UNIVERSIDADE ESTADUAL DE MARINGÁ
CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES
DEPARTAMENTO DE PSICOLOGIA
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA
RAFAEL IGLESIAS MENEZES DA SILVA
Sobre Psicologia e Ideologia na obra de L.S. Vigotski.
Maringá
2015
RAFAEL IGLESIAS MENEZES DA SILVA
Sobre Psicologia e Ideologia na obra de L.S. Vigotski
Dissertação apresentada ao Programa de PósGraduação em Psicologia do Centro de
Ciências
Humanas,
Letras
e
Artes
da
Universidade Estadual de Maringá, como
requisito parcial para obtenção do título de
Mestre em Psicologia
Área de concentração: Constituição do Sujeito
e Historicidade.
Orientadora: Profa. Dra. Sônia Mari Shima
Barroco.
Maringá
2015
RAFAEL IGLESIAS MENEZES DA SILVA
Sobre Psicologia e Ideologia na obra de L.S. Vigotski.
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Psicologia do Centro de
Ciências Humanas, Letras e Artes da Universidade Estadual de Maringá, como requisito
parcial para a obtenção do titulo de Mestre em Psicologia.
BANCA EXAMINADORA
Profa. Dra. Sônia Mari Shima Barroco
PPI/Universidade Estadual de Maringá (Presidente)
Profa. Dra. Zaira Fátima de Rezende Gonzalez
PPI/Universidade Estadual de Maringá
Profa. Dr. Nilson Berenchtein Netto
Universidade Federal dos Vales do Jequitinhonha e Mucuri
Aprovada em: 19 de fevereiro de 2015
Local da defesa: Sala 10 do Bloco 10, campus da Universidade Estadual de Maringá.
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
(Biblioteca Central - UEM, Maringá, PR, Brasil)
S586s
Silva, Rafael Iglesias Menezes da
Sobre psicologia e ideologia na obra de L.S.
Vigotski / Rafael Iglesias Menezes da Silva. -Maringá, 2015.
131 f. : il. color. figs.
Orientadora: Prof.ª Dr.ª Sônia Mari Shima
Barroco.
Dissertação (mestrado) - Universidade Estadual de
Maringá, Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes,
Programa de Pós-Graduação em Psicologia, 2015.
1. Vygotsky, Lev Semenovich, (1896-1934). 2.
Teoria histórico-cultural - Vigotski. 3. Psicologia
do desenvolvimento. 4. Ideologia política. 5.
Materialismo Histórico Dialético. I. Barroco, Sônia
Mari Shima, orient. II. Universidade Estadual de
Maringá. Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes.
Programa de Pós-Graduação em Psicologia. III.
Título.
CDD 21.ed. 153.3
MN-001705
Para meus pais: Arlene e Evanildo.
AGRADECIMENTOS
Em primeiro lugar agradeço aos meus pais e a minha família pelo apoio incondicional
afetivo e material que proporcionaram ao longo dos anos de graduação e mestrado. Sem
vocês, teria sido tudo muito mais difícil e talvez impossível.
A Professora Dra. Sônia Mari Shima Barroco pela confiança depositada em mim e neste
projeto que passou por muitas reviravoltas até se concretizar e cujo suporte foi
fundamental.
As professoras participantes da banca de qualificação: Dra. Silvana Calvo Tuleski e
Dra. Marli Zibetti, pelas preciosas considerações no exame de qualificação, que
alteraram significativamente os rumos da pesquisa, sendo um auxílio de muita valia
para os resultados obtidos e expostos neste trabalho.
Aos professores que se dispuseram a compor a banca de defesa de dissertação: Dra
Zaira Leal e ao professor, e especialmente amigo, Dr. Netto Berrenchtein, que me
honraram com a presença na defesa e com a qualidade dos questionamentos e sugestões,
permitindo uma imensa colaboração em minha formação tanto acadêmica, mas também
humana.
Aos amigos do Grupo de Estudos em Psicologia Histórico-Cultural (LAPSIHC/UEM),
pelos dois anos de proveitosos estudos, proporcionada por todo o coletivo.
As professoras do PPI: A mestra Dra. Maria Lúcia Boarini, profa. Dra Adriana de
Fátima Franco, e as atuais coordenadoras do PPI: Professoras Dras. Marilda Facci e
Nilza Tessaro.
Ao Achilles Delari Junior, amigo e pesquisador indomável na Teoria Histórico-Cultural,
tanto pelo auxílio proporcionado pelos seus estudos, quanto pelas as conversas no já
distante início do mestrado.
A minha amiga e companheira - na maior parte desta trajetória - Ana Carolina, que tem
sido pra mim a prova de que os afetos humanos são mais resistentes e complexos que a
distância geográfica. Obrigado por ter me apoiado tanto.
Aos meus amigos e também exemplos no modo de lidar com esta profissão que temos
em comum: Talitha Coelho e Bruno Carvalho, pelo ouvido atento, trato sério e
cuidadoso de temas que nos são tão caros, sem deixar de ter em vista a transformação
social.
E a Priscila Cruz pelas leituras e sugestões realizadas na fase final deste
pesquisa.
Aos companheiros da saudosa república: “Faca do Feijão”, que me abrigou por seis
anos em Maringá, especialmente aqueles que conviveram comigo nos últimos
momentos do mestrado: Duzão, Beatriz e Viviane, um abraço gigante por terem ouvido
um bocado de sofrimento da “luta inglória”, inerente em trabalhos como este.
Deixo também um salve e um agradecimento para: Rodrigo Bischoff, Cássius, Yann,
Vinicius Spricigo, Nicolle, e ao irmão que a estrada me deu: João Paulo. Enfim, para
todos que de uma forma ou de outra, me dedicaram cuidado e atenção nos últimos
tempos. Se o nome não está aqui, certamente em algum lugar desta consciência parcial e
limitada se fazem presente, unamo-nos como irmãos que nada nos vencerá!
A exigência de abandonar as ilusões sobre sua
condição é a exigência de abandonar uma
condição que necessita de ilusões.
Karl Marx
Crítica da filosofia do Direito de Hegel.
O homem sempre se fez de todo o material:
vias senhoriais ou bairro marginal, toda época
foi peça de um quebra-cabeça para subir às
costas do grande reino animal.
Silvio Rodriguez
El Mayor.
SILVA, R. I. M. (2015) Sobre Psicologia e Ideologia na obra de L. S. Vigotski.
Dissertação de Mestrado, Programa de Pós-Graduação em Psicologia, Universidade
Estadual de Maringá.
RESUMO
A presente dissertação tem por objetivo discutir o tema da ideologia a partir das
concepções clássicas de K. Marx e F. Engels e do entrelaçamento destas com textos
selecionados sobre a temática na obra do psicólogo bielorusso L. S. Vigotski. Sendo
resultante de uma pesquisa bibliográfica de caráter conceitual, essa discussão se dá por
meio de uma análise que compreende o itinerário do conceito de ideologia, a exposição
das teses fundamentais sobre o mesmo nos textos clássicos de Marx e Engels e a
presença deste em Vigotski, propondo um elo entre estes autores. Contudo, frisa a
particularidade deste último quanto a aplicação do conceito de ideologia na ciência
psicológica e na constituição da Teoria Histórico-Cultural. A hipótese norteadora é a de
que as formulações de Vigotski correspondem a uma tensão inerente na herança
marxista sobre o conceito de ideologia entre duas linhas fundamentais, uma críticonegativa de ordem epistemológica e a outra ligada as funções e sistemas valorativos da
consciência na vida social. Justificam-se assim procedimentos metodológicos próprios
a natureza da pesquisa, contando com um levantamento sobre textos que usam a palavra
“ideologia” bem como a sua contextualização histórica e as teses que a definem, com o
propósito de responder questões que se organizam em três grupos. a) O diagnóstico de
Vigotski sobre a sombra da ideologia na ciência psicológica ainda é atual se pensarmos
a prática de nossa ciência, tal como ela de fato se efetiva? b) Os nuances conceituais da
ideologia permitem reconhecer uma influência direta de Marx, do que este autor partilha
da definição clássica de ideologia, ou o seu uso, por Vigotski recorre a outras bases
epistemológicas? Se sim, quais? No que Vigotski é singular ao falar de ideologia? c) Na
dinâmica apreendida, investigando o aparecimento do conceito em sua obra, ela se se
modifica, é contínua, se expande? Permanece a mesma? O que podemos tirar daí para a
compreensão de uma inventiva histórico-cultural do psiquismo é semelhante às
abordagens já consagradas da Psicologia Social e da Psicologia Escolar sobre o tema da
ideologia? Para responder estas questões a dissertação foi estruturada em três capítulos:
O primeiro pretende expor o problema da ideologia em sua origem e destacar qual o
sentido empregado por Marx ao dedicar toda uma obra à temática, bem como suas
implicações a respeito de uma visão marxista de homem sobre a consciência e a
alienação. Ademais, apontar o aparecimento da “ideologia” em textos da maturidade de
Marx que apontam para compreensões ampliadas em relação à Ideologia Alemã. O
segundo capítulo, expõe o resultado da pesquisa sobre a palavra em destaque em textos
selecionados de L. S. Vigotski, explicitando as teses que envolvem o seu uso entre
1924-1927. O terceiro capítulo ocupa-se de textos entre 1929 e 1931, que implicariam
na adesão de Vigotski a definições de ideologia não redutíveis a negatividade ou ainda,
a falsa consciência e toma a como sistema conceitual socialmente determinado, da qual
decorrem consequências para a abordagem do pensamento por conceitos e a superação
das ideologias espontâneas e/ou dominantes.
Palavras-chave: Ideologia, Vigotski, Marxismo, Psicologia, Teoria Histórico-Cultural.
SILVA, R. I. M. (2015) About Psichology and Ideology in the works of L. S
Vigotski. Dissertação de Mestrado, Programa de Pós-Graduação em Psicologia,
Universidade Estadual de Maringá.
ABSTRACT
The dissertation that follows aims to discuss the problem of the ideology as from the
classic conceptions of Marx and Engels and of its interlacement to selected essays about
this theme written by the Belarusian psychologist L. S. Vigotski, through an analysis
that includes the itinerary of the concept of ideology, the exposition of the fundamental
thesis about it in the classic essays of Marx and Engels, and of its appearance in
Vigotski’s literature, suggesting a link amongst these authors, but highlighting the
particularity of the latter when it comes to the application of the concept of ideology in
the Psychological Science and for the Cultural-historical Psychology. The hypothesis is
that the formulations of Vigotsky match to the inherent tension in Marxist heritage of
ideology between two fundamental lines, a critical-negative, epistemological, and the
other one related to the functions and systems that belongs to the consciousness of the
social life. Is therefore justified the survey of the literature related to the word
“ideology”, as well as its historical contextualization and the theses that define it,
aiming to answer issues, such as: a) Is the diagnose of Vigotsky about the shadow of the
ideology over the Psychological Science still current if we think of the practice of this
Science, of how it in fact effectives itself? b) Do the conceptual nuances of ideology
permit to recognize a direct influence of Marx on what this author shares about the
classic definition of ideology? c) Does the concept of ideology found on Vigotsky’s
literature modify, is it continuous, does it expand? Does it remain the same? Is that what
we can take from it for the comprehension of an inventive Cultural-historical of the
psyche similar to the already established approaches of Social Psychology and School
Psychology on the matter of ideology? In order to answer these issues, this dissertation
was structured in three chapters: The first one aims to expose the problem of ideology
in its origin and contrast the reason Marx followed to dedicate a whole work to this
theme, as well as its implications due to a Marxist view of men about the consciousness
and the alienation. Moreover, point the appearance of “ideology” in essays belonging to
the maturity of Marx that lead to amplified comprehensions related to The German
Ideology. The second chapter exposes the result of the survey about the highlighted
word in the selected essays of L. S. Vigotsky, making explicit the theses that involve its
use in these essays and searching for demonstrate a variation amid the essays of 19241927. At least the third chapter discusses the works of Vigotski between the years of
1929 – 1931 that implies the adhesion of Vigotski definition of ideology that not
reduced to the sense of negativity or false counsciouness and get that social conceptual
systems to explain that conceptual thoughts and the superation of spontaneous our
dominant ideology.
Keywords: Ideology, Vigotski, Marxism, Psychology, Historical-Cultural Theory.
SUMÁRIO
Resumo...............................................................................................................ix
Abstract..............................................................................................................x
Introdução ......................................................................................................... 12
1
Marx e a ideologia: Itinerário de uma crítica da alienação.................... 28
1.1 .Ideologia e modernidade: breve histórico do termo............................33
1.2 Marx e a Ideologia: O inicío da crítica................................................. 37
1.3 A lógica da inversão na consciência: A ideologia alemã e o segredo de
toda ideologia. ........................................................................................................... 42
1.4 Da “crítica roedora dos ratos” aos tribunais de Stalin........................45
1.5 Definições de ideologia N’A Ideologia Alemã........................................48
1.6 Apontamentos
sobre
ideologia
e
falsa
consciência
.................................................................................................................................... 59
2
Psicologia e ideologia: Explicação do psiquismo ou expressão da
alienação? A ideologia como conceito crítico-negativo em Vigotski, 1924-1929 .... 63
2.1 Ideologia no “prólogo” do livro de E. Thorndike.: Princípios baseados
em Psicologia. ............................................................................................................ 66
2.2 Ideologia e o significado histórico da crise da psicologia.....................69
2.3 A ideologia como fase aguda da crise: o fascismo e a psicologia.........75
2.4 O fascismo e a psicologia por L.S. Vigotski...........................................79
3
Vigotski e a ideologia como sistema conceitual [1929-1931]. Implicações
para a psicologia como ciência e para a relação entre conceitos científicos e
espontâneos. .................................................................................................................. 89
3.1 1931: Sobre os sistemas psicológicos e a ideologia. ............................... 93
3.2
Sistemas conceituais e ideologia .......................................................... 102
Considerações finais ....................................................................................... 117
Referências ...................................................................................................... 125
12
INTRODUÇÃO
O nosso curso de Bacharelado em Psicologia foi marcado por uma forte
influência das áreas que perpassam as dimensões sociais e educacionais na formação do
psiquismo. O primeiro contato realizado acerca da caracterização da ideologia como
fenômeno ocorrente na consciência e derivada do plano social deu-se nos primeiros
anos da graduação, ainda na Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS),
momento esse em que tivemos contato com escritos de autores tradicionais da
Psicologia Social brasileira de inspiração marxista, como Silvia Lane e outros que
realizavam esforços para a compreensão da ideologia na consciência individual dos
sujeitos, sempre a tratando como fenômeno social materialmente determinado, cuja
essência era a dissimulação ou a ocultação de relações sociais de poder assimétricas e
desiguais.
Em 2008, após realizar a transferência externa de curso para a Universidade
Estadual de Maringá, tivemos contato com a Teoria Histórico-Cultural, mais
especificamente, por conta da disciplina de Psicologia Histórico-Cultural, ofertada no
segundo ano do curso, ministradas pelas professoras Silvana Calvo Tuleski e Sonia
Mari Shima Barroco. Nesse momento, realizamos estudos e aproximamos o contato
com as bases epistemológicas de Lev Semeonovitch Vigotski (1896-1934), recebendo a
orientação concisa da necessidade do cuidado histórico ao abordar o autor, já que com o
fim da censura de suas obras no período pós Guerra Fria, esta recebera uma divulgação
e expansão mundial que nunca houvera conhecido.
No entanto, o aumento significativo de traduções e de novas edições que
tratavam sobre conceitos importantes em sua obra, sofreram um recorte intencional que
visava retirar, ou mesmo suprimir dos livros editados as referências e os postulados
metodológicos de Vigotski. Isso porque evidenciavam sua filiação teórica, e em
consequência, sua postura científica e posicionamento político revolucionário,
vinculado à Revolução Russa e ao método materialismo histórico e dialético. Além
destas filiações, muitas problematizações de Vigotski, visavam aos problemas reais
enfrentados durante o período revolucionário, com suas lutas de classes e entraves
econômicos próprios, bem como estas se refletiam nos problemas adotados pela
psicologia e pela pedagogia no seu país.
13
Algumas das alegações levantadas para a explicação dos referidos cortes em
textos importantes de Vigotski foram a “limpeza”, a eliminação de repetições e a
correção de “distorções”. Entretanto, o objetivo implícito é mais complexo e assim
como Duarte (2000) e Tuleski (2008) apontam, tal movimento criou impactos
particulares no Brasil, uma vez que dois dos livros mais difundidos de Vigotski no país,
A formação social da mente e Pensamento e linguagem, foram traduzidos da edição
norte americana em que pesa esta interferência.
Mais do que uma precisão filológica, a problemática das traduções estava na
tentativa de afastar Vigotski do marxismo. Diante da dificuldade acerca das traduções,
que afastavam Vigotski de suas bases epistemológicas, tentávamos sanar este vácuo
durante os encontros da disciplina da graduação comentada inicialmente, através da
leitura de clássicos do marxismo, como foi o caso de A ideologia Alemã, de Karl Marx
(Tréveris, 1818 - Londres, 1883) em coautoria com Friedrich Engels (Wuppertal, 1820
– Londres, 1895).
Não se sabe ao certo se Vigotski chegou a ter contato direto com este texto, mas
os escritos vigotskianos guardam semelhanças metodológicas fundamentais, enquanto
partilhantes do materialismo histórico e dialético. Entre elas está a formação da
consciência enquanto uma natureza social, consciente de si a partir das relações com os
outros, sempre mediadas pelo nível das forças produtivas e o arcabouço consciente da
linguagem, bem como a crítica da consciência alienada, que diante de uma condição
histórica determinada, parcializa suas representações de modo a inverter o jogo do
poder criativo da natureza humana. É o que ocorre com a atividade de trabalho e sua
respectiva divisão social. Trabalho vale dizer, no sentido de intercâmbio orgânico com a
natureza, que é uma atividade única à espécie humana e responsável pela transformação
contínua e qualitativa do ser social, que por meio desta parcialização é vista como um
fardo, um peso, já que o produtor não se reconhece em sua humanidade criadora, no
marco da alienação promovida na apropriação dos bens e do lucro por uma pequena
parcela da sociedade.
Ficou-nos claro, portanto, que uma leitura dos escritos de Vigotski que visasse
compreender as bases fundamentais de seu projeto de Psicologia e como este tentava
unir dialeticamente teoria e prática em seu contexto histórico, exigia-nos colocar em
relevo as bases epistemológicas e as políticas educacionais que revelam a relação entre
materialismo
histórico
dialético
e
a
obra
vigotskiana.
Fez-se
necessário
compreendermos que as edições não decorriam de uma forma-propaganda que visasse o
14
combate a qualquer influência comunista, uma atitude com ares de guerra fria, mas tal
“censura” vestia-se de roupagem contemporânea ao atrelar uma perspectiva neoliberal
de educação – e de visão de homem e mundo - às colaborações de Vigotski.
Assim, esse autor, muitas vezes, foi qualificado de modo reducionista e
equivocado como “sócio-interacionista”, ou coletivista, expressões que denotavam uma
conotação de social reduzido ao coletivo, sendo este termo desvinculado das relações
sociais como tais e comparável a agrupamento ou ajuntamento, como aponta Barroco
(2007). O autor sofreu aquilo que criticou, sendo ele mesmo um indivíduo
compreendido como apartado das relações sociais de produção (Tuleski 2008;
Hammoumi, 2002), o que alijou a compreensão do autor como homem que se constitui
ante determinantes “macroculturais”. (Ratner, 2012).
Neste mesmo “clima” teórico e intelectual das teorias pedagógicas neoliberais,
há uma rejeição patente na utilização de alguns conceitos como modo de produção,
relações sociais, e história no sentido da possibilidade desta ser reconhecida como
autodeterminada pela
própria humanidade.
Categorizados
como
aliados
das
“metanarrativas” impróprias ao momento em que a humanidade teria avançado social e
tecnologicamente em seu desvendamento do mundo, o que demandaria da ciência, da
filosofia e da educação elaborações mais pragmáticas, bem como alternativas que gerem
respostas visíveis e mensuráveis em curto e médio prazo, deixando tais conceitos de
lado. Essa prática cada vez mais expandida de desvalorização e negação das
metanarrativas, muitas vezes vem acompanhada da ausência de balanço crítico que as
justificassem, sendo esse o caso ocorrido com as razões aparentemente superficiais dos
cortes nas traduções e edições da obra de Vigotski e, consequentemente, da relevância
deste vocabulário teórico na edificação da obra do mesmo.
Nesse sentido, acreditamos que neste momento torna-se necessário um “recuo à
teoria”, parafraseando a crítica de Moraes (2009) para que se desfaçam alguns nós
conflitivos que impeçam uma leitura da teoria histórico-cultural mais próxima do
contexto em que foi produzida, bem como de suas bases epistemológicas. Consideramos
que essa busca por maior clareza conceitual pode colaborar na promoção de um avanço
crítico na assimilação da obra de Vigotski no país. Tal tarefa é um empreendimento
coletivo já iniciado por pesquisadores de envergadura, e que cabe a nós com este
trabalho, uma modesta colaboração. Os primeiros passos nesse sentido foram dados
com os estudos complementares realizados com a nossa participação no grupo de
15
estudos do LAPSIHC – Laboratório de Psicologia Histórico-Cultural, coordenado
também pela professora Silvana Tuleski.
Durante três anos, discutimos temas sob a ótica da teoria vigotskiana, que
envolviam: pensamento e linguagem, percepção e memória, aquisição da escrita,
emoções, funções psicológicas superiores, entre tantos outros. A necessidade de recorrer
a diversos textos deste autor proporcionou o encontro com O Significado Histórico da
Crise da Psicologia, que no Brasil fora traduzida para o português na coletânea Teoria e
Método em Psicologia, publicada pela editora Martins Fontes, em 1996. Foi a
abordagem sobre ideologia em discussões relacionadas com este texto que chamaram
nossa atenção para o conceito de ideologia tal como utilizado por Vigotski.
No referido texto, Vigotski (1996) utiliza o conceito de ideologia de modo muito
peculiar, aplicado à situação da psicologia moderna que se debruçara a analisar. Diante
de uma confusão de objeto e método, de concepções de mundo conflitantes e de um
imenso acúmulo de material, do qual faltava uma espécie de síntese que tornasse a
psicologia de fato útil para humanidade – situação que fora diagnosticada não só por
Vigotski, mas também por W. James, Sartre, entre outros –, a ideologia surge como um
estado em que a ideia científica original de uma dada teoria, perdida do frescor de
verdade em que surgira num contexto determinado (laboratórios e divãs, por exemplo)
tornavam-se princípios explicativos totais. Se antes, serviam e tinha origem de explicar
objetos ou problemas específicos, o que deriva dos estudos e pesquisas em sua fase
nascente, passa a assumir o caráter de princípio explicativo para tudo o mais. Isso é
exemplificado por Vigotski, entre outros, com o estudo da neurose por Sigmund Freud1:
o princípio de inconsciente, passa a ocupar espaço em todas demais dimensões da vida
social, servindo para explicar a sociedade, a política, e mesmo a ciência e a arte.
Falar em “ideologia” na contemporaneidade revela-se à psicologia como um
esforço relevante na contra maré de postulados que definem a história humana como
desprovida deste fenômeno ou mesmo como sendo um problema irrelevante,
especialmente em um período em que se cogitou o “fim da história” (Fukuyama, 1992)
e o “fim da ideologia” (Mészáros, 2004), como referência ao fim da polarização
(capitalismo e comunismo) e de alternativas emancipatórias ao modo de sociabilidade
forjado pelo capital. Isto é, capitalismo e a sua estrutura fundamentada na permanência
da divisão social do trabalho, teria chegado em um posto que a racionalidade do modo
1
Sigmund Schlomo Freud (1856- 1939), considerado o pai da psicanálise.
16
de produção via globalização unificara toda a humanidade em uma espécie de
desenvolvimento global sem alternativas reais a seus imperativos, bastando somente a
adaptação e a inclusão dos ainda apartados desta realidade, seja por atraso cultural ou
ideológico, para de fato concretizar-se o fim das ideologias “radicais” e da própria
história enquanto conflito. (Mészáros, 2004).
Foi durante a construção do projeto de mestrado apresentado para ingressar no
programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Estadual de Maringá, que
unificamos as duas constatações: A primeira, de que era necessário pautar-se no estudo
do tema da ideologia, e a sua relação com a construção da psicologia enquanto ciência,
que permitia melhor compreender que as posições científicas, carregam uma visão de
homem e de mundo que atreladas a realidade social, detêm dimensões que independem
da vontade do psicólogo ou do pesquisador, quando com elas opta por trabalhar e
encarar o entendimento da consciência humana.
A outra fora a necessidade de colaborar no projeto de entender Vigotski como
um partilhante do marxismo na apropriação de sua obra em um espectro ampliado na
busca da singularidade do seu pensamento e não na comparação com outros autores
consagrados. Para tal empreendimento, tornou-se premente recuperar as bases
epistemológicas e políticas de Vigotski, para que estas também possam sedimentar uma
crítica radical da subjetividade produzida pela forma contemporânea de dominação do
homem pelo homem.
Atrelamos ambas a um projeto inicial que relacionava a temática da ideologia
sob as delimitações já expostas às políticas públicas da educação2. Contudo, ante a
amplitude que envolvia o encaminhamento dado e o limite temporal do curso, optamos
pelo enfoque dos estudos no âmbito conceitual, num exercício dialético, por isso
necessariamente genético, dos textos e das formulações conceituais que envolvem o
conceito de ideologia.
Decorre das investigações que realizamos o reconhecimento de que a ideologia
se manifesta na ciência psicológica de diversas maneiras. Pode estar induzindo um autor
a um limite estrutural de sua concepção teórica, de modo que este passa a definir o que é
de todos os homens tendo como base um grupo muito específico analisado - assim
como a sociedade vitoriana, no caso de Freud - e acaba por apagar os condicionantes
2
O PPI está vinculado a um projeto interinstitucional que envolve UNIR, USP e UEM, o
PROCAD – NF, sendo que uma das áreas de investigação é o de estudos das políticas públicas da
educação voltadas ao enfrentamento ao fracasso escolar. Assim, a participação junto a este deu-se por
outras vias.
17
históricos de sua própria perspectiva científica. Podemos pensar na transposição de um
teste de inteligência, em que as perguntas abertas despudoradamente não se alinham
aos traços culturais, geográficos e políticos de outras nações e localidades e acaba por
tipificar uma forma determinada de psiquismo como referência, muitas vezes, de
normalidade psíquica.
A ideologia pode também ser mais explícita nas teorias racistas, elitistas e em
elaborações que estimulam e reafirmam toda ordem de preconceitos e de legitimação
das relações dominantes. Nesse sentido, vale lembrar o auxílio de concepções que
buscavam explicar o comportamento no avanço do nazismo e do fascismo no século
XX, para expormos apenas os exemplos mais gritantes. Em tempos de aparecimento de
proposições neonazistas pelo mundo, incluindo o Brasil, é importante destacarmos que
Vigotski (1934/1981) considerava que a psicologia aliada ao nazismo era a face mais
degenerada da crise em que esta ciência estava imersa e não estava livre de ser utilizada
em favor destes posicionamentos políticos totalitários.
Enquanto legitimadora de problemas de fundo social a relação entre ideologia e
psicologia ficou também constatada no trato com fenômenos como a educação e o
comportamento não desejável do aluno – ou mesmo na produção do fracasso escolar localizando a causalidade do sucesso ou do fracasso no indivíduo isolado, tomado
abstraído das relações sociais: com a família, com os seus pares, com as instituições,
com a cultura de sua época e por fim consigo mesmo, no tocante a aprendizagem e ao
desenvolvimento. Aqui cabe apontar que a prática ideológica da Psicologia teve uma
história própria no Brasil, sendo bem diagnosticada na relação psicologia e escola por
Patto (1984), no já clássico livro Psicologia e Ideologia.
A percepção pessoal que a ideologia não fora esgotada pelas possibilidades que
temos no presente, como se vivêssemos um capitalismo mais auto evidente e menos
enganador, no qual todos estariam unidos em um mundo pós-ideológico da “aldeia
global”(Delors, 1999), aguçava-se conforme unificávamos os estudos da Teoria
Histórico-Cultural e do marxismo e constatávamos, meio a debates e discussões de
estudo, que se propagavam casos em que a psicologia era permissiva ou ainda
colaborava na legitimação de fatores questionáveis, tais como: A medicalização de
questões humanas, as dificuldades de aprendizagem colocadas na ordem do indivíduo, e
18
exemplos ainda mais gritantes, como a releitura de teorias como a fisiognomonia3, além
do determinismo genético, na explicação do sucesso ou fracasso individual econômico.4
Se tais concepções resguardam momentos de verdade que são científicos, há que
se apurar. Entretanto, à primeira vista e colocada no prisma crítico aos determinismos
da psicologia e seus riscos, que podem incidir, na legitimação de uma situação de
desigualdade econômica, na manutenção de estigma e preconceitos com grupos e
minorias desfavorecidos, entre outros agravantes, a ideologia torna-se presente em um
casamento de comum acordo entre espontaneidade e discurso científico. Em um
movimento ideológico tradicional, tais situações impelem-nos a considerar como
essencial, um problema que é moldado de forma histórica e particular, do qual fugir de
seus determinantes macroculturais colabora intensamente na promoção da ideologia e
na manutenção do status quo.
A respeito da atenção à ideologia, vale pôr em destaque que, no caso brasileiro,
por um lado, a Psicologia Social alertara como a ideologia pode servir na dominação
nos discursos e nas práticas, no terreno do sentido e do significado. Por outro, a
Psicologia Escolar conta com uma intensa produção na investigação da produção social
do fracasso escolar e desde a publicação de Psicologia e Ideologia (Patto, 1984), essa
área de formação e campo profissional tornou-se atenta às ideologias de toda ordem nas
concepções reificadoras – isto é, que tomam a consciência humana que se realiza
enquanto processo como coisa - do desenvolvimento do psiquismo. A teoria históricocultural tem sido subsidiadora para ambas (Psicologia Social e Psicologia Escolar) e
conta com este movimento de reaproximação de Vigotski aos temas caros do
materialismo histórico, como a ideologia. Sem essa recuperação entende-se que seu
vigor para contribuir no desvendamento e nas proposições de alternativas para os dias
atuais se esvai. Foi, pois, unindo esses pontos expostos que chegamos à necessidade de
pesquisar a relação entre Marx, Vigotski e a ideologia.
No início do curso do mestrado tivemos contato com uma literatura introdutória
da variedade que o termo pode assumir nos estudos sobre economia, política, filosofia,
psicologia e nos estudos de discurso e da linguagem, bem como pontos conflitantes e
ora similares entre pensadores ligados à tradição do materialismo histórico e dialético ao
fim do século XIX e ao largo do século XX. Foge de nossos objetivos, elencá-las ou
3
Revista
psique:
“A
face
http://psiquecienciaevida.uol.com.br/ESPS/Edicoes/65/artigo215605-1.asp
4
http://veja.abril.com.br/noticia/economia/o-sucesso-e-hereditario
do
criminoso”
19
sintetizá-las aqui, mas destas, se destacam, por ora, as diferenças entre o ponto de vista
marcado pela teoria do conhecimento em que a ideologia é entendida como um
fenômeno essencialmente gnosiológico, ou de falsa consciência e de sentidos que não
se limitam ao caráter epistemológico, ou ainda, que não estão exatamente preocupados
como verdade ou falsidade.
O primeiro ponto de vista dá uma importância relevante na veracidade ou
falsidade das ideias, sem perder a perspectiva de que estas surgem dos conflitos
materiais. Por outro lado, há uma interpretação que coloca a ideologia mais próxima ao
conjunto de funções e valores que elas detêm na unidade entre consciência e mundo e
neste sentido não se fixa na veracidade ou falsidade das ideias, mas em suas funções no
mundo social entre consciência e realidade social. Para a primeira perspectiva, a religião
seria uma ideologia pura, uma explicação do mundo e da realidade abertamente
metafísica e sem necessidade de conexões reais, empiricamente comprováveis. Para a
segunda, a religião não é desprovida de veracidade na medida em que interfere na
própria prática social dos homens, seja em espaços sociais ou no foro íntimo, individual
e entendida como mecanismo psicológico verdadeiro e com consequências históricas, a
despeito da sua comprovação empírica.
Assim, o conceito de ideologia está em torno dos sentidos conflitivos. Pode ter
um uso francamente positivo, como na famosa música de Cazuza quando este clama por
ter uma ideologia pela qual viver, até uma forma opressora e radical como a ideologia
neonazista ou de outros grupos extremistas políticos e religiosos, e até mesmo
científicos. Pretendemos expor na investigação realizada, dentro da polissemia do
conceito de ideologia, quais os sentidos que aparecem na obra de Vigotski e como este
se relaciona com os pressupostos do marxismo. Acreditamos que esta possa servir de
contribuição para a formação continuada sobre a teoria histórico-cultural ainda que se
trate de um tema que não costuma ser “central” na constelação teórica que envolve os
estudos desta vertente no país.
Não fugir ao tema da ideologia, implicaria que na dimensão profissional o
psicólogo alinhado a esta perspectiva, pode encontrar fonte de renovação autocrítica
constante na medida em que estará armado para avaliar a própria prática enquanto
reprodutora ou linha de resistência de estratégias comuns do discurso cotidiano como a
patologização e estigmatização de problemas da ordem do psíquico que sem o devido
cuidado podem incidir em uma obstrução do processo de desenvolvimento potencial de
cada indivíduo. O profissional pode colaborar tanto na reprodução de valores
20
hegemônicos ou enfrentá-los isto é avançando para uma compreensão mais rica e
humana da formação do psiquismo pautados em valores éticos como a solidariedade.
Os profissionais e educadores estão, cotidianamente, na linha de frente deste desafio,
como quando mesmo bem formados e alinhados teoricamente, desanimam e acabam por
recair em um espontaneísmo diante das condições objetivas, como a baixa remuneração,
a insalubridade das escolas, o abandono ou os limites de intervenção do corpo
pedagógico e as dificuldades mesmo do combate à alienação e ao estranhamento dentro
do âmbito institucional. Em suma, abandonar os pressupostos não é uma questão de foro
cognitivo, mas se coloca como problema prático na medida em que situações difíceis
são enfrentadas e essas exigem do profissional paciência histórica e organização.
O presente trabalho foi organizado em três capítulos. No primeiro, busca traçar
uma breve linha da origem do conceito de ideologia e caracterizar as teses de Marx e
Engels, com maior acentuação da forma negativa do conceito trazido por Marx, sendo a
grande contribuição inicial do marxismo para tal formulação. A ênfase recai para os
temas da alienação e da consciência, categorias que acreditamos realizar uma conexão
entre os pensamentos de Marx e de Vigotski, enquanto partilhantes do materialismo
histórico e dialético. Em seguida, no segundo capítulo, iniciamos a exposição do
resultado do levantamento do termo em textos de Vigotski. Os procedimentos
envolveram o rastreamento da palavra “ideologia” nas coletâneas Obras Escolhidas e
nos textos avulsos: A psicologia concreta do homem e O fascismo e a psicologia. Como
pode ser conferido na sessão sobre a metodologia.
O segundo capítulo ocupa-se de textos de Vigotski delimitados aos anos de
produção que correspondem o período de 1924 – 1927. Este período seria o de maior
ênfase do autor em uma concepção de ideologia essencialmente de caráter críticonegativo, refletindo teses consideradas clássicas ao marxismo e aplicando-as a
psicologia de uma forma singular. A análise dos textos busca explicitar as definições
encontradas, conforme as teses que a ele são atribuídos e denotar a função cumprida
dentro da gama negativa que permeia os primeiros anos de produção de Vigotski. A
exceção figura no texto de 1934 sobre o fascismo e a psicologia, visto que ao nosso
entendimento o conceito de ideologia tem um sentido também negativo e marca o
reaparecimento deste sentido nos textos do autor. O terceiro capítulo tem em foco o
intervalo que vai dos anos de 1927 – 1931, justificado pela explícita diferença no
sentido em que Vigotski toma a ideologia, colocando-a mais próxima da corrente que
entende este fenômeno em termos de pensamento socialmente determinado, ideias e
21
explicações de cada período histórico. É mais questionadora sobre quais funções tem a
ideologia, como conhecê-la para ir além dela, do que entendê-la como um processo
essencialmente dissimulador, que oculta o conhecimento intervindo a favor de algum
interesse. Por último é exposta considerações formulações de Vigotski sobre o
pensamento conceitual e a ideologia, considerando que esta relação implica em
possibilidades da superação (parcial) da ideologia.
Se for correta a tese de que tanto na obra de Marx quando nas de seus
continuadores, derivam duas grandes correntes intelectuais ao tratar da ideologia,
trabalhamos com a hipótese de que isto também ocorre em Vigotski. Nossa pretensão
não é de advogar a existência de uma definição unívoca ou correta no autor, mas tentar
demonstrar que como partilhante do marxismo, acaba também herdando as tensões
próprias desta corrente de modo que acusações rasteiras sobre a ideologia limitar-se a
“falsa consciência” sugerindo um cientificismo capaz de obstruir toda a falsidade e
oferecendo-se como uma ciência neutra e objetiva não era bem o que Vigotski
expressou quanto a superação da ideologia. Acreditamos que esta posição é mais
vantajosa no que se refere a fornecer uma visão de ideologia no marxismo mais
complexa que as definições mais ventiladas.
Repercussão da obra de Vigotski no Brasil: da iminência do modismo
Vigotski está na moda! Essa afirmação pode facilmente ser confirmada diante de
uma varredura dos resumos e trabalhos completos apresentados em eventos acadêmicocientíficos nacionais, como por exemplo, no CONPE - Congresso Nacional de
Psicologia Escolar e Educacional, promovido pela ABRAPEE - Associação Brasileira
de Psicologia Escolar e Educacional; na Reunião da ANPEd - Associação Nacional de
Pós-Graduação em Educação; no ENDIPE- Encontro Nacional de Didática e Prática de
Ensino, no CIPSI - Congresso Internacional de Psicologia - Universidade Estadual de
Maringá, entre outros. Também em plataformas de buscas podem ser localizados um
crescente e considerável número de materiais acerca de Vigotski, disponibilizados em
sites de psicologia e educação, principalmente.
Além disso, podem ser localizadas propostas e diretrizes educacionais que
elegem Vigotski ou a matriz teórica da qual é o expoente principal. Essa incidência aqui
exemplificada nos leva a concluir que o psicólogo bielorusso “está na moda”, como
22
ocorreu com outros autores clássicos das teorias psicológicas, como Jean Piaget5 e
mesmo Sigmund Freud, além do existencialismo de Sartre6 e suas reflexões sobre a
psicologia.
Considerando as consequências que uma apropriação aparente de um dado
autor e da sua teoria possa ter para a educação e outros campos de aplicação do saber
psicológico, damos continuidade a um trabalho de aprofundamento no desvendamento
do legado de L. S. Vigotski, das suas principais teses e postulados, que vem sendo
realizado por diferentes pesquisadores - prática que nos remete ao aclaramento dos
fundamentos filosóficos e metodológicos por ele assumidos, do contexto histórico no
qual se formou e se projetou, nos impactos que pode ter nas décadas iniciais do século
XX na extinta União Soviética e nos países ocidentais dos dias atuais, no plano geral
das teorias psicológicas modernas.
Contra uma apropriação superficial, própria ao modismo, Barroco (2007) aponta
para a impossibilidade de se trazer esse autor para o ocidente, no atual estágio do
capitalismo, como o intuito, por exemplo, de aplicar sua teoria para subsidiar a
educação inclusiva. Antes, considera ser preciso compreender o papel histórico deste
autor (ou de outros) e da sua produção atrelada à sociedade a qual pertence (ainda que
possa negá-la). Defende que o elaborado em outras épocas e sociedades deve contribuir
não para se ter uma visão romântica do passado, nem para reeditar soluções já
encontradas, mas para se identificar o desenvolvimento histórico das contradições e
necessidades humanas.
Devemos oportunizar a recuperação de elementos que promovam o exercício do
pensamento analítico, visto que permitam identificar os desafios com os quais os
homens se depararam, quais alternativas encontraram, quais as contradições suscitadas e
os desdobramentos decorrentes, entre outros pontos. Os autores e os fatos do passado
devem contribuir com subsídios que esclareçam as demandas com as quais lidamos,
suas origens, desdobramentos e alternativas possíveis; devem encaminhar para a
superação da aparência que se nos revela quando esse tipo de pensamento, à luz da
história, é negligenciado.
Na mesma proporção do crescente destaque dado à Teoria Histórico-Cultural
encontramos a negação da filiação teórica de Vigotski ao materialismo histórico e
dialético de K. Marx. Como já apontado em algumas publicações, o psicólogo soviético
5
6
Jean Piaget (1896 – 1980)
Jean Paul Sartre (1905 – 1980)
23
é muitas vezes interpretado no Brasil sem que seja considerada essa relação, o que
possibilitou um viés eclético: associam-se as posições de Vigotski à concepções que não
coadunariam com sua proposta metodológica. Conforme analisam Duarte (2000) e
Tuleski (2008) as publicações, que se detiveram sobre a Psicologia Histórico-Cultural
de Vigotski, entre as décadas de 1990 e 2000, de traduções do autor ocorridas no
Ocidente e que influenciaram a interpretação em diversos países, inclusive no Brasil,
realizadas a partir das traduções em inglês, são fortemente marcadas pela edição dos
autores responsáveis pela divulgação das obras, tratando com caráter subjetivista e
ideológico os seus textos.
Outro exemplo disso são as referenciadas “limpezas” e “cortes”, com o intuito
de tornar a leitura mais clara, no julgamento dos editores, conforme escreve Tuleski
(2008). Esta autora defende que o modo como esses textos foram editados, tendem a
distorcer características teóricas substanciais dos escritos de Vigotski, que acabam por
fornecer uma interpretação enviesada a respeito do seu método, embasamento
filosófico, da denominação da teoria dada por Vigotski e demais colaboradores, que
englobam outros autores da Psicologia Histórico-Cultural como Alexander Luria7 e
Alexei Leontiev8 (1903-1979). Para a autora retirar o “marxismo” dos escritos de
Vigotski significa amputar uma importante determinação histórica de sua obra, qual
seja, como a influência do pensador alemão na revolução soviética, período da produção
de Vigotski.
Quando atentos a essas condições, o que Vigotski escreveu reflete a necessidade
do caráter teórico-afirmativo, de diálogo crítico e principalmente, de tentativa de
superação dos pontos de vista e métodos das psicologias predominantes da época e da
influência do marxismo vulgar na psicologia, que ocorria através do que ficou
conhecido como “método de citação”, em que os autores utilizavam de trechos de Marx,
Engels, Lenin e Stálin para justificar as suas teorias, sem uma análise crítica e de
método científico, produzindo uma forma de pensamento dogmática. (Vigotski, 1927/
1996).
No entanto, o marxismo enquanto o método de uma nova psicologia em
construção não passou despercebido por comentadores de Vigotski, estudados por
Tuleski, que sintetiza a ideia de que a ênfase metodológica está presente em todos os
7
Alexander Romanovich Luria, (1902-1977) psicólogo soviético e colaborador de Vigotski,
realizou estudos em diversas áreas como a psiquiatria e a neuropsicologia.
8
Alexei Nikolaevich Leontiev, (1903 – 1979) também colaborador de Vigotski, concentrou-se
nos estudos sobre o papel da atividade prática na formação do psiquismo humano.
24
seus escritos, como uma recusa ao ecletismo burguês, e ao dogmatismo stalinista. Outro
problema derivado de interpretações contemporâneas de Vigotski, aliado às limitações
das fontes encontradas nas traduções mais utilizadas deste autor, está na tentativa de
realizar uma aproximação entre ele e autores como Piaget, especialmente na forma
como esses autores entendem a categoria do “social”, como assinalamos no início desta
introdução.
Para Tuleski (2008), Vigotski é entendido muitas vezes, como complementar a
Piaget9 na medida em que enfatiza o papel do social na constituição do psiquismo. No
entanto, os autores optam por entender essa característica do autor como sóciointeracionista. A partir dessa classificação a categoria social perde o sentido de relações
sociais: sejam elas relações sociais de produção, ou ainda como luta coletiva e histórica
para o projeto de superação de uma sociedade capitalista, para uma comunista, ao qual
Vigotski estava alinhado.
As relações sociais de produção não podem ser, como afirma El Hammoumi
(2002), uma variável a ser considerada, mas uma unidade de análise apropriada para a
psicologia. As distorções tendem a caracterizar, de modo míope, relações entre pessoas
como o “social” que teria enfatizado Vigotski. (2002). No Brasil, na primeira década do
século XXI foi criando forma a vertente que reconhece essa matriz filosófica e
metodológica de Vigotski, com o consequente aumento de pesquisas e de grupos de
pesquisadores como: Duarte (2000), Tuleski (2008), Meira (2000) entre outros. Todos
eles consideram Vigotski como herdeiro do pensamento marxiano, o que torna-se um
trabalho árduo na medida em que se deve explicitar a influência desta matriz filosófica
em uma problemática aprofundada que resgate as especificidades teórica deste e
contudo, ainda há muito por fazer para que seja criado “O Capital” que falta à
psicologia. (Tanamachi, 2013).
De acordo com Davis, Silva e Freitas (2004) o aumento da porcentagem de
pesquisas que se dizem fundamentadas na perspectiva de Vigotski usufrui de divulgação
ampla quanto conceitos importantes de sua obra, mas existe uma grande carência quanto
à apropriação da concepção de homem e de mundo do autor, o que dificultaria esta
apropriação especificamente no tocante ao fundamento filosófico do mesmo.
9
Esther Pillar Grossi, nas décadas de 1980-1990 esteve à frente de lutas pela escolarização e
alfabetização. Com outros educadores fundou o GEEMPA (Grupo de Estudos Sobre Educação,
Metodologia de Pesquisa e Ação), e entendiam ser Vigotski um neopiagetiano ou pós-construtivista <
http://geempadc.blogspot.com.br/2012/03/esther-pillar-grossi-o-metodo-pos.html>.
25
Frente ao exposto, organizamos uma sistematização para leitura e análise dos
textos de Vigotski que tratassem respectivamente do conceito de ideologia, além da
consulta de textos clássicos sobre o tema, no tocante aos fundamentos do materialismo
histórico como, A Ideologia Alemã. Adiante, expomos o quadro que resultou nesta
busca de textos e a escolha do recorte utilizado para a exposição dos resultados.
Aspectos metodológicos
Trata-se de pesquisa de natureza bibliográfica e conceitual, procedendo com o
exame de textos selecionados em que nos exercitamos no estudo com o conceito de
ideologia a partir da tradição marxista e do método do materialismo histórico e
dialético. Visto que busca historicizar o conceito conforme suas principais funções e
sentidos afim de promover um panorama de sua gênese e desdobramentos, isto, dentro
do recorte principal que engloba a relação entre concepções clássicas do marxismo e a
obra de Vigotski.
Sobre a definição de conceito entendemos que:
É todo o sistema teórico de uma ciência é um sistema conceitual, além de que é pelo conceito
que se simboliza os fenômenos que estão sendo inter-relacionados. São abstrações lógicas
elaboradas pelos cientistas apreender, captar um fato por ele representado. O conceito difere do
fenômeno, mas é “básico em sua função de analisar a realidade e comunicar seus resultados”,
nesse sentido opera a inteligibilidade dos acontecimentos do mundo real, e complementa a da
percepção. (Lakatus e Marconi, 1983/1992)
A apropriação de um conceito não pode ser realizada de forma aparente, na
ordem do reino da percepção, uma vez que o conceito complementa a inteligibilidade
intuitiva do organismo humano. Tratando-se de Ciências Humanas, operar um estudo
sobre o conceito de ideologia implica em buscar ir além das aparências de uma ideia
muitas vezes sincrética, de baixa densidade quanto ao relevo de seus possíveis
significados e sentidos. Para realizar a investigação deste conceito de modo a tratar o
problema de maneira considerável relacionando a tradição marxista e o vínculo desta –
via ideologia – com as pressuposições vigotskianas foram utilizados os seguintes
procedimentos.
Rastreamento do conceito pelo índice remissivo dos volumes das Obras
Escogidas, que englobam parte considerável dos escritos de Vigotski – até o tomo V
publicado em espanhol – que, no entanto, não indicara o uso da palavra “ideologia” na
coletânea, e assim realizamos o mapeamento orientando-nos pela busca nas versões
digitais, cujo resultado apresentamos a seguir.
26
A tabela 1 expõe os 03 textos encontrados no Tomo I na versão digital, que são
respectivamente o “Prólogo ao livro de Thorndike: Princípios de aprendizagem
baseados na Psicologia”, “O Significado Histórico da Crise da Psicologia” e “Sobre os
Sistemas Psicológicos”, bem como as páginas em que fora encontrada a presença da
palavra “ideologia”.
Palavras entradas
Tomo I
Resultado
Ideologia
03 textos
Textos encontrados* Referências
Ano em que foi
Vygotski, Lev. (1996)
escrito e título.
Obras Escogidas - I
1926 -Prólogo al libro Madrid: Visor.
de
Thorndike
“Principios
de
enseñanza basados en
la psicología” (p.8996)
1927 –
El
significado
histórico de la crisis
de la Psicología
p.162-163,
191192,202-203,210, 213,
221)
1930 – Sobre los
sistemas
psicológicos.(p.47-48)
Palavras entradas
Resultados
Tomos II, III, IV e
V
01 texto (Tomo IV)
Ideologia
1931 – El desarollo
del pensamiento del
adolescente
y
la
formación
de
conceptos.
(p. 31-32, 40-41-42)
Referências
Vygotski, Lev. (1996)
Obras Escogidas - IV
Madrid: Visor.
Tabelas 1 e 2. Resultado da entrada dos termos “ideologia” na versão digitalizada das
Obras Escolhidas, Tomos I ao V.
Palavras entradas
Tomos I ao V
Ideologia e Alienação
Resultados
Sem Resultados
Tabela 2. Índice Remissivo: Obras Escolhidas
Texto
El Fascismo
Psicologia
y
Escrito
em
la 1933
Referências
Vigotski, L.S. (1988) El problema del desarollo
cultural del niño y otros textos inéditos: Buenos,
27
Aires, Editoral Almagesto, . P.105-123.
Manuscrito de 1929 – 1929
Psicologia concreta do
homem
L.S. Vigotski. (2000). Manuscrito de 1929. Educação e
Sociedade, Ano XXI, n. 71. : Campinas, p.21-44.
Tabela 3. Textos não publicados nas Obras Escolhidas e/ou em outras coletâneas.
28
1
MARX E A IDEOLOGIA: ITINERÁRIO DE UMA CRÍTICA DA
ALIENAÇÃO.
Quando estudamos o conceito de ideologia a primeira certeza a que chegamos,
através da constatação de todos os comentadores pesquisados, é a de que reina sobre o
termo uma imensa confusão. (Vaisman, 2010). Esta confusão decorre de vários fatores,
entre eles, a própria versatilidade e amplitude da tradição política e filosófica marxista
ao longo de todo século XX, em que o conceito destacou-se como um pilar importante
na reflexão sobre a sociedade, e para deixar o cenário mais complexo, este conceito fora
tomado de forma polissêmica, sendo seus significados ora confluentes entre si, ora
críticos ou antagônicos. O crítico literário Terry Eagleton(1997), organiza uma
introdução ao estudo da ideologia que expõe 16 definições, dentre as quais
consideramos importante destacar seis, que a nosso ver, resumem dentro de uma
variedade, as diferenças fundamentais nos significados de ideologia ora como
negatividade, ora como funções e processos da consciência que não são necessariamente
enganadores.
As definições elencadas por Eagleton (1997) são as seguintes: a) processo de
produção de significados, signos e valores na vida social; b) um corpo de ideias
característico de um determinado grupo ou classe social; c) ideias que ajudam a
legitimar um poder político dominante; d) ideias falsas que ajudam a legitimar um poder
político dominante; e) o veículo pelo qual atores sociais consistentes entendem o seu
mundo; f) o conjunto de crenças orientado para a ação.
As duas primeiras definições (“a” e “b”) tratam de significados de ideologia que
caracterizam ideias de um grupo ou de uma classe, e sobre o processo de produção de
significados, signos e valores na vida social, de modo que as duas não necessariamente
definem ideologia no âmbito que chamaremos aqui de “crítico-negativo”, em que a
ideologia age como um processo essencialmente ilusório, enganador e mistificador do
conhecimento e da realidade e que pode se manifestar por um discurso universalizante
de uma ordem social histórica determinada, que se caracterizam enfim por deformações
no processo de conhecimento, atravessam a verdade por interesses assimétricos ocultos.
Esta característica é patente nas definições “c” e “d”, que dizem respeito à
dominação política no mundo das ideias tanto quanto a parcialidade ideológica de uma
determinada classe; neste sentido, a ideologia pode emanar do próprio limite de uma
cosmovisão especificamente classista, oriunda de uma percepção atrelada aos limites de
29
uma dada atividade material. Ambas, portanto, estão na dimensão “crítico-negativa”.
Nas duas últimas definições, “e” e “f”, tanto a de ideologia como um veículo consistente
de ordenação das ideias através de atores sociais – caso das ideologias políticas – quanto
o sentido que entende ideologia como “organização de ideias e crenças que orientam
ações”.
As definições acima tratam de formas de organização da ideia, o que nos leva a
uma definição prática da ideologia como estrutura em torno de um fim específico
tomado claramente e não necessariamente ilusório ou mistificador e também ligado
mais às funções e objetivos das ideias na dinâmica social, na sua materialização em
práticas sociais como tal, que seu bloqueio na apreensão da realidade. De forma
simples, pode-se dizer que essas duas linhas de definição marcam a principal diferença
entre correntes divergentes do materialismo histórico e dialético sobre o conceito de
ideologia, conforme Eagleton (1997, p. 16):
[...] podemos perceber que algumas dessas formulações envolvem questões epistemológicas —
questões relacionadas com o nosso conhecimento do mundo —, enquanto outras se calam a esse
respeito. Algumas compreendem um sentido de percepção inadequada da realidade, enquanto
uma definição como “conjunto de crenças orientadas para a ação” deixa essa questão em aberto.
Tal distinção, como veremos, é um importante objeto de controvérsia na teoria da ideologia e
reflete as desavenças entre duas das tradições correntes que encontramos inseridas no termo. De
modo geral, uma linhagem central — de Hegel e Marx a Georg Lukács e alguns pensadores
marxistas posteriores — esteve muito preocupada com ideias de verdadeira e falsa cognição,
com a ideologia como ilusão, distorção e mistificação; já uma outra tradição de pensamento,
menos epistemológica que sociológica, voltou-se mais para a função das ideias na vida social do
que para seu caráter real ou irreal. A herança marxista hesita entre as duas correntes intelectuais.
Não nos cabe avaliar de modo profundo a formulação de Eagleton ao afirmar
que a tradição de ideologia em Marx é mais “epistemológica” que “sociológica”, mas
desta retirar que, de fato, o conceito de ideologia perpassa duas maneiras de
interpretação, que veremos tanto com Marx, quanto com Vigotski. Não pretendemos de
forma alguma anular uma ou outra perspectiva, mas salientar que o enfrentamento dos
problemas colocados pela ideologia, pela sua própria natureza, não são redutíveis a uma
interpretação univocamente, qual seja, a mais conhecida delas, a que toma a ideologia
como processo gnosiológico (Vaisman, 2010).
Teríamos, portanto um cenário disputado por duas grandes correntes intelectuais
do marxismo: Uma que coloca a ideologia no reino da falsidade de ideias, da
mistificação e de interesses políticos escusos, e outra “mais sociológica que
epistemológica”, cujo estudo da ideologia estendeu-se mais como pensamento
socialmente determinado, isto é, como ideias e formas de organização do pensamento
que advém da vida social, bem como as funções e valores dessas ideias.
30
Há uma série de autores e comentadores que tratam especificadamente dessas
nuanças e distinções, tal como a indispensável literatura de clássicos do marxismo, não
estenderemos em todas as possibilidades que podem ser consultadas pelo leitor nos
seguintes autores: Callinicos (1985), Lichtheim (1965/2008), Eagleton (1997), Vaisman
(1989), Lowy (1994), Chauí (1980) Lukács (1981), Gramsci (Gallo, 1997). Acerca da
problemática da falsa consciência e a psicologia histórico-cultural pode-se consultar um
recente trabalho de Ratner (2013).
Como veremos mais adiante, o marxismo terá como característica admitir que a
verdade não se trata de um objeto que possa ser alcançado somente na teorização, isto é,
na busca da ideia perfeita e correta, mas submete a consciência e as ideias à prática
social como um todo, de forma que a transformação social é sempre um ato histórico e
este não pode ser fruto tão somente da consciência teórica ou permanecer no reino das
ideias, a ação das consciências sobre o ser social só se efetiva na história. Ao conceber a
história como o resultado dos meios em que os homens transformam a natureza e a si
próprios pelo trabalho e as subsequentes transformações das relações e dos modos de
produção, e a interferência constante dos homens neste processo, Marx define que a
superação do atraso intelectual anda de mãos dadas com as revoluções das condições
históricas em que as consciências dos seres humanos estão dialeticamente inseridas,
como fica patente em A ideologia Alemã.
A ideologia é de natureza prático-social, é uma característica das sociedades de
classes onde opera a divisão do trabalho, de modo que tomá-la em termos cognitivos
supondo que sua superação seja relegada somente à esfera do ideal é atentar-se a uma
parte da ideologia sem conectá-la com seu correspondente material. Uma ideia pode ser
tomada como verdadeira em uma época histórica e explicar a sociedade e o homem
através de uma cosmovisão válida, conforme a instituição que a prega, sem que os
alicerces que a sustentam sejam questionados. Assim, concepções que se mostraram
equivocadas no futuro, exerceram importante função social ideologicamente, no tempo
que correspondeu à explicação com a dominação material e política. Um conhecimento
útil para uma sociedade não precisa ser necessariamente verdadeiro, quanto à sua
validade epistemológica. Antes, precisa ter eficiência prática, especialmente na
manutenção de relações de dominação:
Podemos enfim retornar à questão da ideologia como “relações vivenciadas”, e não como
representações empíricas. Se isso é verdadeiro, seguem-se então certas consequências políticas
importantes. Uma delas, por exemplo, é que não se pode transformar substancialmente a
ideologia oferecendo-se aos indivíduos descrições verdadeiras em lugar de falsas – ela não
31
é, nesse sentido, simplesmente um equívoco. Uma transformação de nossas relações
vivenciadas com a realidade só poderia ser assegurada mediante uma mudança material dessa
mesma realidade. (Eagleton, 1997, p.40, grifos nossos).
A diferença fundamental entre a ilusão ideológica e a falsidade é que a primeira
não reside tanto na garantia de que uma descrição correta do mundo possa suplantar as
ilusões surgidas dos nossos limites materiais. O problema, sendo de ordem da prática
social, coloca-se no terreno das questões materiais em que estão imersas as consciências
individuais. Se a ideologia advém das nossas próprias relações sociais, bem como os
problemas daí enfrentados e significados pela nossa consciência, esta só pode ser
substancialmente alterada a partir das próprias mudanças materiais. Assim, as ideias que
utilizamos para organizar o mundo, explicá-lo e recorrer às mudanças e transformações
acabam por ser meios paliativos – e enganosos – para a consciência individual, mas não
atingem as causas materiais fundamentais que englobam a vida individual em sua
totalidade, na dinâmica de si mesmo com os outros homens e os meios de produzir e
reproduzir a vida.
Não se trata de menosprezar em absoluto o epistemológico, o debate de ideias e
o avanço do conhecimento, que certamente dependem desses tipos de atividade, e por
elas fazem a própria história da ciência. O materialismo histórico-dialético argumenta
que a ciência não tem história própria, por ser um ramo da atividade humana que em
última análise só pôde surgir conforme o desenvolvimento material e intelectual da
humanidade enquanto conjunto, enquanto gênero humano e produtor da história. (Marx
e Engels, 2007). Seja qual for a ênfase que esta tradição aplica ao conceito de ideologia
– dentre duas possibilidades aqui frisadas – em ambas reside a constatação de que as
mudanças substanciais que levam a humanidade para um patamar diferenciado quanto à
produção e reprodução social da vida dependem da revolução das condições sociais de
produção, isto é, dependem também de um projeto revolucionário de sociedade.
Dessa forma, a discussão sobre a verdade em seu sentido epistemológico é
encarada como relativa ao momento histórico, não se restringindo à história das ideias
científicas, como se estas por si fossem as portadoras do discernimento necessário da
consciência, para daí advir as transformações sociais necessárias. É importante frisar
que a herança marxista coloca a questão da verdade e da ideologia bem como de sua
transformação, no terreno da prática histórica e social e que isso não se restringe a um
método contemplativo de análise. Vigotski é um autor marxista no seio desta tensão
entre duas correntes sobre ideologia no marxismo, na medida em que usa da palavra
ideologia em ambos os sentidos aqui expostos anteriormente: tanto na conotação da
32
ideologia enquanto distorção, quanto a que detêm um sentido mais “sociológico” ligado
ao entendimento dos valores e funções das ideias na vida social.
A fim de aproximarmos as concepções do materialismo histórico à tessitura do
termo ideologia em Vigotski, com o objetivo de explicitar em que este autor partilha
desta tradição em suas formulações, o presente capítulo tende a apresentar a discussão
da ideologia no texto A Ideologia Alemã, de Marx e Engels. No entanto, pela natureza
deste trabalho, discutiremos outras acepções de ideologia em Marx, em textos como o
18 Brumário de Luís Bonaparte, O prefácio à Contribuição à Crítica da Economia
Política e O Capital.
Faz-se necessária a passagem por estes textos por indicarem que a
problematização da ideologia em Marx não está relegada à Ideologia Alemã, embora
certamente seja nesta obra que ele trate mais exaustivamente do problema, bem como
traga definições clássicas da ideologia como fenômeno que inverte a representação das
relações sociais na consciência e as distorce por meio de diversas estratégias, entre as
quais o discurso universalizante de uma classe particular que impõe os seus interesses e
visões de mundo na consciência. Marx aponta também a origem classista da ideologia,
que encobre os conflitos econômicos e ainda a inversão entre a consciência como se
fora fundada em si mesma e a realidade social histórica e empírica, inversão que
sobrepuja os condicionantes históricos, sendo uma das principais características do
pensamento idealista criticado por Marx.
Por tratar-se de um fenômeno da consciência, da representação e das ideias dos
homens sobre si próprios e sobre a realidade, a ideologia está imbricada na
personalidade e em um âmbito mais geral, na alienação promovida pela divisão social
do trabalho que realiza um corte classista na formação das ideias dos homens sobre si.
Neste sentido, personalidade, alienação e consciência são uma tríade conceitual
inseparável da discussão sobre ideologia no campo do materialismo histórico e
dialético, especialmente quando se trata de superar as aparentes constatações como a
consciência autogerada e a concepção do indivíduo isolado (Mészáros, 2009).
Tentamos relacionar as contribuições dos textos marxianos com os textos de Vigotski,
visto que encontram ressonância na obra de Vigotski e são colocadas como problemas
centrais da psicologia, especialmente a problemática da consciência, que parte já de
modo crítico às psicologias dominantes de sua época.
Vale salientar que para os conceitos de consciência e de alienação, esta última
entendida por uma lógica de inversão entre sujeito e objeto, demos mais destaque à
33
Ideologia Alemã. Pela implicação metodológica de que este texto concentra a exposição
mais completa sobre a ótica da inversão da realidade na consciência, essa espécie de
negatividade da ideologia que será o sentido mais tradicional quando se fala de
ideologia e marxismo. A partir da explicitação de suas teses principais sobre a ideologia
e consciência, tornou-se possível apresentar um quadro que amplia a definição de
ideologia, ilustrando a ideia aqui defendida de que a negatividade não restringe a
problemática da ideologia em Marx, mas esta tampouco perde a sua preocupação com
os valores e funções das ideias na consciência.
1.1
IDEOLOGIA E MODERNIDADE: BREVE HISTÓRICO DO TERMO.
A palavra ideologia pode significar coisas diferentes não só no mundo cotidiano
das palavras, quanto na “luta das ideias”. O modo de uso do conceito deve ser tomado
conforme as necessidades sociais de cada época, o que implica também o sentido de seu
uso político. Assim, desde que foi forjado por Destutt de Tracy10 e lançado à fama
negativa por Napoleão Bonaparte11, passando pela crítica ao idealismo alemão em
Marxe Engels o uso da palavra ideologia transformou-se completamente conforme o
contexto em que era executado, o que tornou necessário, para uma discussão honesta
sobre o tema, que o interlocutor tivesse de antemão qual o sentido está em uso.
(Guareschi, 1996).
O curioso sobre o conceito de ideologia é que ele aparecerá com este nome
apenas na modernidade, ainda que o problema das interferências e deformações que
podem ocorrer no processo de conhecimento da verdade seja um problema antigo. No
Renascimento, Francis Bacon12 pincelara o problema na sua teoria dos ídolos, em que
advogava que o método científico era necessário para driblar a influência dos ídolos
sobre as nossas concepções que, inatas, impediriam o acesso à verdade. Bacon se
preocupava com a demasiada abstratividade das teorias tradicionais da Idade Média e
acreditava que o conhecimento humano deveria aproximar-se da realidade empírica.
Nesta aproximação, o combate aos ídolos era uma etapa premente e regularmente
necessária para evitar que recaíssem sobre o conhecimento a influência destes. (Konder,
2002)
10
Antoine Destutt de Tracy (1774-1836), pensador francês do período napoleônico. Foi membro do
Instituto Nacional, grupo de intelectuais da elite, que trabalhavam como teóricos da reconstrução da
França. Para mais detalhes ver Kennedy (1982) e Eagleton (1997).
11
Napoleão Bonaparte (1769 – 1821) foi imperador francês de 1804 até 1814.
12
Francis Bacon (1561 – 1626). Considerado pai da ciência moderna, entre suas obras destaca- se o Novo
Organum, que significa Novo Método.
34
Ainda nesse período, Bacon escreveu a obra, Novum Organum, que é
considerada por muitos como uma das principais na origem da ciência moderna, que
estabelecia o conhecimento da natureza através do empirismo, e deste modo colaborava
ativamente no estabelecimento de um novo modo de produção que surgia e deixava de
lado a temporalidade eterna do feudalismo e a sua lentidão na transformação das forças
produtivas. Nele expõe os aforismos que poderiam orientar a nova sociedade em
gestação. O empirismo unia-se à aurora do modo de produção capitalista, sofisticando a
tecnologia, ampliando o domínio da ciência e o conhecimento regular da natureza.
Este conhecimento poderia ser bloqueado pela ação dos ídolos, que Bacon
alertara em sua crítica na teoria formulada no Novum Organum. Ainda que pese a
ausência da palavra ideologia como tal, fica patente a preocupação com fenômenos da
consciência que atuariam de modo nebuloso no conhecimento da realidade. Lemos o
seguinte no aforismo XXXVIII:
Os ídolos e noções falsas que ora ocupam o intelecto humano e nele se acham implantados não
somente o obstruem a ponto de ser difícil o acesso da verdade, como, mesmo depois de seu
pórtico logrado e descerrado, poderão ressurgir como obstáculo à própria instauração das
ciências, a não ser que os homens, precavidos contra eles, se cuidem o mais que possam. (p.13)
Para o autor a correção epistemológica, ou gnosiológica, isto é, de ordem do
conhecimento, era parte fundamental na luta contra os ídolos e a superação de todo
sofisma e de uma dialética vulgar. Bacon os classifica em quatro gêneros, com o
objetivo de alertar sobre as etapas a serem superadas pelo pensamento imediato intuitivo
dos indivíduos, pelo método científico, especialmente o empirismo sendo regrado pela
indução. Entretanto, a aplicação do método por si só não reduzia a importância de
alertar pela força da atuação dos ídolos na consciência, que agiriam sempre como uma
forma de espectro que ronda o conhecimento objetivo.
As categorias de ídolos consistem em: da tribo, da caverna, do foro e do teatro.
A primeira categoria diz respeito aos enganos próprios da humanidade, ligadas às
tendências de crença de que o que conhecemos já é o correto sobre a natureza e o
mundo. Os ídolos da caverna são os que atuam na consciência individual e garantem
para o sujeito que o seu pensamento é o verdadeiro, em termos de validade geral. Os
ídolos do foro são os empecilhos da linguagem e das limitações comunicativas próprias
do ser humano, que causaram certa inépcia comunicativa. Por fim, os ídolos do teatro
representam a ideia de que as verdades são importantes para as autoridades (poder
político) e chegam à população em forma de verdades encenadas; com isso, conduziram
35
as crenças na massa de modo simplificado, tornando-as palatáveis, lisonjeiras para a
população. (Konder, 2002).
Bacon era um otimista quanto ao progresso científico, supondo, portanto que se
a humanidade dominasse a natureza progressivamente estaria no caminho correto e de
alguma forma inexorável. A utopia científica de Bacon é exposta em sua Nova
Atlântida. Nesta obra, o filósofo britânico concebe a sociedade do futuro, fundada no
método científico, que deveria elevar a capacidade humana de dominar a natureza bem
como o uso de instrumentos criados pelo gênero humano, elevando-os a um alto grau
tecnológico, inspirando uma noção claramente otimista do progresso científico.
Nesse escrito, Bacon constrói o lugar denominado a Casa de Salomão, em que
habitariam e trabalhariam os sábios do futuro, os maiores representantes éticos e
verdadeiros cientistas, que exerceriam enorme influência na vida diária do restante de
seus habitantes, não obstante, as características físicas destes sábios coletivos seria
pertencer ao gênero masculino e de cor branca (Harvey, 2012, p.24). No entanto
também tinha em vista a imensa dificuldade do projeto, Bacon não subestimava uma
“força genética” dos ídolos sobre as concepções da maioria dos homens, sobre a
consciência humana em geral e a necessidade de uma espécie de contínua autocrítica
para livrar-se das influências destas tendências tão humanas:
O intelecto humano não é luz pura, pois recebe influência da vontade e dos afetos, donde se
pode gerar a ciência que se quer. Pois o homem se inclina a ter por verdade o que prefere. Em
vista disso, rejeita as dificuldades, levado pela impaciência da investigação; a sobriedade,
porque sofreia a esperança; os princípios supremos da natureza, em favor da superstição; a luz
da experiência, em favor da arrogância e do orgulho, evitando parecer se ocupar de coisas vis e
efêmeras; paradoxos, por respeito à opinião do vulgo. Enfim, inúmeras são as fórmulas pelas
quais o sentimento, quase sempre imperceptivelmente, se insinua e afeta o intelecto. (Bacon,
apud Konder, 2002)
Bacon é um representante das origens do pensamento moderno no combate às
tendências que afastassem a humanidade da verdade; somando-se a outros importantes
pensadores considerados os criadores do método científico como Descartes13, que
também manifestava preocupações sobre a veracidade das coisas e do mundo, e mesmo
o lugar da dúvida no empreendimento dos métodos. No entanto, é apenas na França,
durante o período napoleônico, que o conceito de ideologia aparecerá com a devida
denominação.
As suas origens não remetem necessariamente ao sentido negativo mais
conhecido de ideologia, como um fenômeno que é oposto à ciência, por exemplo, mas
13
René Descartes (1596-1650).
36
uma disciplina científica própria, voltada para o estudo das ideias. O inventor do termo
“ideologia” é comumente aceito como o iluminista francês Destutt de Tracy, que
defendia o estudo científico das ideias, assim como poderiam ser estudados os
fenômenos naturais (Eagleton, 1997; Vaisman, 2000; Lowy, 1994).
Esse estudioso francês tornou-se membro importante no império napoleônico,
possuindo o cargo de diretor do Instituto Nacional, na Seção de Ciências Morais e
Políticas. A unidade entre burguesia e imperador, que configurava um refluxo no
avanço da classe burguesa em relação à monarquia, ocorrida com o advento da
Revolução Francesa, estava plenamente presente e a ciência das ideias surge em uma
época em que se buscava compreender e evitar os erros do Terror14. Ele acreditava que
de posse da ciência das ideias, via um caminho metodológico que consistiria das
sensações mais elementares até as ideias mais elevadas, sendo possível reconstruir a
política, a economia e a ética por meio dela. Um exemplo desse pensamento seria o de
justificar a propriedade privada, afirmando que seu surgimento remonta à oposição
perceptiva fundamental entre “você” e “eu” (Eagleton, 1997).
Portanto, no início do uso da palavra ideologia, havia preocupações com os
condicionantes externos das ideias, a busca de restituir as sensações vindas do reino
físico e natural. Ainda que com uma verve materialista, tal empreendimento é
notoriamente idealista, por explorarem as dimensões e a importância da consciência
entendida como produto sustentado somente pelas ideias. As suposições ideológicas
burguesas tais como a redução da realidade social às causalidades naturais e a
concepções de indivíduos distintos e passivos estavam presentes na concepção de
ideologia de De Tracy, de forma que, se por um lado estes criticavam as instituições do
Antigo Regime e as ideias politicas deste período, não superavam um projeto elitista de
reengenharia social, que relegava o poder político deste projeto de reconstrução do
homem, do monopólio de uma classe dirigente de viés absolutista para uma elite de
teóricos científicos ligados ao governo e neste caso específico, ao império. (Eagleton,
2007).
O avanço da influência de De Tracy e seu projeto de crítica da ideologia e do
prestígio da “ciência das ideias”, foi interrompido pelo próprio Napoleão, como pode
ser visto em um discurso datado de 1812. Nele, o imperador critica a doutrina dos
14
Compreendeu o período mais violento dos acontecimentos da Revolução Francesa, resultando em
julgamento e execução de milhares de opositores do regime liderado por Robespierre, e pela facção
Montanha dos jacobinos.
37
ideólogos adjetivando-a de metafísica, culpando-os pela sua derrota na Rússia, fecha a
seção dedicada ao tema no Instituto Nacional e ordena a troca da disciplina sobre
ideologia nas escolas para a instrução militar. De Tracy e seus consortes enciclopedistas
então passam a ser denominados pelo imperador de “ideólogos”, cujo significado é o
mesmo de metafísicos abstratos, desconexos e fora da realidade. É provavelmente este
significado que se torna corrente no século XIX, quando Marx irá retomar o termo
(Eagleton, 1997; Lowy, 1994).
Os ideólogos com sua ambiciosa transformação da sociedade pela ciência e pela
intervenção do conhecimento posicionaram-se contra certo tom místico do discurso
napoleônico sobre o coração humano e sobre seu ufanismo triunfalista, tornando-se um
obstáculo preciso ao imperador. Apesar dos impasses, De Tracy continuou sua
investigação, escreveu mais volumes, incluindo uma Gramática, e antes de morrer
escreveu sobre economia, cercado objetivamente do retrógrado absolutismo de
Napoleão, escreve inclusive um artigo defendendo o suicídio.
É neste contexto que a ideologia perde o status de um “cético materialismo
científico” de inspiração fortemente iluminista e ganha o sentido de ideias desconexas
do solo real da vida (Eagleton, 1997).
Em suma, uma conotação negativa será atribuída ao termo e será neste sentido
que Marx utilizará o conceito ideologia em sua obra A Ideologia Alemã, a mais famosa
sobre o assunto. Analisaremos essa obra a seguir, destacando as relações entre
alienação, ideologia e consciência, que será relevante para a conexão entre os princípios
do materialismo histórico contidos nos pressupostos marxianos e a constituição da
teoria histórico-cultural como uma teoria da psicologia moderna, porém, não
hegemônica e crítica da ideia de consciência tal como se encontrava na ciência
psicológica do final do século XIX e início do século XX.
1.2
MARX E A IDEOLOGIA: O INÍCIO DA CRÍTICA.
Os ideólogos colocaram o estudo das ideias no plano da luta política quando
pretenderam sustentar a ideia de que o conhecimento e o domínio da ciência da
ideologia teria o propósito de uma espécie de reengenharia social, visando uma reforma
de cima a baixo e tendo como classe dirigente os próprios ideólogos. A “virada
napoleônica”, que marcou a rejeição do imperador aos estudiosos, que antes os via
como colaboradores, colocou também a palavra ideologia como o representante de
ideias afastadas do solo real da vida, assim, fora relegada ao status de uma metafísica,
38
pois a ideologia e seus representantes seriam incapazes de compreender tanto as
determinações que geraram as próprias ideias, quanto propor soluções políticas reais
que, para além do discurso ou do projeto assentado sobre o conhecimento,
transformasse o conjunto societário de modo concreto, modificando as suas condições
de vida e não tão somente as intelectuais, deveriam de fato fazer avançar a história real.
Essa conotação negativa marcará a posição de Marx, e também de Engels, em
boa parte de seus escritos de juventude. De modo sucinto, Marx não se restringirá às
formulações de sua juventude quando escreve sobre ideologia, tampouco pode-se
afirmar que ela perde sua carga negativa, mas realiza uma ampliação do
conceito.(Lukács, 1981; Vaisman, 2010). Veremos sucintamente que essa conotação
perdurará ao longo da obra do autor de O Capital e é tema controverso quanto a quais
teses Marx teria abandonado ou suprimido no decorrer de sua vida e obra, mas não
perde o seu valor enquanto exposição primária da concepção materialista da história e
de uma crítica dos movimentos da ideologia que, ainda que Marx tivesse por objetivo
analisar apenas a ideologia alemã, são movimentos que perpassam boa parte do que se
convencionou chamar de discurso ideológico.
No Dicionário do pensamento marxista (1983), editado por Tom Botommore,
no verbete “ideologia”, de autoria de Jorge Larrain, somos exortados a entender o
conceito de ideologia em sua origem marxista com conotação negativa, além de sugerir
que se leve em consideração o conceito em desenvolvimento na obra de Marx. Para o
dicionário, a crítica da ideologia em Marx teve origem na crítica da religião realizada
por Feuerbach, por um lado, e na critica ao idealismo hegeliano por outro. Ambos os
alicerces relacionam-se com o mesmo efeito de inversão das capacidades sociais, neste
caso, velando contradições que surgem da atividade prática humana real, da potência e
capacidade do trabalho humano coletivo. Ademais, o desenvolvimento do conceito na
obra de Marx não seria marcado por uma profunda ruptura conservando em todas as
suas manifestações o seu aspecto negativo:
A partir da crítica inicial da religião, até o desmascaramento das aparências econômicas
mistificadas e dos princípios aparentemente libertários e igualitários do capitalismo, há uma
notável coerência na compreensão da ideologia por Marx. A idéia de uma dupla inversão na
consciência e na realidade, é conservada em todos os momentos, embora no fim se torne mais
complexa, graças à distinção de um duplo aspecto da realidade no modo de produção capitalista.
A ideologia, portanto, conserva sempre a sua conotação crítica e negativa, mas o conceito só se
aplica às distorções relacionadas com o ocultamento de uma realidade contraditória e invertida.
Nesse sentido, a definição, tão frequente, de ideologia como falsa consciência não é adequada na
medida em que não especifica o tipo de distorção criticada, abrindo dessa forma caminho a uma
confusão de ideologia com todos os tipos de erro. (Larrain, 1983)
39
Em síntese, o autor afirma que desde a crítica do idealismo alemão e de seus
representantes, até o estudo da “anatomia da sociedade civil” que se dá em O Capital,
Marx não abandona a perspectiva crítica sobre a ideologia, mas esta passa por um
desenvolvimento que na crítica ao modo de produção capitalista torna-se ainda mais
complexa, ainda que sob um mesmo eixo, quais sejam de distorções e ocultamentos de
uma realidade que se apresenta à consciência de modo contraditório e invertido. A
crítica à noção de ideologia como “falsa consciência” também está presente no verbete
de Larrain. O autor aponta que mesmo muito difundida e atrelada como a perspectiva
“marxista” de ideologia, a noção de “falsa consciência” não comporta toda a amplitude
do conceito de ideologia e acaba confundindo este fenômeno com qualquer tipo de erro.
Nesse liame, o autor aponta que um conteúdo ideológico não é necessariamente
um “equívoco”, e que se a ideologia é distorção é necessário especificar de qual
distorção se fala. Há por parte dos autores consultados um ponto pacífico: a de que a o
conceito de ideologia em Marx pode ser considerado em desenvolvimento devido à
complexidade dos fenômenos que aborda, quando parte a investigar o regime de
circulação de mercadorias do capital, sem perder de vista o quanto pode indicar uma
crítica das ideias estabelecidas e que colaboram na manutenção de um determinado
modo de organizar a sociedade.
Neste sentido, Marx vai da crítica aos representantes do idealismo alemão até
chegar a uma concepção que coloca a ideologia como superestrutura da base econômica
de qualquer modo de produção, mas com contornos específicos no modo de produção
capitalista, como é o caso das esferas jurídicas, ou ainda do próprio estado político
moderno (Lukács, 1981; Eagleton, 2007).
De todo modo, a ideologia ainda guarda uma continuidade importante, apesar do
desenvolvimento que ocorre em Marx, qual seja o de estabelecer uma ligação com uma
lógica que desnuda a inversão das capacidades humanas, de seus produtos e
transformações que realizou na natureza, e que é dependente do desenvolvimento do
próprio trabalho, como algo objetificado15, cristalizado, seja com explicações ahistóricas que bloqueiam a compreensão do mundo histórico, como algo produzido
pelos próprios homens, seja com explicações transcendentes que colocam o atual estado
de dominação do homem pelo homem, na esfera do trabalho e em congruência com
esta, na esfera política como algo que escapa a intervenção e modificação do homem
15
Conforme os escritos de György Lukács (1875 – 1971).
40
conscientemente. Neste sentido, assume-se como ideia ou discurso universalizante de
uma condição histórica particular específica, criada e mantida por determinantes
históricos, que ao menos em princípio, são modificáveis.
Este princípio é resgatado por Delari Jr (2013), em uma definição sintética do
ponto de partida da análise da consciência – a consciência como emergente da vida enquanto histórica, para o marxismo, através de Lukács. Trata-se de um modo de
considerar a consciência que não é a priori, ao mesmo tempo em que não apenas um
subproduto, um reflexo mecânico das condições materiais:
Em Marx o ponto de partida não é dado pelo átomo (como para os velhos materialistas), nem
pelo simples ser abstrato (como em Hegel). Aqui no plano ontológico não existe nada análogo.
Todo existente deve ser sempre objetivo, ou seja, deve ser sempre parte (movente e movida) de
um complexo concreto. Isso conduz a duas consequências fundamentais. Em primeiro lugar, o
ser em seu conjunto é visto como um processo histórico; em segundo, as categorias não são tidas
como enunciados sobre algo que é ou se torna, mas sim como formas móveis e moventes da
existência. Essa posição radical – também na medida em que é radicalmente diversa do velho
materialismo – foi interpretada de diferentes modos, segundo o velho espírito; quando isso
ocorreu, teve-se a falsa idéia [sic] de que Marx subestimava a importância da consciência com
relação ao ser material. Demonstraremos mais tarde, concretamente, que esse modo de ver é
equivocado. Aqui nos interessa apenas estabelecer que Marx entendia a consciência como um
produto tardio do desenvolvimento do ser material. Aquela impressão equivocada só pode
surgir quando tal fato é interpretado à luz da criação divina afirmada pelas religiões ou de um
idealismo de tipo platônico. Para uma filosofia evolutiva materialista, ao contrário, o produtor
tardio não é jamais necessariamente um produto de menor valor ontológico. Quando se diz que a
consciência reflete a realidade e, sobre essa base, torna possível intervir nessa realidade para
modifica-la, quer-se dizer que a consciência tem um real poder no plano do ser e não – como se
supõe – a partir das supracitadas visões irrealistas – que ela é carente de força. (Lukács, 1978,
apud Delari Jr, 2013, p.78-79, grifos nossos).
Isso significa dizer que a autonomização do mundo humano, o fruto de seu
trabalho, que agora lhe aparece como algo estranho, irreconhecível como seu, está
submetido a fenômenos imprescindíveis da realidade humana, como a alienação, que
nesse sentido diz respeito à própria parcialidade da consciência, aquilo que
necessariamente nos escapa do mundo e de nossas criações que não estão mais em
nosso poder.
No entanto, este fenômeno, no modo de produção capitalista, toma
contornos próprios, entre eles, está o discurso de direitos universais da burguesia, que
ganha o mundo a partir da revolução francesa e impulsiona o ideal iluminista de
modernidade, de uma sociedade emancipada pelo conhecimento e pela promulgação dos
direitos.
Em resumo, a burguesia coloca-se como emancipadora de toda humanidade,
negando os determinantes históricos que a colocam como uma nova classe dominante e
não aquela que emancipa a humanidade do trabalho alienado, e que pelo contrário, cria
uma grande massa de trabalhadores. Essa ideia parcial, que se pretende universal, é
41
objeto de atenta crítica de Marx, na acepção clássica do conceito. Ainda de acordo com
Eagleton (1997):
Em certas condições sociais, argumenta Marx, os poderes produtos e processos humanos
escapam ao controle dos sujeitos humanos e passam a assumir uma existência aparentemente
autônoma. Apartados dessa forma de seus agentes tais fenômenos começam então a exercer
sobre ele um poder imperioso, de modo que homens e mulheres se submetem ao que, na
verdade, são os produtos de sua própria atividade, como se estes fossem uma força estranha. O
conceito de alienação está, portanto, estreitamente ligado ao de “reificação” – pois se os
fenômenos sociais deixam de ser reconhecidos como o resultado de projetos humanos, é
compreensível que sejam percebidos como coisas materiais, admitindo-se assim a sua existência
como inevitável. (...) Se as ideias são apreendidas como entidades autônomas, então isso ajuda a
naturalizá-las e desistoricizá-las, e esse é, para o jovem Marx, o segredo de toda ideologia.
(p.48)
A ideologia, portanto é “naturalizante” e a-histórica. Neste sentido, oculta
aspectos da realidade social e visa, via discurso e ideias, eternizar as condições
presentes (como a propriedade privada, por exemplo). Uma visão de classe determinada,
tal como a burguesia que proclama como interesses de todos os seres humanos, os seus
interesses enquanto classe, mas cujo projeto de emancipação é obstaculizado pelas
condições de trabalho que ela mesma esteve no leme de seu engendramento.
Dessa forma, a consciência burguesa é eternizada como a consciência. (Marx,
2007, p. 94). Veremos mais adiante a crítica de Vigotski às psicologias de sua época no
sentido de que estas expressavam em seus constructos teóricos os limites dessas
concepções, tidas como ideológicas, por refletirem o mesmo a-historicismo quanto à
categoria da consciência e assim tomavam a consciência presentemente histórica como
“a consciência”.
A próxima sessão objetiva apresentar as teses centrais sobre ideologia em: A
ideologia Alemã. A fim de explicitar determinados pressupostos da compreensão da
história e do ser social em Marx, de modo que este permita um elo com a crítica da
ideologia e da consciência nos escritos de L. S. Vigotski, na medida em que tais
conceitos estão imbricados quanto à essência da ideologia em seu sentido mais
tradicional. A continuação acerca da discussão sobre a definição mais clássica de
ideologia, corrente nos anos da juventude Marx, ocorre com referências, – baseados em
obras secundárias – que apontam o uso de “ideologia” de modo diverso, ao menos, não
redutível ao encontrado no texto aqui em destaque, entre eles estão: O “Prefácio” à
Contribuição à crítica da economia política e O 18 de Brumário de Luís Bonaparte.
42
1.3
A LÓGICA DA INVERSÃO NA CONSCIÊNCIA: A IDEOLOGIA ALEMÃ E O
SEGREDO DE TODA IDEOLOGIA.
“Calo-me, espero, decifro. As coisas talvez melhorem. São tão fortes as coisas! Mas eu não sou
as coisas e me revolto.“. Carlos Drummond de Andrade – Nosso tempo.
A ideia de uma inversão na consciência, dos processos efetivos da atividade
social dos homens na história, está presente nos escritos de Marx desde sua juventude,
como é o caso dos Manuscritos Econômico-Filosóficos de 1844, também conhecidos
como manuscritos de Paris. É possível encontrar esta lógica de inversão nos conceitos
de alienação e reificação. A lógica da inversão ganhará maior escopo teórico adiante,
como em A ideologia alemã e de uma forma ou de outra tenderá a continuar em
produções posteriores de Marx, inclusive sendo discutido dentro do quadro categorial
de O Capital. O importante aqui é destacar a presença de uma lógica que inverte a
relação sujeito-objeto, já presente em Marx como reflexão relevante e parte da sua
relação crítica com a filosofia de Hegel e dos jovens hegelianos (Eagleton, 1997;
Larrain, 1983; Lowy, 1994).
Em Manuscritos Econômico-Filosóficos de 1844, a inversão sujeito-objeto
aparece substanciada na conexão entre propriedade privada, troca e divisão do trabalho.
Quatro aspectos marcariam todo este processo, o primeiro trata-se da produção de
objetos pelo homem que não lhe pertencem tanto em sentido econômico quanto
humano, operando a valorização direta do mundo da mercadoria enquanto desvalorizase o mundo humano, apartando o produtor da fruição de seus produtos devido à posição
que ocupa na esfera econômica, na produção e não tão somente, pois a dimensão
estética também é atingida, visto que a capacidade de fruição do trabalhador é
dificultada e rebaixada (Resende, 2009).
O segundo aspecto diz respeito ao próprio trabalho como alheio ao trabalhador,
tornando a atividade laboral essencialmente negativa, já que o trabalhador tem a sua
capacidade criativa submetida às necessidades da produção em que está inserido,
reduzindo a atividade criativa do trabalho – em sentido amplo – como meio de realizar
as suas necessidades mais básicas (Resende, 2009).
O terceiro aspecto reside na manifestação da alienação entre homem e natureza
enquanto ser genérico, a sua essência enquanto conjunto da humanidade que é a de
transformar o mundo pela atividade do trabalho, a sua natureza social, que por sua vez
cria a própria história humana é subvertida em um meio de conservação de sua
43
existência, apropriação privada e lucro, sedimentada na divisão social do trabalho acaba
por alijar as potencialidades de tornar a humanidade cada vez mais emancipada de seus
limites naturais (Resende, 2009).
Em suma, o trabalho alienado acaba por tornar-se um obstáculo para a
criatividade
humana
tornando
as
atividades
dos
produtores
(trabalhadores)
dramaticamente parciais. (Resende, 2009).
O último aspecto, tal como apontado por Resende (2009), ao discutir
estritamente sobre a reificação e alienação em Marx, consiste na crescente alienação do
homem em suas relações, isto é, do homem consigo mesmo e com seus pares. O
trabalho alienado particulariza as individualidades, tornando os homens em possíveis
concorrentes em uma condição de verdadeira luta social, fundamentada na propriedade
privada dos meios de produção, que legitima a divisão social do trabalho.
Essa inversão de uma relação recíproca entre sujeito e objeto que dá a primazia
para o objeto, tomando-o por coisa, será levada à discussão filosófica sobre a
consciência, n’A Ideologia Alemã (Eagleton, 1997). A consciência tal como defendida e
diagnosticada pelos idealistas, tende a supervalorizar o alcance das ideias e da crítica
teórica abstrata, do apelo moral ideológico e subjugar o papel dos sujeitos coletivos e
das forças motrizes da história na transformação do ser social. O entrelaçamento entre
os condicionantes históricos que circunscrevem a produção de uma determinada
consciência é anulada, estimulando uma concepção que torna a consciência algo
transcendente de seu próprio tempo, com uma essência metafísica determinada, que
eterniza o presente e preconiza o indivíduo como uma consciência autogeradora, isto é,
toma a consciência como a fundadora do real.
À consciência pode-se apenas imaginar autônoma, espontânea, autogeradora e
entificada no presente, em um determinado momento histórico, em que a relação da
produção da vida a partir da própria transformação das condições naturais
transformadas pelos homens se complexifica e passa por saltos qualitativos e contínuos
no desenvolvimento do trabalho e do ser social. Desse modo, o surgimento de uma
classe de intelectuais ou ideólogos, tal como a dos sacerdotes e filósofos, só pode surgir
em uma sociedade em que este grupo de pessoas está livre, ao menos em parte, da
necessidade de produção restrita, do trabalho manual e prático (Marx; Engels, 2007).
A consciência que se forma a partir de uma determinada classe, não herda as
suas representações costumeiras geneticamente, pelo DNA. Para a concepção
materialista da história, é a partir da atividade do sujeito no mundo que se formam as
44
suas representações e, portanto, não se transmite uma crença ou um sistema de ideias
pela transmissão hereditária, mas antes, por estar localizada em um tipo determinado
nas relações sociais de produção.
A partir do momento em que uma classe se torna independente das atividades
laborais, a sua própria estrutura perceptiva da realidade, os produtos de sua consciência,
serão marcados pelos limites impostos pela própria dimensão que enfrenta na realidade.
Essa situação é capaz de ser superada, e para o Marx - e também Engels - da Ideologia
Alemã, isto decorrerá a partir da única ciência possível: a ciência da história, que
engloba todas as disciplinas particulares, que também só podem ter surgido conforme a
especialização e o avanço do conhecimento humano. Não é destes sistemas que surge a
história dos homens, mas eles a esta se submetem, já que a história é o terreno real do
conflito entre materialidade e ideias, entre homem e natureza e das formas pelas quais o
conjunto societário organizou-se na produção e reprodução da vida, portanto, nenhuma
consciência pode estar além ou aquém destas conexões.
A sublimação ideológica que resigna os homens mesmo honestamente
esforçados em romper com o atraso real na qualidade das condições de vida, em busca
de subterfúgios intelectuais, pode também ser superada, não só com uma concepção de
história – na via da crítica teórica – que coloque a humanidade como agente da criação
do mundo humano, mas uma transformação também prática e tendo em vista a
superação do modo de produção capitalista, que produz economicamente e fomenta o
suporte ideológico, das inversões entre trabalhador e produto do trabalho, e que em
suma não elimina a exploração histórica do homem pelo homem mediada pela
propriedade privada.
A crítica teórica da ideologia não pretendia suplantar as “fraseologias” dos neohegelianos, mas ser a base científica de uma teoria revolucionária que tratasse as
questões de modo prático, localizando os grilhões centrais da humanidade na alienação
do trabalho, no atraso econômico e político, localizando a luta moderna pela
emancipação humana na colaboração da unificação daqueles que Marx (1848/1997,
p.40) chamou “coveiros” do modo de produção capitalista.
De modo sucinto, podemos dizer que estes pressupostos elaborados por Marx e
aqui arrolados ocupam-se da ciência da História, mas também, conforme define o autor,
não há como discuti-la sem que isto perpasse pelo debate sobre a ciência, a ideologia e a
consciência. Ocupando-nos da parte mais reconhecida e divulgada do extenso
manuscrito, a sessão dedicada a Feurbach busca explicitar o que Marx define como
45
ideologia, seguindo o caminho iniciado nos Manuscritos de Paris, que giram em torno
da autonomia da consciência idealista, da ideologia enquanto processo de inversão
que emerge do processo da limitada atividade material dos seres humanos e,
portanto, deve ser suplantada por uma teoria científica que abarque os homens
concretos e reais, os explorados modernos que erigem a produção de riqueza do
modo de produção capitalista, enquanto classe e em prol da transformação prática
das condições de atraso do trabalho sob a égide do modo de produção da
capitalista.
Em resumo, coloca a libertação das consciências subordinadas às ideologias do
atraso na emancipação humana do trabalho alienado e na exploração do homem pelo
homem mais do que a necessidade de uma atitude intelectual restrita de esclarecimento
teórico por um grupo pequeno de pessoas, como era o caso da situação analisada em “A
Ideologia Alemã”. Procuraremos demonstrar como Marx e Engels realizam a crítica da
consciência tomada de modo idealista, e que desse modo acaba por privilegiar as ideias
dominantes de uma determinada fase do desenvolvimento produtivo das relações
humanas, na medida em que as ideias dominantes se descolam do local onde ocorre a
dominação objetiva, e acabam por atuar na limitação do pensamento que, – ainda que se
proponha crítico – tende a manter o estado de coisas atual, vide a naturalização da
consciência presente, tomando a aparência como essência e ignorando os aspectos
materiais fundamentais na estabilização de qualquer sociedade.
Contudo, antes localizaremos brevemente alguns percalços sofridos pelos
manuscritos da “A Ideologia Alemã” no contexto em que emergiu, no início do século
XX, bem como cartas de Marx e Engels que nos ajudam a nos aproximarmos de uma
leitura mais complexa destes manuscritos, por localizarem nestes autores o caráter de
incompletude que, a nosso ver, auxiliam a operar uma análise cuidadosa, a fim de não
relegar a problemática em torno do conceito de ideologia às teses destes conjuntos de
textos de forma absoluta.
1.4
DA “CRÍTICA ROEDORA DOS RATOS” AOS TRIBUNAIS DE STALIN.
O conjunto de manuscritos que compõem a Ideologia Alemã foi resgatado da
“crítica roedora dos ratos” na União Soviética, sob o contexto da 1ª MEGA16, que
16
Marx e Engels Gesamtausgabe: projeto de compilação dos manuscritos originais em língua alemã, além
de cartas pessoais, textos publicados em outras línguas e países e material auxiliar do contexto histórico
da produção dos manuscritos. Publicados e editados em volumes, totalizando atualmente 50 destes, com
46
objetivava publicar textos ainda inéditos, a partir dos manuscritos originais, redigidos
por Marx e Engels. Publicado em 1931 sob a edição de David Rijazanov na URSS, que
acabara pagando um preço alto pela inventiva pesquisa. Conforme o atual pesquisador
do projeto MEGA-4, Michael Einrich, em comunicação pessoal (23.03.13) relembrou,
Rijazanov foi preso, réu de um julgamento que durou cerca de dez minutos, sob a
alegação de oposição ao regime stalinista, acabou por ser condenado ao fuzilamento.
Stalin já havia iniciado a concentração de poder em suas mãos e uma das políticas
colocadas em prática pelo próprio, visava o julgamento, prisão e mesmo eliminação de
ideias que fossem ou não ostensivamente contrárias às estabelecidas pelo ditador (Silva,
2013).
Para os responsáveis pela prisão e execução de Rijazanov, o manuscrito que hoje
conhecemos por Ideologia Alemã, era um texto correto, sistemático, no qual as
categorias do “materialismo dialético” eram apresentadas já como pilares de uma
“ciência do desenvolvimento” da história, em uma toada mecanicista e anti-dialética
característica da ciência e da filosofia sob o jugo stalinista. Enquanto para Rijazanov, a
partir da descoberta dos textos da juventude de Marx, estes manuscritos, ainda que com
suas colaborações originais, entre os quais se encontrava A ideologia Alemã, eram de
caráter incompleto, não unitário e fragmentado Heinrich, (22.03.2013).
As comissões do partido comunista soviético que cuidavam da ciência e da
filosofia não aprovaram esta versão de Rijazanov, que antes da execução fora
substituído por outro editor, Adoratskij, que em consonância com as deformações
impostas ao marxismo pelo stalinismo, tratara de promover a vitória política e
ideológica de uma espécie de vigor sagrado e soberano dos manuscritos, que colaborara
com a unidade monolítica imposta a todo tipo de pensamento através da doutrinação
que colocou o marxismo como uma ciência oficial, atitude política que corroborava
ideologicamente à concentração de poder centralizado em Stalin.
Não é demais relembrar que o culto da personalidade foi um dos pontos fortes
na disseminação ideológica de dominação política do período stalinista, avessa não
somente ao estudo sistemático dos próprios pensadores e líderes do processo
revolucionário como Lênin, mas ao caráter emancipatório da teoria marxiana que visa a
destituição das alienações, entre elas, a sublimação da ação dos homens enquanto
classe, na figura de mitos ou heróis que os guiariam à liberdade suprema, como se a
previsão de serem editados cerca de 120. O projeto foi iniciado e reiniciado cerca de 4 vezes. Afirma-se
que a última empreitada detém um caráter mais filológico que as anteriores.
47
história tivesse à mercê destes personagens. Dentro da atmosfera dogmática do
stalinismo, admitir o caráter aberto de um texto relevante na totalidade da obra de Marx,
não era interessante para a política stalinista vigente, menos ainda admitir que as suas
concepções de evolução da história, notadamente mecanicistas, teriam que admitir o
golpe da autocrítica, da abertura, da interpretação divergente.
Cartas posteriores de Marx e Engels sobre os manuscritos que compõem o texto
A Ideologia Alemã, depõem a favor da ideia do caráter incompleto do texto, sobre as
concepções elaboradas ali, dificultando tomá-lo como fonte completamente acabada, .
Ao contrário, estas cartas revelam, muitas vezes, que os autores tratavam o conteúdo
debatido pelo seu caráter auto esclarecedor, uma espécie de treinamento intelectual. O
“abandono” destes manuscritos acabou ocorrendo em parte por decisão dos próprios
filósofos. Como afirma Engels:
Antes de enviar estas linhas ao prelo, procurei e reli o velho manuscrito de 1845/1846. A parte
dedicada a Feuerbach não está terminada. A parte elaborada integralmente compreende uma
exposição da concepção materialista da história, que apenas demonstra quanto ainda eram
incompletos nossos conhecimentos de história econômica. O manuscrito não continha a crítica
da doutrina feuerbachiana; não servia, portanto, para o objetivo desejado. Em compensação,
encontrei num velho caderno de Marx as onze teses sobre Feuerbach, que são incluídas no
apêndice. Trata-se de anotações destinadas a serem desenvolvidas mais tarde, notas redigidas às
pressas, que de forma alguma se destinavam à publicação, mas cujo valor é inapreciável por
constituírem o primeiro documento em que se fixou o germe genial da nova concepção do
mundo. (Engels 1886/1983, p.25-26)
Os limites apontados por Engels não são depreciativos ao conteúdo d’A
Ideologia Alemã, ao contrário, fica clara a importância do exercício de redação do
manuscrito, por ser o “germe genial da nova concepção do mundo” – o principal valor
do documento, mais do que a suas discussões teóricas em termos de acerto ou exatidão
factual, especialmente em história econômica. Em outra carta, Marx se posiciona de
maneira semelhante à de Engels, acerca do destino histórico dos manuscritos do período
que compõem a elaboração d’A Ideologia Alemã:
[...] na primavera de 1845, veio (Engels) se estabelecer também em Bruxelas, resolvemos
trabalhar em conjunto, a fim de esclarecer o antagonismo existente entre a nossa maneira de ver
e a concepção ideológica da filosofia alemã; tratava-se, de fato, de um ajuste de contas com a
nossa consciência filosófica anterior. Este projeto foi realizado sob a forma de uma crítica da
filosofia pós-hegeliana. O manuscrito, dois grandes volumes in-octavo, estava há muito no
editor na Vestefália, quando soubemos que novas circunstâncias já não permitiam a sua
impressão. De bom grado abandonamos o manuscrito à crítica dos ratos, tanto mais que
tínhamos atingido o nosso fim principal, que era enxergar claramente as nossas ideias, (Marx,
DATA ORIGINAL/1983, p.25-26, grifos nossos)
De todo modo, quando veio à tona, A ideologia Alemã cumprira um papel em
conjunto com o restante dos manuscritos de Marx, em um capítulo conturbado da luta
das ideias na leitura e na agenda política revolucionária do século XX. Trata-se de um
48
extenso diagnóstico a respeito de um determinado modo de conceber a história, a ação
dos homens sobre ela, e neste plano, a consciência e seu entrelaçamento entre realidade
histórica, entre condições materiais por um lado e a “consciência e seus produtos” por
outro. Relação que caracteriza os pormenores da concepção de ideologia encontrada no
texto analisado e da qual buscaremos explicitar características centrais para o debate
sobre ideologia.
1.5
DEFINIÇÕES DE IDEOLOGIA N’A IDEOLOGIA ALEMÃ.
Marx e Engels em A ideologia Alemã objetivavam realizar a análise de toda uma
vertente filosófica ilustrada nas figuras dos jovens hegelianos de esquerda. Intelectuais
políticos de convivência e conhecimento de Marx e Engels. Um deles, o filósofo alemão
Feurbach17, havia exercido importante influência intelectual em ambos, especialmente
com a obra A Essência do Cristianismo. O contexto político da produção dos
manuscritos da Ideologia Alemã era a do Estado Prussiano18 e o mote da crítica política
dos jovens hegelianos era o arcaísmo inerente a esta estrutura política que se refletia no
atraso da realidade social e política alemã, que sequer havia outorgado a unificação da
Alemanha em Estado-Nação àquele período. (Larrain, 1983; Marx; Engels, 2007).
O atraso da modernização alemã era ainda mais nítido quando comparado a
outros países da Europa, como a altamente industrializada Inglaterra. A crítica dos
jovens filósofos centrava-se então, em revolucionar as mentalidades através de
conceitos críticos que possibilitariam o desenvolvimento através de um apelo à
consciência. O idealismo dos jovens hegelianos figura como uma tentativa de superação
de Hegel, entretanto, como apontam Marx e Engels, estes são tributários do peso do
idealismo, pois tratam a consciência de modo contemplativo e a individualidade é
naturalizada na sua condição moderna, a de indivíduo-livre e auto-responsável, isto é, o
indivíduo isolado ou a-histórico.
A constelação de conceitos destes jovens hegelianos exposta por Marx e Engels,
tais como a de “indivíduo egoísta”, “mundo sensível” (em Feurbach), ou a
“autoconsciência e o sujeito” (em Bruno Bauer), padecem deste idealismo em uma
versão tipicamente hegeliana, ainda que tardia:
17
Ludwig Andreas Feurbach (1804 – 1872)
O Estado Prussiano divida-se em diversas províncias, na Alemanha eram cerca de 300 estados alemães,
a unificação nacional foi ocorrer apenas em 1871, ainda sob influência do Estado Prussiano.
Para melhor entendimento, indica-se a consulta aos Mapas da Europa em 1800 e em 1900:
http://www.euratlas.net/history/europe/1800/.
18
49
Dado que para esses jovens hegelianos, as representações, os pensamentos, os conceitos – em
resumo, os produtos da consciência por eles autonomizadas – são considerados os autênticos
grilhões dos homens, exatamente da mesma forma que para os velhos hegelianos eles eram
proclamados como os verdadeiros laços da sociedade humana, então é evidente que os jovens
hegelianos têm de lutar apenas contra essas ilusões da consciência [fraseologias]. (Marx; Engels,
1845/2007, p 29)
Assim o “mundo sensível” percebido pelos sujeitos poderia ser transformado a
partir da transformação da consciência. Caberia a libertação real no terreno das ideias,
em um esquema interpretativo de mundo que coloca as ideias julgadas necessárias para
a transformação, como imperativo inicial para a mesma. Feurbach identifica a
percepção da nossa própria consciência com nosso ser. Marx e Engels, por outro lado,
enfatizam a essência histórica da consciência, desde os primeiros agrupamentos
humanos gregários, em que o homem se “espantava como o gado” diante da natureza,
mas que vai se modificando ao largo da história da raça humana sobre a terra. Desse
modo, a nossa consciência presente não se trata de uma essência imutável, ao contrário,
ela é histórica e pode ser modificada tanto quanto responde ao nível geral das forças
produtivas em que está inserida. Marx e Engels ironizam essa identificação entre
consciência individual e essência:
[...] um belo panegírico ao existente. Exceção feita a casos contra a natureza e alguns poucos
anormais, terás muito gosto em ser, desde os sete anos de idade, porteiro numa mina de carvão,
permanecendo catorze horas diárias sozinho, na escuridão, e porque lá está teu ser, então lá está
também tua essência. (Marx e Engels, 1845/2007, p. 81)
Para Marx e Engels, o que ocorre é que toda história, sendo movimento é, em
parte, o encontro das gerações atuais com o legado das precedentes e, por outro lado, a
modificação desse legado pela geração atual, o que permite ao materialismo histórico e
dialético ser uma ferramenta de transformação. Contudo, ele não prevê ou preconiza o
absoluto controle e o determinismo sobre como será a história após a aplicação de uma
ideia, mas a premissa empiricamente verificável de como as relações sociais de
produção modificadas criam ideias novas, no desenrolar do desenvolvimento histórico.
O finalismo, que eterniza uma condição objetiva e subjetiva presente, é
mistificador quando torna a história uma “pessoa ao lado de outras pessoas” como os
conceitos de autoconsciência, crítica e único, e coloca na forma de entender a história o
campo de ação de um individuo como centro irradiador de mudanças sociais
concretamente alcançáveis rumo a uma universalização.
A crítica religiosa ocupava no centro das críticas dos jovens hegelianos uma
função fundamental, da mesma forma que para Feurbach, a alienação religiosa poderia
ser diagnosticada se invertida a imagem da criação de Deus para os poderes da criação
50
humana, o mesmo ocorria à conceituação da filosofia alemã, que identificava a religião,
como afirmam Marx e Engels, em um trecho suprimido do manuscrito, como: “a causa
última de todas as relações repugnantes a esses filósofos” (Marx; Engels, 1845/ 2007 p.
83). Assim as relações dominantes nas suas formas políticas, econômicas e filosóficas,
são declaradas como religiosas e sacralizadas, fomentando a ideia do atraso da realidade
pelo culto das instituições existentes.
Por esse entendimento de ideologia, superá-la implica, de acordo com Marx e
Engels (1845/2007), contrapor-se aos “ditirambos filosóficos” (p. 79) com uma teoria
que expresse a realidade tal como ela pode ser verificada empiricamente. Dessa forma,
submete os pressupostos teóricos às condições que prefiguram a possibilidade da
própria história como, por exemplo, a necessidade ontológica de produzir os seus meios
de vida, bem como as subsequentes formas como cada geração vai modificando este
modo de produção, e as transformações que daí decorrem, entre a atividade do homem
na natureza, mediada pela indústria e a consciência como um produto atrelado a estas
transformações.
Numa direção contrária aos jovens hegelianos, considera que o primeiro ato
histórico que revolucionou a existência do homem na terra, também abriu caminho para
a progressiva continuação de um desenvolvimento à parte do restante dos animais da
natureza. Localiza o cerne central que por eles não fora alcançado, levando-os a se
perderem em suas análises:
Pode se distinguir os homens dos animais pela consciência, pela religião, ou qualquer outra
diferença. Mas os homens deixam de ser completos animais quando passam a produzir seus
meios de vida, esse meio de vida, esse modo de produzir é passado de geração a geração. (Marx;
Engels, 1845/2007, p.87).
Quatro pontos sobre a constituição da história humana são primordiais levar em
conta para o surgimento da consciência, conforme Marx e Engels. O primeiro ato
histórico é a produção de meios para sobrevivência, meios pelos quais os homens
produzem sua comida, bebidas e vestimenta, satisfazem suas necessidades naturais e
corporais. Diante desta satisfação temos o momento que é o da criação de novas
necessidades em conjunto com o aumento populacional e a diversidade de novos
homens que procriam. Assim, ao longo de milênios e com modos de produções diversos
(comunismo primitivo, asiático, feudalismo e capitalismo) as transformações das
relações limitadas pela natureza, tornam-se cada vez mais sociais.
O caráter revolucionário dos atos históricos ao qual o pensamento deve estar
submetido – pois não é possível que Marx e Engels considerassem os atos históricos
51
desprovidos da ação de homens que pensassem – traz à tona a ênfase na existência de
classes antagônicas na produção, regulação e distribuição desse modo de vida. Assim,
as abstrações do pensamento devem se colocar ao dispor da análise dos conflitos que
dilaceram a sociedade por inteiro, caso contrário corre o risco de ser partilhante de uma
visão de mundo distorcida, ou ilusória e fragmentada, isto é, ideológica, colaborando
com a manutenção destas próprias mazelas que pretende enfrentar.
É somente diante destes fatos sucedâneos que a consciência como a conhecemos
ou experimentamos hoje pode ser considerada como tal. Extirpar desta as suas
mediações históricas, levaria inevitavelmente a uma solução com apelo idealista e
ideológico, na medida em que abstrai a força ativa dos homens na história e credita à
correção da “consciência” abstrata o meio privilegiado da libertação real, seja ela
política ou econômica, na mão de alguns poucos seres iluminados e heroicos. Na
seguinte passagem, temos a síntese sobre a consciência como produto tardio das
relações materiais e sua inevitável imersão na linguagem. Marx e Engels “historicizam”
a consciência contrapondo-a às categorias idealistas dos neo-hegelianos:
Somente agora, depois de termos examinado quatro momentos, quatro aspectos das relações
históricas originárias, descobrimos que o homem tem também “consciência”. Mas esta também
não é, desde o início, consciência “pura”. O “espírito” sofre, desde o início, a maldição de estar
“contaminado” pela matéria, que, aqui, se manifesta sob a forma de camadas de ar em
movimento, de sons, em suma, sob a forma de linguagem. A linguagem é tão antiga quanto a
consciência – a linguagem é a consciência real, prática, que existe para os outros homens e que,
portanto, também existe para mim mesmo, e a linguagem nasce, tal com a consciência, do
carecimento, da necessidade de intercâmbio com outros homens. Desde o início, portanto, a
consciência já é um produto social e continuará sendo enquanto existirem homens. (Marx;
Engels, 1845/2007, p. 34)
A consciência humana é desde sua mais tenra origem, social e a linguagem, sua
principal mediação, é tão antiga quanto a própria consciência. Ambas, conforme Marx e
Engels, têm a mesma origem, a carência e a necessidade de comunicação e cooperação
entre os homens. O desenvolvimento paulatino das forças produtivas e a
complexificação do ser humano, tornaram possível o surgimento de concepções em que
a aparência de que as individualidades são rigorosamente distintas umas das outras, sem
um intercâmbio orgânico e significativo em comum torna-se a percepção espontânea
sobre a consciência individual. A ideologia tende a esmagar essa historicidade e a
legitimar que os indivíduos compreendam-se como de naturezas distintas, quando, por
exemplo, justifica a separação entre indivíduos voltados para o trabalho, e outros
voltados para a atividade de dominação ou ideológica.
A perene existência dessas distinções não é compreendida por Marx e Engels
como produto de uma vitória destas concepções em si na cultura humana ao longo dos
52
séculos, mas, sobretudo na permanência da divisão social do trabalho. A divisão social
do trabalho e a propriedade privada seriam, pois, as principais causas desta ilusão dos
ideólogos sobre o alcance de suas ideias e da consciência teórica. Uma sociedade
dilacerada por conflitos tende a tornar as consciências nela em jogo, como vertentes
limitadas e invertidas das relações sociais que subjazem o tecido social, no solo da
relação do homem com a natureza e com sua própria história.
A consciência é capaz de sofrer inversões, mas estas não se limitam a uma
ideia equivocada, que possa ser suplantada por uma verdade definitiva e a-histórica, ou
mesmo transcendental. Esta inversão da consciência está ligada à própria prática
material, é a atividade limitada dos homens, no caso, dos submetidos à divisão do
trabalho, que limitará a formação da consciência. O ponto de partida para uma ciência
da história, portanto, não deveria estar atrelado a esta consciência parcial, ou melhor,
não poderia satisfazer-se com ela, da ideia que temos sobre nós mesmos. Marx e Engels
consideram que as formas pelas quais até aquele período haviam determinado as formas
de pensar do homem, e no caso dos ideólogos, estas se vestiam nas formas de conceitos
que consideramos abstratos e de alcance superestimados, acabavam por agir como se
estes pudessem guiar as transformações históricas pelas próprias pernas.
Portanto, a “autoconsciência”, o “homem” – entificação eternizada do presente
por Feurbach – e mesmo termos políticos tradicionais como o Estado, não emanariam
das ideias para a vida material, mas ao contrário, seriam produtos resultantes da
atividade material dos homens, dos meios pelos quais a linguagem deu as respostas em
cada período histórico. Meios que não são neutros ou desinteressados, mas mostram-se
intimamente, desde o surgimento da divisão social do trabalho, ligados aos interesses
das classes que dominam em grande medida a atividade de trabalho, e exercem o
protagonismo nas diferentes fases da história.
Superar o idealismo e em consequência a ideologia para Marx e Engels d’A
Ideologia Alemã consistia, no plano teórico, em realizar a inversão entre as
representações como fundantes das transformações e a atividade material dos homens
com seus condicionantes particulares de cada época como fundantes da consciência. A
crítica da ideologia, que a entende como um momento de sublimação e inversão na
consciência diante de sua origem real, incapaz de compreendê-la dada sua limitação
objetiva, bem como o pressuposto clássico do materialismo histórico e dialético de não
partir da ideia como fundante do ser, para superar esta limitação, são bem explicitadas
por Marx e Engels no seguinte excerto:
53
Totalmente ao contrário da filosofia alemã, que desce do céu à terra, aqui se eleva da
terra ao céu. Quer dizer, não se parte daquilo que os homens dizem, imaginam ou
representam, tampouco dos homens pensados, imaginados, e representados para, a
partir daí, chegar aos homens de carne e osso; parte-se dos homens realmente ativos,
e, a partir de seu processo de vida real, expõe-se também o desenvolvimento dos
reflexos ideológicos e dos ecos de seu processo de vida. Também as formações
nebulosas nas cabeças dos homens são sublimações necessárias de seu processo de
vida material, processo empiricamente constatável e ligado a pressupostos materiais.
A moral, a religião, a metafísica e qualquer outra ideologia, bem como as formas de
consciência a elas correspondentes, são privadas, aqui, da aparência de autonomia
que até então possuíam. Não tem história, nem desenvolvimento; mas os homens, ao
desenvolverem sua produção e seu intercâmbio materiais, transformam também,
com esta sua realidade, seu pensar e os produtos de seu pensar. Não é a consciência
que determina a vida, mas a vida que determina a consciência. No primeiro modo de
considerar as coisas, parte-se da consciência como do individuo vivo; no segundo,
que corresponde à vida real, parte-se dos próprios indivíduos reais, vivos, e se
considera a consciência apenas como sua consciência. (Marx; Engels, 1845/2007, p.
94)
A consciência de um indivíduo em um período histórico só pode ser
compreendida a partir das relações sociais que a constituem e que ao mesmo tempo
permitem que ela possa interferir no mundo. Se não estivéssemos em relações sociais
constantemente não herdaríamos os produtos culturais de gerações anteriores, como
tampouco nos constituiríamos enquanto indivíduos sem a mediação de outros seres
humanos, por sua vez, mediados pela linguagem. Assim, a consciência é colocada no
“chão da história” e não pode ser abstraída das relações sociais que a constituem.
Ademais as representações que os homens criam para si, especialmente em sistemas de
ideias como a religião e a metafísica, tornam-se ideologia justamente porque estas não
pretendem avançar às suas elucubrações, em uma investigação crítica que coloque a
consciência como um fenômeno processual, do qual não se pode somente deduzir os
seus elementos reais fundantes, quanto projetar através dos mesmos a superação do
atual estado de coisas.
Se os ideólogos do iluminismo, e na franja destes, o movimento particular
alemão dos jovens hegelianos, padeciam de um otimismo fulminante, a crítica da
ideologia em Marx e Engels (1845/2007) é um avanço patente, pois não são mais os
erros do espírito, a psicologia, as paixões, os ídolos, enfim que deveriam ser combatidos
por um método – no sentido de conjunto de regras e esquemas - por algum tipo de
54
ciência isenta, mas compreender as causas e as funções históricas destas falsas
consciências, com o objetivo não só de corrigi-las, mas de superar as condições que
geram este engano. A consciência em A Ideologia Alemã é a relação do ser consciente
com sua prática social.
O que é determinado no homem não é a história, mas as relações sociais de cada
modo de produção em particular que condiciona as relações contraídas em cada
indivíduo, sem que possam ter controle sobre elas. Ainda que as estruturas políticas que
sob elas se erguem, como o Estado, surjam da própria sociedade civil, não se
compreenderá a realidade destes indivíduos que produzem essa sociedade se o caminho
tomado for uma especulação arbitrária; ela deve partir do real, e o real é entendido por
Marx E Engels, em parte, (1845/2007) como o desvelamento das condições de
produção: “tal como desenvolvem suas atividades sob determinados limites,
pressupostos e condições materiais, independentes de seu arbítrio” (p.93).
A ideologia opera, portanto, dentro do campo da inversão que sofre a
consciência ao autonomizar-se da esfera econômica produtiva, podendo, a partir daí,
criar todo o tipo de estruturas simbólicas que justifique a sua posição social. Agindo
como uma consciência que mistifica as relações sociais de produção estabelecidas, e
mesmo as que ocorreram ao longo da história, tomando uma forma parcial de
conhecimento como a essência da consciência e do ser. Neste sentido, a ideologia
circunscreve e limita a consciência que pretenda tratar a sua realidade como a realidade
humana, fixando-lhe uma essência:
A consciência [Bewuststsein] não pode jamais ser outra coisa do que o ser consciente [bewusste
sein], e o ser dos homens é seu processo de vida real. Se, em toda ideologia os homens e suas
relações aparecem de cabeça para baixo, com numa câmara escura, este fenômeno resulta do seu
processo histórico de vida, da mesma forma como a inversão dos objetos na retina resulta de seu
processo imediatamente físico. (Marx; Engels, 1845/2007, p. 94)
Para os autores alemães, a divisão do trabalho tem origem nas diferenças da
reprodução sexual e de caráter natural nas tribos antigas, passa a ter caráter de divisão
do trabalho – e não somente de divisão de tarefas – quando surge uma divisão entre
trabalho material e espiritual. A naturalização dessa relação nas suas formas
especulativas só é possível neste momento histórico, quando a consciência está em
condições de emancipar-se do mundo e lançar-se às construções teóricas “puras”,
distantes das exigências da realidade efetiva. A estrutura da atividade material do sujeito
circunscreve a gênese e o desenvolvimento da consciência individual:
A divisão do trabalho só se torna realmente divisão a partir do momento em que surge uma
divisão entre trabalho material e [trabalho] espiritual. A partir desse momento a consciência
55
pode realmente imaginar ser outra coisa diferente da consciência da práxis existente, representar
algo realmente sem representar algo real, - a partir de então, a consciência está em condições de
emancipar-se do mundo e lançar-se à construção da teoria, da teologia, da filosofia, da moral etc.
“puras”. (Marx; Engels, 1845/2007, p.35)
As condições lançadas pelo capitalismo colocaram os seres humanos em uma
escala progressivamente acelerada de interdependência: desde a organização do trabalho
que foi se massificando e uniformizando-se às relações econômicas imperialistas e
globalizantes. Ainda que altere substancialmente o gênero humano como uma
totalidade, representa a si próprio como resultado de vontades individuais, e é assim
idealmente concebido na figura do indivíduo egoísta. O que Marx faz é colocar essa
contradição no solo da realidade dos interesses cindidos das classes antagônicas e dos
setores conflituosos da sociedade.
Localizando a concepção de consciência que não identifica a sua individualidade
ao gênero humano como um todo, e que, portanto, pode se imaginar autogerada, Marx e
Engels reiteram que, mesmo esta forma de perceber a consciência tem uma origem
prática real, e não é apenas uma ideia bem sucedida. Em outras palavras as ideias
dominantes de uma época surgem da própria dominação e não do discurso
autonomizado, não é somente uma estratégia bem sucedida. Um destas estratégias
discursivas criticadas por Marx e Engels, está na ideia de um “interesse geral” coletivo,
que operaria como uma espécie de essência humana:
Além disso, com a divisão do trabalho dá-se ao mesmo tempo a contradição entre o interesse
dos indivíduos ou das famílias singulares e o interesse coletivo de todos os indivíduos que se
relacionam mutuamente; e sem dúvida, esse interesse coletivo não existe meramente na
representação, como “interesse geral”, mas, antes, na realidade, como dependência recíproca dos
indivíduos entre os quais o trabalho está dividido. (Marx; Engels, 1845/2007, p. 37)
Marx submete as ideias que os indivíduos detêm sobre suas posições sociais à
atividade material que exercem na vida. O critério da práxis, da atividade, é o que
define o pertencimento a uma classe social ou outra e não sua representação imaginária,
tomada aqui como uma representação isolada dos seus condicionantes históricos. A
ciência do materialismo histórico dialético se oferece como a alternativa para a
transformação das consciências, em conjunto com a transformação da práxis social, já a
ideologia, ainda que ela atinja e destaque níveis que fazem parte da realidade, insuflam
a capacidade destes itens em resolver aquilo que a sua estrutura conceitual em si não
pode suprimir ou revolucionar, ou menos ainda, explicar satisfatoriamente.
Assim como os iluministas, Hegel não era diferente no tocante a não observar o
lado soturno do trabalho humano, ainda que tenha atingido o conceito de trabalho como
Marx o adotou: a capacidade dos seres humanos de transformarem a natureza e assim
56
transformarem a si próprios, distanciando-se cada vez mais dos limites impostos pela
natureza animal, diversificando enquanto seres sociais em uma unidade contraditória
com a natureza. Marx avança na ideia de trabalho alienado para colocar também em
terrenos reais a especulação hegeliana do trabalho eternalizado na dialética do senhor
e do escravo, e limitado do trabalho especulativo do espírito, a atividade intelectual,
mesma limitação que padeciam os jovens hegelianos (Konder, 2002).
Assim como Hegel, os jovens hegelianos padeciam da ausência da captura da
dimensão negativa do trabalho, por conseguinte, da dinâmica da sociabilidade. Ao
colocarem-se como a parte que está acima – iluminada e heroica – fazem imagem de si
mesmos, como a de uma individualidade com alcances heroicos na leitura e na
dissolução dos problemas reais. Marx, como momento negativo da filosofia de Hegel,
retira-lhe o caráter de teodiceia e estabelece a história como resultado de lutas em um
processo aberto. Aqui o materialismo histórico opõe-se à ideologia e coloca o
conhecimento da história a serviço daqueles afastados da possibilidade de elaboração
teórica e de enfrentamento com as concepções dominantes.
Uma das tarefas da crítica é revelar a relação de uma ideia, pode mesmo ser um
conceito filosófico e sua relação com as ideias dominantes – mesmo em suas múltiplas
manifestações – como estas acabam por ser parciais quanto às configurações centrais do
estado de dominação presente. As crises de poder político e econômico que abalam e
reconstroem modos de produção ao longo da história não se dão sem lutas ideológicas,
uma vez que, a classe que detém os meios de produção também detém o domínio da
produção espiritual, que nos dias presentes faz-se imponente pela mídia corporativa.
Como dissemos acima, se a estrutura perceptiva da consciência do sujeito está
circunscrita à sua atividade material dentro da dinâmica das classes sociais na produção
e reprodução da vida, o sujeito que está mais distante das produções espirituais tende a
ficar mais vulnerável às concepções da classe que domina o que justifica em parte a
efetivação do ideário burguês, mesmo entre os proletários. Daí a necessidade do
combate nesta esfera e de se unificar uma concepção de história que coloque a
capacidade criativa e criadora do homem, sua essência, que a difere da existente em
todos os outros animais, na ação prática da unificação do proletariado.
Este domínio espiritual de uma classe coloca o problema de que as suas
concepções tenderão a universalizar o seu domínio histórico de modo a colocar a
“aparência” das relações estabelecidas como “essências” universais. Segundo Marx,
57
esta estratégia é parte do próprio domínio econômico, no intuito de bloquear a sua
implosão e ao mesmo tempo justificar o seu domínio, ocorrendo que:
(...) toda nova classe que toma o lugar de outra que dominava anteriormente é
obrigada, para atingir seus fins, a apresentar seu interesse como o interesse
comum de todos os membros da sociedade, quer dizer, expresso de forma
ideal: é obrigada a dar às suas ideias a forma de universalidade, a apresentálas como únicas racionais, universalmente válidas. (Marx, 1845/2007, p.48)
Um exemplo de um discurso ideológico bem sucedido e que ocorreu séculos
antes da redação d’A ideologia Alemã, é lembrado por Mészáros (2004), ao citar a
estratégia do cônsul da Roma Antiga, Menênio Agrippa, quando este se dirigiu para os
romanos que haviam entrado em greve e ocupado o Monte Sagrado, para dissuadi-los
de enfrentar o regime, o discurso consistia em defender uma concepção “orgânica” da
sociedade:
Segundo o tão referenciado cônsul romano – que em palavras típicas da
Enciclopédia Britânica, era conhecido como um homem de “ponta de vista
moderados” - cada camada social tem seu “próprio lugar” no grande
organismo. As camadas inferiores devem obter sua satisfação a partir da
“glória refletida” e, independentemente de sua inferioridade, ser consideradas
“igualmente importantes” para o funcionamento do organismo a que
pertencem. Evidentemente, esse foi um poderosíssimo exercício ideológico.
Segundo a lenda, os que protestavam se comoveram tanto com os “pontos de
vista moderados” do cônsul, que, imediatamente, abandonaram a sua postura
de desafio coletivo e retornaram aos lugares a eles determinados. (p. 07)
A relação entre consciência, alienação e ideologia entrelaça-se em uma mesma
problemática. Trata-se dos limites objetivos da consciência humana e de formas de
concebê-la, bem como seus modos de constituição e ação que se baseiam nestes
mesmos limites, através de recursos como a universalização, a parcialização e o ahistoricismo, em prol de uma harmonia ou ordem inexistente, idealmente insuflada. A
teoria torna-se etapa necessária da superação da ideologia, é o sustentáculo da “críticaprática” mas não deve limitar-se em ser um outro momento ideal tomado apartado da
realidade social, ao contrário trata-se da produção de um conhecimento que revele os
determinantes sociais da consciência, capazes de superar as concepções minadas pela
ideologia e que, entre outras instâncias, entenda a consciência como um processo,
aliada com o projeto de revolucionar o estado de coisas presentes, para que a
consciência esteja em outro patamar qualitativamente diferenciado, compreender a
consciência é mais portanto que descrevê-la como se apresenta no presente.
Marx avança na argumentação sobre a origem classista da ideologia, e o papel
das classes nas formações ideológicas e na determinada função da ideologia na
permanência destas ideias, mesmo que estas já não colaborem para uma situação de
58
igualdade, justiça e desenvolvimento humano reais, concretos, mas antes acabam –
conscientemente ou não – sustentando um cenário de manutenção:
As ideias da classe dominante são, em cada época, as ideias dominantes, isto é, a
classe que é a força material dominante da sociedade, é ao mesmo tempo, sua força
espiritual dominante. A classe que tem à sua disposição os meios da produção
material dispõe também dos meios da produção espiritual, de modo que a ela estão
submetidos aproximadamente ao mesmo tempo os pensamentos daqueles aos quais
faltam os meios da produção espiritual. As ideias dominantes não são nada mais que
do a expressão ideal das relações dominantes apreendidas como ideias; portanto são
a expressão das relações que fazem de uma classe a classe dominante, são as ideias
de sua dominação. Os indivíduos que compõem a classe dominante possuem, entre
outras coisas, também consciência e, por isso, pensam; na medida em que dominam
como classe e determinam todo o âmbito de uma época histórica, é evidente que eles
o fazem em toda sua extensão, portanto, entre outras coisas, que eles dominam
também como pensadores, como produtores de ideias, que regulam a produção e
distribuição das ideias de seu tempo; e, por conseguinte, que suas ideias são as ideias
dominantes da época. Por exemplo, numa época e num país que o poder
monárquico, a aristocracia e a burguesia lutam entre si pela dominação, onde,
portanto a dominação está dividida, aparece como ideia dominante a doutrina da
separação dos poderes, enunciada então como uma “lei eterna”. (Marx e Engels,
1945/2007, p. 47)
Veremos no capítulo seguinte como essa separação de ideias dentro de um
mesmo espectro dominante – a sociedade burguesa – ocorre também na Psicologia na
face de suas diversas escolas, que partilham a filiação ora ao idealismo, ora ao
materialismo, sem ainda ter produzido uma síntese desta cisão e o quanto isto é
representante das divisões objetivamente instauradas na realidade. Neste sentido, a
superação da “confusão” reinante na ciência psicológica tal como diagnosticou
Vigotski, em 1927, também é um problema prático, que perpassa pelo tema da
consciência enquanto processual e da importância de um projeto de consciência
emancipada na sociedade construída conscientemente por um projeto coletivo de
transformação social.
As referências procuradas para uma formação mínima sobre a multiplicidade do
problema da ideologia no marxismo revelam que não há consenso a respeito de que as
definições expostas em A Ideologia Alemã esgotariam a reflexão de Marx sobre a
ideologia. Algumas destas restrições orbitam no excesso do vocabulário empirista dos
jovens Marx e Engels, que insinuariam a ausência da consciência em contradição com a
materialidade desde sua origem, mas colocando-a como produto secundário. Como
vimos no início do capítulo, Lukács (1981) diz que o fato da consciência ser
considerada um produto tardio não lhe condiciona um valor ontológico menor. No
entanto, um exemplo da existência de discordância quanto à validade estatutária das
teses aqui expostas, como a descrição de modos de vida anteriores são tidas como uma
“fantasia objetivista” para marxistas como Raymond Williams ((Eagleton, 1997).
59
Aos nossos propósitos, indicar sentidos diversos na obra de Marx e Engels para
o conceito de ideologia nutre a ideia de que a utilização deste conceito também é
variável, conforme a necessidade prático-política do conceito e que isto marcará a tão
variada constelação no uso deste na tradição materialista histórica e dialética. A
necessidade da superação dialética – teórica e prática – é o que forja a crítica ao engano
dos ideólogos, estas tematizações não são as únicas que significam a palavra
“ideologia” como um todo. Há ainda, além da tensão própria a toda obra de Marx
quanto à natureza e à caracterização da ideologia, o uso político do conceito pelo
movimento internacionalista operário e dos intelectuais e filósofos da tradição marxista.
Este uso cumprirá papel importante na “fama” que tomou o conceito de ideologia como
sinônimo de “falsa consciência”, de modo que esta definição é muitas vezes atrelada
como a principal ou única para esta corrente. (Konder 2002, Vaisman, 2010).
Levando em consideração que nesta sessão foram expostas as teses
fundamentais de A Ideologia Alemã quanto à ideologia, e focando-se nesse texto por ser
a “interpretação canônica” de ideologia para Marx e Engels, identificando-a muitas
vezes como “falsa consciência”, a próxima sessão citará brevemente alguns textos de
Marx que abrem flancos para a compreensão de ideologia, que não se restringe tanto ao
sentido negativo e crítico, nos moldes da juventude dos filósofos e revolucionários
alemães, quanto à identificação da ideologia à falsa consciência.
1.6
APONTAMENTOS SOBRE IDEOLOGIA E FALSA CONSCIÊNCIA
Conforme Eagleton (1997), Marx nunca utilizou o termo “falsa consciência”,
que aparece em uma carta de Engels a Franz Mehring, anos após a morte de Marx, carta
que provavelmente cumpriu um papel importante na popularização da noção de
ideologia como falsa consciência, entre os movimentos operários e da intelectualidade
socialista na virada dos séculos XIX ao XX. Há ainda a hipótese de que no âmago das
revoltas sociais em curso, muitas vezes, a exigência de combate ao pensamento
conservador ou reacionário exigia este teor de crítica, via uma linguagem menos
filosófica que combativa (Konder, 2002).
Nesta carta, Engels discorre abertamente sobre o conteúdo ideológico ser
necessariamente falsa consciência e defende que o conteúdo só pode ser ideológico
justamente por ignorar aquilo que é o seu dispositivo motivador:
A ideologia é um processo que o chamado pensador executa com
consciência, mas com uma falsa consciência. As verdadeiras forças
motrizes que o motivam permanecem ignoradas, de outra forma não
60
se traria de um processo ideológico. (Engels apud Konder, 1893/2000,
p. 49).
Um limite desta formulação é exposto na crítica de que a ideologia não é
redutível à falsa consciência, porque esta incorporaria, necessariamente, conhecimentos
verdadeiros, o que a torna um processo de muito maior alcance e complexidade.
(Konder, 2002)19.Um exemplo de que o próprio Marx tratou das ideologias de modo
mais amplo que os sentidos que orbitam a ideia de falsa consciência, pode ser
encontrado no texto de 1859, o prefácio à Contribuição da crítica da economia política
(1929/1978). Marx resume o seu método de pesquisa, o “fio condutor” que culminou no
projeto d’O Capital. O método do materialismo histórico e dialético é aqui indicado
sumariamente como o método de investigação próprio para o estudo da “anatomia da
sociedade burguesa”, o modo de produção capitalista (p.129).
As formações ideológicas são colocadas por Marx na superestrutura da esfera
econômica produtiva do modo de produção moderno, toma-as como na esfera das ideias
que se relacionam dialeticamente com as determinações econômicas da produção social
da vida. Desse modo, os “produtos da consciência” sistematizados em ideologia, que
antes eram definidos pelo seu teor invertido e mistificador, têm agora a função de servir
de veículo que tenciona a luta de classes no mundo das ideias e na prática política. São
as “formas jurídicas, políticas, religiosas, artísticas ou filosóficas, numa palavra, as
formas ideológicas em que os homens adquirem consciência desse conflito e lutam para
resolvê-lo” (Marx apud Eagleton, 1997) ou ainda “o conduzem até o fim” (Marx,
1859/1978, p. 129):
O resultado a que cheguei e que, uma vez obtido, serviu-me de fio condutor aos meus estudos,
pode ser formulado em poucas palavras: na produção social da própria vida, os homens
contraem relações determinadas, necessárias e independentes de suas vontades, relações de
produção estas que correspondem a uma etapa determinada do desenvolvimento das forças
produtivas materiais. A totalidade destas relações de produção forma a estrutura econômica da
sociedade, a base real sobre a qual se levanta uma superestrutura jurídica e política, e à qual
correspondem formas sociais determinadas de consciência. O modo de produção da vida
19
É o caso de quando o método científico é posto à ordem de interesses particulares - como legitimar
desigualdades sociais e raciais – a ideologia relaciona-se com a ciência, e para tal, ainda que de modo
muito dissimulado, necessita de formulações que correspondam, expliquem o mundo real.
Esta
necessidade muitas vezes levou a uma mistura de marxismo com positivismo, que separava a luta política
radical do conhecimento objetivo da realidade, a unidade entre prática revolucionária e verdade histórica
como vimos em Marx. Esta tendência estava fundamentada numa espécie de darwinismo social que
buscou “rever” o marxismo, e está concentrada em figuras como Bernstein, Kautsky e Plekhanov na
Rússia (Lowy, 1994).
61
material condiciona o processo geral da vida social, política e espiritual. Não é a consciência dos
homens que determina seu ser, mas, ao contrário, é o seu ser social que determina sua
consciência. Em certa etapa de seu desenvolvimento, as forças produtivas materiais da sociedade
entram em contradição com as relações de produção existentes ou, o que nada mais é do que a
sua expressão jurídica, com as relações de propriedade dentro das quais aquelas até então se
tinham movido. De formas de desenvolvimento das forças produtivas estas relações se
transformam em seus grilhões. Sobrevém então uma época de revolução social. Com a
transformação da base econômica, toda a enorme superestrutura se transforma com maior ou
menor rapidez. Na consideração de tais transformações é necessário distinguir sempre entre a
transformação material das condições econômicas da produção, que pode ser objeto de rigorosa
verificação da ciência natural, e as formas jurídicas, políticas, religiosas, artísticas ou filosóficas,
em resumo, as formas ideológicas pelas quais os homens tomam consciência deste conflito e o
conduzem até o fim.
Passamos então, a ter cerca de três definições de ideologia em Marx, e ainda
uma quarta que se fundamentará na reificação da mercadoria em O Capital (Eagleton,
1997). Tentaremos resumir sumariamente quais são: a primeira liga-se à definição de
que crenças ilusórias ou socialmente desvinculadas que se veem como fundamento da
história e que, na naturalização das condições sociais de trabalho de homens e mulheres,
sustentam poderes políticos opressivos, naturalizam uma condição de exploração que é
historicamente determinada, bem como a posição dos ideólogos – Marx aponta como
primeira classe de ideólogos os sacerdotes – que também é naturalizada pela ideologia
como suporte eterno de uma dada formação social.
A segunda, também referente ao texto A Ideologia Alemã, expressa os interesses
materiais da classe dominante e são úteis na produção deste domínio por meio de
diversas ideologias que não atacam a causa da dominação, mas a escamoteiam. A
ideologia lançada à superestrutura da sociedade e suas vias de luta política nas
expressões jurídicas, artísticas, enfim nas “formas ideológicas” é ainda uma terceira
maneira que se encontra a ideologia em Marx. Para outros autores ainda há uma
concepção que pode ser extraída diretamente de O Capital e está ligado diretamente à
ideia do fetichismo da mercadoria que, aparecendo como um mundo autônomo, não é
capaz de ser tomado por sua essência histórica pela consciência cotidiana, sendo
necessário um afastamento, ou o método de abstração científica para por em relevo a
ideia científica do conceito, o concreto pensado. (Paulo Netto, 2011)
Dois dos autores utilizados na pesquisa, para orientar-nos na investigação
histórica do conceito de ideologia na tradição marxista, também assentam uma
polêmica. Para Eagleton, quando a ideologia lança-se à superestrutura e não é mais vista
como falsa, desconexa ou mistificadora, ela é dotada do poder de se tornar uma
“armadura intelectual” do proletariado. Já o filósofo brasileiro Leandro Konder, acredita
que esta é uma definição “confusa” de ideologia, na medida em que o conhecimento
62
ideológico, mesmo em formas positivas, não pode ser aliado do proletariado, na medida
em que este sempre será dotado de uma parcialidade que impede uma visão da
totalidade do ser social. Como coloca Konder:
O ensaísta inglês está consciente do fato de que “nem toda ideologia é erro e nem todo erro é
ideologia” (Eagleton, 1997, p. 126). E sabe, também que, “para terem êxito, as ideologias devem
ser mais que ilusões impostas” (ibidem, p.27). No entanto, sua compreensão do conceito de
ideologia em Marx (que é o ponto de partida de sua própria concepção de ideologia) é confusa.
A seu ver, Marx teria se equivocado porque oscilava entre a visão da “ideologia como ilusão” e
a visão da “ideologia como armadura intelectual de uma classe social”(ibidem, p.87). Parece ter
faltado a Eagleton um entendimento mais profundo da complexidade (e da riqueza) da questão
da ideologia como Marx a propôs. (Konder, 2002, p.72)
Para Konder, baseado n’ 18 de Brumário de Luís Bonaparte, o conceito de
ideologia em Marx estará sempre ligado a uma limitada visão da ação política, uma
positividade que não se mostra como meio para uma transformação qualitativa e
acabaria por tornar-se um obstáculo no horizonte da ação:
Marx não caracterizava a ideologia como mera ilusão. Nem a caracterizava como “armadura
intelectual de uma classe social”. No Dezoito Brumário, ele deixou claro que a ideologia
pequeno-burguesa dos deputados não deriva da condição de pequeno-burgueses (que
possivelmente até nem era a condição deles), ela correspondia aos limites do horizonte dos
políticos, que não conseguiam enxergar no plano político aquilo que os pequenos burgueses não
conseguiam enxergar na vida prática, na atividade econômica. Quer dizer: para Marx, a
ideologia estava sobretudo no que não era visto. Como poderia ser armadura intelectual?
(Konder, 2002, p.70)
Este é um exemplo de polêmica entre estudiosos do conceito de ideologia. Entre
interpretações que hesitam entre a ideologia como meio organizador de ideias para um
fim – por exemplo, a luta socialista – e a inevitabilidade da parcialidade ideológica das
instituições dominantes, tais como a política, na resolução dos conflitos da base
material, e neste sentido de reconhecer a ideologia sempre como um limite da
consciência a ser reconhecido e ultrapassado. De modo algum pretendemos aqui esgotar
esta discussão no âmbito destes dois autores, mas salientar que a ideologia em Marx não
consiste em ponto pacífico.
Buscamos aqui superar um conceito sincrético de
ideologia, ou mesmo espontâneo, que a identifica, tão somente, com a “falsa
consciência” e julgamos ser tarefa necessária na medida em que indica o
desenvolvimento de Marx, em temas sobre a consciência e seus produtos, de modo
ampliado.
A ideologia tem na atividade social tanto sua gênese quanto a possibilidade de
sua destruição, e este critério prático para sua superação é legado a Vigotski, bem como
a influência de entender a ideologia como uma expressão da alienação e da agonia do
pensamento burguês diante dos obstáculos materiais de sua superação, que por vezes
acarretaram na degeneração da ciência psicológica, pela via de princípios explicativos
63
que resguardavam momentos de verdade em seu processo, mas condicionados à
ausência de uma síntese teórica e prática, tornavam-se e expandiam-se como ideologia.
(Vigotski, 1927/1996).
Outro ponto que entendemos estar presente nos escritos analisados de Vigotski
consiste na constatação de que, mesmo quando a ideologia aparece em seus textos de
modo voltado a todo pensamento socialmente determinado e definida como “sistema
conceitual valorativo”, este autor não nos apresenta um conceito desprovido de
criticidade, ou seja, não se trata de uma cosmovisão neutra e partilha da riqueza crítica
de Marx na medida em que a ideologia é fonte, mas também limite da consciência e
deve ser superada. Como veremos no próximo capítulo, Vigotski também partilha da
tensão encontrada na tradição do materialismo histórico-dialético e também opera uma
expansão de suas definições sobre ideologia, na medida em que superá-la torna-se papel
da educação e do pensamento por conceitos, ampliando os postulados iniciais aos quais
expomos no seguinte capítulo.
2
PSICOLOGIA E IDEOLOGIA: EXPLICAÇÃO DO PSIQUISMO OU
EXPRESSÃO DA REIFICAÇÃO? A IDEOLOGIA COMO CONCEITO
CRÍTICO-NEGATIVO EM VIGOTSKI, 1924-1929.
O surgimento da psicologia enquanto ciência independente foi marcado por uma
tendência em elevar princípios teóricos particulares da totalidade da psique humana, que
foi diagnosticada por filósofos e psicólogos nas primeiras décadas do século XX, como
Politzer20 (1928/1998), Sartre (1939/2009) e Vigotski (1927/1996). Esta se expressava
na reificação dos processos propriamente psicológicos do homem, isto é, postulando
que estados da consciência humana e da conduta constituíram-se exatamente tal como o
princípio explicativo exigia (fosse ele o reflexo, o inconsciente, ou a “boa forma”).
O fato é que esta jovem disciplina mantinha com as demais, especialmente com
as ciências humanas, uma relação de absorção, e assim numa atuação determinista
elevava-se como princípio explicativo e chave da consciência humana, o social era
então “psicologizado” e as diversas manifestações da vida seriam em última análise
expressões desta psicologia. Conforme Japiassu (1982), a psicologia sempre conservou
20
Georges Politzer (1903-1942), de origem húngara, foi filósofo e teórico marxista, atuou na
Resistência Francesa à invasão nazista no período da segunda guerra mundial, sendo preso, torturado e
morto pela Gestapo.
64
certo desejo de “imperialismo” em relação às demais disciplinas humanas, de modo
mais a absorver do que articular:
Portanto, foi de sua vizinhança com a filosofia, que decorreu a direção na qual a psicologia
concebe sua emancipação e seu acesso a um estatuto científico independente: uma libertação
relativamente à filosofia, por conformação ao modelo das ciências da natureza já constituídas.
Por isso a psicologia ainda hoje oscila entre duas grandes correntes: uma, mais filosófica,
utilizando os modelos explicativos hermenêuticos ou interpretativos; outra, propriamente
científica, tomando de empréstimo às ciências naturais seus modelos explicativos (por exemplo,
o behaviorismo). Por outro lado, convém lembrar que, pelo fato de ter nascido no seio da
filosofia, a psicologia parece ter herdado também certo desejo de imperialismo: concebe suas
relações com as demais disciplinas humanas sob o modo da absorção, e não da articulação.
(Japiassu, 1982, p.42)
Colocava-se diante da psicologia o problema da complexidade - irredutível a
alguns princípios científicos - da conduta do ser humano e do mundo das coisas que o
circundam, diante da precariedade das explicações psicológicas. Ainda conforme
Japiassu (1982), a psicologia como ciência da conduta, isto é, das “respostas
significativas através das quais o ser vivo em situação, integra as tensões que ameaçam
a unidade e o equilíbrio do organismo” (p. 74), portanto a forma pela qual se vivencia a
relação subjetiva-objetiva entre realidade social e psiquismo se formava, precisava ser
explicada em seus próprios termos, levando em conta a singularidade da psique. Para
tal, fez-se necessário livrar-se de duas espécies de “viseiras” que criavam a dependência
direta da psicologia com outra área maior da ciência, por um lado, a excessiva
explicação racional do comportamento de consciência, e por outro, a dependência das
ciências naturais como paradigma científico (Japiassu, 1982).
Essa dependência é apenas uma face da característica de inversão típica da
psicologia, conforme a análise de alguns de seus críticos. Eleger o seu princípio
explicativo como a chave da compreensão total da consciência, sem considerar que este
próprio princípio perde a sua substância explicativa na medida em que reduz o
psiquismo à este princípio. Assim, aspectos da consciência humana, que só podem ser
compreendidos a partir de seus determinantes históricos, acabam por eleger a essência
particular de uma consciência histórica, como consciência humana em geral, isto é,
universal, suspendendo as suas características predominantes de um período histórico
dado, postulado como a verdadeira condição humana, portanto, no plano político
servindo como ideologia do individualismo e da naturalização da política, obliterando a
ideia de transformação social (Parker, 2010).
Assim muitas vezes as teorias psicológicas tiveram caráter eminentemente
ideológico, colaborando na manutenção do status quo científico e ideológico, por meio
da universalização de seus métodos e técnicas e pela relação de imperialismo que
65
estabelecia com os outros campos do saber. Dessa forma, a integração do saber
constituído pela psicologia passa pela deformação ideológica, na medida em que esta
não se reconhece como parte explicativa da totalidade da psique e passa a identificar
toda a produção da consciência humana como concernente de ser explicado por um
princípio em particular.
Em um contexto em que a Psicologia já tentava avaliar-se enquanto ciência
independente, e eclodiram diagnósticos de “crise” e de parcialidades ideológicas,
Vigotski utilizará a noção de ideologia, de modo que esta expressa uma negatividade
enquanto avanço no conhecimento do real, já que mistifica a natureza social e histórica
do psiquismo, fixando-o a essências imutáveis e ampliando a explicação da formação da
consciência individual, pautada em um princípio que acaba por abarcar a totalidade das
formas de consciência social, tais como a arte, a política, a religião, a filosofia, etc.
Pretendemos com este capítulo, compilar as aparições da palavra “ideologia” em
textos selecionados de L.S. Vigotski, resultantes da varredura explicitada na sessão
sobre a metodologia desta pesquisa. Para melhor organizar a exposição dos dados
realizamos um “corte” cronológico, uma vez que os textos dos primeiros anos da
produção vigotskiana são os mais marcados pela conotação negativa e crítica da
ideologia, ao passo que a partir de 1929, encontra-se outro sentido que não se reduz à
sua conotação crítica, o que justificou o recorte assumido.
No entanto, há uma exceção. O texto O fascismo e a psicologia apesar de ser de
1934, também foi incluído neste capítulo por ser um texto essencialmente crítico, de
combate, de um espinhoso período de censura e de concentração de poder autoritário na
produção filosófica e científica da União Soviética por conta do fenômeno político que
conhecemos como stalinismo, período marcado pela retração dos princípios
revolucionários internacionalistas, que antes eram a tônica do partido bolchevique russo,
até a morte de Lênin (Silva, 2013).
O fascismo e a psicologia é um texto em que a ideologia é exposta em toda sua
carga degenerada quanto a entender o ser humano em sua universalidade de gênero,
tomando uma perspectiva largamente parcial para advogar a favor do psiquismo ariano
como tipo ideal da consciência, e que por tal motivo tinha todo o direito de colonizar o
resto do mundo. Portanto, trata-se de uma aparição em que não há duvidas a respeito da
tendência assumida por Vigotski quanto ao conceito de ideologia: uma expressão grave
da inversão entre poderes e processos humanos, isto é da alienação e da reificação.
66
2.1 IDEOLOGIA NO “PRÓLOGO” DO LIVRO DE E. THORNDIKE:
PRINCÍPIOS DE ENSINO EM BASEADOS NA PSICOLOGIA
Como demonstrou Tuleski (2008) o presente prólogo de Vigotski está inserido
em um contexto de efervescência econômica, política e cultural advinda das tensões
pelas quais passava a recém-instituída União Soviética. A disputa pela formação de
uma consciência socialista que superasse as parcialidades inerentes à propriedade
privada estava em campo, mas as condições objetivas revelam mais um momento de
transição que o estabelecimento automático do novo homem, mesmo quando este
projeto tem a possibilidade coletiva e consciente tal como foi dado no período fértil e
progressista da Revolução. Os planos quinquenais de Stalin e a coletivização forçada no
campo eram exemplo de que os conflitos estavam longe de acabar e de deixar profundas
marcas na tentativa de um projeto de sociedade coletivamente forjado.
Neste sentido, o texto se insere dentro do debate em que a psicologia tradicional,
de viés fortemente moderno e ocidental, já não poderia estar a par do tamanho das
dificuldades e das especificidades das tarefas que se colocavam tanto para a psicologia
quanto para a pedagogia. Os paradigmas burgueses, tanto pelos seus valores morais
colocados muito acima das questões materiais vigentes e das relações sociais de
produção em geral, ainda abstraiam-se das condições reais e conflituosas que estavam
atingindo os dilemas da educação na URSS. A psicologia deveria colocar-se como a
ciência do novo homem, mas por estarem passando por um período profundo de
transição, o novo ainda estava a ser gerido, mas de forma que o “velho” já era incapaz
de dar conta dos problemas atuais. Como afirma Tuleski, Vigotski tinha consciência
da dificuldade de realizar o salto para uma nova sociedade e isto estava presente em
sua obra, incluso no prólogo em destaque:
Se no campo dos conhecimentos teóricos está se produzindo uma transformação radical das
velhas concepções e ideias e uma reestruturação fundamental de conceitos e métodos, nas
disciplinas aplicadas, tanto quanto nas ramificações do tronco geral, são também inevitáveis os
mesmos processos, sutis, mas frutíferos, de destruição e reconstrução da totalidade do sistema
científico. Poderão retrair-se, mas não deixarão de produzir-se. [...] Por isso agora, quando não
se tem levado a cabo esta revisão, reveste-se de maior importância contar com livros adequados
que possam ser utilizados neste período revolucionário de transição, no qual todo o anterior está
irremediavelmente questionado e já não se pode utilizar, mas ainda não foi criado o novo capaz
de substituí-lo. (Vygotsky 1926/1996 p. 143).
E de forma também atribuindo um valor transitório e com confiança no futuro
que Vigotski ressalta a importância do livro de Thorndike, especialmente quando este
coloca a necessidade da psicologia e da pedagogia de se relacionarem mutuamente, pois
uma pedagogia que prescindisse da psicologia seria uma tentativa de educar totalmente
67
em bases que demonstravam ser especificamente ideológicas. (Vygotski, 1926/1996). A
ideologia aqui, portanto, aparece como oposto de ciência –existiria, pois uma ciência
diferente ou a verdadeira ciência- na medida em que representa a parcialidade, a
fragmentação e a ausência de uma teoria científica sobre o conhecimento da consciência
humana e o “cimento” entre a técnica educativa e as bases da psicologia humana:
Não obstante, renunciar a psicologia na hora de reelaborar um sistema educativo
significaria renunciar toda a possibilidade de explicar e fundamentar cientificamente o
processo educativo, a própria prática do trabalho pedagógico significaria, entre outras
coisas, construir o corpus técnico da educação social e da escola do trabalho sobre bases
exclusivamente ideológicas (...). Dito de forma breve e sincera: Renunciar a psicologia
significa renunciar a pedagogia científica. (Vigotski, 1926/1996, p. 88).
A psicologia estava de certa forma tomando consciência de si própria e de seus
limites, os avanços no campo da ciência e os problemas colocados para a construção de
uma nova sociedade, já não podiam estabelecer-se naquilo que ficou conhecido como
fenômeno de acumulação de materiais isolados, que ao cabo, o volume de material
havia se demonstrado inútil na investigação a respeito de uma psicologia humana. Essa
tendência de acúmulo de material empírico que não progredia em uma síntese, bem
como a ausência da consciência humana entendida em seus aspectos, de fato, humanos e
não reduzidos ao naturalismo ou o biologicismo (Vigotski, 1926/1996).
Este período de transição, marcado também por fortes embates teóricos e
ideológicos, exigia de certa forma de seus partícipes unidades rigorosamente
combatentes no sentido de não permitir que as ideias já claramente inúteis ou
equivocadas continuassem a exercer tanta influência na psicologia e na prática
pedagógica. Podemos entender que “exclusivamente” ideológico, releve o aspecto de
um método que não podia ser avaliado como científico, como conhecimento verdadeiro.
Com um vocabulário influenciado pela reflexologia, Vigotski realiza um
exercício interessante na busca de encontrar o lugar do seu próprio pensamento. Assim
vemos expressões sobre os reflexos condicionados secundários, como sendo o “social
ao quadrado”, numa clara tentativa de aprofundar a dimensão social à epistemologia
reflexológica. Vigotski já revela originalidade e uma potência de não deixar-se
contagiar pelas certezas estabelecidas, na ânsia combativa contra o essencialismo do
método introspectivo. Demonstra, portanto, uma certeza científica sobre a própria
possibilidade da psicologia de explicar o humano, de alterá-lo conforme um projeto
consciente que deva ser uma síntese entre psicologia e pedagogia, desde que
devidamente construída e podada de um exclusivismo ideológico.
68
Para tanto, Vigotski já indica a preferência por entender a psique como processo
e sendo dinâmica e processual, dentro do mote crítico tanto ao idealismo quanto ao
subjetivismo. Esta dinâmica seria uma unidade contraditória entre o mundo e o
psiquismo, entre o social e o indivíduo, num contínuo movimento. Esses preceitos
permanecerão em Vigotski em seus trabalhos posteriores, modificados e desenvolvidos,
sendo evidente o abandono pelo autor da linguagem reflexológica, como veremos na
sessão sobre ideologia e sistemas psicológicos, no qual o signo, os sistemas conceituais
e a linguagem entrarão de vez em cena no cerne da sua teoria.
Sendo assim, para o autor bielorusso, a obra de Thorndike tinha pontos positivos
quando considerada como um livro de transição: era um momento de consciência
importante para a ciência psicológica, na medida em que já não recaía em preceitos
tradicionais já antiquados. Isso, no entanto, não impediu Thorndike de fornecer uma
pedagogia alinhada com a cultura russa, importando valores morais que são os mesmos
das instituições de ensino norte-americanas, entre outros problemas analisados por
Vigotski neste prólogo. O importante para o nosso foco – a ideologia – é colocar que
Vigotski já estava preparando seu edifício para as metas que deveriam conduzir a nova
ciência do homem, na superação definitiva da psicologia tradicional que muitas vezes
colocava o mundo e o psiquismo como instâncias separadas. Para ele, a compreensão
equivocada da psique humana não era apenas um erro, mas muitas vezes um problema
ideológico, como veremos na análise da ideologia no texto o Significado Histórico da
Crise da Psicologia.
De todo modo, a crítica de Vigotski (1924/1996) no prólogo concentra-se na
seguinte síntese:
Por conseguinte, o comportamento humano revela-se não somente como um sistema estático de
reações já elaboradas, senão como processo ininterrupto de aparição de novas conexões, de
estabelecimento de novas relações de dependências, de elaboração de novos superreflexos e ao
mesmo tempo de interrupção e destruição das conexões anteriores, de desaparição de reações
prévias. E, o que é o mais importante, como uma luta entre o mundo e o homem que não cessa
um segundo, e que exige ajustes instantâneos, uma complexíssima estratégia por parte do
organismo e uma disputa entre muitas e diversas reações dentro dele pela preponderância, pelo
domínio dos órgãos do trabalho, executivos. Em uma palavra, o comportamento do homem se
desvela em toda sua complexidade real, em seu potente significado, como um processo dinâmico
e dialético de luta entre o homem e o mundo e dentro do próprio homem. Esse é o primeiro fruto
inicial da nova psicologia. (p.95)
O conhecimento pedagógico e psicológico elaborado em bases ideológicas não
apreendiam o homem e o mundo como uma unidade contraditória em luta. Como
característica da forte influência do sentido crítico-negativo do conceito de ideologia,
Vigotski critica essa apropriação atemporal de princípios como a pedagogia do homem
69
em geral e é contundente ao afirmar que desconsiderar estas peculiaridades era assentar
a psicologia e a educação em bases exclusivamente ideológicas. Portanto Vigotski
entende a ideologia neste período como algo hermético às elaborações reais do mundo
social e da consciência humana.
Este é o principal sentido que o termo adquire neste prólogo e permanecerá com
a carga adjetiva essencialmente negativa no próximo texto analisado. Sumariamente,
Vigotski colocara na sua crítica a Thorndike um conceito de ideologia oposto ao
conhecimento verdadeiro sobre o homem e sobre sua psicologia, a favor da necessidade
de estabelecer uma nova ciência, que ainda não tinha surgido mas que já dava sinais da
sua elaboração. Parte destes sinais são as elaborações que já não figuram como
continuidades da psicologia tradicional, como era o caso da escola introspectiva.
Thorndike estava localizado, para Vigotski, no centro desta transição e ainda padecia de
dificuldades e limitações, entre elas, ideológicas.
Na sessão a seguir buscamos explicitar o conceito de ideologia tal como
utilizado no texto da “Crise” da psicologia e demonstra ser mais um exemplo da
ideologia tomada como limite negativo da experiência humana, porém desta vez ainda
que fundamentado provavelmente em concepções de Marx e especialmente de Engels,
sobre a ideologia, Vigotski o aplica a uma situação particular da psicologia, enquanto
ciência , dilacerada por uma crise com raízes nos problemas objetivos da constituição
das sociedades e das ciências humanas, da qual a ideologia é uma expressão. Sendo
assim, desde o início de sua obra, a ideologia é tomada como mais complexa do que um
simples engano ou erro, e do que uma questão que não pode ser solucionada no plano
gnosiológico ou epistemológico.
2.2 IDEOLOGIA
E
O
SIGNIFICADO
HISTÓRICO
DA
CRISE
DA
PSICOLOGIA.
O texto de Vigotski denominado Significado Histórico da Crise da Psicologia,
reconhecidamente de cunho metodológico e epistemológico, foi produzido entre os anos
de 1925 e 1927, revelando um autor com ideias amadurecidas nestas áreas. Nele, seu
objetivo era a busca investigativa na estruturação de uma base teórico-metodológica do
marxismo para a psicologia. É importante ainda localizar que ele foi elaborado no
contexto de construção de uma psicologia comprometida com as aspirações comunistas
da Revolução socialista na Rússiae com as transformações pelas quais passava aquela
sociedade, que afetavam os âmbitos políticos, culturais e científicos.
70
Conforme Kozulin (1990/2001) esse texto foi concluído três anos após a
primeira aparição pública de Vigotski, no I Congresso de Psicologia Pós
Revolucionário, ocorrido em Moscou em 1923, que marcara definitivamente a entrada
das ideologias partidárias e a busca por uma psicologia coerente com o projeto de
sociedade posto pela revolução na URSS. Os destaques acadêmico-científicos eram,
Konstantin Kornilov (1879–1957) e Vladimir Bekhterev (1857–1927), sendo que ambos
colaboraram para a derrocada de Georgy Tchelpanov (1862–1936), que havia fundado o
Instituto de Psicologia de Moscou.
Para Kozulin (1990/2001) havia algumas tarefas implícitas que Vigotski
assumira quando escreveu o referido texto, entre elas estavam: encontrar seu próprio
lugar no pensamento psicológico da época e definir a relação da psicologia
epistemologicamente com seu objeto de estudo, sobre a conduta humana, a mente, a
filosofia e a fisiologia. Além de demarcar, diante da confusão de método e objeto que se
encontrava a psicologia, a necessidade da psicologia geral, a qual explicaremos mais
detalhadamente à frente.
Além disso, essa situação de confusão metodológica e teórica pela qual passava
a Psicologia não se encaminhava para uma resolução em termos práticos, que
solucionasse dicotomias, confusões e ecletismos em prol de uma nova etapa do
conhecimento psicológico, ao contrário, Kozulin (1990/2001) aponta que o estado era
de um acordo tácito entre as teorias psicológicas em que cada uma continuava a
desenvolver o seu “paradigma natural” e descartando os tipos alternativos. Como vimos
na análise d’A Ideologia Alemã, trata-se de uma estratégia ideológica do pensamento
dominante estabelecer divisões que não rumam à resolução material dos conflitos, mas
dividem a hegemonia, semelhante caso ocorria na psicologia.
Assim, Vigotski identifica uma tendência no desenvolvimento das ideias em
psicologia que realizam um trajeto comum, condicionado por um lado pela ausência de
uma psicologia geral, e por outro por fatores alheios à lógica científica, mas
determinados pelos conflitos materiais reais. As ideias passariam do terreno da
originalidade científica, quando surgem como novidade e renovação de um certo campo
em ciência para tornarem-se posteriormente em ideologia. O princípio explicativo para
dado fenômeno assume a função de ser princípio explicativo para tudo.
Essa generalização do conceito para além de seus limites é a fase em que uma
ideia original torna-se ideologia, isto é, uma descoberta psicológica, que sofre uma
71
conversão, o princípio explicativo se torna uma visão de mundo, perdendo a sua
independência na medida em que se mescla entre outras filosofias dominantes já
estabelecidas. É interessante notar que não há uma recusa por parte do autor à
originalidade destes sistemas, mas a uma tendência ocorrida dentro do desenvolvimento
da própria ciência. Assim descreve Vigotski esse marcante traço da “crise” da
Psicologia:
Essa descoberta, [o princípio explicativo] inchada até se transformar em ideologia, como a rã
que se transformou em boi, alcança o mais perigoso estágio de desenvolvimento, o quinto:
estoura facilmente, como uma bolha de sabão; em todo caso, entra no estágio de luta e negação
em que se encontra agora por toda parte. É verdade que já antes, nos estágios precedentes,
ocorrera uma luta contra a ideia. Mas então tratava-se da reação normal ao movimento desta, a
resistência de cada ramo a suas tendências conquistadoras. A força inicial que havia engendrado
a sua descoberta a protegia da verdadeira luta pela existência, como a mãe protege seus filhos.
(Vigotski, 1996, p.221).
O estágio de “luta e negação” em que a ideia original já “estourou”, e, está
espalhada por toda parte, possivelmente é uma referência à ampliação dos locais
originais da descoberta, e passa a abarcar fenômenos que não se limitam à explicação da
consciência, mas abrangem também a realidade cultural: explicam esferas da vida que
não são redutíveis à psicologia, como a política, a arte, a ciência, etc. Vigotski
exemplifica este “desenvolvimento da ideia” em correntes psicológicas, entre elas a
psicanálise, que escolhemos como representante por ser uma abordagem mais
popularizada que as demais. Vale salientar que não pretenderemos aqui explorar a
crítica específica à psicanálise pelo autor em foco, mas ilustrar a tese da tendência da
psicologia a tornar-se ideologia:
As ideias da psicanálise nasceram de descobertas específicas no campo da neurose; estabeleceuse de forma indiscutível o fato de que toda uma série de fenômenos psíquicos é determinada pelo
inconsciente e o fato de que a sexualidade se oculta numa série de atividades e sob formas que
anteriormente não eram consideradas eróticas. Paulatinamente, esta descoberta concreta,
respaldada pelo êxito de sua aplicação terapêutica e com a autoridade que isso lhe conferia (isto
é, sancionada pela veracidade de sua prática), foi transposta por uma série de campos adjacentes,
como a psicologia da vida cotidiana ou a psicologia infantil, além de apropriar-se da totalidade
dos enfoques teóricos sobre a neurose. No confronto disciplinar essa idéia se impôs sobre os
mais distantes ramos da psicologia: a sexualidade transformava no princípio metafísico, a
psicanálise se transformava em ideologia, a psicologia se transformava em meta psicologia. A
psicanálise dispõe de sua própria teoria do conhecimento e de sua própria metafísica, de sua
sociologia e de sua matemática. O comunismo e o totem, a igreja e a obra de Dostoiévski, o
ocultismo e a publicidade, o mito e as invenções de Leonardo da Vinci, são apenas sexo
disfarçado e mascarado. (Vigotski, 1927/1996, p. 225)
A ressalva de Vigotski sobre a extensão da psicologia para com outras áreas do
saber não se limitava ao fato de que uma escola dominasse outros campos, e assim
deixando de lado demais contribuições de ramos diversos da psicologia. Ocorre que esta
era uma tendência e ao mesmo tempo um limite, que marcava o destino histórico de
72
todas as escolas da Psicologia, momento do qual a Psicologia é levada a este limitar
ideológico, ela se anula naquilo que carrega de potencial explicativo e transformador.
Para Vigotski, esta limitação objetiva ocorria tanto pela ausência de uma Psicologia
Geral, quanto por fatores materiais que comprometiam a psicologia com a visão de
homem e de mundo particularmente burguesas, e na sua postura de “luta e negação”
restaria a batalha por ideologias:
Quando as ideias se elevam à categoria de leis universais passam a valer o mesmo, tanto umas
quanto as outras são absolutamente iguais entre si, isto é, simples e redondos zeros; a
individualidade de Stern é para Békhterev um complexo de reflexos, para Wertheimer uma
Gestalt e para Freud sexualidade. (Vigotski 1927/1996, p.227)
Para a psicologia moderna faltava-lhe uma síntese que proporcionasse uma
sistematização geral do seu material tanto quanto a avaliação de seus fatos, leis, enfim,
uma análise concisa sobre o quantum de colaboração e avanço no conhecimento sobre o
homem essa ciência tinha até então oferecido. No entanto esta síntese não era somente
da ordem teórica ou gnosiológica, como uma especialização da história da ciência
aplicada à psicologia, como também de ordem prática. A permanência do atual estado
de coisas deveria estar relegado à lei da ideologia que Vigotski retira de Engels:
Porque deixa de existir a idéia como tal? Porque no campo da ideologia rege a lei, descoberta
por Engels, da concentração de idéias em torno de dois pólos – o idealismo e o materialismo –
que correspondem aos dois pólos da vida social, às duas principais classes que lutam. A natureza
social das idéias manifesta-se com muito mais facilidade em um fato filosófico do que como fato
científico: termina seu papel de agente ideológico oculto disfarçado de fato científico e fica
desmascarada, começando então a participar como um elemento a mais na luta de classes das
idéias. Aqui, na qualidade de pequeno elemento de uma enorme soma, desaparece como uma
gota de água no oceano e deixa de existir por si mesma (Vigotski, 1927/1996, p.223)
Se de acordo com Kozulin, a busca de Vigotski no texto da “Crise” está atrelada
à busca pelo seu próprio posicionamento dentro da psicologia como ciência, podemos
dizer com Tuleski (2008) que esta possibilidade de superação dos dois pólos, isto é a
síntese teórica e prática da psicologia e da sociedade andavam juntas na construção do
projeto coletivo comunista da URSS, e, portanto não é apenas um capítulo da “história
das ideias”, tomadas aqui como estritamente relegada ao plano do conhecimento.
A superação de tal cisão no mundo das ideias está condicionada à superação dessa dicotomia na
realidade objetiva. Dito de outra forma, o enfrentamento desta dicotomia, no nível das ideias,
estava posto desde o século XIX; no entanto, apenas na Rússia do início do século XX estava
sendo enfrentada concretamente: a superação de tal dicotomia era possível também na prática
humana, através do projeto coletivo comunista (Tuleski, 2008, p.57).
Unir ciência e transformação social era uma necessidade premente, já que os
limites impostos à ideologia para a compreensão de homem e mundo da psicologia
73
burguesa não se resumiam a erros passíveis de correção epistemológica, e respondiam a
toda uma situação objetiva:
É este o caminho que percorre em psicologia qualquer descoberta que tenda a se transformar
num princípio explicativo. O próprio aparecimento de tais idéias explica-se pela existência de
uma necessidade científica (arraigada, no fim das contas, na natureza dos fenômenos em estudo)
e pela forma como se manifesta essa necessidade numa determinada etapa do conhecimento: em
outras pelas palavras, pela natureza da ciência e, em última instância, pela natureza da realidade
psíquica que essa ciência estuda. Mas a única coisa que a história da ciência pode explicar é por
que surgiu a necessidade de novas idéias num determinado estágio do desenvolvimento e por
que esse nascimento era impossível cem anos antes. Que descobertas concretas se desenvolvem
no seio de uma ideologia e quais não; que idéias se destacam, que caminho percorrem, que
destino alcançam, tudo isso depende de fatores externos à história da ciência e que a
determinam. (Vigotski, 1927/1996, p. 223 grifos nossos).
No primeiro capítulo abordamos porque a ideologia enquanto “falsa
consciência” encerra algumas dificuldades, tais como as apontadas por Konder (2002),
que é o risco de não compreender os momentos verdadeiros do processo ideológico.
Aqui, Vigotski parece-nos abrir espaço para este mesmo tipo de compreensão, pois
coloca que uma das tarefas da história da ciência seria então de “separar o joio do trigo”
e de retirar das ideologias seus motivos de verdade, em um exemplo claro de que a
ciência pode se tornar ideológica, mas não necessariamente é ideologia o tempo
todo.
No entanto, enquanto materialista e marxista, Vigotski coloca que esta é também
uma tarefa limitada, pois não bastaria para a psicologia debruçar-se sobre a “validade”
ou “falsidade” de enunciados tão-somente. Aponta então a lógica dialética, que convém
em uma unidade teórico-prática de transformação do próprio objeto de estudo – o
homem – tanto quanto da abordagem que não deveria mais restringir-se às formalidades
conceituais de cada teoria, mas que exigia uma nova síntese, “a dialética da psicologia”
é a proposta do autor contra a tendência gnoseológica e a lógica formal:
Por conseguinte, à crítica gnoseológica e a lógica formal, como fundamentos da psicologia geral,
deve-se contrapor a dialética, que “se concebe como a ciência das formas mais gerais do devir
tal como se manifesta no comportamento e nos processos de conhecimento, isto é, assim como a
dialética da ciência natural é, ao mesmo, a dialética da natureza, a dialética da psicologia, é por
sua vez, a dialética do homem como objeto da psicologia. (Vigotski, 1927/1996, p. 247).
A crítica à ideologia em Vigotski repousa na superação do estado de coisas e não
em sua negação em forma de uma ruptura que abandonaria as conquistas científicas
obtidas no seio da ideologia burguesa, neste sentido Vigotski coloca que a “psicologia
marxista” e revolucionária era uma tarefa histórica e crítica aos psicólogos marxistas,
que até então utilizavam o “método de citação”, que consistia basicamente em retirar de
excertos de Marx, Engels e Lenin, fórmulas abstratas gerais que encerrariam a
74
“compreensão” marxista do homem, muitas vezes resultando em um ecletismo que
usava do marxismo para legitimar posições já tradicionais da psicologia21.
Para Vigotski, a psicologia necessitava de seu próprio Capital, que consistiria
em tomar na globalidade do método de Marx os conceitos que abarcassem a psicologia
humana de modo a superar o conhecimento fragmentário e parcial. Vigotski entendida a
personalidade como totalidade das relações sociais e, portanto, não poderia ser redutível
a qualquer preceito que se expandisse como ideologia. Desse modo pretendia “descobrir
os limites, o grau e as formas de aplicação de um princípio” como “objeto da autêntica
investigação” (p.368).
No tocante à ideologia, a dialética do homem como objeto da psicologia não
consistia, em rejeitar as conquistas anteriores,mas, de certa forma, em colocá-las em
posições que confluíssem na personalidade e não a determinasse, tampouco à sociedade
e à cultura. A reificação que toma uma totalidade aberta por coisa, neste caso, a própria
consciência, expressava-se na Psicologia pela tendência da psicologia burguesa de
reduzir o psiquismo a tal ou qual princípio, sempre orbitando entre o materialismo e o
idealismo. A tarefa que colocava-se à psicologia dividia-se em dois caminhos: “ou da
ciência e neste caso deverá saber explicar, ou o conhecimento de visões fragmentárias e,
neste caso, é impossível como ciência”. (Vigotski, 1996, p.389).
Delari Junior aponta que a psicologia vigotskiana estava orientada a ser uma
“psicologia dos cumes”, entendendo a personalidade como o cume de todos estes
possíveis princípios e não como uma variável dependente destes princípios particulares.
A dialética do homem, uma psicologia concreta, buscaria uma metodologia que
englobasse a totalidade da personalidade, tomando o homem como ele é pela raíz:
Vigotski falava da “psicologia dos cumes (não determina a “profundidade”, mas o “cume” da
personalidade)” (1934/1991 – p. 130). Nesse sentido criticava tanto a “psicologia superficial”
(fenomenológica) quanto a “psicologia profunda” (psicanalítica), que quer explicar o homem por
suas profundezas, sua natureza subterrânea. Já a psicologia dos “cumes”, “eleva- ções”, visa
compreender o ser humano a partir dele mesmo. Como em Marx: “ser radical é tomar as coisas
pela raiz, mas a raiz para o homem é o próprio homem” (apud CHASIN, 1999 - p. 9). Define-se
o “próprio homem” como ser social, simbólico e histórico, por excelência – o que a psicologia
profunda não demonstra priorizar (Delari Juniorr, 2009, p.15).
A necessidade da dita psicologia geral mostrava-se teórica e praticamente, a
dialética do homem na psicologia seria a dialética da própria psicologia, um projeto de
21
Essa mesma crítica cabe à esfera educacional daqueles anos emblemáticos, pósrevolucionários. De início se entendia que a educação marxista seria aquela que fizesse a repetição de O
capital, e da teoria marxista-leninista. Depois, entende-se que a Educação Social, com vistas a formar o
novo homem comunista, deveria valer-se dos fundamentos marxistas para problematizar e entender o real
e responder às demandas que dele se pudesse observar a partir dessa concepção.
75
superação da fragmentação e uma aposta na capacidade do método analítico e da
autocrítica para auxiliar a construção da psicologia enquanto de fato uma ciência e não
uma ideologia, “a dialética abarca a natureza, o pensamento, a história: é a ciência geral,
universal ao máximo. Essa teoria do marxismo psicológico ou dialética da psicologia é
o que eu considero psicologia geral”. (Vigotski, 1927/1996, p.393).
Vimos, portanto, que a ideologia cumpre um papel de negação da ideia original,
antes “verdadeira” e é um estado de “decadência ideológica” (Coutinho, 2010) da
psicologia como ciência burguesa que na confusão de duas disciplinas particulares
tendiam a tornar-se ideologia, mais do que avançar ou superar a situação da “crise”.
Veremos, a seguir, que não só a crise não se resolve a curto prazo, como ela passa a
exercer uma função ideológica mais grave no sentido de bloquear o futuro de uma
transformação social concreta, tanto quanto de agir em acordo com interesses escusos, e
passa a estar abertamente ao lado de interesses políticos dominadores, como é o caso da
“psicologia fascista”, no único texto pós 1931 que encontramos que Vigotski trata a
ideologia com um sentido exclusivamente negativo.
2.3 A IDEOLOGIA COMO FASE AGUDA DA CRISE: O FASCISMO E A
PSICOLOGIA
Quando confrontou as tendências dominantes em psicologia em meados da
década de 1920, Vigotski havia detectado tendências que por muito arraigadas em
concepções de homem que não consideravam a natureza social do psiquismo, e, por
isso, reduziam a um determinado princípio explicativo a totalidade do fenômeno da
consciência, abriam espaços para uma compreensão limitada tanto da gênese do
psiquismo humano, quanto de suas eventuais possibilidades de transformação. Neste
período as tendências em voga ainda que permeassem a cultura ocidental, interferindo,
por exemplo, na teorização de práticas pedagógicas de larga escala nas instituições
escolares, poucas vezes haviam se mostrado tão partidárias de valores reacionários
como ocorre na psicologia científica sob a égide do fascismo.
Se esta situação à primeira vista não nos parece familiar nos dias de hoje, era
evidente em 1934, ano da redação de O fascismo e a psicologia, pequeno texto de
Vigotski que trata sobre avanço o fascismo e a apropriação deste movimento
ideológico-político pela psicologia científica. Para o autor, psicólogos alemães estavam
aderindo às ideias fascistas não porque este movimento teria impulsionado a psicologia
necessariamente para uma nova fase, – que tivesse superado a ‘crise’ intrínseca ao
76
desenvolvimento da mesma -, mas porque este teria aberto uma brecha para a
confirmação prática de seus aspectos mais reacionários, suprimindo por completo a tese
da formação social do psiquismo, dotando a consciência de características nacionalistas,
raciais, com cunho essencialmente biológico-naturalista. Essa faceta da ciência
psicológica foi considerada por Vigotski como a fase mais aguda da “crise” da
Psicologia, e sua versão mais degenerada. (Vigotski, 1934/1988).
No entanto, não é toda a responsabilidade da psicologia científica a adesão a teses
que relacionem a formação da consciência e seus produtos como o caráter, a moral, a
capacidade de se conviver em sociedade com traços inatistas ou ainda essencialmente
individualistas, que imputavam ao indivíduo um destino determinado, que poderia ser
lido, por exemplo, nas características fenotípicas numa grosseira associação entre
moralidade e anatomia. Teorias que datam de muito antes da constituição da Psicologia
como ciência independente já traziam estas características (Eco, 2007).
É o caso da fisiognomonia, pseudociência que associava traços do rosto e formato
de outros órgãos a características e disposições morais, da frenologia de Franz Gall22, e
das teorias de Lombroso23, que afirmava poder encontrar traços da mente criminosa em
nas constituições somáticas do sujeito. (Eco, 2007, p. 257). As consequências possíveis
da popularização destas teorias é bem apontada por Umberto Eco:
É fácil, pelo menos na divulgação popular de tais teorias, não dar a devida importância ao fato
de que muitas deficiências físicas verificam-se com maior frequência em camadas sociais
oprimidas pela má nutrição e outras doenças e de que, obviamente, é entre estes marginalizados
que os comportamentos associais se dão com maior frequência. Daí a encorajar o preconceito de
“quem é feio é mau por natureza”, é um passo. Isso sem falar no passo subsequente, com o qual
se tornam feios e maus, também na literatura popular, todos os excluídos que a sociedade não
consegue integrar e controlar ou não tem intenção de redimir – como já observava Nietzsche a
respeito de Sócrates. (Eco, 2007, p. 261).
Tais exemplos demonstram que a ciência já havia, em seu bojo, alimentado
perspectivas que, quando levadas a cabo, tornavam-se políticas segregacionistas,
colaborando com a manutenção das desigualdades, deslocando os problemas
econômicos e políticos para a área médica, isto é, científica. A adesão de uma classe de
cientistas, seja por voluntariedade ou por ação totalitária do Estado, a teorias com este
teor foi imensa, e de alguma maneira permanecem na sombra do determinismo genético.
22
Franz Joseph Gall (1758-1828), criador da “cranioscopia”, posteriormente conhecida como
frenologia, ciência que deduzia a personalidade a partir da formação craniana. Tornou-se popular na
primeira metade do século XIX nos EUA, e fora comumente utilizada pelas classes dominantes para
justificar biologicamente a dominação de colonos, servos e escravos.
23
Césare Lombroso (1835 – 1909), criminologista e professor universitário italiano, cuja obra
mais conhecida, O Homem delinquente, adere às teses da fisiognomonia para normatizar fenotipicamente
indivíduos propensos à criminalidade.
77
No entanto, a particularidade da situação Alemã no século XX preparou o terreno para o
triunfo da política hitleriana dos “três erres: reich (império), raum (espaço) e rasse
(raça).” A ciência cumpriria papel proeminente na adesão dos métodos adequados para
a extinção dos inimigos bem como os cuidados para a vitória da raça ariana.
Se a vitória das ideias não é somente trunfo do convencimento, mas o resultado
de um amálgama histórico, em um caldo que, composto pela situação econômica,
cultural, política e demais esferas ideológicas, não são apenas interdependentes, como
residem no solo comum das questões materiais. O avanço do capitalismo alemão
proporcionou a base material convincente para o fortalecimento do III Reich e a adesão
popular em massa ao líder e ao projeto nazista.
O caráter revanchista do Tratado de Versailles (1919) que determinara à
Alemanha derrotada pesados pagamentos de reparações de guerra, infligiu grande
déficit fiscal no país. A emissão monetária aplicada através do Estado para seu próprio
financiamento – senhoriagem – é apontada como um dos fatores predominantes para a
escalada inflacionária do marco alemão, que em 1923 tomara proporções incontroláveis.
Os reflexos da inflação na economia eram inevitáveis, a produção industrial
declinou fortemente, o desemprego alcançou cerca de 25%. Neste contexto de forte
retração econômica, entre muitos dos levantes, revolucionários e conservadores, o
próprio Hitler liderou um golpe – Putsch de Munique – de caráter antirrepublicano, que
fracassou. Após a estabilização do marco em 1924, proporcionada pelo conhecido Plano
Dawes, a Alemanha seguiu trajetória de ascensão até 1928, quando da Grande
Depressão em 1929, a economia alemã mergulhou novamente em profunda crise. Em
1932, o desemprego na Alemanha atingia 30% da força laboral. É neste cenário que os
nazistas chegaram ao poder e devido aos castigos engendrados ao povo alemão pelas
vicissitudes econômicas, o nazismo se pautou pelo “capitalismo tutelado”, nas palavras
de Mazzucchelli:
O nazismo, na verdade, não se opôs apenas de modo circunstancial aos mandamentos da
ortodoxia. Ele, desde o início, sempre foi constitutivamente antagônico aos dogmas do
liberalismo e da exaltação do mercado. Para o nacional-socialismo, a experiência da Alemanha
tornara-se o exemplo vivo de que a regulação dos mercados era injusta e abominável. Afinal não
tinham sido as forças do mercado que haviam produzido a hiperinflação, a vulnerabilidade
externa e a depressão? (Mazzucchelli, 2009, p. 280)
A barbárie da Segunda Guerra encontra suas raízes no imediato pós-Primeira
Guerra. Indignado com o perfil de revanche do tratado de Versailles, em 1919, Keynes
advertiu acertadamente:
78
[...] se cremos que todos os nossos recentes aliados são anjos puros, e todos os nossos recentes
inimigos, alemães, austríacos, húngaros e os demais, são filhos do demônio; se desejamos que,
ano após ano, a Alemanha seja empobrecida e seus filhos morram de fome ou adoeçam, e que
esteja rodeada de inimigos [...]. Se aspiramos deliberadamente o empobrecimento da Europa
Central, a vingança, eu ouso prever, não tardará. (Keynes, 1919 apud Mazzuchelli, 2009, p.153)
Acuado pela reação dos países aliados e com a guerra dando vistas de derrota,
Hitler passou a uma caçada irracional contra os judeus, que acirra o anti-semitismo.
Propagandas nazistas, filmes e discursos dos oficiais da inteligência nazista incitavam o
ódio aos judeus, responsabilizando-os pela sujeira do ideal eugênico de uma nação
entendida como um “corpo”, em que o invasor deste organismo harmônico seria o
principal irradiador das desigualdades e do sofrimento do povo alemão. Exemplos dessa
política são os guetos urbanos e os campos de concentração, bem como a ação
destruidora do método da guerra total.
A relação entre ideais eugênicos, supostamente científicos e a barbárie nazista, é
bem retratada no consagrado documentário Homo Sapiens: 1900 (Cohen, 1988), assim
como a estética criada para expressar esse ideário pode ser vista em Arquitetura da
Destruição, do mesmo diretor (1989). Neste período, um escalão da SS (abreviatura de
Schutzstaffel, esquadrilha ou tropa de proteção) era responsável pela exibição de obras
de artes consideradas “degeneradas” e prova das patologias mentais das culturas
modernistas, entre elas, a arte judia. Expostas em galerias como prova científica da
inferioridade das raças não arianas, e da correlação da deformação da arte moderna com
patologias mentais e genéticas, eram em seguida destruídas. O contraponto das
exposições sombrias da arte degenerada era o contorno realista e glorioso para o
Terceiro Reich, de um neorrealismo nazista, que exaltava os símbolos do regime, a
glória militarizada e os traços arianos desejáveis e louvados.
A psicologia não ficou incólume ao avanço militar dos alemães e sofreu
repressão, como é o conhecido caso do exílio dos alemães da Escola de Frankfurt e de
estudiosos de áreas realmente mais ligadas à psicologia, como os psicólogos da Gestalt,
que foram para os Estados Unidos da América. A psicologia que se erigiu na Alemanha
neste período, ou melhor dizendo, que se travestiu para adaptar-se aos ideais nazistas,
surgiu como consequência da ausência de uma Psicologia concreta, que desse conta do
caráter essencialmente histórico-cultural do psiquismo humano, situando as demais
determinações fisiológicas e biológicas em um dimensão anterior e não determinante da
consciência historicamente constituída. O processo de apoio da psicologia e do fascismo
contará com esta marca.
79
2.4 O FASCISMO E A PSICOLOGIA POR L.S. VIGOTSKI.
Antes de examinar o uso do conceito de ideologia no texto sobre o fascismo e a
psicologia, faremos referências a aspectos da condição em que se encontrava a
psicologia histórico-cultural sob o domínio político do stalinismo, com o objetivo de
aproximarmos da situação em que estava inserida a produção intelectual de Vigotski, no
ano de sua morte e um ano após o início da ascensão ao poder do partido nazista na
Alemanha.
Silva (2013), apoiada na análise de documentos como boletins e cartas, além de
fontes secundárias, faz detalhada análise dos fatos que culminaram na ascensão de
Stalin ao poder, como principal dirigente da URSS, após a morte de Lênin. Escreve
como Stalin operou cuidadosamente a implementação de uma política econômica e
cultural que fortalecesse a centralização do Partido em sua figura e a produção
ideológica soviética nas ciências, artes e filosofia, sobre os marcos de suas orientações,
que se caracterizavam por simplificações e vulgarizações da doutrina oficial do
“marxismo-leninismo” criada por ele.
Para nossos propósitos focaremos na influência stalinista na ciência e na filosofia,
atingindo a Psicologia, marcando-a por momentos de censura, unilateralismos e
vulgarizações, que impediram o livre pensamento na construção da psicologia, no
debate entre teorias opostas, criando um clima de terrorismo ideológico do qual mesmo
os principais teóricos da psicologia histórico-cultural, que sempre demonstraram
simpatia e buscaram adequar suas investigações no projeto coletivo comunista, foram
alvos, como é o caso das censuras das obras de Vigotski, e a perseguição aos membros
da troika, que dificultaram a produção de pesquisas e a divulgação de seus trabalhos
(Silva, 2013).
Um marco importante, conforme a autora, baseando-se nas contribuições de
Lukács, foi a publicação do livro “História do Partido Comunista (Bolchevique),
especialmente o capítulo IV, que marcou a normatização da filosofia e serviu como
política oficial para a categorizar qualquer oposição contrarrevolucionária, ou burguesa.
Este autoritarismo refletiu também na psicologia como é o caso da Resolução de 6 de
junho de 1931, que propunha medidas para limpar a Psicologia desses “elementos
contrarrevolucionários”, por meio de: 1) exame geral do conteúdo de compêndios
usados em universidades e institutos; 2) mais atenção à formação de quadros
comunistas confiáveis nas universidades, exigindo que determinada cota de
80
pesquisadores escrevendo dissertações, fossem membros do Partido; 3) os
compromissos ideológicos dos funcionários deveriam ser examinados por completo e a
nomeação de chefes de pessoal deveria requerer a permissão do “centro competente do
Partido”, e; 4) a exigência de que estudantes trabalhassem durante algum período em
uma fazenda ou fábrica coletiva (Van der Veer; Valsiner, 2009 apud Silva, 2013).
A Psicologia foi fortemente afetada por este controle rígido que visava uma
“pureza ideológica”. O controle fora exercido por membros do Instituto de Psicologia, e
na prática, todas as escolas sofreram com a acusação de serem antimarxistas, como
apontado anteriormente com a teoria histórico-cultural não foi diferente. Pode-se
afirmar com segurança que a teoria histórico-cultural não gozava do status de uma
psicologia dominante, ou oficial, do país, condição que será legada à reflexologia
pavloviana nos anos de Stalin. Além disso, sofreu perseguições, censuras e críticas.
Desse modo, a construção de um conhecimento crítico capaz de realizar a síntese
entre o que havia de qualificado na psicologia burguesa – a parte válida de seus
conhecimentos anteriores às suas generalizações – foi grosseiramente impedido e
abortado pela dominação cultural e ideológica dos anos de governo stalinista. Isso nos
leva a apontar que a tese da natureza social do psiquismo, característica da psicologia
histórico-cultural, ainda que de inspiração e base marxistas, não era considerada ciência,
tampouco revolucionária. Certamente, a objeção a esta teoria não foi a única
responsável pela aparição da eugenia na URSS e da adesão da reflexologia pavloviana
como a doutrina oficial da Psicologia do país.
Esta constatação nos leva a afirmar que quando realiza o combate ao fascismo na
psicologia, essencialmente explorando-a como ideologia, Vigotski também afirma seus
ideais na medida em que estes não foram reconhecidos categoricamente como aliados
na construção do projeto comunista, especialmente com seus contornos pós Lênin.
Stalin admirava o lamarckismo e mesmo quando oficializara a reflexologia pavloviana,
esta não passou incólume de deformações (Silva, 2013).
A característica da ideologia na psicologia quando esta manifestava sintomas da
crise que lhe constituía, era uma expressão da inversão entre sujeito e objeto que
caracteriza as inversões ocorridas na consciência sobre o processo histórico da produção
da vida e da historicidade da consciência. Eram ideológicas porque abarcavam um
processo mais amplo que o simples erro científico, mas de toda uma visão de mundo
com suas consequências políticas que se limitam à perspectiva burguesa, exigindo em
latência, sua superação. Como relembra Fromm (1976): “não só o mundo das coisas que
81
se torna superior ao homem, mas também as circunstâncias sociais e políticas por ele
criadas se tornam seus senhores”.
Nesta direção, a tese da natureza social do psiquismo e a sua dependência
histórica com o trabalho e o nível de forças produtivas colocava-se no campo da
superação teórica e prática, no sentido de que Vigotski alinhava seus estudos com a
necessidade das transformações nas relações de trabalho que caracterizavam o
capitalismo. Portanto, afirmar que o psiquismo decorre de um desenvolvimento que é
histórico e não dependente de leis biológicas torna possível postular e projetar em
consonância com a revolução social, uma formação humana voltada à liberdade, em
oposição à alienação e às condições materiais estruturalmente desiguais do modo de
produção capitalista. A psicologia então tinha a tarefa de colaborar nesta condução de
humanização e liberdade, mais do que classificar, catalogar ou realizar malabarismos
teóricos para que se justificassem epistemologias restritivas.
Como pode ser visto em A Transformação Socialista do Homem, Vigotski coloca
a transformação do psiquismo em dependência das transformações do trabalho, quando
enfatiza o salto qualitativo que caracterizaria a humanidade despojada dos entraves das
relações sociais de produção capitalista, entre eles o fenômeno da alienação, que aparta
dos homens o reconhecimento de seus poderes criativos e capacidade comunitária de
organização. Contra a perspectiva de manutenção deste estado, bem como uma ideia
ingênua de que a superação poderia ser estritamente individual, ou gradativa-natural,
como uma evolução lenta que um dia eclodiria, mesmo mantendo suas bases, em uma
sociedade melhor:
Consequentemente, poder-se ia dizer que novas formas sociais de trabalho irão criar o novo
homem e que, esse homem novo, irá se assemelhar ao antigo tipo de homem, “o velho Adão”,
apenas no nome. Da mesma maneira que, de acordo com a grande Declaração de Spinoza,
poder-se-ia dizer que o cachorro – o animal que late – assemelha-se à constelação celestial de
nome Cão. (Vigotski, 1930/s/d).
A intervenção na psicologia de “cima para baixo” do período stalinista, não
condizia com um novo homem advindo de novas formas de relações sociais. Com a
manutenção de um cenário proibitivo e dogmático nas ciências humanas, a ideia de um
processo com consequências futuras foi deixada de lado e a exaltação do líder era uma
forma de admitir que todo cidadão soviético, antes de aspirar por quaisquer
transformações coletivas, deveria ter em Stalin sua confiança e modelo de
personalidade.
82
Esse cinismo diante da situação da psicologia impediu os avanços de sínteses
unitárias entre teoria e prática, propostas por Vigotski, que em consonância com a tese
da natureza social do psiquismo, ressalta a dependência das atividades em que os
indivíduos atuam para a formação do ser de sua consciência, antes de decretar um tipo
ideal a ser buscado, sendo esta uma tarefa que deve ter os olhos apontados para o futuro,
e não profetizá-lo. A importação teórica de um tipo ideal como o perfil “adequado” do
psiquismo, era problemática, pois postulava o presente como uma forma final,
eternalizada, e portanto, ideológica. Neste sentido, Vigotski aponta que avançar em uma
ideologia como essa teria em um de seus pilares, a negação da dimensão social do
psiquismo.
Ignorar a tese da natureza social do psiquismo é, ao mesmo tempo, armar-se de
uma perigosa fundamentação supostamente científica para projetos que visem o
extermínio ou adoção de um tipo ideal determinado, a-histórico e com motivações mui
particulares como o modelo de psiquismo a ser buscado nas escolas, nos projetos de
reprodução e controle humanos, e mesmo como justificativa do domínio político de uma
classe sobre a outra.
Na trajetória que realizamos até aqui sobre os usos e significados da palavra
ideologia em textos de Vigotski ao longo de uma década de produção de sua obra,
notamos uma inflexão do uso nos textos seminais para aqueles em que a sua posição a
respeito da linguagem e dos signos na constituição do psiquismo humano está mais
consolidada e a palavra ideologia passa a abarcar o universo dos sistemas conceituais,
valores e significados que permeiam a experiência humana como um todo. Em suma,
vimos que a ideologia é tomada como é um processo de pensamento socialmente
condicionado, mais que um fenômeno de falseamento, inversão, mistificação e
semelhantes.
Neste texto de 1934, o autor considerava a tese da natureza social do psiquismo
como uma tese científica, e a principal posição capaz de fazer frente aos absurdos
irracionalistas da psicologia fascista. Neste clima espinhoso, tenso, em que os embates
científicos alinhavam-se com as lutas sociais, o inferno interminável das guerras
imperialistas, bem com a censura e dificuldades dentro do seu próprio país, temos o uso
da ideologia novamente como arma de combate aos aspectos conservadores, e neste
caso, amplamente reacionários da psicologia.
Konder aponta que muitas vezes os teóricos do socialismo científico, Marx e
Engels, especialmente o segundo, utilizaram e colaboraram na expansão da ideologia
83
como falsa consciência dos fenômenos, identificando ideologia exclusivamente com
esta posição. Para o filósofo brasileiro, não se pode relegar este fato a uma crítica
epistemológica somente, mas entender que por vezes o conceito de ideologia é útil
exatamente como arma combativa à pseudociência, e em um clima de embate de ideias,
o seu uso com outras conotações, como é o caso do pensamento socialmente
determinado, deixa de ter serventia imediata. Para o autor, ainda, o problema em colocar
a ideologia como idêntica de falsa consciência ignora que o conhecimento pode ter
momentos verdadeiros e que, portanto, não podem reduzir-se à falsidade. Trata-se
muitas vezes de levar em consideração texto e contexto, mais que precisão semântica e
filológica.
Vimos na sessão que discutiu a ideologia no texto da Crise, e em outros
momentos, que a Psicologia de Vigotski pretendia lidar com seus adversários de modo
dialético, isto é, conservando os avanços reais destas teorias e perspectivas que
colaborassem na construção de uma psicologia verdadeiramente humana. Entretanto, o
que ocorre na adesão ao fascismo pela psicologia alemã destaca-se do fluxo de
continuidade na busca do conhecimento verdadeiro, científico, e a sua transformação
em ideologia não se limita à ausência de uma psicologia geral, ou aos entraves da
realidade socioeconômica, mas utiliza-se de suas pesquisas como forma apologética do
domínio hitlerista, trata-se para Vigotski de uma clara degeneração:
A profunda crise que padeceu a psicologia nas recentes décadas, agudizou-se após o golpe
fascista na Alemanha, e tomou novas formas, horríveis e repugnantes, até agora desconhecidas
na história da ciência psicológica. O novo regime acelerou catastroficamente o crescimento e
pôs em evidência uma grande quantidade de tendências até hoje ocultas, mascaradas, vagas, não
plenamente advertidas. Como resultado, no curso do ano passado e com a mais surpreendente
velocidade, uma infraestrutura básica nasceu dentro do sistema da psicologia fascista. A
demanda política do novo regime atuou como um catalisador do processo de degeneração e
decadência que se estava tramando-se previamente na fábrica geral da crise da psicologia e que
conduziu a um estado de comoção sem precedentes. (Vigotski, 1933/1988)
Para Vigotski o que ocorrera com a psicologia fascista era claramente de cunho
ideológico, pois não havia nada de relativamente novo, em termos de descobertas que
pudessem colaborar no desenvolvimento da Psicologia:
Evidentemente, não teria sentido discutir sobre a criação de uma nova psicologia, em um tempo
tão breve como o do regime fascista. A psicologia foi penetrada pelo fascismo de uma forma
diferente. Reordenou os espaços da psicologia alemã colocando em um primeiro plano todo o
reacionário que já existia previamente nela. Mas somente isto não era suficiente, e como já foi
dito, foi necessário agrupar com um só golpe, no menor tempo possível, um sistema de
psicologia que correspondesse a totalidade da ideologia fascista. (Vigotski, 1933/1988).
Um exemplo da velocidade deste processo, conforme Vigotski, está na
abundância de obras de psicologia alemã que se focam nos estudos sobre
84
hereditariedade e nas diferenças entre as raças. Três autores se destacavam nesse
cenário: Eduard Spranger (1882–1963), Narziß Kaspar Ach (1871-1946) e Erich
Jaensch (1883–1940). O primeiro autor realizava estudos no campo de investigações
sobre a personalidade. O conceito mais conhecido de Spranger era o de lebensformen,
ou “formas de vida”. Este no período do regime nazista, havia se adaptado à ideia de
que as diferentes formas de vida eram “antes e sobretudo” formas nacionais. Assumindo
escrever e descrever a respeito dos jovens alemães “educados”, admitia que existia
diferenças fundamentais nos traços psíquicos do jovem alemão se comparados ao russo,
que por sua vez era também diferente do judeu e assim adiante. A vivência destas
experiências aparece, por exemplo, na inevitável sensação de “estranhamento” de uma
nacionalidade, para com outra, gerando apreensão entre os povos, a despeito das
similitudes que possam ter entre si (Vigotski, 1933/1998).
Já Ach, ocupou-se de um problema mais pontual à psicologia fascista: O estudo
da volição e das tendências determinantes da atividade humana externa e interna do
comportamento, com o objetivo de estabelecer dados sobre o estudo da liderança. Em
1933, durante o Congresso Nacional de Leipzig, realizou uma leitura de toda a trajetória
de sua psicologia a partir de 1904 e concluiu que ela, desde o início, estava alinhada
com a interpretação individualista liberal da vida individual. Para a psicologia alemã do
período, duas questões estavam abertas e munidas com o fascismo: as diferenças
psicológicas entre as nacionalidades, e o estudo da volição trazendo consigo a
investigação sobre a liderança24. O ano do Congresso de Leipzig, além de ser o ano do
poder total nas mãos do nazismo, também inaugurara a política de extermínio de raças
indesejadas e dos considerados indignos para se viver. Em 14 de julho de 1933, é
promulgada a lei de prevenção à prole com doenças hereditárias, que promulgava a
esterilização forçada de deficientes físicos, esquizofrênicos e doentes mentais de toda
ordem, o objetivo era proteger a pureza da raça ariana, e outras leis seguiram ampliando
estas ações, com programas de assassinatos em massa. Em 01 de dezembro começam a
ser inaugurados os primeiros campos de concentração. 25
Se por um lado o mundo horrorizava-se com a ascensão do nazismo e suas
políticas de extermínio, por outro, colaboradores diretos do regime na Psicologia, não
esconderam o entusiasmo pela ideologia racista do regime de Hitler.
24
Os editores do texto utilizado na pesquisa em nota de rodapé, explicam que o vocábulo alemão que na
edição espanhol aparece a palavra “líder” trata-se de führer.
25
Ver cronologia do III Reich feito pela professora, Izabela Maria Furtado Kestler:
http://www.apario.com.br/index/boletim36/CRONOLOGIA%20DO%20III%20REICHEspecial2.pdf
85
É o caso de Erich Jaensch, que ademais de suas pesquisas empíricas no campo
da psicologia científica, que tinham como objeto de estudo a percepção e os seus
fenômenos, como a imagem eidética, não disfarçavam o apoio explícito ao regime,
usando de uma linguagem combativa, marcado por “emoções militantes”, que
decretavam a necessidade da “exportação” do tipo alemão de psiquismo para a
renovação de mentalidades atrasadas como a dos camponeses e de outras raças
(Vigotski, 1933/1988).
No entanto, o psicólogo com quem Vigotski polemiza com mais contundência é
Erich Jaensch, com as ideias contidas no livro A Situação e as tarefas da Psicologia e
sua missão no Movimento Alemão e na Reforma Cultural. Segundo o autor soviético,
neste livro encontram-se as pesquisas sobre o eidetismo já direcionadas a justificar
diferenças do psiquismo conforme a região geográfica que a pessoa estudada ocupasse
no mundo. Se a percepção pautada na imagem eidética proporciona uma memória rica
na transmissão de um dado visual direto, ela não dispõe da qualidade da memória lógica
de distanciar-se através do pensamento abstrato enriquecido por conceitos; ela é uma
etapa da memória ainda pouco assimilada pela linguagem abstrata. (Luria, 1979).
A memória eidética é relacionada com a memória do homem primitivo, de
jovens, crianças e de artistas com condições algumas vezes fora do desenvolvimento
mediado e até excepcionais. Em certo sentido, o eidetismo é uma configuração inferior
da memória, uma etapa pouco humanizada no sentido da aquisição da linguagem, do
uso da memória mediada por símbolos e instrumentos auxiliares. Essa diferença que
para a teoria histórico-cultural indica o desenvolvimento histórico do comportamento
em toda uma linha evolutiva, torna-se dado factual da necessária diferenciação entre o
psiquismo de diferentes de povos, na obra de Jaensch, e o pensamento eidético torna-se
característica da população do hemisfério sul, mais “adaptados ao sol”, cabe lembrar
que um dos experimentos utilizados na defesa desta tese foi com grupos de frangos
separados entre regiões “norte” e “sul” (Vigotski, 1933/1998).
Segundo Vigotski (1933/1998), este livro apresenta um sistema totalizador da
psicologia fascista que, é ao mesmo tempo face de uma nova etapa sem precedentes da
crise da psicologia e sua forma mais cínica e degenerada. Um exemplo de seu cinismo
seria adotar os princípios fascistas como corolário dependente do desenvolvimento de
suas ideias iniciais, já contidas em seu sistema antes da chegada do partido nazista ao
poder, assim como Ach e Sprangler. Isto é, não é que o nazismo imponha uma espécie
86
de epistemologia da superioridade racial, mas conforme seus defensores, ele apenas põe
em prática teses científicas já comprovadas anteriormente.
Em um trecho do livro de Jaensch, que Vigotski cita em seu artigo, o autor
alemão deixa claro que defende um tipo ideal de psiquismo, contudo chega a admitir
que este necessita incorporar-se com, por exemplo, a consciência campesina, em um
processo de revitalização de cima a baixo: O tipo ideal incorporando-se à mentalidade
campesina, acabaria por elevá-la a outro patamar, ao mesmo tempo que o tipo ideal
deve ser construído e reforçado, desde as camadas mais baixas. Assim, o tipo ideal do
psiquismo alemão, seria o guia especial no desenvolvimento da consciência para um
patamar diferenciado e exemplo para todos os países e não só dentro da própria
Alemanha. Era uma ciência e um ideal que deveriam ser forçosamente exportados:
Toda grande nação possui muitas estruturas. Uma nação não contêm somente aquelas estruturas
mentais que se mostram como forças diretrizes de um período dado, senão também outras
estruturas adicionais. Atualmente, na Alemanha, privilegiamos a reabilitação do tipo nacional
básico. Este processo de revitalização consiste em um amálgama do tipo idealista alemão com o
tipo camponês, que está mais próximo da terra. Ambas estruturas poderiam fecundar-se
mutuamente, o tipo camponês deve ser elevado de alguma maneira e o tipo ideal deve ser
construído e reforçado desde baixo. Na linguagem de uma tipologia integral, isto significa uma
amálgama de estruturas. Se outras nações também procedem da mesma maneira e seguirem esta
trilha as quais estão traçadas e revisarem as estruturas de liderança, então, os alemães e os
franceses estarão em condições de compreender-se mutuamente. Toda nação incorpora o grau
de desenvolvimento inicial. (Vigotski, 1933/1988, p.107-108, tradução e grifos nossos).
Para Vigotski o livro de Jaensch cumpre a função de um manifesto de guerra que
torna explícita e programática a ação simultânea entre psicologia - representando a
ciência – e o avanço político-militar do nazismo, de forma que a psicologia científica
seria a luz racional que justificaria a política de dominação. Pois, salienta Vigotski, a
aplicação na prática deste idealismo psicológico nacionalista, não teria apenas um fundo
calcado na ideia da superação racial, mas também buscava ser um meio de resolver a
contradição entre individualidade e a universalidade do estado político, nas palavras do
bielo-russo: ”O Problema da relação entre indivíduo e estado”. (Vigotski, 1933/1988,
p.116).
As bases do nacionalismo travestido como psicologia científica é alvo de
Vigotski também na crítica ao argumento de Jaensch, de que em todo momento
histórico, uma nação se destaca, ao passo que estas deveriam tornar-se o modelo central,
um espelho para outras nações. (Vigotski, 1933/1988). O psicólogo marxista está
portanto preocupado em demonstrar que o cerne da psicologia sob o jugo do fascismo é
alinhar-se ao projeto político expansionista nazista e usar do respaldo de alguns destes
autores na Psicologia para promover no reino das ideias científicas sobre o psiquismo
87
humano, a mesma grosseria política e expansionista que já estava ocorrendo na
realidade material. Neste sentido – a psicologia deve abandonar suas aspirações à
verdade – e dobrar-se diante do cenário promovido pelo III Reich. Desse modo, a
psicologia abandonava também sua postura como ciência, e alinhando-se a política
subjugada ao ideal nazista, torna-se essencialmente ideologia:
Dentro do sistema de divisão do trabalho da política fascista, foi incumbido a Jaensch, o objetivo
de levar a cabo no reino das ideias psicológicas científicas, a mesma destruição que já havia sido
realizada no plano político racial. Com é bem conhecido, a Alemanha após o golpe perdeu seus
melhores psicólogos, os mais progressistas e mais avançados cientificamente. Como Jaensch
está firmemente convencido do feito de que todo poder se assenta no idealismo realista, e de que
aquelas ideias não respaldadas por baionetas não valem um centavo, a única saída seria [sacar]
conclusões ideológicas a partir das representações políticas existentes (Vigotski,1934/1998,
p.108).
Vigotski (1933/1998) ressalta que a aliança ideológica dos psicólogos alemães
com os nazistas não advém de uma nova psicologia, mas esta se alinha totalmente às
representações políticas existentes, de modo que algumas das formulações não podem
ser consideradas esforço científico, tais como a frase destacada por ele: “Se estão
herdados a raça e o sangue então as ideias também são herdadas”. (p, 114-115, tradução
nossa). Argumento ao qual Vigotski afirma ser impossível qualquer crítica científica
rigorosa; seria como “refutar os desvarios de um delirante com um discurso lógico.”
A ideia mecanicista de que a raça e o sangue levem a um mesmo fio condutor
até a produção das ideias, para Vigotski, está intimamente relacionada com a recusa
pela psicologia burguesa da natureza social do psiquismo humano. Em Jaensch, a
ausência da dimensão social do psiquismo, assenta a raça e o sangue na condução da
estrutura da personalidade, e através dela, a dimensão política da sociedade.
Arrematando a crítica as posturas de Jaensch, Vigotski afirma que ao menos este
explicita os seus interesses com sinceridade:
Jaensch tem proclamado aberta e cinicamente o que outros tratam de ocultar ou que tem
meramente consciente ou em sua subjetividade. Jaensch somente disse o que outras pessoas
estão pensando, ou, ao menos, fazendo. Ele tem dito que ser cientista burguês significa servir as
necessidades da burguesia, necessidades que aparecem durante um período histórico dado e
lutar, usando as armas da ciência para alcançar as metas políticas que surgem dos problemas
atuais. Ele tem dito que não existe tal coisa como ciência apolítica, que existiria a margem da
política. (...) Jaensch levou a cabo sua tarefa no estilo de um sargento maior que não parece estar
nada preocupado, com o feito de que, enquanto se esforçava para apresentar-nos um tipo alemão
ideal em um atrativo atuante de super-homem, tudo o que realmente conseguiu foi desenvolver o
que Nietzsche chamou de Besta Loira, a cara selvagem do nacionalismo zoológico. (Vigotski,
1934/1998, p. 127)
Ao realizar o diagnóstico dos principais problemas metodológicos expostos pela
concepções fascistas na psicologia, Vigotski afirma que o não reconhecimento e mesmo
a ignorância da natureza social do psiquismo seria um dos motivos pelos quais a raiz
88
biológica e física vulgar destas expressões ideológicas tiveram sucesso. Ignorando o
papel dos signos, da mediação da linguagem, a historicidade e o caráter altamente
complexo e desenvolvido dos sistemas psicológicos, a psicologia pode ficar aberta aos
desvarios deterministas de perspectivas que elejam a raça e a hereditariedade como
fundamental à explicação da totalidade da consciência humana, cuja as fraquezas
científicas cujas fraquezas científicas não resistiriam à um exame rigoroso.
Para Vigotski, a fase fascista da psicologia é a expressão da crise da psicologia
burguesa, da confusão entre idealismo e materialismo, e o abandono do que de fato se
trata a consciência humana. Enfim, é uma expressão da alienação que separa, divide,
fragmenta e afasta a compreensão dos seres humanos como um tipo unitário de
formação biológica e de ser social, tanto quanto na necessidade de relações sociais para
a constituição do indivíduo e a marca que estas relações – situadas historicamente –
deixam no cerne do desenvolvimento de cada indivíduo.
Vigotski não viveu o suficiente para acompanhar a expansão ainda maior que
configurou o regime nazista e a II Guerra Mundial, tampouco poderia prever a morte de
milhões de seus compatriotas na resistência à invasão Alemã na URSS. No entanto, a
sua habilidade em perceber os aspectos ideológicos da psicologia, e o lugar destas no
cerne da crise estrutural imanente a esta ciência, exigiram do autor uma posição
contundente contra a cooptação da psicologia pelo nazismo.
Tendo em vista o recorte realizado para expressar os dois maiores sentidos
atribuídos ao conceito de ideologia do qual nos ocupamos, e que expressam uma
“tensão”. Este texto marca a volta do sentido crítico-negativo de ideologia enquanto
expressão da reificação e dos limites de visão de mundo e homem de certa estrutura
historicamente determinada de consciência e pensamento teórico que se manifestam
tanto no cotidiano quanto nas elaborações filosóficas e conceituais. Esta ressalva é
válida por expormos no próximo capítulo que em um breve intervalo iniciado após a
publicação do texto da “Crise”, Vigotski ocupar-se-á da palavra ideologia enquanto um
conceito auxiliar na explicação do pensamento e da consciência socialmente
determinada, e que este passa a exercer uma função diferente do sentido essencialmente
crítico, característico dos textos iniciais e após esta inflexão aqui apontada, retomado
com veemência em O Fascismo e a Psicologia.
Vimos ao longo do exame do conceito de ideologia nestes três textos de Vigotski
como ele aparece na ordem de problemas da verdade ou falsidade de um conhecimento
– sem desvencilhar conhecimento teórico e prática social – e o quanto a ideologia pode
89
ser um fenômeno essencialmente crítico e negativo, na linha mais tradicional da crítica
da ideologia de inspiração marxista. Apesar das peculiaridades de cada produção
textual, vale ressaltar que perpassam pela pena do autor, tanto a necessidade da crítica e
do combate à psicologia burguesa, muitas vezes agonizante e de postura defensiva, bem
como o limite de visão de homem e de mundo desta mesma psicologia, que sozinha
seria incapaz de resolver os problemas que configuram a “crise” tanto no plano teórico
quanto no prático.
O próximo capítulo marca uma inflexão do termo “ideologia”, enquanto
essencialmente crítico-negativo, pondo à mostra um Vigotski que coloca a ideologia
como fenômeno genético da construção social do psiquismo, pelo qual permeia funções
e valores da consciência sob a influência da ideologia. Neste sentido, o conceito perde a
sua essência negativa, sem, no entanto, tomar uma forma neutra ou desprovida de
valores e significados. Como veremos nas últimas sessões, focadas nas ideias sob
sistemas psicológicos e nos sistemas conceituais de pensamento, como expostas por
Vigotski, também pesa a necessidade da superação das espontaneidades típicas da
ideologia, isto é, o seu baixo grau de abstração e explicação da realidade, bem como da
autoconsciência.
3
VIGOTSKI E A IDEOLOGIA COMO SISTEMA CONCEITUAL [19291931]. IMPLICAÇÕES PARA A PSICOLOGIA COMO CIÊNCIA E PARA A
RELAÇÃO ENTRE CONCEITOS CIENTÍFICOS E ESPONTÂNEOS.
A palavra ideologia aparece no Manuscrito de 1929, conhecido como Psicologia
concreta do homem. Na introdução de Puzirei, (2000) editor do texto liberado pela
família de Vigotski, o manuscrito além de tocar em pontos atuais para a psicologia
moderna, revela a qualidade de “delineamento preliminar”, do trabalho principal de
Vigotski que eclodirá na primeira metade da década de 1930. A palavra ideologia não
aparece como sinônimo de falseamento e inversão da realidade, mas torna-se parte da
explicação de Vigotski sobre o uso de signos como mediação entre o social e o
individual em uma unidade contraditória que deve ser tomada em uma dinâmica
processual e histórica.
90
Dos textos selecionados para este trabalho, foi em Psicologia Concreta do
Homem26, que encontramos a “ideologia” mais próxima a um sentido de funções e
valores das ideias na formação consciência em cada etapa histórica do comportamento e
nos sistemas psicológicos, sem delinear abertamente uma conotação crítica e negativa,
que caracteriza as primeiras aparições do conceito na sua produção teórica.
Um exemplo deste fato é a ideia das relações sociais entre as pessoas
transferidas para a personalidade, o social como ideológico, significativo e mediado,
sem a dependência do vocabulário da reflexologia ou da reactologia. O conceito de
social é expandido pelo autor a fim de dar conta dos avanços que o levavam para a
construção de uma nova psicologia e exigiu deste clarificar o que esta perspectiva
entende por social:
A palavra social em aplicação ao nosso caso tem muitas significações: 1) mais geral, todo
cultural é social; 2) sinal – fora do organismo, como instrumento, meio social; 3) todas as
funções psicológicas superiores constituíram-se na filogênese, não biologicamente, mas
socialmente; 4) mais grosseira - significação – os mecanismos dela são uma cópia do social.
Elas são transferidas para a personalidade, relações interiorizadas de ordem social, base da
estrutura da personalidade. Sua composição, gênese, função (maneira de agir) - em uma
palavra, sua natureza – são sociais. Mesmo sendo, na personalidade, transformadas em processos
psicológicos – elas permanecem quase-sociais. O individual, o pessoal – não é ‘contra’, mas
uma forma superior de personalidade. (Vigotski, 1929/2000, p.26)
É interessante notar que a palavra ideologia surgirá neste manuscrito de modo
semelhante ao desenvolvido no texto analisado a seguir, Sobre os sistemas psicológicos,
inclusive contendo o mesmo exemplo dado por Vigotski como a ideologia de uma
cultura indica a gênese das ideias individuais, que é o caso do cafre – ou kaffir, na
tradução consultada do Manuscrito de 1929 – que utiliza o sonho como forma de
pensamento, para tomar decisões complexas.
A formação da personalidade é subordinada às relações sociais; são os signos
externos, materializados pela história das transformações humanas no decorrer do uso e
no domínio de instrumentos e signos, como formas culturais de mediação psicológica,
das quais decorrem as funções psicológicas superiores. Antes de classificar em
“esquemas fixos” as características da personalidade humana, Vigotski salientava a
importância de dar relevo à natureza processual da personalidade, mais que à “factual”.
A relação do individual com o social não é de mera subordinação ou de oposição
absoluta, a gênese do psiquismo é social em sua origem e mantêm-se, via relações
26
Trata-se de um texto não finalizado para publicação, o que demandou um trabalho de reconstrução de
abreviaturas e de decifração dos apontamentos. Contudo, nele observamos tanto as ideias discorridas,
como em elaboração. Revela, também, o modo de construção não somente da escrita mas do pensamento
científico do autor.
91
sociais, estas por sua vez não suprimem o indivíduo, já que considera a individualidade
uma forma superior do social.
Assim, Vigotski oferece uma ênfase à consciência individual, quando esta se
diferencia das suas determinações mais gerais, e supera o estado de “cópia do social”,
isto é, desenvolve de fato uma “personalidade”, no sentido de que se distancia e ao
mesmo tempo advém das relações sociais que o constituíram. A ideologia seria um dos
componentes da mediação do psiquismo individual com a realidade social, um sistema
de ideias, conceitos que realizam funções com determinados valores e moldam a
consciência individual por meio de mecanismos pelos quais significa e dá sentido, em
uma palavra – organiza – as ideias que recorrem para mover-se no mundo, tomar
decisões, compreender e agir na realidade.
A ideologia é uma palavra que se une ao quadro conceitual de Vigotski, para
indicar a atividade do homem mediada pela linguagem, que como consciência histórica,
também se difere em diversos sistemas conceituais dominantes em cada época, em que
cada individualidade se molda e se confronta, mais que limitam-se às sua natureza
estrutural biológicas. Este atribui à psique um estatuto de dependência com as relações
sociais tanto em sua gênese, quanto no desenvolvimento individual e no campo de ação
sem, no entanto, encerrar este problema em um determinismo. Antes, preconiza a
transformação social pelas vias concretas que constituíam o homem, suas relações
sociais mediadas pelo trabalho, pela realidade socioeconômica, classes, família, cultura,
diversas formas ideológicas dependentes, ligadas diretamente às relações sociais
estabelecidas entre o indivíduo e em última análise, pelo conjunto da humanidade.
O que temos em foco é a ênfase de que a consciência e seus mecanismos de
pensamento, no caso os sistemas psicológicos, em nível individual se dá em um tempo
histórico, que corresponde a determinado nível de desenvolvimento geral da sociedade.
O homem da Grécia antiga, por exemplo, não poderia utilizar os meios encontrados pelo
homem de hoje para postular e resolver seus problemas particulares (e nem estes seriam
os mesmos), ele recorreria à cultura de sua época, pois esta representa o lugar de ação e
ao mesmo tempo um limite, na medida em que a liberdade humana não está colocada de
modo que possa fazer o que se quiser, ela é dependente de toda uma situação histórica, e
a ideologia é tomada como um processo pelos quais estas relações cristalizam-se como
meios de significação e valoração.
A ideologia marca a formação da consciência de uma época histórica, mas não a
determina de modo mecânico e também não é somente o resultado de concepções
92
distorcidas, aqui Vigotski preocupa-se com mais a função da ideologia na vida social,
tal é o caso do cafre. Esta não regeria a vida individual mecanicamente, tampouco seria
o resultado de uma bem sucedida ideia falsa que dissimula conflitos, mas um
pensamento que é socialmente determinado, uma estrutura de ideias e sentidos que não
dependem do arbítrio do indivíduo tomado isoladamente.
As reações da personalidade estão postas em camadas, estratos e funções que se
aplicam à vida real, às atividades práticas de cada indivíduo e deste no todo social. A
psicologia deveria entender, portanto, a consciência como um fenômeno que está
sempre em relação com o mundo externo, mesmo em sua interioridade mais rica
possível. A ideologia não se sustenta somente pela sua capacidade de convencimento, a
sua argúcia sedutora sobre os homens, ainda que certa visão de mundo seja dominante e
muito mais vitoriosa que outras, como é o exemplo do domínio religioso em um país só,
da crença que o capitalismo é capaz de oferecer oportunidade para todos, bastando
esforçar-se, entre outros. Aqui, a ideologia corresponde a todo um sistema conceitual
valorativo que é diretamente ligado ao posicionamento individual na vida social:
A tarefa da psicologia é o estudo das reações da personalidade, isto é, das ligações de tipo sonho
– mecanismos reguladores. Papel da religião, etc. A toda ideologia (social) corresponde uma
estrutura psicológica de tipo definido – mas no sentido da assimilação subjetiva e
portadora da ideologia, mas no sentido da construção das camadas, estratos e funções da
personalidade. Compare Kaffir, católico, trabalhador, camponês. Compare minhas ideias [relação] da estrutura dos interesses com a regulação social da conduta. (Vigotski, 1929/2000, p.
31 - grifos nossos)
Se a ideologia opera na regulação social da conduta, isto não implica em um
determinismo mecânico, mas antes um organizador entre o indivíduo e a sociedade em
que este está vinculado, e nos quais condicionam os estratos, camadas e funções da
personalidade que exerce. A cada uma destas atividades, corresponde a ideologia e esta
relação não se dá somente de forma unilateral, antes, conserva um grau de autonomia,
pois não é o pensamento que pensa pela pessoa, pensa a pessoa, o homem. O
“pensamento” é histórico não existe como algo puramente lógico, ou extemporâneo ao
ideário social de uma época:
Pensa não o pensamento, pensa a pessoa. Este é o ponto de partida da visão (...) O que é o
homem? Para Hegel, é o sujeito lógico. Para Pavlov é o soma, organismo. Para nós é a
personalidade social, encarnado no indivíduo (funções psicológicas, construídas pela
estrutura social). O homem é para Hegel, sempre a consciência, ou autoconsciência. (frase a
margem do manuscrito). (Vigotski, 1929/2000, p.33- grifos nossos).
Se a ideologia também é o “social em nós”, e neste sentido um elemento que
gera e ao mesmo tempo limita um dado horizonte da nossa consciência, isto não indica
a redução da consciência ao meio social tomado como um determinismo mecanicista do
93
qual o social “controla” a consciência em absoluto, ao contrário, Vigotski colocará
sempre a ideologia como algo passível de ser modificado, não somente em um sentido
contrário ou divergente do estabelecido, mas como direcionado à possibilidade de
avançar na compreensão da formação do nosso psiquismo e na possibilidade de
modificação social das funções e finalidades em que estes estão colocados, rumo a um
grau maior de liberdade do homem.
Há, portanto, uma grande inclinação ao tema da liberdade, na medida em que
esta coloca para a humanidade, conforme avança no domínio da natureza e do
conhecimento, a possibilidade da superação das ideologias parciais e a fomentação de
um projeto que vise a criação de um sistema que compreenda estas ideologias,
superando-as através de novas e coletivas atividades. A ideia de um “sistema único” traz
à reflexão da liberdade em conjunto com a exposição sobre a ideologia tomada como
pensamento socialmente determinado, como veremos na análise a seguir.
3.1 1931: SOBRE OS SISTEMAS PSICOLÓGICOS E A IDEOLOGIA.
Sobre os sistemas psicológicos foi um texto não publicado em vida por Vigotski,
versão aqui utilizada, publicada em 1996, nas Obras Escogidas traduzidas diretamente
trata-se da transcrição de uma conferência realizada em 1930, em que Vigotski
apresenta hipóteses sobre os sistemas psicológicos, colocando-os no terreno das ideias
psicológicas sobre conceitos como consciência, personalidade e pensamento de um
modo crítico em relação às teorias tradicionais sobre a essência do pensamento
desenvolvido e a aquisição de funções novas no desenvolvimento ontogenético.
Assim, polemiza com concepções tradicionais da psicologia sobre a maturação
destas funções seguirem um caminho de desenvolvimento natural como um percurso
contínuo de amadurecimento, tal como ocorre no reino animal, sem nenhuma
explicação psicológica do ponto de vista do que é de fato distinto no homem.
Concepções que também defendiam a possibilidade de encontrar o correlativo em áreas
do cérebro de cada função em específico, inclusive porque estas atuariam de modo
isolado, mesmo no “conjunto” do cérebro, atuariam em áreas separadas.
Este fundo comum da concepção que adota uma ideia de acontecimento natural
como um percurso contínuo de matriz biológica, é que Vigotski concentra os esforços
críticos na ideia alternativa de sistemas psicológicos. Para o autor, os sistemas
psicológicos subordinam as funções naturais, situando-as em novas e mutáveis relações
que necessitam do caráter social para o impulso deste movimento, do novo, tanto quanto
94
para a continuidade destas mesmas novas formas e ampliam-se e integram-se na fase de
transição, através do pensamento por conceitos, em que a consciência humana pode dar
um salto qualitativo, e além de sustentar psicologicamente novas habilidades, construir
e ampliar visões de mundo.
Para Vigotski o desenvolvimento da consciência individual ocorreria em três
etapas. Como o autor era um materialista e crítico dialético, isso nos obriga a lembrar de
tais etapas não como processos formais e estanques, que não carregam em cada novo
movimento característico suas contradições, rupturas e descontinuidades. Mas antes sua
teorização se trata da primazia ontológica do ser social sobre o individuo, de uma etapa
do desenvolvimento psicológico humano, da qual a formação individual é
necessariamente dependente:
Primeiro, a interpsicológica: eu ordeno você executa; depois a extrapsicológica: começo a dizer
a mim mesmo; e em seguida, a intrapsicológica: dois pontos no cérebro, que são estimulados de
fora, tem tendência a atuar dentro de um sistema único e se transformam em um ponto
intracortical. (Vigotski, 1930/ /2001, p. 133)
Se os sistemas psicológicos são de natureza social e passam a intervir na
formação do psiquismo individual na medida em que este último relaciona-se e se
diferencia dentro do jogo dos próprios sistemas, esta ideia torna-se crítica de
concepções que sustentam diferenças radicais entre as qualidades naturais das funções
psicológicas em diferentes indivíduos. Por exemplo, caberia investigar a diferença entre
as aptidões e capacidades inatas de cada um, e de fato este se tornou um modelo
recorrido à ciência psicológica no final do século XIX e segue com algum prestígio
mesmo nos dias de hoje. Mas para Vigotski estes sistemas não importam tanto do ponto
de vista da capacidade individual, em que podem elevar estas funções, o fato, por
exemplo, de eu ser mais atento que alguém quando escrevo, enquanto esta pessoa pode
ter mais facilidade em ouvir uma palestra. Mas, sobretudo, esses sistemas importam
enquanto reveladores das finalidades práticas, na produção e reprodução social da vida,
pela qual os sistemas psicológicos se constituem e se dinamizam:
A diferença caracteriológica essencial e importante na prática da vida social das pessoas
encontra-se nas estruturas, relações, conexões, de que dispomos entre diversos pontos. Quero
dizer com isso que o decisivo não é a memória, ou a atenção, mas até que ponto o homem faz
uso dessa memória que papel desempenha. (Vigotski, 2001, p.133)
Se a psicologia tradicional entende as transformações psíquicas como processos
internos, a psicologia proposta por Vigotski busca ampliar esta visão, já que a
internalização é apenas uma parte do processo de desenvolvimento psíquico. Além
disso, o desenvolvimento interno já não importa mais tanto quanto revele os dotes
95
especiais de cada individuo munido e a capacidade das suas funções entendidas somente
para-si, mas a pergunta é alçada no “para quê”. É na qualidade das “estruturas”,
“relações” e “conexões” que deve encontrar-se a diferença nas pessoas, e não centralizar
as diferenças individuais, no bojo de uma concepção assentada na abstração do
indivíduo isolado autogerado.
Dessa forma, as funções psicológicas superiores não se alteram muito em si, no
que lhes detêm de específico de cada função, na sua matriz natural, física e biológica.
Mas antes passam a integrar estes sistemas de modo que a atividade do sujeito
subordina e reestrutura a carga natural de cada uma delas. Temos como exemplo, as
transformações ocorridas com a internalização da linguagem na percepção e na
memória, como é o caso do uso de desenhos para auxiliar a memória, que não altera a
natureza desta função em si, a sua carga genética que lhe determina a seu uso e função,
mas a reestrutura, sua fusão com o pensamento eleva-a a outro patamar, o de memória
lógica e já não pode ser redutível ao determinismo biológico (genético), por ter
dependido de uma atividade social, de relações sociais determinadas, históricas.
(Vigotski 2001, p. 111).
A exposição de Vigotski objetiva um panorama sintético das funções mais
elementares até a possibilidade mais elevada de desenvolvimento da consciência, o
pensamento por conceitos, bem como demonstrar que a desintegração destes sistemas
em patologias severas tais como a afasia e a esquizofrenia, comprova a tese de que os
sistemas psicológicos são pontos intracorticais que percorrem, etapas interpsicológicas
em sua gênese entre o indivíduo e outros indivíduos, e em última análise, com o gênero
humano, mediado pela cultura em que está inserido, visto que tais patologias não eram
causadas por danos degenerativos ou mesmo neurológicos do ponto de vista anatômicocerebral.
Ao contrário, para Vigotski, a ausência da mediação característica do
pensamento propriamente humano, por conceitos e por sistemas psicológicos
interpessoais, que caracterizam também em conjunto, os nossos afetos e emoções e que
na ausência da patologia passam a ser subordinadas ao pensamento, desintegra-se por
completo na patologia, caracterizada por uma relação predominantemente afetiva, sem a
regulação destas mediações, dos sistemas psicológicos mais refinados para o controle e
desenho dos afetos. Se o pensamento é mediado por uma forma social que o subordina e
faz com que domine o reino do afeto puro, o esquizofrênico teria a desintegração
justamente dessa “conexão” e por isso as manifestações características desta patologia.
96
Se a psicologia tradicional da época de Vigotski apresentava-se com certa
hegemonia da concepção que repousava sobre uma epistemologia de ordem biológica,
sobre os constructos teóricos que buscavam explicações psicológicas, a ideia de
sistemas psicológicos propõe-se como superação, tanto epistemologicamente, no terreno
do conhecimento da verdade histórica do objeto, neste caso, a consciência humana,
como no plano prático, já que as investigações refletem diretamente problemas ligados à
educação de crianças e à formação da mente humana desenvolvida, isto é, consciências
dotadas de certo grau de liberdade para o domínio de sua autoconsciência, progressivo
no domínio histórico do comportamento, como apropriação dos objetos da cultura
estabelecidos pelo conjunto do gênero humano, isto é, garantida a sua humanização.
Os sistemas psicológicos não começaram com o homem moderno, e isto fica em
voga em um traço essencial da teoria histórico-cultural do comportamento humano, as
formas mais rudimentares e primitivas de comportamento não estão subordinadas às leis
biológicas que limitam a forma e o uso das antigas civilizações, como se estes tipos
fossem inferiores em termos de raça e gênero, ao homem ocidental moderno, mas
demonstram etapas percorridas pelo gênero humano ao longo do domínio histórico do
comportamento, uma etapa do contínuo “afastamento das barreiras naturais”.
O afastamento das barreiras naturais, dos sentidos e os saltos qualitativos no
domínio da natureza, colocam em jogo tanto a superação teórica de concepções que
restringem o desenvolvimento ao biológico, como abrem espaço para uma intervenção
concreta e racional em busca do domínio consciente destes próprios sistemas. Assim, o
homem primitivo não é em nada diferenciado de nós, só está sob o jugo dos seus
sistemas psicológicos historicamente colocados, e mais, este processo também havia
sido compreendido como possível de ser alterado.
Para Vigotski, diferenciar o psiquismo do homem primitivo, supondo que este é
um tipo diferente biologicamente do homem moderno, é fazer uma confusão grosseira
entre desenvolvimento biológico e desenvolvimento histórico, Vigotski chega a
enfatizar que a evolução biológica do homo sapiens chegara ao fim:
Todas as investigações biológicas conduzem à ideia de que o homem mais primitivo que
conhecemos merece biologicamente o título completo de homem. A evolução biológica do
homem já tinha terminado antes que começasse seu desenvolvimento histórico. (Vigotski,
1930/2001, p. 115).
A necessidade de colocar o psiquismo no terreno histórico, portanto social e que
envolve antes o coletivo para o surgimento de um novo psiquismo fora também um
modo da própria Psicologia colocar-se diante de modos de interpretação tradicionais tais
97
como o Associacionismo, para o qual os elementos sensoriais, em associação,
precediam qualquer conceito no pensamento e, além disso, colocavam em foco as
associações entre as funções considerando-as isoladas entre si e o desenvolvimento era
o resultado da associação entre estas funções isoladas. Não havia, portanto, dinâmica ou
reciprocidade entre elas.
Vigotski cita como exemplo de teoria que já não aceitava a tradição
associacionista, que tomava as funções como individuais e isoladas entre si, a ideia de
Piaget de que o pensamento surge na criança pré-escolar somente quando ela já está
inserida em jogos coletivos de diálogo, enfatizando a necessidade do comportamento
social antes da fala egocêntrica. Cita Gross 27sob a subordinação às regras do jogo como
elemento que desenvolve a função psicológica da atenção voluntária individual. Neste
texto Vigotski ainda busca seu caminho para diferenciar-se tanto da psicologia
tradicional quanto ampliar o leque na investigação da gênese social do psiquismo.
A proposta de Vigotski defende a ideia de que o pensamento surge nas relações
sociais que o indivíduo estabelece com outros seres humanos. Existe a necessidade de
uma relação interpsicológica, esta é etapa fundamental para a possibilidade do
desenvolvimento individual, esta dupla aparição do comportamento superior antes do
seu surgimento no individuo põe em xeque a constituição da consciência como
prolongamento natural do organismo, entendido de modo exclusivamente biológico:
Ao estudar os processos das funções superiores das crianças chegamos à uma conclusão que nos
surpreendeu. Toda forma superior de comportamento aparece em cena duas vezes antes do seu
desenvolvimento: primeiro como forma coletiva do mesmo, como forma interpsicológica, um
procedimento externo de comportamento. Não nos damos conta desse fato porque sua
cotidianidade nos cega. O exemplo mais claro disso é a linguagem. No princípio é um meio de
vínculo entre a criança e aqueles que a rodeiam, mas, no momento em que a criança começa a
falar para si, pode se considerar como a transposição da forma coletiva de comportamento, para
a prática do comportamento individual. (Vigotski, 1930/2001, p. 112)
Este fato cotidiano óbvio, que chega “a nos cegar em sua obviedade”, coloca em
destaque os meios pelos quais essas relações ocorrem, sendo a dimensão semiótica da
linguagem o signo fundamental da consciência, o indivíduo só pode tornar-se autônomo
na medida em que se relaciona com os demais e daí pode forjar a própria autonomia,
mas sem a linguagem que é entendida aqui, não apenas como habilidade de falar, mas
como signo, isto é, como realidade material que é também forma de comunicação.
Propõe entender a linguagem como esse elo de ligação entre o social e o indivíduo ao
passo que esta relação não se dá de modo mecanicista ou descrito nas linhas gerais da
27
Karl Gross (1861-1946), foi filósofo e psicólogo alemão, estudou a psicologia infantil e
formulou uma conhecida teoria sobre papel do jogo no desenvolvimento.
98
biologia; para Vigotski (1930/2001) ela é uma forma não só de compreender os demais,
mas o que possibilita que o ser humano compreenda também a si mesmo. (p.112)
A linguagem é um exemplo de signo, talvez um dos mais importantes na órbita
teórica de Vigotski, visto que ela está na base da possibilidade do desenvolvimento do
pensamento; o signo é um “meio de comunicação” que permite aos seres humanos
estabelecer ligações entre sistemas. Nesta exposição, Vigotski propõe uma superação da
psicologia moderna por demonstrar um limite claro das ideias que se defrontava na sua
época, a constituição e o necessário uso dos signos para o desenvolvimento da
consciência, deixava claro que a prolongação natural do comportamento não era a
gênese que dava o fruto do pensamento, mas antes deveríamos orientar-nos sob as
relações sociais expressas na linguagem.
A importância do signo como espécie de demiurgo da consciência – e dos
próprios sistemas psicológicos como um todo – é enfatizada por Vigotski de modo claro
já nesta conferência, que data de nove de outubro de 1930, 4 anos antes do lançamento
de sua obra Pensamento e Linguagem. Esta objetivará sintetizar com muito mais rigor e
dados sintéticos, algumas das ideias aqui esboçadas tais como o papel da linguagem na
constituição do pensamento e o advento do pensamento por conceitos como atributo
enriquecedor na trajetória de conceitos científicos e a devida hierarquização em relação
aos conceitos espontâneos, aqui encontra-se um dos primeiros ensaios desta ideia:
Todo signo, se tomarmos sua origem real, é um meio de comunicação, e, poderíamos dizê-lo
mais amplamente, um meio de conexão de certas funções psíquicas de caráter social.
Transladado por nós mesmos, é o próprio meio de união das funções em nós mesmos, e
poderemos demonstrar que sem signo, os cérebros e suas conexões iniciais, não poderiam se
transformar nas complexas relações, que ocorrem graças à linguagem. (Vigotski, 1930/2001, p.
111)
Em um exemplo que funde as duas teses: a) que o psiquismo do homem
primitivo não pode ser reduzido a uma diferença biológica, e, b) que o signo atua como
um sistema psicológico e mediatiza relações sociais entre os homens, Vigotski toma de
empréstimo um relato de campo coletado por outro psicólogo, Levy Bruhl28, que fala
sobre um cafre que, quando questionado sobre a proposta de um missionário de
autorizar que o filho fosse para a escola da missão, responde que consultará os sonhos
para dar a resposta. A atenção de Vigotski repousa na observação de Bruhl de que o
sonho toma para o cafre o mesmo lugar que para nós está o pensamento. É como se ele
dissesse, literalmente, “vou pensar”. Mas, nós, assim como o cafre, sonhamos, porque é
que para ele o sonho cumpre esta função de pensamento?
28
Lucién Levy-Bruhl (1857-1932) filósofo e sociólogo francês.
99
Mais do que explicar o uso do sonho na cultura do cafre, para Vigotski este é um
exemplo notável de um mecanismo psicológico que se modifica historicamente, e do
qual o homem serve-se para resolver questões, tal como são resolvidas na sua cultura:
As leis dos sonhos são as mesmas, mas o papel que o sonho desempenha é totalmente distinto e
observamos que essa diferença não existe apenas entre o cafre e nós, mas também entre o
romano e nós, mesmo que, ao enfrentar uma situação difícil, este não dissesse: “Verei isso em
sonhos”, porque se encontrava em outro nível de desenvolvimento humano, e resolvia as
questões, segundo expressão de Tácito, “com as armas e com a razão e não com os sonhos,
como uma mulher”, mas também esse romano acreditava nos sonhos; para ele o sonho era um
sinal, um presságio; um romano não começava um negócio se tinha um sonho ruim relacionado
com ele; para um romano o sonho entrava em outra conexão estrutural com as demais funções.
(Vigotski, 1930/2001, p. 115, grifos nossos).
A particularidade cultural do sonho como sistema para resolver questões, muitas
delas, complexas como as relacionadas aos problemas de guerras, plantações e colheitas
até decisões mais íntimas que interferem o núcleo familiar de um indivíduo, não se dá
no cafre devido uma limitação imposta pelo seu aparelho psíquico, incluso o próprio
cérebro. Mas referem-se a diferentes modos de se enfrentar questões inventadas pelos
seres humanos e que ao longo do desenvolvimento da história humana, isto é, quando os
homens passam a se diferenciar dos animais e superam mesmo os instintos gregários
para se tornarem comunidades, diferentes níveis e graus de explicações surgiram para o
sonho.
Tal como o exemplo de Vigotski, o romano já não entregava todo o seu futuro às
inspirações oníricas, uma vez que um cidadão romano era um sujeito dotado de razoável
consciência histórica, visto as vicissitudes de todo o Império Romano, que convivia
com expansões imperialistas, vida política ostensiva e mesmo código de leis e de ética,
muito avançadas quando comparadas com as sociedades primitivas. Um romano
dificilmente teria uma consciência, no sentido filosófico do termo, sobre uma
autodeterminação humana, racional e secular na história, do conjunto humano enquanto
um gênero específico, mas possivelmente encarava a sociedade e o homem como capaz
de avanços e proezas consideráveis, o que já lhe fazia, conforme uma expressão da
época, resgatada por Vigotski, rejeitar o sonho como fonte de inspiração fundamental.
O sonho é um signo que faz parte de um todo um sistema conceitual. Este
sistema não foi elaborado individualmente pelo cafre, mas pela cultura em que ele está
inserido. Entretanto, cabe apontar que esta relação entre sistema conceitual e
personalidade, não se dá em Vigotski, de modo mecânico, já que a história é
compreendida como um processo em aberto e a personalidade, também histórica,
podem avançar para estágios de desenvolvimento da consciência qualitativamente mais
100
complexos e com dinâmicas diferenciadas, das quais emergiu e pertence, não se
limitando à reprodução de comportamentos estereotipados da cultura de origem, caso
mude a sua localização e atividade em uma determinada prática social.
Como pensador dialético, Vigotski compreende que a valoração de um signo e
sua subsequente função, tal como o sonho para o cafre, enquanto positiva um modo de
ser do signo, nega outras possibilidades, e tende a solidificar-se como um valor, de
modo que centralizamos uma maneira pensar à frente de questões complexas que são
dependentes da natureza das atividades sociais de cada indivíduo. Nesse sentido, a
ideologia, ainda que válida para garantir a coesão e o funcionamento da consciência
individual dos sujeitos não foge do reino cotidiano, da espontaneidade. Se a heterogênea
sociedade capitalista abriga sentidos diversos aos sonhos nos dias de hoje, que podem
significar desde um sinal para se apostar em um bicho no jogo de sorte até de viagens
transcendentais para reinos espirituais, o que demonstra a multiplicidade destes valores,
e abriga possibilidades de investigação sobre quais finalidades se assentam tais
mecanismos, a qual interesses e objetivos estão ligados e ainda, se estes são passíveis de
alteração.
Essa variedade, sob a égide da sociedade capitalista, não
implica
necessariamente no domínio consciente destas finalidades, ocorrendo muitas vezes que
o indivíduo reproduza o pensamento pela via de uma ação mais espontânea que crítica,
mais reprodutiva que autônoma. Isto ainda não elimina a possibilidade de avançar para
estágios novos e diferenciados estágios. Tampouco que a adesão a uma ideologia como
sistema conceitual social se dê de modo monolítico e regular, ao contrário, a
personalidade que vivencia estes sistemas repousa sob uma grande tensão em forma de
drama. 29
Não é demais ressaltar que essa possibilidade de mudança não deve ser
entendida como uma espécie de voluntarismo. Vigotski indica que há predominância do
ideário posto pelo meio – que o indivíduo se insere e interfere – sustentados nos valores
correspondentes desse ideário composto pelos mecanismos psicológicos e sistemas
conceituais de cada sociedade. Neste sentido, indica que signo e ideologia são
momentos de um mesmo processo, da mediação exercida entre o sistema conceitual
e a personalidade.
29
Ver Delari Junior, A. Sentidos do drama na perspectiva de Vigotski: um diálogo no limiar entre
arte e psicologia. Psicologia em Estudo, Maringá, v. 16, n. 2, pp. 181-197, abr./jun. 2011
101
Vigotski (1931/1996) nos oferece uma análise dialética entre o velho e o novo.
Se o pensamento só pode surgir em um meio estabelecido, o mesmo ocorre com o
pensamento novo que só pode ser superação do já estabelecido. Assim, ideologia no
presente texto está presente como fonte da consciência social mediatizada pela história
ao lado dos signos, todo o estabelecimento de uma ideia é uma ideologia, em certo
sentido ela é o limite de uma consciência historicamente estabelecida.
É preciso assinalar, por um lado, as conexões que alguns sistemas novos mantêm, com os signos
sociais, mas também com a ideologia, e o significado que tal ou qual função adquire na
consciência das pessoas. Ao passo que, por outro lado, o processo de aparecimento de novas
formas de comportamento a partir de um novo conteúdo é extraído pelo homem da ideologia do
meio que o rodeia. (p.117).
Para Vigotski (1931/1996) o desenvolvimento não percorre um caminho linear e
progressivo, em que as demais funções são suprimidas, os estágios de desenvolvimento
se dão com rupturas, saltos e quedas, continuidades e descontinuidades, assim é este
complexo processo chamado história. As possibilidades do homem de uma época estão
dadas pelo seu meio, bem como a possibilidade de alterá-las, entretanto isto não
significa que ele possa ter sob ela o resultado de seu desejo absoluto, mas antes terá que
se defrontar com limites históricos da sua formação social. Recuperando Marx
(1852/2011):
Os homens fazem a sua própria história; contudo, não a fazem de livre e espontânea vontade,
pois não são eles quem escolhem as circunstâncias sob as quais ela é feita, mas estas lhes foram
transmitidas assim como se encontram. A tradição de todas as gerações passadas é como um
pesadelo que comprime o cérebro dos vivos. (p.25)
Como vivia em um período de efervescência revolucionária, de uma sociedade
que tinha seu destino em jogo em um projeto coletivo, a própria transformação social
estava atrelada à emancipação humana do trabalho alienado e a construção da sociedade
comunista, mas como materialista histórico e dialético, em oposição ao idealismo e a
uma ética transcendental, Vigotski situava a sua colaboração à psicologia em um
caminho colaborativo ao difícil caminho rumo ao máximo da autodeterminação
humana, do salto que vai do reino da necessidade ao reino da liberdade.30
30
“O reino da liberdade começa no ponto em que termina o trabalho determinado pela necessidade; (...)
ele é, pela própria natureza das coisas, exterior à esfera da produção material. O homem civilizado tem,
tal como o selvagem, que lutar contra a natureza para satisfazer suas necessidades, tem que o fazer em
todas as formas de sociedade e em todos os modos de produção possíveis; com o seu desenvolvimento,
esse reino da necessidade natural e as necessidades aumentam simultaneamente: mas as forças produtivas
que as satisfazem, essas se alargam de um modo semelhante. Neste domínio, a liberdade só pode consistir
no seguinte: o homem em sociedade, os produtores associados, determinam racionalmente essa troca
material com a natureza, submetem-na ao seu controle coletivo, em vez de serem por ela dominados
como por um poder cego; realizam-na com os esforços tão reduzidos quanto possível, nas mais dignas
condições da sua natureza humana e nas mais adequadas a essa natureza. Mas continua a substituir um
102
3.2 SISTEMAS CONCEITUAIS E IDEOLOGIA
Vigotski não aprofunda o tema da ideologia, e indica que este deveria ser
resolvido em questões posteriores, em sobre os sistemas psicológicos. No entanto, fala
abertamente em ideologia como conceito ideológico, um sistema de ideias explicativas
integrada a um conceito social que auxilia no enfrentamento de questões, como vimos
acima. É uma forma de pensar socialmente posta, o que nos leva a entender que o
conceito de ideologia, no presente texto, está mais próximo ao sentido de ideologia
como pensamento socialmente determinado do que seu sentido crítico-negativo
tradicional do marxismo.
Não é demais lembrar que este processo – da apropriação pelo indivíduo do
sistema de conceitos – não se dá de modo mecânico, ou absoluto como se formasse de
comportamentos fixos e inalteráveis na personalidade, já que, na medida em que um
conceito ideológico de uma sociedade em específico pode chocar-se com outras formas
de sociedade e outros meios de auxílio para as questões que enfrentam e assim integrar
este sistema a uma nova conceituação, processo que não é imediato, tampouco
espontâneo, mas exige todo um conjunto de atividades que modificam lentamente este
sistema. Após falar de conceitos ideológicos, tais como o sistema sonho-signo, para o
cafre, Vigotski relata um exemplo de modificação destes sistemas:
Não foi o cafre, que deu essa resposta individual, quem criou esse sistema, mas seu conceito de
sonho está integrado ao sistema conceitual da tribo à que pertence. Para eles é característica essa
atitude para com os sonhos e é assim que resolvem os difíceis problemas da guerra, da paz e
outros. Temos diante de nós um exemplo de mecanismo psicológico cuja origem é determinada
por um sistema conceitual, pelo valor que se dá a tal ou qual função. Em uma série de
interessantes pesquisas norte-americanas dedicadas aos povos semiprimitivos, vemos que à
medida que vão se familiarizando com a civilização europeia e recebendo objetos que os
europeus utilizam vão se interessando por eles e apreciando as possibilidades que oferecem.
Essas investigações mostram que no princípio os homens primitivos resistiam à leitura de livros.
Depois de terem recebido alguns simples instrumentos de lavoura e terem visto a relação entre a
leitura do livro e a prática, começaram a apreciar de outra maneira a ocupação dos homens
brancos (Vigotski, 1931/2001, pp.116-117).
Se a tendência em nossa formação é a imitação e a representação dos outros até
que tenhamos possibilidade na fase de transição de um avanço na nossa própria
autoconsciência, poderíamos apontar que a ideologia deixa marcas profundas no
psiquismo tingindo os valores dominantes como os naturais, como se encontram no
reino da necessidade. É para além desse reino que começa o desenvolvimento das potencialidades do
homem, que é por si próprio a sua finalidade, que é o verdadeiro reino da liberdade, mas que só pode
desenvolver-se, apoiando-se nesse reino da necessidade. A redução do número de horas de trabalho diário
é a condição fundamental” (Marx, 1885/1982, p. 942).
103
presente, e assim naturalizando formas de pensamento e concepções históricas de
verdade.
É importante ressaltar que esta forma cultural, justamente por não se tratar de
um limite natural, é capaz de ser transformada, e mesmo que quando o sujeito se
apropria deste sistema este não se dá por simples imposição. De algum modo, Vigotski
usa da ideologia como inescapável à formação do pensamento, ao mesmo tempo em que
abre possibilidades de superação de sua própria situação, e assim pode-se colocar
também como um crítico da ideologia, na medida em que postula que o conhecimento
sobre o psiquismo, seu respectivo domínio é um problema que deve ser colocado em
termos de liberdade e da relação unidade-todo.
Na presente conferência, Vigotski explana a respeito da gênese do pensamento
por conceitos, que fica claro na adolescência. Para o autor, as investigações daquele
período sobre desenvolvimento focavam-se demasiadamente na infância e por isso
sofreram ao longo dos anos de uma miopia científica a respeito das peculiaridades do
pensamento adolescente. Aqui Vigotski nos traz novamente seu pensamento dialético,
ao comentar que a personalidade do adolescente que neste período é marcada por uma
sólida autoconsciência em que se estabelece a transposição da ideologia ao indivíduo,
também não é forjada pelo mecanicismo.
Vigotski defende que para aderir conscientemente a um modo de ser, é
necessário que o indivíduo tenha liberdade para fazê-lo e esta liberdade não pode surgir
de uma consciência determinada rigidamente sem possibilidade de escolha, ainda que a
liberdade e as possibilidades históricas de dominar outro tipo de sistema sejam
limitadas, como é o caso do homem primitivo que não tem muitas opções se comparado
aos instrumentos disponíveis tanto para o trabalho quanto do pensamento do homem
inserido na sociedade moderna.
O pensamento por conceitos, entendido de modo dialético, postula que a palavra
pode tornar-se um conceito científico, que se transforme em toda uma estruturada visão
de mundo com esta concepção, opõe-se a estudos baseados na lógica formal, para a qual
o conceito é uma espécie de paralização do conhecimento sobre a palavra. Para
Vigotski, ao contrário, apropriar-se de um conceito é o início de uma jornada rumo a
uma coerência sistemática e enriquecedora do objeto, que pode situá-lo em hierarquias,
e adquirir as vantagens de toda uma “série de apreciações”.
Portanto, o conceito entendido também como pensamento socialmente
determinado não é uma imputação do nosso meio para o pensamento, mas antes a
104
própria possibilidade do pensamento científico. A crítica da ideologia também é
conceitual, na medida em que ela supera os limites da gênese social de um determinado
indivíduo, caso este passe pelo processo de enriquecimento do conceito rumo a um
processo de individualização, ao contrário do pensamento rígido, monolítico e regular
do conceito cotidiano/espontâneo.
Na medida em que o sujeito supera as conceituações espontâneas das quais
emerge seu pensamento, da sociedade que o forjou e passa a se relacionar com uma
visão de mundo mais enriquecida e aberta, tende a expandir a liberdade sobre si, e
conforme este domínio enriquecido for apropriado coletivamente, está aberta também a
possibilidade de transformações de todos os outros. Para Vigotski (1931/1996) a meta
da psicologia deveria ser entender a origem e as finalidades destes sistemas, não para
atribuir a eles uma catalogação fixa de etapas de desenvolvimento, mas como uma
jornada do conhecimento sobre o domínio de nossos afetos, com o objetivo de uma
unificação cada vez maior entre o indivíduo e o todo.
Podemos abstrair que, se as condições para a emancipação humana entendida
como gênero humano, da liberação da sociedade de classes e das mazelas do modo de
produção capitalista, tal como estava posto na URSS, animara Vigotski sobre a
possibilidade histórica e concreta deste domínio, e ele não estava só em bases
epistemológicas a respeito desta unidade indivíduo-todo. Cita Lewin31 e Spinoza32, o
primeiro a respeito de quando estamos diante de indivíduos que nos causam admiração
por uma grande entrega ética na vida, estamos diante de um processo em que o todo
mantêm relação com a unidade. Já ao filósofo holandês, Vigotski recorre como
inspiração para apontar a possibilidade de superar sistemas psicológicos parciais,
fragmentários e ideológicos no sentido de desenvolvimento presente e existente, para
avançar rumo a um “sistema único” que compartimentalizasse a “maior concentração de
comportamento humano”.
Este sistema psicológico “único” que consegue estabelecer íntima relação entre
o todo e a unidade, consegue concentrar as mais variadas manifestações do
comportamento em torno de um centro comum. Para Vigotski a veracidade científica da
existência do sistema único estava na vida de pessoas que superaram todas as limitações
impostas pelo meio e por sua ideologia, e tornaram a vida exemplos de busca por um
31
32
Kurt Lewin 1890-1947.
Baruch de Spinoza, 1632-1677 filósofo holandês.
105
fim comum, como uma ampla relação entre totalidade social e unidade33 superando a
fragmentação,
as
limitações
corpóreo-naturais,
transcendendo
estereotipias
e
subordinando os imperativos biológicos do nosso corpo e as estruturas psíquicas com
grau elevado de apropriação dos produtos da humanidade.
Vigotski recorre a Spinoza para demonstrar essa possibilidade, mas abdica do
naturalismo e da teologia do filósofo holandês, apegando-se essencialmente a seu
monismo filosófico, como um dos elementos críticos para fundamentar o sistema único:
Nos casos mais elevados, quando nos achamos na presença de individualidades humanas que
revelam o grau máximo de perfeição ética e a mais maravilhosa vida espiritual encontramo-nos
num sistema em que o todo mantém relação com a unidade. Spinoza defende uma teoria (que
modifico ligeiramente) segundo a qual a alma pode conseguir que todas as manifestações, todos
os estados, se voltem para um mesmo fim, podendo surgir um sistema com um centro único, a
máxima concentração do comportamento humano. (...) Para Spinoza, a ideia única é a de Deus
ou de natureza. Psicologicamente, absolutamente isso não é necessário. Mas o homem pode com
certeza reduzir a um sistema não apenas funções isoladas, mas também criar um centro único
para todo o sistema. Spinoza mostrou esse sistema no plano filosófico; existem pessoas, cuja
vida é um modelo de subordinação a um fim, que mostraram na prática que isso é possível.
Resta para a psicologia a tarefa de mostrar como verdade científica esse tipo de surgimento de
um sistema único. (Vigotski, 1931/2001, p.134)
Se a noção aqui entendida é mais “neutra” no sentido de que não denota a
palavra ideologia como um processo deformador de conhecimento em prol de interesses
classistas escusos, também não se apresenta como fenômeno desprovido de conflitos e
interesses, ou mesmo atravessado por antagonismos. A ideologia é, pois, suporte para a
formação do pensamento individual e ao mesmo tempo plataforma para a sua
superação. A ideologia, ainda que encarnada nos signos, de modo que estes não se
apresentem neutros, mas com valores não ganha vida própria autônoma, mas surge e é
reafirmada pela prática social humana, que inclui o movimento do intercâmbio orgânico
entre homem e natureza, o trabalho, as mediações complexas que se erguem a partir
deste e ainda o modo pelo qual os homens tomam consciência do papel que exercem em
certa posição na atividade social de transformação e reprodução da vida.
Enfim, é o caráter material da produção da vida que gera e situa a ideologia em
certo sistema valorativo, através das respostas dadas pelos homens, na explicação dos
seus processos de vida. Em termos mais precisos, a ideologia reproduz e muitas vezes
33
Um destes casos são os considerados “clássicos” do pensamento filosófico e político, como demonstra
Lessa (2014): “Esse processo, prático, cotidiano, de síntese superadora do passado em direção a uma nova
formação social, se reflete na teoria através de obras que realizam na esfera da ideologia o que a
reprodução social está realizando na prática. Ao assim fazer, esse esforço teórico não raramente abre
novas possibilidades, desvela novas potencialidades para a ação dos sujeitos, interferindo na luta de
classes ao mesmo tempo que é por elas determinado (em se tratando de sociedades de classe). Desdobrase uma rica articulação entre a produção teórica mais avançada e a transformação prática e cotidiana da
essência da sociedade. Pensemos no Iluminismo, em Rousseau, Voltaire, Saint-Simon etc. e a Revolução
Francesa; Locke e a e a Revolução de 1642, etc. Essas sínteses teóricas são os clássicos.” (p.52).
106
se reforça como resultado da própria atividade em que se situam as funções psicológicas
exercendo papéis estabelecidos pelas finalidades dos sistemas às quais se subordinam
estas funções e que as constituem.
Um exemplo é dado por Vigotski quando analisa um trabalho publicado em sua
época, de W. Sombart, a respeito do caráter do operário e do burguês, e como estes
seriam determinados pela biologia. O burguês seria dominado pela avareza o que
conduziria à seleção natural. A tese seria a de que no sistema capitalista sujeitos
avarentos predominam e, portanto, estes acabariam por ter posição privilegiada neste
respectivo modo de produção. Temos aqui novamente, um exemplo de espécie de
“determinismo genético” que reduz à totalidade da vida humana, individual, porém
genérica e social, a um aspecto essencialmente naturalista, do qual, obviamente haveria
pouco o que se fazer para alterá-la.
Em 1930, Vigotski aponta as contradições deste postulado, afirmando que não é
difícil encontrar por haver operários mais avarentos que alguns burgueses, mas
principalmente pela limitação epistemológica de reduzir o papel social ao caráter. Em
uma inversão que lembra a crítica de Marx aos idealistas, coloca a consciência como
resultado da atividade do ser e não como uma entidade fundante, e no caso deste estudo
comentado por Vigotski, pela seleção genética:
A essência da questão não consiste em que o papel social se deduz do caráter mas em que, a
partir deste, cria-se uma série de conexões caracteriológicas. Os traços sociais e de classe
formam-se no homem a partir de sistemas interiorizados, que nada mais são que os sistemas e as
relações sociais entre pessoas transladados para a personalidade. (Vigotski, 1931/2004 p.133).
A tarefa da psicologia, consistiria em investigar as finalidades destes sistemas,
pois são eles que subordinam e reestruturam as funções psicológicas naturais dos seres
humanos. A finalidade coloca em jogo também as relações sociais entre as pessoas,
desde modos mais “macroculturais”, como as relações sociais de produção, ou as
relações interpessoais. Pois estas situam os seres humanos em papéis específicos na
produção social da vida de forma que um indivíduo não pode ter uma personalidade
apartada de seu tempo histórico. Ao contrário, as relações sociais dominantes são
momentos expressivos de certa função e certo valor, para a personalidade. Valores que
no modo de produção capitalista são profundamente marcados pela alienação e pela
parcialidade e fragmentação entre o todo e o indivíduo, ao contrário do objetivo ao qual
a psicologia deveria servir, conforme almejava Vigotski.
Portanto, reconhecer o papel da ideologia na consciência dos indivíduos é
reconhecer ao mesmo tempo a sua inevitabilidade, quer dizer, não se forma
107
personalidade sem a integração deste sujeito à ideologia, e ao mesmo tempo a
possibilidade de transformação, cuja tarefa seria um dos objetivos da psicologia de
conduzir o homem à superação da parcialidade de suas ideologias. Nesse sentido,
Vigotski ainda que use o termo de modo mais próximo a uma cosmovisão do que a de
um fenômeno de persuasão negativo, não perde a tonalidade crítica ao salientar que a
genética do psiquismo humano, por não ser o produto de uma simples expansão da sua
forma animal, não implica em uma subjugação ao estabelecido, ao fixo e ao contínuo,
mas antes o reconhecimento científico da possibilidade histórica do sistema único, em
que as parcialidades e a fragmentação serão submetidas a uma forma mais ampla de
domínio do comportamento humano pelo homem.
A vontade individual, conforme o autor, não tem origem em si mesma, mas é
coletiva, social e interpsicológica (Vigotski, 2001, p.113). E ainda que a maior parte do
nosso tempo estejamos atrelados a pensamentos espontâneos e, esta já é uma prova
muito importante de que o homem nunca é “emoções” ou “vontades” puras,
manifestações diretas sem mediações da emoção, toda emoção é também historicamente
condicionada, mesmo em seus desígnios íntimos.
A busca de uma nova práxis revolucionária para a psicologia era certamente um
dos objetivos de Vigotski, para quem não bastava o reconhecimento em status científico
consciente da plataforma histórico-social dos nosso sentimentos, para derivar uma
compreensão idealista e passiva, mas a busca por uma psicologia humana, que não
identifique a personalidade somente com o estabelecido dominante, mas como uma
ponte entre o presente e com a possibilidade cada vez maior de um futuro mais humano
e diverso.
O que está em exposição é mais do que um possibilismo histórico, mas a
constatação de que os homens já dominam brilhantemente a sua carga natural que seria
a maior imposição e barreira para o nosso autodesenvolvimento. O problema reside em
o que é que temos feito, com quais finalidades temos exercidos estes sistemas
psicológicos culturais singulares no reino animal, ao passo que o homem avança em
passos largos quanto à dominação do trabalho, da tecnologia e das ciências, estas não
têm evitado catástrofes guiadas pela própria mão humana, tais como o aquecimento
global, as crises econômicas, os conflitos bélicos, o terrorismo e nas esferas afetivas a
presença marcante do estranhamento e da alienação do homem consigo e com seus
pares.
108
Vigotski certamente não se inclinava à formulação pessimista e irracionalista do
problema, tampouco via as transformações sociais na esfera reduzida das “interações”,
para ele a verdade sobre a personalidade deveria caminhar pari passu no domínio da
verdade sobre a sociedade. E no presente texto, as finalidades dos sistemas deveriam
então ser parte fundamental do plano da condução a uma psicologia humana:
Desejaria, baseando-me nos fatos que apresentei, expressar minha convicção fundamental: não
se trata de que as alterações se deem exclusivamente no seio das funções, mas de que existem
alterações nas conexões e na infinita diversidade de formas de estas se manifestarem; que em
determinada fase de desenvolvimento aparecem novas sínteses, novas funções cruciais, novas
formas de conexões, e que devemos nos interessar pelos sistemas e pela finalidade dos sistemas.
Parece-me que sistemas e finalidades são o alfa e o ômega de nosso trabalho mais imediato.
(Vigotski, 2001, p. 135 - grifos nossos)
Sobre os sistemas psicológicos trata de diversos conceitos centrais na teoria
histórico-cultural, de modo breve e sucinto. O trato com a ideologia está à margem dos
pontos principais da teoria dos sistemas, e – ao nosso entender – identifica-se com
algumas possibilidades que apontaremos agora.
Em primeiro lugar, entende-se aqui como elemento constitutivo da consciência,
de alguma forma ineliminável da experiência humana de assimilação cultural pelo meio.
Trata-se também de um sistema organizado de conceitos que auxiliam os homens na
resolução de conflitos complexos, da política à vida íntima, de modo que há certa
predominância de um determinado valor na ideologia, sua cor não é neutra, e a
organização que lhe corresponde não se trata de um todo harmônico, redutível por um
princípio explicativo fundamental e limitado no tocante às infinitas possibilidades do
psiquismo, quando consciente e liberto de formas conceituais de valor que não
correspondem com o domínio consciente dos afetos e das emoções, em sua
potencialidade humana.
Para tal empreendimento, o trabalho da psicologia seria garantir a veracidade
destas formulações por exemplos retirados da própria vida empírica e analisados pela
ótica da transformação social e da relação unidade e todo. Portanto a psicologia deveria
estar a serviço do coletivo e do indivíduo ao mesmo tempo. Este indivíduo, no entanto,
não é tomado como uma mônada, ou pela via epistemológica do indivíduo isolado34,
antes é visto como uma unidade contraditória mediada pelas relações sociais.
34
A elevação da individualidade como polo fundante da consciência e tomada apartada das
relações sociais é apontada por Mészáros, mais do que ideologia como também um método:
“Inevitavelmente, qualquer orientação metodológica que possua em seu cerne estrutural o ponto de vista
da individualidade isolada segue a tendência de insuflar o indivíduo – o qual, em virtude de ser o pilar de
sustentação de todo o sistema, pode apenas ser imputado – em um tipo de entidade pseudouniversal. Eis
porque as concepções dúbias de “natureza humana” – que constitui um dos mais importantes lugares
109
A autonomia intelectual que surge com nitidez na adolescência, quando
orientada para o fim do pensamento científico, pode colaborar no projeto de educação
social que culmine em relações que usufruam da multilateralidade das produções
humanas. Portanto, o estado de coisas que estabelece a permanência da injustiça, da
desigualdade e da desproporção econômica, bem como a ideologia que lhe dá suporte
não é compatível com a presença plena da liberdade desenvolvimento psicológico, é a
necessidade científica – dada a singularidade do projeto histórico-cultural – da
transformação socialista do homem.
Em segundo lugar, no campo do mapeamento dos possíveis sentidos atribuídos
ao conceito de ideologia por Vigotski e o atrelamento a alguma forma determinada de
epistemologia marxista, quanto ao trato da questão da ideologia. Dos sentidos
destacados por nós, a relação entre idealismo, materialismo e consciência e as
interpretações de ideologia como a) falsa consciência e b) como ontologicamente
determinada, Vigotski ocupa um espaço notável na segunda dimensão, deixando de lado
– ao menos nos textos em conferências com o teor aqui descrito – o uso do termo tal
como ocorria nos textos selecionados do período entre 1924 e 1929.
Vigotski lança mão do conceito de ideologia como pensamento socialmente
determinado, localizando-o em uma definição mais “sociológica” que epistemológica –
no sentido de ideias falsas e verdadeiras na ciência – e deste modo se aproxima de
perspectivas da ideologia que identificam este fenômeno como característico da própria
linguagem e da mediação social e a formação da consciência individual. Sem aqui
adentrarmos na vasta produção de Mikhail M. Bakhtin (1895 - 1975), serve-nos de
exemplo de autor que colocou a ideologia no terreno da análise do discurso, sem
também partir deste critério da verdadeira ou falsa cognição, mas ocupando-se da
natureza ideológica do signo:
Um produto ideológico faz parte de uma realidade (natural ou social) como todo corpo físico,
instrumento de produção ou produto de consumo; mas, ao contrário destes, ele também reflete e
refrata uma outra realidade, que lhe é exterior. Tudo que é ideológico possui um significado e
remete a algo situado fora de si mesmo. Em outros termos, tudo que é ideológico é um signo.
Sem signos não existe ideologia. (Bakhtin, 1929-1930/1981, p. 21).
A dimensão externa da formação da consciência que existe graças aos signos,
como a linguagem, que por sua vez encarnam relações sociais não pode existir sem a
comuns de toda a tradição filosófica (...) Não são os únicos corolários apriorísticos de determinados
interesses ideológicos, mas ao mesmo tempo são também a realização de um imperativo metodológico
inerente com vistas a elevar a mera particularidade ao patamar de universalidade” (Mészáros, 2009, p.
49).
110
ideologia, já que não surgem da espontaneidade da consciência, mas de relações sociais
já estabelecidas. Estas relações para serem significativas necessitam ser também
ideológicas. Todo pensamento sendo socialmente determinado é também formado
pela ideologia encarnada no signo que “reflete e refrata” uma realidade social
(Bakhtin, 1981).
Não é nosso objetivo aqui realizar uma análise profunda das similitudes e
diferenças entre Vigotski e Bakhtin, como já realizado por outros pesquisadores, mas
indicar a existência de uma compreensão do fenômeno da ideologia que o situa como
um limite da própria consciência humana, uma necessidade social da consciência de
banhar-se no discurso ideológico de cada época como base de suas próprias ideias e
motivações.
Vimos que o pensamento por conceitos é uma forma assentada na ideologia, mas
que abre uma via de desenvolvimento do pensamento complexo – por via da educação –
que se distancia da espontaneidade do pensamento, das representações fragmentárias ou
muito parciais, que para um domínio e explicação é necessária uma abstração de nível
superior no tocante às funções psicológicas superiores.
Assim, entendemos que, ainda que a ideologia seja um fator constituinte da
consciência individual, situando-lhe possibilidades e limites, o pensamento mediado por
conceitos, em especial os “científicos”, em toda sua “série de apreciações”, abarcaria
uma compreensão que permitiria a construção de uma visão de mundo integrada e
complexa, que superaria o sincretismo e baixo nível de abstração das representações
mais elementares da consciência.
Portanto, desenvolver o pensamento por conceitos parte da ideologia social, mas
volta a esta de modo mais enriquecido, já que o sujeito passa a ter uma relação entre a
“unidade e o todo”, mais dinâmica no reconhecimento de seus determinantes naturais e
sociais. Tal domínio permite um melhor conhecimento da realidade e uma formação
humana mais integral, voltada para o pensamento dialético que consiga apropriar-se de
unidades contraditórias do ser, estabelecer relações e conexões entre os fatos sem
recorrer à espontaneidade regida no mundo social cotidiano para suas explicações.
Ainda que a ideologia seja um fator da constituição da consciência, se a
tomarmos como o pensamento socialmente determinado, de certa forma toda elaboração
da consciência pode vir a ser ideologia. Por outro lado, levando em conta o
desenvolvimento histórico da consciência na ontogênese, se a ideologia é o ponto de
111
partida do pensamento individual, em seu início ela não pode ser um pensamento
complexo, mediado por conceitos de ordem superior do pensamento.
Pelo exposto, poderíamos indagar: Pode-se considerar a ideologia presente no
reino do pensamento espontâneo? É uma questão que deixamos, por enquanto, em
aberto, mas da qual nos aproximamos com a resposta positiva, visto que para Vigotski o
pensamento por conceitos era a chave da “fase de transição” e como veremos no
próximo texto comentado, é quando o adolescente de fato se integra a uma ideologia
(uma religião, uma arte), porque passa a praticá-la conscientemente, mediado pelo
pensamento por conceitos, que abre a possibilidade de uma via de “superação”, na
qualidade de transformação dos significados e sentidos do adolescente, já que este
enriquece a sua experiência de mundo.
A diferença entre conceitos espontâneos e os desenvolvidos ou mesmo,
científicos – reside no fato de que o conceito científico é capaz de hierarquizar relações
entre conceitos, possibilita a origem de novas relações e maneiras particulares de se
posicionar sobre um problema (Vigotski, 2001). O autor sugere ainda a importância
crucial de se considerar o conceito dentro de um sistema, que se sustente no conceito
espontâneo presente, como porta de entrada para a aprendizagem e o desenvolvimento:
Parece-nos óbvio que um conceito só pode cair sob a alçada da consciência e do controle
deliberado quando faz parte de um sistema. Se a consciência significa generalização, a
generalização significa, por seu turno, a formação de um conceito de grau superior que inclui o
conceito dado como seu caso particular. Um conceito de grau superior implica a existência de
uma série de conceitos subordinados e pressupõe também uma hierarquia de conceitos com
diversos níveis de generalidade. Por exemplo: uma criança aprende a palavra flor e pouco depois
a palavra rosa; durante um longo período de tempo não se pode dizer que o conceito “flor”,
embora de aplicação mais lata do que a palavra “rosa” seja para a criança mais geral. Não inclui
nem subordina a si a palavra “rosa” – os dois conceitos são inter-permutáveis e justapostos.
Quando “flor” se generaliza, a relação entre “flor” e “rosa”, assim como entre flor e outros
conceitos subordinados, também se transforma no cérebro da criança. Um sistema vai ganhando
forma. (Vigotski, 1934/2001, p. 263)
Vigotski chega à conclusão de que a formação dos conceitos espontâneos segue
uma via pautada em vínculos concretos e factuais, com uma linha de baixo grau de
abstração e de domínio das relações hierarquizadas entre demais conceitos. Os conceitos
científicos exigem que os alunos não só combinem e generalizem ações concretas,
pautados e determinados exclusivamente pela experiência, mas que possam discriminar,
abstrair e isolar elementos, além de potencializar a habilidade de examinar elementos
fora da situação concreta que estão inseridos e assim colaborar com a tomada de
consciência dos mesmos sobre um dado da realidade:
112
Poderíamos dizer que a força dos conceitos científicos se manifesta naquele campo inteiramente
determinado pelas propriedades superiores dos conceitos, como tomada de consciência e a
arbitrariedade; é justamente aí que se revelam a fragilidade dos conceitos espontâneos da
criança, que são fortes no campo da aplicação espontânea circunstancialmente conscientizada e
concreta, no campo da experiência e do empirismo. O desenvolvimento dos conceitos científicos
começa no campo da consciência de da arbitrariedade e continua adiante, crescendo de cima
para baixo no campo da experiência pessoal e da concretude. O desenvolvimento dos conceitos
espontâneos começa no campo da concretude e do empirismo e se movimenta no sentido das
propriedades superiores dos conceitos: da consciência e da arbitrariedade. O vínculo entre o
desenvolvimento dessas duas linhas diametralmente opostas revela indiscutivelmente a sua
verdadeira natureza: é o vínculo da zona de desenvolvimento imediato e do nível ”atual” do
desenvolvimento. (Vigotski, 2000, p.350)
A tomada de consciência e a arbitrariedade do pensamento são exemplos de que
a apropriação do pensamento por conceitos não se restringe às propriedades cognitivas,
mas acaba por atuar em toda a conduta dos seres humanos. Se é do meio social que
extramos a ideologia (Vigotski, 1931/2000) é de onde extraímos os nossos
pensamentos, estes podem galgar níveis de desenvolvimento de modo a lidar com mais
consciência de seus determinantes sociais e atuar na transformação desta mesma
realidade que lhe constitui.
O texto comentado a seguir também se posiciona quanto à ideologia e a
formação do pensamento na adolescência e contribui para a complementação da relação
entre ideologia, sistemas conceituais e formação da consciência na adolescência.
Exporemos suas contribuições de modo à complementar a exposição deste último
capítulo e delinearmos uma conclusão sobre a ideologia no recorte cronológico de 19291931 dos textos selecionados de Vigotski.
Seguindo a ordem cronológica exposta, a palavra ideologia aparecerá no capítulo
10 da obra “Psicologia do adolescente”, publicado parcialmente na edição espanhola das
Obras Escogidas, intitulado: O desenvolvimento do pensamento do adolescente e a
formação de conceitos. Novamente a palavra ideologia surge em um texto que o estudo
dos conceitos ocupa lugar proeminente, e mais uma vez, esta não está ligada a um
sentido crítico-negativo, mas no sentido de formações ideológicas do mundo social.
Isto não impediu que Vigotski encontrasse na psicologia de sua época, noções de
ideologia que não coadunavam com a sua posição teórica. Isto se deu porque alguns
autores, ainda que considerassem relevante o papel de uma ideologia social estabelecida
na formação da consciência humana, tendiam a relegá-la um papel demasiado neutro
neste processo de assimilação. O enraizamento do homem com o seu meio era
corretamente visto como inevitável, como o próprio húmus da consciência humana, mas
era insuficiente para explorar a sua dinâmica concreta, como é o caso da formação da
ideologia de classes na adolescência ou ainda a existência de crises diversas no processo
113
ontogenético de desenvolvimento entre a criança e o mundo social. (Vigotski,
1931/1996)
Para Vigotski (1931/1996) essa vinculação era um processo de desenvolvimento
complexo, em que a forma e o conteúdo passam por um processo paulatino de
transformação. Neste processo não só se alteram a forma e o conteúdo do pensamento,
como a própria conduta do indivíduo. A adaptação do indivíduo ao meio em termos de
ideologia social e sua internalização são frutos do entrelaçamento entre filogênese e
ontogênese. Se o individuo é capaz de se relacionar com os problemas superiores do
homem, como os são os de ordem ética, científica, religiosa, são porque este se
relaciona com mecanismos de pensamento que são produtos do desenvolvimento
cultural do mesmo, sem estes mecanismos não poderia haver o próprio enraizamento.
A diferença de Vigotski, neste sentido, para as outras perspectivas, é que apesar
de admitir, como as outras, que em toda formação da consciência individual ocorre esta
relação, assume que em cada etapa histórica, o indivíduo está circunscrito a
determinadas formas de pensamento socialmente condicionado, e esta diferença
histórica não permite equivaler os mecanismos de pensamento e a dinâmica ideológica
do homem como um processo metafisicamente constante e presente, invariável
historicamente ou ainda como subproduto de regulações mecânicas entre meio e
indivíduo.
A crítica de Vigotski volta-se ainda à ideia presente na psicologia de sua época,
de que na adolescência o pensamento não passaria por mudanças significativas se
comparada à mentalidade infantil, sendo uma espécie de expansão desta, mais do que de
mudanças qualitativas na forma e no conteúdo. O autor aponta que mesmo perspectivas
que defendiam a clara diferença entre a psique infantil e a de um adolescente recaíam no
equívoco de considerar nulas as mudanças substantivas do pensamento.
Focando-se no pensamento por conceitos, Vigotski demonstra que este tipo de
pensamento não pode ocorrer na criança, pois, trata-se de um domínio lógico, uma
linguagem própria que não é acessível ao pensamento infantil tornando-se possível
somente na “idade de transição”. Tais teorias recorriam em parte à ideia de que a cultura
interfere nas mudanças ocorridas nesta fase do desenvolvimento, mas isto deveria em
parte, à própria cultura, atuando em nós e não porque as leis do pensamento sofreriam
grandes mudanças. Assim, a psicologia investigava as mudanças nas “ideologias
incipientes” no desenvolvimento do adolescente, tais como as ideias éticas e religiosas,
mas não eram suficientes no ponto de vista de Vigotski, já que estas teorias por um
114
lado, consideravam a mudança no conteúdo do pensamento um processo cultural, mas
os mecanismos destas transformações mesmo eram relegados às instâncias biológicas:
Consideravam sempre que a evolução do conteúdo do pensamento era um processo de
desenvolvimento cultural, histórico e socialmente condicionado, enquanto que o
desenvolvimento das formas de pensamento se analisava como um processo biológico,
determinado pela maturação orgânica da criança paralela ao peso do cérebro. Coube dizer que a
ruptura entre forma e conteúdo provém indefectivelmente de semelhante suposição. Quando
falamos do conteúdo do pensamento e de suas transformações, nos referimos a uma magnitude
historicamente variável, socialmente condicionada que é produto do processo de
desenvolvimento cultural. Quando falamos das formas do pensamento, de sua dinâmica, nos
referimos habitualmente com o teor dos erros da psicologia tradicional, seja com as funções
psíquicas estáticas, metafisicamente, bem como formas orgânicas condicionadas
biologicamente. (Vigotski, 1931/1996, p.32, tradução nossa)
Como vimos já na discussão anterior sobre os sistemas psicológicos, Vigotski
aqui demonstra que o desenvolvimento das funções psicológicas superiores são
produtos socialmente condicionados e dizem respeito ao domínio histórico do
comportamento, sendo este domínio de origem cultural e materializado no uso de signos
e instrumentos, ele não pode ser redutível ao aparelho biológico e tampouco a ideologia
pode ser considerada expansão deste aparelho ou do cérebro tomado isoladamente.
Assim, Vigotski demonstra considerar a ideologia como pensamento socialmente
determinado, mais do que o simples fato de que se mudam os interesses da criança e do
adolescente. É a natureza modificada das atividades da criança comparadas com as do
adolescente, em seu meio social, impostas pelos papéis que este último realiza no meio,
as suas novas conexões, e a capacidade de pensar por conceitos, que o coloca numa
instância qualitativamente mais rica que a da criança:
O novo conteúdo, ao colocar para o pensamento do adolescente toda uma série de tarefas, o
impulsiona para novas formas de atividade, novas formas de combinação das funções
elementares, a novos modos de pensamento. Como veremos mais adiante é precisamente na
idade de transição quando o novo conteúdo cria, por si mesmo, novas formas de conduta,
mecanismos de tipo dos quais falaremos no último capítulo. O passa para o pensamento por
conceitos abre ao adolescente o mundo da consciência social objetivo, o mundo da ideologia
social. (Vygotsky, 1931/1996, p.)
Vigotski está ciente de que esta ideia encerra uma aparente contradição, como a
consciência individual banha-se na ideologia desde sua gênese, mas somente na
adolescência é que se abre o “mundo da ideologia social”? Não se trata de que a criança
não estivesse envolta nas ideologias desde cedo, mas do fato de que a criança está mais
próxima da imitação, de traços sem muita consciência de determinadas posições e, por
isso mesmo, pouco atua voluntariamente na assimilação e reprodução das ideias da vida
social:
O conhecimento no verdadeiro sentido da palavra, a ciência, a arte, todas as esferas da vida
cultural podem ser assimiladas tão somente por conceitos. É certo também que a criança
115
assimila verdades científicas e compenetra-se com uma determinada ideologia, que se enraíza
em diversos campos da vida cultural, mas a criança assimila tudo isso de maneira incompleta,
não adequada: ao assimilar o material cultural existente porém não participa ativamente da sua
criação.(Vigotski, 1931/1996, p.40)
O fato de o adolescente pensar por conceitos, ainda que estes sejam incipientes,
coloca-o como protagonista de um vínculo que toma para si uma dada ideologia social.
Uma criança pode ter crescido na igreja, por exemplo, mas somente na adolescência ela
poderá explicar e compreender com mais precisão a ideia de Deus e sua relação com
ela, bem como encontrar o seu lugar e seu modo de se relacionar com esta crença, que
de maneira alguma é um processo estanque e acabado, ao contrário, esta “tomada de
consciência”, o terremoto que o pensamento por conceitos pode causar na adolescência
são repletos de momentos de crise. (Vigotski, 1931)
A atuação ativa na ideologia de classes seria resultado do próprio processo de
desenvolvimento do pensamento por conceitos que está atrelado às mudanças ocorridas
nas funções e nas atividades práticas do adolescente, diante do mundo social. Disto
decorre que a participação do adolescente se torna consciente, o que não quer dizer de
forma alguma que seja plenamente consciente ou autônoma no sentido de um alto grau
de liberdade do pensamento. Ao contrário, e citando Schiller35, Vigotski faz uma
ilustrativa comparação; não é porque o adolescente pensa por conceitos e, por sua vez,
estes o impulsionam a participar no mundo das ideias da vida social que ele seja um
conceito científico, de alto grau de elaboração filosófica, mas, assim como para a
criança, o seu berço é o seu mundo inicial, “representa tudo”, o adolescente vê o mundo
de uma perspectiva também em termos de recém-descoberta.
Quando o adolescente atua na ideologia social do meio ativamente é quando
ocorre de fato um posicionamento ideológico, e é o caso da própria “ideologia de
classes”, em que Vigotski argumenta a favor de que apenas na adolescência ela tomará
papel claro, visto que as crianças ficariam mais influenciadas pela repetição. Ao passo
que mesmo na adolescência, uma ideologia, como a de classes se forma “pouco a
pouco”, seu pleno desenvolvimento dependerá da atividade do adolescente na
ampliação das suas relações sociais e na complexificação de seus papéis e posições na
“produção social”.
A transformação fundamental do meio consiste, como bem assinalou Blonski, em sua
ampliação, em uma participação maior na produção social. É aqui que no conteúdo do
pensamento está antes de tudo representada pela ideologia social, relacionada com um ou outro
lugar da produção social. Segundo Blonski, a psicologia de classes tampouco se forma de
imediato, senão que desenvolve pouco a pouco. Na adolescência, quando o indivíduo ocupa ou
35
Friedrich Schiller 1759 – 1805, poeta, filósofo e historiador alemão.
116
bem se dispõe a ocupar em breve outra posição na produção social é quando esta chega a seu
pleno desenvolvimento. (Vigotski, p.41 1931/1996)
A ideologia social chega em seu pleno desenvolvimento quando o adolescente
passa a exercer funções na produção social, colocando- em lugares específicos na esfera
produtiva, esta função ativa para o autor não poderia ser exercida se o pensamento do
adolescente tivesse predominância do sincretismo, ou do pensamento por complexos. O
conceito tem a capacidade de hierarquizar conhecimentos distintos e reconhece-los
como úteis na prática, e é a própria complexidade da vida social na qual o adolescente
está inserido que impulsiona o seu desenvolvimento, esta vinculação ativa não poderia,
segundo Vigotski sustentar-se com as malhas do pensamento infantil.
Vigotski criticava ainda alguns estudos que defendiam a tese de que o
pensamento do adolescente é essencialmente metafísico. Para ele, este é um exemplo
claro da ausência da compreensão do conceito como mediação dos vínculos em que o
adolescente se insere, que abre possibilidades de transformações na forma e no
conteúdo do pensamento, o que impossibilitaria a constatação de que o pensamento do
adolescente é em essência metafísico. Segundo o autor, tal postulado sustenta-se em
concepções inatistas e em recortes genéticos que entendem as fases do desenvolvimento
da adolescência como etapas diferentes, umas das outras mas sem nenhuma
continuidade ou descontinuidade, via “recortes” em fases com características
incomunicáveis entre uma e outra.
A capacidade de abrir uma “série de apreciações” possibilitadas pelo
pensamento por conceitos abre a possibilidade de uma via de desenvolvimento e que na
fase de transição tem caráter inicial. Essa ideia é importante porque o nível baixo de
pensamento “dialético” na adolescência não se trata, como queriam alguns concepções
tradicionais vigentes, do caráter instintivo do pensamento nesta fase, mas da própria
estrutura e gênese do pensamento dialético, que corresponde à uma etapa de
desenvolvimento do pensamento humano como um todo, e em um grau complexo da
consciência filosófica humana de forma tal que para um recém-chegado no mundo das
“ideologias sociais” estabelecer um pensamento dialético, isto é, que realize sínteses
entre contradições, seja autocrítico e supere a si mesmo via incorporação da história,
coincide com o desenvolvimento do pensamento espontâneo para o pensamento por
conceitos.
117
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Figura 1: Quadrinhos dos anos 10 de André Dahmer.
Ao longo da dissertação expusemos os resultados de nossa pesquisa
bibliográfico-conceitual. Buscamos alcançar o objetivo geral de “discutir a temática da
ideologia a partir das concepções clássicas de K. Marx e F. Engels e do entrelaçamento
desta com escritos selecionados sobre a temática, o psicólogo bielorusso L. S.
Vigotski”. Este se desdobrou nos objetivos específicos: a atualidade da relação
psicologia e ideologia no âmbito da discussão entre verdade científica e ideologia, a
influência das concepções marxianas de ideologia nas formulações de Vigotski e por
último apreender a dinâmica do conceito de ideologia na obra deste autor em sua
singularidade, em especial quando tomada à ausência de uma sistematização sobre o
mesmo se comparada com outras áreas da Psicologia no Brasil que tomam o homem
como objeto socialmente constituído.
Buscamos com este trabalho trazer à tona o conceito de ideologia tal como ele é
utilizado por Vigotski ao longo de sua obra através de textos selecionados. O objetivo
foi de realizar conexões com as premissas do materialismo histórico-dialético, tendo
como base textos de Marx e Engels que versassem a respeito da ideologia, direta ou
indiretamente, com o intuito de verificar a influência destas na estruturação teórica do
psicólogo bielorrusso.
Partindo do princípio de que não há um consenso delimitado claramente quanto
o significado do conceito no marxismo, sendo inclusive, objeto de muita controvérsia,
buscamos adentrar o universo desta tensão, a partir da orientação de que duas grandes
linhas se distendem das reflexões marxianas sobre a ideologia. Uma, toma a ideologia
118
em critérios de verdade ou falsidade, além de identificar a ideologia com fenômenos
essencialmente negativos e, portanto, entendendo a ideologia criticamente. A segunda
preocupa-se com a ideologia em termos mais “sociológicos” que “epistemológicos”
para utilizar a expressão do crítico literário que orienta este recorte aqui adotado, o
britânico Terry Eagleton.
A característica da segunda linha seria a de preocupar-se mais com as funções e
valores da ideia na consciência do que entender a ideologia como um fenômeno que
atua no processo de conhecimento e mesmo toma a consciência como invertida em
relação à sua gênese materialmente determinada e insufla a capacidade da consciência e
de seus produtos teóricos na transformação da realidade. Diante dessas duas definições,
indagamo-nos se Vigotski, como partilhante do materialismo histórico-dialético e do
marxismo de uma forma geral, também herda algum tipo de tensão sobre o conceito de
ideologia.
Tendo em vista que se trata de um fenômeno no qual a tradição marxista
debruçou-se e se debruça ostensivamente, não se trata de uma dimensão desprezível da
reflexão marxiana sobre a consciência, o que interfere diretamente nos objetos
estudados pela psicologia, inclusive os estudados por Vigotski. Portanto, tentamos ao
longo da dissertação, percorrer esta tensão na obra do autor, e da qual retiramos uma
distinção entre pelo menos duas formas de adotar a ideologia em seu sistema teórico,
que condizem com as duas correntes que cruzam a reflexão de Marx e Engels.
Para melhor explicitar essa conexão entre os textos marxianos e os de Vigotski,
explicitamos as concepções clássicas de ideologia conforme o pensamento dos
revolucionários alemães, tendo como foco o texto, A Ideologia Alemã, mas perpassando
em outros, a fim de demonstrar a amplitude que o conceito perpassa à pena de Marx e
Engels.
Da análise a respeito das teses clássicas, chegamos a algumas constatações: A
ideologia atua na percepção e na formação da consciência. Está ligada à inversão dos
poderes e processos humanos que tomados como coisa, passam a comandar seus
agentes. Ela é a condição de uma sociedade em que prevalece a divisão social do
trabalho. Neste sentido há um entrelaçamento entre ideologia, alienação e consciência.
Discutindo a possibilidade da definição da “falsa consciência” – muitas vezes
considerada a interpretação canonicamente marxista - ser a definição necessária de
ideologia, bem como restrição deste conceito a uma definição crítico-negativa. Nesta
119
toada destaca-se que o significado de ideologia vai desde os fenômenos ligados à
inversão da consciência até formas ideológicas advindas da superestrutura econômica,
ambas são expressões da consciência em sociedades de classes.
A ampliação do conceito de ideologia permite ainda identificá-lo com uma
interpretação que o entende como dimensão da consciência humana atrelada ao
pensamento socialmente determinado. Como toda consciência surge e situa-se em uma
condição histórica e socialmente delimitada, a ideologia seria um fenômeno necessário a
reprodução social e ao pensamento em sua constituição genética. Esta constatação levanos até a interpretação de ideologia mais preocupada com as funções e os valores da
mesma, suas particularidades históricas que a sua atuação negativa na consciência.
Desse modo partimos para a análise dos textos de Vigotski com o intuito de
conectá-los aos pressupostos marxianos tanto quanto delinear as contribuições do
próprio à temática da ideologia. Deste intuito constatamos que nessas duas linhas de
intepretação aqui destacadas, é possível encontrar uma incidência maior da primeira
linha nos textos iniciais, isto é, da ideologia enquanto conceito crítico-negativo e a
segunda linha ou sua versão “ampliada” nos textos datados da fase final da obra de
Vigotski.
A partir da tese que de Vigotski utiliza da ideologia tanto no sentido críticonegativo quanto como sistema conceitual ou pensamento socialmente determinado,
identificamos que essas diferenças são recorrentes em um período cronológico
delimitado, isto é, a primeira noção é mais debatida pelo autor entre 1924 e 1927 e a
segunda, a partir de 1929 até 1931. O segundo capítulo ocupou-se do primeiro período,
e sucintamente, as conclusões que ele oferece são as de que neste primeiro intervalo
selecionado, a ideologia para Vigotski, consistiu em três pontos principais:
O primeiro, como conceito crítico da universalização de um princípio particular
na psicologia, o segundo, como um fenômeno inerente à sociedade de classes que atua
como negação da ciência, mas nem por isso, menos eficiente, ou com momentos de
verdade e por último, o conjunto de representações usuais e teóricas que se ligam a
problemas da realidade material e relações sociais que as correspondem, bem como a
necessidade da ciência para o conhecimento destas relações sociais, que para sua
superação exige transformações das relações de trabalho e propriedade, vide a natureza
prática social da ideologia, sendo que esta é mais do que uma imposição ou discurso
bem-sucedido, mas antes um fenômeno inerente a divisão social do trabalho. A
120
ideologia é, portanto, o oposto da ciência e a sua existência é essencialmente negativa
quanto ao conhecimento da dinâmica da realidade e de suas relações sociais e como
possibilidade da superação do atual estado de “crise” da psicologia, para qual Vigotski
colocava a necessidade da dialética da psicologia e de seu objeto, o homem.
O terceiro capítulo versou a respeito de textos em que a “ideologia” deixa de
denotar uma carga essencialmente crítica-negativa e passa a exercer uma função mais
“sociológica”, exatamente como sistema conceitual socialmente determinado pelo qual
as ideias desempenham funções e valores. A primeira aparição desta noção ocorre em
Psicologia concreta do homem, também conhecido como Manuscrito de 29. E será mais
bem explicitada na conferência sobre “Os sistemas psicológicos”, confluindo na
abordagem entre ideologia social e pensamento por conceitos.
Ao estudar o pensamento do adolescente, Vigotski faz criticas concepções de
psicologia que admitiam a adesão do adolescente em ideologias sociais (religião e
política) sem admitir que ocorresse uma profunda transformação na forma e no
conteúdo do pensamento. Não se tratando, de uma simples “elevação” da criança para o
adolescente, mas de um processo repleto de crises, continuidades e descontinuidades,
que abrem novos patamares de desenvolvimento contínuo. O início do desenvolvimento
que começa na infância permite que na “fase de transição” homem possa pensar por
conceitos.
Os conceitos integram-se em sistemas complexos, abrem a possibilidade da
estruturação de uma visão de homem e de mundo, a partir de uma “série de
apreciações”. Vigotski considera ainda que, a interferência consciente do adolescente
na ideologia social consciente e eu um nível qualitativamente superior que o da criança,
que essencialmente repete e reproduz o pensamento socialmente estabelecido. Isto,
porém, não implica total consciência do adolescente a respeito da ideologia vigente,
sendo inclusive característica deste pensamento uma “dialética” que é rudimentar.
Assim como em Marx, para quem “todo começo é difícil em qualquer ciência”.
Vigotski situa o pensamento do adolescente como precário quanto a uma complexa
consciência filosófica e, portanto, potencialmente influenciável às ideologias
dominantes da sociedade. No entanto as superações destas concepções espontâneas
tornam-se possíveis via conhecimento científico da qual a psicologia deveria ocupar-se
na compreensão e intervenção para a apropriação cada vez mais rica do conhecimento
científico e do mundo por vias pedagógicas.
121
Disto decorre a relação entre ideologia e conceito espontâneo, que por vezes é
um comportamento não consciente na medida em que é a forma social predominante
que reproduzimos. Mas o pensamento é capaz de estabelecer – sempre – um maior
conhecimento sobre si, e o conceito científico é uma destas vias, visto que têm entre
suas características a arbitrariedade da consciência sob o objeto.
Por sua vez, entendemos que as práticas educativas, especialmente pelas
instituições escolares que detêm esta finalidade em sua razão de ser, podem tornar-se
aliadas na construção de novos sujeitos humanos, visando uma educação com amplo
grau de humanização, no sentido de apropriação.
E assim produzir diretamente e
intencionalmente a humanidade em cada indivíduo. (Saviani, 1984)
Voltando a problemática do deste autor dos seus pressupostos marxistas visando
seu adestramento nas pedagogias neoliberais, ressaltam o “poder da ideologia”, visto
que esta redescoberta do autor, torna-o um “ilustre desconhecido”, já que não se trata
de um “retorno aos clássicos” de modo honesto, buscando a precisão semântica e
contextual, mas antes um “modelo” adaptado às condições econômico-políticas do
Ocidente contemporâneo.
Este é um exemplo de como a própria obra de Vigotski foi atingida pela
ideologia e neste sentido explicitar o uso deste conceito como negatividade no sentido
de uma ideia que não auxilia no avanço da compreensão real, mostra-se atual,
especialmente colocando que, a superação das ideologias não se fixa no terreno
propriamente teórico ou gnosiológico, mas deve ser ligado à própria práxis
transformadora da realidade social e também da própria prática psicológica. Isto é,
enquanto a psicologia permanecer aliada de interesses e ideologias dominantes mais do
que ressaltar e auxiliar os homens na construção consciente de seus projetos – como a
educação – permanecerá uma ciência dilacerada por conflitos, tal como situação
diagnosticada por Vigotski.
Um dos limites foi o de não realizar – pela natureza desta pesquisa e limites
objetivos - um balanço rigoroso enquanto uma reflexão que privilegiasse o método de
Vigotski diante da situação da Psicologia enquanto ciência na atualidade, de forma
ampla, mas acreditamos que foi possível demonstrar que os mecanismos da ideologia –
que relembramos não são redutíveis a seus aspectos “falsos” – estão ainda presentes,
visto que estamos sob a égide de uma sociedade em que a ideologia ainda cumpre um
122
importante papel organizativo na reprodução social, já que ainda persiste
a divisão
social do trabalho mediada pela propriedade privada.
Isto é, os fenômenos da alienação, tanto na esfera econômica e do trabalho
permanecem – com as transformações dentro do próprio capitalismo – quanto seus
reflexos na consciência dos homens sobre si e sobre seus poderes criativos. Neste
sentido, consideramos a ideologia um tema sempre “a sombra” da qual a autocrítica de
uma psicologia que se queira compreender e intervir no homem em sua concretude deve
sempre estar atenta. Tornar-se ideológico é um processo que mesmo a ciência não está
imune.
A necessidade contínua da análise da psicologia enquanto ciência e a sua relação
com a ideologia ainda nos dias de hoje, se inspirados em reflexões vigotskianas,
englobaria uma autocrítica que necessita incorporar conhecimentos e superá-los de
modo dialético, via incorporação, e não meio uma rejeição abstrata que toma toda a
manifestação ideológica como algo necessariamente ilusório, ou falso.
Vigotski demonstrou que a ideologia é mais complexa que a simples ilusão,
como quando a ideologia é tomada como este cerne unificador de significados e valores,
o que nos permite levantar objeções à concepções espontâneas de ideologia que
acreditam que apelos à consciência, bem elaborados, podem por si só – resgatar as
pessoas da alienação – como esta não fosse uma demanda a longo prazo, ligado aos
determinantes mais gerais do trabalho, e em suma com todas as condições econômicas e
culturais de uma época, tais como as educativas. Conforme os críticos aqui estudados,
ouve uma certa predominância de um conceito de ideologia que visava instalar uma
ciência oficial, monolítica e impossível de se tornar ideológica, vimos com Marx,
Engels e Vigotski que estão não é uma questão teórica, tão somente, mas pode
começar a ser resolvida quando entendermos as finalidades e os sistemas que existem
para explicar o nosso meio, e como caminhar para uma superação.
Portanto, o conceito de ideologia de Vigotski, partilhante da tensão aqui exposta,
dificilmente pode ser tomado em uma definição unívoca, da qual bastaria os psicólogos
apropriarem-se e definir uma forma mais adequada de ação. Ao contrário, a riqueza do
conceito pode auxiliar o psicólogo em ambas as tarefas que condizem com os sentidos
diversos aqui encontrados na obra deste autor: quando for necessário apontar os limites
da ideologia no pensamento científico, tanto quanto investigar quais sistemas de valor
estão em jogo em uma dada consciência ou representação social.
123
É claro que estamos longe de esgotar o tema, uma investigação ainda mais
aprofundada poderia investigar, por exemplo, tanto as condições materiais que
circundavam a temática da ideologia em autores cujas obras e conceitos nortearam ou
subsidiaram as elaborações de Vigotski, bem como as condições materiais de seu
surgimento. Isso exigiria, pois, uma investigação sobre o que significava falar de
ideologia na Rússia e na posterior União Soviética naquele período pós “Levante” de
1905, Primeira Guerra Mundial (1914-1918) e Revolução Russa (com seus
desdobramentos de fevereiro e outubro de 1917) com tudo o que essas lutas e embates
implicavam na sociedade como um todo (economia, cultura, e outras áreas da vida
societária) e para os sujeitos que protagonizavam conscientemente ou não aquele
enredo.
É importante saber com quais tipos de natureza de problema lidavam, e na figura
de quais principais autores eles se expressavam, para avançarmos em uma investigação
sobre em que Vigotski assemelha-se e se diferencia dos pensadores de sua época, ainda
mais minuciosamente, já tendo em vista uma contextualização mais ampla para tal
debate. Entretanto, ponderamos que se isso não foi possível pela natureza da atual
formação (mestrado acadêmico), entendemos que o trabalho desenvolvido até o
momento revela-se como um ponto de partida, visto que não encontramos matéria cujo
objeto fosse semelhante ou próximo ao nosso. Assim, a investigação feita já nos
permitiu o levantamento de pistas ou caminhos que foram sendo indicados.
Vigotski oferece muitas reflexões sobre a superação da ideologia seja qual for à
maneira que a entendemos, se dentro do debate epistemológico e filosófico na
constituição da psicologia enquanto ciência e na ação e limites da consciência burguesa
nesta ciência, seja através da necessidade do estudo e ensino do pensamento por
conceitos como forma capaz de avançar de fato na compreensão dos fenômenos do
mundo ou na constituição de sujeitos capazes de posicionarem-se com uma consciência
cada vez mais ampla e crítica sobre os seus processos sociais de constituição e modos
de transformá-los.
Portanto, concluímos que Vigotski não está interessado somente em descrever,
ou descobrir quais os sentidos sociais que formam a vontade individual, mas encontrar
condições de superação dos mesmos, sendo esta também tarefa da psicologia do novo
homem. E na medida em que uma ideologia nunca é desligada de interesses e de
determinações mais gerais, como as econômicas e culturais, salientamos que toda
124
formação social está exposta a uma ideologia dominante. Para Vigotski, esta tarefa da
psicologia operaria como conhecimento científico, e todo conhecimento deve ser
transformador ao unir teoria e prática. Assim, pode-se afirmar que os avanços do
conhecimento sobre o homem e a necessidade da autocrítica de nossos projetos devem
caminhar pari-passu. O que Vigotski indica é que, toda ideia sedimentada, cristalizada,
ainda que de alto nível, pode transformar-se em ideologia e, ainda, que podemos
acostumar-nos com a forma dominante de resolver nossas questões.
Com base no estudo realizado, podemos avançar na criação de sistemas
conceituais que ampliem o entendimento do homem sobre si e sobre a sociedade de
modo científico, subsidiados por uma concepção que unifique teoria e prática e que
tenha relação de diálogo (não de cooptação), com os conhecimentos científicos já
elaborados, mas de modo a superá-los qualitativamente. Isto implica em, incorporá-los a
um movimento mais geral da psicologia que abarque a totalidade na delimitação do
objeto que lhe é próprio, no modo de desvendá-lo e que não reduza as explicações a
respeito do mesmo a princípios particulares, tal como a tônica da crítica da ideologia
nos textos iniciais de Vigotski aponta.
A superação da ideologia seja ela abertamente conflitiva e interessada, ou uma
forma sedimentada de estruturar as ideias, devem estar sempre no horizonte do
profissional e do educador, visto que, se a consciência está exposta à ideologia – em
qualquer dos sentidos – tomar consciência dela é um passo para a resistência às ideias
dominantes do status quo, e que no enfrentamento diário nas instituições como escolas e
clínicas, associações de trabalhadores, espaços sociais, o trabalho do psicólogo não está
imune, daí a necessidade contínua da autocrítica e da qual este trabalho coloca-se como
uma colaboração inicial, e oferece-se à apreciação dos leitores e interessados em Marx,
Vigotski e a ideologia.
125
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