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Sobre Psicologia e Ideologia na obra de L.S. Vigotski

Dissertação de mestrado que discute o conceito de ideologia para a tradição marxista e a influência de tais definições em textos selecionados do psicólogo soviético L.S. Vigotski. Parte das concepções iniciais de Marx e Engels quanto a crítica do idealismo, da alienação e do fetichismo da mercadoria até a polêmica entre a definição de falsa consciência e a dimensão ontológica da ideologia. Busca relacionar essa tensão com duas definições de ideologia do psicólogo soviético: uma crítica negativa que vai de 1924 à 1927 e a de ideologia enquanto sistema conceitual socialmente determinado, expondo uma ampliação do sentido do fenômeno, bem como de suas proposições para superá-lo.

UNIVERSIDADE ESTADUAL DE MARINGÁ CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES DEPARTAMENTO DE PSICOLOGIA PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA RAFAEL IGLESIAS MENEZES DA SILVA Sobre Psicologia e Ideologia na obra de L.S. Vigotski. Maringá 2015 RAFAEL IGLESIAS MENEZES DA SILVA Sobre Psicologia e Ideologia na obra de L.S. Vigotski Dissertação apresentada ao Programa de PósGraduação em Psicologia do Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes da Universidade Estadual de Maringá, como requisito parcial para obtenção do título de Mestre em Psicologia Área de concentração: Constituição do Sujeito e Historicidade. Orientadora: Profa. Dra. Sônia Mari Shima Barroco. Maringá 2015 RAFAEL IGLESIAS MENEZES DA SILVA Sobre Psicologia e Ideologia na obra de L.S. Vigotski. Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Psicologia do Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes da Universidade Estadual de Maringá, como requisito parcial para a obtenção do titulo de Mestre em Psicologia. BANCA EXAMINADORA Profa. Dra. Sônia Mari Shima Barroco PPI/Universidade Estadual de Maringá (Presidente) Profa. Dra. Zaira Fátima de Rezende Gonzalez PPI/Universidade Estadual de Maringá Profa. Dr. Nilson Berenchtein Netto Universidade Federal dos Vales do Jequitinhonha e Mucuri Aprovada em: 19 de fevereiro de 2015 Local da defesa: Sala 10 do Bloco 10, campus da Universidade Estadual de Maringá. Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Biblioteca Central - UEM, Maringá, PR, Brasil) S586s Silva, Rafael Iglesias Menezes da Sobre psicologia e ideologia na obra de L.S. Vigotski / Rafael Iglesias Menezes da Silva. -Maringá, 2015. 131 f. : il. color. figs. Orientadora: Prof.ª Dr.ª Sônia Mari Shima Barroco. Dissertação (mestrado) - Universidade Estadual de Maringá, Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes, Programa de Pós-Graduação em Psicologia, 2015. 1. Vygotsky, Lev Semenovich, (1896-1934). 2. Teoria histórico-cultural - Vigotski. 3. Psicologia do desenvolvimento. 4. Ideologia política. 5. Materialismo Histórico Dialético. I. Barroco, Sônia Mari Shima, orient. II. Universidade Estadual de Maringá. Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes. Programa de Pós-Graduação em Psicologia. III. Título. CDD 21.ed. 153.3 MN-001705 Para meus pais: Arlene e Evanildo. AGRADECIMENTOS Em primeiro lugar agradeço aos meus pais e a minha família pelo apoio incondicional afetivo e material que proporcionaram ao longo dos anos de graduação e mestrado. Sem vocês, teria sido tudo muito mais difícil e talvez impossível. A Professora Dra. Sônia Mari Shima Barroco pela confiança depositada em mim e neste projeto que passou por muitas reviravoltas até se concretizar e cujo suporte foi fundamental. As professoras participantes da banca de qualificação: Dra. Silvana Calvo Tuleski e Dra. Marli Zibetti, pelas preciosas considerações no exame de qualificação, que alteraram significativamente os rumos da pesquisa, sendo um auxílio de muita valia para os resultados obtidos e expostos neste trabalho. Aos professores que se dispuseram a compor a banca de defesa de dissertação: Dra Zaira Leal e ao professor, e especialmente amigo, Dr. Netto Berrenchtein, que me honraram com a presença na defesa e com a qualidade dos questionamentos e sugestões, permitindo uma imensa colaboração em minha formação tanto acadêmica, mas também humana. Aos amigos do Grupo de Estudos em Psicologia Histórico-Cultural (LAPSIHC/UEM), pelos dois anos de proveitosos estudos, proporcionada por todo o coletivo. As professoras do PPI: A mestra Dra. Maria Lúcia Boarini, profa. Dra Adriana de Fátima Franco, e as atuais coordenadoras do PPI: Professoras Dras. Marilda Facci e Nilza Tessaro. Ao Achilles Delari Junior, amigo e pesquisador indomável na Teoria Histórico-Cultural, tanto pelo auxílio proporcionado pelos seus estudos, quanto pelas as conversas no já distante início do mestrado. A minha amiga e companheira - na maior parte desta trajetória - Ana Carolina, que tem sido pra mim a prova de que os afetos humanos são mais resistentes e complexos que a distância geográfica. Obrigado por ter me apoiado tanto. Aos meus amigos e também exemplos no modo de lidar com esta profissão que temos em comum: Talitha Coelho e Bruno Carvalho, pelo ouvido atento, trato sério e cuidadoso de temas que nos são tão caros, sem deixar de ter em vista a transformação social. E a Priscila Cruz pelas leituras e sugestões realizadas na fase final deste pesquisa. Aos companheiros da saudosa república: “Faca do Feijão”, que me abrigou por seis anos em Maringá, especialmente aqueles que conviveram comigo nos últimos momentos do mestrado: Duzão, Beatriz e Viviane, um abraço gigante por terem ouvido um bocado de sofrimento da “luta inglória”, inerente em trabalhos como este. Deixo também um salve e um agradecimento para: Rodrigo Bischoff, Cássius, Yann, Vinicius Spricigo, Nicolle, e ao irmão que a estrada me deu: João Paulo. Enfim, para todos que de uma forma ou de outra, me dedicaram cuidado e atenção nos últimos tempos. Se o nome não está aqui, certamente em algum lugar desta consciência parcial e limitada se fazem presente, unamo-nos como irmãos que nada nos vencerá! A exigência de abandonar as ilusões sobre sua condição é a exigência de abandonar uma condição que necessita de ilusões. Karl Marx Crítica da filosofia do Direito de Hegel. O homem sempre se fez de todo o material: vias senhoriais ou bairro marginal, toda época foi peça de um quebra-cabeça para subir às costas do grande reino animal. Silvio Rodriguez El Mayor. SILVA, R. I. M. (2015) Sobre Psicologia e Ideologia na obra de L. S. Vigotski. Dissertação de Mestrado, Programa de Pós-Graduação em Psicologia, Universidade Estadual de Maringá. RESUMO A presente dissertação tem por objetivo discutir o tema da ideologia a partir das concepções clássicas de K. Marx e F. Engels e do entrelaçamento destas com textos selecionados sobre a temática na obra do psicólogo bielorusso L. S. Vigotski. Sendo resultante de uma pesquisa bibliográfica de caráter conceitual, essa discussão se dá por meio de uma análise que compreende o itinerário do conceito de ideologia, a exposição das teses fundamentais sobre o mesmo nos textos clássicos de Marx e Engels e a presença deste em Vigotski, propondo um elo entre estes autores. Contudo, frisa a particularidade deste último quanto a aplicação do conceito de ideologia na ciência psicológica e na constituição da Teoria Histórico-Cultural. A hipótese norteadora é a de que as formulações de Vigotski correspondem a uma tensão inerente na herança marxista sobre o conceito de ideologia entre duas linhas fundamentais, uma críticonegativa de ordem epistemológica e a outra ligada as funções e sistemas valorativos da consciência na vida social. Justificam-se assim procedimentos metodológicos próprios a natureza da pesquisa, contando com um levantamento sobre textos que usam a palavra “ideologia” bem como a sua contextualização histórica e as teses que a definem, com o propósito de responder questões que se organizam em três grupos. a) O diagnóstico de Vigotski sobre a sombra da ideologia na ciência psicológica ainda é atual se pensarmos a prática de nossa ciência, tal como ela de fato se efetiva? b) Os nuances conceituais da ideologia permitem reconhecer uma influência direta de Marx, do que este autor partilha da definição clássica de ideologia, ou o seu uso, por Vigotski recorre a outras bases epistemológicas? Se sim, quais? No que Vigotski é singular ao falar de ideologia? c) Na dinâmica apreendida, investigando o aparecimento do conceito em sua obra, ela se se modifica, é contínua, se expande? Permanece a mesma? O que podemos tirar daí para a compreensão de uma inventiva histórico-cultural do psiquismo é semelhante às abordagens já consagradas da Psicologia Social e da Psicologia Escolar sobre o tema da ideologia? Para responder estas questões a dissertação foi estruturada em três capítulos: O primeiro pretende expor o problema da ideologia em sua origem e destacar qual o sentido empregado por Marx ao dedicar toda uma obra à temática, bem como suas implicações a respeito de uma visão marxista de homem sobre a consciência e a alienação. Ademais, apontar o aparecimento da “ideologia” em textos da maturidade de Marx que apontam para compreensões ampliadas em relação à Ideologia Alemã. O segundo capítulo, expõe o resultado da pesquisa sobre a palavra em destaque em textos selecionados de L. S. Vigotski, explicitando as teses que envolvem o seu uso entre 1924-1927. O terceiro capítulo ocupa-se de textos entre 1929 e 1931, que implicariam na adesão de Vigotski a definições de ideologia não redutíveis a negatividade ou ainda, a falsa consciência e toma a como sistema conceitual socialmente determinado, da qual decorrem consequências para a abordagem do pensamento por conceitos e a superação das ideologias espontâneas e/ou dominantes. Palavras-chave: Ideologia, Vigotski, Marxismo, Psicologia, Teoria Histórico-Cultural. SILVA, R. I. M. (2015) About Psichology and Ideology in the works of L. S Vigotski. Dissertação de Mestrado, Programa de Pós-Graduação em Psicologia, Universidade Estadual de Maringá. ABSTRACT The dissertation that follows aims to discuss the problem of the ideology as from the classic conceptions of Marx and Engels and of its interlacement to selected essays about this theme written by the Belarusian psychologist L. S. Vigotski, through an analysis that includes the itinerary of the concept of ideology, the exposition of the fundamental thesis about it in the classic essays of Marx and Engels, and of its appearance in Vigotski’s literature, suggesting a link amongst these authors, but highlighting the particularity of the latter when it comes to the application of the concept of ideology in the Psychological Science and for the Cultural-historical Psychology. The hypothesis is that the formulations of Vigotsky match to the inherent tension in Marxist heritage of ideology between two fundamental lines, a critical-negative, epistemological, and the other one related to the functions and systems that belongs to the consciousness of the social life. Is therefore justified the survey of the literature related to the word “ideology”, as well as its historical contextualization and the theses that define it, aiming to answer issues, such as: a) Is the diagnose of Vigotsky about the shadow of the ideology over the Psychological Science still current if we think of the practice of this Science, of how it in fact effectives itself? b) Do the conceptual nuances of ideology permit to recognize a direct influence of Marx on what this author shares about the classic definition of ideology? c) Does the concept of ideology found on Vigotsky’s literature modify, is it continuous, does it expand? Does it remain the same? Is that what we can take from it for the comprehension of an inventive Cultural-historical of the psyche similar to the already established approaches of Social Psychology and School Psychology on the matter of ideology? In order to answer these issues, this dissertation was structured in three chapters: The first one aims to expose the problem of ideology in its origin and contrast the reason Marx followed to dedicate a whole work to this theme, as well as its implications due to a Marxist view of men about the consciousness and the alienation. Moreover, point the appearance of “ideology” in essays belonging to the maturity of Marx that lead to amplified comprehensions related to The German Ideology. The second chapter exposes the result of the survey about the highlighted word in the selected essays of L. S. Vigotsky, making explicit the theses that involve its use in these essays and searching for demonstrate a variation amid the essays of 19241927. At least the third chapter discusses the works of Vigotski between the years of 1929 – 1931 that implies the adhesion of Vigotski definition of ideology that not reduced to the sense of negativity or false counsciouness and get that social conceptual systems to explain that conceptual thoughts and the superation of spontaneous our dominant ideology. Keywords: Ideology, Vigotski, Marxism, Psychology, Historical-Cultural Theory. SUMÁRIO Resumo...............................................................................................................ix Abstract..............................................................................................................x Introdução ......................................................................................................... 12 1 Marx e a ideologia: Itinerário de uma crítica da alienação.................... 28 1.1 .Ideologia e modernidade: breve histórico do termo............................33 1.2 Marx e a Ideologia: O inicío da crítica................................................. 37 1.3 A lógica da inversão na consciência: A ideologia alemã e o segredo de toda ideologia. ........................................................................................................... 42 1.4 Da “crítica roedora dos ratos” aos tribunais de Stalin........................45 1.5 Definições de ideologia N’A Ideologia Alemã........................................48 1.6 Apontamentos sobre ideologia e falsa consciência .................................................................................................................................... 59 2 Psicologia e ideologia: Explicação do psiquismo ou expressão da alienação? A ideologia como conceito crítico-negativo em Vigotski, 1924-1929 .... 63 2.1 Ideologia no “prólogo” do livro de E. Thorndike.: Princípios baseados em Psicologia. ............................................................................................................ 66 2.2 Ideologia e o significado histórico da crise da psicologia.....................69 2.3 A ideologia como fase aguda da crise: o fascismo e a psicologia.........75 2.4 O fascismo e a psicologia por L.S. Vigotski...........................................79 3 Vigotski e a ideologia como sistema conceitual [1929-1931]. Implicações para a psicologia como ciência e para a relação entre conceitos científicos e espontâneos. .................................................................................................................. 89 3.1 1931: Sobre os sistemas psicológicos e a ideologia. ............................... 93 3.2 Sistemas conceituais e ideologia .......................................................... 102 Considerações finais ....................................................................................... 117 Referências ...................................................................................................... 125 12 INTRODUÇÃO O nosso curso de Bacharelado em Psicologia foi marcado por uma forte influência das áreas que perpassam as dimensões sociais e educacionais na formação do psiquismo. O primeiro contato realizado acerca da caracterização da ideologia como fenômeno ocorrente na consciência e derivada do plano social deu-se nos primeiros anos da graduação, ainda na Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS), momento esse em que tivemos contato com escritos de autores tradicionais da Psicologia Social brasileira de inspiração marxista, como Silvia Lane e outros que realizavam esforços para a compreensão da ideologia na consciência individual dos sujeitos, sempre a tratando como fenômeno social materialmente determinado, cuja essência era a dissimulação ou a ocultação de relações sociais de poder assimétricas e desiguais. Em 2008, após realizar a transferência externa de curso para a Universidade Estadual de Maringá, tivemos contato com a Teoria Histórico-Cultural, mais especificamente, por conta da disciplina de Psicologia Histórico-Cultural, ofertada no segundo ano do curso, ministradas pelas professoras Silvana Calvo Tuleski e Sonia Mari Shima Barroco. Nesse momento, realizamos estudos e aproximamos o contato com as bases epistemológicas de Lev Semeonovitch Vigotski (1896-1934), recebendo a orientação concisa da necessidade do cuidado histórico ao abordar o autor, já que com o fim da censura de suas obras no período pós Guerra Fria, esta recebera uma divulgação e expansão mundial que nunca houvera conhecido. No entanto, o aumento significativo de traduções e de novas edições que tratavam sobre conceitos importantes em sua obra, sofreram um recorte intencional que visava retirar, ou mesmo suprimir dos livros editados as referências e os postulados metodológicos de Vigotski. Isso porque evidenciavam sua filiação teórica, e em consequência, sua postura científica e posicionamento político revolucionário, vinculado à Revolução Russa e ao método materialismo histórico e dialético. Além destas filiações, muitas problematizações de Vigotski, visavam aos problemas reais enfrentados durante o período revolucionário, com suas lutas de classes e entraves econômicos próprios, bem como estas se refletiam nos problemas adotados pela psicologia e pela pedagogia no seu país. 13 Algumas das alegações levantadas para a explicação dos referidos cortes em textos importantes de Vigotski foram a “limpeza”, a eliminação de repetições e a correção de “distorções”. Entretanto, o objetivo implícito é mais complexo e assim como Duarte (2000) e Tuleski (2008) apontam, tal movimento criou impactos particulares no Brasil, uma vez que dois dos livros mais difundidos de Vigotski no país, A formação social da mente e Pensamento e linguagem, foram traduzidos da edição norte americana em que pesa esta interferência. Mais do que uma precisão filológica, a problemática das traduções estava na tentativa de afastar Vigotski do marxismo. Diante da dificuldade acerca das traduções, que afastavam Vigotski de suas bases epistemológicas, tentávamos sanar este vácuo durante os encontros da disciplina da graduação comentada inicialmente, através da leitura de clássicos do marxismo, como foi o caso de A ideologia Alemã, de Karl Marx (Tréveris, 1818 - Londres, 1883) em coautoria com Friedrich Engels (Wuppertal, 1820 – Londres, 1895). Não se sabe ao certo se Vigotski chegou a ter contato direto com este texto, mas os escritos vigotskianos guardam semelhanças metodológicas fundamentais, enquanto partilhantes do materialismo histórico e dialético. Entre elas está a formação da consciência enquanto uma natureza social, consciente de si a partir das relações com os outros, sempre mediadas pelo nível das forças produtivas e o arcabouço consciente da linguagem, bem como a crítica da consciência alienada, que diante de uma condição histórica determinada, parcializa suas representações de modo a inverter o jogo do poder criativo da natureza humana. É o que ocorre com a atividade de trabalho e sua respectiva divisão social. Trabalho vale dizer, no sentido de intercâmbio orgânico com a natureza, que é uma atividade única à espécie humana e responsável pela transformação contínua e qualitativa do ser social, que por meio desta parcialização é vista como um fardo, um peso, já que o produtor não se reconhece em sua humanidade criadora, no marco da alienação promovida na apropriação dos bens e do lucro por uma pequena parcela da sociedade. Ficou-nos claro, portanto, que uma leitura dos escritos de Vigotski que visasse compreender as bases fundamentais de seu projeto de Psicologia e como este tentava unir dialeticamente teoria e prática em seu contexto histórico, exigia-nos colocar em relevo as bases epistemológicas e as políticas educacionais que revelam a relação entre materialismo histórico dialético e a obra vigotskiana. Fez-se necessário compreendermos que as edições não decorriam de uma forma-propaganda que visasse o 14 combate a qualquer influência comunista, uma atitude com ares de guerra fria, mas tal “censura” vestia-se de roupagem contemporânea ao atrelar uma perspectiva neoliberal de educação – e de visão de homem e mundo - às colaborações de Vigotski. Assim, esse autor, muitas vezes, foi qualificado de modo reducionista e equivocado como “sócio-interacionista”, ou coletivista, expressões que denotavam uma conotação de social reduzido ao coletivo, sendo este termo desvinculado das relações sociais como tais e comparável a agrupamento ou ajuntamento, como aponta Barroco (2007). O autor sofreu aquilo que criticou, sendo ele mesmo um indivíduo compreendido como apartado das relações sociais de produção (Tuleski 2008; Hammoumi, 2002), o que alijou a compreensão do autor como homem que se constitui ante determinantes “macroculturais”. (Ratner, 2012). Neste mesmo “clima” teórico e intelectual das teorias pedagógicas neoliberais, há uma rejeição patente na utilização de alguns conceitos como modo de produção, relações sociais, e história no sentido da possibilidade desta ser reconhecida como autodeterminada pela própria humanidade. Categorizados como aliados das “metanarrativas” impróprias ao momento em que a humanidade teria avançado social e tecnologicamente em seu desvendamento do mundo, o que demandaria da ciência, da filosofia e da educação elaborações mais pragmáticas, bem como alternativas que gerem respostas visíveis e mensuráveis em curto e médio prazo, deixando tais conceitos de lado. Essa prática cada vez mais expandida de desvalorização e negação das metanarrativas, muitas vezes vem acompanhada da ausência de balanço crítico que as justificassem, sendo esse o caso ocorrido com as razões aparentemente superficiais dos cortes nas traduções e edições da obra de Vigotski e, consequentemente, da relevância deste vocabulário teórico na edificação da obra do mesmo. Nesse sentido, acreditamos que neste momento torna-se necessário um “recuo à teoria”, parafraseando a crítica de Moraes (2009) para que se desfaçam alguns nós conflitivos que impeçam uma leitura da teoria histórico-cultural mais próxima do contexto em que foi produzida, bem como de suas bases epistemológicas. Consideramos que essa busca por maior clareza conceitual pode colaborar na promoção de um avanço crítico na assimilação da obra de Vigotski no país. Tal tarefa é um empreendimento coletivo já iniciado por pesquisadores de envergadura, e que cabe a nós com este trabalho, uma modesta colaboração. Os primeiros passos nesse sentido foram dados com os estudos complementares realizados com a nossa participação no grupo de 15 estudos do LAPSIHC – Laboratório de Psicologia Histórico-Cultural, coordenado também pela professora Silvana Tuleski. Durante três anos, discutimos temas sob a ótica da teoria vigotskiana, que envolviam: pensamento e linguagem, percepção e memória, aquisição da escrita, emoções, funções psicológicas superiores, entre tantos outros. A necessidade de recorrer a diversos textos deste autor proporcionou o encontro com O Significado Histórico da Crise da Psicologia, que no Brasil fora traduzida para o português na coletânea Teoria e Método em Psicologia, publicada pela editora Martins Fontes, em 1996. Foi a abordagem sobre ideologia em discussões relacionadas com este texto que chamaram nossa atenção para o conceito de ideologia tal como utilizado por Vigotski. No referido texto, Vigotski (1996) utiliza o conceito de ideologia de modo muito peculiar, aplicado à situação da psicologia moderna que se debruçara a analisar. Diante de uma confusão de objeto e método, de concepções de mundo conflitantes e de um imenso acúmulo de material, do qual faltava uma espécie de síntese que tornasse a psicologia de fato útil para humanidade – situação que fora diagnosticada não só por Vigotski, mas também por W. James, Sartre, entre outros –, a ideologia surge como um estado em que a ideia científica original de uma dada teoria, perdida do frescor de verdade em que surgira num contexto determinado (laboratórios e divãs, por exemplo) tornavam-se princípios explicativos totais. Se antes, serviam e tinha origem de explicar objetos ou problemas específicos, o que deriva dos estudos e pesquisas em sua fase nascente, passa a assumir o caráter de princípio explicativo para tudo o mais. Isso é exemplificado por Vigotski, entre outros, com o estudo da neurose por Sigmund Freud1: o princípio de inconsciente, passa a ocupar espaço em todas demais dimensões da vida social, servindo para explicar a sociedade, a política, e mesmo a ciência e a arte. Falar em “ideologia” na contemporaneidade revela-se à psicologia como um esforço relevante na contra maré de postulados que definem a história humana como desprovida deste fenômeno ou mesmo como sendo um problema irrelevante, especialmente em um período em que se cogitou o “fim da história” (Fukuyama, 1992) e o “fim da ideologia” (Mészáros, 2004), como referência ao fim da polarização (capitalismo e comunismo) e de alternativas emancipatórias ao modo de sociabilidade forjado pelo capital. Isto é, capitalismo e a sua estrutura fundamentada na permanência da divisão social do trabalho, teria chegado em um posto que a racionalidade do modo 1 Sigmund Schlomo Freud (1856- 1939), considerado o pai da psicanálise. 16 de produção via globalização unificara toda a humanidade em uma espécie de desenvolvimento global sem alternativas reais a seus imperativos, bastando somente a adaptação e a inclusão dos ainda apartados desta realidade, seja por atraso cultural ou ideológico, para de fato concretizar-se o fim das ideologias “radicais” e da própria história enquanto conflito. (Mészáros, 2004). Foi durante a construção do projeto de mestrado apresentado para ingressar no programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Estadual de Maringá, que unificamos as duas constatações: A primeira, de que era necessário pautar-se no estudo do tema da ideologia, e a sua relação com a construção da psicologia enquanto ciência, que permitia melhor compreender que as posições científicas, carregam uma visão de homem e de mundo que atreladas a realidade social, detêm dimensões que independem da vontade do psicólogo ou do pesquisador, quando com elas opta por trabalhar e encarar o entendimento da consciência humana. A outra fora a necessidade de colaborar no projeto de entender Vigotski como um partilhante do marxismo na apropriação de sua obra em um espectro ampliado na busca da singularidade do seu pensamento e não na comparação com outros autores consagrados. Para tal empreendimento, tornou-se premente recuperar as bases epistemológicas e políticas de Vigotski, para que estas também possam sedimentar uma crítica radical da subjetividade produzida pela forma contemporânea de dominação do homem pelo homem. Atrelamos ambas a um projeto inicial que relacionava a temática da ideologia sob as delimitações já expostas às políticas públicas da educação2. Contudo, ante a amplitude que envolvia o encaminhamento dado e o limite temporal do curso, optamos pelo enfoque dos estudos no âmbito conceitual, num exercício dialético, por isso necessariamente genético, dos textos e das formulações conceituais que envolvem o conceito de ideologia. Decorre das investigações que realizamos o reconhecimento de que a ideologia se manifesta na ciência psicológica de diversas maneiras. Pode estar induzindo um autor a um limite estrutural de sua concepção teórica, de modo que este passa a definir o que é de todos os homens tendo como base um grupo muito específico analisado - assim como a sociedade vitoriana, no caso de Freud - e acaba por apagar os condicionantes 2 O PPI está vinculado a um projeto interinstitucional que envolve UNIR, USP e UEM, o PROCAD – NF, sendo que uma das áreas de investigação é o de estudos das políticas públicas da educação voltadas ao enfrentamento ao fracasso escolar. Assim, a participação junto a este deu-se por outras vias. 17 históricos de sua própria perspectiva científica. Podemos pensar na transposição de um teste de inteligência, em que as perguntas abertas despudoradamente não se alinham aos traços culturais, geográficos e políticos de outras nações e localidades e acaba por tipificar uma forma determinada de psiquismo como referência, muitas vezes, de normalidade psíquica. A ideologia pode também ser mais explícita nas teorias racistas, elitistas e em elaborações que estimulam e reafirmam toda ordem de preconceitos e de legitimação das relações dominantes. Nesse sentido, vale lembrar o auxílio de concepções que buscavam explicar o comportamento no avanço do nazismo e do fascismo no século XX, para expormos apenas os exemplos mais gritantes. Em tempos de aparecimento de proposições neonazistas pelo mundo, incluindo o Brasil, é importante destacarmos que Vigotski (1934/1981) considerava que a psicologia aliada ao nazismo era a face mais degenerada da crise em que esta ciência estava imersa e não estava livre de ser utilizada em favor destes posicionamentos políticos totalitários. Enquanto legitimadora de problemas de fundo social a relação entre ideologia e psicologia ficou também constatada no trato com fenômenos como a educação e o comportamento não desejável do aluno – ou mesmo na produção do fracasso escolar localizando a causalidade do sucesso ou do fracasso no indivíduo isolado, tomado abstraído das relações sociais: com a família, com os seus pares, com as instituições, com a cultura de sua época e por fim consigo mesmo, no tocante a aprendizagem e ao desenvolvimento. Aqui cabe apontar que a prática ideológica da Psicologia teve uma história própria no Brasil, sendo bem diagnosticada na relação psicologia e escola por Patto (1984), no já clássico livro Psicologia e Ideologia. A percepção pessoal que a ideologia não fora esgotada pelas possibilidades que temos no presente, como se vivêssemos um capitalismo mais auto evidente e menos enganador, no qual todos estariam unidos em um mundo pós-ideológico da “aldeia global”(Delors, 1999), aguçava-se conforme unificávamos os estudos da Teoria Histórico-Cultural e do marxismo e constatávamos, meio a debates e discussões de estudo, que se propagavam casos em que a psicologia era permissiva ou ainda colaborava na legitimação de fatores questionáveis, tais como: A medicalização de questões humanas, as dificuldades de aprendizagem colocadas na ordem do indivíduo, e 18 exemplos ainda mais gritantes, como a releitura de teorias como a fisiognomonia3, além do determinismo genético, na explicação do sucesso ou fracasso individual econômico.4 Se tais concepções resguardam momentos de verdade que são científicos, há que se apurar. Entretanto, à primeira vista e colocada no prisma crítico aos determinismos da psicologia e seus riscos, que podem incidir, na legitimação de uma situação de desigualdade econômica, na manutenção de estigma e preconceitos com grupos e minorias desfavorecidos, entre outros agravantes, a ideologia torna-se presente em um casamento de comum acordo entre espontaneidade e discurso científico. Em um movimento ideológico tradicional, tais situações impelem-nos a considerar como essencial, um problema que é moldado de forma histórica e particular, do qual fugir de seus determinantes macroculturais colabora intensamente na promoção da ideologia e na manutenção do status quo. A respeito da atenção à ideologia, vale pôr em destaque que, no caso brasileiro, por um lado, a Psicologia Social alertara como a ideologia pode servir na dominação nos discursos e nas práticas, no terreno do sentido e do significado. Por outro, a Psicologia Escolar conta com uma intensa produção na investigação da produção social do fracasso escolar e desde a publicação de Psicologia e Ideologia (Patto, 1984), essa área de formação e campo profissional tornou-se atenta às ideologias de toda ordem nas concepções reificadoras – isto é, que tomam a consciência humana que se realiza enquanto processo como coisa - do desenvolvimento do psiquismo. A teoria históricocultural tem sido subsidiadora para ambas (Psicologia Social e Psicologia Escolar) e conta com este movimento de reaproximação de Vigotski aos temas caros do materialismo histórico, como a ideologia. Sem essa recuperação entende-se que seu vigor para contribuir no desvendamento e nas proposições de alternativas para os dias atuais se esvai. Foi, pois, unindo esses pontos expostos que chegamos à necessidade de pesquisar a relação entre Marx, Vigotski e a ideologia. No início do curso do mestrado tivemos contato com uma literatura introdutória da variedade que o termo pode assumir nos estudos sobre economia, política, filosofia, psicologia e nos estudos de discurso e da linguagem, bem como pontos conflitantes e ora similares entre pensadores ligados à tradição do materialismo histórico e dialético ao fim do século XIX e ao largo do século XX. Foge de nossos objetivos, elencá-las ou 3 Revista psique: “A face http://psiquecienciaevida.uol.com.br/ESPS/Edicoes/65/artigo215605-1.asp 4 http://veja.abril.com.br/noticia/economia/o-sucesso-e-hereditario do criminoso” 19 sintetizá-las aqui, mas destas, se destacam, por ora, as diferenças entre o ponto de vista marcado pela teoria do conhecimento em que a ideologia é entendida como um fenômeno essencialmente gnosiológico, ou de falsa consciência e de sentidos que não se limitam ao caráter epistemológico, ou ainda, que não estão exatamente preocupados como verdade ou falsidade. O primeiro ponto de vista dá uma importância relevante na veracidade ou falsidade das ideias, sem perder a perspectiva de que estas surgem dos conflitos materiais. Por outro lado, há uma interpretação que coloca a ideologia mais próxima ao conjunto de funções e valores que elas detêm na unidade entre consciência e mundo e neste sentido não se fixa na veracidade ou falsidade das ideias, mas em suas funções no mundo social entre consciência e realidade social. Para a primeira perspectiva, a religião seria uma ideologia pura, uma explicação do mundo e da realidade abertamente metafísica e sem necessidade de conexões reais, empiricamente comprováveis. Para a segunda, a religião não é desprovida de veracidade na medida em que interfere na própria prática social dos homens, seja em espaços sociais ou no foro íntimo, individual e entendida como mecanismo psicológico verdadeiro e com consequências históricas, a despeito da sua comprovação empírica. Assim, o conceito de ideologia está em torno dos sentidos conflitivos. Pode ter um uso francamente positivo, como na famosa música de Cazuza quando este clama por ter uma ideologia pela qual viver, até uma forma opressora e radical como a ideologia neonazista ou de outros grupos extremistas políticos e religiosos, e até mesmo científicos. Pretendemos expor na investigação realizada, dentro da polissemia do conceito de ideologia, quais os sentidos que aparecem na obra de Vigotski e como este se relaciona com os pressupostos do marxismo. Acreditamos que esta possa servir de contribuição para a formação continuada sobre a teoria histórico-cultural ainda que se trate de um tema que não costuma ser “central” na constelação teórica que envolve os estudos desta vertente no país. Não fugir ao tema da ideologia, implicaria que na dimensão profissional o psicólogo alinhado a esta perspectiva, pode encontrar fonte de renovação autocrítica constante na medida em que estará armado para avaliar a própria prática enquanto reprodutora ou linha de resistência de estratégias comuns do discurso cotidiano como a patologização e estigmatização de problemas da ordem do psíquico que sem o devido cuidado podem incidir em uma obstrução do processo de desenvolvimento potencial de cada indivíduo. O profissional pode colaborar tanto na reprodução de valores 20 hegemônicos ou enfrentá-los isto é avançando para uma compreensão mais rica e humana da formação do psiquismo pautados em valores éticos como a solidariedade. Os profissionais e educadores estão, cotidianamente, na linha de frente deste desafio, como quando mesmo bem formados e alinhados teoricamente, desanimam e acabam por recair em um espontaneísmo diante das condições objetivas, como a baixa remuneração, a insalubridade das escolas, o abandono ou os limites de intervenção do corpo pedagógico e as dificuldades mesmo do combate à alienação e ao estranhamento dentro do âmbito institucional. Em suma, abandonar os pressupostos não é uma questão de foro cognitivo, mas se coloca como problema prático na medida em que situações difíceis são enfrentadas e essas exigem do profissional paciência histórica e organização. O presente trabalho foi organizado em três capítulos. No primeiro, busca traçar uma breve linha da origem do conceito de ideologia e caracterizar as teses de Marx e Engels, com maior acentuação da forma negativa do conceito trazido por Marx, sendo a grande contribuição inicial do marxismo para tal formulação. A ênfase recai para os temas da alienação e da consciência, categorias que acreditamos realizar uma conexão entre os pensamentos de Marx e de Vigotski, enquanto partilhantes do materialismo histórico e dialético. Em seguida, no segundo capítulo, iniciamos a exposição do resultado do levantamento do termo em textos de Vigotski. Os procedimentos envolveram o rastreamento da palavra “ideologia” nas coletâneas Obras Escolhidas e nos textos avulsos: A psicologia concreta do homem e O fascismo e a psicologia. Como pode ser conferido na sessão sobre a metodologia. O segundo capítulo ocupa-se de textos de Vigotski delimitados aos anos de produção que correspondem o período de 1924 – 1927. Este período seria o de maior ênfase do autor em uma concepção de ideologia essencialmente de caráter críticonegativo, refletindo teses consideradas clássicas ao marxismo e aplicando-as a psicologia de uma forma singular. A análise dos textos busca explicitar as definições encontradas, conforme as teses que a ele são atribuídos e denotar a função cumprida dentro da gama negativa que permeia os primeiros anos de produção de Vigotski. A exceção figura no texto de 1934 sobre o fascismo e a psicologia, visto que ao nosso entendimento o conceito de ideologia tem um sentido também negativo e marca o reaparecimento deste sentido nos textos do autor. O terceiro capítulo tem em foco o intervalo que vai dos anos de 1927 – 1931, justificado pela explícita diferença no sentido em que Vigotski toma a ideologia, colocando-a mais próxima da corrente que entende este fenômeno em termos de pensamento socialmente determinado, ideias e 21 explicações de cada período histórico. É mais questionadora sobre quais funções tem a ideologia, como conhecê-la para ir além dela, do que entendê-la como um processo essencialmente dissimulador, que oculta o conhecimento intervindo a favor de algum interesse. Por último é exposta considerações formulações de Vigotski sobre o pensamento conceitual e a ideologia, considerando que esta relação implica em possibilidades da superação (parcial) da ideologia. Se for correta a tese de que tanto na obra de Marx quando nas de seus continuadores, derivam duas grandes correntes intelectuais ao tratar da ideologia, trabalhamos com a hipótese de que isto também ocorre em Vigotski. Nossa pretensão não é de advogar a existência de uma definição unívoca ou correta no autor, mas tentar demonstrar que como partilhante do marxismo, acaba também herdando as tensões próprias desta corrente de modo que acusações rasteiras sobre a ideologia limitar-se a “falsa consciência” sugerindo um cientificismo capaz de obstruir toda a falsidade e oferecendo-se como uma ciência neutra e objetiva não era bem o que Vigotski expressou quanto a superação da ideologia. Acreditamos que esta posição é mais vantajosa no que se refere a fornecer uma visão de ideologia no marxismo mais complexa que as definições mais ventiladas. Repercussão da obra de Vigotski no Brasil: da iminência do modismo Vigotski está na moda! Essa afirmação pode facilmente ser confirmada diante de uma varredura dos resumos e trabalhos completos apresentados em eventos acadêmicocientíficos nacionais, como por exemplo, no CONPE - Congresso Nacional de Psicologia Escolar e Educacional, promovido pela ABRAPEE - Associação Brasileira de Psicologia Escolar e Educacional; na Reunião da ANPEd - Associação Nacional de Pós-Graduação em Educação; no ENDIPE- Encontro Nacional de Didática e Prática de Ensino, no CIPSI - Congresso Internacional de Psicologia - Universidade Estadual de Maringá, entre outros. Também em plataformas de buscas podem ser localizados um crescente e considerável número de materiais acerca de Vigotski, disponibilizados em sites de psicologia e educação, principalmente. Além disso, podem ser localizadas propostas e diretrizes educacionais que elegem Vigotski ou a matriz teórica da qual é o expoente principal. Essa incidência aqui exemplificada nos leva a concluir que o psicólogo bielorusso “está na moda”, como 22 ocorreu com outros autores clássicos das teorias psicológicas, como Jean Piaget5 e mesmo Sigmund Freud, além do existencialismo de Sartre6 e suas reflexões sobre a psicologia. Considerando as consequências que uma apropriação aparente de um dado autor e da sua teoria possa ter para a educação e outros campos de aplicação do saber psicológico, damos continuidade a um trabalho de aprofundamento no desvendamento do legado de L. S. Vigotski, das suas principais teses e postulados, que vem sendo realizado por diferentes pesquisadores - prática que nos remete ao aclaramento dos fundamentos filosóficos e metodológicos por ele assumidos, do contexto histórico no qual se formou e se projetou, nos impactos que pode ter nas décadas iniciais do século XX na extinta União Soviética e nos países ocidentais dos dias atuais, no plano geral das teorias psicológicas modernas. Contra uma apropriação superficial, própria ao modismo, Barroco (2007) aponta para a impossibilidade de se trazer esse autor para o ocidente, no atual estágio do capitalismo, como o intuito, por exemplo, de aplicar sua teoria para subsidiar a educação inclusiva. Antes, considera ser preciso compreender o papel histórico deste autor (ou de outros) e da sua produção atrelada à sociedade a qual pertence (ainda que possa negá-la). Defende que o elaborado em outras épocas e sociedades deve contribuir não para se ter uma visão romântica do passado, nem para reeditar soluções já encontradas, mas para se identificar o desenvolvimento histórico das contradições e necessidades humanas. Devemos oportunizar a recuperação de elementos que promovam o exercício do pensamento analítico, visto que permitam identificar os desafios com os quais os homens se depararam, quais alternativas encontraram, quais as contradições suscitadas e os desdobramentos decorrentes, entre outros pontos. Os autores e os fatos do passado devem contribuir com subsídios que esclareçam as demandas com as quais lidamos, suas origens, desdobramentos e alternativas possíveis; devem encaminhar para a superação da aparência que se nos revela quando esse tipo de pensamento, à luz da história, é negligenciado. Na mesma proporção do crescente destaque dado à Teoria Histórico-Cultural encontramos a negação da filiação teórica de Vigotski ao materialismo histórico e dialético de K. Marx. Como já apontado em algumas publicações, o psicólogo soviético 5 6 Jean Piaget (1896 – 1980) Jean Paul Sartre (1905 – 1980) 23 é muitas vezes interpretado no Brasil sem que seja considerada essa relação, o que possibilitou um viés eclético: associam-se as posições de Vigotski à concepções que não coadunariam com sua proposta metodológica. Conforme analisam Duarte (2000) e Tuleski (2008) as publicações, que se detiveram sobre a Psicologia Histórico-Cultural de Vigotski, entre as décadas de 1990 e 2000, de traduções do autor ocorridas no Ocidente e que influenciaram a interpretação em diversos países, inclusive no Brasil, realizadas a partir das traduções em inglês, são fortemente marcadas pela edição dos autores responsáveis pela divulgação das obras, tratando com caráter subjetivista e ideológico os seus textos. Outro exemplo disso são as referenciadas “limpezas” e “cortes”, com o intuito de tornar a leitura mais clara, no julgamento dos editores, conforme escreve Tuleski (2008). Esta autora defende que o modo como esses textos foram editados, tendem a distorcer características teóricas substanciais dos escritos de Vigotski, que acabam por fornecer uma interpretação enviesada a respeito do seu método, embasamento filosófico, da denominação da teoria dada por Vigotski e demais colaboradores, que englobam outros autores da Psicologia Histórico-Cultural como Alexander Luria7 e Alexei Leontiev8 (1903-1979). Para a autora retirar o “marxismo” dos escritos de Vigotski significa amputar uma importante determinação histórica de sua obra, qual seja, como a influência do pensador alemão na revolução soviética, período da produção de Vigotski. Quando atentos a essas condições, o que Vigotski escreveu reflete a necessidade do caráter teórico-afirmativo, de diálogo crítico e principalmente, de tentativa de superação dos pontos de vista e métodos das psicologias predominantes da época e da influência do marxismo vulgar na psicologia, que ocorria através do que ficou conhecido como “método de citação”, em que os autores utilizavam de trechos de Marx, Engels, Lenin e Stálin para justificar as suas teorias, sem uma análise crítica e de método científico, produzindo uma forma de pensamento dogmática. (Vigotski, 1927/ 1996). No entanto, o marxismo enquanto o método de uma nova psicologia em construção não passou despercebido por comentadores de Vigotski, estudados por Tuleski, que sintetiza a ideia de que a ênfase metodológica está presente em todos os 7 Alexander Romanovich Luria, (1902-1977) psicólogo soviético e colaborador de Vigotski, realizou estudos em diversas áreas como a psiquiatria e a neuropsicologia. 8 Alexei Nikolaevich Leontiev, (1903 – 1979) também colaborador de Vigotski, concentrou-se nos estudos sobre o papel da atividade prática na formação do psiquismo humano. 24 seus escritos, como uma recusa ao ecletismo burguês, e ao dogmatismo stalinista. Outro problema derivado de interpretações contemporâneas de Vigotski, aliado às limitações das fontes encontradas nas traduções mais utilizadas deste autor, está na tentativa de realizar uma aproximação entre ele e autores como Piaget, especialmente na forma como esses autores entendem a categoria do “social”, como assinalamos no início desta introdução. Para Tuleski (2008), Vigotski é entendido muitas vezes, como complementar a Piaget9 na medida em que enfatiza o papel do social na constituição do psiquismo. No entanto, os autores optam por entender essa característica do autor como sóciointeracionista. A partir dessa classificação a categoria social perde o sentido de relações sociais: sejam elas relações sociais de produção, ou ainda como luta coletiva e histórica para o projeto de superação de uma sociedade capitalista, para uma comunista, ao qual Vigotski estava alinhado. As relações sociais de produção não podem ser, como afirma El Hammoumi (2002), uma variável a ser considerada, mas uma unidade de análise apropriada para a psicologia. As distorções tendem a caracterizar, de modo míope, relações entre pessoas como o “social” que teria enfatizado Vigotski. (2002). No Brasil, na primeira década do século XXI foi criando forma a vertente que reconhece essa matriz filosófica e metodológica de Vigotski, com o consequente aumento de pesquisas e de grupos de pesquisadores como: Duarte (2000), Tuleski (2008), Meira (2000) entre outros. Todos eles consideram Vigotski como herdeiro do pensamento marxiano, o que torna-se um trabalho árduo na medida em que se deve explicitar a influência desta matriz filosófica em uma problemática aprofundada que resgate as especificidades teórica deste e contudo, ainda há muito por fazer para que seja criado “O Capital” que falta à psicologia. (Tanamachi, 2013). De acordo com Davis, Silva e Freitas (2004) o aumento da porcentagem de pesquisas que se dizem fundamentadas na perspectiva de Vigotski usufrui de divulgação ampla quanto conceitos importantes de sua obra, mas existe uma grande carência quanto à apropriação da concepção de homem e de mundo do autor, o que dificultaria esta apropriação especificamente no tocante ao fundamento filosófico do mesmo. 9 Esther Pillar Grossi, nas décadas de 1980-1990 esteve à frente de lutas pela escolarização e alfabetização. Com outros educadores fundou o GEEMPA (Grupo de Estudos Sobre Educação, Metodologia de Pesquisa e Ação), e entendiam ser Vigotski um neopiagetiano ou pós-construtivista < http://geempadc.blogspot.com.br/2012/03/esther-pillar-grossi-o-metodo-pos.html>. 25 Frente ao exposto, organizamos uma sistematização para leitura e análise dos textos de Vigotski que tratassem respectivamente do conceito de ideologia, além da consulta de textos clássicos sobre o tema, no tocante aos fundamentos do materialismo histórico como, A Ideologia Alemã. Adiante, expomos o quadro que resultou nesta busca de textos e a escolha do recorte utilizado para a exposição dos resultados. Aspectos metodológicos Trata-se de pesquisa de natureza bibliográfica e conceitual, procedendo com o exame de textos selecionados em que nos exercitamos no estudo com o conceito de ideologia a partir da tradição marxista e do método do materialismo histórico e dialético. Visto que busca historicizar o conceito conforme suas principais funções e sentidos afim de promover um panorama de sua gênese e desdobramentos, isto, dentro do recorte principal que engloba a relação entre concepções clássicas do marxismo e a obra de Vigotski. Sobre a definição de conceito entendemos que: É todo o sistema teórico de uma ciência é um sistema conceitual, além de que é pelo conceito que se simboliza os fenômenos que estão sendo inter-relacionados. São abstrações lógicas elaboradas pelos cientistas apreender, captar um fato por ele representado. O conceito difere do fenômeno, mas é “básico em sua função de analisar a realidade e comunicar seus resultados”, nesse sentido opera a inteligibilidade dos acontecimentos do mundo real, e complementa a da percepção. (Lakatus e Marconi, 1983/1992) A apropriação de um conceito não pode ser realizada de forma aparente, na ordem do reino da percepção, uma vez que o conceito complementa a inteligibilidade intuitiva do organismo humano. Tratando-se de Ciências Humanas, operar um estudo sobre o conceito de ideologia implica em buscar ir além das aparências de uma ideia muitas vezes sincrética, de baixa densidade quanto ao relevo de seus possíveis significados e sentidos. Para realizar a investigação deste conceito de modo a tratar o problema de maneira considerável relacionando a tradição marxista e o vínculo desta – via ideologia – com as pressuposições vigotskianas foram utilizados os seguintes procedimentos. Rastreamento do conceito pelo índice remissivo dos volumes das Obras Escogidas, que englobam parte considerável dos escritos de Vigotski – até o tomo V publicado em espanhol – que, no entanto, não indicara o uso da palavra “ideologia” na coletânea, e assim realizamos o mapeamento orientando-nos pela busca nas versões digitais, cujo resultado apresentamos a seguir. 26 A tabela 1 expõe os 03 textos encontrados no Tomo I na versão digital, que são respectivamente o “Prólogo ao livro de Thorndike: Princípios de aprendizagem baseados na Psicologia”, “O Significado Histórico da Crise da Psicologia” e “Sobre os Sistemas Psicológicos”, bem como as páginas em que fora encontrada a presença da palavra “ideologia”. Palavras entradas Tomo I Resultado Ideologia 03 textos Textos encontrados* Referências Ano em que foi Vygotski, Lev. (1996) escrito e título. Obras Escogidas - I 1926 -Prólogo al libro Madrid: Visor. de Thorndike “Principios de enseñanza basados en la psicología” (p.8996) 1927 – El significado histórico de la crisis de la Psicología p.162-163, 191192,202-203,210, 213, 221) 1930 – Sobre los sistemas psicológicos.(p.47-48) Palavras entradas Resultados Tomos II, III, IV e V 01 texto (Tomo IV) Ideologia 1931 – El desarollo del pensamiento del adolescente y la formación de conceptos. (p. 31-32, 40-41-42) Referências Vygotski, Lev. (1996) Obras Escogidas - IV Madrid: Visor. Tabelas 1 e 2. Resultado da entrada dos termos “ideologia” na versão digitalizada das Obras Escolhidas, Tomos I ao V. Palavras entradas Tomos I ao V Ideologia e Alienação Resultados Sem Resultados Tabela 2. Índice Remissivo: Obras Escolhidas Texto El Fascismo Psicologia y Escrito em la 1933 Referências Vigotski, L.S. (1988) El problema del desarollo cultural del niño y otros textos inéditos: Buenos, 27 Aires, Editoral Almagesto, . P.105-123. Manuscrito de 1929 – 1929 Psicologia concreta do homem L.S. Vigotski. (2000). Manuscrito de 1929. Educação e Sociedade, Ano XXI, n. 71. : Campinas, p.21-44. Tabela 3. Textos não publicados nas Obras Escolhidas e/ou em outras coletâneas. 28 1 MARX E A IDEOLOGIA: ITINERÁRIO DE UMA CRÍTICA DA ALIENAÇÃO. Quando estudamos o conceito de ideologia a primeira certeza a que chegamos, através da constatação de todos os comentadores pesquisados, é a de que reina sobre o termo uma imensa confusão. (Vaisman, 2010). Esta confusão decorre de vários fatores, entre eles, a própria versatilidade e amplitude da tradição política e filosófica marxista ao longo de todo século XX, em que o conceito destacou-se como um pilar importante na reflexão sobre a sociedade, e para deixar o cenário mais complexo, este conceito fora tomado de forma polissêmica, sendo seus significados ora confluentes entre si, ora críticos ou antagônicos. O crítico literário Terry Eagleton(1997), organiza uma introdução ao estudo da ideologia que expõe 16 definições, dentre as quais consideramos importante destacar seis, que a nosso ver, resumem dentro de uma variedade, as diferenças fundamentais nos significados de ideologia ora como negatividade, ora como funções e processos da consciência que não são necessariamente enganadores. As definições elencadas por Eagleton (1997) são as seguintes: a) processo de produção de significados, signos e valores na vida social; b) um corpo de ideias característico de um determinado grupo ou classe social; c) ideias que ajudam a legitimar um poder político dominante; d) ideias falsas que ajudam a legitimar um poder político dominante; e) o veículo pelo qual atores sociais consistentes entendem o seu mundo; f) o conjunto de crenças orientado para a ação. As duas primeiras definições (“a” e “b”) tratam de significados de ideologia que caracterizam ideias de um grupo ou de uma classe, e sobre o processo de produção de significados, signos e valores na vida social, de modo que as duas não necessariamente definem ideologia no âmbito que chamaremos aqui de “crítico-negativo”, em que a ideologia age como um processo essencialmente ilusório, enganador e mistificador do conhecimento e da realidade e que pode se manifestar por um discurso universalizante de uma ordem social histórica determinada, que se caracterizam enfim por deformações no processo de conhecimento, atravessam a verdade por interesses assimétricos ocultos. Esta característica é patente nas definições “c” e “d”, que dizem respeito à dominação política no mundo das ideias tanto quanto a parcialidade ideológica de uma determinada classe; neste sentido, a ideologia pode emanar do próprio limite de uma cosmovisão especificamente classista, oriunda de uma percepção atrelada aos limites de 29 uma dada atividade material. Ambas, portanto, estão na dimensão “crítico-negativa”. Nas duas últimas definições, “e” e “f”, tanto a de ideologia como um veículo consistente de ordenação das ideias através de atores sociais – caso das ideologias políticas – quanto o sentido que entende ideologia como “organização de ideias e crenças que orientam ações”. As definições acima tratam de formas de organização da ideia, o que nos leva a uma definição prática da ideologia como estrutura em torno de um fim específico tomado claramente e não necessariamente ilusório ou mistificador e também ligado mais às funções e objetivos das ideias na dinâmica social, na sua materialização em práticas sociais como tal, que seu bloqueio na apreensão da realidade. De forma simples, pode-se dizer que essas duas linhas de definição marcam a principal diferença entre correntes divergentes do materialismo histórico e dialético sobre o conceito de ideologia, conforme Eagleton (1997, p. 16): [...] podemos perceber que algumas dessas formulações envolvem questões epistemológicas — questões relacionadas com o nosso conhecimento do mundo —, enquanto outras se calam a esse respeito. Algumas compreendem um sentido de percepção inadequada da realidade, enquanto uma definição como “conjunto de crenças orientadas para a ação” deixa essa questão em aberto. Tal distinção, como veremos, é um importante objeto de controvérsia na teoria da ideologia e reflete as desavenças entre duas das tradições correntes que encontramos inseridas no termo. De modo geral, uma linhagem central — de Hegel e Marx a Georg Lukács e alguns pensadores marxistas posteriores — esteve muito preocupada com ideias de verdadeira e falsa cognição, com a ideologia como ilusão, distorção e mistificação; já uma outra tradição de pensamento, menos epistemológica que sociológica, voltou-se mais para a função das ideias na vida social do que para seu caráter real ou irreal. A herança marxista hesita entre as duas correntes intelectuais. Não nos cabe avaliar de modo profundo a formulação de Eagleton ao afirmar que a tradição de ideologia em Marx é mais “epistemológica” que “sociológica”, mas desta retirar que, de fato, o conceito de ideologia perpassa duas maneiras de interpretação, que veremos tanto com Marx, quanto com Vigotski. Não pretendemos de forma alguma anular uma ou outra perspectiva, mas salientar que o enfrentamento dos problemas colocados pela ideologia, pela sua própria natureza, não são redutíveis a uma interpretação univocamente, qual seja, a mais conhecida delas, a que toma a ideologia como processo gnosiológico (Vaisman, 2010). Teríamos, portanto um cenário disputado por duas grandes correntes intelectuais do marxismo: Uma que coloca a ideologia no reino da falsidade de ideias, da mistificação e de interesses políticos escusos, e outra “mais sociológica que epistemológica”, cujo estudo da ideologia estendeu-se mais como pensamento socialmente determinado, isto é, como ideias e formas de organização do pensamento que advém da vida social, bem como as funções e valores dessas ideias. 30 Há uma série de autores e comentadores que tratam especificadamente dessas nuanças e distinções, tal como a indispensável literatura de clássicos do marxismo, não estenderemos em todas as possibilidades que podem ser consultadas pelo leitor nos seguintes autores: Callinicos (1985), Lichtheim (1965/2008), Eagleton (1997), Vaisman (1989), Lowy (1994), Chauí (1980) Lukács (1981), Gramsci (Gallo, 1997). Acerca da problemática da falsa consciência e a psicologia histórico-cultural pode-se consultar um recente trabalho de Ratner (2013). Como veremos mais adiante, o marxismo terá como característica admitir que a verdade não se trata de um objeto que possa ser alcançado somente na teorização, isto é, na busca da ideia perfeita e correta, mas submete a consciência e as ideias à prática social como um todo, de forma que a transformação social é sempre um ato histórico e este não pode ser fruto tão somente da consciência teórica ou permanecer no reino das ideias, a ação das consciências sobre o ser social só se efetiva na história. Ao conceber a história como o resultado dos meios em que os homens transformam a natureza e a si próprios pelo trabalho e as subsequentes transformações das relações e dos modos de produção, e a interferência constante dos homens neste processo, Marx define que a superação do atraso intelectual anda de mãos dadas com as revoluções das condições históricas em que as consciências dos seres humanos estão dialeticamente inseridas, como fica patente em A ideologia Alemã. A ideologia é de natureza prático-social, é uma característica das sociedades de classes onde opera a divisão do trabalho, de modo que tomá-la em termos cognitivos supondo que sua superação seja relegada somente à esfera do ideal é atentar-se a uma parte da ideologia sem conectá-la com seu correspondente material. Uma ideia pode ser tomada como verdadeira em uma época histórica e explicar a sociedade e o homem através de uma cosmovisão válida, conforme a instituição que a prega, sem que os alicerces que a sustentam sejam questionados. Assim, concepções que se mostraram equivocadas no futuro, exerceram importante função social ideologicamente, no tempo que correspondeu à explicação com a dominação material e política. Um conhecimento útil para uma sociedade não precisa ser necessariamente verdadeiro, quanto à sua validade epistemológica. Antes, precisa ter eficiência prática, especialmente na manutenção de relações de dominação: Podemos enfim retornar à questão da ideologia como “relações vivenciadas”, e não como representações empíricas. Se isso é verdadeiro, seguem-se então certas consequências políticas importantes. Uma delas, por exemplo, é que não se pode transformar substancialmente a ideologia oferecendo-se aos indivíduos descrições verdadeiras em lugar de falsas – ela não 31 é, nesse sentido, simplesmente um equívoco. Uma transformação de nossas relações vivenciadas com a realidade só poderia ser assegurada mediante uma mudança material dessa mesma realidade. (Eagleton, 1997, p.40, grifos nossos). A diferença fundamental entre a ilusão ideológica e a falsidade é que a primeira não reside tanto na garantia de que uma descrição correta do mundo possa suplantar as ilusões surgidas dos nossos limites materiais. O problema, sendo de ordem da prática social, coloca-se no terreno das questões materiais em que estão imersas as consciências individuais. Se a ideologia advém das nossas próprias relações sociais, bem como os problemas daí enfrentados e significados pela nossa consciência, esta só pode ser substancialmente alterada a partir das próprias mudanças materiais. Assim, as ideias que utilizamos para organizar o mundo, explicá-lo e recorrer às mudanças e transformações acabam por ser meios paliativos – e enganosos – para a consciência individual, mas não atingem as causas materiais fundamentais que englobam a vida individual em sua totalidade, na dinâmica de si mesmo com os outros homens e os meios de produzir e reproduzir a vida. Não se trata de menosprezar em absoluto o epistemológico, o debate de ideias e o avanço do conhecimento, que certamente dependem desses tipos de atividade, e por elas fazem a própria história da ciência. O materialismo histórico-dialético argumenta que a ciência não tem história própria, por ser um ramo da atividade humana que em última análise só pôde surgir conforme o desenvolvimento material e intelectual da humanidade enquanto conjunto, enquanto gênero humano e produtor da história. (Marx e Engels, 2007). Seja qual for a ênfase que esta tradição aplica ao conceito de ideologia – dentre duas possibilidades aqui frisadas – em ambas reside a constatação de que as mudanças substanciais que levam a humanidade para um patamar diferenciado quanto à produção e reprodução social da vida dependem da revolução das condições sociais de produção, isto é, dependem também de um projeto revolucionário de sociedade. Dessa forma, a discussão sobre a verdade em seu sentido epistemológico é encarada como relativa ao momento histórico, não se restringindo à história das ideias científicas, como se estas por si fossem as portadoras do discernimento necessário da consciência, para daí advir as transformações sociais necessárias. É importante frisar que a herança marxista coloca a questão da verdade e da ideologia bem como de sua transformação, no terreno da prática histórica e social e que isso não se restringe a um método contemplativo de análise. Vigotski é um autor marxista no seio desta tensão entre duas correntes sobre ideologia no marxismo, na medida em que usa da palavra ideologia em ambos os sentidos aqui expostos anteriormente: tanto na conotação da 32 ideologia enquanto distorção, quanto a que detêm um sentido mais “sociológico” ligado ao entendimento dos valores e funções das ideias na vida social. A fim de aproximarmos as concepções do materialismo histórico à tessitura do termo ideologia em Vigotski, com o objetivo de explicitar em que este autor partilha desta tradição em suas formulações, o presente capítulo tende a apresentar a discussão da ideologia no texto A Ideologia Alemã, de Marx e Engels. No entanto, pela natureza deste trabalho, discutiremos outras acepções de ideologia em Marx, em textos como o 18 Brumário de Luís Bonaparte, O prefácio à Contribuição à Crítica da Economia Política e O Capital. Faz-se necessária a passagem por estes textos por indicarem que a problematização da ideologia em Marx não está relegada à Ideologia Alemã, embora certamente seja nesta obra que ele trate mais exaustivamente do problema, bem como traga definições clássicas da ideologia como fenômeno que inverte a representação das relações sociais na consciência e as distorce por meio de diversas estratégias, entre as quais o discurso universalizante de uma classe particular que impõe os seus interesses e visões de mundo na consciência. Marx aponta também a origem classista da ideologia, que encobre os conflitos econômicos e ainda a inversão entre a consciência como se fora fundada em si mesma e a realidade social histórica e empírica, inversão que sobrepuja os condicionantes históricos, sendo uma das principais características do pensamento idealista criticado por Marx. Por tratar-se de um fenômeno da consciência, da representação e das ideias dos homens sobre si próprios e sobre a realidade, a ideologia está imbricada na personalidade e em um âmbito mais geral, na alienação promovida pela divisão social do trabalho que realiza um corte classista na formação das ideias dos homens sobre si. Neste sentido, personalidade, alienação e consciência são uma tríade conceitual inseparável da discussão sobre ideologia no campo do materialismo histórico e dialético, especialmente quando se trata de superar as aparentes constatações como a consciência autogerada e a concepção do indivíduo isolado (Mészáros, 2009). Tentamos relacionar as contribuições dos textos marxianos com os textos de Vigotski, visto que encontram ressonância na obra de Vigotski e são colocadas como problemas centrais da psicologia, especialmente a problemática da consciência, que parte já de modo crítico às psicologias dominantes de sua época. Vale salientar que para os conceitos de consciência e de alienação, esta última entendida por uma lógica de inversão entre sujeito e objeto, demos mais destaque à 33 Ideologia Alemã. Pela implicação metodológica de que este texto concentra a exposição mais completa sobre a ótica da inversão da realidade na consciência, essa espécie de negatividade da ideologia que será o sentido mais tradicional quando se fala de ideologia e marxismo. A partir da explicitação de suas teses principais sobre a ideologia e consciência, tornou-se possível apresentar um quadro que amplia a definição de ideologia, ilustrando a ideia aqui defendida de que a negatividade não restringe a problemática da ideologia em Marx, mas esta tampouco perde a sua preocupação com os valores e funções das ideias na consciência. 1.1 IDEOLOGIA E MODERNIDADE: BREVE HISTÓRICO DO TERMO. A palavra ideologia pode significar coisas diferentes não só no mundo cotidiano das palavras, quanto na “luta das ideias”. O modo de uso do conceito deve ser tomado conforme as necessidades sociais de cada época, o que implica também o sentido de seu uso político. Assim, desde que foi forjado por Destutt de Tracy10 e lançado à fama negativa por Napoleão Bonaparte11, passando pela crítica ao idealismo alemão em Marxe Engels o uso da palavra ideologia transformou-se completamente conforme o contexto em que era executado, o que tornou necessário, para uma discussão honesta sobre o tema, que o interlocutor tivesse de antemão qual o sentido está em uso. (Guareschi, 1996). O curioso sobre o conceito de ideologia é que ele aparecerá com este nome apenas na modernidade, ainda que o problema das interferências e deformações que podem ocorrer no processo de conhecimento da verdade seja um problema antigo. No Renascimento, Francis Bacon12 pincelara o problema na sua teoria dos ídolos, em que advogava que o método científico era necessário para driblar a influência dos ídolos sobre as nossas concepções que, inatas, impediriam o acesso à verdade. Bacon se preocupava com a demasiada abstratividade das teorias tradicionais da Idade Média e acreditava que o conhecimento humano deveria aproximar-se da realidade empírica. Nesta aproximação, o combate aos ídolos era uma etapa premente e regularmente necessária para evitar que recaíssem sobre o conhecimento a influência destes. (Konder, 2002) 10 Antoine Destutt de Tracy (1774-1836), pensador francês do período napoleônico. Foi membro do Instituto Nacional, grupo de intelectuais da elite, que trabalhavam como teóricos da reconstrução da França. Para mais detalhes ver Kennedy (1982) e Eagleton (1997). 11 Napoleão Bonaparte (1769 – 1821) foi imperador francês de 1804 até 1814. 12 Francis Bacon (1561 – 1626). Considerado pai da ciência moderna, entre suas obras destaca- se o Novo Organum, que significa Novo Método. 34 Ainda nesse período, Bacon escreveu a obra, Novum Organum, que é considerada por muitos como uma das principais na origem da ciência moderna, que estabelecia o conhecimento da natureza através do empirismo, e deste modo colaborava ativamente no estabelecimento de um novo modo de produção que surgia e deixava de lado a temporalidade eterna do feudalismo e a sua lentidão na transformação das forças produtivas. Nele expõe os aforismos que poderiam orientar a nova sociedade em gestação. O empirismo unia-se à aurora do modo de produção capitalista, sofisticando a tecnologia, ampliando o domínio da ciência e o conhecimento regular da natureza. Este conhecimento poderia ser bloqueado pela ação dos ídolos, que Bacon alertara em sua crítica na teoria formulada no Novum Organum. Ainda que pese a ausência da palavra ideologia como tal, fica patente a preocupação com fenômenos da consciência que atuariam de modo nebuloso no conhecimento da realidade. Lemos o seguinte no aforismo XXXVIII: Os ídolos e noções falsas que ora ocupam o intelecto humano e nele se acham implantados não somente o obstruem a ponto de ser difícil o acesso da verdade, como, mesmo depois de seu pórtico logrado e descerrado, poderão ressurgir como obstáculo à própria instauração das ciências, a não ser que os homens, precavidos contra eles, se cuidem o mais que possam. (p.13) Para o autor a correção epistemológica, ou gnosiológica, isto é, de ordem do conhecimento, era parte fundamental na luta contra os ídolos e a superação de todo sofisma e de uma dialética vulgar. Bacon os classifica em quatro gêneros, com o objetivo de alertar sobre as etapas a serem superadas pelo pensamento imediato intuitivo dos indivíduos, pelo método científico, especialmente o empirismo sendo regrado pela indução. Entretanto, a aplicação do método por si só não reduzia a importância de alertar pela força da atuação dos ídolos na consciência, que agiriam sempre como uma forma de espectro que ronda o conhecimento objetivo. As categorias de ídolos consistem em: da tribo, da caverna, do foro e do teatro. A primeira categoria diz respeito aos enganos próprios da humanidade, ligadas às tendências de crença de que o que conhecemos já é o correto sobre a natureza e o mundo. Os ídolos da caverna são os que atuam na consciência individual e garantem para o sujeito que o seu pensamento é o verdadeiro, em termos de validade geral. Os ídolos do foro são os empecilhos da linguagem e das limitações comunicativas próprias do ser humano, que causaram certa inépcia comunicativa. Por fim, os ídolos do teatro representam a ideia de que as verdades são importantes para as autoridades (poder político) e chegam à população em forma de verdades encenadas; com isso, conduziram 35 as crenças na massa de modo simplificado, tornando-as palatáveis, lisonjeiras para a população. (Konder, 2002). Bacon era um otimista quanto ao progresso científico, supondo, portanto que se a humanidade dominasse a natureza progressivamente estaria no caminho correto e de alguma forma inexorável. A utopia científica de Bacon é exposta em sua Nova Atlântida. Nesta obra, o filósofo britânico concebe a sociedade do futuro, fundada no método científico, que deveria elevar a capacidade humana de dominar a natureza bem como o uso de instrumentos criados pelo gênero humano, elevando-os a um alto grau tecnológico, inspirando uma noção claramente otimista do progresso científico. Nesse escrito, Bacon constrói o lugar denominado a Casa de Salomão, em que habitariam e trabalhariam os sábios do futuro, os maiores representantes éticos e verdadeiros cientistas, que exerceriam enorme influência na vida diária do restante de seus habitantes, não obstante, as características físicas destes sábios coletivos seria pertencer ao gênero masculino e de cor branca (Harvey, 2012, p.24). No entanto também tinha em vista a imensa dificuldade do projeto, Bacon não subestimava uma “força genética” dos ídolos sobre as concepções da maioria dos homens, sobre a consciência humana em geral e a necessidade de uma espécie de contínua autocrítica para livrar-se das influências destas tendências tão humanas: O intelecto humano não é luz pura, pois recebe influência da vontade e dos afetos, donde se pode gerar a ciência que se quer. Pois o homem se inclina a ter por verdade o que prefere. Em vista disso, rejeita as dificuldades, levado pela impaciência da investigação; a sobriedade, porque sofreia a esperança; os princípios supremos da natureza, em favor da superstição; a luz da experiência, em favor da arrogância e do orgulho, evitando parecer se ocupar de coisas vis e efêmeras; paradoxos, por respeito à opinião do vulgo. Enfim, inúmeras são as fórmulas pelas quais o sentimento, quase sempre imperceptivelmente, se insinua e afeta o intelecto. (Bacon, apud Konder, 2002) Bacon é um representante das origens do pensamento moderno no combate às tendências que afastassem a humanidade da verdade; somando-se a outros importantes pensadores considerados os criadores do método científico como Descartes13, que também manifestava preocupações sobre a veracidade das coisas e do mundo, e mesmo o lugar da dúvida no empreendimento dos métodos. No entanto, é apenas na França, durante o período napoleônico, que o conceito de ideologia aparecerá com a devida denominação. As suas origens não remetem necessariamente ao sentido negativo mais conhecido de ideologia, como um fenômeno que é oposto à ciência, por exemplo, mas 13 René Descartes (1596-1650). 36 uma disciplina científica própria, voltada para o estudo das ideias. O inventor do termo “ideologia” é comumente aceito como o iluminista francês Destutt de Tracy, que defendia o estudo científico das ideias, assim como poderiam ser estudados os fenômenos naturais (Eagleton, 1997; Vaisman, 2000; Lowy, 1994). Esse estudioso francês tornou-se membro importante no império napoleônico, possuindo o cargo de diretor do Instituto Nacional, na Seção de Ciências Morais e Políticas. A unidade entre burguesia e imperador, que configurava um refluxo no avanço da classe burguesa em relação à monarquia, ocorrida com o advento da Revolução Francesa, estava plenamente presente e a ciência das ideias surge em uma época em que se buscava compreender e evitar os erros do Terror14. Ele acreditava que de posse da ciência das ideias, via um caminho metodológico que consistiria das sensações mais elementares até as ideias mais elevadas, sendo possível reconstruir a política, a economia e a ética por meio dela. Um exemplo desse pensamento seria o de justificar a propriedade privada, afirmando que seu surgimento remonta à oposição perceptiva fundamental entre “você” e “eu” (Eagleton, 1997). Portanto, no início do uso da palavra ideologia, havia preocupações com os condicionantes externos das ideias, a busca de restituir as sensações vindas do reino físico e natural. Ainda que com uma verve materialista, tal empreendimento é notoriamente idealista, por explorarem as dimensões e a importância da consciência entendida como produto sustentado somente pelas ideias. As suposições ideológicas burguesas tais como a redução da realidade social às causalidades naturais e a concepções de indivíduos distintos e passivos estavam presentes na concepção de ideologia de De Tracy, de forma que, se por um lado estes criticavam as instituições do Antigo Regime e as ideias politicas deste período, não superavam um projeto elitista de reengenharia social, que relegava o poder político deste projeto de reconstrução do homem, do monopólio de uma classe dirigente de viés absolutista para uma elite de teóricos científicos ligados ao governo e neste caso específico, ao império. (Eagleton, 2007). O avanço da influência de De Tracy e seu projeto de crítica da ideologia e do prestígio da “ciência das ideias”, foi interrompido pelo próprio Napoleão, como pode ser visto em um discurso datado de 1812. Nele, o imperador critica a doutrina dos 14 Compreendeu o período mais violento dos acontecimentos da Revolução Francesa, resultando em julgamento e execução de milhares de opositores do regime liderado por Robespierre, e pela facção Montanha dos jacobinos. 37 ideólogos adjetivando-a de metafísica, culpando-os pela sua derrota na Rússia, fecha a seção dedicada ao tema no Instituto Nacional e ordena a troca da disciplina sobre ideologia nas escolas para a instrução militar. De Tracy e seus consortes enciclopedistas então passam a ser denominados pelo imperador de “ideólogos”, cujo significado é o mesmo de metafísicos abstratos, desconexos e fora da realidade. É provavelmente este significado que se torna corrente no século XIX, quando Marx irá retomar o termo (Eagleton, 1997; Lowy, 1994). Os ideólogos com sua ambiciosa transformação da sociedade pela ciência e pela intervenção do conhecimento posicionaram-se contra certo tom místico do discurso napoleônico sobre o coração humano e sobre seu ufanismo triunfalista, tornando-se um obstáculo preciso ao imperador. Apesar dos impasses, De Tracy continuou sua investigação, escreveu mais volumes, incluindo uma Gramática, e antes de morrer escreveu sobre economia, cercado objetivamente do retrógrado absolutismo de Napoleão, escreve inclusive um artigo defendendo o suicídio. É neste contexto que a ideologia perde o status de um “cético materialismo científico” de inspiração fortemente iluminista e ganha o sentido de ideias desconexas do solo real da vida (Eagleton, 1997). Em suma, uma conotação negativa será atribuída ao termo e será neste sentido que Marx utilizará o conceito ideologia em sua obra A Ideologia Alemã, a mais famosa sobre o assunto. Analisaremos essa obra a seguir, destacando as relações entre alienação, ideologia e consciência, que será relevante para a conexão entre os princípios do materialismo histórico contidos nos pressupostos marxianos e a constituição da teoria histórico-cultural como uma teoria da psicologia moderna, porém, não hegemônica e crítica da ideia de consciência tal como se encontrava na ciência psicológica do final do século XIX e início do século XX. 1.2 MARX E A IDEOLOGIA: O INÍCIO DA CRÍTICA. Os ideólogos colocaram o estudo das ideias no plano da luta política quando pretenderam sustentar a ideia de que o conhecimento e o domínio da ciência da ideologia teria o propósito de uma espécie de reengenharia social, visando uma reforma de cima a baixo e tendo como classe dirigente os próprios ideólogos. A “virada napoleônica”, que marcou a rejeição do imperador aos estudiosos, que antes os via como colaboradores, colocou também a palavra ideologia como o representante de ideias afastadas do solo real da vida, assim, fora relegada ao status de uma metafísica, 38 pois a ideologia e seus representantes seriam incapazes de compreender tanto as determinações que geraram as próprias ideias, quanto propor soluções políticas reais que, para além do discurso ou do projeto assentado sobre o conhecimento, transformasse o conjunto societário de modo concreto, modificando as suas condições de vida e não tão somente as intelectuais, deveriam de fato fazer avançar a história real. Essa conotação negativa marcará a posição de Marx, e também de Engels, em boa parte de seus escritos de juventude. De modo sucinto, Marx não se restringirá às formulações de sua juventude quando escreve sobre ideologia, tampouco pode-se afirmar que ela perde sua carga negativa, mas realiza uma ampliação do conceito.(Lukács, 1981; Vaisman, 2010). Veremos sucintamente que essa conotação perdurará ao longo da obra do autor de O Capital e é tema controverso quanto a quais teses Marx teria abandonado ou suprimido no decorrer de sua vida e obra, mas não perde o seu valor enquanto exposição primária da concepção materialista da história e de uma crítica dos movimentos da ideologia que, ainda que Marx tivesse por objetivo analisar apenas a ideologia alemã, são movimentos que perpassam boa parte do que se convencionou chamar de discurso ideológico. No Dicionário do pensamento marxista (1983), editado por Tom Botommore, no verbete “ideologia”, de autoria de Jorge Larrain, somos exortados a entender o conceito de ideologia em sua origem marxista com conotação negativa, além de sugerir que se leve em consideração o conceito em desenvolvimento na obra de Marx. Para o dicionário, a crítica da ideologia em Marx teve origem na crítica da religião realizada por Feuerbach, por um lado, e na critica ao idealismo hegeliano por outro. Ambos os alicerces relacionam-se com o mesmo efeito de inversão das capacidades sociais, neste caso, velando contradições que surgem da atividade prática humana real, da potência e capacidade do trabalho humano coletivo. Ademais, o desenvolvimento do conceito na obra de Marx não seria marcado por uma profunda ruptura conservando em todas as suas manifestações o seu aspecto negativo: A partir da crítica inicial da religião, até o desmascaramento das aparências econômicas mistificadas e dos princípios aparentemente libertários e igualitários do capitalismo, há uma notável coerência na compreensão da ideologia por Marx. A idéia de uma dupla inversão na consciência e na realidade, é conservada em todos os momentos, embora no fim se torne mais complexa, graças à distinção de um duplo aspecto da realidade no modo de produção capitalista. A ideologia, portanto, conserva sempre a sua conotação crítica e negativa, mas o conceito só se aplica às distorções relacionadas com o ocultamento de uma realidade contraditória e invertida. Nesse sentido, a definição, tão frequente, de ideologia como falsa consciência não é adequada na medida em que não especifica o tipo de distorção criticada, abrindo dessa forma caminho a uma confusão de ideologia com todos os tipos de erro. (Larrain, 1983) 39 Em síntese, o autor afirma que desde a crítica do idealismo alemão e de seus representantes, até o estudo da “anatomia da sociedade civil” que se dá em O Capital, Marx não abandona a perspectiva crítica sobre a ideologia, mas esta passa por um desenvolvimento que na crítica ao modo de produção capitalista torna-se ainda mais complexa, ainda que sob um mesmo eixo, quais sejam de distorções e ocultamentos de uma realidade que se apresenta à consciência de modo contraditório e invertido. A crítica à noção de ideologia como “falsa consciência” também está presente no verbete de Larrain. O autor aponta que mesmo muito difundida e atrelada como a perspectiva “marxista” de ideologia, a noção de “falsa consciência” não comporta toda a amplitude do conceito de ideologia e acaba confundindo este fenômeno com qualquer tipo de erro. Nesse liame, o autor aponta que um conteúdo ideológico não é necessariamente um “equívoco”, e que se a ideologia é distorção é necessário especificar de qual distorção se fala. Há por parte dos autores consultados um ponto pacífico: a de que a o conceito de ideologia em Marx pode ser considerado em desenvolvimento devido à complexidade dos fenômenos que aborda, quando parte a investigar o regime de circulação de mercadorias do capital, sem perder de vista o quanto pode indicar uma crítica das ideias estabelecidas e que colaboram na manutenção de um determinado modo de organizar a sociedade. Neste sentido, Marx vai da crítica aos representantes do idealismo alemão até chegar a uma concepção que coloca a ideologia como superestrutura da base econômica de qualquer modo de produção, mas com contornos específicos no modo de produção capitalista, como é o caso das esferas jurídicas, ou ainda do próprio estado político moderno (Lukács, 1981; Eagleton, 2007). De todo modo, a ideologia ainda guarda uma continuidade importante, apesar do desenvolvimento que ocorre em Marx, qual seja o de estabelecer uma ligação com uma lógica que desnuda a inversão das capacidades humanas, de seus produtos e transformações que realizou na natureza, e que é dependente do desenvolvimento do próprio trabalho, como algo objetificado15, cristalizado, seja com explicações ahistóricas que bloqueiam a compreensão do mundo histórico, como algo produzido pelos próprios homens, seja com explicações transcendentes que colocam o atual estado de dominação do homem pelo homem, na esfera do trabalho e em congruência com esta, na esfera política como algo que escapa a intervenção e modificação do homem 15 Conforme os escritos de György Lukács (1875 – 1971). 40 conscientemente. Neste sentido, assume-se como ideia ou discurso universalizante de uma condição histórica particular específica, criada e mantida por determinantes históricos, que ao menos em princípio, são modificáveis. Este princípio é resgatado por Delari Jr (2013), em uma definição sintética do ponto de partida da análise da consciência – a consciência como emergente da vida enquanto histórica, para o marxismo, através de Lukács. Trata-se de um modo de considerar a consciência que não é a priori, ao mesmo tempo em que não apenas um subproduto, um reflexo mecânico das condições materiais: Em Marx o ponto de partida não é dado pelo átomo (como para os velhos materialistas), nem pelo simples ser abstrato (como em Hegel). Aqui no plano ontológico não existe nada análogo. Todo existente deve ser sempre objetivo, ou seja, deve ser sempre parte (movente e movida) de um complexo concreto. Isso conduz a duas consequências fundamentais. Em primeiro lugar, o ser em seu conjunto é visto como um processo histórico; em segundo, as categorias não são tidas como enunciados sobre algo que é ou se torna, mas sim como formas móveis e moventes da existência. Essa posição radical – também na medida em que é radicalmente diversa do velho materialismo – foi interpretada de diferentes modos, segundo o velho espírito; quando isso ocorreu, teve-se a falsa idéia [sic] de que Marx subestimava a importância da consciência com relação ao ser material. Demonstraremos mais tarde, concretamente, que esse modo de ver é equivocado. Aqui nos interessa apenas estabelecer que Marx entendia a consciência como um produto tardio do desenvolvimento do ser material. Aquela impressão equivocada só pode surgir quando tal fato é interpretado à luz da criação divina afirmada pelas religiões ou de um idealismo de tipo platônico. Para uma filosofia evolutiva materialista, ao contrário, o produtor tardio não é jamais necessariamente um produto de menor valor ontológico. Quando se diz que a consciência reflete a realidade e, sobre essa base, torna possível intervir nessa realidade para modifica-la, quer-se dizer que a consciência tem um real poder no plano do ser e não – como se supõe – a partir das supracitadas visões irrealistas – que ela é carente de força. (Lukács, 1978, apud Delari Jr, 2013, p.78-79, grifos nossos). Isso significa dizer que a autonomização do mundo humano, o fruto de seu trabalho, que agora lhe aparece como algo estranho, irreconhecível como seu, está submetido a fenômenos imprescindíveis da realidade humana, como a alienação, que nesse sentido diz respeito à própria parcialidade da consciência, aquilo que necessariamente nos escapa do mundo e de nossas criações que não estão mais em nosso poder. No entanto, este fenômeno, no modo de produção capitalista, toma contornos próprios, entre eles, está o discurso de direitos universais da burguesia, que ganha o mundo a partir da revolução francesa e impulsiona o ideal iluminista de modernidade, de uma sociedade emancipada pelo conhecimento e pela promulgação dos direitos. Em resumo, a burguesia coloca-se como emancipadora de toda humanidade, negando os determinantes históricos que a colocam como uma nova classe dominante e não aquela que emancipa a humanidade do trabalho alienado, e que pelo contrário, cria uma grande massa de trabalhadores. Essa ideia parcial, que se pretende universal, é 41 objeto de atenta crítica de Marx, na acepção clássica do conceito. Ainda de acordo com Eagleton (1997): Em certas condições sociais, argumenta Marx, os poderes produtos e processos humanos escapam ao controle dos sujeitos humanos e passam a assumir uma existência aparentemente autônoma. Apartados dessa forma de seus agentes tais fenômenos começam então a exercer sobre ele um poder imperioso, de modo que homens e mulheres se submetem ao que, na verdade, são os produtos de sua própria atividade, como se estes fossem uma força estranha. O conceito de alienação está, portanto, estreitamente ligado ao de “reificação” – pois se os fenômenos sociais deixam de ser reconhecidos como o resultado de projetos humanos, é compreensível que sejam percebidos como coisas materiais, admitindo-se assim a sua existência como inevitável. (...) Se as ideias são apreendidas como entidades autônomas, então isso ajuda a naturalizá-las e desistoricizá-las, e esse é, para o jovem Marx, o segredo de toda ideologia. (p.48) A ideologia, portanto é “naturalizante” e a-histórica. Neste sentido, oculta aspectos da realidade social e visa, via discurso e ideias, eternizar as condições presentes (como a propriedade privada, por exemplo). Uma visão de classe determinada, tal como a burguesia que proclama como interesses de todos os seres humanos, os seus interesses enquanto classe, mas cujo projeto de emancipação é obstaculizado pelas condições de trabalho que ela mesma esteve no leme de seu engendramento. Dessa forma, a consciência burguesa é eternizada como a consciência. (Marx, 2007, p. 94). Veremos mais adiante a crítica de Vigotski às psicologias de sua época no sentido de que estas expressavam em seus constructos teóricos os limites dessas concepções, tidas como ideológicas, por refletirem o mesmo a-historicismo quanto à categoria da consciência e assim tomavam a consciência presentemente histórica como “a consciência”. A próxima sessão objetiva apresentar as teses centrais sobre ideologia em: A ideologia Alemã. A fim de explicitar determinados pressupostos da compreensão da história e do ser social em Marx, de modo que este permita um elo com a crítica da ideologia e da consciência nos escritos de L. S. Vigotski, na medida em que tais conceitos estão imbricados quanto à essência da ideologia em seu sentido mais tradicional. A continuação acerca da discussão sobre a definição mais clássica de ideologia, corrente nos anos da juventude Marx, ocorre com referências, – baseados em obras secundárias – que apontam o uso de “ideologia” de modo diverso, ao menos, não redutível ao encontrado no texto aqui em destaque, entre eles estão: O “Prefácio” à Contribuição à crítica da economia política e O 18 de Brumário de Luís Bonaparte. 42 1.3 A LÓGICA DA INVERSÃO NA CONSCIÊNCIA: A IDEOLOGIA ALEMÃ E O SEGREDO DE TODA IDEOLOGIA. “Calo-me, espero, decifro. As coisas talvez melhorem. São tão fortes as coisas! Mas eu não sou as coisas e me revolto.“. Carlos Drummond de Andrade – Nosso tempo. A ideia de uma inversão na consciência, dos processos efetivos da atividade social dos homens na história, está presente nos escritos de Marx desde sua juventude, como é o caso dos Manuscritos Econômico-Filosóficos de 1844, também conhecidos como manuscritos de Paris. É possível encontrar esta lógica de inversão nos conceitos de alienação e reificação. A lógica da inversão ganhará maior escopo teórico adiante, como em A ideologia alemã e de uma forma ou de outra tenderá a continuar em produções posteriores de Marx, inclusive sendo discutido dentro do quadro categorial de O Capital. O importante aqui é destacar a presença de uma lógica que inverte a relação sujeito-objeto, já presente em Marx como reflexão relevante e parte da sua relação crítica com a filosofia de Hegel e dos jovens hegelianos (Eagleton, 1997; Larrain, 1983; Lowy, 1994). Em Manuscritos Econômico-Filosóficos de 1844, a inversão sujeito-objeto aparece substanciada na conexão entre propriedade privada, troca e divisão do trabalho. Quatro aspectos marcariam todo este processo, o primeiro trata-se da produção de objetos pelo homem que não lhe pertencem tanto em sentido econômico quanto humano, operando a valorização direta do mundo da mercadoria enquanto desvalorizase o mundo humano, apartando o produtor da fruição de seus produtos devido à posição que ocupa na esfera econômica, na produção e não tão somente, pois a dimensão estética também é atingida, visto que a capacidade de fruição do trabalhador é dificultada e rebaixada (Resende, 2009). O segundo aspecto diz respeito ao próprio trabalho como alheio ao trabalhador, tornando a atividade laboral essencialmente negativa, já que o trabalhador tem a sua capacidade criativa submetida às necessidades da produção em que está inserido, reduzindo a atividade criativa do trabalho – em sentido amplo – como meio de realizar as suas necessidades mais básicas (Resende, 2009). O terceiro aspecto reside na manifestação da alienação entre homem e natureza enquanto ser genérico, a sua essência enquanto conjunto da humanidade que é a de transformar o mundo pela atividade do trabalho, a sua natureza social, que por sua vez cria a própria história humana é subvertida em um meio de conservação de sua 43 existência, apropriação privada e lucro, sedimentada na divisão social do trabalho acaba por alijar as potencialidades de tornar a humanidade cada vez mais emancipada de seus limites naturais (Resende, 2009). Em suma, o trabalho alienado acaba por tornar-se um obstáculo para a criatividade humana tornando as atividades dos produtores (trabalhadores) dramaticamente parciais. (Resende, 2009). O último aspecto, tal como apontado por Resende (2009), ao discutir estritamente sobre a reificação e alienação em Marx, consiste na crescente alienação do homem em suas relações, isto é, do homem consigo mesmo e com seus pares. O trabalho alienado particulariza as individualidades, tornando os homens em possíveis concorrentes em uma condição de verdadeira luta social, fundamentada na propriedade privada dos meios de produção, que legitima a divisão social do trabalho. Essa inversão de uma relação recíproca entre sujeito e objeto que dá a primazia para o objeto, tomando-o por coisa, será levada à discussão filosófica sobre a consciência, n’A Ideologia Alemã (Eagleton, 1997). A consciência tal como defendida e diagnosticada pelos idealistas, tende a supervalorizar o alcance das ideias e da crítica teórica abstrata, do apelo moral ideológico e subjugar o papel dos sujeitos coletivos e das forças motrizes da história na transformação do ser social. O entrelaçamento entre os condicionantes históricos que circunscrevem a produção de uma determinada consciência é anulada, estimulando uma concepção que torna a consciência algo transcendente de seu próprio tempo, com uma essência metafísica determinada, que eterniza o presente e preconiza o indivíduo como uma consciência autogeradora, isto é, toma a consciência como a fundadora do real. À consciência pode-se apenas imaginar autônoma, espontânea, autogeradora e entificada no presente, em um determinado momento histórico, em que a relação da produção da vida a partir da própria transformação das condições naturais transformadas pelos homens se complexifica e passa por saltos qualitativos e contínuos no desenvolvimento do trabalho e do ser social. Desse modo, o surgimento de uma classe de intelectuais ou ideólogos, tal como a dos sacerdotes e filósofos, só pode surgir em uma sociedade em que este grupo de pessoas está livre, ao menos em parte, da necessidade de produção restrita, do trabalho manual e prático (Marx; Engels, 2007). A consciência que se forma a partir de uma determinada classe, não herda as suas representações costumeiras geneticamente, pelo DNA. Para a concepção materialista da história, é a partir da atividade do sujeito no mundo que se formam as 44 suas representações e, portanto, não se transmite uma crença ou um sistema de ideias pela transmissão hereditária, mas antes, por estar localizada em um tipo determinado nas relações sociais de produção. A partir do momento em que uma classe se torna independente das atividades laborais, a sua própria estrutura perceptiva da realidade, os produtos de sua consciência, serão marcados pelos limites impostos pela própria dimensão que enfrenta na realidade. Essa situação é capaz de ser superada, e para o Marx - e também Engels - da Ideologia Alemã, isto decorrerá a partir da única ciência possível: a ciência da história, que engloba todas as disciplinas particulares, que também só podem ter surgido conforme a especialização e o avanço do conhecimento humano. Não é destes sistemas que surge a história dos homens, mas eles a esta se submetem, já que a história é o terreno real do conflito entre materialidade e ideias, entre homem e natureza e das formas pelas quais o conjunto societário organizou-se na produção e reprodução da vida, portanto, nenhuma consciência pode estar além ou aquém destas conexões. A sublimação ideológica que resigna os homens mesmo honestamente esforçados em romper com o atraso real na qualidade das condições de vida, em busca de subterfúgios intelectuais, pode também ser superada, não só com uma concepção de história – na via da crítica teórica – que coloque a humanidade como agente da criação do mundo humano, mas uma transformação também prática e tendo em vista a superação do modo de produção capitalista, que produz economicamente e fomenta o suporte ideológico, das inversões entre trabalhador e produto do trabalho, e que em suma não elimina a exploração histórica do homem pelo homem mediada pela propriedade privada. A crítica teórica da ideologia não pretendia suplantar as “fraseologias” dos neohegelianos, mas ser a base científica de uma teoria revolucionária que tratasse as questões de modo prático, localizando os grilhões centrais da humanidade na alienação do trabalho, no atraso econômico e político, localizando a luta moderna pela emancipação humana na colaboração da unificação daqueles que Marx (1848/1997, p.40) chamou “coveiros” do modo de produção capitalista. De modo sucinto, podemos dizer que estes pressupostos elaborados por Marx e aqui arrolados ocupam-se da ciência da História, mas também, conforme define o autor, não há como discuti-la sem que isto perpasse pelo debate sobre a ciência, a ideologia e a consciência. Ocupando-nos da parte mais reconhecida e divulgada do extenso manuscrito, a sessão dedicada a Feurbach busca explicitar o que Marx define como 45 ideologia, seguindo o caminho iniciado nos Manuscritos de Paris, que giram em torno da autonomia da consciência idealista, da ideologia enquanto processo de inversão que emerge do processo da limitada atividade material dos seres humanos e, portanto, deve ser suplantada por uma teoria científica que abarque os homens concretos e reais, os explorados modernos que erigem a produção de riqueza do modo de produção capitalista, enquanto classe e em prol da transformação prática das condições de atraso do trabalho sob a égide do modo de produção da capitalista. Em resumo, coloca a libertação das consciências subordinadas às ideologias do atraso na emancipação humana do trabalho alienado e na exploração do homem pelo homem mais do que a necessidade de uma atitude intelectual restrita de esclarecimento teórico por um grupo pequeno de pessoas, como era o caso da situação analisada em “A Ideologia Alemã”. Procuraremos demonstrar como Marx e Engels realizam a crítica da consciência tomada de modo idealista, e que desse modo acaba por privilegiar as ideias dominantes de uma determinada fase do desenvolvimento produtivo das relações humanas, na medida em que as ideias dominantes se descolam do local onde ocorre a dominação objetiva, e acabam por atuar na limitação do pensamento que, – ainda que se proponha crítico – tende a manter o estado de coisas atual, vide a naturalização da consciência presente, tomando a aparência como essência e ignorando os aspectos materiais fundamentais na estabilização de qualquer sociedade. Contudo, antes localizaremos brevemente alguns percalços sofridos pelos manuscritos da “A Ideologia Alemã” no contexto em que emergiu, no início do século XX, bem como cartas de Marx e Engels que nos ajudam a nos aproximarmos de uma leitura mais complexa destes manuscritos, por localizarem nestes autores o caráter de incompletude que, a nosso ver, auxiliam a operar uma análise cuidadosa, a fim de não relegar a problemática em torno do conceito de ideologia às teses destes conjuntos de textos de forma absoluta. 1.4 DA “CRÍTICA ROEDORA DOS RATOS” AOS TRIBUNAIS DE STALIN. O conjunto de manuscritos que compõem a Ideologia Alemã foi resgatado da “crítica roedora dos ratos” na União Soviética, sob o contexto da 1ª MEGA16, que 16 Marx e Engels Gesamtausgabe: projeto de compilação dos manuscritos originais em língua alemã, além de cartas pessoais, textos publicados em outras línguas e países e material auxiliar do contexto histórico da produção dos manuscritos. Publicados e editados em volumes, totalizando atualmente 50 destes, com 46 objetivava publicar textos ainda inéditos, a partir dos manuscritos originais, redigidos por Marx e Engels. Publicado em 1931 sob a edição de David Rijazanov na URSS, que acabara pagando um preço alto pela inventiva pesquisa. Conforme o atual pesquisador do projeto MEGA-4, Michael Einrich, em comunicação pessoal (23.03.13) relembrou, Rijazanov foi preso, réu de um julgamento que durou cerca de dez minutos, sob a alegação de oposição ao regime stalinista, acabou por ser condenado ao fuzilamento. Stalin já havia iniciado a concentração de poder em suas mãos e uma das políticas colocadas em prática pelo próprio, visava o julgamento, prisão e mesmo eliminação de ideias que fossem ou não ostensivamente contrárias às estabelecidas pelo ditador (Silva, 2013). Para os responsáveis pela prisão e execução de Rijazanov, o manuscrito que hoje conhecemos por Ideologia Alemã, era um texto correto, sistemático, no qual as categorias do “materialismo dialético” eram apresentadas já como pilares de uma “ciência do desenvolvimento” da história, em uma toada mecanicista e anti-dialética característica da ciência e da filosofia sob o jugo stalinista. Enquanto para Rijazanov, a partir da descoberta dos textos da juventude de Marx, estes manuscritos, ainda que com suas colaborações originais, entre os quais se encontrava A ideologia Alemã, eram de caráter incompleto, não unitário e fragmentado Heinrich, (22.03.2013). As comissões do partido comunista soviético que cuidavam da ciência e da filosofia não aprovaram esta versão de Rijazanov, que antes da execução fora substituído por outro editor, Adoratskij, que em consonância com as deformações impostas ao marxismo pelo stalinismo, tratara de promover a vitória política e ideológica de uma espécie de vigor sagrado e soberano dos manuscritos, que colaborara com a unidade monolítica imposta a todo tipo de pensamento através da doutrinação que colocou o marxismo como uma ciência oficial, atitude política que corroborava ideologicamente à concentração de poder centralizado em Stalin. Não é demais relembrar que o culto da personalidade foi um dos pontos fortes na disseminação ideológica de dominação política do período stalinista, avessa não somente ao estudo sistemático dos próprios pensadores e líderes do processo revolucionário como Lênin, mas ao caráter emancipatório da teoria marxiana que visa a destituição das alienações, entre elas, a sublimação da ação dos homens enquanto classe, na figura de mitos ou heróis que os guiariam à liberdade suprema, como se a previsão de serem editados cerca de 120. O projeto foi iniciado e reiniciado cerca de 4 vezes. Afirma-se que a última empreitada detém um caráter mais filológico que as anteriores. 47 história tivesse à mercê destes personagens. Dentro da atmosfera dogmática do stalinismo, admitir o caráter aberto de um texto relevante na totalidade da obra de Marx, não era interessante para a política stalinista vigente, menos ainda admitir que as suas concepções de evolução da história, notadamente mecanicistas, teriam que admitir o golpe da autocrítica, da abertura, da interpretação divergente. Cartas posteriores de Marx e Engels sobre os manuscritos que compõem o texto A Ideologia Alemã, depõem a favor da ideia do caráter incompleto do texto, sobre as concepções elaboradas ali, dificultando tomá-lo como fonte completamente acabada, . Ao contrário, estas cartas revelam, muitas vezes, que os autores tratavam o conteúdo debatido pelo seu caráter auto esclarecedor, uma espécie de treinamento intelectual. O “abandono” destes manuscritos acabou ocorrendo em parte por decisão dos próprios filósofos. Como afirma Engels: Antes de enviar estas linhas ao prelo, procurei e reli o velho manuscrito de 1845/1846. A parte dedicada a Feuerbach não está terminada. A parte elaborada integralmente compreende uma exposição da concepção materialista da história, que apenas demonstra quanto ainda eram incompletos nossos conhecimentos de história econômica. O manuscrito não continha a crítica da doutrina feuerbachiana; não servia, portanto, para o objetivo desejado. Em compensação, encontrei num velho caderno de Marx as onze teses sobre Feuerbach, que são incluídas no apêndice. Trata-se de anotações destinadas a serem desenvolvidas mais tarde, notas redigidas às pressas, que de forma alguma se destinavam à publicação, mas cujo valor é inapreciável por constituírem o primeiro documento em que se fixou o germe genial da nova concepção do mundo. (Engels 1886/1983, p.25-26) Os limites apontados por Engels não são depreciativos ao conteúdo d’A Ideologia Alemã, ao contrário, fica clara a importância do exercício de redação do manuscrito, por ser o “germe genial da nova concepção do mundo” – o principal valor do documento, mais do que a suas discussões teóricas em termos de acerto ou exatidão factual, especialmente em história econômica. Em outra carta, Marx se posiciona de maneira semelhante à de Engels, acerca do destino histórico dos manuscritos do período que compõem a elaboração d’A Ideologia Alemã: [...] na primavera de 1845, veio (Engels) se estabelecer também em Bruxelas, resolvemos trabalhar em conjunto, a fim de esclarecer o antagonismo existente entre a nossa maneira de ver e a concepção ideológica da filosofia alemã; tratava-se, de fato, de um ajuste de contas com a nossa consciência filosófica anterior. Este projeto foi realizado sob a forma de uma crítica da filosofia pós-hegeliana. O manuscrito, dois grandes volumes in-octavo, estava há muito no editor na Vestefália, quando soubemos que novas circunstâncias já não permitiam a sua impressão. De bom grado abandonamos o manuscrito à crítica dos ratos, tanto mais que tínhamos atingido o nosso fim principal, que era enxergar claramente as nossas ideias, (Marx, DATA ORIGINAL/1983, p.25-26, grifos nossos) De todo modo, quando veio à tona, A ideologia Alemã cumprira um papel em conjunto com o restante dos manuscritos de Marx, em um capítulo conturbado da luta das ideias na leitura e na agenda política revolucionária do século XX. Trata-se de um 48 extenso diagnóstico a respeito de um determinado modo de conceber a história, a ação dos homens sobre ela, e neste plano, a consciência e seu entrelaçamento entre realidade histórica, entre condições materiais por um lado e a “consciência e seus produtos” por outro. Relação que caracteriza os pormenores da concepção de ideologia encontrada no texto analisado e da qual buscaremos explicitar características centrais para o debate sobre ideologia. 1.5 DEFINIÇÕES DE IDEOLOGIA N’A IDEOLOGIA ALEMÃ. Marx e Engels em A ideologia Alemã objetivavam realizar a análise de toda uma vertente filosófica ilustrada nas figuras dos jovens hegelianos de esquerda. Intelectuais políticos de convivência e conhecimento de Marx e Engels. Um deles, o filósofo alemão Feurbach17, havia exercido importante influência intelectual em ambos, especialmente com a obra A Essência do Cristianismo. O contexto político da produção dos manuscritos da Ideologia Alemã era a do Estado Prussiano18 e o mote da crítica política dos jovens hegelianos era o arcaísmo inerente a esta estrutura política que se refletia no atraso da realidade social e política alemã, que sequer havia outorgado a unificação da Alemanha em Estado-Nação àquele período. (Larrain, 1983; Marx; Engels, 2007). O atraso da modernização alemã era ainda mais nítido quando comparado a outros países da Europa, como a altamente industrializada Inglaterra. A crítica dos jovens filósofos centrava-se então, em revolucionar as mentalidades através de conceitos críticos que possibilitariam o desenvolvimento através de um apelo à consciência. O idealismo dos jovens hegelianos figura como uma tentativa de superação de Hegel, entretanto, como apontam Marx e Engels, estes são tributários do peso do idealismo, pois tratam a consciência de modo contemplativo e a individualidade é naturalizada na sua condição moderna, a de indivíduo-livre e auto-responsável, isto é, o indivíduo isolado ou a-histórico. A constelação de conceitos destes jovens hegelianos exposta por Marx e Engels, tais como a de “indivíduo egoísta”, “mundo sensível” (em Feurbach), ou a “autoconsciência e o sujeito” (em Bruno Bauer), padecem deste idealismo em uma versão tipicamente hegeliana, ainda que tardia: 17 Ludwig Andreas Feurbach (1804 – 1872) O Estado Prussiano divida-se em diversas províncias, na Alemanha eram cerca de 300 estados alemães, a unificação nacional foi ocorrer apenas em 1871, ainda sob influência do Estado Prussiano. Para melhor entendimento, indica-se a consulta aos Mapas da Europa em 1800 e em 1900: http://www.euratlas.net/history/europe/1800/. 18 49 Dado que para esses jovens hegelianos, as representações, os pensamentos, os conceitos – em resumo, os produtos da consciência por eles autonomizadas – são considerados os autênticos grilhões dos homens, exatamente da mesma forma que para os velhos hegelianos eles eram proclamados como os verdadeiros laços da sociedade humana, então é evidente que os jovens hegelianos têm de lutar apenas contra essas ilusões da consciência [fraseologias]. (Marx; Engels, 1845/2007, p 29) Assim o “mundo sensível” percebido pelos sujeitos poderia ser transformado a partir da transformação da consciência. Caberia a libertação real no terreno das ideias, em um esquema interpretativo de mundo que coloca as ideias julgadas necessárias para a transformação, como imperativo inicial para a mesma. Feurbach identifica a percepção da nossa própria consciência com nosso ser. Marx e Engels, por outro lado, enfatizam a essência histórica da consciência, desde os primeiros agrupamentos humanos gregários, em que o homem se “espantava como o gado” diante da natureza, mas que vai se modificando ao largo da história da raça humana sobre a terra. Desse modo, a nossa consciência presente não se trata de uma essência imutável, ao contrário, ela é histórica e pode ser modificada tanto quanto responde ao nível geral das forças produtivas em que está inserida. Marx e Engels ironizam essa identificação entre consciência individual e essência: [...] um belo panegírico ao existente. Exceção feita a casos contra a natureza e alguns poucos anormais, terás muito gosto em ser, desde os sete anos de idade, porteiro numa mina de carvão, permanecendo catorze horas diárias sozinho, na escuridão, e porque lá está teu ser, então lá está também tua essência. (Marx e Engels, 1845/2007, p. 81) Para Marx e Engels, o que ocorre é que toda história, sendo movimento é, em parte, o encontro das gerações atuais com o legado das precedentes e, por outro lado, a modificação desse legado pela geração atual, o que permite ao materialismo histórico e dialético ser uma ferramenta de transformação. Contudo, ele não prevê ou preconiza o absoluto controle e o determinismo sobre como será a história após a aplicação de uma ideia, mas a premissa empiricamente verificável de como as relações sociais de produção modificadas criam ideias novas, no desenrolar do desenvolvimento histórico. O finalismo, que eterniza uma condição objetiva e subjetiva presente, é mistificador quando torna a história uma “pessoa ao lado de outras pessoas” como os conceitos de autoconsciência, crítica e único, e coloca na forma de entender a história o campo de ação de um individuo como centro irradiador de mudanças sociais concretamente alcançáveis rumo a uma universalização. A crítica religiosa ocupava no centro das críticas dos jovens hegelianos uma função fundamental, da mesma forma que para Feurbach, a alienação religiosa poderia ser diagnosticada se invertida a imagem da criação de Deus para os poderes da criação 50 humana, o mesmo ocorria à conceituação da filosofia alemã, que identificava a religião, como afirmam Marx e Engels, em um trecho suprimido do manuscrito, como: “a causa última de todas as relações repugnantes a esses filósofos” (Marx; Engels, 1845/ 2007 p. 83). Assim as relações dominantes nas suas formas políticas, econômicas e filosóficas, são declaradas como religiosas e sacralizadas, fomentando a ideia do atraso da realidade pelo culto das instituições existentes. Por esse entendimento de ideologia, superá-la implica, de acordo com Marx e Engels (1845/2007), contrapor-se aos “ditirambos filosóficos” (p. 79) com uma teoria que expresse a realidade tal como ela pode ser verificada empiricamente. Dessa forma, submete os pressupostos teóricos às condições que prefiguram a possibilidade da própria história como, por exemplo, a necessidade ontológica de produzir os seus meios de vida, bem como as subsequentes formas como cada geração vai modificando este modo de produção, e as transformações que daí decorrem, entre a atividade do homem na natureza, mediada pela indústria e a consciência como um produto atrelado a estas transformações. Numa direção contrária aos jovens hegelianos, considera que o primeiro ato histórico que revolucionou a existência do homem na terra, também abriu caminho para a progressiva continuação de um desenvolvimento à parte do restante dos animais da natureza. Localiza o cerne central que por eles não fora alcançado, levando-os a se perderem em suas análises: Pode se distinguir os homens dos animais pela consciência, pela religião, ou qualquer outra diferença. Mas os homens deixam de ser completos animais quando passam a produzir seus meios de vida, esse meio de vida, esse modo de produzir é passado de geração a geração. (Marx; Engels, 1845/2007, p.87). Quatro pontos sobre a constituição da história humana são primordiais levar em conta para o surgimento da consciência, conforme Marx e Engels. O primeiro ato histórico é a produção de meios para sobrevivência, meios pelos quais os homens produzem sua comida, bebidas e vestimenta, satisfazem suas necessidades naturais e corporais. Diante desta satisfação temos o momento que é o da criação de novas necessidades em conjunto com o aumento populacional e a diversidade de novos homens que procriam. Assim, ao longo de milênios e com modos de produções diversos (comunismo primitivo, asiático, feudalismo e capitalismo) as transformações das relações limitadas pela natureza, tornam-se cada vez mais sociais. O caráter revolucionário dos atos históricos ao qual o pensamento deve estar submetido – pois não é possível que Marx e Engels considerassem os atos históricos 51 desprovidos da ação de homens que pensassem – traz à tona a ênfase na existência de classes antagônicas na produção, regulação e distribuição desse modo de vida. Assim, as abstrações do pensamento devem se colocar ao dispor da análise dos conflitos que dilaceram a sociedade por inteiro, caso contrário corre o risco de ser partilhante de uma visão de mundo distorcida, ou ilusória e fragmentada, isto é, ideológica, colaborando com a manutenção destas próprias mazelas que pretende enfrentar. É somente diante destes fatos sucedâneos que a consciência como a conhecemos ou experimentamos hoje pode ser considerada como tal. Extirpar desta as suas mediações históricas, levaria inevitavelmente a uma solução com apelo idealista e ideológico, na medida em que abstrai a força ativa dos homens na história e credita à correção da “consciência” abstrata o meio privilegiado da libertação real, seja ela política ou econômica, na mão de alguns poucos seres iluminados e heroicos. Na seguinte passagem, temos a síntese sobre a consciência como produto tardio das relações materiais e sua inevitável imersão na linguagem. Marx e Engels “historicizam” a consciência contrapondo-a às categorias idealistas dos neo-hegelianos: Somente agora, depois de termos examinado quatro momentos, quatro aspectos das relações históricas originárias, descobrimos que o homem tem também “consciência”. Mas esta também não é, desde o início, consciência “pura”. O “espírito” sofre, desde o início, a maldição de estar “contaminado” pela matéria, que, aqui, se manifesta sob a forma de camadas de ar em movimento, de sons, em suma, sob a forma de linguagem. A linguagem é tão antiga quanto a consciência – a linguagem é a consciência real, prática, que existe para os outros homens e que, portanto, também existe para mim mesmo, e a linguagem nasce, tal com a consciência, do carecimento, da necessidade de intercâmbio com outros homens. Desde o início, portanto, a consciência já é um produto social e continuará sendo enquanto existirem homens. (Marx; Engels, 1845/2007, p. 34) A consciência humana é desde sua mais tenra origem, social e a linguagem, sua principal mediação, é tão antiga quanto a própria consciência. Ambas, conforme Marx e Engels, têm a mesma origem, a carência e a necessidade de comunicação e cooperação entre os homens. O desenvolvimento paulatino das forças produtivas e a complexificação do ser humano, tornaram possível o surgimento de concepções em que a aparência de que as individualidades são rigorosamente distintas umas das outras, sem um intercâmbio orgânico e significativo em comum torna-se a percepção espontânea sobre a consciência individual. A ideologia tende a esmagar essa historicidade e a legitimar que os indivíduos compreendam-se como de naturezas distintas, quando, por exemplo, justifica a separação entre indivíduos voltados para o trabalho, e outros voltados para a atividade de dominação ou ideológica. A perene existência dessas distinções não é compreendida por Marx e Engels como produto de uma vitória destas concepções em si na cultura humana ao longo dos 52 séculos, mas, sobretudo na permanência da divisão social do trabalho. A divisão social do trabalho e a propriedade privada seriam, pois, as principais causas desta ilusão dos ideólogos sobre o alcance de suas ideias e da consciência teórica. Uma sociedade dilacerada por conflitos tende a tornar as consciências nela em jogo, como vertentes limitadas e invertidas das relações sociais que subjazem o tecido social, no solo da relação do homem com a natureza e com sua própria história. A consciência é capaz de sofrer inversões, mas estas não se limitam a uma ideia equivocada, que possa ser suplantada por uma verdade definitiva e a-histórica, ou mesmo transcendental. Esta inversão da consciência está ligada à própria prática material, é a atividade limitada dos homens, no caso, dos submetidos à divisão do trabalho, que limitará a formação da consciência. O ponto de partida para uma ciência da história, portanto, não deveria estar atrelado a esta consciência parcial, ou melhor, não poderia satisfazer-se com ela, da ideia que temos sobre nós mesmos. Marx e Engels consideram que as formas pelas quais até aquele período haviam determinado as formas de pensar do homem, e no caso dos ideólogos, estas se vestiam nas formas de conceitos que consideramos abstratos e de alcance superestimados, acabavam por agir como se estes pudessem guiar as transformações históricas pelas próprias pernas. Portanto, a “autoconsciência”, o “homem” – entificação eternizada do presente por Feurbach – e mesmo termos políticos tradicionais como o Estado, não emanariam das ideias para a vida material, mas ao contrário, seriam produtos resultantes da atividade material dos homens, dos meios pelos quais a linguagem deu as respostas em cada período histórico. Meios que não são neutros ou desinteressados, mas mostram-se intimamente, desde o surgimento da divisão social do trabalho, ligados aos interesses das classes que dominam em grande medida a atividade de trabalho, e exercem o protagonismo nas diferentes fases da história. Superar o idealismo e em consequência a ideologia para Marx e Engels d’A Ideologia Alemã consistia, no plano teórico, em realizar a inversão entre as representações como fundantes das transformações e a atividade material dos homens com seus condicionantes particulares de cada época como fundantes da consciência. A crítica da ideologia, que a entende como um momento de sublimação e inversão na consciência diante de sua origem real, incapaz de compreendê-la dada sua limitação objetiva, bem como o pressuposto clássico do materialismo histórico e dialético de não partir da ideia como fundante do ser, para superar esta limitação, são bem explicitadas por Marx e Engels no seguinte excerto: 53 Totalmente ao contrário da filosofia alemã, que desce do céu à terra, aqui se eleva da terra ao céu. Quer dizer, não se parte daquilo que os homens dizem, imaginam ou representam, tampouco dos homens pensados, imaginados, e representados para, a partir daí, chegar aos homens de carne e osso; parte-se dos homens realmente ativos, e, a partir de seu processo de vida real, expõe-se também o desenvolvimento dos reflexos ideológicos e dos ecos de seu processo de vida. Também as formações nebulosas nas cabeças dos homens são sublimações necessárias de seu processo de vida material, processo empiricamente constatável e ligado a pressupostos materiais. A moral, a religião, a metafísica e qualquer outra ideologia, bem como as formas de consciência a elas correspondentes, são privadas, aqui, da aparência de autonomia que até então possuíam. Não tem história, nem desenvolvimento; mas os homens, ao desenvolverem sua produção e seu intercâmbio materiais, transformam também, com esta sua realidade, seu pensar e os produtos de seu pensar. Não é a consciência que determina a vida, mas a vida que determina a consciência. No primeiro modo de considerar as coisas, parte-se da consciência como do individuo vivo; no segundo, que corresponde à vida real, parte-se dos próprios indivíduos reais, vivos, e se considera a consciência apenas como sua consciência. (Marx; Engels, 1845/2007, p. 94) A consciência de um indivíduo em um período histórico só pode ser compreendida a partir das relações sociais que a constituem e que ao mesmo tempo permitem que ela possa interferir no mundo. Se não estivéssemos em relações sociais constantemente não herdaríamos os produtos culturais de gerações anteriores, como tampouco nos constituiríamos enquanto indivíduos sem a mediação de outros seres humanos, por sua vez, mediados pela linguagem. Assim, a consciência é colocada no “chão da história” e não pode ser abstraída das relações sociais que a constituem. Ademais as representações que os homens criam para si, especialmente em sistemas de ideias como a religião e a metafísica, tornam-se ideologia justamente porque estas não pretendem avançar às suas elucubrações, em uma investigação crítica que coloque a consciência como um fenômeno processual, do qual não se pode somente deduzir os seus elementos reais fundantes, quanto projetar através dos mesmos a superação do atual estado de coisas. Se os ideólogos do iluminismo, e na franja destes, o movimento particular alemão dos jovens hegelianos, padeciam de um otimismo fulminante, a crítica da ideologia em Marx e Engels (1845/2007) é um avanço patente, pois não são mais os erros do espírito, a psicologia, as paixões, os ídolos, enfim que deveriam ser combatidos por um método – no sentido de conjunto de regras e esquemas - por algum tipo de 54 ciência isenta, mas compreender as causas e as funções históricas destas falsas consciências, com o objetivo não só de corrigi-las, mas de superar as condições que geram este engano. A consciência em A Ideologia Alemã é a relação do ser consciente com sua prática social. O que é determinado no homem não é a história, mas as relações sociais de cada modo de produção em particular que condiciona as relações contraídas em cada indivíduo, sem que possam ter controle sobre elas. Ainda que as estruturas políticas que sob elas se erguem, como o Estado, surjam da própria sociedade civil, não se compreenderá a realidade destes indivíduos que produzem essa sociedade se o caminho tomado for uma especulação arbitrária; ela deve partir do real, e o real é entendido por Marx E Engels, em parte, (1845/2007) como o desvelamento das condições de produção: “tal como desenvolvem suas atividades sob determinados limites, pressupostos e condições materiais, independentes de seu arbítrio” (p.93). A ideologia opera, portanto, dentro do campo da inversão que sofre a consciência ao autonomizar-se da esfera econômica produtiva, podendo, a partir daí, criar todo o tipo de estruturas simbólicas que justifique a sua posição social. Agindo como uma consciência que mistifica as relações sociais de produção estabelecidas, e mesmo as que ocorreram ao longo da história, tomando uma forma parcial de conhecimento como a essência da consciência e do ser. Neste sentido, a ideologia circunscreve e limita a consciência que pretenda tratar a sua realidade como a realidade humana, fixando-lhe uma essência: A consciência [Bewuststsein] não pode jamais ser outra coisa do que o ser consciente [bewusste sein], e o ser dos homens é seu processo de vida real. Se, em toda ideologia os homens e suas relações aparecem de cabeça para baixo, com numa câmara escura, este fenômeno resulta do seu processo histórico de vida, da mesma forma como a inversão dos objetos na retina resulta de seu processo imediatamente físico. (Marx; Engels, 1845/2007, p. 94) Para os autores alemães, a divisão do trabalho tem origem nas diferenças da reprodução sexual e de caráter natural nas tribos antigas, passa a ter caráter de divisão do trabalho – e não somente de divisão de tarefas – quando surge uma divisão entre trabalho material e espiritual. A naturalização dessa relação nas suas formas especulativas só é possível neste momento histórico, quando a consciência está em condições de emancipar-se do mundo e lançar-se às construções teóricas “puras”, distantes das exigências da realidade efetiva. A estrutura da atividade material do sujeito circunscreve a gênese e o desenvolvimento da consciência individual: A divisão do trabalho só se torna realmente divisão a partir do momento em que surge uma divisão entre trabalho material e [trabalho] espiritual. A partir desse momento a consciência 55 pode realmente imaginar ser outra coisa diferente da consciência da práxis existente, representar algo realmente sem representar algo real, - a partir de então, a consciência está em condições de emancipar-se do mundo e lançar-se à construção da teoria, da teologia, da filosofia, da moral etc. “puras”. (Marx; Engels, 1845/2007, p.35) As condições lançadas pelo capitalismo colocaram os seres humanos em uma escala progressivamente acelerada de interdependência: desde a organização do trabalho que foi se massificando e uniformizando-se às relações econômicas imperialistas e globalizantes. Ainda que altere substancialmente o gênero humano como uma totalidade, representa a si próprio como resultado de vontades individuais, e é assim idealmente concebido na figura do indivíduo egoísta. O que Marx faz é colocar essa contradição no solo da realidade dos interesses cindidos das classes antagônicas e dos setores conflituosos da sociedade. Localizando a concepção de consciência que não identifica a sua individualidade ao gênero humano como um todo, e que, portanto, pode se imaginar autogerada, Marx e Engels reiteram que, mesmo esta forma de perceber a consciência tem uma origem prática real, e não é apenas uma ideia bem sucedida. Em outras palavras as ideias dominantes de uma época surgem da própria dominação e não do discurso autonomizado, não é somente uma estratégia bem sucedida. Um destas estratégias discursivas criticadas por Marx e Engels, está na ideia de um “interesse geral” coletivo, que operaria como uma espécie de essência humana: Além disso, com a divisão do trabalho dá-se ao mesmo tempo a contradição entre o interesse dos indivíduos ou das famílias singulares e o interesse coletivo de todos os indivíduos que se relacionam mutuamente; e sem dúvida, esse interesse coletivo não existe meramente na representação, como “interesse geral”, mas, antes, na realidade, como dependência recíproca dos indivíduos entre os quais o trabalho está dividido. (Marx; Engels, 1845/2007, p. 37) Marx submete as ideias que os indivíduos detêm sobre suas posições sociais à atividade material que exercem na vida. O critério da práxis, da atividade, é o que define o pertencimento a uma classe social ou outra e não sua representação imaginária, tomada aqui como uma representação isolada dos seus condicionantes históricos. A ciência do materialismo histórico dialético se oferece como a alternativa para a transformação das consciências, em conjunto com a transformação da práxis social, já a ideologia, ainda que ela atinja e destaque níveis que fazem parte da realidade, insuflam a capacidade destes itens em resolver aquilo que a sua estrutura conceitual em si não pode suprimir ou revolucionar, ou menos ainda, explicar satisfatoriamente. Assim como os iluministas, Hegel não era diferente no tocante a não observar o lado soturno do trabalho humano, ainda que tenha atingido o conceito de trabalho como Marx o adotou: a capacidade dos seres humanos de transformarem a natureza e assim 56 transformarem a si próprios, distanciando-se cada vez mais dos limites impostos pela natureza animal, diversificando enquanto seres sociais em uma unidade contraditória com a natureza. Marx avança na ideia de trabalho alienado para colocar também em terrenos reais a especulação hegeliana do trabalho eternalizado na dialética do senhor e do escravo, e limitado do trabalho especulativo do espírito, a atividade intelectual, mesma limitação que padeciam os jovens hegelianos (Konder, 2002). Assim como Hegel, os jovens hegelianos padeciam da ausência da captura da dimensão negativa do trabalho, por conseguinte, da dinâmica da sociabilidade. Ao colocarem-se como a parte que está acima – iluminada e heroica – fazem imagem de si mesmos, como a de uma individualidade com alcances heroicos na leitura e na dissolução dos problemas reais. Marx, como momento negativo da filosofia de Hegel, retira-lhe o caráter de teodiceia e estabelece a história como resultado de lutas em um processo aberto. Aqui o materialismo histórico opõe-se à ideologia e coloca o conhecimento da história a serviço daqueles afastados da possibilidade de elaboração teórica e de enfrentamento com as concepções dominantes. Uma das tarefas da crítica é revelar a relação de uma ideia, pode mesmo ser um conceito filosófico e sua relação com as ideias dominantes – mesmo em suas múltiplas manifestações – como estas acabam por ser parciais quanto às configurações centrais do estado de dominação presente. As crises de poder político e econômico que abalam e reconstroem modos de produção ao longo da história não se dão sem lutas ideológicas, uma vez que, a classe que detém os meios de produção também detém o domínio da produção espiritual, que nos dias presentes faz-se imponente pela mídia corporativa. Como dissemos acima, se a estrutura perceptiva da consciência do sujeito está circunscrita à sua atividade material dentro da dinâmica das classes sociais na produção e reprodução da vida, o sujeito que está mais distante das produções espirituais tende a ficar mais vulnerável às concepções da classe que domina o que justifica em parte a efetivação do ideário burguês, mesmo entre os proletários. Daí a necessidade do combate nesta esfera e de se unificar uma concepção de história que coloque a capacidade criativa e criadora do homem, sua essência, que a difere da existente em todos os outros animais, na ação prática da unificação do proletariado. Este domínio espiritual de uma classe coloca o problema de que as suas concepções tenderão a universalizar o seu domínio histórico de modo a colocar a “aparência” das relações estabelecidas como “essências” universais. Segundo Marx, 57 esta estratégia é parte do próprio domínio econômico, no intuito de bloquear a sua implosão e ao mesmo tempo justificar o seu domínio, ocorrendo que: (...) toda nova classe que toma o lugar de outra que dominava anteriormente é obrigada, para atingir seus fins, a apresentar seu interesse como o interesse comum de todos os membros da sociedade, quer dizer, expresso de forma ideal: é obrigada a dar às suas ideias a forma de universalidade, a apresentálas como únicas racionais, universalmente válidas. (Marx, 1845/2007, p.48) Um exemplo de um discurso ideológico bem sucedido e que ocorreu séculos antes da redação d’A ideologia Alemã, é lembrado por Mészáros (2004), ao citar a estratégia do cônsul da Roma Antiga, Menênio Agrippa, quando este se dirigiu para os romanos que haviam entrado em greve e ocupado o Monte Sagrado, para dissuadi-los de enfrentar o regime, o discurso consistia em defender uma concepção “orgânica” da sociedade: Segundo o tão referenciado cônsul romano – que em palavras típicas da Enciclopédia Britânica, era conhecido como um homem de “ponta de vista moderados” - cada camada social tem seu “próprio lugar” no grande organismo. As camadas inferiores devem obter sua satisfação a partir da “glória refletida” e, independentemente de sua inferioridade, ser consideradas “igualmente importantes” para o funcionamento do organismo a que pertencem. Evidentemente, esse foi um poderosíssimo exercício ideológico. Segundo a lenda, os que protestavam se comoveram tanto com os “pontos de vista moderados” do cônsul, que, imediatamente, abandonaram a sua postura de desafio coletivo e retornaram aos lugares a eles determinados. (p. 07) A relação entre consciência, alienação e ideologia entrelaça-se em uma mesma problemática. Trata-se dos limites objetivos da consciência humana e de formas de concebê-la, bem como seus modos de constituição e ação que se baseiam nestes mesmos limites, através de recursos como a universalização, a parcialização e o ahistoricismo, em prol de uma harmonia ou ordem inexistente, idealmente insuflada. A teoria torna-se etapa necessária da superação da ideologia, é o sustentáculo da “críticaprática” mas não deve limitar-se em ser um outro momento ideal tomado apartado da realidade social, ao contrário trata-se da produção de um conhecimento que revele os determinantes sociais da consciência, capazes de superar as concepções minadas pela ideologia e que, entre outras instâncias, entenda a consciência como um processo, aliada com o projeto de revolucionar o estado de coisas presentes, para que a consciência esteja em outro patamar qualitativamente diferenciado, compreender a consciência é mais portanto que descrevê-la como se apresenta no presente. Marx avança na argumentação sobre a origem classista da ideologia, e o papel das classes nas formações ideológicas e na determinada função da ideologia na permanência destas ideias, mesmo que estas já não colaborem para uma situação de 58 igualdade, justiça e desenvolvimento humano reais, concretos, mas antes acabam – conscientemente ou não – sustentando um cenário de manutenção: As ideias da classe dominante são, em cada época, as ideias dominantes, isto é, a classe que é a força material dominante da sociedade, é ao mesmo tempo, sua força espiritual dominante. A classe que tem à sua disposição os meios da produção material dispõe também dos meios da produção espiritual, de modo que a ela estão submetidos aproximadamente ao mesmo tempo os pensamentos daqueles aos quais faltam os meios da produção espiritual. As ideias dominantes não são nada mais que do a expressão ideal das relações dominantes apreendidas como ideias; portanto são a expressão das relações que fazem de uma classe a classe dominante, são as ideias de sua dominação. Os indivíduos que compõem a classe dominante possuem, entre outras coisas, também consciência e, por isso, pensam; na medida em que dominam como classe e determinam todo o âmbito de uma época histórica, é evidente que eles o fazem em toda sua extensão, portanto, entre outras coisas, que eles dominam também como pensadores, como produtores de ideias, que regulam a produção e distribuição das ideias de seu tempo; e, por conseguinte, que suas ideias são as ideias dominantes da época. Por exemplo, numa época e num país que o poder monárquico, a aristocracia e a burguesia lutam entre si pela dominação, onde, portanto a dominação está dividida, aparece como ideia dominante a doutrina da separação dos poderes, enunciada então como uma “lei eterna”. (Marx e Engels, 1945/2007, p. 47) Veremos no capítulo seguinte como essa separação de ideias dentro de um mesmo espectro dominante – a sociedade burguesa – ocorre também na Psicologia na face de suas diversas escolas, que partilham a filiação ora ao idealismo, ora ao materialismo, sem ainda ter produzido uma síntese desta cisão e o quanto isto é representante das divisões objetivamente instauradas na realidade. Neste sentido, a superação da “confusão” reinante na ciência psicológica tal como diagnosticou Vigotski, em 1927, também é um problema prático, que perpassa pelo tema da consciência enquanto processual e da importância de um projeto de consciência emancipada na sociedade construída conscientemente por um projeto coletivo de transformação social. As referências procuradas para uma formação mínima sobre a multiplicidade do problema da ideologia no marxismo revelam que não há consenso a respeito de que as definições expostas em A Ideologia Alemã esgotariam a reflexão de Marx sobre a ideologia. Algumas destas restrições orbitam no excesso do vocabulário empirista dos jovens Marx e Engels, que insinuariam a ausência da consciência em contradição com a materialidade desde sua origem, mas colocando-a como produto secundário. Como vimos no início do capítulo, Lukács (1981) diz que o fato da consciência ser considerada um produto tardio não lhe condiciona um valor ontológico menor. No entanto, um exemplo da existência de discordância quanto à validade estatutária das teses aqui expostas, como a descrição de modos de vida anteriores são tidas como uma “fantasia objetivista” para marxistas como Raymond Williams ((Eagleton, 1997). 59 Aos nossos propósitos, indicar sentidos diversos na obra de Marx e Engels para o conceito de ideologia nutre a ideia de que a utilização deste conceito também é variável, conforme a necessidade prático-política do conceito e que isto marcará a tão variada constelação no uso deste na tradição materialista histórica e dialética. A necessidade da superação dialética – teórica e prática – é o que forja a crítica ao engano dos ideólogos, estas tematizações não são as únicas que significam a palavra “ideologia” como um todo. Há ainda, além da tensão própria a toda obra de Marx quanto à natureza e à caracterização da ideologia, o uso político do conceito pelo movimento internacionalista operário e dos intelectuais e filósofos da tradição marxista. Este uso cumprirá papel importante na “fama” que tomou o conceito de ideologia como sinônimo de “falsa consciência”, de modo que esta definição é muitas vezes atrelada como a principal ou única para esta corrente. (Konder 2002, Vaisman, 2010). Levando em consideração que nesta sessão foram expostas as teses fundamentais de A Ideologia Alemã quanto à ideologia, e focando-se nesse texto por ser a “interpretação canônica” de ideologia para Marx e Engels, identificando-a muitas vezes como “falsa consciência”, a próxima sessão citará brevemente alguns textos de Marx que abrem flancos para a compreensão de ideologia, que não se restringe tanto ao sentido negativo e crítico, nos moldes da juventude dos filósofos e revolucionários alemães, quanto à identificação da ideologia à falsa consciência. 1.6 APONTAMENTOS SOBRE IDEOLOGIA E FALSA CONSCIÊNCIA Conforme Eagleton (1997), Marx nunca utilizou o termo “falsa consciência”, que aparece em uma carta de Engels a Franz Mehring, anos após a morte de Marx, carta que provavelmente cumpriu um papel importante na popularização da noção de ideologia como falsa consciência, entre os movimentos operários e da intelectualidade socialista na virada dos séculos XIX ao XX. Há ainda a hipótese de que no âmago das revoltas sociais em curso, muitas vezes, a exigência de combate ao pensamento conservador ou reacionário exigia este teor de crítica, via uma linguagem menos filosófica que combativa (Konder, 2002). Nesta carta, Engels discorre abertamente sobre o conteúdo ideológico ser necessariamente falsa consciência e defende que o conteúdo só pode ser ideológico justamente por ignorar aquilo que é o seu dispositivo motivador: A ideologia é um processo que o chamado pensador executa com consciência, mas com uma falsa consciência. As verdadeiras forças motrizes que o motivam permanecem ignoradas, de outra forma não 60 se traria de um processo ideológico. (Engels apud Konder, 1893/2000, p. 49). Um limite desta formulação é exposto na crítica de que a ideologia não é redutível à falsa consciência, porque esta incorporaria, necessariamente, conhecimentos verdadeiros, o que a torna um processo de muito maior alcance e complexidade. (Konder, 2002)19.Um exemplo de que o próprio Marx tratou das ideologias de modo mais amplo que os sentidos que orbitam a ideia de falsa consciência, pode ser encontrado no texto de 1859, o prefácio à Contribuição da crítica da economia política (1929/1978). Marx resume o seu método de pesquisa, o “fio condutor” que culminou no projeto d’O Capital. O método do materialismo histórico e dialético é aqui indicado sumariamente como o método de investigação próprio para o estudo da “anatomia da sociedade burguesa”, o modo de produção capitalista (p.129). As formações ideológicas são colocadas por Marx na superestrutura da esfera econômica produtiva do modo de produção moderno, toma-as como na esfera das ideias que se relacionam dialeticamente com as determinações econômicas da produção social da vida. Desse modo, os “produtos da consciência” sistematizados em ideologia, que antes eram definidos pelo seu teor invertido e mistificador, têm agora a função de servir de veículo que tenciona a luta de classes no mundo das ideias e na prática política. São as “formas jurídicas, políticas, religiosas, artísticas ou filosóficas, numa palavra, as formas ideológicas em que os homens adquirem consciência desse conflito e lutam para resolvê-lo” (Marx apud Eagleton, 1997) ou ainda “o conduzem até o fim” (Marx, 1859/1978, p. 129): O resultado a que cheguei e que, uma vez obtido, serviu-me de fio condutor aos meus estudos, pode ser formulado em poucas palavras: na produção social da própria vida, os homens contraem relações determinadas, necessárias e independentes de suas vontades, relações de produção estas que correspondem a uma etapa determinada do desenvolvimento das forças produtivas materiais. A totalidade destas relações de produção forma a estrutura econômica da sociedade, a base real sobre a qual se levanta uma superestrutura jurídica e política, e à qual correspondem formas sociais determinadas de consciência. O modo de produção da vida 19 É o caso de quando o método científico é posto à ordem de interesses particulares - como legitimar desigualdades sociais e raciais – a ideologia relaciona-se com a ciência, e para tal, ainda que de modo muito dissimulado, necessita de formulações que correspondam, expliquem o mundo real. Esta necessidade muitas vezes levou a uma mistura de marxismo com positivismo, que separava a luta política radical do conhecimento objetivo da realidade, a unidade entre prática revolucionária e verdade histórica como vimos em Marx. Esta tendência estava fundamentada numa espécie de darwinismo social que buscou “rever” o marxismo, e está concentrada em figuras como Bernstein, Kautsky e Plekhanov na Rússia (Lowy, 1994). 61 material condiciona o processo geral da vida social, política e espiritual. Não é a consciência dos homens que determina seu ser, mas, ao contrário, é o seu ser social que determina sua consciência. Em certa etapa de seu desenvolvimento, as forças produtivas materiais da sociedade entram em contradição com as relações de produção existentes ou, o que nada mais é do que a sua expressão jurídica, com as relações de propriedade dentro das quais aquelas até então se tinham movido. De formas de desenvolvimento das forças produtivas estas relações se transformam em seus grilhões. Sobrevém então uma época de revolução social. Com a transformação da base econômica, toda a enorme superestrutura se transforma com maior ou menor rapidez. Na consideração de tais transformações é necessário distinguir sempre entre a transformação material das condições econômicas da produção, que pode ser objeto de rigorosa verificação da ciência natural, e as formas jurídicas, políticas, religiosas, artísticas ou filosóficas, em resumo, as formas ideológicas pelas quais os homens tomam consciência deste conflito e o conduzem até o fim. Passamos então, a ter cerca de três definições de ideologia em Marx, e ainda uma quarta que se fundamentará na reificação da mercadoria em O Capital (Eagleton, 1997). Tentaremos resumir sumariamente quais são: a primeira liga-se à definição de que crenças ilusórias ou socialmente desvinculadas que se veem como fundamento da história e que, na naturalização das condições sociais de trabalho de homens e mulheres, sustentam poderes políticos opressivos, naturalizam uma condição de exploração que é historicamente determinada, bem como a posição dos ideólogos – Marx aponta como primeira classe de ideólogos os sacerdotes – que também é naturalizada pela ideologia como suporte eterno de uma dada formação social. A segunda, também referente ao texto A Ideologia Alemã, expressa os interesses materiais da classe dominante e são úteis na produção deste domínio por meio de diversas ideologias que não atacam a causa da dominação, mas a escamoteiam. A ideologia lançada à superestrutura da sociedade e suas vias de luta política nas expressões jurídicas, artísticas, enfim nas “formas ideológicas” é ainda uma terceira maneira que se encontra a ideologia em Marx. Para outros autores ainda há uma concepção que pode ser extraída diretamente de O Capital e está ligado diretamente à ideia do fetichismo da mercadoria que, aparecendo como um mundo autônomo, não é capaz de ser tomado por sua essência histórica pela consciência cotidiana, sendo necessário um afastamento, ou o método de abstração científica para por em relevo a ideia científica do conceito, o concreto pensado. (Paulo Netto, 2011) Dois dos autores utilizados na pesquisa, para orientar-nos na investigação histórica do conceito de ideologia na tradição marxista, também assentam uma polêmica. Para Eagleton, quando a ideologia lança-se à superestrutura e não é mais vista como falsa, desconexa ou mistificadora, ela é dotada do poder de se tornar uma “armadura intelectual” do proletariado. Já o filósofo brasileiro Leandro Konder, acredita que esta é uma definição “confusa” de ideologia, na medida em que o conhecimento 62 ideológico, mesmo em formas positivas, não pode ser aliado do proletariado, na medida em que este sempre será dotado de uma parcialidade que impede uma visão da totalidade do ser social. Como coloca Konder: O ensaísta inglês está consciente do fato de que “nem toda ideologia é erro e nem todo erro é ideologia” (Eagleton, 1997, p. 126). E sabe, também que, “para terem êxito, as ideologias devem ser mais que ilusões impostas” (ibidem, p.27). No entanto, sua compreensão do conceito de ideologia em Marx (que é o ponto de partida de sua própria concepção de ideologia) é confusa. A seu ver, Marx teria se equivocado porque oscilava entre a visão da “ideologia como ilusão” e a visão da “ideologia como armadura intelectual de uma classe social”(ibidem, p.87). Parece ter faltado a Eagleton um entendimento mais profundo da complexidade (e da riqueza) da questão da ideologia como Marx a propôs. (Konder, 2002, p.72) Para Konder, baseado n’ 18 de Brumário de Luís Bonaparte, o conceito de ideologia em Marx estará sempre ligado a uma limitada visão da ação política, uma positividade que não se mostra como meio para uma transformação qualitativa e acabaria por tornar-se um obstáculo no horizonte da ação: Marx não caracterizava a ideologia como mera ilusão. Nem a caracterizava como “armadura intelectual de uma classe social”. No Dezoito Brumário, ele deixou claro que a ideologia pequeno-burguesa dos deputados não deriva da condição de pequeno-burgueses (que possivelmente até nem era a condição deles), ela correspondia aos limites do horizonte dos políticos, que não conseguiam enxergar no plano político aquilo que os pequenos burgueses não conseguiam enxergar na vida prática, na atividade econômica. Quer dizer: para Marx, a ideologia estava sobretudo no que não era visto. Como poderia ser armadura intelectual? (Konder, 2002, p.70) Este é um exemplo de polêmica entre estudiosos do conceito de ideologia. Entre interpretações que hesitam entre a ideologia como meio organizador de ideias para um fim – por exemplo, a luta socialista – e a inevitabilidade da parcialidade ideológica das instituições dominantes, tais como a política, na resolução dos conflitos da base material, e neste sentido de reconhecer a ideologia sempre como um limite da consciência a ser reconhecido e ultrapassado. De modo algum pretendemos aqui esgotar esta discussão no âmbito destes dois autores, mas salientar que a ideologia em Marx não consiste em ponto pacífico. Buscamos aqui superar um conceito sincrético de ideologia, ou mesmo espontâneo, que a identifica, tão somente, com a “falsa consciência” e julgamos ser tarefa necessária na medida em que indica o desenvolvimento de Marx, em temas sobre a consciência e seus produtos, de modo ampliado. A ideologia tem na atividade social tanto sua gênese quanto a possibilidade de sua destruição, e este critério prático para sua superação é legado a Vigotski, bem como a influência de entender a ideologia como uma expressão da alienação e da agonia do pensamento burguês diante dos obstáculos materiais de sua superação, que por vezes acarretaram na degeneração da ciência psicológica, pela via de princípios explicativos 63 que resguardavam momentos de verdade em seu processo, mas condicionados à ausência de uma síntese teórica e prática, tornavam-se e expandiam-se como ideologia. (Vigotski, 1927/1996). Outro ponto que entendemos estar presente nos escritos analisados de Vigotski consiste na constatação de que, mesmo quando a ideologia aparece em seus textos de modo voltado a todo pensamento socialmente determinado e definida como “sistema conceitual valorativo”, este autor não nos apresenta um conceito desprovido de criticidade, ou seja, não se trata de uma cosmovisão neutra e partilha da riqueza crítica de Marx na medida em que a ideologia é fonte, mas também limite da consciência e deve ser superada. Como veremos no próximo capítulo, Vigotski também partilha da tensão encontrada na tradição do materialismo histórico-dialético e também opera uma expansão de suas definições sobre ideologia, na medida em que superá-la torna-se papel da educação e do pensamento por conceitos, ampliando os postulados iniciais aos quais expomos no seguinte capítulo. 2 PSICOLOGIA E IDEOLOGIA: EXPLICAÇÃO DO PSIQUISMO OU EXPRESSÃO DA REIFICAÇÃO? A IDEOLOGIA COMO CONCEITO CRÍTICO-NEGATIVO EM VIGOTSKI, 1924-1929. O surgimento da psicologia enquanto ciência independente foi marcado por uma tendência em elevar princípios teóricos particulares da totalidade da psique humana, que foi diagnosticada por filósofos e psicólogos nas primeiras décadas do século XX, como Politzer20 (1928/1998), Sartre (1939/2009) e Vigotski (1927/1996). Esta se expressava na reificação dos processos propriamente psicológicos do homem, isto é, postulando que estados da consciência humana e da conduta constituíram-se exatamente tal como o princípio explicativo exigia (fosse ele o reflexo, o inconsciente, ou a “boa forma”). O fato é que esta jovem disciplina mantinha com as demais, especialmente com as ciências humanas, uma relação de absorção, e assim numa atuação determinista elevava-se como princípio explicativo e chave da consciência humana, o social era então “psicologizado” e as diversas manifestações da vida seriam em última análise expressões desta psicologia. Conforme Japiassu (1982), a psicologia sempre conservou 20 Georges Politzer (1903-1942), de origem húngara, foi filósofo e teórico marxista, atuou na Resistência Francesa à invasão nazista no período da segunda guerra mundial, sendo preso, torturado e morto pela Gestapo. 64 certo desejo de “imperialismo” em relação às demais disciplinas humanas, de modo mais a absorver do que articular: Portanto, foi de sua vizinhança com a filosofia, que decorreu a direção na qual a psicologia concebe sua emancipação e seu acesso a um estatuto científico independente: uma libertação relativamente à filosofia, por conformação ao modelo das ciências da natureza já constituídas. Por isso a psicologia ainda hoje oscila entre duas grandes correntes: uma, mais filosófica, utilizando os modelos explicativos hermenêuticos ou interpretativos; outra, propriamente científica, tomando de empréstimo às ciências naturais seus modelos explicativos (por exemplo, o behaviorismo). Por outro lado, convém lembrar que, pelo fato de ter nascido no seio da filosofia, a psicologia parece ter herdado também certo desejo de imperialismo: concebe suas relações com as demais disciplinas humanas sob o modo da absorção, e não da articulação. (Japiassu, 1982, p.42) Colocava-se diante da psicologia o problema da complexidade - irredutível a alguns princípios científicos - da conduta do ser humano e do mundo das coisas que o circundam, diante da precariedade das explicações psicológicas. Ainda conforme Japiassu (1982), a psicologia como ciência da conduta, isto é, das “respostas significativas através das quais o ser vivo em situação, integra as tensões que ameaçam a unidade e o equilíbrio do organismo” (p. 74), portanto a forma pela qual se vivencia a relação subjetiva-objetiva entre realidade social e psiquismo se formava, precisava ser explicada em seus próprios termos, levando em conta a singularidade da psique. Para tal, fez-se necessário livrar-se de duas espécies de “viseiras” que criavam a dependência direta da psicologia com outra área maior da ciência, por um lado, a excessiva explicação racional do comportamento de consciência, e por outro, a dependência das ciências naturais como paradigma científico (Japiassu, 1982). Essa dependência é apenas uma face da característica de inversão típica da psicologia, conforme a análise de alguns de seus críticos. Eleger o seu princípio explicativo como a chave da compreensão total da consciência, sem considerar que este próprio princípio perde a sua substância explicativa na medida em que reduz o psiquismo à este princípio. Assim, aspectos da consciência humana, que só podem ser compreendidos a partir de seus determinantes históricos, acabam por eleger a essência particular de uma consciência histórica, como consciência humana em geral, isto é, universal, suspendendo as suas características predominantes de um período histórico dado, postulado como a verdadeira condição humana, portanto, no plano político servindo como ideologia do individualismo e da naturalização da política, obliterando a ideia de transformação social (Parker, 2010). Assim muitas vezes as teorias psicológicas tiveram caráter eminentemente ideológico, colaborando na manutenção do status quo científico e ideológico, por meio da universalização de seus métodos e técnicas e pela relação de imperialismo que 65 estabelecia com os outros campos do saber. Dessa forma, a integração do saber constituído pela psicologia passa pela deformação ideológica, na medida em que esta não se reconhece como parte explicativa da totalidade da psique e passa a identificar toda a produção da consciência humana como concernente de ser explicado por um princípio em particular. Em um contexto em que a Psicologia já tentava avaliar-se enquanto ciência independente, e eclodiram diagnósticos de “crise” e de parcialidades ideológicas, Vigotski utilizará a noção de ideologia, de modo que esta expressa uma negatividade enquanto avanço no conhecimento do real, já que mistifica a natureza social e histórica do psiquismo, fixando-o a essências imutáveis e ampliando a explicação da formação da consciência individual, pautada em um princípio que acaba por abarcar a totalidade das formas de consciência social, tais como a arte, a política, a religião, a filosofia, etc. Pretendemos com este capítulo, compilar as aparições da palavra “ideologia” em textos selecionados de L.S. Vigotski, resultantes da varredura explicitada na sessão sobre a metodologia desta pesquisa. Para melhor organizar a exposição dos dados realizamos um “corte” cronológico, uma vez que os textos dos primeiros anos da produção vigotskiana são os mais marcados pela conotação negativa e crítica da ideologia, ao passo que a partir de 1929, encontra-se outro sentido que não se reduz à sua conotação crítica, o que justificou o recorte assumido. No entanto, há uma exceção. O texto O fascismo e a psicologia apesar de ser de 1934, também foi incluído neste capítulo por ser um texto essencialmente crítico, de combate, de um espinhoso período de censura e de concentração de poder autoritário na produção filosófica e científica da União Soviética por conta do fenômeno político que conhecemos como stalinismo, período marcado pela retração dos princípios revolucionários internacionalistas, que antes eram a tônica do partido bolchevique russo, até a morte de Lênin (Silva, 2013). O fascismo e a psicologia é um texto em que a ideologia é exposta em toda sua carga degenerada quanto a entender o ser humano em sua universalidade de gênero, tomando uma perspectiva largamente parcial para advogar a favor do psiquismo ariano como tipo ideal da consciência, e que por tal motivo tinha todo o direito de colonizar o resto do mundo. Portanto, trata-se de uma aparição em que não há duvidas a respeito da tendência assumida por Vigotski quanto ao conceito de ideologia: uma expressão grave da inversão entre poderes e processos humanos, isto é da alienação e da reificação. 66 2.1 IDEOLOGIA NO “PRÓLOGO” DO LIVRO DE E. THORNDIKE: PRINCÍPIOS DE ENSINO EM BASEADOS NA PSICOLOGIA Como demonstrou Tuleski (2008) o presente prólogo de Vigotski está inserido em um contexto de efervescência econômica, política e cultural advinda das tensões pelas quais passava a recém-instituída União Soviética. A disputa pela formação de uma consciência socialista que superasse as parcialidades inerentes à propriedade privada estava em campo, mas as condições objetivas revelam mais um momento de transição que o estabelecimento automático do novo homem, mesmo quando este projeto tem a possibilidade coletiva e consciente tal como foi dado no período fértil e progressista da Revolução. Os planos quinquenais de Stalin e a coletivização forçada no campo eram exemplo de que os conflitos estavam longe de acabar e de deixar profundas marcas na tentativa de um projeto de sociedade coletivamente forjado. Neste sentido, o texto se insere dentro do debate em que a psicologia tradicional, de viés fortemente moderno e ocidental, já não poderia estar a par do tamanho das dificuldades e das especificidades das tarefas que se colocavam tanto para a psicologia quanto para a pedagogia. Os paradigmas burgueses, tanto pelos seus valores morais colocados muito acima das questões materiais vigentes e das relações sociais de produção em geral, ainda abstraiam-se das condições reais e conflituosas que estavam atingindo os dilemas da educação na URSS. A psicologia deveria colocar-se como a ciência do novo homem, mas por estarem passando por um período profundo de transição, o novo ainda estava a ser gerido, mas de forma que o “velho” já era incapaz de dar conta dos problemas atuais. Como afirma Tuleski, Vigotski tinha consciência da dificuldade de realizar o salto para uma nova sociedade e isto estava presente em sua obra, incluso no prólogo em destaque: Se no campo dos conhecimentos teóricos está se produzindo uma transformação radical das velhas concepções e ideias e uma reestruturação fundamental de conceitos e métodos, nas disciplinas aplicadas, tanto quanto nas ramificações do tronco geral, são também inevitáveis os mesmos processos, sutis, mas frutíferos, de destruição e reconstrução da totalidade do sistema científico. Poderão retrair-se, mas não deixarão de produzir-se. [...] Por isso agora, quando não se tem levado a cabo esta revisão, reveste-se de maior importância contar com livros adequados que possam ser utilizados neste período revolucionário de transição, no qual todo o anterior está irremediavelmente questionado e já não se pode utilizar, mas ainda não foi criado o novo capaz de substituí-lo. (Vygotsky 1926/1996 p. 143). E de forma também atribuindo um valor transitório e com confiança no futuro que Vigotski ressalta a importância do livro de Thorndike, especialmente quando este coloca a necessidade da psicologia e da pedagogia de se relacionarem mutuamente, pois uma pedagogia que prescindisse da psicologia seria uma tentativa de educar totalmente 67 em bases que demonstravam ser especificamente ideológicas. (Vygotski, 1926/1996). A ideologia aqui, portanto, aparece como oposto de ciência –existiria, pois uma ciência diferente ou a verdadeira ciência- na medida em que representa a parcialidade, a fragmentação e a ausência de uma teoria científica sobre o conhecimento da consciência humana e o “cimento” entre a técnica educativa e as bases da psicologia humana: Não obstante, renunciar a psicologia na hora de reelaborar um sistema educativo significaria renunciar toda a possibilidade de explicar e fundamentar cientificamente o processo educativo, a própria prática do trabalho pedagógico significaria, entre outras coisas, construir o corpus técnico da educação social e da escola do trabalho sobre bases exclusivamente ideológicas (...). Dito de forma breve e sincera: Renunciar a psicologia significa renunciar a pedagogia científica. (Vigotski, 1926/1996, p. 88). A psicologia estava de certa forma tomando consciência de si própria e de seus limites, os avanços no campo da ciência e os problemas colocados para a construção de uma nova sociedade, já não podiam estabelecer-se naquilo que ficou conhecido como fenômeno de acumulação de materiais isolados, que ao cabo, o volume de material havia se demonstrado inútil na investigação a respeito de uma psicologia humana. Essa tendência de acúmulo de material empírico que não progredia em uma síntese, bem como a ausência da consciência humana entendida em seus aspectos, de fato, humanos e não reduzidos ao naturalismo ou o biologicismo (Vigotski, 1926/1996). Este período de transição, marcado também por fortes embates teóricos e ideológicos, exigia de certa forma de seus partícipes unidades rigorosamente combatentes no sentido de não permitir que as ideias já claramente inúteis ou equivocadas continuassem a exercer tanta influência na psicologia e na prática pedagógica. Podemos entender que “exclusivamente” ideológico, releve o aspecto de um método que não podia ser avaliado como científico, como conhecimento verdadeiro. Com um vocabulário influenciado pela reflexologia, Vigotski realiza um exercício interessante na busca de encontrar o lugar do seu próprio pensamento. Assim vemos expressões sobre os reflexos condicionados secundários, como sendo o “social ao quadrado”, numa clara tentativa de aprofundar a dimensão social à epistemologia reflexológica. Vigotski já revela originalidade e uma potência de não deixar-se contagiar pelas certezas estabelecidas, na ânsia combativa contra o essencialismo do método introspectivo. Demonstra, portanto, uma certeza científica sobre a própria possibilidade da psicologia de explicar o humano, de alterá-lo conforme um projeto consciente que deva ser uma síntese entre psicologia e pedagogia, desde que devidamente construída e podada de um exclusivismo ideológico. 68 Para tanto, Vigotski já indica a preferência por entender a psique como processo e sendo dinâmica e processual, dentro do mote crítico tanto ao idealismo quanto ao subjetivismo. Esta dinâmica seria uma unidade contraditória entre o mundo e o psiquismo, entre o social e o indivíduo, num contínuo movimento. Esses preceitos permanecerão em Vigotski em seus trabalhos posteriores, modificados e desenvolvidos, sendo evidente o abandono pelo autor da linguagem reflexológica, como veremos na sessão sobre ideologia e sistemas psicológicos, no qual o signo, os sistemas conceituais e a linguagem entrarão de vez em cena no cerne da sua teoria. Sendo assim, para o autor bielorusso, a obra de Thorndike tinha pontos positivos quando considerada como um livro de transição: era um momento de consciência importante para a ciência psicológica, na medida em que já não recaía em preceitos tradicionais já antiquados. Isso, no entanto, não impediu Thorndike de fornecer uma pedagogia alinhada com a cultura russa, importando valores morais que são os mesmos das instituições de ensino norte-americanas, entre outros problemas analisados por Vigotski neste prólogo. O importante para o nosso foco – a ideologia – é colocar que Vigotski já estava preparando seu edifício para as metas que deveriam conduzir a nova ciência do homem, na superação definitiva da psicologia tradicional que muitas vezes colocava o mundo e o psiquismo como instâncias separadas. Para ele, a compreensão equivocada da psique humana não era apenas um erro, mas muitas vezes um problema ideológico, como veremos na análise da ideologia no texto o Significado Histórico da Crise da Psicologia. De todo modo, a crítica de Vigotski (1924/1996) no prólogo concentra-se na seguinte síntese: Por conseguinte, o comportamento humano revela-se não somente como um sistema estático de reações já elaboradas, senão como processo ininterrupto de aparição de novas conexões, de estabelecimento de novas relações de dependências, de elaboração de novos superreflexos e ao mesmo tempo de interrupção e destruição das conexões anteriores, de desaparição de reações prévias. E, o que é o mais importante, como uma luta entre o mundo e o homem que não cessa um segundo, e que exige ajustes instantâneos, uma complexíssima estratégia por parte do organismo e uma disputa entre muitas e diversas reações dentro dele pela preponderância, pelo domínio dos órgãos do trabalho, executivos. Em uma palavra, o comportamento do homem se desvela em toda sua complexidade real, em seu potente significado, como um processo dinâmico e dialético de luta entre o homem e o mundo e dentro do próprio homem. Esse é o primeiro fruto inicial da nova psicologia. (p.95) O conhecimento pedagógico e psicológico elaborado em bases ideológicas não apreendiam o homem e o mundo como uma unidade contraditória em luta. Como característica da forte influência do sentido crítico-negativo do conceito de ideologia, Vigotski critica essa apropriação atemporal de princípios como a pedagogia do homem 69 em geral e é contundente ao afirmar que desconsiderar estas peculiaridades era assentar a psicologia e a educação em bases exclusivamente ideológicas. Portanto Vigotski entende a ideologia neste período como algo hermético às elaborações reais do mundo social e da consciência humana. Este é o principal sentido que o termo adquire neste prólogo e permanecerá com a carga adjetiva essencialmente negativa no próximo texto analisado. Sumariamente, Vigotski colocara na sua crítica a Thorndike um conceito de ideologia oposto ao conhecimento verdadeiro sobre o homem e sobre sua psicologia, a favor da necessidade de estabelecer uma nova ciência, que ainda não tinha surgido mas que já dava sinais da sua elaboração. Parte destes sinais são as elaborações que já não figuram como continuidades da psicologia tradicional, como era o caso da escola introspectiva. Thorndike estava localizado, para Vigotski, no centro desta transição e ainda padecia de dificuldades e limitações, entre elas, ideológicas. Na sessão a seguir buscamos explicitar o conceito de ideologia tal como utilizado no texto da “Crise” da psicologia e demonstra ser mais um exemplo da ideologia tomada como limite negativo da experiência humana, porém desta vez ainda que fundamentado provavelmente em concepções de Marx e especialmente de Engels, sobre a ideologia, Vigotski o aplica a uma situação particular da psicologia, enquanto ciência , dilacerada por uma crise com raízes nos problemas objetivos da constituição das sociedades e das ciências humanas, da qual a ideologia é uma expressão. Sendo assim, desde o início de sua obra, a ideologia é tomada como mais complexa do que um simples engano ou erro, e do que uma questão que não pode ser solucionada no plano gnosiológico ou epistemológico. 2.2 IDEOLOGIA E O SIGNIFICADO HISTÓRICO DA CRISE DA PSICOLOGIA. O texto de Vigotski denominado Significado Histórico da Crise da Psicologia, reconhecidamente de cunho metodológico e epistemológico, foi produzido entre os anos de 1925 e 1927, revelando um autor com ideias amadurecidas nestas áreas. Nele, seu objetivo era a busca investigativa na estruturação de uma base teórico-metodológica do marxismo para a psicologia. É importante ainda localizar que ele foi elaborado no contexto de construção de uma psicologia comprometida com as aspirações comunistas da Revolução socialista na Rússiae com as transformações pelas quais passava aquela sociedade, que afetavam os âmbitos políticos, culturais e científicos. 70 Conforme Kozulin (1990/2001) esse texto foi concluído três anos após a primeira aparição pública de Vigotski, no I Congresso de Psicologia Pós Revolucionário, ocorrido em Moscou em 1923, que marcara definitivamente a entrada das ideologias partidárias e a busca por uma psicologia coerente com o projeto de sociedade posto pela revolução na URSS. Os destaques acadêmico-científicos eram, Konstantin Kornilov (1879–1957) e Vladimir Bekhterev (1857–1927), sendo que ambos colaboraram para a derrocada de Georgy Tchelpanov (1862–1936), que havia fundado o Instituto de Psicologia de Moscou. Para Kozulin (1990/2001) havia algumas tarefas implícitas que Vigotski assumira quando escreveu o referido texto, entre elas estavam: encontrar seu próprio lugar no pensamento psicológico da época e definir a relação da psicologia epistemologicamente com seu objeto de estudo, sobre a conduta humana, a mente, a filosofia e a fisiologia. Além de demarcar, diante da confusão de método e objeto que se encontrava a psicologia, a necessidade da psicologia geral, a qual explicaremos mais detalhadamente à frente. Além disso, essa situação de confusão metodológica e teórica pela qual passava a Psicologia não se encaminhava para uma resolução em termos práticos, que solucionasse dicotomias, confusões e ecletismos em prol de uma nova etapa do conhecimento psicológico, ao contrário, Kozulin (1990/2001) aponta que o estado era de um acordo tácito entre as teorias psicológicas em que cada uma continuava a desenvolver o seu “paradigma natural” e descartando os tipos alternativos. Como vimos na análise d’A Ideologia Alemã, trata-se de uma estratégia ideológica do pensamento dominante estabelecer divisões que não rumam à resolução material dos conflitos, mas dividem a hegemonia, semelhante caso ocorria na psicologia. Assim, Vigotski identifica uma tendência no desenvolvimento das ideias em psicologia que realizam um trajeto comum, condicionado por um lado pela ausência de uma psicologia geral, e por outro por fatores alheios à lógica científica, mas determinados pelos conflitos materiais reais. As ideias passariam do terreno da originalidade científica, quando surgem como novidade e renovação de um certo campo em ciência para tornarem-se posteriormente em ideologia. O princípio explicativo para dado fenômeno assume a função de ser princípio explicativo para tudo. Essa generalização do conceito para além de seus limites é a fase em que uma ideia original torna-se ideologia, isto é, uma descoberta psicológica, que sofre uma 71 conversão, o princípio explicativo se torna uma visão de mundo, perdendo a sua independência na medida em que se mescla entre outras filosofias dominantes já estabelecidas. É interessante notar que não há uma recusa por parte do autor à originalidade destes sistemas, mas a uma tendência ocorrida dentro do desenvolvimento da própria ciência. Assim descreve Vigotski esse marcante traço da “crise” da Psicologia: Essa descoberta, [o princípio explicativo] inchada até se transformar em ideologia, como a rã que se transformou em boi, alcança o mais perigoso estágio de desenvolvimento, o quinto: estoura facilmente, como uma bolha de sabão; em todo caso, entra no estágio de luta e negação em que se encontra agora por toda parte. É verdade que já antes, nos estágios precedentes, ocorrera uma luta contra a ideia. Mas então tratava-se da reação normal ao movimento desta, a resistência de cada ramo a suas tendências conquistadoras. A força inicial que havia engendrado a sua descoberta a protegia da verdadeira luta pela existência, como a mãe protege seus filhos. (Vigotski, 1996, p.221). O estágio de “luta e negação” em que a ideia original já “estourou”, e, está espalhada por toda parte, possivelmente é uma referência à ampliação dos locais originais da descoberta, e passa a abarcar fenômenos que não se limitam à explicação da consciência, mas abrangem também a realidade cultural: explicam esferas da vida que não são redutíveis à psicologia, como a política, a arte, a ciência, etc. Vigotski exemplifica este “desenvolvimento da ideia” em correntes psicológicas, entre elas a psicanálise, que escolhemos como representante por ser uma abordagem mais popularizada que as demais. Vale salientar que não pretenderemos aqui explorar a crítica específica à psicanálise pelo autor em foco, mas ilustrar a tese da tendência da psicologia a tornar-se ideologia: As ideias da psicanálise nasceram de descobertas específicas no campo da neurose; estabeleceuse de forma indiscutível o fato de que toda uma série de fenômenos psíquicos é determinada pelo inconsciente e o fato de que a sexualidade se oculta numa série de atividades e sob formas que anteriormente não eram consideradas eróticas. Paulatinamente, esta descoberta concreta, respaldada pelo êxito de sua aplicação terapêutica e com a autoridade que isso lhe conferia (isto é, sancionada pela veracidade de sua prática), foi transposta por uma série de campos adjacentes, como a psicologia da vida cotidiana ou a psicologia infantil, além de apropriar-se da totalidade dos enfoques teóricos sobre a neurose. No confronto disciplinar essa idéia se impôs sobre os mais distantes ramos da psicologia: a sexualidade transformava no princípio metafísico, a psicanálise se transformava em ideologia, a psicologia se transformava em meta psicologia. A psicanálise dispõe de sua própria teoria do conhecimento e de sua própria metafísica, de sua sociologia e de sua matemática. O comunismo e o totem, a igreja e a obra de Dostoiévski, o ocultismo e a publicidade, o mito e as invenções de Leonardo da Vinci, são apenas sexo disfarçado e mascarado. (Vigotski, 1927/1996, p. 225) A ressalva de Vigotski sobre a extensão da psicologia para com outras áreas do saber não se limitava ao fato de que uma escola dominasse outros campos, e assim deixando de lado demais contribuições de ramos diversos da psicologia. Ocorre que esta era uma tendência e ao mesmo tempo um limite, que marcava o destino histórico de 72 todas as escolas da Psicologia, momento do qual a Psicologia é levada a este limitar ideológico, ela se anula naquilo que carrega de potencial explicativo e transformador. Para Vigotski, esta limitação objetiva ocorria tanto pela ausência de uma Psicologia Geral, quanto por fatores materiais que comprometiam a psicologia com a visão de homem e de mundo particularmente burguesas, e na sua postura de “luta e negação” restaria a batalha por ideologias: Quando as ideias se elevam à categoria de leis universais passam a valer o mesmo, tanto umas quanto as outras são absolutamente iguais entre si, isto é, simples e redondos zeros; a individualidade de Stern é para Békhterev um complexo de reflexos, para Wertheimer uma Gestalt e para Freud sexualidade. (Vigotski 1927/1996, p.227) Para a psicologia moderna faltava-lhe uma síntese que proporcionasse uma sistematização geral do seu material tanto quanto a avaliação de seus fatos, leis, enfim, uma análise concisa sobre o quantum de colaboração e avanço no conhecimento sobre o homem essa ciência tinha até então oferecido. No entanto esta síntese não era somente da ordem teórica ou gnosiológica, como uma especialização da história da ciência aplicada à psicologia, como também de ordem prática. A permanência do atual estado de coisas deveria estar relegado à lei da ideologia que Vigotski retira de Engels: Porque deixa de existir a idéia como tal? Porque no campo da ideologia rege a lei, descoberta por Engels, da concentração de idéias em torno de dois pólos – o idealismo e o materialismo – que correspondem aos dois pólos da vida social, às duas principais classes que lutam. A natureza social das idéias manifesta-se com muito mais facilidade em um fato filosófico do que como fato científico: termina seu papel de agente ideológico oculto disfarçado de fato científico e fica desmascarada, começando então a participar como um elemento a mais na luta de classes das idéias. Aqui, na qualidade de pequeno elemento de uma enorme soma, desaparece como uma gota de água no oceano e deixa de existir por si mesma (Vigotski, 1927/1996, p.223) Se de acordo com Kozulin, a busca de Vigotski no texto da “Crise” está atrelada à busca pelo seu próprio posicionamento dentro da psicologia como ciência, podemos dizer com Tuleski (2008) que esta possibilidade de superação dos dois pólos, isto é a síntese teórica e prática da psicologia e da sociedade andavam juntas na construção do projeto coletivo comunista da URSS, e, portanto não é apenas um capítulo da “história das ideias”, tomadas aqui como estritamente relegada ao plano do conhecimento. A superação de tal cisão no mundo das ideias está condicionada à superação dessa dicotomia na realidade objetiva. Dito de outra forma, o enfrentamento desta dicotomia, no nível das ideias, estava posto desde o século XIX; no entanto, apenas na Rússia do início do século XX estava sendo enfrentada concretamente: a superação de tal dicotomia era possível também na prática humana, através do projeto coletivo comunista (Tuleski, 2008, p.57). Unir ciência e transformação social era uma necessidade premente, já que os limites impostos à ideologia para a compreensão de homem e mundo da psicologia 73 burguesa não se resumiam a erros passíveis de correção epistemológica, e respondiam a toda uma situação objetiva: É este o caminho que percorre em psicologia qualquer descoberta que tenda a se transformar num princípio explicativo. O próprio aparecimento de tais idéias explica-se pela existência de uma necessidade científica (arraigada, no fim das contas, na natureza dos fenômenos em estudo) e pela forma como se manifesta essa necessidade numa determinada etapa do conhecimento: em outras pelas palavras, pela natureza da ciência e, em última instância, pela natureza da realidade psíquica que essa ciência estuda. Mas a única coisa que a história da ciência pode explicar é por que surgiu a necessidade de novas idéias num determinado estágio do desenvolvimento e por que esse nascimento era impossível cem anos antes. Que descobertas concretas se desenvolvem no seio de uma ideologia e quais não; que idéias se destacam, que caminho percorrem, que destino alcançam, tudo isso depende de fatores externos à história da ciência e que a determinam. (Vigotski, 1927/1996, p. 223 grifos nossos). No primeiro capítulo abordamos porque a ideologia enquanto “falsa consciência” encerra algumas dificuldades, tais como as apontadas por Konder (2002), que é o risco de não compreender os momentos verdadeiros do processo ideológico. Aqui, Vigotski parece-nos abrir espaço para este mesmo tipo de compreensão, pois coloca que uma das tarefas da história da ciência seria então de “separar o joio do trigo” e de retirar das ideologias seus motivos de verdade, em um exemplo claro de que a ciência pode se tornar ideológica, mas não necessariamente é ideologia o tempo todo. No entanto, enquanto materialista e marxista, Vigotski coloca que esta é também uma tarefa limitada, pois não bastaria para a psicologia debruçar-se sobre a “validade” ou “falsidade” de enunciados tão-somente. Aponta então a lógica dialética, que convém em uma unidade teórico-prática de transformação do próprio objeto de estudo – o homem – tanto quanto da abordagem que não deveria mais restringir-se às formalidades conceituais de cada teoria, mas que exigia uma nova síntese, “a dialética da psicologia” é a proposta do autor contra a tendência gnoseológica e a lógica formal: Por conseguinte, à crítica gnoseológica e a lógica formal, como fundamentos da psicologia geral, deve-se contrapor a dialética, que “se concebe como a ciência das formas mais gerais do devir tal como se manifesta no comportamento e nos processos de conhecimento, isto é, assim como a dialética da ciência natural é, ao mesmo, a dialética da natureza, a dialética da psicologia, é por sua vez, a dialética do homem como objeto da psicologia. (Vigotski, 1927/1996, p. 247). A crítica à ideologia em Vigotski repousa na superação do estado de coisas e não em sua negação em forma de uma ruptura que abandonaria as conquistas científicas obtidas no seio da ideologia burguesa, neste sentido Vigotski coloca que a “psicologia marxista” e revolucionária era uma tarefa histórica e crítica aos psicólogos marxistas, que até então utilizavam o “método de citação”, que consistia basicamente em retirar de excertos de Marx, Engels e Lenin, fórmulas abstratas gerais que encerrariam a 74 “compreensão” marxista do homem, muitas vezes resultando em um ecletismo que usava do marxismo para legitimar posições já tradicionais da psicologia21. Para Vigotski, a psicologia necessitava de seu próprio Capital, que consistiria em tomar na globalidade do método de Marx os conceitos que abarcassem a psicologia humana de modo a superar o conhecimento fragmentário e parcial. Vigotski entendida a personalidade como totalidade das relações sociais e, portanto, não poderia ser redutível a qualquer preceito que se expandisse como ideologia. Desse modo pretendia “descobrir os limites, o grau e as formas de aplicação de um princípio” como “objeto da autêntica investigação” (p.368). No tocante à ideologia, a dialética do homem como objeto da psicologia não consistia, em rejeitar as conquistas anteriores,mas, de certa forma, em colocá-las em posições que confluíssem na personalidade e não a determinasse, tampouco à sociedade e à cultura. A reificação que toma uma totalidade aberta por coisa, neste caso, a própria consciência, expressava-se na Psicologia pela tendência da psicologia burguesa de reduzir o psiquismo a tal ou qual princípio, sempre orbitando entre o materialismo e o idealismo. A tarefa que colocava-se à psicologia dividia-se em dois caminhos: “ou da ciência e neste caso deverá saber explicar, ou o conhecimento de visões fragmentárias e, neste caso, é impossível como ciência”. (Vigotski, 1996, p.389). Delari Junior aponta que a psicologia vigotskiana estava orientada a ser uma “psicologia dos cumes”, entendendo a personalidade como o cume de todos estes possíveis princípios e não como uma variável dependente destes princípios particulares. A dialética do homem, uma psicologia concreta, buscaria uma metodologia que englobasse a totalidade da personalidade, tomando o homem como ele é pela raíz: Vigotski falava da “psicologia dos cumes (não determina a “profundidade”, mas o “cume” da personalidade)” (1934/1991 – p. 130). Nesse sentido criticava tanto a “psicologia superficial” (fenomenológica) quanto a “psicologia profunda” (psicanalítica), que quer explicar o homem por suas profundezas, sua natureza subterrânea. Já a psicologia dos “cumes”, “eleva- ções”, visa compreender o ser humano a partir dele mesmo. Como em Marx: “ser radical é tomar as coisas pela raiz, mas a raiz para o homem é o próprio homem” (apud CHASIN, 1999 - p. 9). Define-se o “próprio homem” como ser social, simbólico e histórico, por excelência – o que a psicologia profunda não demonstra priorizar (Delari Juniorr, 2009, p.15). A necessidade da dita psicologia geral mostrava-se teórica e praticamente, a dialética do homem na psicologia seria a dialética da própria psicologia, um projeto de 21 Essa mesma crítica cabe à esfera educacional daqueles anos emblemáticos, pósrevolucionários. De início se entendia que a educação marxista seria aquela que fizesse a repetição de O capital, e da teoria marxista-leninista. Depois, entende-se que a Educação Social, com vistas a formar o novo homem comunista, deveria valer-se dos fundamentos marxistas para problematizar e entender o real e responder às demandas que dele se pudesse observar a partir dessa concepção. 75 superação da fragmentação e uma aposta na capacidade do método analítico e da autocrítica para auxiliar a construção da psicologia enquanto de fato uma ciência e não uma ideologia, “a dialética abarca a natureza, o pensamento, a história: é a ciência geral, universal ao máximo. Essa teoria do marxismo psicológico ou dialética da psicologia é o que eu considero psicologia geral”. (Vigotski, 1927/1996, p.393). Vimos, portanto, que a ideologia cumpre um papel de negação da ideia original, antes “verdadeira” e é um estado de “decadência ideológica” (Coutinho, 2010) da psicologia como ciência burguesa que na confusão de duas disciplinas particulares tendiam a tornar-se ideologia, mais do que avançar ou superar a situação da “crise”. Veremos, a seguir, que não só a crise não se resolve a curto prazo, como ela passa a exercer uma função ideológica mais grave no sentido de bloquear o futuro de uma transformação social concreta, tanto quanto de agir em acordo com interesses escusos, e passa a estar abertamente ao lado de interesses políticos dominadores, como é o caso da “psicologia fascista”, no único texto pós 1931 que encontramos que Vigotski trata a ideologia com um sentido exclusivamente negativo. 2.3 A IDEOLOGIA COMO FASE AGUDA DA CRISE: O FASCISMO E A PSICOLOGIA Quando confrontou as tendências dominantes em psicologia em meados da década de 1920, Vigotski havia detectado tendências que por muito arraigadas em concepções de homem que não consideravam a natureza social do psiquismo, e, por isso, reduziam a um determinado princípio explicativo a totalidade do fenômeno da consciência, abriam espaços para uma compreensão limitada tanto da gênese do psiquismo humano, quanto de suas eventuais possibilidades de transformação. Neste período as tendências em voga ainda que permeassem a cultura ocidental, interferindo, por exemplo, na teorização de práticas pedagógicas de larga escala nas instituições escolares, poucas vezes haviam se mostrado tão partidárias de valores reacionários como ocorre na psicologia científica sob a égide do fascismo. Se esta situação à primeira vista não nos parece familiar nos dias de hoje, era evidente em 1934, ano da redação de O fascismo e a psicologia, pequeno texto de Vigotski que trata sobre avanço o fascismo e a apropriação deste movimento ideológico-político pela psicologia científica. Para o autor, psicólogos alemães estavam aderindo às ideias fascistas não porque este movimento teria impulsionado a psicologia necessariamente para uma nova fase, – que tivesse superado a ‘crise’ intrínseca ao 76 desenvolvimento da mesma -, mas porque este teria aberto uma brecha para a confirmação prática de seus aspectos mais reacionários, suprimindo por completo a tese da formação social do psiquismo, dotando a consciência de características nacionalistas, raciais, com cunho essencialmente biológico-naturalista. Essa faceta da ciência psicológica foi considerada por Vigotski como a fase mais aguda da “crise” da Psicologia, e sua versão mais degenerada. (Vigotski, 1934/1988). No entanto, não é toda a responsabilidade da psicologia científica a adesão a teses que relacionem a formação da consciência e seus produtos como o caráter, a moral, a capacidade de se conviver em sociedade com traços inatistas ou ainda essencialmente individualistas, que imputavam ao indivíduo um destino determinado, que poderia ser lido, por exemplo, nas características fenotípicas numa grosseira associação entre moralidade e anatomia. Teorias que datam de muito antes da constituição da Psicologia como ciência independente já traziam estas características (Eco, 2007). É o caso da fisiognomonia, pseudociência que associava traços do rosto e formato de outros órgãos a características e disposições morais, da frenologia de Franz Gall22, e das teorias de Lombroso23, que afirmava poder encontrar traços da mente criminosa em nas constituições somáticas do sujeito. (Eco, 2007, p. 257). As consequências possíveis da popularização destas teorias é bem apontada por Umberto Eco: É fácil, pelo menos na divulgação popular de tais teorias, não dar a devida importância ao fato de que muitas deficiências físicas verificam-se com maior frequência em camadas sociais oprimidas pela má nutrição e outras doenças e de que, obviamente, é entre estes marginalizados que os comportamentos associais se dão com maior frequência. Daí a encorajar o preconceito de “quem é feio é mau por natureza”, é um passo. Isso sem falar no passo subsequente, com o qual se tornam feios e maus, também na literatura popular, todos os excluídos que a sociedade não consegue integrar e controlar ou não tem intenção de redimir – como já observava Nietzsche a respeito de Sócrates. (Eco, 2007, p. 261). Tais exemplos demonstram que a ciência já havia, em seu bojo, alimentado perspectivas que, quando levadas a cabo, tornavam-se políticas segregacionistas, colaborando com a manutenção das desigualdades, deslocando os problemas econômicos e políticos para a área médica, isto é, científica. A adesão de uma classe de cientistas, seja por voluntariedade ou por ação totalitária do Estado, a teorias com este teor foi imensa, e de alguma maneira permanecem na sombra do determinismo genético. 22 Franz Joseph Gall (1758-1828), criador da “cranioscopia”, posteriormente conhecida como frenologia, ciência que deduzia a personalidade a partir da formação craniana. Tornou-se popular na primeira metade do século XIX nos EUA, e fora comumente utilizada pelas classes dominantes para justificar biologicamente a dominação de colonos, servos e escravos. 23 Césare Lombroso (1835 – 1909), criminologista e professor universitário italiano, cuja obra mais conhecida, O Homem delinquente, adere às teses da fisiognomonia para normatizar fenotipicamente indivíduos propensos à criminalidade. 77 No entanto, a particularidade da situação Alemã no século XX preparou o terreno para o triunfo da política hitleriana dos “três erres: reich (império), raum (espaço) e rasse (raça).” A ciência cumpriria papel proeminente na adesão dos métodos adequados para a extinção dos inimigos bem como os cuidados para a vitória da raça ariana. Se a vitória das ideias não é somente trunfo do convencimento, mas o resultado de um amálgama histórico, em um caldo que, composto pela situação econômica, cultural, política e demais esferas ideológicas, não são apenas interdependentes, como residem no solo comum das questões materiais. O avanço do capitalismo alemão proporcionou a base material convincente para o fortalecimento do III Reich e a adesão popular em massa ao líder e ao projeto nazista. O caráter revanchista do Tratado de Versailles (1919) que determinara à Alemanha derrotada pesados pagamentos de reparações de guerra, infligiu grande déficit fiscal no país. A emissão monetária aplicada através do Estado para seu próprio financiamento – senhoriagem – é apontada como um dos fatores predominantes para a escalada inflacionária do marco alemão, que em 1923 tomara proporções incontroláveis. Os reflexos da inflação na economia eram inevitáveis, a produção industrial declinou fortemente, o desemprego alcançou cerca de 25%. Neste contexto de forte retração econômica, entre muitos dos levantes, revolucionários e conservadores, o próprio Hitler liderou um golpe – Putsch de Munique – de caráter antirrepublicano, que fracassou. Após a estabilização do marco em 1924, proporcionada pelo conhecido Plano Dawes, a Alemanha seguiu trajetória de ascensão até 1928, quando da Grande Depressão em 1929, a economia alemã mergulhou novamente em profunda crise. Em 1932, o desemprego na Alemanha atingia 30% da força laboral. É neste cenário que os nazistas chegaram ao poder e devido aos castigos engendrados ao povo alemão pelas vicissitudes econômicas, o nazismo se pautou pelo “capitalismo tutelado”, nas palavras de Mazzucchelli: O nazismo, na verdade, não se opôs apenas de modo circunstancial aos mandamentos da ortodoxia. Ele, desde o início, sempre foi constitutivamente antagônico aos dogmas do liberalismo e da exaltação do mercado. Para o nacional-socialismo, a experiência da Alemanha tornara-se o exemplo vivo de que a regulação dos mercados era injusta e abominável. Afinal não tinham sido as forças do mercado que haviam produzido a hiperinflação, a vulnerabilidade externa e a depressão? (Mazzucchelli, 2009, p. 280) A barbárie da Segunda Guerra encontra suas raízes no imediato pós-Primeira Guerra. Indignado com o perfil de revanche do tratado de Versailles, em 1919, Keynes advertiu acertadamente: 78 [...] se cremos que todos os nossos recentes aliados são anjos puros, e todos os nossos recentes inimigos, alemães, austríacos, húngaros e os demais, são filhos do demônio; se desejamos que, ano após ano, a Alemanha seja empobrecida e seus filhos morram de fome ou adoeçam, e que esteja rodeada de inimigos [...]. Se aspiramos deliberadamente o empobrecimento da Europa Central, a vingança, eu ouso prever, não tardará. (Keynes, 1919 apud Mazzuchelli, 2009, p.153) Acuado pela reação dos países aliados e com a guerra dando vistas de derrota, Hitler passou a uma caçada irracional contra os judeus, que acirra o anti-semitismo. Propagandas nazistas, filmes e discursos dos oficiais da inteligência nazista incitavam o ódio aos judeus, responsabilizando-os pela sujeira do ideal eugênico de uma nação entendida como um “corpo”, em que o invasor deste organismo harmônico seria o principal irradiador das desigualdades e do sofrimento do povo alemão. Exemplos dessa política são os guetos urbanos e os campos de concentração, bem como a ação destruidora do método da guerra total. A relação entre ideais eugênicos, supostamente científicos e a barbárie nazista, é bem retratada no consagrado documentário Homo Sapiens: 1900 (Cohen, 1988), assim como a estética criada para expressar esse ideário pode ser vista em Arquitetura da Destruição, do mesmo diretor (1989). Neste período, um escalão da SS (abreviatura de Schutzstaffel, esquadrilha ou tropa de proteção) era responsável pela exibição de obras de artes consideradas “degeneradas” e prova das patologias mentais das culturas modernistas, entre elas, a arte judia. Expostas em galerias como prova científica da inferioridade das raças não arianas, e da correlação da deformação da arte moderna com patologias mentais e genéticas, eram em seguida destruídas. O contraponto das exposições sombrias da arte degenerada era o contorno realista e glorioso para o Terceiro Reich, de um neorrealismo nazista, que exaltava os símbolos do regime, a glória militarizada e os traços arianos desejáveis e louvados. A psicologia não ficou incólume ao avanço militar dos alemães e sofreu repressão, como é o conhecido caso do exílio dos alemães da Escola de Frankfurt e de estudiosos de áreas realmente mais ligadas à psicologia, como os psicólogos da Gestalt, que foram para os Estados Unidos da América. A psicologia que se erigiu na Alemanha neste período, ou melhor dizendo, que se travestiu para adaptar-se aos ideais nazistas, surgiu como consequência da ausência de uma Psicologia concreta, que desse conta do caráter essencialmente histórico-cultural do psiquismo humano, situando as demais determinações fisiológicas e biológicas em um dimensão anterior e não determinante da consciência historicamente constituída. O processo de apoio da psicologia e do fascismo contará com esta marca. 79 2.4 O FASCISMO E A PSICOLOGIA POR L.S. VIGOTSKI. Antes de examinar o uso do conceito de ideologia no texto sobre o fascismo e a psicologia, faremos referências a aspectos da condição em que se encontrava a psicologia histórico-cultural sob o domínio político do stalinismo, com o objetivo de aproximarmos da situação em que estava inserida a produção intelectual de Vigotski, no ano de sua morte e um ano após o início da ascensão ao poder do partido nazista na Alemanha. Silva (2013), apoiada na análise de documentos como boletins e cartas, além de fontes secundárias, faz detalhada análise dos fatos que culminaram na ascensão de Stalin ao poder, como principal dirigente da URSS, após a morte de Lênin. Escreve como Stalin operou cuidadosamente a implementação de uma política econômica e cultural que fortalecesse a centralização do Partido em sua figura e a produção ideológica soviética nas ciências, artes e filosofia, sobre os marcos de suas orientações, que se caracterizavam por simplificações e vulgarizações da doutrina oficial do “marxismo-leninismo” criada por ele. Para nossos propósitos focaremos na influência stalinista na ciência e na filosofia, atingindo a Psicologia, marcando-a por momentos de censura, unilateralismos e vulgarizações, que impediram o livre pensamento na construção da psicologia, no debate entre teorias opostas, criando um clima de terrorismo ideológico do qual mesmo os principais teóricos da psicologia histórico-cultural, que sempre demonstraram simpatia e buscaram adequar suas investigações no projeto coletivo comunista, foram alvos, como é o caso das censuras das obras de Vigotski, e a perseguição aos membros da troika, que dificultaram a produção de pesquisas e a divulgação de seus trabalhos (Silva, 2013). Um marco importante, conforme a autora, baseando-se nas contribuições de Lukács, foi a publicação do livro “História do Partido Comunista (Bolchevique), especialmente o capítulo IV, que marcou a normatização da filosofia e serviu como política oficial para a categorizar qualquer oposição contrarrevolucionária, ou burguesa. Este autoritarismo refletiu também na psicologia como é o caso da Resolução de 6 de junho de 1931, que propunha medidas para limpar a Psicologia desses “elementos contrarrevolucionários”, por meio de: 1) exame geral do conteúdo de compêndios usados em universidades e institutos; 2) mais atenção à formação de quadros comunistas confiáveis nas universidades, exigindo que determinada cota de 80 pesquisadores escrevendo dissertações, fossem membros do Partido; 3) os compromissos ideológicos dos funcionários deveriam ser examinados por completo e a nomeação de chefes de pessoal deveria requerer a permissão do “centro competente do Partido”, e; 4) a exigência de que estudantes trabalhassem durante algum período em uma fazenda ou fábrica coletiva (Van der Veer; Valsiner, 2009 apud Silva, 2013). A Psicologia foi fortemente afetada por este controle rígido que visava uma “pureza ideológica”. O controle fora exercido por membros do Instituto de Psicologia, e na prática, todas as escolas sofreram com a acusação de serem antimarxistas, como apontado anteriormente com a teoria histórico-cultural não foi diferente. Pode-se afirmar com segurança que a teoria histórico-cultural não gozava do status de uma psicologia dominante, ou oficial, do país, condição que será legada à reflexologia pavloviana nos anos de Stalin. Além disso, sofreu perseguições, censuras e críticas. Desse modo, a construção de um conhecimento crítico capaz de realizar a síntese entre o que havia de qualificado na psicologia burguesa – a parte válida de seus conhecimentos anteriores às suas generalizações – foi grosseiramente impedido e abortado pela dominação cultural e ideológica dos anos de governo stalinista. Isso nos leva a apontar que a tese da natureza social do psiquismo, característica da psicologia histórico-cultural, ainda que de inspiração e base marxistas, não era considerada ciência, tampouco revolucionária. Certamente, a objeção a esta teoria não foi a única responsável pela aparição da eugenia na URSS e da adesão da reflexologia pavloviana como a doutrina oficial da Psicologia do país. Esta constatação nos leva a afirmar que quando realiza o combate ao fascismo na psicologia, essencialmente explorando-a como ideologia, Vigotski também afirma seus ideais na medida em que estes não foram reconhecidos categoricamente como aliados na construção do projeto comunista, especialmente com seus contornos pós Lênin. Stalin admirava o lamarckismo e mesmo quando oficializara a reflexologia pavloviana, esta não passou incólume de deformações (Silva, 2013). A característica da ideologia na psicologia quando esta manifestava sintomas da crise que lhe constituía, era uma expressão da inversão entre sujeito e objeto que caracteriza as inversões ocorridas na consciência sobre o processo histórico da produção da vida e da historicidade da consciência. Eram ideológicas porque abarcavam um processo mais amplo que o simples erro científico, mas de toda uma visão de mundo com suas consequências políticas que se limitam à perspectiva burguesa, exigindo em latência, sua superação. Como relembra Fromm (1976): “não só o mundo das coisas que 81 se torna superior ao homem, mas também as circunstâncias sociais e políticas por ele criadas se tornam seus senhores”. Nesta direção, a tese da natureza social do psiquismo e a sua dependência histórica com o trabalho e o nível de forças produtivas colocava-se no campo da superação teórica e prática, no sentido de que Vigotski alinhava seus estudos com a necessidade das transformações nas relações de trabalho que caracterizavam o capitalismo. Portanto, afirmar que o psiquismo decorre de um desenvolvimento que é histórico e não dependente de leis biológicas torna possível postular e projetar em consonância com a revolução social, uma formação humana voltada à liberdade, em oposição à alienação e às condições materiais estruturalmente desiguais do modo de produção capitalista. A psicologia então tinha a tarefa de colaborar nesta condução de humanização e liberdade, mais do que classificar, catalogar ou realizar malabarismos teóricos para que se justificassem epistemologias restritivas. Como pode ser visto em A Transformação Socialista do Homem, Vigotski coloca a transformação do psiquismo em dependência das transformações do trabalho, quando enfatiza o salto qualitativo que caracterizaria a humanidade despojada dos entraves das relações sociais de produção capitalista, entre eles o fenômeno da alienação, que aparta dos homens o reconhecimento de seus poderes criativos e capacidade comunitária de organização. Contra a perspectiva de manutenção deste estado, bem como uma ideia ingênua de que a superação poderia ser estritamente individual, ou gradativa-natural, como uma evolução lenta que um dia eclodiria, mesmo mantendo suas bases, em uma sociedade melhor: Consequentemente, poder-se ia dizer que novas formas sociais de trabalho irão criar o novo homem e que, esse homem novo, irá se assemelhar ao antigo tipo de homem, “o velho Adão”, apenas no nome. Da mesma maneira que, de acordo com a grande Declaração de Spinoza, poder-se-ia dizer que o cachorro – o animal que late – assemelha-se à constelação celestial de nome Cão. (Vigotski, 1930/s/d). A intervenção na psicologia de “cima para baixo” do período stalinista, não condizia com um novo homem advindo de novas formas de relações sociais. Com a manutenção de um cenário proibitivo e dogmático nas ciências humanas, a ideia de um processo com consequências futuras foi deixada de lado e a exaltação do líder era uma forma de admitir que todo cidadão soviético, antes de aspirar por quaisquer transformações coletivas, deveria ter em Stalin sua confiança e modelo de personalidade. 82 Esse cinismo diante da situação da psicologia impediu os avanços de sínteses unitárias entre teoria e prática, propostas por Vigotski, que em consonância com a tese da natureza social do psiquismo, ressalta a dependência das atividades em que os indivíduos atuam para a formação do ser de sua consciência, antes de decretar um tipo ideal a ser buscado, sendo esta uma tarefa que deve ter os olhos apontados para o futuro, e não profetizá-lo. A importação teórica de um tipo ideal como o perfil “adequado” do psiquismo, era problemática, pois postulava o presente como uma forma final, eternalizada, e portanto, ideológica. Neste sentido, Vigotski aponta que avançar em uma ideologia como essa teria em um de seus pilares, a negação da dimensão social do psiquismo. Ignorar a tese da natureza social do psiquismo é, ao mesmo tempo, armar-se de uma perigosa fundamentação supostamente científica para projetos que visem o extermínio ou adoção de um tipo ideal determinado, a-histórico e com motivações mui particulares como o modelo de psiquismo a ser buscado nas escolas, nos projetos de reprodução e controle humanos, e mesmo como justificativa do domínio político de uma classe sobre a outra. Na trajetória que realizamos até aqui sobre os usos e significados da palavra ideologia em textos de Vigotski ao longo de uma década de produção de sua obra, notamos uma inflexão do uso nos textos seminais para aqueles em que a sua posição a respeito da linguagem e dos signos na constituição do psiquismo humano está mais consolidada e a palavra ideologia passa a abarcar o universo dos sistemas conceituais, valores e significados que permeiam a experiência humana como um todo. Em suma, vimos que a ideologia é tomada como é um processo de pensamento socialmente condicionado, mais que um fenômeno de falseamento, inversão, mistificação e semelhantes. Neste texto de 1934, o autor considerava a tese da natureza social do psiquismo como uma tese científica, e a principal posição capaz de fazer frente aos absurdos irracionalistas da psicologia fascista. Neste clima espinhoso, tenso, em que os embates científicos alinhavam-se com as lutas sociais, o inferno interminável das guerras imperialistas, bem com a censura e dificuldades dentro do seu próprio país, temos o uso da ideologia novamente como arma de combate aos aspectos conservadores, e neste caso, amplamente reacionários da psicologia. Konder aponta que muitas vezes os teóricos do socialismo científico, Marx e Engels, especialmente o segundo, utilizaram e colaboraram na expansão da ideologia 83 como falsa consciência dos fenômenos, identificando ideologia exclusivamente com esta posição. Para o filósofo brasileiro, não se pode relegar este fato a uma crítica epistemológica somente, mas entender que por vezes o conceito de ideologia é útil exatamente como arma combativa à pseudociência, e em um clima de embate de ideias, o seu uso com outras conotações, como é o caso do pensamento socialmente determinado, deixa de ter serventia imediata. Para o autor, ainda, o problema em colocar a ideologia como idêntica de falsa consciência ignora que o conhecimento pode ter momentos verdadeiros e que, portanto, não podem reduzir-se à falsidade. Trata-se muitas vezes de levar em consideração texto e contexto, mais que precisão semântica e filológica. Vimos na sessão que discutiu a ideologia no texto da Crise, e em outros momentos, que a Psicologia de Vigotski pretendia lidar com seus adversários de modo dialético, isto é, conservando os avanços reais destas teorias e perspectivas que colaborassem na construção de uma psicologia verdadeiramente humana. Entretanto, o que ocorre na adesão ao fascismo pela psicologia alemã destaca-se do fluxo de continuidade na busca do conhecimento verdadeiro, científico, e a sua transformação em ideologia não se limita à ausência de uma psicologia geral, ou aos entraves da realidade socioeconômica, mas utiliza-se de suas pesquisas como forma apologética do domínio hitlerista, trata-se para Vigotski de uma clara degeneração: A profunda crise que padeceu a psicologia nas recentes décadas, agudizou-se após o golpe fascista na Alemanha, e tomou novas formas, horríveis e repugnantes, até agora desconhecidas na história da ciência psicológica. O novo regime acelerou catastroficamente o crescimento e pôs em evidência uma grande quantidade de tendências até hoje ocultas, mascaradas, vagas, não plenamente advertidas. Como resultado, no curso do ano passado e com a mais surpreendente velocidade, uma infraestrutura básica nasceu dentro do sistema da psicologia fascista. A demanda política do novo regime atuou como um catalisador do processo de degeneração e decadência que se estava tramando-se previamente na fábrica geral da crise da psicologia e que conduziu a um estado de comoção sem precedentes. (Vigotski, 1933/1988) Para Vigotski o que ocorrera com a psicologia fascista era claramente de cunho ideológico, pois não havia nada de relativamente novo, em termos de descobertas que pudessem colaborar no desenvolvimento da Psicologia: Evidentemente, não teria sentido discutir sobre a criação de uma nova psicologia, em um tempo tão breve como o do regime fascista. A psicologia foi penetrada pelo fascismo de uma forma diferente. Reordenou os espaços da psicologia alemã colocando em um primeiro plano todo o reacionário que já existia previamente nela. Mas somente isto não era suficiente, e como já foi dito, foi necessário agrupar com um só golpe, no menor tempo possível, um sistema de psicologia que correspondesse a totalidade da ideologia fascista. (Vigotski, 1933/1988). Um exemplo da velocidade deste processo, conforme Vigotski, está na abundância de obras de psicologia alemã que se focam nos estudos sobre 84 hereditariedade e nas diferenças entre as raças. Três autores se destacavam nesse cenário: Eduard Spranger (1882–1963), Narziß Kaspar Ach (1871-1946) e Erich Jaensch (1883–1940). O primeiro autor realizava estudos no campo de investigações sobre a personalidade. O conceito mais conhecido de Spranger era o de lebensformen, ou “formas de vida”. Este no período do regime nazista, havia se adaptado à ideia de que as diferentes formas de vida eram “antes e sobretudo” formas nacionais. Assumindo escrever e descrever a respeito dos jovens alemães “educados”, admitia que existia diferenças fundamentais nos traços psíquicos do jovem alemão se comparados ao russo, que por sua vez era também diferente do judeu e assim adiante. A vivência destas experiências aparece, por exemplo, na inevitável sensação de “estranhamento” de uma nacionalidade, para com outra, gerando apreensão entre os povos, a despeito das similitudes que possam ter entre si (Vigotski, 1933/1998). Já Ach, ocupou-se de um problema mais pontual à psicologia fascista: O estudo da volição e das tendências determinantes da atividade humana externa e interna do comportamento, com o objetivo de estabelecer dados sobre o estudo da liderança. Em 1933, durante o Congresso Nacional de Leipzig, realizou uma leitura de toda a trajetória de sua psicologia a partir de 1904 e concluiu que ela, desde o início, estava alinhada com a interpretação individualista liberal da vida individual. Para a psicologia alemã do período, duas questões estavam abertas e munidas com o fascismo: as diferenças psicológicas entre as nacionalidades, e o estudo da volição trazendo consigo a investigação sobre a liderança24. O ano do Congresso de Leipzig, além de ser o ano do poder total nas mãos do nazismo, também inaugurara a política de extermínio de raças indesejadas e dos considerados indignos para se viver. Em 14 de julho de 1933, é promulgada a lei de prevenção à prole com doenças hereditárias, que promulgava a esterilização forçada de deficientes físicos, esquizofrênicos e doentes mentais de toda ordem, o objetivo era proteger a pureza da raça ariana, e outras leis seguiram ampliando estas ações, com programas de assassinatos em massa. Em 01 de dezembro começam a ser inaugurados os primeiros campos de concentração. 25 Se por um lado o mundo horrorizava-se com a ascensão do nazismo e suas políticas de extermínio, por outro, colaboradores diretos do regime na Psicologia, não esconderam o entusiasmo pela ideologia racista do regime de Hitler. 24 Os editores do texto utilizado na pesquisa em nota de rodapé, explicam que o vocábulo alemão que na edição espanhol aparece a palavra “líder” trata-se de führer. 25 Ver cronologia do III Reich feito pela professora, Izabela Maria Furtado Kestler: http://www.apario.com.br/index/boletim36/CRONOLOGIA%20DO%20III%20REICHEspecial2.pdf 85 É o caso de Erich Jaensch, que ademais de suas pesquisas empíricas no campo da psicologia científica, que tinham como objeto de estudo a percepção e os seus fenômenos, como a imagem eidética, não disfarçavam o apoio explícito ao regime, usando de uma linguagem combativa, marcado por “emoções militantes”, que decretavam a necessidade da “exportação” do tipo alemão de psiquismo para a renovação de mentalidades atrasadas como a dos camponeses e de outras raças (Vigotski, 1933/1988). No entanto, o psicólogo com quem Vigotski polemiza com mais contundência é Erich Jaensch, com as ideias contidas no livro A Situação e as tarefas da Psicologia e sua missão no Movimento Alemão e na Reforma Cultural. Segundo o autor soviético, neste livro encontram-se as pesquisas sobre o eidetismo já direcionadas a justificar diferenças do psiquismo conforme a região geográfica que a pessoa estudada ocupasse no mundo. Se a percepção pautada na imagem eidética proporciona uma memória rica na transmissão de um dado visual direto, ela não dispõe da qualidade da memória lógica de distanciar-se através do pensamento abstrato enriquecido por conceitos; ela é uma etapa da memória ainda pouco assimilada pela linguagem abstrata. (Luria, 1979). A memória eidética é relacionada com a memória do homem primitivo, de jovens, crianças e de artistas com condições algumas vezes fora do desenvolvimento mediado e até excepcionais. Em certo sentido, o eidetismo é uma configuração inferior da memória, uma etapa pouco humanizada no sentido da aquisição da linguagem, do uso da memória mediada por símbolos e instrumentos auxiliares. Essa diferença que para a teoria histórico-cultural indica o desenvolvimento histórico do comportamento em toda uma linha evolutiva, torna-se dado factual da necessária diferenciação entre o psiquismo de diferentes de povos, na obra de Jaensch, e o pensamento eidético torna-se característica da população do hemisfério sul, mais “adaptados ao sol”, cabe lembrar que um dos experimentos utilizados na defesa desta tese foi com grupos de frangos separados entre regiões “norte” e “sul” (Vigotski, 1933/1998). Segundo Vigotski (1933/1998), este livro apresenta um sistema totalizador da psicologia fascista que, é ao mesmo tempo face de uma nova etapa sem precedentes da crise da psicologia e sua forma mais cínica e degenerada. Um exemplo de seu cinismo seria adotar os princípios fascistas como corolário dependente do desenvolvimento de suas ideias iniciais, já contidas em seu sistema antes da chegada do partido nazista ao poder, assim como Ach e Sprangler. Isto é, não é que o nazismo imponha uma espécie 86 de epistemologia da superioridade racial, mas conforme seus defensores, ele apenas põe em prática teses científicas já comprovadas anteriormente. Em um trecho do livro de Jaensch, que Vigotski cita em seu artigo, o autor alemão deixa claro que defende um tipo ideal de psiquismo, contudo chega a admitir que este necessita incorporar-se com, por exemplo, a consciência campesina, em um processo de revitalização de cima a baixo: O tipo ideal incorporando-se à mentalidade campesina, acabaria por elevá-la a outro patamar, ao mesmo tempo que o tipo ideal deve ser construído e reforçado, desde as camadas mais baixas. Assim, o tipo ideal do psiquismo alemão, seria o guia especial no desenvolvimento da consciência para um patamar diferenciado e exemplo para todos os países e não só dentro da própria Alemanha. Era uma ciência e um ideal que deveriam ser forçosamente exportados: Toda grande nação possui muitas estruturas. Uma nação não contêm somente aquelas estruturas mentais que se mostram como forças diretrizes de um período dado, senão também outras estruturas adicionais. Atualmente, na Alemanha, privilegiamos a reabilitação do tipo nacional básico. Este processo de revitalização consiste em um amálgama do tipo idealista alemão com o tipo camponês, que está mais próximo da terra. Ambas estruturas poderiam fecundar-se mutuamente, o tipo camponês deve ser elevado de alguma maneira e o tipo ideal deve ser construído e reforçado desde baixo. Na linguagem de uma tipologia integral, isto significa uma amálgama de estruturas. Se outras nações também procedem da mesma maneira e seguirem esta trilha as quais estão traçadas e revisarem as estruturas de liderança, então, os alemães e os franceses estarão em condições de compreender-se mutuamente. Toda nação incorpora o grau de desenvolvimento inicial. (Vigotski, 1933/1988, p.107-108, tradução e grifos nossos). Para Vigotski o livro de Jaensch cumpre a função de um manifesto de guerra que torna explícita e programática a ação simultânea entre psicologia - representando a ciência – e o avanço político-militar do nazismo, de forma que a psicologia científica seria a luz racional que justificaria a política de dominação. Pois, salienta Vigotski, a aplicação na prática deste idealismo psicológico nacionalista, não teria apenas um fundo calcado na ideia da superação racial, mas também buscava ser um meio de resolver a contradição entre individualidade e a universalidade do estado político, nas palavras do bielo-russo: ”O Problema da relação entre indivíduo e estado”. (Vigotski, 1933/1988, p.116). As bases do nacionalismo travestido como psicologia científica é alvo de Vigotski também na crítica ao argumento de Jaensch, de que em todo momento histórico, uma nação se destaca, ao passo que estas deveriam tornar-se o modelo central, um espelho para outras nações. (Vigotski, 1933/1988). O psicólogo marxista está portanto preocupado em demonstrar que o cerne da psicologia sob o jugo do fascismo é alinhar-se ao projeto político expansionista nazista e usar do respaldo de alguns destes autores na Psicologia para promover no reino das ideias científicas sobre o psiquismo 87 humano, a mesma grosseria política e expansionista que já estava ocorrendo na realidade material. Neste sentido – a psicologia deve abandonar suas aspirações à verdade – e dobrar-se diante do cenário promovido pelo III Reich. Desse modo, a psicologia abandonava também sua postura como ciência, e alinhando-se a política subjugada ao ideal nazista, torna-se essencialmente ideologia: Dentro do sistema de divisão do trabalho da política fascista, foi incumbido a Jaensch, o objetivo de levar a cabo no reino das ideias psicológicas científicas, a mesma destruição que já havia sido realizada no plano político racial. Com é bem conhecido, a Alemanha após o golpe perdeu seus melhores psicólogos, os mais progressistas e mais avançados cientificamente. Como Jaensch está firmemente convencido do feito de que todo poder se assenta no idealismo realista, e de que aquelas ideias não respaldadas por baionetas não valem um centavo, a única saída seria [sacar] conclusões ideológicas a partir das representações políticas existentes (Vigotski,1934/1998, p.108). Vigotski (1933/1998) ressalta que a aliança ideológica dos psicólogos alemães com os nazistas não advém de uma nova psicologia, mas esta se alinha totalmente às representações políticas existentes, de modo que algumas das formulações não podem ser consideradas esforço científico, tais como a frase destacada por ele: “Se estão herdados a raça e o sangue então as ideias também são herdadas”. (p, 114-115, tradução nossa). Argumento ao qual Vigotski afirma ser impossível qualquer crítica científica rigorosa; seria como “refutar os desvarios de um delirante com um discurso lógico.” A ideia mecanicista de que a raça e o sangue levem a um mesmo fio condutor até a produção das ideias, para Vigotski, está intimamente relacionada com a recusa pela psicologia burguesa da natureza social do psiquismo humano. Em Jaensch, a ausência da dimensão social do psiquismo, assenta a raça e o sangue na condução da estrutura da personalidade, e através dela, a dimensão política da sociedade. Arrematando a crítica as posturas de Jaensch, Vigotski afirma que ao menos este explicita os seus interesses com sinceridade: Jaensch tem proclamado aberta e cinicamente o que outros tratam de ocultar ou que tem meramente consciente ou em sua subjetividade. Jaensch somente disse o que outras pessoas estão pensando, ou, ao menos, fazendo. Ele tem dito que ser cientista burguês significa servir as necessidades da burguesia, necessidades que aparecem durante um período histórico dado e lutar, usando as armas da ciência para alcançar as metas políticas que surgem dos problemas atuais. Ele tem dito que não existe tal coisa como ciência apolítica, que existiria a margem da política. (...) Jaensch levou a cabo sua tarefa no estilo de um sargento maior que não parece estar nada preocupado, com o feito de que, enquanto se esforçava para apresentar-nos um tipo alemão ideal em um atrativo atuante de super-homem, tudo o que realmente conseguiu foi desenvolver o que Nietzsche chamou de Besta Loira, a cara selvagem do nacionalismo zoológico. (Vigotski, 1934/1998, p. 127) Ao realizar o diagnóstico dos principais problemas metodológicos expostos pela concepções fascistas na psicologia, Vigotski afirma que o não reconhecimento e mesmo a ignorância da natureza social do psiquismo seria um dos motivos pelos quais a raiz 88 biológica e física vulgar destas expressões ideológicas tiveram sucesso. Ignorando o papel dos signos, da mediação da linguagem, a historicidade e o caráter altamente complexo e desenvolvido dos sistemas psicológicos, a psicologia pode ficar aberta aos desvarios deterministas de perspectivas que elejam a raça e a hereditariedade como fundamental à explicação da totalidade da consciência humana, cuja as fraquezas científicas cujas fraquezas científicas não resistiriam à um exame rigoroso. Para Vigotski, a fase fascista da psicologia é a expressão da crise da psicologia burguesa, da confusão entre idealismo e materialismo, e o abandono do que de fato se trata a consciência humana. Enfim, é uma expressão da alienação que separa, divide, fragmenta e afasta a compreensão dos seres humanos como um tipo unitário de formação biológica e de ser social, tanto quanto na necessidade de relações sociais para a constituição do indivíduo e a marca que estas relações – situadas historicamente – deixam no cerne do desenvolvimento de cada indivíduo. Vigotski não viveu o suficiente para acompanhar a expansão ainda maior que configurou o regime nazista e a II Guerra Mundial, tampouco poderia prever a morte de milhões de seus compatriotas na resistência à invasão Alemã na URSS. No entanto, a sua habilidade em perceber os aspectos ideológicos da psicologia, e o lugar destas no cerne da crise estrutural imanente a esta ciência, exigiram do autor uma posição contundente contra a cooptação da psicologia pelo nazismo. Tendo em vista o recorte realizado para expressar os dois maiores sentidos atribuídos ao conceito de ideologia do qual nos ocupamos, e que expressam uma “tensão”. Este texto marca a volta do sentido crítico-negativo de ideologia enquanto expressão da reificação e dos limites de visão de mundo e homem de certa estrutura historicamente determinada de consciência e pensamento teórico que se manifestam tanto no cotidiano quanto nas elaborações filosóficas e conceituais. Esta ressalva é válida por expormos no próximo capítulo que em um breve intervalo iniciado após a publicação do texto da “Crise”, Vigotski ocupar-se-á da palavra ideologia enquanto um conceito auxiliar na explicação do pensamento e da consciência socialmente determinada, e que este passa a exercer uma função diferente do sentido essencialmente crítico, característico dos textos iniciais e após esta inflexão aqui apontada, retomado com veemência em O Fascismo e a Psicologia. Vimos ao longo do exame do conceito de ideologia nestes três textos de Vigotski como ele aparece na ordem de problemas da verdade ou falsidade de um conhecimento – sem desvencilhar conhecimento teórico e prática social – e o quanto a ideologia pode 89 ser um fenômeno essencialmente crítico e negativo, na linha mais tradicional da crítica da ideologia de inspiração marxista. Apesar das peculiaridades de cada produção textual, vale ressaltar que perpassam pela pena do autor, tanto a necessidade da crítica e do combate à psicologia burguesa, muitas vezes agonizante e de postura defensiva, bem como o limite de visão de homem e de mundo desta mesma psicologia, que sozinha seria incapaz de resolver os problemas que configuram a “crise” tanto no plano teórico quanto no prático. O próximo capítulo marca uma inflexão do termo “ideologia”, enquanto essencialmente crítico-negativo, pondo à mostra um Vigotski que coloca a ideologia como fenômeno genético da construção social do psiquismo, pelo qual permeia funções e valores da consciência sob a influência da ideologia. Neste sentido, o conceito perde a sua essência negativa, sem, no entanto, tomar uma forma neutra ou desprovida de valores e significados. Como veremos nas últimas sessões, focadas nas ideias sob sistemas psicológicos e nos sistemas conceituais de pensamento, como expostas por Vigotski, também pesa a necessidade da superação das espontaneidades típicas da ideologia, isto é, o seu baixo grau de abstração e explicação da realidade, bem como da autoconsciência. 3 VIGOTSKI E A IDEOLOGIA COMO SISTEMA CONCEITUAL [19291931]. IMPLICAÇÕES PARA A PSICOLOGIA COMO CIÊNCIA E PARA A RELAÇÃO ENTRE CONCEITOS CIENTÍFICOS E ESPONTÂNEOS. A palavra ideologia aparece no Manuscrito de 1929, conhecido como Psicologia concreta do homem. Na introdução de Puzirei, (2000) editor do texto liberado pela família de Vigotski, o manuscrito além de tocar em pontos atuais para a psicologia moderna, revela a qualidade de “delineamento preliminar”, do trabalho principal de Vigotski que eclodirá na primeira metade da década de 1930. A palavra ideologia não aparece como sinônimo de falseamento e inversão da realidade, mas torna-se parte da explicação de Vigotski sobre o uso de signos como mediação entre o social e o individual em uma unidade contraditória que deve ser tomada em uma dinâmica processual e histórica. 90 Dos textos selecionados para este trabalho, foi em Psicologia Concreta do Homem26, que encontramos a “ideologia” mais próxima a um sentido de funções e valores das ideias na formação consciência em cada etapa histórica do comportamento e nos sistemas psicológicos, sem delinear abertamente uma conotação crítica e negativa, que caracteriza as primeiras aparições do conceito na sua produção teórica. Um exemplo deste fato é a ideia das relações sociais entre as pessoas transferidas para a personalidade, o social como ideológico, significativo e mediado, sem a dependência do vocabulário da reflexologia ou da reactologia. O conceito de social é expandido pelo autor a fim de dar conta dos avanços que o levavam para a construção de uma nova psicologia e exigiu deste clarificar o que esta perspectiva entende por social: A palavra social em aplicação ao nosso caso tem muitas significações: 1) mais geral, todo cultural é social; 2) sinal – fora do organismo, como instrumento, meio social; 3) todas as funções psicológicas superiores constituíram-se na filogênese, não biologicamente, mas socialmente; 4) mais grosseira - significação – os mecanismos dela são uma cópia do social. Elas são transferidas para a personalidade, relações interiorizadas de ordem social, base da estrutura da personalidade. Sua composição, gênese, função (maneira de agir) - em uma palavra, sua natureza – são sociais. Mesmo sendo, na personalidade, transformadas em processos psicológicos – elas permanecem quase-sociais. O individual, o pessoal – não é ‘contra’, mas uma forma superior de personalidade. (Vigotski, 1929/2000, p.26) É interessante notar que a palavra ideologia surgirá neste manuscrito de modo semelhante ao desenvolvido no texto analisado a seguir, Sobre os sistemas psicológicos, inclusive contendo o mesmo exemplo dado por Vigotski como a ideologia de uma cultura indica a gênese das ideias individuais, que é o caso do cafre – ou kaffir, na tradução consultada do Manuscrito de 1929 – que utiliza o sonho como forma de pensamento, para tomar decisões complexas. A formação da personalidade é subordinada às relações sociais; são os signos externos, materializados pela história das transformações humanas no decorrer do uso e no domínio de instrumentos e signos, como formas culturais de mediação psicológica, das quais decorrem as funções psicológicas superiores. Antes de classificar em “esquemas fixos” as características da personalidade humana, Vigotski salientava a importância de dar relevo à natureza processual da personalidade, mais que à “factual”. A relação do individual com o social não é de mera subordinação ou de oposição absoluta, a gênese do psiquismo é social em sua origem e mantêm-se, via relações 26 Trata-se de um texto não finalizado para publicação, o que demandou um trabalho de reconstrução de abreviaturas e de decifração dos apontamentos. Contudo, nele observamos tanto as ideias discorridas, como em elaboração. Revela, também, o modo de construção não somente da escrita mas do pensamento científico do autor. 91 sociais, estas por sua vez não suprimem o indivíduo, já que considera a individualidade uma forma superior do social. Assim, Vigotski oferece uma ênfase à consciência individual, quando esta se diferencia das suas determinações mais gerais, e supera o estado de “cópia do social”, isto é, desenvolve de fato uma “personalidade”, no sentido de que se distancia e ao mesmo tempo advém das relações sociais que o constituíram. A ideologia seria um dos componentes da mediação do psiquismo individual com a realidade social, um sistema de ideias, conceitos que realizam funções com determinados valores e moldam a consciência individual por meio de mecanismos pelos quais significa e dá sentido, em uma palavra – organiza – as ideias que recorrem para mover-se no mundo, tomar decisões, compreender e agir na realidade. A ideologia é uma palavra que se une ao quadro conceitual de Vigotski, para indicar a atividade do homem mediada pela linguagem, que como consciência histórica, também se difere em diversos sistemas conceituais dominantes em cada época, em que cada individualidade se molda e se confronta, mais que limitam-se às sua natureza estrutural biológicas. Este atribui à psique um estatuto de dependência com as relações sociais tanto em sua gênese, quanto no desenvolvimento individual e no campo de ação sem, no entanto, encerrar este problema em um determinismo. Antes, preconiza a transformação social pelas vias concretas que constituíam o homem, suas relações sociais mediadas pelo trabalho, pela realidade socioeconômica, classes, família, cultura, diversas formas ideológicas dependentes, ligadas diretamente às relações sociais estabelecidas entre o indivíduo e em última análise, pelo conjunto da humanidade. O que temos em foco é a ênfase de que a consciência e seus mecanismos de pensamento, no caso os sistemas psicológicos, em nível individual se dá em um tempo histórico, que corresponde a determinado nível de desenvolvimento geral da sociedade. O homem da Grécia antiga, por exemplo, não poderia utilizar os meios encontrados pelo homem de hoje para postular e resolver seus problemas particulares (e nem estes seriam os mesmos), ele recorreria à cultura de sua época, pois esta representa o lugar de ação e ao mesmo tempo um limite, na medida em que a liberdade humana não está colocada de modo que possa fazer o que se quiser, ela é dependente de toda uma situação histórica, e a ideologia é tomada como um processo pelos quais estas relações cristalizam-se como meios de significação e valoração. A ideologia marca a formação da consciência de uma época histórica, mas não a determina de modo mecânico e também não é somente o resultado de concepções 92 distorcidas, aqui Vigotski preocupa-se com mais a função da ideologia na vida social, tal é o caso do cafre. Esta não regeria a vida individual mecanicamente, tampouco seria o resultado de uma bem sucedida ideia falsa que dissimula conflitos, mas um pensamento que é socialmente determinado, uma estrutura de ideias e sentidos que não dependem do arbítrio do indivíduo tomado isoladamente. As reações da personalidade estão postas em camadas, estratos e funções que se aplicam à vida real, às atividades práticas de cada indivíduo e deste no todo social. A psicologia deveria entender, portanto, a consciência como um fenômeno que está sempre em relação com o mundo externo, mesmo em sua interioridade mais rica possível. A ideologia não se sustenta somente pela sua capacidade de convencimento, a sua argúcia sedutora sobre os homens, ainda que certa visão de mundo seja dominante e muito mais vitoriosa que outras, como é o exemplo do domínio religioso em um país só, da crença que o capitalismo é capaz de oferecer oportunidade para todos, bastando esforçar-se, entre outros. Aqui, a ideologia corresponde a todo um sistema conceitual valorativo que é diretamente ligado ao posicionamento individual na vida social: A tarefa da psicologia é o estudo das reações da personalidade, isto é, das ligações de tipo sonho – mecanismos reguladores. Papel da religião, etc. A toda ideologia (social) corresponde uma estrutura psicológica de tipo definido – mas no sentido da assimilação subjetiva e portadora da ideologia, mas no sentido da construção das camadas, estratos e funções da personalidade. Compare Kaffir, católico, trabalhador, camponês. Compare minhas ideias [relação] da estrutura dos interesses com a regulação social da conduta. (Vigotski, 1929/2000, p. 31 - grifos nossos) Se a ideologia opera na regulação social da conduta, isto não implica em um determinismo mecânico, mas antes um organizador entre o indivíduo e a sociedade em que este está vinculado, e nos quais condicionam os estratos, camadas e funções da personalidade que exerce. A cada uma destas atividades, corresponde a ideologia e esta relação não se dá somente de forma unilateral, antes, conserva um grau de autonomia, pois não é o pensamento que pensa pela pessoa, pensa a pessoa, o homem. O “pensamento” é histórico não existe como algo puramente lógico, ou extemporâneo ao ideário social de uma época: Pensa não o pensamento, pensa a pessoa. Este é o ponto de partida da visão (...) O que é o homem? Para Hegel, é o sujeito lógico. Para Pavlov é o soma, organismo. Para nós é a personalidade social, encarnado no indivíduo (funções psicológicas, construídas pela estrutura social). O homem é para Hegel, sempre a consciência, ou autoconsciência. (frase a margem do manuscrito). (Vigotski, 1929/2000, p.33- grifos nossos). Se a ideologia também é o “social em nós”, e neste sentido um elemento que gera e ao mesmo tempo limita um dado horizonte da nossa consciência, isto não indica a redução da consciência ao meio social tomado como um determinismo mecanicista do 93 qual o social “controla” a consciência em absoluto, ao contrário, Vigotski colocará sempre a ideologia como algo passível de ser modificado, não somente em um sentido contrário ou divergente do estabelecido, mas como direcionado à possibilidade de avançar na compreensão da formação do nosso psiquismo e na possibilidade de modificação social das funções e finalidades em que estes estão colocados, rumo a um grau maior de liberdade do homem. Há, portanto, uma grande inclinação ao tema da liberdade, na medida em que esta coloca para a humanidade, conforme avança no domínio da natureza e do conhecimento, a possibilidade da superação das ideologias parciais e a fomentação de um projeto que vise a criação de um sistema que compreenda estas ideologias, superando-as através de novas e coletivas atividades. A ideia de um “sistema único” traz à reflexão da liberdade em conjunto com a exposição sobre a ideologia tomada como pensamento socialmente determinado, como veremos na análise a seguir. 3.1 1931: SOBRE OS SISTEMAS PSICOLÓGICOS E A IDEOLOGIA. Sobre os sistemas psicológicos foi um texto não publicado em vida por Vigotski, versão aqui utilizada, publicada em 1996, nas Obras Escogidas traduzidas diretamente trata-se da transcrição de uma conferência realizada em 1930, em que Vigotski apresenta hipóteses sobre os sistemas psicológicos, colocando-os no terreno das ideias psicológicas sobre conceitos como consciência, personalidade e pensamento de um modo crítico em relação às teorias tradicionais sobre a essência do pensamento desenvolvido e a aquisição de funções novas no desenvolvimento ontogenético. Assim, polemiza com concepções tradicionais da psicologia sobre a maturação destas funções seguirem um caminho de desenvolvimento natural como um percurso contínuo de amadurecimento, tal como ocorre no reino animal, sem nenhuma explicação psicológica do ponto de vista do que é de fato distinto no homem. Concepções que também defendiam a possibilidade de encontrar o correlativo em áreas do cérebro de cada função em específico, inclusive porque estas atuariam de modo isolado, mesmo no “conjunto” do cérebro, atuariam em áreas separadas. Este fundo comum da concepção que adota uma ideia de acontecimento natural como um percurso contínuo de matriz biológica, é que Vigotski concentra os esforços críticos na ideia alternativa de sistemas psicológicos. Para o autor, os sistemas psicológicos subordinam as funções naturais, situando-as em novas e mutáveis relações que necessitam do caráter social para o impulso deste movimento, do novo, tanto quanto 94 para a continuidade destas mesmas novas formas e ampliam-se e integram-se na fase de transição, através do pensamento por conceitos, em que a consciência humana pode dar um salto qualitativo, e além de sustentar psicologicamente novas habilidades, construir e ampliar visões de mundo. Para Vigotski o desenvolvimento da consciência individual ocorreria em três etapas. Como o autor era um materialista e crítico dialético, isso nos obriga a lembrar de tais etapas não como processos formais e estanques, que não carregam em cada novo movimento característico suas contradições, rupturas e descontinuidades. Mas antes sua teorização se trata da primazia ontológica do ser social sobre o individuo, de uma etapa do desenvolvimento psicológico humano, da qual a formação individual é necessariamente dependente: Primeiro, a interpsicológica: eu ordeno você executa; depois a extrapsicológica: começo a dizer a mim mesmo; e em seguida, a intrapsicológica: dois pontos no cérebro, que são estimulados de fora, tem tendência a atuar dentro de um sistema único e se transformam em um ponto intracortical. (Vigotski, 1930/ /2001, p. 133) Se os sistemas psicológicos são de natureza social e passam a intervir na formação do psiquismo individual na medida em que este último relaciona-se e se diferencia dentro do jogo dos próprios sistemas, esta ideia torna-se crítica de concepções que sustentam diferenças radicais entre as qualidades naturais das funções psicológicas em diferentes indivíduos. Por exemplo, caberia investigar a diferença entre as aptidões e capacidades inatas de cada um, e de fato este se tornou um modelo recorrido à ciência psicológica no final do século XIX e segue com algum prestígio mesmo nos dias de hoje. Mas para Vigotski estes sistemas não importam tanto do ponto de vista da capacidade individual, em que podem elevar estas funções, o fato, por exemplo, de eu ser mais atento que alguém quando escrevo, enquanto esta pessoa pode ter mais facilidade em ouvir uma palestra. Mas, sobretudo, esses sistemas importam enquanto reveladores das finalidades práticas, na produção e reprodução social da vida, pela qual os sistemas psicológicos se constituem e se dinamizam: A diferença caracteriológica essencial e importante na prática da vida social das pessoas encontra-se nas estruturas, relações, conexões, de que dispomos entre diversos pontos. Quero dizer com isso que o decisivo não é a memória, ou a atenção, mas até que ponto o homem faz uso dessa memória que papel desempenha. (Vigotski, 2001, p.133) Se a psicologia tradicional entende as transformações psíquicas como processos internos, a psicologia proposta por Vigotski busca ampliar esta visão, já que a internalização é apenas uma parte do processo de desenvolvimento psíquico. Além disso, o desenvolvimento interno já não importa mais tanto quanto revele os dotes 95 especiais de cada individuo munido e a capacidade das suas funções entendidas somente para-si, mas a pergunta é alçada no “para quê”. É na qualidade das “estruturas”, “relações” e “conexões” que deve encontrar-se a diferença nas pessoas, e não centralizar as diferenças individuais, no bojo de uma concepção assentada na abstração do indivíduo isolado autogerado. Dessa forma, as funções psicológicas superiores não se alteram muito em si, no que lhes detêm de específico de cada função, na sua matriz natural, física e biológica. Mas antes passam a integrar estes sistemas de modo que a atividade do sujeito subordina e reestrutura a carga natural de cada uma delas. Temos como exemplo, as transformações ocorridas com a internalização da linguagem na percepção e na memória, como é o caso do uso de desenhos para auxiliar a memória, que não altera a natureza desta função em si, a sua carga genética que lhe determina a seu uso e função, mas a reestrutura, sua fusão com o pensamento eleva-a a outro patamar, o de memória lógica e já não pode ser redutível ao determinismo biológico (genético), por ter dependido de uma atividade social, de relações sociais determinadas, históricas. (Vigotski 2001, p. 111). A exposição de Vigotski objetiva um panorama sintético das funções mais elementares até a possibilidade mais elevada de desenvolvimento da consciência, o pensamento por conceitos, bem como demonstrar que a desintegração destes sistemas em patologias severas tais como a afasia e a esquizofrenia, comprova a tese de que os sistemas psicológicos são pontos intracorticais que percorrem, etapas interpsicológicas em sua gênese entre o indivíduo e outros indivíduos, e em última análise, com o gênero humano, mediado pela cultura em que está inserido, visto que tais patologias não eram causadas por danos degenerativos ou mesmo neurológicos do ponto de vista anatômicocerebral. Ao contrário, para Vigotski, a ausência da mediação característica do pensamento propriamente humano, por conceitos e por sistemas psicológicos interpessoais, que caracterizam também em conjunto, os nossos afetos e emoções e que na ausência da patologia passam a ser subordinadas ao pensamento, desintegra-se por completo na patologia, caracterizada por uma relação predominantemente afetiva, sem a regulação destas mediações, dos sistemas psicológicos mais refinados para o controle e desenho dos afetos. Se o pensamento é mediado por uma forma social que o subordina e faz com que domine o reino do afeto puro, o esquizofrênico teria a desintegração justamente dessa “conexão” e por isso as manifestações características desta patologia. 96 Se a psicologia tradicional da época de Vigotski apresentava-se com certa hegemonia da concepção que repousava sobre uma epistemologia de ordem biológica, sobre os constructos teóricos que buscavam explicações psicológicas, a ideia de sistemas psicológicos propõe-se como superação, tanto epistemologicamente, no terreno do conhecimento da verdade histórica do objeto, neste caso, a consciência humana, como no plano prático, já que as investigações refletem diretamente problemas ligados à educação de crianças e à formação da mente humana desenvolvida, isto é, consciências dotadas de certo grau de liberdade para o domínio de sua autoconsciência, progressivo no domínio histórico do comportamento, como apropriação dos objetos da cultura estabelecidos pelo conjunto do gênero humano, isto é, garantida a sua humanização. Os sistemas psicológicos não começaram com o homem moderno, e isto fica em voga em um traço essencial da teoria histórico-cultural do comportamento humano, as formas mais rudimentares e primitivas de comportamento não estão subordinadas às leis biológicas que limitam a forma e o uso das antigas civilizações, como se estes tipos fossem inferiores em termos de raça e gênero, ao homem ocidental moderno, mas demonstram etapas percorridas pelo gênero humano ao longo do domínio histórico do comportamento, uma etapa do contínuo “afastamento das barreiras naturais”. O afastamento das barreiras naturais, dos sentidos e os saltos qualitativos no domínio da natureza, colocam em jogo tanto a superação teórica de concepções que restringem o desenvolvimento ao biológico, como abrem espaço para uma intervenção concreta e racional em busca do domínio consciente destes próprios sistemas. Assim, o homem primitivo não é em nada diferenciado de nós, só está sob o jugo dos seus sistemas psicológicos historicamente colocados, e mais, este processo também havia sido compreendido como possível de ser alterado. Para Vigotski, diferenciar o psiquismo do homem primitivo, supondo que este é um tipo diferente biologicamente do homem moderno, é fazer uma confusão grosseira entre desenvolvimento biológico e desenvolvimento histórico, Vigotski chega a enfatizar que a evolução biológica do homo sapiens chegara ao fim: Todas as investigações biológicas conduzem à ideia de que o homem mais primitivo que conhecemos merece biologicamente o título completo de homem. A evolução biológica do homem já tinha terminado antes que começasse seu desenvolvimento histórico. (Vigotski, 1930/2001, p. 115). A necessidade de colocar o psiquismo no terreno histórico, portanto social e que envolve antes o coletivo para o surgimento de um novo psiquismo fora também um modo da própria Psicologia colocar-se diante de modos de interpretação tradicionais tais 97 como o Associacionismo, para o qual os elementos sensoriais, em associação, precediam qualquer conceito no pensamento e, além disso, colocavam em foco as associações entre as funções considerando-as isoladas entre si e o desenvolvimento era o resultado da associação entre estas funções isoladas. Não havia, portanto, dinâmica ou reciprocidade entre elas. Vigotski cita como exemplo de teoria que já não aceitava a tradição associacionista, que tomava as funções como individuais e isoladas entre si, a ideia de Piaget de que o pensamento surge na criança pré-escolar somente quando ela já está inserida em jogos coletivos de diálogo, enfatizando a necessidade do comportamento social antes da fala egocêntrica. Cita Gross 27sob a subordinação às regras do jogo como elemento que desenvolve a função psicológica da atenção voluntária individual. Neste texto Vigotski ainda busca seu caminho para diferenciar-se tanto da psicologia tradicional quanto ampliar o leque na investigação da gênese social do psiquismo. A proposta de Vigotski defende a ideia de que o pensamento surge nas relações sociais que o indivíduo estabelece com outros seres humanos. Existe a necessidade de uma relação interpsicológica, esta é etapa fundamental para a possibilidade do desenvolvimento individual, esta dupla aparição do comportamento superior antes do seu surgimento no individuo põe em xeque a constituição da consciência como prolongamento natural do organismo, entendido de modo exclusivamente biológico: Ao estudar os processos das funções superiores das crianças chegamos à uma conclusão que nos surpreendeu. Toda forma superior de comportamento aparece em cena duas vezes antes do seu desenvolvimento: primeiro como forma coletiva do mesmo, como forma interpsicológica, um procedimento externo de comportamento. Não nos damos conta desse fato porque sua cotidianidade nos cega. O exemplo mais claro disso é a linguagem. No princípio é um meio de vínculo entre a criança e aqueles que a rodeiam, mas, no momento em que a criança começa a falar para si, pode se considerar como a transposição da forma coletiva de comportamento, para a prática do comportamento individual. (Vigotski, 1930/2001, p. 112) Este fato cotidiano óbvio, que chega “a nos cegar em sua obviedade”, coloca em destaque os meios pelos quais essas relações ocorrem, sendo a dimensão semiótica da linguagem o signo fundamental da consciência, o indivíduo só pode tornar-se autônomo na medida em que se relaciona com os demais e daí pode forjar a própria autonomia, mas sem a linguagem que é entendida aqui, não apenas como habilidade de falar, mas como signo, isto é, como realidade material que é também forma de comunicação. Propõe entender a linguagem como esse elo de ligação entre o social e o indivíduo ao passo que esta relação não se dá de modo mecanicista ou descrito nas linhas gerais da 27 Karl Gross (1861-1946), foi filósofo e psicólogo alemão, estudou a psicologia infantil e formulou uma conhecida teoria sobre papel do jogo no desenvolvimento. 98 biologia; para Vigotski (1930/2001) ela é uma forma não só de compreender os demais, mas o que possibilita que o ser humano compreenda também a si mesmo. (p.112) A linguagem é um exemplo de signo, talvez um dos mais importantes na órbita teórica de Vigotski, visto que ela está na base da possibilidade do desenvolvimento do pensamento; o signo é um “meio de comunicação” que permite aos seres humanos estabelecer ligações entre sistemas. Nesta exposição, Vigotski propõe uma superação da psicologia moderna por demonstrar um limite claro das ideias que se defrontava na sua época, a constituição e o necessário uso dos signos para o desenvolvimento da consciência, deixava claro que a prolongação natural do comportamento não era a gênese que dava o fruto do pensamento, mas antes deveríamos orientar-nos sob as relações sociais expressas na linguagem. A importância do signo como espécie de demiurgo da consciência – e dos próprios sistemas psicológicos como um todo – é enfatizada por Vigotski de modo claro já nesta conferência, que data de nove de outubro de 1930, 4 anos antes do lançamento de sua obra Pensamento e Linguagem. Esta objetivará sintetizar com muito mais rigor e dados sintéticos, algumas das ideias aqui esboçadas tais como o papel da linguagem na constituição do pensamento e o advento do pensamento por conceitos como atributo enriquecedor na trajetória de conceitos científicos e a devida hierarquização em relação aos conceitos espontâneos, aqui encontra-se um dos primeiros ensaios desta ideia: Todo signo, se tomarmos sua origem real, é um meio de comunicação, e, poderíamos dizê-lo mais amplamente, um meio de conexão de certas funções psíquicas de caráter social. Transladado por nós mesmos, é o próprio meio de união das funções em nós mesmos, e poderemos demonstrar que sem signo, os cérebros e suas conexões iniciais, não poderiam se transformar nas complexas relações, que ocorrem graças à linguagem. (Vigotski, 1930/2001, p. 111) Em um exemplo que funde as duas teses: a) que o psiquismo do homem primitivo não pode ser reduzido a uma diferença biológica, e, b) que o signo atua como um sistema psicológico e mediatiza relações sociais entre os homens, Vigotski toma de empréstimo um relato de campo coletado por outro psicólogo, Levy Bruhl28, que fala sobre um cafre que, quando questionado sobre a proposta de um missionário de autorizar que o filho fosse para a escola da missão, responde que consultará os sonhos para dar a resposta. A atenção de Vigotski repousa na observação de Bruhl de que o sonho toma para o cafre o mesmo lugar que para nós está o pensamento. É como se ele dissesse, literalmente, “vou pensar”. Mas, nós, assim como o cafre, sonhamos, porque é que para ele o sonho cumpre esta função de pensamento? 28 Lucién Levy-Bruhl (1857-1932) filósofo e sociólogo francês. 99 Mais do que explicar o uso do sonho na cultura do cafre, para Vigotski este é um exemplo notável de um mecanismo psicológico que se modifica historicamente, e do qual o homem serve-se para resolver questões, tal como são resolvidas na sua cultura: As leis dos sonhos são as mesmas, mas o papel que o sonho desempenha é totalmente distinto e observamos que essa diferença não existe apenas entre o cafre e nós, mas também entre o romano e nós, mesmo que, ao enfrentar uma situação difícil, este não dissesse: “Verei isso em sonhos”, porque se encontrava em outro nível de desenvolvimento humano, e resolvia as questões, segundo expressão de Tácito, “com as armas e com a razão e não com os sonhos, como uma mulher”, mas também esse romano acreditava nos sonhos; para ele o sonho era um sinal, um presságio; um romano não começava um negócio se tinha um sonho ruim relacionado com ele; para um romano o sonho entrava em outra conexão estrutural com as demais funções. (Vigotski, 1930/2001, p. 115, grifos nossos). A particularidade cultural do sonho como sistema para resolver questões, muitas delas, complexas como as relacionadas aos problemas de guerras, plantações e colheitas até decisões mais íntimas que interferem o núcleo familiar de um indivíduo, não se dá no cafre devido uma limitação imposta pelo seu aparelho psíquico, incluso o próprio cérebro. Mas referem-se a diferentes modos de se enfrentar questões inventadas pelos seres humanos e que ao longo do desenvolvimento da história humana, isto é, quando os homens passam a se diferenciar dos animais e superam mesmo os instintos gregários para se tornarem comunidades, diferentes níveis e graus de explicações surgiram para o sonho. Tal como o exemplo de Vigotski, o romano já não entregava todo o seu futuro às inspirações oníricas, uma vez que um cidadão romano era um sujeito dotado de razoável consciência histórica, visto as vicissitudes de todo o Império Romano, que convivia com expansões imperialistas, vida política ostensiva e mesmo código de leis e de ética, muito avançadas quando comparadas com as sociedades primitivas. Um romano dificilmente teria uma consciência, no sentido filosófico do termo, sobre uma autodeterminação humana, racional e secular na história, do conjunto humano enquanto um gênero específico, mas possivelmente encarava a sociedade e o homem como capaz de avanços e proezas consideráveis, o que já lhe fazia, conforme uma expressão da época, resgatada por Vigotski, rejeitar o sonho como fonte de inspiração fundamental. O sonho é um signo que faz parte de um todo um sistema conceitual. Este sistema não foi elaborado individualmente pelo cafre, mas pela cultura em que ele está inserido. Entretanto, cabe apontar que esta relação entre sistema conceitual e personalidade, não se dá em Vigotski, de modo mecânico, já que a história é compreendida como um processo em aberto e a personalidade, também histórica, podem avançar para estágios de desenvolvimento da consciência qualitativamente mais 100 complexos e com dinâmicas diferenciadas, das quais emergiu e pertence, não se limitando à reprodução de comportamentos estereotipados da cultura de origem, caso mude a sua localização e atividade em uma determinada prática social. Como pensador dialético, Vigotski compreende que a valoração de um signo e sua subsequente função, tal como o sonho para o cafre, enquanto positiva um modo de ser do signo, nega outras possibilidades, e tende a solidificar-se como um valor, de modo que centralizamos uma maneira pensar à frente de questões complexas que são dependentes da natureza das atividades sociais de cada indivíduo. Nesse sentido, a ideologia, ainda que válida para garantir a coesão e o funcionamento da consciência individual dos sujeitos não foge do reino cotidiano, da espontaneidade. Se a heterogênea sociedade capitalista abriga sentidos diversos aos sonhos nos dias de hoje, que podem significar desde um sinal para se apostar em um bicho no jogo de sorte até de viagens transcendentais para reinos espirituais, o que demonstra a multiplicidade destes valores, e abriga possibilidades de investigação sobre quais finalidades se assentam tais mecanismos, a qual interesses e objetivos estão ligados e ainda, se estes são passíveis de alteração. Essa variedade, sob a égide da sociedade capitalista, não implica necessariamente no domínio consciente destas finalidades, ocorrendo muitas vezes que o indivíduo reproduza o pensamento pela via de uma ação mais espontânea que crítica, mais reprodutiva que autônoma. Isto ainda não elimina a possibilidade de avançar para estágios novos e diferenciados estágios. Tampouco que a adesão a uma ideologia como sistema conceitual social se dê de modo monolítico e regular, ao contrário, a personalidade que vivencia estes sistemas repousa sob uma grande tensão em forma de drama. 29 Não é demais ressaltar que essa possibilidade de mudança não deve ser entendida como uma espécie de voluntarismo. Vigotski indica que há predominância do ideário posto pelo meio – que o indivíduo se insere e interfere – sustentados nos valores correspondentes desse ideário composto pelos mecanismos psicológicos e sistemas conceituais de cada sociedade. Neste sentido, indica que signo e ideologia são momentos de um mesmo processo, da mediação exercida entre o sistema conceitual e a personalidade. 29 Ver Delari Junior, A. Sentidos do drama na perspectiva de Vigotski: um diálogo no limiar entre arte e psicologia. Psicologia em Estudo, Maringá, v. 16, n. 2, pp. 181-197, abr./jun. 2011 101 Vigotski (1931/1996) nos oferece uma análise dialética entre o velho e o novo. Se o pensamento só pode surgir em um meio estabelecido, o mesmo ocorre com o pensamento novo que só pode ser superação do já estabelecido. Assim, ideologia no presente texto está presente como fonte da consciência social mediatizada pela história ao lado dos signos, todo o estabelecimento de uma ideia é uma ideologia, em certo sentido ela é o limite de uma consciência historicamente estabelecida. É preciso assinalar, por um lado, as conexões que alguns sistemas novos mantêm, com os signos sociais, mas também com a ideologia, e o significado que tal ou qual função adquire na consciência das pessoas. Ao passo que, por outro lado, o processo de aparecimento de novas formas de comportamento a partir de um novo conteúdo é extraído pelo homem da ideologia do meio que o rodeia. (p.117). Para Vigotski (1931/1996) o desenvolvimento não percorre um caminho linear e progressivo, em que as demais funções são suprimidas, os estágios de desenvolvimento se dão com rupturas, saltos e quedas, continuidades e descontinuidades, assim é este complexo processo chamado história. As possibilidades do homem de uma época estão dadas pelo seu meio, bem como a possibilidade de alterá-las, entretanto isto não significa que ele possa ter sob ela o resultado de seu desejo absoluto, mas antes terá que se defrontar com limites históricos da sua formação social. Recuperando Marx (1852/2011): Os homens fazem a sua própria história; contudo, não a fazem de livre e espontânea vontade, pois não são eles quem escolhem as circunstâncias sob as quais ela é feita, mas estas lhes foram transmitidas assim como se encontram. A tradição de todas as gerações passadas é como um pesadelo que comprime o cérebro dos vivos. (p.25) Como vivia em um período de efervescência revolucionária, de uma sociedade que tinha seu destino em jogo em um projeto coletivo, a própria transformação social estava atrelada à emancipação humana do trabalho alienado e a construção da sociedade comunista, mas como materialista histórico e dialético, em oposição ao idealismo e a uma ética transcendental, Vigotski situava a sua colaboração à psicologia em um caminho colaborativo ao difícil caminho rumo ao máximo da autodeterminação humana, do salto que vai do reino da necessidade ao reino da liberdade.30 30 “O reino da liberdade começa no ponto em que termina o trabalho determinado pela necessidade; (...) ele é, pela própria natureza das coisas, exterior à esfera da produção material. O homem civilizado tem, tal como o selvagem, que lutar contra a natureza para satisfazer suas necessidades, tem que o fazer em todas as formas de sociedade e em todos os modos de produção possíveis; com o seu desenvolvimento, esse reino da necessidade natural e as necessidades aumentam simultaneamente: mas as forças produtivas que as satisfazem, essas se alargam de um modo semelhante. Neste domínio, a liberdade só pode consistir no seguinte: o homem em sociedade, os produtores associados, determinam racionalmente essa troca material com a natureza, submetem-na ao seu controle coletivo, em vez de serem por ela dominados como por um poder cego; realizam-na com os esforços tão reduzidos quanto possível, nas mais dignas condições da sua natureza humana e nas mais adequadas a essa natureza. Mas continua a substituir um 102 3.2 SISTEMAS CONCEITUAIS E IDEOLOGIA Vigotski não aprofunda o tema da ideologia, e indica que este deveria ser resolvido em questões posteriores, em sobre os sistemas psicológicos. No entanto, fala abertamente em ideologia como conceito ideológico, um sistema de ideias explicativas integrada a um conceito social que auxilia no enfrentamento de questões, como vimos acima. É uma forma de pensar socialmente posta, o que nos leva a entender que o conceito de ideologia, no presente texto, está mais próximo ao sentido de ideologia como pensamento socialmente determinado do que seu sentido crítico-negativo tradicional do marxismo. Não é demais lembrar que este processo – da apropriação pelo indivíduo do sistema de conceitos – não se dá de modo mecânico, ou absoluto como se formasse de comportamentos fixos e inalteráveis na personalidade, já que, na medida em que um conceito ideológico de uma sociedade em específico pode chocar-se com outras formas de sociedade e outros meios de auxílio para as questões que enfrentam e assim integrar este sistema a uma nova conceituação, processo que não é imediato, tampouco espontâneo, mas exige todo um conjunto de atividades que modificam lentamente este sistema. Após falar de conceitos ideológicos, tais como o sistema sonho-signo, para o cafre, Vigotski relata um exemplo de modificação destes sistemas: Não foi o cafre, que deu essa resposta individual, quem criou esse sistema, mas seu conceito de sonho está integrado ao sistema conceitual da tribo à que pertence. Para eles é característica essa atitude para com os sonhos e é assim que resolvem os difíceis problemas da guerra, da paz e outros. Temos diante de nós um exemplo de mecanismo psicológico cuja origem é determinada por um sistema conceitual, pelo valor que se dá a tal ou qual função. Em uma série de interessantes pesquisas norte-americanas dedicadas aos povos semiprimitivos, vemos que à medida que vão se familiarizando com a civilização europeia e recebendo objetos que os europeus utilizam vão se interessando por eles e apreciando as possibilidades que oferecem. Essas investigações mostram que no princípio os homens primitivos resistiam à leitura de livros. Depois de terem recebido alguns simples instrumentos de lavoura e terem visto a relação entre a leitura do livro e a prática, começaram a apreciar de outra maneira a ocupação dos homens brancos (Vigotski, 1931/2001, pp.116-117). Se a tendência em nossa formação é a imitação e a representação dos outros até que tenhamos possibilidade na fase de transição de um avanço na nossa própria autoconsciência, poderíamos apontar que a ideologia deixa marcas profundas no psiquismo tingindo os valores dominantes como os naturais, como se encontram no reino da necessidade. É para além desse reino que começa o desenvolvimento das potencialidades do homem, que é por si próprio a sua finalidade, que é o verdadeiro reino da liberdade, mas que só pode desenvolver-se, apoiando-se nesse reino da necessidade. A redução do número de horas de trabalho diário é a condição fundamental” (Marx, 1885/1982, p. 942). 103 presente, e assim naturalizando formas de pensamento e concepções históricas de verdade. É importante ressaltar que esta forma cultural, justamente por não se tratar de um limite natural, é capaz de ser transformada, e mesmo que quando o sujeito se apropria deste sistema este não se dá por simples imposição. De algum modo, Vigotski usa da ideologia como inescapável à formação do pensamento, ao mesmo tempo em que abre possibilidades de superação de sua própria situação, e assim pode-se colocar também como um crítico da ideologia, na medida em que postula que o conhecimento sobre o psiquismo, seu respectivo domínio é um problema que deve ser colocado em termos de liberdade e da relação unidade-todo. Na presente conferência, Vigotski explana a respeito da gênese do pensamento por conceitos, que fica claro na adolescência. Para o autor, as investigações daquele período sobre desenvolvimento focavam-se demasiadamente na infância e por isso sofreram ao longo dos anos de uma miopia científica a respeito das peculiaridades do pensamento adolescente. Aqui Vigotski nos traz novamente seu pensamento dialético, ao comentar que a personalidade do adolescente que neste período é marcada por uma sólida autoconsciência em que se estabelece a transposição da ideologia ao indivíduo, também não é forjada pelo mecanicismo. Vigotski defende que para aderir conscientemente a um modo de ser, é necessário que o indivíduo tenha liberdade para fazê-lo e esta liberdade não pode surgir de uma consciência determinada rigidamente sem possibilidade de escolha, ainda que a liberdade e as possibilidades históricas de dominar outro tipo de sistema sejam limitadas, como é o caso do homem primitivo que não tem muitas opções se comparado aos instrumentos disponíveis tanto para o trabalho quanto do pensamento do homem inserido na sociedade moderna. O pensamento por conceitos, entendido de modo dialético, postula que a palavra pode tornar-se um conceito científico, que se transforme em toda uma estruturada visão de mundo com esta concepção, opõe-se a estudos baseados na lógica formal, para a qual o conceito é uma espécie de paralização do conhecimento sobre a palavra. Para Vigotski, ao contrário, apropriar-se de um conceito é o início de uma jornada rumo a uma coerência sistemática e enriquecedora do objeto, que pode situá-lo em hierarquias, e adquirir as vantagens de toda uma “série de apreciações”. Portanto, o conceito entendido também como pensamento socialmente determinado não é uma imputação do nosso meio para o pensamento, mas antes a 104 própria possibilidade do pensamento científico. A crítica da ideologia também é conceitual, na medida em que ela supera os limites da gênese social de um determinado indivíduo, caso este passe pelo processo de enriquecimento do conceito rumo a um processo de individualização, ao contrário do pensamento rígido, monolítico e regular do conceito cotidiano/espontâneo. Na medida em que o sujeito supera as conceituações espontâneas das quais emerge seu pensamento, da sociedade que o forjou e passa a se relacionar com uma visão de mundo mais enriquecida e aberta, tende a expandir a liberdade sobre si, e conforme este domínio enriquecido for apropriado coletivamente, está aberta também a possibilidade de transformações de todos os outros. Para Vigotski (1931/1996) a meta da psicologia deveria ser entender a origem e as finalidades destes sistemas, não para atribuir a eles uma catalogação fixa de etapas de desenvolvimento, mas como uma jornada do conhecimento sobre o domínio de nossos afetos, com o objetivo de uma unificação cada vez maior entre o indivíduo e o todo. Podemos abstrair que, se as condições para a emancipação humana entendida como gênero humano, da liberação da sociedade de classes e das mazelas do modo de produção capitalista, tal como estava posto na URSS, animara Vigotski sobre a possibilidade histórica e concreta deste domínio, e ele não estava só em bases epistemológicas a respeito desta unidade indivíduo-todo. Cita Lewin31 e Spinoza32, o primeiro a respeito de quando estamos diante de indivíduos que nos causam admiração por uma grande entrega ética na vida, estamos diante de um processo em que o todo mantêm relação com a unidade. Já ao filósofo holandês, Vigotski recorre como inspiração para apontar a possibilidade de superar sistemas psicológicos parciais, fragmentários e ideológicos no sentido de desenvolvimento presente e existente, para avançar rumo a um “sistema único” que compartimentalizasse a “maior concentração de comportamento humano”. Este sistema psicológico “único” que consegue estabelecer íntima relação entre o todo e a unidade, consegue concentrar as mais variadas manifestações do comportamento em torno de um centro comum. Para Vigotski a veracidade científica da existência do sistema único estava na vida de pessoas que superaram todas as limitações impostas pelo meio e por sua ideologia, e tornaram a vida exemplos de busca por um 31 32 Kurt Lewin 1890-1947. Baruch de Spinoza, 1632-1677 filósofo holandês. 105 fim comum, como uma ampla relação entre totalidade social e unidade33 superando a fragmentação, as limitações corpóreo-naturais, transcendendo estereotipias e subordinando os imperativos biológicos do nosso corpo e as estruturas psíquicas com grau elevado de apropriação dos produtos da humanidade. Vigotski recorre a Spinoza para demonstrar essa possibilidade, mas abdica do naturalismo e da teologia do filósofo holandês, apegando-se essencialmente a seu monismo filosófico, como um dos elementos críticos para fundamentar o sistema único: Nos casos mais elevados, quando nos achamos na presença de individualidades humanas que revelam o grau máximo de perfeição ética e a mais maravilhosa vida espiritual encontramo-nos num sistema em que o todo mantém relação com a unidade. Spinoza defende uma teoria (que modifico ligeiramente) segundo a qual a alma pode conseguir que todas as manifestações, todos os estados, se voltem para um mesmo fim, podendo surgir um sistema com um centro único, a máxima concentração do comportamento humano. (...) Para Spinoza, a ideia única é a de Deus ou de natureza. Psicologicamente, absolutamente isso não é necessário. Mas o homem pode com certeza reduzir a um sistema não apenas funções isoladas, mas também criar um centro único para todo o sistema. Spinoza mostrou esse sistema no plano filosófico; existem pessoas, cuja vida é um modelo de subordinação a um fim, que mostraram na prática que isso é possível. Resta para a psicologia a tarefa de mostrar como verdade científica esse tipo de surgimento de um sistema único. (Vigotski, 1931/2001, p.134) Se a noção aqui entendida é mais “neutra” no sentido de que não denota a palavra ideologia como um processo deformador de conhecimento em prol de interesses classistas escusos, também não se apresenta como fenômeno desprovido de conflitos e interesses, ou mesmo atravessado por antagonismos. A ideologia é, pois, suporte para a formação do pensamento individual e ao mesmo tempo plataforma para a sua superação. A ideologia, ainda que encarnada nos signos, de modo que estes não se apresentem neutros, mas com valores não ganha vida própria autônoma, mas surge e é reafirmada pela prática social humana, que inclui o movimento do intercâmbio orgânico entre homem e natureza, o trabalho, as mediações complexas que se erguem a partir deste e ainda o modo pelo qual os homens tomam consciência do papel que exercem em certa posição na atividade social de transformação e reprodução da vida. Enfim, é o caráter material da produção da vida que gera e situa a ideologia em certo sistema valorativo, através das respostas dadas pelos homens, na explicação dos seus processos de vida. Em termos mais precisos, a ideologia reproduz e muitas vezes 33 Um destes casos são os considerados “clássicos” do pensamento filosófico e político, como demonstra Lessa (2014): “Esse processo, prático, cotidiano, de síntese superadora do passado em direção a uma nova formação social, se reflete na teoria através de obras que realizam na esfera da ideologia o que a reprodução social está realizando na prática. Ao assim fazer, esse esforço teórico não raramente abre novas possibilidades, desvela novas potencialidades para a ação dos sujeitos, interferindo na luta de classes ao mesmo tempo que é por elas determinado (em se tratando de sociedades de classe). Desdobrase uma rica articulação entre a produção teórica mais avançada e a transformação prática e cotidiana da essência da sociedade. Pensemos no Iluminismo, em Rousseau, Voltaire, Saint-Simon etc. e a Revolução Francesa; Locke e a e a Revolução de 1642, etc. Essas sínteses teóricas são os clássicos.” (p.52). 106 se reforça como resultado da própria atividade em que se situam as funções psicológicas exercendo papéis estabelecidos pelas finalidades dos sistemas às quais se subordinam estas funções e que as constituem. Um exemplo é dado por Vigotski quando analisa um trabalho publicado em sua época, de W. Sombart, a respeito do caráter do operário e do burguês, e como estes seriam determinados pela biologia. O burguês seria dominado pela avareza o que conduziria à seleção natural. A tese seria a de que no sistema capitalista sujeitos avarentos predominam e, portanto, estes acabariam por ter posição privilegiada neste respectivo modo de produção. Temos aqui novamente, um exemplo de espécie de “determinismo genético” que reduz à totalidade da vida humana, individual, porém genérica e social, a um aspecto essencialmente naturalista, do qual, obviamente haveria pouco o que se fazer para alterá-la. Em 1930, Vigotski aponta as contradições deste postulado, afirmando que não é difícil encontrar por haver operários mais avarentos que alguns burgueses, mas principalmente pela limitação epistemológica de reduzir o papel social ao caráter. Em uma inversão que lembra a crítica de Marx aos idealistas, coloca a consciência como resultado da atividade do ser e não como uma entidade fundante, e no caso deste estudo comentado por Vigotski, pela seleção genética: A essência da questão não consiste em que o papel social se deduz do caráter mas em que, a partir deste, cria-se uma série de conexões caracteriológicas. Os traços sociais e de classe formam-se no homem a partir de sistemas interiorizados, que nada mais são que os sistemas e as relações sociais entre pessoas transladados para a personalidade. (Vigotski, 1931/2004 p.133). A tarefa da psicologia, consistiria em investigar as finalidades destes sistemas, pois são eles que subordinam e reestruturam as funções psicológicas naturais dos seres humanos. A finalidade coloca em jogo também as relações sociais entre as pessoas, desde modos mais “macroculturais”, como as relações sociais de produção, ou as relações interpessoais. Pois estas situam os seres humanos em papéis específicos na produção social da vida de forma que um indivíduo não pode ter uma personalidade apartada de seu tempo histórico. Ao contrário, as relações sociais dominantes são momentos expressivos de certa função e certo valor, para a personalidade. Valores que no modo de produção capitalista são profundamente marcados pela alienação e pela parcialidade e fragmentação entre o todo e o indivíduo, ao contrário do objetivo ao qual a psicologia deveria servir, conforme almejava Vigotski. Portanto, reconhecer o papel da ideologia na consciência dos indivíduos é reconhecer ao mesmo tempo a sua inevitabilidade, quer dizer, não se forma 107 personalidade sem a integração deste sujeito à ideologia, e ao mesmo tempo a possibilidade de transformação, cuja tarefa seria um dos objetivos da psicologia de conduzir o homem à superação da parcialidade de suas ideologias. Nesse sentido, Vigotski ainda que use o termo de modo mais próximo a uma cosmovisão do que a de um fenômeno de persuasão negativo, não perde a tonalidade crítica ao salientar que a genética do psiquismo humano, por não ser o produto de uma simples expansão da sua forma animal, não implica em uma subjugação ao estabelecido, ao fixo e ao contínuo, mas antes o reconhecimento científico da possibilidade histórica do sistema único, em que as parcialidades e a fragmentação serão submetidas a uma forma mais ampla de domínio do comportamento humano pelo homem. A vontade individual, conforme o autor, não tem origem em si mesma, mas é coletiva, social e interpsicológica (Vigotski, 2001, p.113). E ainda que a maior parte do nosso tempo estejamos atrelados a pensamentos espontâneos e, esta já é uma prova muito importante de que o homem nunca é “emoções” ou “vontades” puras, manifestações diretas sem mediações da emoção, toda emoção é também historicamente condicionada, mesmo em seus desígnios íntimos. A busca de uma nova práxis revolucionária para a psicologia era certamente um dos objetivos de Vigotski, para quem não bastava o reconhecimento em status científico consciente da plataforma histórico-social dos nosso sentimentos, para derivar uma compreensão idealista e passiva, mas a busca por uma psicologia humana, que não identifique a personalidade somente com o estabelecido dominante, mas como uma ponte entre o presente e com a possibilidade cada vez maior de um futuro mais humano e diverso. O que está em exposição é mais do que um possibilismo histórico, mas a constatação de que os homens já dominam brilhantemente a sua carga natural que seria a maior imposição e barreira para o nosso autodesenvolvimento. O problema reside em o que é que temos feito, com quais finalidades temos exercidos estes sistemas psicológicos culturais singulares no reino animal, ao passo que o homem avança em passos largos quanto à dominação do trabalho, da tecnologia e das ciências, estas não têm evitado catástrofes guiadas pela própria mão humana, tais como o aquecimento global, as crises econômicas, os conflitos bélicos, o terrorismo e nas esferas afetivas a presença marcante do estranhamento e da alienação do homem consigo e com seus pares. 108 Vigotski certamente não se inclinava à formulação pessimista e irracionalista do problema, tampouco via as transformações sociais na esfera reduzida das “interações”, para ele a verdade sobre a personalidade deveria caminhar pari passu no domínio da verdade sobre a sociedade. E no presente texto, as finalidades dos sistemas deveriam então ser parte fundamental do plano da condução a uma psicologia humana: Desejaria, baseando-me nos fatos que apresentei, expressar minha convicção fundamental: não se trata de que as alterações se deem exclusivamente no seio das funções, mas de que existem alterações nas conexões e na infinita diversidade de formas de estas se manifestarem; que em determinada fase de desenvolvimento aparecem novas sínteses, novas funções cruciais, novas formas de conexões, e que devemos nos interessar pelos sistemas e pela finalidade dos sistemas. Parece-me que sistemas e finalidades são o alfa e o ômega de nosso trabalho mais imediato. (Vigotski, 2001, p. 135 - grifos nossos) Sobre os sistemas psicológicos trata de diversos conceitos centrais na teoria histórico-cultural, de modo breve e sucinto. O trato com a ideologia está à margem dos pontos principais da teoria dos sistemas, e – ao nosso entender – identifica-se com algumas possibilidades que apontaremos agora. Em primeiro lugar, entende-se aqui como elemento constitutivo da consciência, de alguma forma ineliminável da experiência humana de assimilação cultural pelo meio. Trata-se também de um sistema organizado de conceitos que auxiliam os homens na resolução de conflitos complexos, da política à vida íntima, de modo que há certa predominância de um determinado valor na ideologia, sua cor não é neutra, e a organização que lhe corresponde não se trata de um todo harmônico, redutível por um princípio explicativo fundamental e limitado no tocante às infinitas possibilidades do psiquismo, quando consciente e liberto de formas conceituais de valor que não correspondem com o domínio consciente dos afetos e das emoções, em sua potencialidade humana. Para tal empreendimento, o trabalho da psicologia seria garantir a veracidade destas formulações por exemplos retirados da própria vida empírica e analisados pela ótica da transformação social e da relação unidade e todo. Portanto a psicologia deveria estar a serviço do coletivo e do indivíduo ao mesmo tempo. Este indivíduo, no entanto, não é tomado como uma mônada, ou pela via epistemológica do indivíduo isolado34, antes é visto como uma unidade contraditória mediada pelas relações sociais. 34 A elevação da individualidade como polo fundante da consciência e tomada apartada das relações sociais é apontada por Mészáros, mais do que ideologia como também um método: “Inevitavelmente, qualquer orientação metodológica que possua em seu cerne estrutural o ponto de vista da individualidade isolada segue a tendência de insuflar o indivíduo – o qual, em virtude de ser o pilar de sustentação de todo o sistema, pode apenas ser imputado – em um tipo de entidade pseudouniversal. Eis porque as concepções dúbias de “natureza humana” – que constitui um dos mais importantes lugares 109 A autonomia intelectual que surge com nitidez na adolescência, quando orientada para o fim do pensamento científico, pode colaborar no projeto de educação social que culmine em relações que usufruam da multilateralidade das produções humanas. Portanto, o estado de coisas que estabelece a permanência da injustiça, da desigualdade e da desproporção econômica, bem como a ideologia que lhe dá suporte não é compatível com a presença plena da liberdade desenvolvimento psicológico, é a necessidade científica – dada a singularidade do projeto histórico-cultural – da transformação socialista do homem. Em segundo lugar, no campo do mapeamento dos possíveis sentidos atribuídos ao conceito de ideologia por Vigotski e o atrelamento a alguma forma determinada de epistemologia marxista, quanto ao trato da questão da ideologia. Dos sentidos destacados por nós, a relação entre idealismo, materialismo e consciência e as interpretações de ideologia como a) falsa consciência e b) como ontologicamente determinada, Vigotski ocupa um espaço notável na segunda dimensão, deixando de lado – ao menos nos textos em conferências com o teor aqui descrito – o uso do termo tal como ocorria nos textos selecionados do período entre 1924 e 1929. Vigotski lança mão do conceito de ideologia como pensamento socialmente determinado, localizando-o em uma definição mais “sociológica” que epistemológica – no sentido de ideias falsas e verdadeiras na ciência – e deste modo se aproxima de perspectivas da ideologia que identificam este fenômeno como característico da própria linguagem e da mediação social e a formação da consciência individual. Sem aqui adentrarmos na vasta produção de Mikhail M. Bakhtin (1895 - 1975), serve-nos de exemplo de autor que colocou a ideologia no terreno da análise do discurso, sem também partir deste critério da verdadeira ou falsa cognição, mas ocupando-se da natureza ideológica do signo: Um produto ideológico faz parte de uma realidade (natural ou social) como todo corpo físico, instrumento de produção ou produto de consumo; mas, ao contrário destes, ele também reflete e refrata uma outra realidade, que lhe é exterior. Tudo que é ideológico possui um significado e remete a algo situado fora de si mesmo. Em outros termos, tudo que é ideológico é um signo. Sem signos não existe ideologia. (Bakhtin, 1929-1930/1981, p. 21). A dimensão externa da formação da consciência que existe graças aos signos, como a linguagem, que por sua vez encarnam relações sociais não pode existir sem a comuns de toda a tradição filosófica (...) Não são os únicos corolários apriorísticos de determinados interesses ideológicos, mas ao mesmo tempo são também a realização de um imperativo metodológico inerente com vistas a elevar a mera particularidade ao patamar de universalidade” (Mészáros, 2009, p. 49). 110 ideologia, já que não surgem da espontaneidade da consciência, mas de relações sociais já estabelecidas. Estas relações para serem significativas necessitam ser também ideológicas. Todo pensamento sendo socialmente determinado é também formado pela ideologia encarnada no signo que “reflete e refrata” uma realidade social (Bakhtin, 1981). Não é nosso objetivo aqui realizar uma análise profunda das similitudes e diferenças entre Vigotski e Bakhtin, como já realizado por outros pesquisadores, mas indicar a existência de uma compreensão do fenômeno da ideologia que o situa como um limite da própria consciência humana, uma necessidade social da consciência de banhar-se no discurso ideológico de cada época como base de suas próprias ideias e motivações. Vimos que o pensamento por conceitos é uma forma assentada na ideologia, mas que abre uma via de desenvolvimento do pensamento complexo – por via da educação – que se distancia da espontaneidade do pensamento, das representações fragmentárias ou muito parciais, que para um domínio e explicação é necessária uma abstração de nível superior no tocante às funções psicológicas superiores. Assim, entendemos que, ainda que a ideologia seja um fator constituinte da consciência individual, situando-lhe possibilidades e limites, o pensamento mediado por conceitos, em especial os “científicos”, em toda sua “série de apreciações”, abarcaria uma compreensão que permitiria a construção de uma visão de mundo integrada e complexa, que superaria o sincretismo e baixo nível de abstração das representações mais elementares da consciência. Portanto, desenvolver o pensamento por conceitos parte da ideologia social, mas volta a esta de modo mais enriquecido, já que o sujeito passa a ter uma relação entre a “unidade e o todo”, mais dinâmica no reconhecimento de seus determinantes naturais e sociais. Tal domínio permite um melhor conhecimento da realidade e uma formação humana mais integral, voltada para o pensamento dialético que consiga apropriar-se de unidades contraditórias do ser, estabelecer relações e conexões entre os fatos sem recorrer à espontaneidade regida no mundo social cotidiano para suas explicações. Ainda que a ideologia seja um fator da constituição da consciência, se a tomarmos como o pensamento socialmente determinado, de certa forma toda elaboração da consciência pode vir a ser ideologia. Por outro lado, levando em conta o desenvolvimento histórico da consciência na ontogênese, se a ideologia é o ponto de 111 partida do pensamento individual, em seu início ela não pode ser um pensamento complexo, mediado por conceitos de ordem superior do pensamento. Pelo exposto, poderíamos indagar: Pode-se considerar a ideologia presente no reino do pensamento espontâneo? É uma questão que deixamos, por enquanto, em aberto, mas da qual nos aproximamos com a resposta positiva, visto que para Vigotski o pensamento por conceitos era a chave da “fase de transição” e como veremos no próximo texto comentado, é quando o adolescente de fato se integra a uma ideologia (uma religião, uma arte), porque passa a praticá-la conscientemente, mediado pelo pensamento por conceitos, que abre a possibilidade de uma via de “superação”, na qualidade de transformação dos significados e sentidos do adolescente, já que este enriquece a sua experiência de mundo. A diferença entre conceitos espontâneos e os desenvolvidos ou mesmo, científicos – reside no fato de que o conceito científico é capaz de hierarquizar relações entre conceitos, possibilita a origem de novas relações e maneiras particulares de se posicionar sobre um problema (Vigotski, 2001). O autor sugere ainda a importância crucial de se considerar o conceito dentro de um sistema, que se sustente no conceito espontâneo presente, como porta de entrada para a aprendizagem e o desenvolvimento: Parece-nos óbvio que um conceito só pode cair sob a alçada da consciência e do controle deliberado quando faz parte de um sistema. Se a consciência significa generalização, a generalização significa, por seu turno, a formação de um conceito de grau superior que inclui o conceito dado como seu caso particular. Um conceito de grau superior implica a existência de uma série de conceitos subordinados e pressupõe também uma hierarquia de conceitos com diversos níveis de generalidade. Por exemplo: uma criança aprende a palavra flor e pouco depois a palavra rosa; durante um longo período de tempo não se pode dizer que o conceito “flor”, embora de aplicação mais lata do que a palavra “rosa” seja para a criança mais geral. Não inclui nem subordina a si a palavra “rosa” – os dois conceitos são inter-permutáveis e justapostos. Quando “flor” se generaliza, a relação entre “flor” e “rosa”, assim como entre flor e outros conceitos subordinados, também se transforma no cérebro da criança. Um sistema vai ganhando forma. (Vigotski, 1934/2001, p. 263) Vigotski chega à conclusão de que a formação dos conceitos espontâneos segue uma via pautada em vínculos concretos e factuais, com uma linha de baixo grau de abstração e de domínio das relações hierarquizadas entre demais conceitos. Os conceitos científicos exigem que os alunos não só combinem e generalizem ações concretas, pautados e determinados exclusivamente pela experiência, mas que possam discriminar, abstrair e isolar elementos, além de potencializar a habilidade de examinar elementos fora da situação concreta que estão inseridos e assim colaborar com a tomada de consciência dos mesmos sobre um dado da realidade: 112 Poderíamos dizer que a força dos conceitos científicos se manifesta naquele campo inteiramente determinado pelas propriedades superiores dos conceitos, como tomada de consciência e a arbitrariedade; é justamente aí que se revelam a fragilidade dos conceitos espontâneos da criança, que são fortes no campo da aplicação espontânea circunstancialmente conscientizada e concreta, no campo da experiência e do empirismo. O desenvolvimento dos conceitos científicos começa no campo da consciência de da arbitrariedade e continua adiante, crescendo de cima para baixo no campo da experiência pessoal e da concretude. O desenvolvimento dos conceitos espontâneos começa no campo da concretude e do empirismo e se movimenta no sentido das propriedades superiores dos conceitos: da consciência e da arbitrariedade. O vínculo entre o desenvolvimento dessas duas linhas diametralmente opostas revela indiscutivelmente a sua verdadeira natureza: é o vínculo da zona de desenvolvimento imediato e do nível ”atual” do desenvolvimento. (Vigotski, 2000, p.350) A tomada de consciência e a arbitrariedade do pensamento são exemplos de que a apropriação do pensamento por conceitos não se restringe às propriedades cognitivas, mas acaba por atuar em toda a conduta dos seres humanos. Se é do meio social que extramos a ideologia (Vigotski, 1931/2000) é de onde extraímos os nossos pensamentos, estes podem galgar níveis de desenvolvimento de modo a lidar com mais consciência de seus determinantes sociais e atuar na transformação desta mesma realidade que lhe constitui. O texto comentado a seguir também se posiciona quanto à ideologia e a formação do pensamento na adolescência e contribui para a complementação da relação entre ideologia, sistemas conceituais e formação da consciência na adolescência. Exporemos suas contribuições de modo à complementar a exposição deste último capítulo e delinearmos uma conclusão sobre a ideologia no recorte cronológico de 19291931 dos textos selecionados de Vigotski. Seguindo a ordem cronológica exposta, a palavra ideologia aparecerá no capítulo 10 da obra “Psicologia do adolescente”, publicado parcialmente na edição espanhola das Obras Escogidas, intitulado: O desenvolvimento do pensamento do adolescente e a formação de conceitos. Novamente a palavra ideologia surge em um texto que o estudo dos conceitos ocupa lugar proeminente, e mais uma vez, esta não está ligada a um sentido crítico-negativo, mas no sentido de formações ideológicas do mundo social. Isto não impediu que Vigotski encontrasse na psicologia de sua época, noções de ideologia que não coadunavam com a sua posição teórica. Isto se deu porque alguns autores, ainda que considerassem relevante o papel de uma ideologia social estabelecida na formação da consciência humana, tendiam a relegá-la um papel demasiado neutro neste processo de assimilação. O enraizamento do homem com o seu meio era corretamente visto como inevitável, como o próprio húmus da consciência humana, mas era insuficiente para explorar a sua dinâmica concreta, como é o caso da formação da ideologia de classes na adolescência ou ainda a existência de crises diversas no processo 113 ontogenético de desenvolvimento entre a criança e o mundo social. (Vigotski, 1931/1996) Para Vigotski (1931/1996) essa vinculação era um processo de desenvolvimento complexo, em que a forma e o conteúdo passam por um processo paulatino de transformação. Neste processo não só se alteram a forma e o conteúdo do pensamento, como a própria conduta do indivíduo. A adaptação do indivíduo ao meio em termos de ideologia social e sua internalização são frutos do entrelaçamento entre filogênese e ontogênese. Se o individuo é capaz de se relacionar com os problemas superiores do homem, como os são os de ordem ética, científica, religiosa, são porque este se relaciona com mecanismos de pensamento que são produtos do desenvolvimento cultural do mesmo, sem estes mecanismos não poderia haver o próprio enraizamento. A diferença de Vigotski, neste sentido, para as outras perspectivas, é que apesar de admitir, como as outras, que em toda formação da consciência individual ocorre esta relação, assume que em cada etapa histórica, o indivíduo está circunscrito a determinadas formas de pensamento socialmente condicionado, e esta diferença histórica não permite equivaler os mecanismos de pensamento e a dinâmica ideológica do homem como um processo metafisicamente constante e presente, invariável historicamente ou ainda como subproduto de regulações mecânicas entre meio e indivíduo. A crítica de Vigotski volta-se ainda à ideia presente na psicologia de sua época, de que na adolescência o pensamento não passaria por mudanças significativas se comparada à mentalidade infantil, sendo uma espécie de expansão desta, mais do que de mudanças qualitativas na forma e no conteúdo. O autor aponta que mesmo perspectivas que defendiam a clara diferença entre a psique infantil e a de um adolescente recaíam no equívoco de considerar nulas as mudanças substantivas do pensamento. Focando-se no pensamento por conceitos, Vigotski demonstra que este tipo de pensamento não pode ocorrer na criança, pois, trata-se de um domínio lógico, uma linguagem própria que não é acessível ao pensamento infantil tornando-se possível somente na “idade de transição”. Tais teorias recorriam em parte à ideia de que a cultura interfere nas mudanças ocorridas nesta fase do desenvolvimento, mas isto deveria em parte, à própria cultura, atuando em nós e não porque as leis do pensamento sofreriam grandes mudanças. Assim, a psicologia investigava as mudanças nas “ideologias incipientes” no desenvolvimento do adolescente, tais como as ideias éticas e religiosas, mas não eram suficientes no ponto de vista de Vigotski, já que estas teorias por um 114 lado, consideravam a mudança no conteúdo do pensamento um processo cultural, mas os mecanismos destas transformações mesmo eram relegados às instâncias biológicas: Consideravam sempre que a evolução do conteúdo do pensamento era um processo de desenvolvimento cultural, histórico e socialmente condicionado, enquanto que o desenvolvimento das formas de pensamento se analisava como um processo biológico, determinado pela maturação orgânica da criança paralela ao peso do cérebro. Coube dizer que a ruptura entre forma e conteúdo provém indefectivelmente de semelhante suposição. Quando falamos do conteúdo do pensamento e de suas transformações, nos referimos a uma magnitude historicamente variável, socialmente condicionada que é produto do processo de desenvolvimento cultural. Quando falamos das formas do pensamento, de sua dinâmica, nos referimos habitualmente com o teor dos erros da psicologia tradicional, seja com as funções psíquicas estáticas, metafisicamente, bem como formas orgânicas condicionadas biologicamente. (Vigotski, 1931/1996, p.32, tradução nossa) Como vimos já na discussão anterior sobre os sistemas psicológicos, Vigotski aqui demonstra que o desenvolvimento das funções psicológicas superiores são produtos socialmente condicionados e dizem respeito ao domínio histórico do comportamento, sendo este domínio de origem cultural e materializado no uso de signos e instrumentos, ele não pode ser redutível ao aparelho biológico e tampouco a ideologia pode ser considerada expansão deste aparelho ou do cérebro tomado isoladamente. Assim, Vigotski demonstra considerar a ideologia como pensamento socialmente determinado, mais do que o simples fato de que se mudam os interesses da criança e do adolescente. É a natureza modificada das atividades da criança comparadas com as do adolescente, em seu meio social, impostas pelos papéis que este último realiza no meio, as suas novas conexões, e a capacidade de pensar por conceitos, que o coloca numa instância qualitativamente mais rica que a da criança: O novo conteúdo, ao colocar para o pensamento do adolescente toda uma série de tarefas, o impulsiona para novas formas de atividade, novas formas de combinação das funções elementares, a novos modos de pensamento. Como veremos mais adiante é precisamente na idade de transição quando o novo conteúdo cria, por si mesmo, novas formas de conduta, mecanismos de tipo dos quais falaremos no último capítulo. O passa para o pensamento por conceitos abre ao adolescente o mundo da consciência social objetivo, o mundo da ideologia social. (Vygotsky, 1931/1996, p.) Vigotski está ciente de que esta ideia encerra uma aparente contradição, como a consciência individual banha-se na ideologia desde sua gênese, mas somente na adolescência é que se abre o “mundo da ideologia social”? Não se trata de que a criança não estivesse envolta nas ideologias desde cedo, mas do fato de que a criança está mais próxima da imitação, de traços sem muita consciência de determinadas posições e, por isso mesmo, pouco atua voluntariamente na assimilação e reprodução das ideias da vida social: O conhecimento no verdadeiro sentido da palavra, a ciência, a arte, todas as esferas da vida cultural podem ser assimiladas tão somente por conceitos. É certo também que a criança 115 assimila verdades científicas e compenetra-se com uma determinada ideologia, que se enraíza em diversos campos da vida cultural, mas a criança assimila tudo isso de maneira incompleta, não adequada: ao assimilar o material cultural existente porém não participa ativamente da sua criação.(Vigotski, 1931/1996, p.40) O fato de o adolescente pensar por conceitos, ainda que estes sejam incipientes, coloca-o como protagonista de um vínculo que toma para si uma dada ideologia social. Uma criança pode ter crescido na igreja, por exemplo, mas somente na adolescência ela poderá explicar e compreender com mais precisão a ideia de Deus e sua relação com ela, bem como encontrar o seu lugar e seu modo de se relacionar com esta crença, que de maneira alguma é um processo estanque e acabado, ao contrário, esta “tomada de consciência”, o terremoto que o pensamento por conceitos pode causar na adolescência são repletos de momentos de crise. (Vigotski, 1931) A atuação ativa na ideologia de classes seria resultado do próprio processo de desenvolvimento do pensamento por conceitos que está atrelado às mudanças ocorridas nas funções e nas atividades práticas do adolescente, diante do mundo social. Disto decorre que a participação do adolescente se torna consciente, o que não quer dizer de forma alguma que seja plenamente consciente ou autônoma no sentido de um alto grau de liberdade do pensamento. Ao contrário, e citando Schiller35, Vigotski faz uma ilustrativa comparação; não é porque o adolescente pensa por conceitos e, por sua vez, estes o impulsionam a participar no mundo das ideias da vida social que ele seja um conceito científico, de alto grau de elaboração filosófica, mas, assim como para a criança, o seu berço é o seu mundo inicial, “representa tudo”, o adolescente vê o mundo de uma perspectiva também em termos de recém-descoberta. Quando o adolescente atua na ideologia social do meio ativamente é quando ocorre de fato um posicionamento ideológico, e é o caso da própria “ideologia de classes”, em que Vigotski argumenta a favor de que apenas na adolescência ela tomará papel claro, visto que as crianças ficariam mais influenciadas pela repetição. Ao passo que mesmo na adolescência, uma ideologia, como a de classes se forma “pouco a pouco”, seu pleno desenvolvimento dependerá da atividade do adolescente na ampliação das suas relações sociais e na complexificação de seus papéis e posições na “produção social”. A transformação fundamental do meio consiste, como bem assinalou Blonski, em sua ampliação, em uma participação maior na produção social. É aqui que no conteúdo do pensamento está antes de tudo representada pela ideologia social, relacionada com um ou outro lugar da produção social. Segundo Blonski, a psicologia de classes tampouco se forma de imediato, senão que desenvolve pouco a pouco. Na adolescência, quando o indivíduo ocupa ou 35 Friedrich Schiller 1759 – 1805, poeta, filósofo e historiador alemão. 116 bem se dispõe a ocupar em breve outra posição na produção social é quando esta chega a seu pleno desenvolvimento. (Vigotski, p.41 1931/1996) A ideologia social chega em seu pleno desenvolvimento quando o adolescente passa a exercer funções na produção social, colocando- em lugares específicos na esfera produtiva, esta função ativa para o autor não poderia ser exercida se o pensamento do adolescente tivesse predominância do sincretismo, ou do pensamento por complexos. O conceito tem a capacidade de hierarquizar conhecimentos distintos e reconhece-los como úteis na prática, e é a própria complexidade da vida social na qual o adolescente está inserido que impulsiona o seu desenvolvimento, esta vinculação ativa não poderia, segundo Vigotski sustentar-se com as malhas do pensamento infantil. Vigotski criticava ainda alguns estudos que defendiam a tese de que o pensamento do adolescente é essencialmente metafísico. Para ele, este é um exemplo claro da ausência da compreensão do conceito como mediação dos vínculos em que o adolescente se insere, que abre possibilidades de transformações na forma e no conteúdo do pensamento, o que impossibilitaria a constatação de que o pensamento do adolescente é em essência metafísico. Segundo o autor, tal postulado sustenta-se em concepções inatistas e em recortes genéticos que entendem as fases do desenvolvimento da adolescência como etapas diferentes, umas das outras mas sem nenhuma continuidade ou descontinuidade, via “recortes” em fases com características incomunicáveis entre uma e outra. A capacidade de abrir uma “série de apreciações” possibilitadas pelo pensamento por conceitos abre a possibilidade de uma via de desenvolvimento e que na fase de transição tem caráter inicial. Essa ideia é importante porque o nível baixo de pensamento “dialético” na adolescência não se trata, como queriam alguns concepções tradicionais vigentes, do caráter instintivo do pensamento nesta fase, mas da própria estrutura e gênese do pensamento dialético, que corresponde à uma etapa de desenvolvimento do pensamento humano como um todo, e em um grau complexo da consciência filosófica humana de forma tal que para um recém-chegado no mundo das “ideologias sociais” estabelecer um pensamento dialético, isto é, que realize sínteses entre contradições, seja autocrítico e supere a si mesmo via incorporação da história, coincide com o desenvolvimento do pensamento espontâneo para o pensamento por conceitos. 117 CONSIDERAÇÕES FINAIS Figura 1: Quadrinhos dos anos 10 de André Dahmer. Ao longo da dissertação expusemos os resultados de nossa pesquisa bibliográfico-conceitual. Buscamos alcançar o objetivo geral de “discutir a temática da ideologia a partir das concepções clássicas de K. Marx e F. Engels e do entrelaçamento desta com escritos selecionados sobre a temática, o psicólogo bielorusso L. S. Vigotski”. Este se desdobrou nos objetivos específicos: a atualidade da relação psicologia e ideologia no âmbito da discussão entre verdade científica e ideologia, a influência das concepções marxianas de ideologia nas formulações de Vigotski e por último apreender a dinâmica do conceito de ideologia na obra deste autor em sua singularidade, em especial quando tomada à ausência de uma sistematização sobre o mesmo se comparada com outras áreas da Psicologia no Brasil que tomam o homem como objeto socialmente constituído. Buscamos com este trabalho trazer à tona o conceito de ideologia tal como ele é utilizado por Vigotski ao longo de sua obra através de textos selecionados. O objetivo foi de realizar conexões com as premissas do materialismo histórico-dialético, tendo como base textos de Marx e Engels que versassem a respeito da ideologia, direta ou indiretamente, com o intuito de verificar a influência destas na estruturação teórica do psicólogo bielorrusso. Partindo do princípio de que não há um consenso delimitado claramente quanto o significado do conceito no marxismo, sendo inclusive, objeto de muita controvérsia, buscamos adentrar o universo desta tensão, a partir da orientação de que duas grandes linhas se distendem das reflexões marxianas sobre a ideologia. Uma, toma a ideologia 118 em critérios de verdade ou falsidade, além de identificar a ideologia com fenômenos essencialmente negativos e, portanto, entendendo a ideologia criticamente. A segunda preocupa-se com a ideologia em termos mais “sociológicos” que “epistemológicos” para utilizar a expressão do crítico literário que orienta este recorte aqui adotado, o britânico Terry Eagleton. A característica da segunda linha seria a de preocupar-se mais com as funções e valores da ideia na consciência do que entender a ideologia como um fenômeno que atua no processo de conhecimento e mesmo toma a consciência como invertida em relação à sua gênese materialmente determinada e insufla a capacidade da consciência e de seus produtos teóricos na transformação da realidade. Diante dessas duas definições, indagamo-nos se Vigotski, como partilhante do materialismo histórico-dialético e do marxismo de uma forma geral, também herda algum tipo de tensão sobre o conceito de ideologia. Tendo em vista que se trata de um fenômeno no qual a tradição marxista debruçou-se e se debruça ostensivamente, não se trata de uma dimensão desprezível da reflexão marxiana sobre a consciência, o que interfere diretamente nos objetos estudados pela psicologia, inclusive os estudados por Vigotski. Portanto, tentamos ao longo da dissertação, percorrer esta tensão na obra do autor, e da qual retiramos uma distinção entre pelo menos duas formas de adotar a ideologia em seu sistema teórico, que condizem com as duas correntes que cruzam a reflexão de Marx e Engels. Para melhor explicitar essa conexão entre os textos marxianos e os de Vigotski, explicitamos as concepções clássicas de ideologia conforme o pensamento dos revolucionários alemães, tendo como foco o texto, A Ideologia Alemã, mas perpassando em outros, a fim de demonstrar a amplitude que o conceito perpassa à pena de Marx e Engels. Da análise a respeito das teses clássicas, chegamos a algumas constatações: A ideologia atua na percepção e na formação da consciência. Está ligada à inversão dos poderes e processos humanos que tomados como coisa, passam a comandar seus agentes. Ela é a condição de uma sociedade em que prevalece a divisão social do trabalho. Neste sentido há um entrelaçamento entre ideologia, alienação e consciência. Discutindo a possibilidade da definição da “falsa consciência” – muitas vezes considerada a interpretação canonicamente marxista - ser a definição necessária de ideologia, bem como restrição deste conceito a uma definição crítico-negativa. Nesta 119 toada destaca-se que o significado de ideologia vai desde os fenômenos ligados à inversão da consciência até formas ideológicas advindas da superestrutura econômica, ambas são expressões da consciência em sociedades de classes. A ampliação do conceito de ideologia permite ainda identificá-lo com uma interpretação que o entende como dimensão da consciência humana atrelada ao pensamento socialmente determinado. Como toda consciência surge e situa-se em uma condição histórica e socialmente delimitada, a ideologia seria um fenômeno necessário a reprodução social e ao pensamento em sua constituição genética. Esta constatação levanos até a interpretação de ideologia mais preocupada com as funções e os valores da mesma, suas particularidades históricas que a sua atuação negativa na consciência. Desse modo partimos para a análise dos textos de Vigotski com o intuito de conectá-los aos pressupostos marxianos tanto quanto delinear as contribuições do próprio à temática da ideologia. Deste intuito constatamos que nessas duas linhas de intepretação aqui destacadas, é possível encontrar uma incidência maior da primeira linha nos textos iniciais, isto é, da ideologia enquanto conceito crítico-negativo e a segunda linha ou sua versão “ampliada” nos textos datados da fase final da obra de Vigotski. A partir da tese que de Vigotski utiliza da ideologia tanto no sentido críticonegativo quanto como sistema conceitual ou pensamento socialmente determinado, identificamos que essas diferenças são recorrentes em um período cronológico delimitado, isto é, a primeira noção é mais debatida pelo autor entre 1924 e 1927 e a segunda, a partir de 1929 até 1931. O segundo capítulo ocupou-se do primeiro período, e sucintamente, as conclusões que ele oferece são as de que neste primeiro intervalo selecionado, a ideologia para Vigotski, consistiu em três pontos principais: O primeiro, como conceito crítico da universalização de um princípio particular na psicologia, o segundo, como um fenômeno inerente à sociedade de classes que atua como negação da ciência, mas nem por isso, menos eficiente, ou com momentos de verdade e por último, o conjunto de representações usuais e teóricas que se ligam a problemas da realidade material e relações sociais que as correspondem, bem como a necessidade da ciência para o conhecimento destas relações sociais, que para sua superação exige transformações das relações de trabalho e propriedade, vide a natureza prática social da ideologia, sendo que esta é mais do que uma imposição ou discurso bem-sucedido, mas antes um fenômeno inerente a divisão social do trabalho. A 120 ideologia é, portanto, o oposto da ciência e a sua existência é essencialmente negativa quanto ao conhecimento da dinâmica da realidade e de suas relações sociais e como possibilidade da superação do atual estado de “crise” da psicologia, para qual Vigotski colocava a necessidade da dialética da psicologia e de seu objeto, o homem. O terceiro capítulo versou a respeito de textos em que a “ideologia” deixa de denotar uma carga essencialmente crítica-negativa e passa a exercer uma função mais “sociológica”, exatamente como sistema conceitual socialmente determinado pelo qual as ideias desempenham funções e valores. A primeira aparição desta noção ocorre em Psicologia concreta do homem, também conhecido como Manuscrito de 29. E será mais bem explicitada na conferência sobre “Os sistemas psicológicos”, confluindo na abordagem entre ideologia social e pensamento por conceitos. Ao estudar o pensamento do adolescente, Vigotski faz criticas concepções de psicologia que admitiam a adesão do adolescente em ideologias sociais (religião e política) sem admitir que ocorresse uma profunda transformação na forma e no conteúdo do pensamento. Não se tratando, de uma simples “elevação” da criança para o adolescente, mas de um processo repleto de crises, continuidades e descontinuidades, que abrem novos patamares de desenvolvimento contínuo. O início do desenvolvimento que começa na infância permite que na “fase de transição” homem possa pensar por conceitos. Os conceitos integram-se em sistemas complexos, abrem a possibilidade da estruturação de uma visão de homem e de mundo, a partir de uma “série de apreciações”. Vigotski considera ainda que, a interferência consciente do adolescente na ideologia social consciente e eu um nível qualitativamente superior que o da criança, que essencialmente repete e reproduz o pensamento socialmente estabelecido. Isto, porém, não implica total consciência do adolescente a respeito da ideologia vigente, sendo inclusive característica deste pensamento uma “dialética” que é rudimentar. Assim como em Marx, para quem “todo começo é difícil em qualquer ciência”. Vigotski situa o pensamento do adolescente como precário quanto a uma complexa consciência filosófica e, portanto, potencialmente influenciável às ideologias dominantes da sociedade. No entanto as superações destas concepções espontâneas tornam-se possíveis via conhecimento científico da qual a psicologia deveria ocupar-se na compreensão e intervenção para a apropriação cada vez mais rica do conhecimento científico e do mundo por vias pedagógicas. 121 Disto decorre a relação entre ideologia e conceito espontâneo, que por vezes é um comportamento não consciente na medida em que é a forma social predominante que reproduzimos. Mas o pensamento é capaz de estabelecer – sempre – um maior conhecimento sobre si, e o conceito científico é uma destas vias, visto que têm entre suas características a arbitrariedade da consciência sob o objeto. Por sua vez, entendemos que as práticas educativas, especialmente pelas instituições escolares que detêm esta finalidade em sua razão de ser, podem tornar-se aliadas na construção de novos sujeitos humanos, visando uma educação com amplo grau de humanização, no sentido de apropriação. E assim produzir diretamente e intencionalmente a humanidade em cada indivíduo. (Saviani, 1984) Voltando a problemática do deste autor dos seus pressupostos marxistas visando seu adestramento nas pedagogias neoliberais, ressaltam o “poder da ideologia”, visto que esta redescoberta do autor, torna-o um “ilustre desconhecido”, já que não se trata de um “retorno aos clássicos” de modo honesto, buscando a precisão semântica e contextual, mas antes um “modelo” adaptado às condições econômico-políticas do Ocidente contemporâneo. Este é um exemplo de como a própria obra de Vigotski foi atingida pela ideologia e neste sentido explicitar o uso deste conceito como negatividade no sentido de uma ideia que não auxilia no avanço da compreensão real, mostra-se atual, especialmente colocando que, a superação das ideologias não se fixa no terreno propriamente teórico ou gnosiológico, mas deve ser ligado à própria práxis transformadora da realidade social e também da própria prática psicológica. Isto é, enquanto a psicologia permanecer aliada de interesses e ideologias dominantes mais do que ressaltar e auxiliar os homens na construção consciente de seus projetos – como a educação – permanecerá uma ciência dilacerada por conflitos, tal como situação diagnosticada por Vigotski. Um dos limites foi o de não realizar – pela natureza desta pesquisa e limites objetivos - um balanço rigoroso enquanto uma reflexão que privilegiasse o método de Vigotski diante da situação da Psicologia enquanto ciência na atualidade, de forma ampla, mas acreditamos que foi possível demonstrar que os mecanismos da ideologia – que relembramos não são redutíveis a seus aspectos “falsos” – estão ainda presentes, visto que estamos sob a égide de uma sociedade em que a ideologia ainda cumpre um 122 importante papel organizativo na reprodução social, já que ainda persiste a divisão social do trabalho mediada pela propriedade privada. Isto é, os fenômenos da alienação, tanto na esfera econômica e do trabalho permanecem – com as transformações dentro do próprio capitalismo – quanto seus reflexos na consciência dos homens sobre si e sobre seus poderes criativos. Neste sentido, consideramos a ideologia um tema sempre “a sombra” da qual a autocrítica de uma psicologia que se queira compreender e intervir no homem em sua concretude deve sempre estar atenta. Tornar-se ideológico é um processo que mesmo a ciência não está imune. A necessidade contínua da análise da psicologia enquanto ciência e a sua relação com a ideologia ainda nos dias de hoje, se inspirados em reflexões vigotskianas, englobaria uma autocrítica que necessita incorporar conhecimentos e superá-los de modo dialético, via incorporação, e não meio uma rejeição abstrata que toma toda a manifestação ideológica como algo necessariamente ilusório, ou falso. Vigotski demonstrou que a ideologia é mais complexa que a simples ilusão, como quando a ideologia é tomada como este cerne unificador de significados e valores, o que nos permite levantar objeções à concepções espontâneas de ideologia que acreditam que apelos à consciência, bem elaborados, podem por si só – resgatar as pessoas da alienação – como esta não fosse uma demanda a longo prazo, ligado aos determinantes mais gerais do trabalho, e em suma com todas as condições econômicas e culturais de uma época, tais como as educativas. Conforme os críticos aqui estudados, ouve uma certa predominância de um conceito de ideologia que visava instalar uma ciência oficial, monolítica e impossível de se tornar ideológica, vimos com Marx, Engels e Vigotski que estão não é uma questão teórica, tão somente, mas pode começar a ser resolvida quando entendermos as finalidades e os sistemas que existem para explicar o nosso meio, e como caminhar para uma superação. Portanto, o conceito de ideologia de Vigotski, partilhante da tensão aqui exposta, dificilmente pode ser tomado em uma definição unívoca, da qual bastaria os psicólogos apropriarem-se e definir uma forma mais adequada de ação. Ao contrário, a riqueza do conceito pode auxiliar o psicólogo em ambas as tarefas que condizem com os sentidos diversos aqui encontrados na obra deste autor: quando for necessário apontar os limites da ideologia no pensamento científico, tanto quanto investigar quais sistemas de valor estão em jogo em uma dada consciência ou representação social. 123 É claro que estamos longe de esgotar o tema, uma investigação ainda mais aprofundada poderia investigar, por exemplo, tanto as condições materiais que circundavam a temática da ideologia em autores cujas obras e conceitos nortearam ou subsidiaram as elaborações de Vigotski, bem como as condições materiais de seu surgimento. Isso exigiria, pois, uma investigação sobre o que significava falar de ideologia na Rússia e na posterior União Soviética naquele período pós “Levante” de 1905, Primeira Guerra Mundial (1914-1918) e Revolução Russa (com seus desdobramentos de fevereiro e outubro de 1917) com tudo o que essas lutas e embates implicavam na sociedade como um todo (economia, cultura, e outras áreas da vida societária) e para os sujeitos que protagonizavam conscientemente ou não aquele enredo. É importante saber com quais tipos de natureza de problema lidavam, e na figura de quais principais autores eles se expressavam, para avançarmos em uma investigação sobre em que Vigotski assemelha-se e se diferencia dos pensadores de sua época, ainda mais minuciosamente, já tendo em vista uma contextualização mais ampla para tal debate. Entretanto, ponderamos que se isso não foi possível pela natureza da atual formação (mestrado acadêmico), entendemos que o trabalho desenvolvido até o momento revela-se como um ponto de partida, visto que não encontramos matéria cujo objeto fosse semelhante ou próximo ao nosso. Assim, a investigação feita já nos permitiu o levantamento de pistas ou caminhos que foram sendo indicados. Vigotski oferece muitas reflexões sobre a superação da ideologia seja qual for à maneira que a entendemos, se dentro do debate epistemológico e filosófico na constituição da psicologia enquanto ciência e na ação e limites da consciência burguesa nesta ciência, seja através da necessidade do estudo e ensino do pensamento por conceitos como forma capaz de avançar de fato na compreensão dos fenômenos do mundo ou na constituição de sujeitos capazes de posicionarem-se com uma consciência cada vez mais ampla e crítica sobre os seus processos sociais de constituição e modos de transformá-los. Portanto, concluímos que Vigotski não está interessado somente em descrever, ou descobrir quais os sentidos sociais que formam a vontade individual, mas encontrar condições de superação dos mesmos, sendo esta também tarefa da psicologia do novo homem. E na medida em que uma ideologia nunca é desligada de interesses e de determinações mais gerais, como as econômicas e culturais, salientamos que toda 124 formação social está exposta a uma ideologia dominante. Para Vigotski, esta tarefa da psicologia operaria como conhecimento científico, e todo conhecimento deve ser transformador ao unir teoria e prática. Assim, pode-se afirmar que os avanços do conhecimento sobre o homem e a necessidade da autocrítica de nossos projetos devem caminhar pari-passu. O que Vigotski indica é que, toda ideia sedimentada, cristalizada, ainda que de alto nível, pode transformar-se em ideologia e, ainda, que podemos acostumar-nos com a forma dominante de resolver nossas questões. Com base no estudo realizado, podemos avançar na criação de sistemas conceituais que ampliem o entendimento do homem sobre si e sobre a sociedade de modo científico, subsidiados por uma concepção que unifique teoria e prática e que tenha relação de diálogo (não de cooptação), com os conhecimentos científicos já elaborados, mas de modo a superá-los qualitativamente. Isto implica em, incorporá-los a um movimento mais geral da psicologia que abarque a totalidade na delimitação do objeto que lhe é próprio, no modo de desvendá-lo e que não reduza as explicações a respeito do mesmo a princípios particulares, tal como a tônica da crítica da ideologia nos textos iniciais de Vigotski aponta. A superação da ideologia seja ela abertamente conflitiva e interessada, ou uma forma sedimentada de estruturar as ideias, devem estar sempre no horizonte do profissional e do educador, visto que, se a consciência está exposta à ideologia – em qualquer dos sentidos – tomar consciência dela é um passo para a resistência às ideias dominantes do status quo, e que no enfrentamento diário nas instituições como escolas e clínicas, associações de trabalhadores, espaços sociais, o trabalho do psicólogo não está imune, daí a necessidade contínua da autocrítica e da qual este trabalho coloca-se como uma colaboração inicial, e oferece-se à apreciação dos leitores e interessados em Marx, Vigotski e a ideologia. 125 REFERÊNCIAS Bakhtin, M. (1981) Marxismo e filosofia da linguagem. Editora: Hucitec. Bottomore, T. (1983) Dicionário do pensamento marxista. Rio de Janeiro: Editora Zahar. Barroco, S. M. S. (2007). 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