade de mudanças instituintes. O momento da singularidade corresponde à institucionalização e mostra que a instituição se encontra em algum lugar entre a conservação do instituído e a criação do instituinte, com todas as contradições que derivam desse jogo de forças, dessa tensão contínua. Nessa processualidade, vale lembrar que “A dialética obriga a que não nos contentemos com a oposição dualista entre interesses particulares e interesses gerais. A universalidade da instituição, pela mediação de cada caso particular, encarna‐se nas formas singulares e diferenciadas.” (LOURAU, 2004b, p. 49). Dessa maneira, a instituição sustenta dialeticamente processos constantes e contraditórios, inerentes à sua existência. A implantação do SUAS, por essa perspectiva, é permeada pelo confronto entre a forma instituída de lidar com a Assistência Social, ou seja, a vertente assistencialista e clientelista delineada historicamente e as forças instituintes que sustentam novas formas de atuar na área e que se amparam nos movimentos sociais, nas condições locais dos municípios para sua realização, nos embates políticos travados cotidianamente e nas entidades de participação e controle social sobre as políticas públicas. Por outro lado, os cursos de Psicologia também vivem essa mesma tensão: manter a formação tradicional centralizada em setores distintos ‐ saúde, educação, trabalho e social ‐ e/ou apostar em atuações emergentes que apontam para a transdisciplinaridade, a diluição desses setores sem recair em especialismos, possibilitando múltiplas conexões e atuações. Dessa maneira, nos propomos a abordar a relação do SUAS com a Psicologia como um campo de análise, questionando nossa inserção nesse campo através do processo de institucionalização, de suas contradições e de seu jogo de forças do instituído e do instituinte, analisando a nossa oferta de serviços, associada diretamente com a formação que recebemos na graduação e a partir da qual uma demanda é criada na população atendida e na equipe de trabalho. Demanda esta que diz respeito aos serviços ofertados como especialista, à aprendizagem acerca de nossa profissão, ao que definimos como nossa atuação. Refletir acerca da oferta de trabalho é examinar a criação da demanda por parte do profissional nos usuários, como destaca Rocha (2006). Oferecer determinada proposta de serviços e de intervenções faz, inclusive, com que essas propostas sejam buscadas e solicitadas. Ou seja, a toda oferta de serviços e de intervenções se articula a produção de uma demanda, criando‐se a necessidade, a procura nos usuários. Dar visibilidade a essas relações é repensar a própria academia e a formação que ela propicia, bem como a relação com a realidade, transversalizando conjunturas históricas e sociais, através da participação ativa da comunidade/usuários e também do questionamento das demandas que produzimos. Realizando um breve percurso histórico do uso da expressão “Clínica Social” no campo da clínica, Ferreira Neto (2003) nos mostra um panorama desse campo, mas que, no nosso entender, também pode ser aplicado à própria formação em Psicologia no Brasil. Assim, a formação tradicional adquirida na graduação, como pontuado pelo referido autor, se dá a partir da setorização da Psicologia em campos de atuação distintos com metodologias próprias, e com pouco conhecimento do social. Na década de 70 já havia práticas e grupos “psi” comprometidos com reflexões sociais e políticas, foi somente com a abertura política que irrompe, em nosso país, a 126 ECOS | Estudos Contemporâneos da Subjetividade | Volume 1 | Número 2 força dos movimentos sociais e a ampliação do conceito de político, bem como a crítica à neutralidade de nossas intervenções. Na década de 80, os psicólogos passam a trabalhar com uma clientela advinda das classes populares e dimensão social torna‐se presente em suas práticas, trazendo à tona a necessidade de outra escuta. Contudo, o social em sua forma dominante, também era despolitizado e destinado ao segmento pobre da população e marcado, de maneira geral, por práticas assistencialistas. Isso porque, usualmente os psicólogos utilizavam os mesmos modelos aprendidos nos cursos de graduação, e na grande maioria das vezes, do consultório privado. Percebemos aqui uma predominância do instituído, mesmo com a alteração tanto da população usuária dos nossos serviços, quanto dos nossos espaços de atuação. Manter o que já fazíamos era seguro, perpetuava o fixado, apesar de processos novos e emergentes ganharem cada vez mais consistência determinados pela necessidade de criar outras demandas ofertando novas práticas. Atualmente, observamos cada vez mais práticas em Psicologia, em que a flexibilização como desenvolvimento do trabalho é privilegiada. Esse processo aparece como resposta à multiplicidade de elementos que permeiam as atividades, o que não exclui uma análise crítica mais cuidadosa, pois fazer um trabalho com o “social” não é por si só uma prática ética e libertária. Percebemos novamente o embate entre o instituído, que mantém o que já está estabelecido e o instituinte que traz o novo. Pois essas alterações de público e de demanda em si não garantem nenhum avanço, podem apenas responder a um movimento de psicologização dos problemas da vida e aprimorar os mecanismos de exclusão em nossa sociedade, caso não haja, de fato, um posicionamento ético‐político perante essas práticas. Posicionamento que implica na observância da contextualização das nossas atuações, no respeito à multideterminação da realidade e na necessidade de diálogo constante com outras disciplinas e especialidades. Ao refletir acerca da graduação em Psicologia e seus efeitos na área de saúde, especificamente no SUS, Herter (2006) salientam a grande desarticulação que existe entre a formação e o que é exigido nesse campo, convidando os cursos de Psicologia a incrementar suas atividades com o intuito de atender necessidades sociais relevantes. Essa discussão é efetuada no campo da saúde, todavia, também se aplica à área da Assistência Social, em que também há uma grande defasagem entre o que se aprende e o que a inserção profissional exige. O risco de conservação do que já existe é uma constante, embora, na tentativa de subsidiar novas práticas em Psicologia, forças instituintes aflorem. Nessa direção, nos cursos de graduação houve um avanço com a campanha da Associação Brasileira de Psicologia ‐ ABEP para a inserção da disciplina de “Políticas Públicas” nos projetos pedagógicos, no acordo para a participação das Diretrizes Curriculares para os cursos de Psicologia, decidido no VI Encontro Nacional da ABEP, em Belo Horizonte (ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE PSICOLOGIA, 2007). Essa incorporação traz a possibilidade de algum conhecimento dessas políticas, que atualmente são responsáveis pela entrada de boa parte dos graduados no mercado de trabalho. Além disso, traz a valorização das questões sociais em articulação com as questões clínicas. A este respeito podemos fazer a seguinte constatação: “É ingênuo reduzir a Psicologia ao estudo das psicopatologias e negar sua diversidade. É falta de imaginação recusar, hoje, a existência da escuta clínica no social e a escuta do social em contextos clínicos” (AFONSO, 2008, p.14). Sem dúvida, não só a formação profissional que inclua questões políticas, sociais e institucionais, mas também a produção de conhecimento são elementos indissociáveis de uma nova prática. Enfocando a produção de conhecimento em Psicologia tradicionalmente efetuada no Brasil pelas universidades e seus programas de pós‐graduação, presenciamos poucos estudos e publicações na área da assistência social, como pontuam Freire de 127 ECOS | Estudos Contemporâneos da Subjetividade | Volume 1 | Número 2 Andrade e Romagnoli (2010), o que corresponde a uma dificuldade de levantamento bibliográfico e acesso a pesquisas também para quem está atuando na área. Analisando as relações entre os psicólogos do CRAS de uma cidade do interior de Minas Gerais, os profissionais da equipe e a comunidade, o artigo citado assinala a necessidade de intervenções psicológicas para além da psicologização e do modelo tradicional desse fazer. Operando em prol do instituído, observamos, ainda, em alguns momentos, uma grande preocupação da pós‐graduação em centrar suas pesquisas em temas consagrados e já estabelecidos, orientando‐se para a aquisição da titulação e para a produção acadêmica a ser inserida no currículo Lattes. Essa postura mantém a universidade afastada dos impasses da realidade, e se distancia da consideração crítica do que vem sendo produzido academicamente nas instituições presentes no cenário social. No ano de 2004, em número especial, a revista Psicologia e Sociedade da Associação Brasileira de Psicologia Social ‐ ABRAPSO, com o título “Práticas Avaliativas e Produção de Conhecimento”, fez essas mesmas advertências, associadas à tendência dos programas de seguirem uma lógica produtivista, sem avaliar os efeitos políticos e sociais dessa geração de conhecimento (BARROS, 2004). Nessa coletânea, esses questionamentos são efetuados nas áreas da Pós‐Graduação, da Educação, do Desenvolvimento, entre outras. Todos os artigos ressaltam a importância da produção de conhecimento também gerar intervenções e não só um conhecimento que circula somente entre iniciados. Mais recentemente, nesse mesmo periódico, Castro (2010) também efetua uma reflexão crítica acerca das políticas científicas no Brasil ressaltando essa mesma tendência ainda presente em detrimento inclusive de uma discussão política coletiva por parte da comunidade científica. Nesse panorama, capturadas por essas forças que operam em prol da manutenção, as demandas sociais de contribuição cotidiana efetiva da academia são relegadas a um segundo plano. Questionando a produção de conhecimento hegemônica pautada numa dada racionalidade, Barros e Lucero (2005) problematizam a questão da pesquisa em Psicologia e seus efeitos produzidos nos plano político e subjetivo, entendendo‐os como indissociáveis. Os autores revelam a manutenção de modelos padronizados, dissociados das nossas práticas e que desconsideram a transformação das formas sociais instituídas. E, assim, as forças instituintes que emergem na realidade e na inserção do psicólogo em novas áreas e nas políticas públicas correm o risco de ficar sem sustentação da academia. Com certeza, é grande necessidade da pós‐graduação produzir pesquisas que sustentem e problematizem o trabalho de quem está à frente da proposta do SUAS, atuando em seu dia a dia, dando ferramentas de trabalho e reflexão para esses profissionais. Esse ainda é um campo novo, em construção, no qual os psicólogos ainda vivem impasses e buscam respostas. Retornando à Análise Institucional, podemos nos perguntar como anda a oferta instituída da Psicologia no momento atual. Ainda há uma forma dominante e instituída que possui grande ênfase no individualismo e pouco incentivo e aprendizado do trabalho com grupos e com coletivos. Observamos, ainda, a aquisição de uma formação teórica dos profissionais com muito pouco conhecimento do atendimento familiar e da leitura psicossocial desse grupo. Além disso, em meio ao plano de forças que irrompe no encontro com o estranho e que conduzem a desestabilizações, geralmente preferimos a segurança do conhecido e raramente embarcamos no desconhecido. A insistência no instituído, no que conseguimos identificar e reconhecer, pode atuar como um sedativo contra o mal‐estar vivido frente ao instituinte, perante o convite para sustentar outras expressões, outras formas de atuar. 128 ECOS | Estudos Contemporâneos da Subjetividade | Volume 1 | Número 2 Considerações Finais Vivemos, no SUAS, o convite a um movimento de deslocamento da oferta de trabalho que sustenta a criação da demanda, como examinado anteriormente, para construir um campo de novas práticas, com outras demandas, para dar passagem a forças instituintes. Mas, para oferecer novas intervenções, precisamos conhecer mais esse campo através de estágios, extensão, pesquisas, arriscando a produção de novos conhecimentos/intervenções e de novas metodologias. Acerca dessa aposta, é preciso refletir que: “Não temos como ponto de partida a mudança do outro, mas sim a alteração de nossas práticas e da lógica implicada na oferta de trabalho. A questão da mudança nessa perspectiva não se faz prioritariamente por conscientização do outro, mas por contágio” (ROCHA; UZIEL, 2008, p. 536). No meu entender, trata‐se do contágio da vida e sua expansão. Vida entendida como potência, positividade indeterminada, que é em si invenção, ao mesmo tempo em que coexistem fechamentos e reproduções. A vida, como a formação acadêmica e como a nossa prática profissional, pode ser concebida como um rizoma, como afirmam Deleuze & Guattari (1995), composta por direções flutuantes que não remetem a uma unidade e nem a certezas, mas, em determinadas circunstâncias, se abrem a produções conectivas e inventivas. Se a realidade não é dada, mas algo a construir, devemos estar atentos à nossa inserção nos espaços de trabalho, às nossas práticas. Isso porque o nosso saber pode servir tanto para produzir uma nova realidade, para libertar, quanto para aprisionar, reforçando o que já existe. Nessa produção de outras realidades, somos convocados a trabalhos transdisciplinares, na prática, extremamente difíceis de serem alcançados. Examinando a formação “trans” no campo da saúde, Benevides de Barros (2005) enfatiza a não separação da Psicologia em áreas e nem em polarizações antagônicas. Defende que é preciso a perda da identidade de cada teoria, de cada prática, para ocorrer algo no “entre”, com a desestabilização das “certezas” de cada disciplina, o que conduziria a relações de intercessão com outros saberes/poderes/disciplinas. É no “entre” os saberes que a invenção acontece, é no limite de seus poderes que os saberes têm com o que contribuir para outro mundo possível, para outra forma de pensar. Nesse contexto, a prática da transdisciplinaridade se daria na criação de zonas de indagações, na convocação permanente e num esforço coletivo de problematização das questões presentes no cotidiano. Assim, mais do que insistir na setorialização da Psicologia em campos distintos, rotulando se o que está sendo feito é do âmbito da clínica ou do social, operando para a preservação do instituído, a inserção do psicólogo no SUAS é um convite a criar, a dar passagem a forças instituintes... Sobre o artigo Recebido: 05/08/2011 Aceito: 06/01/2012 Referências bibliográficas AFONSO, L. O que faz a psicologia no sistema único da assistência social? Jornal do Psicólogo, Minas Gerais, Ano 25, n. 91, p.14, 2008. 129 ECOS | Estudos Contemporâneos da Subjetividade | Volume 1 | Número 2 ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE PSICOLOGIA – ABEP, Belo Horizonte, 2007. Anais... Belo Horizonte: ABEP, 2007. Disponível em: <http://www.abepsi.org.br/encontro/>. Acesso em: 07 ago. 2007. BAREMBLITT, G. Compêndio de análise institucional e outras correntes. Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos, 1992. BARROS, M. E. B. Não vale a pena economizar a vida para não gastar: notas introdutórias. Psicologia e Sociedade, Porto Alegre, v. 16, n. 1, p. 5‐12, 2004. BARROS, M. E. B.; LUCERO, N. A. A pesquisa em Psicologia: construindo outros planos de análise. Psicologia e Sociedade, Porto Alegre, v. 17, n. 2, p. 7‐13, 2005. BENEVIDES DE BARROS, R. D. A Psicologia e o Sistema Único de Saúde. 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