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Rompendo a cela de aula: educação e trabalho no MST

2024, Ellen Felicio dos Santos

https://doi.org/10.36311/2024.978-65-5954-509-4

O projeto que deu origem a este livro está integrado a um projeto mais amplo denominado Educação democrática e movimentos sociais: antecedentes da pedagogia do trabalho associado, Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) do Brasil e Ejército Zapatista de Liberación Nacional (EZLN) do México Fase III (DAL RI, 2018). O referido projeto tem por objetivo investigar as origens das proposições educacionais da pedagogia do trabalho associado e identificar os elementos democráticos introduzidos por movimentos sociais da classe trabalhadora. Trata-se de estudo de cunho bibliográfico, documental e empírico que retoma as proposições educacionais dos movimentos dos trabalhadores do sec. XIX, analisando-as e comparando-as com as proposições de movimentos atuais, em especial as do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), do Brasil, e do Movimento Zapatista (MZ), do México.

ELLEN FELICIO DOS SANTOS ROMPENDO A CELA DE AULA: educação e trabalho no MST ROMPENDO A CELA DE AULA: educação e trabalho no MST ELLEN FELICIO DOS SANTOS Ellen Felicio dos Santos ROMPENDO A CELA DE AULA: educação e trabalho no MST Marília/Oficina Universitária São Paulo/Cultura Acadêmica 2024 UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA FACULDADE DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS – FFC UNESP - campus de Marília Diretora Dra. Claudia Regina Mosca Giroto Vice-Diretora Dra. Ana Claudia Vieira Cardoso Conselho Editorial Mariângela Spotti Lopes Fujita (Presidente) Célia Maria Giacheti Cláudia Regina Mosca Giroto Edvaldo Soares Franciele Marques Redigolo Marcelo Fernandes de Oliveira Marcos Antonio Alves Neusa Maria Dal Ri Renato Geraldi (Assessor Técnico) Rosane Michelli de Castro Conselho do Programa de Pós-Graduação em Educação UNESP/Marília Henrique Tahan Novaes Aila Narene Dahwache Criado Rocha Alonso Bezerra de Carvalho Ana Clara Bortoleto Nery Claudia da Mota Daros Parente Cyntia Graziella Guizelim Simões Girotto Daniela Nogueira de Moraes Garcia Pedro Angelo Pagni Auxílio Nº 0039/2022, Processo Nº 23038.001838/2022-11, Programa PROEX/CAPES Parecerista: Claudio Rodrigues da Silva (UEMS) Capa: Fachada do Colégio Strozak (arquivo pessoal da autora) Ficha catalográfica _______________________________________________________________________________________ Santos, Ellen Felicio dos. S237r Rompendo a cela de aula: educação e trabalho no MST / Ellen Felicio dos Santos. – Marília : Oficina Universitária ; São Paulo : Cultura Acadêmica, 2024. 131 p. : il. CAPES Inclui bibliografia ISBN 978-65-5954-508-7 (Impresso) ISBN 978-65-5954-509-4 (Digital) DOI: https://doi.org/10.36311/2024.978-65-5954-509-4 1. Movimento dos Trabalhadores Rurais sem Terra. 2. Pedagogia. 3. Educação rural. 4. Trabalhadores rurais. I. Título. CDD 379.173 _______________________________________________________________________________________ Catalogação: André Sávio Craveiro Bueno – CRB 8/8211 Copyright © 2024, Faculdade de Filosofia e Ciências Editora afiliada: Cultura Acadêmica é selo editorial da Editora UNESP Oficina Universitária é selo editorial da UNESP - Campus de Marília Aos trabalhadores e trabalhadoras Sem Terra dos assentamentos de Rio Bonito do Iguaçu no Paraná. Quem não se movimenta, não sente as correntes que o prendem. Rosa Luxemburgo Sumário PREFÁCIO | NEUSA MARIA DAL RI INTRODUÇÃO 11 17 CAPÍTULO I RESISTÊNCIA POPULAR E MOVIMENTOS SOCIAIS CAPÍTULO II O MST, A EDUCAÇÃO E O TRABALHO 23 47 CAPÍTULO III O COLÉGIO ESTADUAL DO CAMPO IRACI SALETE STROZAK CAPÍTULO IV ARTICULAÇÃO ENTRE EDUCAÇÃO E TRABALHO NO COLÉGIO STROZAK: COMPLEXOS DE ESTUDO E CICLOS DE FORMAÇÃO HUMANA. 97 CONCLUSÃO 119 REFERÊNCIAS 123 69 PREFÁCIO Embora sua gênese seja anterior, o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) foi criado oficialmente em 1984, no eclipse da ditadura militar. Após alguns anos de crescimento, o MST ganhou notoriedade no Brasil e internacionalmente e, hoje, é um dos maiores e mais conhecidos movimento social da América Latina. No início, o MST congregou pessoas interessadas em obter terra como meio de trabalho e renda, tais como ex-pequenos proprietários, assalariados rurais e urbanos, posseiros, meeiros e outros segmentos de trabalhadores da terra destituídos de propriedade. À medida que foi crescendo, o MST continuou organizando esses tipos de trabalhadores, porém, a eles somaram-se os que obtiveram a terra por meio da luta, ou seja, os assentados. Os acampamentos formados quando se ocupa a terra e os assentamentos derivados da reforma agrária são as organizações básicas do MST. Nelas as famílias estão organizadas por meio dos núcleos de base, brigadas, coordenações eleitas e assembleias gerais para a tomada de decisões. De cinco em cinco anos ocorre o Congresso Nacional, a instância superior de decisão do MST, que discute e aprova o programa e as linhas políticas para o próximo quinquênio, e a cada dois anos são realizados os Encontros Nacionais para discussão de tarefas mais específicas. As várias instâncias do Movimento têm autonomia para realizarem as discussões e tomadas de decisões de acordo com as problemáticas regionais e/ou locais. A ocupação de terras devolutas ou improdutivas e os assentamentos geraram um fenômeno diferenciado no MST que designamos de territorialização. A partir de seu território o Movimento cria e desenvolve o que metaforicamente denominamos de economia política do MST. A economia política tem uma posição estratégica na reprodução do Movimento. Além de ser a base de subsistência dos assentados, ela https://doi.org/10.36311/2024.978-65-5954-509-4.p11-16 11 possibilitou a construção dos sistemas cooperativista e educacional do MST, dentre outras ações. O interesse pelo MST como parceiro em atividades e como objeto de estudo é um fato. A origem desse interesse encontra-se no acontecimento de que o MST é altamente organizado, desenvolveu diferentes táticas de luta e contribuiu para trazer de volta à história um tema que parecia superado pelo progresso, qual seja, a luta pela terra e reforma agrária. O MST adquiriu notoriedade por várias razões: por sua presença em todo o território nacional; por suas táticas e métodos de luta; pela audácia com que tem enfrentado as políticas neoliberais; por suas campanhas de solidariedade com os mais pobres; por suas características de movimento altamente organizado e, certamente, pelos resultados que vem obtendo na produção agrária e na educação. A condição de organizador da educação e de uma economia política específica, dentre outros atributos, contribuiu para instigar o interesse sociológico em relação ao MST. Além disso, há outro aspecto bastante importante. Em geral, movimentos sociais e outras organizações de trabalhadores têm ideias próprias a respeito de como a sociedade deve organizar a educação e o trabalho. Partidos políticos e sindicatos ligados aos trabalhadores, por exemplo, usualmente têm uma visão própria sobre a educação e o trabalho e, geralmente, organizam palestras, cursos livres de qualificação, mesas de debates etc. sobre os assuntos. O mesmo acontece com vários outros movimentos sociais. Contudo, não é comum que organizações populares coloquem em prática suas ideias a respeito desses temas. Neste quesito, o MST apresenta uma condição diferenciada. As ações iniciadas e consolidadas no transcurso de quarenta anos de lutas pela reforma agrária permitiram ao MST construir uma espécie de economia política, que abarca milhares de famílias assentadas e acampadas. E, concomitantemente à constituição dessa economia, o Movimento também construiu uma rede de escolas próprias ou sob sua influência, que denominamos de sistema educacional do MST. Para atender ao grande contingente de famílias que vivem nos acampamentos e assentamentos, o MST criou cursos de alfabetização de jovens e adultos, cursos técnicos de nível médio e médio integrado, como Administração de Cooperativas, Saúde Comunitária, Agroecologia, e cursos 12 de nível superior, como Pedagogia da Terra, Letras, Licenciatura em Educação do Campo, Ciências Agrárias, Agronomia, Veterinária, Direito, Geografia e História, e ainda gerencia inúmeras escolas públicas de educação básica, que estão em seus territórios. A partir de um esforço reflexivo teórico-prático, o MST criou uma pedagogia própria, denominada Pedagogia do Movimento, que é diferente daquela que predomina na escola estatal oficial. Essa Pedagogia é decorrente, principalmente, do fato de o Movimento ser um lutador político e de sua conexão com a economia política desenvolvida nos assentamentos. A Pedagogia do Movimento apresenta princípios filosóficos e pedagógicos, bastante distintos dos comumente encontrados em outras teorias. Desses princípios, destacamos os mais importantes e que são aplicados em suas escolas: a educação para a transformação social; a gestão democrática e a auto-organização dos estudantes; e o vínculo entre ensino e trabalho produtivo. Com referência à educação para a transformação social, algumas características se sobressaem no fazer pedagógico. A educação do MST é uma educação de classe, ou seja, voltada para o fortalecimento do poder popular e para a formação de militantes para as organizações de trabalhadores e para o MST. Em última instância, objetiva desenvolver com os estudantes a consciência de classe. Além disso, essa educação está organicamente vinculada ao Movimento. Nas palavras do Movimento: a maior escola é o próprio MST. Disso deriva que, embora teoria e prática devam caminhar juntas, a prática precede a teoria. Para desenvolver a consciência crítica é necessário desenvolver sujeitos capazes de intervir e transformar a realidade material, ou seja, passar da crítica à intervenção na realidade. A organização e a gestão da escola são elementos fundamentais de qualquer sistema ou unidade de ensino, pois, dependendo de como elas se processam, a vivência na escola pode ser democrática ou não. Para vivenciar a democracia, o MST propõe para as suas escolas a gestão democrática e a auto-organização dos alunos. Para o Movimento, a gestão democrática compreende dois pontos fundamentais: a direção coletiva dos processos pedagógicos; e a participação dos envolvidos no processo de gestão escolar. A direção coletiva de cada processo pedagógico implica a participação efetiva da comunidade na gestão da escola, bem como a relação desta com o conjunto 13 de escolas ligadas ao Movimento e sua subordinação crítica e ativa aos seus princípios. Para o MST, a direção coletiva é uma forma de garantir a participação de todas as pessoas na tomada de decisões, de dividirem-se as tarefas e as funções de acordo com as qualidades e as aptidões pessoais e, também, de superação do paternalismo e do presidencialismo. O Movimento entende por auto-organização o direito dos estudantes se organizarem em coletivos, com tempo e espaço próprios, para analisar e discutir as suas questões, elaborar propostas e tomar decisões com o objetivo de participarem como sujeitos da gestão democrática do processo educativo e da escola. A principal instância de decisão é a assembleia geral, da qual participam os envolvidos no processo pedagógico, professores, alunos, funcionários das escolas, pais e comunidade local. Um dos princípios norteadores da pedagogia e da organização escolar do MST é o estabelecimento do vínculo entre o ensino e o mundo do trabalho. A ligação entre ensino e trabalho produtivo nas escolas do Movimento ocorre da seguinte forma. Nos cursos desenvolvidos nas escolas do MST aplica-se a denominada pedagogia da alternância, ou seja, os cursos são organizados em etapas, cada uma delas constituídas por dois tempos: tempo escola e tempo comunidade. O tempo escola é o tempo no qual os alunos desenvolvem um conjunto de atividades teóricas do curso e a participação na gestão escolar. O tempo comunidade é o tempo no qual os alunos retornam aos acampamentos ou assentamentos realizando trabalhos produtivos vinculados ao curso ou delegados pelas instâncias do MST. Os estudantes trabalham também durante o tempo escola no qual ficam na instituição. Eles atuam em três setores básicos: a) na manutenção e conservação da escola; b) nas unidades de produção; c) na gestão coletiva da escola. Um dos trabalhos mais importantes que os alunos realizam é a gestão da escola, a qual é compartilhada com professores e funcionários. Convém ressaltar que o trabalho realizado nas escolas pelos alunos não é uma simulação laboratorial, mas trabalho real que de algum modo se articula com a economia. Entretanto, o seu significado é ao mesmo tempo educativo, cumprindo, assim, uma das premissas da abordagem pedagógica do MST que é a de ligar organicamente o ensino e o trabalho. 14 E é exatamente sobre esta temática que o livro intitulado Rompendo a cela de aula: educação e trabalho no MST, de Ellen Felício dos Santos, se debruça. No estudo desta temática, Santos procurou desvendar como o MST operacionaliza a articulação entre educação e trabalho produtivo ou útil, em especial, tendo como objetos empíricos o Colégio Estadual do Campo Iraci Salete Strozak, do Assentamento Marcos Freire, e a Escola Itinerante Herdeiros do Saber, do Assentamento Herdeiros da Terra de 1º de Maio, localizados no município de Rio Bonito do Iguaçu, Estado do Paraná. A pesquisa de Ellen Felício dos Santos apresentada agora ao público é relevante por vários motivos. Primeiro porque tem como objeto de estudo uma temática importante, cujo projeto foi elaborado e implantado por um movimento social, que almeja uma formação crítica e emancipatória para os seus membros. Segundo porque em sua análise, a autora coloca em destaque os princípios filosóficos e pedagógicos da educação do MST, em especial a visão teórico-prática do vínculo entre educação e trabalho do Movimento, que difere da visão burguesa, já que seus objetivos estão voltados para a classe trabalhadora. E, por fim, porque a pesquisa possui rigor científico e está sendo apresentada em um momento econômico-político e, sobretudo, educacional ainda dramático para o país. Dentre as várias ações dos desgovernos que comandaram o país no período de 2016-2022, encontram-se a tentativa de eliminação dos pequenos proprietários rurais, a perseguição atroz ao MST, e a destruição da educação e suas instituições, em especial o encerramento dos Programas Educacionais voltados para os povos do campo. Desse ponto de vista, apresentar um estudo que coloca em epígrafe a experiência educacional de um movimento social que luta por reforma agrária, educação pública para todos, justiça e igualdade é também um ato de resistência. Os atributos positivos deste livro o elevam a uma leitura de referência para os leitores e leitoras interessados no tema da educação do MST. Verão de 2024 Neusa Maria Dal Ri 15 INTRODUÇÃO Este livro é fruto de pesquisa realizada no âmbito do Programa de PósGraduação em Educação da Faculdade de Filosofia e Ciências da Unesp/ Marília, durante realização do curso de mestrado em educação. A pesquisa contou com o financiamento do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e foi orientada pela Professora Doutora Neusa Maria Dal Ri, responsável pelo projeto mais amplo em que a pesquisa está integrada, denominado Educação democrática e movimentos sociais: antecedentes da pedagogia do trabalho associado, Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) do Brasil e Ejército Zapatista de Liberación Nacional (EZLN) do México Fase III (Dal Ri, 2018). O referido projeto tem por objetivo investigar as origens das proposições educacionais da pedagogia do trabalho associado e identificar os elementos democráticos introduzidos por movimentos sociais da classe trabalhadora. Trata-se de estudo de cunho bibliográfico, documental e empírico que retoma as proposições educacionais dos movimentos dos trabalhadores do séc. XIX, analisando-as e comparando-as com as proposições de movimentos atuais, em especial as do MST, do Brasil, e do Movimento Zapatista (MZ), do México. Como parte do projeto fase I, Silva (2014) realizou pesquisa que objetivou responder se havia princípios educativos comuns ou gerais entre as proposições educacionais e suas aplicações realizadas nas escolas e associações do MST, dos Owenistas e do Movimento Cartista. Os dados levantados pelo autor contribuíram para a confirmação da tese aventada por Dal Ri (2012) de que os Movimentos analisados possuem princípios educativos comuns e transcendentes, tais como: a) elaboração e implementação de um projeto próprio de educação; b) negação dialética da educação escolar hegemônica estatal; c) implementação da gestão democrática nas associações e escolas dos Movimentos; d) ações visando formar os próprios educadores; e) articulação 17 entre ensino e trabalho produtivo; f ) constituição e veiculação de uma concepção de mundo concernente a cada Movimento e à classe trabalhadora. Dando continuidade à pesquisa e participando do projeto aludido na fase II, Silva (2019) investigou os principais princípios teórico-práticos educacionais do MZ, do México, e do MST, do Brasil, com o objetivo de identificar e cotejar os princípios educativos que embasam as ações educacionais desses Movimentos e que foram enunciados por Dal Ri (2012, 2015). O autor respondeu à seguinte questão investigativa: Há princípios educativos comuns ou gerais entre as proposições educacionais e suas aplicações ou experiências realizadas nas escolas do MZ e do MST? Os resultados da pesquisa confirmaram que os princípios pesquisados são intrínsecos aos projetos educativos do MZ e do MST, todavia, com idiossincrasias, tanto em termos teóricos, quanto em termos práticos. MZ e MST são Movimentos que estão em atuação, envolvem amplos contingentes de trabalhadores de dois dos principais países da América Latina, possuem diferentes perspectivas político-ideológicas e com diferentes composições, em termos étnico-culturais. Repercutem e são reconhecidos nacional e internacionalmente. Nesse sentido, os projetos de Dal Ri (2012, 2015, 2018) inovam por seus objetivos, que propõem, em especial, o cotejamento de diferentes movimentos sociais de trabalhadores, contribuindo para o registro sistematizado e para a análise de aspectos históricos da auto-organização de setores das classes trabalhadoras (Silva, 2019). A pesquisa de Silva (2019) apresenta os princípios de forma cotejada, porém, numa perspectiva panorâmica e, apesar de os dados apresentados serem de extrema relevância, os apontamentos podem ser aprofundados, trazendo o detalhamento em termos teóricos e práticos da operacionalização dos princípios. Santos (2018) analisou um dos princípios aventados por Dal Ri (2012, 2015) e também cotejados por Silva (2014, 2019), com a intenção de responder a seguinte questão: Como ocorre a articulação do ensino com o trabalho produtivo na Pedagogia do MST? Com apoio em Dal Ri (2004), a análise dos dados apontou que no MST essa articulação ocorre por meio de três dimensões: 1. Educação ligada ao mundo do trabalho; 2. Trabalho como princípio educativo; e 3. Pedagogia da alternância como método pedagógico. Essa pesquisa contribuiu com análise de um princípio específico na 18 conjuntura de atuação de um dos Movimentos analisados, o MST. É com a contribuição desses dados que esse livro foi elaborado, dando continuidade à investigação anterior (Santos, 2018) e contribuindo com dados para a conclusão do projeto mais amplo. Dessa forma, analisamos a articulação entre educação e trabalho produtivo, em termos operacionais, considerando experiências de articulação desse princípio no MST. Em levantamento bibliográfico não encontramos trabalhos que se debrucem especificamente sobre essa temática, o que demonstra a originalidade e ineditismo dos projetos mais amplos (Dal Ri, 2012, 2015, 2018) e da proposição desta pesquisa, pois os dados apresentados pelas pesquisas de Silva (2014, 2019) mostram a necessidade de pesquisas que considerem, de forma aprofundada e individualizada, os princípios analisados. Em termos operacionais investigamos como ocorre a articulação entre educação e trabalho produtivo no âmbito do Colégio Estadual do Campo Iraci Salete Strozak, localizado no Assentamento Marcos Freire, em Rio Bonito do Iguaçu, no estado do Paraná. O nome do Colégio é uma homenagem à Iraci Salete Strozak, que fez parte do Setor de Educação do MST e lutou para que a educação acontecesse em áreas de reforma agrária. O Colégio Strozak possui um Projeto Político Pedagógico (PPP) solidamente pautado nos princípios da Pedagogia do MST, colocando em prática o Sistema de Complexos, desenvolvido por Pistrak e os Ciclos de Formação Humana, de Paulo Freire. Para compreendermos como ocorre a articulação entre educação e trabalho produtivo utilizamos como procedimentos metodológicos as pesquisas documental, bibliográfica e empírica. A pesquisa empírica foi realizada por meio da observação e aplicação de entrevistas semiestruturadas, individuais e coletivas, realizadas no período de 01 de novembro a 03 de dezembro de 2021. As entrevistas foram realizadas pessoalmente e via aplicativo Google Meet. A observação foi realizada durante visita ao Colégio Estadual do Campo Iraci Salete Strozak, no Assentamento Marcos Freire, e na Escola Itinerante Herdeiros do Saber, no Assentamento Herdeiros da Terra de 1º de Maio, ambas localizadas no município de Rio Bonito do Iguaçu, interior do estado do Paraná. Durante a pesquisa empírica o trajeto até as escolas foi realizado juntamente com os docentes, estudantes e funcionários no transporte escolar, que 19 sai da rodoviária de Rio Bonito para as escolas do campo da região, levando os docentes, gestores e funcionários e que, durante a viagem, realiza paradas para embarque dos estudantes. São escolas localizadas em regiões de difícil acesso e o trajeto com automóvel fica inviável por diversos fatores, dentre os quais estão o desgaste do veículo e o perigo de atolamento. Nos dias da realização da visita, foi possível experimentar um pouco do que passam esses trabalhadores e estudantes diariamente. O transporte é barulhento e conversar dentro do ônibus é quase impossível. Além disso, por se tratar de estradas de terra, quando o tempo está seco a poeira toma conta da paisagem. É uma viagem desconfortável, que dura aproximadamente 40 minutos. Ao final do período da manhã, alguns docentes embarcam no ônibus para Rio Bonito, saindo do Colégio Strozak, e se dirigem ao Colégio Itinerante Herdeiros do Saber. Para isso é preciso fazer uma baldeação, um trajeto que dura cerca de 30 minutos. Ao final do período da tarde, o ônibus volta para Rio Bonito e, no trajeto, os estudantes desembarcam próximo aos seus lotes. Chegando ao município de Rio Bonito do Iguaçu, uma parte dos docentes se dirige até os seus veículos, que passam o dia estacionados na Rodoviária, e se organizam em grupos para voltarem ao município de Laranjeiras do Sul, onde residem. Ao todo foram realizadas dez entrevistas, três delas via Google Meet e sete realizadas durante a visita ao Colégio. As pessoas entrevistadas via Google Meet foram Marlene Sapelli (assessora pedagógica), Ana Cristina Hammel (ex-diretora do Colégio Strozak, que participou da implementação dos Complexos de Estudos com Ciclos de Formação Humana) e Rudison Ladislau (professor efetivo do Colégio Strozak e ex-diretor). Durante o período de observação, foram entrevistadas sete pessoas, sendo a atual diretora do Colégio Strozak, Jucélia Castelari Luppesa, uma aluna do Núcleo Setorial de Comunicação Katlyn Kayane da Silva Santiago, uma funcionária da Escola Itinerante Herdeiros do Saber I, que é mãe de aluno e assentada, Teresa de Fátima Dias, duas professoras contratadas pelo processo seletivo simplificado, Jaqueline Boeno D’ávila e outra que preferiu não se identificar, e dois professores, sendo um efetivo, Nilton Silva, e um contratado pelo processo seletivo, Tiago Prestes. 20 As entrevistas ajudaram a compreender o funcionamento do Colégio, seu projeto educativo e os avanços e limites de sua proposta. Foi possível coletar os subsídios necessários para compreender a conjuntura de atuação e a realidade concreta do Colégio na região de Rio Bonito do Iguaçu. Um dos canais de divulgação dos acontecimentos e projetos relacionados ao MST é o site oficial do Movimento1, que é uma importante base para o levantamento das bibliografias e documentos relacionados à sua Pedagogia. Dentre os documentos analisados destacamos “Escola, trabalho e cooperação” (MST, 1994) e “Princípios da educação no MST” (MST, 1996) que, apesar de serem documentos escritos há mais de 25 anos, continuam norteando o trabalho pedagógico nas escolas do MST. No que diz respeito ao Colégio Strozak, dois documentos se destacam, o Projeto Político Pedagógico (PPP) (Strozak, 2020) e o Plano de Estudos do Colégio (Strozak, 2013). O PPP reflete a operacionalização do Plano de Estudos, documento que sistematiza um conjunto de decisões do coletivo escolar com o objetivo de fornecer aos educadores os elementos necessários para definir a amplitude e a profundidade dos conteúdos que devem ser ensinados, os objetivos formativos e de ensino, as expectativas de desenvolvimento, as indicações das relações que esses conteúdos e objetivos têm com a vida cotidiana dos estudantes. O grupo de pesquisa Organizações e Democracia da Faculdade de Filosofia e Ciências contribuiu para com a pesquisa bibliográfica de forma significativa, pois alguns dos trabalhos publicados com resultados de pesquisas desenvolvidas pelos integrantes do grupo, tais como, artigos, dissertações, teses, capítulos de livros e livros fazem parte do referencial teórico. A base Scielo foi selecionada para a busca de materiais e retornou inicialmente 317 pesquisas com títulos relacionados ao termo MST e para um recorte mais elaborado utilizamos os termos: 1. MST e 2. Educação, que retornou 42 resultados, dentre as obras selecionadas, destacamos Sapelli (2017). Quando pesquisamos os termos 1. MST e 2. Trabalho, foram encontradas 83 obras, dentre as quais selecionamos Janata (2015). Ao pesquisarmos os termos: 1. MST; 2. Educação; e 3. Trabalho, a pesquisa retornou 19 resultados e selecionamos Souza (2021). Ao pesquisarmos os termos: 1. 1 O sítio está localizado nos seguintes endereços eletrônicos: www.mst.org.br e www. reformaagrariaemdados.org.br/biblioteca 21 MST; 2. Trabalho; e 3. Produtivo, a pesquisa retornou apenas 2 resultados, demonstrando a necessidade de pesquisas que se debrucem especificamente sobre a temática. Para a compreensão do princípio de articulação entre educação e trabalho produtivo, a conjuntura de atuação e nascimento do MST, os motivos para elaborar um projeto próprio de educação, além dos documentos e bibliografias já citados, foram selecionadas algumas obras que foram lidas para pesquisas anteriores, indicadas por colegas pesquisadores e encontradas em buscas na internet ou em livrarias virtuais. No que se refere ao Colégio Strozak e sua conjuntura de atuação, foi importante historicizar o Colégio e sua importância para o conjunto de escolas do campo do estado do Paraná e sua amplitude no diz respeito à categoria de escola-base. Para isso, compreendemos ser fundamental discorrer sobre o MST e sua importância na luta pela Reforma Agrária no cenário atual e na sua conjuntura de nascimento. Dessa forma, este livro está dividido da seguinte maneira: No primeiro capítulo apresentamos a conjuntura política e econômica de fundação e atuação do MST, apontando particularidades do Movimento. No segundo capítulo apontamos o valor do trabalho e sua importância para a formação do ser humano, além de discorrermos sobre a educação em seu sentido amplo e como se tornou institucionalizada. No terceiro capítulo tratamos a história e atuação do Colégio Estadual do Campo Iraci Salete Strozak e a organização do trabalho pedagógico com o Sistema de Complexos de Estudo e os Ciclos de Formação Humana. No quarto e último capítulo apresentamos formas de articulação entre a educação e trabalho que acontecem no Colégio Strozak. 22 CAPÍTULO I RESISTÊNCIA POPULAR E MOVIMENTOS SOCIAIS2 O processo de gestação e de fundação do MST ocorreu em um período de grande efervescência política no Brasil, marcado pela luta contra a ditadura civil-militar vigente desde o golpe de 1964 e que teve fim em 1985. Os militares tomaram o poder por meio de uma aliança política civil-militar e destituíram o presidente João Goulart. Foi um período de grande perseguição aos movimentos sociais e, conforme Fernandes (2000), os movimentos camponeses foram aniquilados e os trabalhadores passaram a ser perseguidos, humilhados, assassinados, exilados etc. As políticas adotadas pelo governo da ditadura civil-militar ocasionaram o aumento da desigualdade social, com o favorecimento da concentração de renda e intensificação da concentração fundiária, tornando cada vez mais grave a questão agrária. No final dos anos de 1970 e início de 1980, sindicatos, entidades e movimentos sociais de trabalhadores se reorganizaram e desencadearam a luta pela democratização do país e por melhores condições de vida e trabalho. O MST fez parte desse processo e foi um dos herdeiros do processo histórico de resistência e de luta pela terra (Caldart, 2012). 2 De acordo com Dal Ri (2017), do ponto de vista acadêmico, não há um consenso entre os pesquisadores em relação ao conceito de movimento social (MS), mas, de maneira geral, estudiosos o usam para denominar organizações estruturadas com a finalidade de criar formas de associação entre pessoas e entidades que tenham interesses em comum, para a defesa ou promoção de certos objetivos perante a sociedade. São, portanto, formas de ação coletiva com algum grau de organização. Segundo a autora, para o marxismo, os MS emergem das contradições fundamentais da sociedade em seus aspectos econômicos, políticos e culturais. 23 Conjunturalmente, o fim da ditadura civil-militar no Brasil coincide com o avanço do neoliberalismo na América Latina, depois que os governos de Margareth Thatcher, na Inglaterra, e de Ronald Reagan, nos Estados Unidos, passaram a difundir mundialmente o projeto de expansão econômica que, principalmente, desregulamentava as leis trabalhistas (Vieira; Roedel, 2002). O neoliberalismo é um fenômeno complexo e, conforme Duménil e Lévy (2006), definiu um novo curso para o capitalismo mundial. Os autores afirmam que depois de acontecimentos, como a Grande Depressão e a Segunda Guerra Mundial, o poder e a renda da classe capitalista foram diminuídos e que com a crise dos anos de 1970 e o crescimento da inflação, essa classe passou a acumular perdas. Nesse intermeio, o neoliberalismo surge como uma possibilidade para restauração dos níveis de acumulação do capital. Para Duménil e Lévy (2006, p. 3), Entre a Segunda Guerra Mundial e o começo dos anos 1970, o 1% mais rico das famílias dos EUA tinha mais de 30% da riqueza total do país; durante a primeira metade dos anos 1970, essa porcentagem tinha caído para 22%. O neoliberalismo foi um golpe político cujo objetivo era a restauração desses privilégios. A esse respeito, foi um grande sucesso. Na América Latina, a implantação do projeto neoliberal precarizou ainda mais as condições de vida e de trabalho da classe trabalhadora, afetando fortemente as organizações de trabalhadores com a repressão dos atos de resistência e a criminalização dos movimentos sociais (Dal Ri, 2010). O capitalismo neoliberal na América Latina modificou a situação sócio-econômica da região. As suas ações e políticas exerceram forte efeito, maiormente, sobre as classes trabalhadoras que tiveram um agravo de suas condições de vida e trabalho, as quais já eram muito difíceis mesmo antes da implantação do projeto neoliberal (Dal Ri, 2010, p. 8). A ofensiva do capital desencadeou uma gestão econômica de mercados desregulamentados3 que, por sua vez, culminou no desmonte das conquistas sociais das classes trabalhadoras (Vieitez; Dal Ri, 2009, 2010). 3 Processo que elimina as restrições e travas legais à atividade financeira. A partir dos anos de 1980, diversos países deram início ao processo de desregulamentação dos seus mercados financeiros. 24 De acordo com Vieira e Roedel (2002, p. 29), o enfraquecimento das organizações de trabalhadores pode ser considerado como um boicote à atuação dos sindicatos e da classe trabalhadora. Este boicote podia se traduzir, por exemplo, na cobrança de elevadas multas aplicadas pela Justiça do Trabalho, no Brasil, aos petroleiros durante a greve de 1995. Ou ainda, no constante emprego da mídia para desqualificar os movimentos sindicais e transformá-los, perante a opinião pública, em representações arcaicas, autoritárias, incapacitadas ao convívio na moderna sociedade de consumo. Foi um período em que ideologias capitalistas foram disseminadas com o domínio da mass media4e os movimentos populares foram esvaziados (Vieitez; Dal Ri, 2009). Mesmo com as subjetividades dos tempos e espaços, a resistência popular é histórica e insurge na luta contra questões estruturais e não apenas conjunturais. Com o avanço da política neoliberal na América Latina, diversos movimentos sociais emergiram, colocando em foco as lutas da classe trabalhadora. No Equador a população obrigou os presidentes Bucarán, em 1997, e Gutierrez, em 2005, a deixarem o poder. Na Bolívia, em 2000, por meio da guerra da água a população se confrontou com a privatização dos serviços de água, o que gerou dezenas de mortos e centenas de feridos. Em 2003, ocorreram os movimentos contra as privatizações na área de energia e a guerra do gás iniciada em El Alto onde ocorreu o massacre da população no denominado outubro negro do mesmo ano. Em 2005, as massas populares derrubaram o presidente Lozada e o seu sucessor Mesa. Em 2001, na Argentina, que viveu grave crise econômica, social e financeira, com alto índice de desemprego que atingiu também a classe média, as movimentações populares culminaram com a renúncia do presidente De La Rúa. Essa mesma tendência às manifestações populares de revolta e reivindicativas foi verificada nas populações de Oaxaca e Chiapas, no México, nos estudantes do Chile, nos trabalhadores da Colômbia e nos camponeses do Peru (Dal Ri, 2010, p. 9). Zibechi (2003) afirma que pelas frestas que o modelo de dominação 4 Em tradução livre ‘mídias de comunicação de massa’. 25 neoliberal abriu, os Movimentos constroem um novo mundo. Para Dal Ri (2017) são Movimentos diferentes dos anteriores por suas formas de organização e funcionamento e não por questões ou problemáticas sociais que os movem. Para a autora são os Novos Movimentos Sociais (NMS), que tomados por formas originais de organização promovem o princípio fundamental da prática democrática, recusando a hierarquia vertical, promovendo formas de cooperação e solidariedade, e resgatando valores e culturas esmagados pelo capital” (Vieitez; Dal Ri 2009, p. 6). Na América Latina, os Movimentos que surgiram apresentam características diferenciadas, além de rejeitar as formas clássicas de organização, promovem modificações no que diz respeito as formas de deliberação e distribuição do poder (Dal Ri, 2017). Essas modificações tornam a educação crucial para os NMS. Um desses Movimentos é o MST, que surge rejeitando formas tradicionais de organização e promove não só modificações nas formas de deliberação, distribuição do poder e participação, como também nas formas de luta e enfrentamento ao setor agrário capitalista. O MST tem uma longa trajetória de luta. Fundado oficialmente em 1984 em Cascavel no Paraná, o Movimento é a continuidade das ações de resistência de Movimentos anteriores, como os Quilombolas, a Guerra de Canudos, a Guerra do Contestado, o Cangaço, a Revolução Farroupilha, a Sabinada, a Balaiada, a Cabanagem dentre outras. Algumas organizações têm papel fundamental na formação do MST, tais como as Ligas Camponesas, o Movimento dos Agricultores Sem Terra (Master), as Comunidades Eclesiais de Base (CEBs) e a Comissão Pastoral da Terra (CPT). As Ligas Camponesas datam da década de 1950 e têm uma participação fundamental na história de luta pela terra no Brasil. Durante a década de 1950, os agricultores alugavam (pagavam o foro) as terras que haviam sido abandonadas por seus donos. Em 1955, os donos do Engenho Galileia, em Vitória de Santo Antão, município de Pernambuco, aumentaram o preço do aluguel e teve início uma mobilização dos trabalhadores. Os trabalhadores passaram a ser representados por Francisco Julião, do Partido Socialista Brasileiro (PSB), e a organização ficou conhecida como Liga Camponesa da 26 Galileia. Com o passar do tempo outras Ligas surgiram e foram se espalhando pelo país, com o lema Reforma Agrária na lei ou na marra. Mas, esse posicionamento era contrário ao do PSB, do qual Julião fazia parte, e também contrário ao da Igreja Católica, pois tanto um quanto outro se posicionavam a favor de uma reforma agrária por etapas e com indenização em dinheiro e títulos aos proprietários (Fernandes, 2000; Morissawa, 2001). Com o golpe de 1964, tanto as Ligas Camponesas quanto outros Movimentos foram exterminados (Fernandes, 2000). O Master surgiu no final da década de 1950, no município de Encruzilhada do Sul, no estado do Rio Grande do Sul. Em 1962, o Master organizava acampamentos e sua inovação foi que, enquanto movimentos sociais da época lutavam por suas terras, o Master passou a organizar os trabalhadores para conquistá-la (Fernandes, 2000; Morissawa, 2001). O Master cresceu com o apoio do Partido Trabalhista Brasileiro (PTB), mas com a derrota do PTB nas eleições, o governo estadual, algumas instituições e entidades acabaram atacando-o e enfraquecendo-o (Morissawa, 2001). As CEBs foram criadas pela Igreja Católica na década de 1960 e a CPT surgiu em 1975. As CEBs se baseavam nos princípios da Teologia da Libertação5 e se tornaram importantes espaços de organização e luta para as classes trabalhadoras, contra as injustiças e por seus direitos. Morissawa (2001, p. 105) destaca que “Os teólogos da libertação fazem uma releitura das Sagradas Escrituras da perspectiva dos oprimidos e condenam o capitalismo, considerando um sistema anti-humano e anticristão”. Para Dal Ri (2004), a CPT provavelmente foi a organização que mais imediatamente contribuiu para a formação do MST. Para Morissawa (2001, p. 105), a CPT foi “[...] importante instrumento de desmascaramento das políticas e projetos dos militares, e permanece sendo espaço central na organização e projeção das lutas pela conquista da terra.” A CPT se espalhou por todo o país, crescendo e adquirindo novas formas, de acordo com as necessidades locais, e apoiando vários movimentos sociais (Canuto, 2012). No início da década de 1980, a CPT iniciou debates e encontros com diversas lideranças da luta pela terra no país. Durante essas reuniões, as 5 É uma interpretação acerca dos ensinamentos bíblicos de Jesus Cristo que procura ensinar formas de libertar os homens das condições econômicas, políticas e sociais injustas. 27 lideranças avaliavam os diversos movimentos existentes, apresentavam causas e limites das lutas, trocavam informações, analisavam as alianças estabelecidas, discutiam a participação dos sindicatos e as articulações necessárias para melhorar a organização dos trabalhadores. Quando o modelo agrário mais concentrador implementado durante a ditadura civil-militar culminou no grande êxodo rural, na exportação da produção, no uso intensivo de venenos e concentração de terra e dos subsídios para trabalhar nela, o pequeno produtor foi excluído. Ao final da década de 1970 com a intensidade das contradições desse modelo agrícola, centenas de agricultores ocuparam as granjas Macali e Brilhante no Rio Grande do Sul, em 1979. Em 1981, no Rio Grande do Sul surgiu um novo acampamento, a Encruzilhada Natalino, que se tornou símbolo da luta de resistência agregando em torno de si a sociedade civil na luta por um regime democrático. Na época da Encruzilhada Natalino, o MST criou um Boletim para divulgar a Encruzilhada e solicitar apoio. O Boletim repercutiu nacional e internacionalmente, agregando diversas lideranças de luta pela terra. Foram diversos eventos realizados ao longo do tempo e que acabaram por resultar na realização do 1º Encontro Nacional, em Cascavel, estado do Paraná, nos dias 20, 21 e 22 de janeiro de 1984, que marca oficialmente o nascimento do MST (Morissawa, 2001). Em janeiro de 1985 o MST realizou o 1º Congresso Nacional, com o lema ‘Ocupação é a única solução’ e nos anos seguintes outros Congressos foram realizados reunindo quantidades significativas de trabalhadores se tornando o maior espaço de decisão do MST. Após 40 anos de existência o MST continua em atividade e está organizado em 24 estados brasileiros nas cinco regiões do país, computando cerca de 450 mil famílias assentadas, que conquistaram a terra por meio da luta e organização dos trabalhadores rurais. Foi o acampamento Encruzilhada Natalino que marcou o início do período de gestação do MST que, desde então, tem como uma das principais ações a ocupação de terras. Ao constatarem que organizar os trabalhadores, divulgar suas ideias e esperar para que a reforma agrária se realizasse por via parlamentar não seria o suficiente, o Movimento passou a ver a ocupação como uma das possibilidades de enfrentamento ao grande latifúndio 28 improdutivo e como forma de pressionamento do Estado. Ao ocuparem um latifúndio improdutivo, que não é a terra em que os trabalhadores necessariamente serão assentados, os trabalhadores se organizam no acampamento que, para Belo e Pediowski (2014), é fundamental nas ações de desenvolvimento econômico-social dos assentamentos do MST, pois é nele que se desenvolvem formas de cooperação e coletividades que são preconizadas pelo Movimento. Ao se organizarem em um acampamento, os sujeitos passam a ser um coletivo na luta pela reforma agrária, o que abre espaço para a construção de uma nova identidade para os acampados. Dessa forma, a construção dessa nova identidade é parte de um processo de aprendizagem que se inicia com a ocupação e por meio dela são transmitidos os valores ancorados no princípio da solidariedade. Portanto, a ocupação não é apenas uma ação para pressionar o Estado, não é apenas uma forma de luta, mas um ato educativo, que possibilita que durante a luta pela terra, as famílias aprendam a se organizar de forma coletiva e solidária. Para Belo e Pediowski (2014), trabalhar de forma cooperada, colaborativa ou associada não é algo simples, pois requer uma completa mudança nas formas de organização do trabalho e dos meios de produção. Fernandes (2012) afirma que os acampamentos podem parecer ajuntamentos desorganizados de barracos, contudo, há disposições específicas em decorrência da topografia do terreno, das condições de desenvolvimento da resistência ao despejo e das perspectivas de enfrentamento com jagunços. Majoritariamente, os acampamentos se organizam em arranjos circulares ou lineares e os Sem Terra organizam a horta, escola, farmácia e um local para a realização de assembleias. Logo depois de organizarem o acampamento, são criadas as comissões de organização para atender às necessidades dos acampados. Ao organizar um acampamento, os sem-terra criam diversas comissões ou equipes, que dão forma à organização. Delas participam famílias inteiras ou parte de seus membros. Essas comissões criam as condições básicas para a manutenção das necessidades dos acampados: saúde, educação, segurança, negociação, trabalho etc. (Fernandes, 2012, p. 24). A vida nos acampamentos ensina novas formas de viver, pois incorpora práticas coletivas na vida dos sujeitos, como manifestações, assembleias, 29 coordenação de comissões de trabalho etc. Essas práticas instrumentalizam e organizam os acampados na luta por direitos fundamentais, ensinando-os a conviver coletivamente. Dal Ri (2004) aponta que a ocupação é um dos traços mais importantes e característicos do MST e Fernandes (2012) afirma que o MST nasceu da ocupação de terra e por meio da ocupação o Movimento se reproduz, espacializando a luta pela terra. Para Caldart (2012), o sentido educativo do MST extrapola os limites de sua luta pela questão agrária e altera a constituição dos sujeitos sociais que o constituem. Podemos afirmar que os Sem Terra se constituem como um novo sujeito social, no sentido de sujeito coletivo que passa a participar dos embates sociais. Mas, quando se trata de afirmar que o MST forma sujeitos, isso nos remete a pensar nesse sujeito, no singular, como constituído de diversos sujeitos, no plural. Porque daí podemos falar nos Sem Terra como sendo as mulheres Sem Terra, as crianças Sem Terra, ou os Sem Terra de origens étnicas e culturais diferentes; ou podemos falar dos Sem Terra acampados e dos Sem Terra assentados, e assim por diante... Há identidades diversas que se combinam na formação dessa identidade social mais ampla (Caldart, 2012, p. 38, grifos da autora). Quando os trabalhadores e trabalhadoras escolhem participar do MST, não o fazem necessariamente por ter uma consciência dos valores projetados pela luta, e essa é uma preocupação do Movimento, que passa “[...] a considerar como tarefa central a formação das pessoas, exatamente na perspectiva de ajudá-las a perceber conscientemente como pressionam as novas circunstâncias que criaram através da sua participação na luta e na sua identificação como Sem Terra” (Caldart, 2012, p. 62). Esse é um processo educativo. Os sujeitos que participam de experiências como a ocupação e o acampamento internalizam hábitos, posturas, convicções, valores, expressões de vida social que aos poucos se transformam em cultura, com os processos de formação, com vivências educativas específicas para cada indivíduo (Caldart, 2012). Estamos tratando de processos de formação, o que significa considerar continuidades e descontinuidades, em um movimento que quase nunca é linear e geralmente se apresenta com múltiplos sentidos entrecruzados. 30 Há quem tenha entrado no MST através da vivência que aqui vai aparecer por último. Outros que talvez não cheguem a vivenciar diretamente todos os processos. Há, pois, também a herança de aprendizados, embora nada substitua a experiência direta em cada uma das ações que definem a atuação do MST. As vivências educativas de que aqui se trata não são necessariamente as ações realizadas pelo MST com uma intencionalidade pedagógica e cultural. São aquelas ações próprias da materialidade principal da atuação do Movimento, em uma relação direta com os momentos de sua história de luta. É dessa materialidade que se gesta o seu sentido sociocultural e educativo mais profundo, e que dizem respeito aos aprendizados que já integram o modo de ser Sem Terra e aos poucos se transformam em uma cultura que carrega em si alguns pressentimentos de futuro. E isso nem tanto por inventar práticas ou criar novos ideais libertários, mas muito mais por recuperar certos tesouros do passado, especialmente algumas matrizes de rebeldia popular organizada que possibilitam devolver ao povo sua condição de sujeito da história (Caldart, 2012, p. 167-68, grifos da autora). Ao projetar mudanças na forma como as pessoas se posicionam diante da realidade do mundo, a ocupação de terra gera um aprendizado na formação do sujeito e o acampamento também tem seu papel pedagógico, na medida em que forma um coletivo para a luta. No acampamento a organização se dá por meio dos Núcleos de Base, constituídos entre dez e trinta famílias. Através dos núcleos se organizam a divisão de tarefas, as discussões e os estudos para a tomada de decisões sobre os próximos passos de luta. As tarefas são planejadas e avaliadas na assembleia geral, instância máxima de deliberação (Caldart, 2012) dos acampamentos e assentamentos. Por meio das ocupações o MST exerce uma pressão pela reforma agrária. O Código Penal Brasileiro (Brasil, 1940) classifica como invasão o ato de se instalar na propriedade de outro em proveito próprio, esbulho possessório, o que é cabível de pena. A ocupação é classificada como a ação massiva de ocupar um território não para proveito próprio, mas para fazer pressão política para que o governo aplique a lei e desaproprie o território em questão, que não cumpre a sua função social. Além disso, o proprietário é indenizado e a terra distribuída para a reforma agrária. Conforme Dal Ri (2004), a ocupação enquanto práxis organizacional do Movimento forma um microcosmo social em que a comunidade se 31 organiza para solucionar os problemas elementares da vida social. Esses problemas elementares, no caso dos movimentos sociais, podem requerer formação técnica e, no caso do MST, tanto formação técnica quanto a formação de quadros estão a cargo da educação, o que faz dela um desafio constante. Quando o latifúndio improdutivo passa a ser um assentamento, o MST multiplica seus espaços de resistência e territórios camponeses, dando início à construção de uma nova forma de organização (Fernandes, 2012). Assim que são assentadas, as famílias iniciam uma produção com mais complexidade e sistematização do que a que acontecia no acampamento. Obviamente, com muitas dificuldades, pois a grande maioria dos assentados não possui os recursos necessários para iniciar uma produção imediata. Para Silva (2019), ainda que os acampamentos acomodem algumas atividades de produção econômica, essa produção acontece sem os elementos básicos necessários. Já nos assentamentos, com a posse definitiva da terra, e sem riscos de perda de plantios ou investimentos, que podem acontecer no acampamento com a desocupação ou expulsão dos Sem Terra, inicia-se uma produção mais sistematizada e complexa. Acampamento e assentamento são as duas modalidades de territórios do MST. Mas, nem todos os assentamentos da reforma agrária são do MST, ou nem sempre os Sem Terra são a maioria dos assentados. Nesses casos, os desafios do MST para implementar seus objetivos e princípios, tal como a Pedagogia do Movimento, nesses territórios aumentam (Silva, 2019). Os assentamentos possuem realidades diferentes, é o que apontam Caldart (2012) e Silva (2019). Enquanto alguns assentamentos são pequenos, com cerca de vinte ou trinta famílias, outros chegam a quinhentas ou seiscentas. Enquanto alguns estão em terras de boa qualidade e já prontas para o plantio, outros estão em áreas com terras de má qualidade, de difícil acesso e sem infraestrutura, chegando a não ter suprimento de água, energia, saneamento básico etc., o que influencia diretamente a produção. A produção econômica nos assentamentos da reforma agrária varia conforme diversos fatores, entre eles: qualidade e quantidade de terras; tempo de existência do assentamento; nível de organização dos assentados; infraestrutura e equipamentos para produção, processamento e armazenamento; forma de produção, de processamento e de comercialização 32 (coletiva ou individual); tipos de produtos; disponibilidade de assentados em condições de produzir; perfil dos assentados (filiação a diferentes Movimentos), faixas etárias, número de populações, domínio de técnicas de produção agropecuária ou agroindustrial; questões logísticas (veículos e estradas para transporte); acesso a pontos de venda, entre outros fatores (Silva, 2019, p. 249). Há um conflito, nos acampamentos e assentamentos, no que se refere à escolha entre formas individuais e formas coletivas de organizar a produção. Caldart (2012, p. 198) aponta que este conflito se dá pelo “[...] perfil a ser assumido pelo assentamento diante da lógica capitalista onde se insere.” Ou seja, o conflito reflete a decisão de aceitar a exploração do mercado, reproduzindo a mesma lógica da produção agrícola que gerou sua condição de sem-terra, ou buscar alternativas de uma inserção autônoma no mercado. Para Caldart (2012), a produção e o trabalho aparecem como formas pedagógicas sobre as quais se educam os sujeitos. Enquanto o MST avançava em sua organização e crescia em números e em organização, o capital neoliberal se difundiu pelo campo. Em 1990, o MST completou 6 anos e a ofensiva do capital no campo foi impulsionada pelo modelo da Revolução Verde, concebido como um pacote tecnológico. [...] a Revolução Verde foi concebida como um pacote tecnológico – insumos químicos, sementes de laboratório, irrigação, mecanização, grandes extensões de terra – conjugado ao difusionismo tecnológico, bem como a uma base ideológica de valorização do progresso. Esse processo vinha sendo gestado desde o século XIX, e, no século XX, passou a se caracterizar como uma ruptura com a história da agricultura (Pereira, 2012, p. 687). 1.1 A REVOLUÇÃO VERDE E O AGRONEGÓCIO A economia da Revolução Verde é configurada pela concentração ou posse da terra por corporações transnacionais; por fusões e aquisições no ramo das sementes, dominação da produção e distribuição de sementes transgênicas e agrotóxicos; pela ausência de autonomia dos produtores; e pelo avanço do capital financeiro no campo. São corporações agroindustriais guiadas pelo 33 tripé semente transgênica6, agrotóxicos e máquinas pesadas que acabam por consolidar uma estrutura de poder e dominação no meio rural denominada agronegócio7 (Dal Ri; Novaes, 2015). [...] o cultivo da terra pelos agricultores com base na fertilização do solo pela matéria orgânica realizado por milênios foi sendo substituído pela utilização de substâncias químicas, orientada por técnicos e vendedores, levando à adubação química industrial. A seleção de variedades vegetais, realizadas desde o início da agricultura, passou a ser controlada em laboratórios, com a seleção de linhagens vegetais que passaram a ser chamada de variedades ‘melhoradas’. Também ocorreram transformações da matriz energética de produção, com a introdução do motor de combustão interna, no lugar da tração animal, fonte de energia de base renovável da agricultura tradicional camponesa. Foram modificações radicais e que transformaram a base da agricultura: o conhecimento milenar prático do próprio agricultor foi substituído pelo conhecimento científico; os ciclos ecológicos locais, pautados nos recursos endógenos, foram substituídos por insumos exógenos industriais; o trabalho que era realizado em convivência com a natureza foi fragmentado em partes – agricultura, pecuária, natureza, sociedade –, e cada esfera passou a ser considerada em separado, quebrando-se a unidade existente entre ser humano e natureza (Pereira, 2012, p. 688). A Revolução Verde é um reflexo da economia política e desencadeia a concentração de terras; o aumento da mercantilização e proletarização do campo; o aumento do desemprego no campo; a degradação dos solos; o comprometimento da qualidade e quantidade dos recursos naturais; a devastação das florestas e campos nativos; o empobrecimento da diversidade genética dos cultivares, plantas e animais; a contaminação da água e dos alimentos consumidos pela população; o aumento das alergias, mortes e invalidez; dentre outras consequências (Dal Ri; Novaes, 2015). Na atualidade, com a ajuda da mass media, o agronegócio tem ganhado popularidade e papel de destaque quando o assunto é o campo. A campanha publieditorial Agro é tech, agro é pop, agro é tudo, desenvolvida e propagada pela Rede Globo de Televisão, desde junho de 2016, dissemina a ideologia do agronegócio como a forma moderna e correta de se viver o campo. 6 7 Plantas geneticamente modificadas (Augusto, 2012). Discorremos sobre o agronegócio no capítulo 2. 34 Contudo, estudos, como o de Santos et. al. (2019), afirmam que o agronegócio é o responsável por um aumento significativo da desigualdade social e econômica na zona rural e pelo desencadeamento de problemas de saúde de consumidores e de agricultores. Além disso, o agronegócio tem sido o grande responsável pela redução dos recursos naturais, por conta da poluição dos rios e da degradação do solo. Ainda assim, o agronegócio se mantém como um dos setores mais dinâmicos da economia brasileira, amplamente apoiado pelos governos brasileiros. Fato significativo é que o agronegócio possui representantes diretos e indiretos no Senado e na Câmara dos deputados, conhecidos como Frente Parlamentar da Agropecuária (FPA) ou bancada ruralista que, em 2018, contou com 207 parlamentares, o que representa um percentual de 40%. Essa porcentagem significativa de representantes do agronegócio defende políticas de apoio ao setor e atua para barrar temas como reforma agrária, legislação ambiental, conservação do meio ambiente e demarcação de terras dos povos originários, dentre outros (Santos et. al., 2019). Apesar de na história do Brasil não ter tido um governo que se preocupasse com a questão agrária a ponto de resolvê-la, o governo de Jair Messias Bolsonaro, eleito em 2018, foi uma ameaça a qualquer movimento de luta, fosse ele indígena, quilombola, camponês, negro, feminista etc. No caso dos conflitos no campo, os dados são impressionantes. De acordo com a CPT (2021)8, foram documentadas e sistematizadas 1.576 ocorrências de conflitos por terra em 2020 no Brasil, o maior número registrado desde 1985, quando a CPT passou a documentar e contabilizar os casos. Os números se tornam ainda mais alarmantes se levarmos em conta que em 1985 o Brasil havia acabado de sair da ditadura civil-militar e, portanto, enfrentava uma época de embates contínuos. Os números de 2020 superam em 25% os conflitos de 2019 e 57,6% dos conflitos de 2018. Ao todo, 171.625 famílias estiveram envolvidas nesses conflitos, que se referem a casos de pistolagem, expulsões, despejos, ameaças de expulsão, ameaça de despejo, invasão, destruição de roças, casas e bens (CPT, 2021) e assassinatos. 8 Disponível em: https://www.cptnacional.org.br/publicacoes/noticias/conflitos-no-campo/5717-oestado-do-para-lidera-o-ranking-de-ocorrencias-de-conflitos-de-terra-no-brasil-em-2020. Acesso em: 02 ago. de 2021. 35 Em 2020 foram 1.608 conflitos, dentre os quais 62,5% ocorreram na Amazônia Legal, contabilizando ao todo 1.001. A CPT denunciou um aumento da violência contra grupos e comunidades camponesas, com execuções judiciais de reintegração de posse suspensas. Só no estado do Pará, em 2020, foram 5.218 famílias vítimas de grilagem, um aumento de 175% em relação a 2019, quando foram registrados 1.896 casos. De acordo com Silva (2019), diversos casos de ameaças, agressões psicológicas e físicas, prisões, torturas e assassinatos de Sem Terra, em especial de lideranças, foram registrados na história do MST, além de invasão e destruição de acampamentos, assentamentos e outras instalações. O Brasil é conhecido internacionalmente pelas violações dos Direitos Humanos de lutadores sociais, em especial de lideranças vinculadas a movimentos sociais de lutas pelo direito à terra, que é mais amplo que a posse da terra, e de defesa da natureza em perspectivas críticas. Há registros de diversas vítimas de ameaças ou de efetivas agressões físicas e, em diversos casos, de assassinatos, seja por integrantes das forças oficiais, seja por pistoleiros a serviço especialmente de grandes proprietários de terras. Desde o surgimento do Movimento – sem desconsiderar que não é uma exclusividade desse período – registram-se diversas medidas governamentais de menor repercussão que afetam as classes trabalhadoras, especialmente dos trabalhadores rurais, assentados da reforma agrária ou não. As mudanças de táticas do MST impactam na educação, considerada indissociável de suas lutas, em especial pelo acesso à terra e por outras demandas do Movimento, sejam as mais imediatas e pontuais, sejam as mais amplas e mediatas (Silva, 2019, p. 243). Se em outros governos, o Movimento precisou lutar para inserir a discussão da reforma agrária na agenda política, durante o período de mandato do Governo Bolsonaro, grandes inimigos da reforma agrária receberam importantes cargos no governo, o que significou uma grande reviravolta para os movimentos populares. Ricardo Salles e Nabhan Garcia9, por exemplo, são representantes de 9 Ricardo Salles, advogado, tentou se eleger deputado federal com uma campanha que insinuava o uso de balas de pistola para conter o MST e, após isso, foi convidado para ser Ministro do MeioAmbiente. Atualmente está sendo investigado por retirada e venda ilegais de madeiras de florestas do país. Luiz Antônio Nablan Garcia, ruralista, presidiu a conservadora União Democrática Ruralista (UDR) e foi indicado para a secretaria especial de Assuntos Fundiários do Ministério da Agricultura 36 grandes proprietários e do agronegócio, tais como a poderosa Confederação da Agricultura e Pecuária (CNA) e a União Democrática Ruralista (UDR) de Nabhan Garcia. Ricardo Salles foi nomeado ministro do Meio Ambiente e, em reunião ministerial do dia 22 de abril de 2020, tornada pública pelo Superior Tribunal Federal (STF), afirmou que o momento de pandemia era propício para passar a boiada, se referindo à possibilidade de aproveitar a calamidade sanitária no país e a atenção da mídia para os casos de Covid-19 e deliberar medidas em favor do agronegócio. Em junho de 2021, após a abertura da Comissão Parlamentar de Inquérito da Covid-19, Salles foi exonerado. Entre 2016 e 2017, o governo Temer destinou R$ 183,8 bilhões de créditos aos grandes produtores rurais para o financiamento de suas atividades, e para a linha de crédito do Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (PRONAF) a verba programada para os anos de 2017 a 2020 foi de R$ 30 bilhões (Santos et. al., 2019), fato que demonstra como os grandes produtores são beneficiados em detrimento da Agricultura Familiar. A campanha Agro é pop, agro é tech, agro é tudo dissemina a ideia de que os números do agronegócio são positivos para o país, contudo, o que ocorre é exatamente o contrário. De acordo com Santos et. al (2019), a agricultura de base familiar representa 74% da mão de obra no campo e é responsável por 70% dos produtos agrícolas colocados no mercado de alimentos do país, ainda que possua a menor parcela de terras agricultáveis do território nacional, somando apenas 24,3%. Esses dados mostram a disparidade entre o crédito concedido a ambos os setores e a importância de cada um deles para o abastecimento do mercado interno, além de demonstrar o processo de invisibilidade da agricultura familiar que ocorre pela desnaturalização do modo de vida e produção dos camponeses, propagando as ideias de uma agricultura familiar arcaica ao mesmo tempo em que propaga o agronegócio como produtor de mercadorias moderno e dinâmico (Santos et. al., 2019). Além da campanha já citada, emissoras de TV não só difundem como elaboram o conteúdo que objetiva valorizar o agronegócio no país, são exemplos, o Canal do Boi, Canal Rural, Canal Terra Viva e o programa Globo Rural da Rede Globo de Televisão que surgiram entre o final do século XX e início do século XXI (Santos et. al., 2019). do Ministério da Agricultura, também a favor de acabar com o MST utilizando armas de fogo. 37 A diferença entre agricultura familiar e agronegócio é explicada por Alentejano (2012). Para o autor a diferença está no entendimento do agro. Para o agronegócio a terra é uma mercadoria e pode ser transacionada livremente. Já a agricultura entende a terra como condição para existência. Em 2020, enquanto a pandemia de Covid-19 atingiu a economia, a política, a natureza e impôs efeitos severos sobre a vida dos trabalhadores mais pobres, o MST lançou um plano com medidas emergenciais para a construção da reforma agrária, com propostas de democratização do acesso à terra, distribuição de riquezas e defesa dos direitos dos povos do campo e da floresta. A proposta tem como um dos seus eixos centrais assentar as famílias acampadas, desempregadas e das periferias das cidades e, para isso, requer a desapropriação de latifúndios improdutivos, especialmente nas áreas próximas aos centros urbanos. Como aponta Stropasolas (2020), durante a pandemia de Covid-19, em 2020, no Paraná, 70 acampamentos do MST abrigavam 10 mil famílias, dentre os quais 25 enfrentavam o risco de despejo, contudo, foi no Paraná que o MST teve uma das atuações mais expressivas na distribuição de alimentos para a população mais vulnerável. De março a setembro de 2020 foram distribuídas mais de 155 mil toneladas de alimentos agroecológicos. Para o autor, isso deixa visível o paradoxo entre a produção de alimentos da agricultura familiar e a produção do agronegócio. Corporações detêm o controle financeiro e impõem o agronegócio e a monocultura como modelos de produção. Essas empresas ocupam extensões de terra e usam agrotóxicos que provocam desequilíbrio e desgaste da biodiversidade (Dal Ri, 2019). O MST trabalha na contramão do agronegócio e, em 2014, apresentou o Programa Agrário do MST, que aponta como alternativa viável a Reforma Agrária Popular (RAP), que deve começar com a democratização da propriedade da terra e que deve organizar a produção de uma forma diferente, ou seja, deve priorizar a produção de alimentos agroecológicos para o mercado interno e culminar com um modelo econômico que distribua renda e respeite o meio ambiente. A reforma agrária é pauta em diversos países do mundo. Segundo Dal Ri (2019), é um tema redivivo, mas não apenas por causa do MST ou de outras organizações congêneres e sim porque grande parte dos trabalhadores não se conforma com o modelo da Revolução Verde e com o agronegócio. 38 1.2 REFORMA AGRÁRIA POPULAR O programa de reforma agrária do MST (2014) é popular e analisa as condições do campo na atual conjuntura frente ao desenvolvimento do capitalismo e atualiza os objetivos do Movimento. O projeto requer mudanças nas formas de organização da produção e, por conseguinte, nas relações de trabalho estabelecidas no campo, colocando como foco a produção agroecológica, tendo em vista a produção de alimentos saudáveis para a população brasileira. São mudanças estruturais no sentido de construir uma matriz produtiva que resista ao agronegócio. O programa da RAP (MST, 2014) incentiva o desenvolvimento de uma produção agrícola limpa, sem uso de agrotóxicos e, portanto, com planejamento e modelo tecnológico com enfoque agroecológico, que implica o uso dos recursos naturais de forma a garantir o bem de toda a população, sem prejudicar a terra, desperdiçar ou contaminar água, utilizar-se de queimadas etc., além de incentivar a formação de associações e cooperativas criadas e geridas pelos próprios trabalhadores. De acordo com Sapelli, Leite e Bahniuk (2019), o MST já possui experiências neste sentido, apesar de a maioria ainda estar submetida às relações com cooperativas que não atuam nessa perspectiva. Organizadas pelo MST no Paraná, os autores destacam a Cooperativa de Produção Agropecuária Vitória Ltda (Copavi), no Assentamento Santa Maria, em Paranacity, e a Cooperativa de Trabalhadores Rurais e Reforma Agrária do Centro-Oeste do Paraná Ltda (Coagri). Para o MST (2014), não cabe discutir a reforma agrária sem antes lutar por um modelo agrícola de produção. Para o MST, a produção agroecológica é o modelo de produção escolhido. A agroecologia pode ser considerada como um conjunto de conhecimentos baseados em saberes e valores culturais dos povos originários e camponeses que são incorporados aos princípios ecológicos e às práticas agrícolas (Guhur; Toná, 2012). No Brasil, a partir de 1989, o termo agroecologia passou a ser utilizado com a publicação do livro Agroecologia: as bases científicas da agricultura alternativa, de Miguel Altieri (1989). Nos anos de 1990, as organizações não governamentais passaram a disseminar o termo e no final dos anos de 1990 39 e início dos anos 2000, movimentos sociais populares do campo incorporaram o debate agroecológico à agenda. A agroecologia orienta as práticas de aproveitamento de energia solar através da fotossíntese, manejo do solo como um organismo vivo, manejo de processos ecológicos, cultivos múltiplos e sua associação com espécies silvestres, com o objetivo de elevar a biodiversidade dos agro ecossistemas e para desenvolver uma agricultura sustentável e produtiva, contribuindo para um novo paradigma produtivo (Guhur; Toná, 2012). Na atualidade, a concepção de agroecologia está se ampliando, principalmente com a prática de movimentos sociais, que a percebem, além de técnica, como “[...] parte de sua estratégia de luta e de enfrentamento ao agronegócio e ao sistema capitalista de exploração dos trabalhadores e da depredação da natureza” (Guhur; Toná, 2012, p. 65). No caso do MST, conforme Betin (2019), cada vez mais assentados e acampados incorporam o conceito de agroecologia e conseguem o selo de certificação de produtos orgânicos para suas produções, contudo, é importante destacar que a maioria dos integrantes do MST trabalha com agrotóxicos, pois foi assim que aprendeu e se acostumou. Uma mudança nesse sentido requer aprendizado e técnica, o que desemboca em uma tarefa educativa maior para o MST. Na atualidade o MST (2021) calcula que mais de 50 mil famílias Sem Terra implementam práticas agroecológicas. A disseminação de produtos produzidos pelo MST acontece por meio de cooperativas e a capacitação técnica é prioridade para atender essa demanda. Dessa forma o Movimento faz parcerias educacionais, como, por exemplo, a parceria com a espanhola Mondragon, uma das maiores cooperativas do mundo (Betin, 2019). A produção do MST o coloca em patamares internacionais. No Rio Grande do Sul, por exemplo, o Instituto Riograndense do Arroz (IRGA), aponta que os assentados do MST são os maiores produtores de arroz orgânico da América Latina (Betin, 2019). A produção é vendida para empresas como Solstbio para ser exportada a países como Estados Unidos, Alemanha, Espanha e Nova Zelândia, além de parte ser comercializada em feiras e mercados sob o selo Terra Livre (Betin, 2019). Em São Paulo, a principal referência é a loja Armazém do Campo, que comercializa produtos vindos dos assentamentos e que serve como vitrine do 40 Movimento para a classe média urbana. Além disso, por meio de cooperativas, os produtos orgânicos produzidos pelo Movimento chegam à merenda de várias escolas públicas municipais e estaduais, ação sancionada pela lei 11.947/2009 (Brasil, 2009) que estabelece que 30% dos recursos financeiros devem ser utilizados na aquisição de gêneros alimentícios diretamente da agricultura familiar e do empreendedor familiar rural ou de suas organizações (Betin, 2019). O Movimento alcançou patamares significativos como produtor, mas a produção orgânica não acontece em todos ou em grande parte dos acampamentos e assentamentos do MST, contudo, o Movimento realiza grandes esforços nesse sentido. O programa da RAP se vincula a uma proposta de mudança não só da produção de alimentos, mas da produção da vida, como é o caso da educação, pois ao mesmo tempo em que empreende ações de pressão e negociação com o governo para obtenção do acesso à terra, o Movimento cria programas voltados para a formação e qualificação técnica de seus membros. APONTAMENTOS SOBRE AS LUTAS PELA REFORMA AGRÁRIA A necessidade ou não de uma reforma agrária para o país é uma discussão que sempre esteve em voga nas agendas de governo do país. Em 1985, durante o governo de José Sarney, abriu-se expectativa para a realização de uma reforma agrária com o Plano Nacional da Reforma Agrária que previa a aplicação do Estatuto da Terra10 e o assentamento de 1,4 milhão de famílias (MST, 2021). Em novembro de 1989, o Brasil realizou sua primeira eleição direta pós-ditadura e Fernando Collor de Melo foi eleito presidente. Antes de sofrer um processo de impeachment, em 1992, em seu curto mandato, Collor intensificou a repressão contra os Sem Terra. O vice-presidente, Itamar Franco, assumiu o cargo e durante seu governo foi aprovada a Lei Agrária (Lei 8.629) (Brasil, 1993) que reclassificava as propriedades rurais de acordo com a regulamentação da Constituição Federal de 1988 (MST, 2021). Durante o governo de Fernando Henrique Cardoso (FHC), eleito em 1994, o êxodo rural aumentou, pois os bancos atuavam contra os pequenos 10 Lei nº 4.504, de 30 de novembro de 1964. 41 agricultores endividados. Ainda no governo FHC aconteceram dois dos maiores massacres do Brasil na segunda metade do século XX: Corumbiara, em Rondônia em 1995, e Eldorado dos Carajás, no Pará, em 1996. Nesse período, foram divulgados dados sobre os assentamentos implementados. Contudo, o MST (2021) destaca que os assentamentos que o governo FHC divulgou como sendo criados durante o seu governo, na verdade foram assentamentos clonados de governos anteriores e governos estaduais. Ao final do mandato, nem mesmo o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) sabia quantos assentamentos foram criados na época. Em 1997, o MST iniciou a Marcha Nacional por Emprego, Justiça e Reforma Agrária. O objetivo era chegar à cidade de Brasília no dia 17 de abril, exatamente um ano após o Massacre de Eldorado dos Carajás. Três colunas partiram de diferentes pontos do país, uma com integrantes dos estados de São Paulo, Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul, com aproximadamente 600 pessoas; outra com aproximadamente 400 pessoas vindas de Minas Gerais, Espírito Santo, Rio de Janeiro e Bahia, partindo da cidade de Governador Valadares; e a terceira com militantes do Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Rondônia, Goiás e Distrito Federal, com 300 pessoas. Cada percurso foi de aproximadamente 1000 km, percorridos a pé. Quando chegaram a Brasília, os Sem Terra foram recebidos por cerca de 100 mil pessoas. A marcha tinha por objetivo pedir a punição dos responsáveis pelo massacre e celebrar o primeiro Dia Internacional de Luta por Reforma Agrária. Nesse mesmo dia, a exposição de fotos de Sebastião Salgado11 foi inaugurada em todos os estados do Brasil e em mais de 100 países do mundo, e na inauguração foram lançados o livro Terra e o CD de Chico Buarque que acompanha o livro12. Em 1999, a grande mobilização foi a Marcha Popular pelo Brasil, coordenada pela Central Única dos Trabalhadores e pelo MST, dentre outras 11 12 Sebastião Salgado é um fotógrafo brasileiro reconhecido internacionalmente por seu trabalho documental. Fugiu da ditadura no Brasil em 1969 e voltou 10 anos depois. Suas fotografias receberam reconhecimento em diversos lugares do mundo. Disponível em https://brasil.elpais. com/brasil/2019/05/20/eps/1558350781_612997.html. Acesso em: 18 ago de 2021. Os três artistas doaram todos os direitos autorais deste trabalho ao MST. O dinheiro arrecadado auxiliou na construção da Escola Nacional Florestan Fernandes, uma escola de formação política, localizada no município de Guararema, em São Paulo. 42 organizações. De acordo com o MST (2021), cerca de mil trabalhadores caminharam até Brasília, em defesa do Brasil, por terra, trabalho e democracia. Foi um ano negativo para os Sem Terra (MST, 2021), pois cerca de 942 pequenas propriedades desapareceram, ou seja, perderam espaço para o agronegócio. No ano 2000 foi realizado o IV Congresso Nacional do MST, com mais de 11 mil pessoas vindas do Brasil e do mundo. Os dados apontam que nos anos 2000, o MST atuava em 23 estados do país e já havia alcançado 1,5 milhão de pessoas organizadas, 350 mil famílias assentadas e 100 mil vivendo em acampamentos. O MST computava 1.500 escolas públicas nos assentamentos e 150 mil crianças matriculadas, com cerca de 3.500 professores e professoras. Luiz Ignácio Lula da Silva foi eleito presidente da república do Brasil em 2002. De acordo com o Movimento (2021), havia uma forte expectativa por parte dos Sem Terra de que a reforma agrária finalmente se tornasse uma realidade. No entanto, o modelo agrário-exportador se acentuou e, para o MST (2021), o território do país foi dividido em grandes extensões de terra para cultivo de monoculturas, como soja, cana-de-açúcar, celulose e pecuária extensiva. Incentivada pelo governo Lula, a aquisição de terra por estrangeiros atingiu níveis nunca antes registrados e o agronegócio, por meio do financiamento público, cresceu, explorando a terra, os recursos naturais e o trabalho. Em 2004 aconteceu o Massacre de Felisburgo, em Minas Gerais, no Acampamento Terra Prometida. Na época, a fazenda estava ocupada há dois anos pelo MST. Adriano Chafik, dono da fazenda Nova Alegria, invadiu o acampamento com 17 pistoleiros atirando aleatoriamente, ateando fogo nos barracos, plantação e escola. Cinco homens morreram13 e vinte pessoas ficaram gravemente feridas. As duzentas famílias perderam suas casas e a escola durante o ataque. Em 2014, o Brasil tinha Dilma Rousself como presidenta e o MST realizou o VI Congresso Nacional, em Brasília, sob a consigna Lutar, Construir Reforma Agrária Popular! representando a síntese das tarefas, dos desafios e do papel do Movimento. Aproximadamente 16 mil pessoas de 23 estados do Brasil e Distrito Federal participaram, além de cerca de 1.000 crianças Sem Terrinha. Com o passar do tempo, o MST foi ganhando notoriedade por várias 13 Iraquia Ferreira da Silva, 23 anos; Miguel José dos Santos, 56 aos; Juvenal Jorge da Silva, 65 anos; Francisco Ferreira Nascimento, 72 anos; Joaquim José dos Santos, 48 anos, trabalhadores do campo. 43 razões, dentre as quais Dal Ri (2019) destaca a audácia com que tem enfrentado as políticas neoliberais, por suas táticas e métodos de luta, por sua presença em todo o território nacional, por suas características de movimento altamente organizado e pelos resultados que apresenta na educação e na produção agrária. Essa organização bastante complexa possui centros educativos, como, por exemplo, a Escola Nacional Florestan Fernandes e o Instituto Josué de Castro; cooperativas, como a Cooperativa de Produção Agropecuária Vitória Ltda (Copavi) e a Cooperativa de Trabalhadores Rurais e Reforma Agrária do Centro-Oeste do Paraná Ltda (Coagri), ambas no estado do Paraná; além de firmar ações para o fortalecimento da educação pública dos acampamentos e assentamentos. O Movimento organiza encontros, marchas, congressos e cuida da comunicação por meio de suas revistas, jornais, site oficial, editoras, rádios, páginas na internet etc. E, como resultado dessa atuação multilateral, o MST se organiza de forma complexa e articulada, subdividida e com instâncias de representação em níveis local, regional-estadual, estadual, regional e nacional (Fernandes, 2012). De acordo com Carter (2010, p. 308), a luta na terra amplia o horizonte político do MST e acarreta mudanças qualitativas, que informam e complementam a análise de classe do Movimento. “A luta pela reforma agrária passou a ser compreendida como parte da luta por uma transformação maior”. As ações do MST extrapolam os interesses locais da luta pela terra e incorporam reivindicações em escala planetária, tais como, combate às sementes transgênicas, desenvolvimento sustentável, agroecologia, biodiversidade, educação, saúde, produção, luta contra o aquecimento global etc., além de incorporar temas, tais como, a construção de um projeto popular que enfrente o neoliberalismo, a defesa do ensino público de qualidade, a articulação de movimentos sociais do campo e da cidade, a luta pela preservação ambiental etc. (Belo; Pediowski, 2014). Esse é um processo que acontece de forma dialética, pois ao lutar pelo acesso à terra, o MST gera novas demandas que, por sua vez, extrapolam o Movimento e requerem inovações. A luta pela terra traz importantes conquistas, mas traz também novos desafios, o que para Carter (2010) marca o passo da luta pela terra à luta na terra. No que diz respeito à educação, o MST conta com o Coletivo Nacional 44 de Educação, composto pelos Coletivos Estaduais de Educação. O Coletivo Nacional é composto por representantes estaduais e objetiva lutar por políticas públicas para exigir do Estado o direito a escolas e à educação. 45 CAPÍTULO II O MST, A EDUCAÇÃO E O TRABALHO Quando tratamos a educação, em seu sentido amplo, é importante termos em mente que o termo diz respeito às várias instâncias da vida social, não se restringindo apenas à escola e à família. Ao contrário, a educação ocorre no encontro dessas instâncias com outras, tais como, a mídia, a religião, grupos, partidos políticos, movimentos sociais etc. Os processos educativos são definidos a partir de interesses sociais, econômicos, étnicos, religiosos e políticos (Sapelli; Leite; Bahniuk, 2019). Aníbal Ponce, em Educação e luta de classes (2010), faz uma análise histórica sobre as mudanças nas formas de educar as pessoas desde as comunidades primitivas até as tendências educacionais contemporâneas14. Nas comunidades primitivas a educação acontecia de forma espontânea e integral e não existia uma instituição destinada a ensinar e nem pessoas específicas designadas a desempenhar essa função. As crianças aprendiam cotidianamente, nas tarefas, nas vivências e nas relações. A educação era derivada da estrutura homogênea do ambiente social e tinha ligação com os interesses comuns do grupo. À 14 “Coletividade pequena, assentada sobre a propriedade comum da terra e unida por laços de sangue, os seus membros eram indivíduos livres, com direitos iguais, que ajustaram as suas vidas às resoluções de um conselho formado democraticamente por todos os adultos. Homens e mulheres, da tribo. O que era produzido em comum era repartido com todos, e imediatamente consumido. O pequeno desenvolvimento dos instrumentos de trabalho impedia que se produzisse mais do que o necessário para a vida cotidiana e, portanto, a acumulação de bens” (Ponce, 2010, p. 17). De acordo com Oliveira (1987, p.11), “As formações primitivas correspondem em grande parte àquelas formações que constituem a base do Neolítico, compreendidas, no entanto, quanto ao avanço de suas condições de reprodução da vida material. São conhecidas também como comunidades tribais, estudadas por Marx e Engels como representantes da última etapa das sociedades sem classes, dotadas de ‘formas primitivas de economia’ (caça, pesca, criação, primeiras formas de agricultura)”. 47 medida que a sociedade se dividiu em classes, essa educação se modificou. A divisão do trabalho se ampliou e aos poucos as tarefas se dividiram entre os que administravam/organizavam o trabalho e os que executavam o trabalho. Os excedentes produzidos possibilitaram as trocas e o trabalho escravo. Com o passar do tempo, a função de organizador se tornou hereditária e a propriedade comum passou a constituir posse das famílias que a administravam e defendiam. Essas famílias se tornaram mercadoras de produtos e de escravos. Foi nesse momento histórico que, de acordo com Ponce (2010, p. 26), a educação passou a ser dicotômica e “[...] os fins da educação deixaram de estar implícitos na estrutura total da comunidade”. Com uma nova organização social, os conhecimentos necessários para manter a estrutura passaram a ser propriedade de famílias. O saber passou a ser hereditário e as funções foram elevadas ao nível de patrimônio. A educação que acontecia de modo coletivo, passou a acontecer de diferentes formas e, sempre, de acordo com o lugar que se ocupava na produção (Ponce, 2010). Com o passar do tempo a escola se tornou a responsável por disseminar o conhecimento e depois de institucionalizada passou a difundir e reforçar os privilégios de uma classe sobre a outra, tendo como dogma pedagógico a conservação do status quo. Na análise de Ponce (2010), espartanos, atenienses, gregos, romanos etc., se utilizaram de formas dicotômicas de educar a população, cada qual de acordo com suas necessidades e de acordo com seus objetivos, pois a classe dominante tem consciência do seu papel social e para se manter dominante adapta a educação aos fins que objetiva. A classe dominante tenta fazer “[...] com que a massa laboriosa aceite essa desigualdade de educação como uma desigualdade imposta pela natureza das coisas, uma desigualdade, portanto, contra a qual seria loucura rebelar-se” (Ponce, 2010, p. 36). Nesse sentido, a educação desempenha importante papel, pois inserida na sociedade capitalista, inevitavelmente tem o caráter classista. Em se tratando da educação escolar, Vieitez e Dal Ri (2017, p. 175) apontam que várias funções são desempenhadas pela escola capitalista, dentre as quais se destacam a preparação da força de trabalho para o mercado, a legitimação da ordem social por meio da ideologia disseminada e outros mecanismos e a transmissão de conhecimentos culturais e científicos. Para os autores “A escola reproduz a estrutura social e ensina a cada indivíduo, de acordo com a origem de classe, o seu lugar na sociedade, até porque a escola 48 para os trabalhadores é uma e a escola para as elites é outra”. Isso significa que quando tratamos da educação formal precisamos levar em conta que os ideais pedagógicos de uma sociedade são pensados para atingir determinados objetivos pré-estabelecidos. Ou seja, não há neutralidade quando se trata de um projeto pedagógico. A educação acontece em várias instâncias da sociedade, mas a escola enquanto instituição de educação oficial é a principal instância de disseminação dos ideais pedagógicos da classe dominante em uma sociedade. Esses ideais são formulações pensadas e elaboradas para alcançar um determinado objetivo e caminham lado a lado com as relações de produção da sociedade em que está inserido (Dal Ri, 2004; Morissawa, 2001; Ponce, 2010). Não há dúvidas de que a escola possui um papel relevante na formação dos sujeitos que a compõem. É na escola que o conhecimento produzido historicamente deve ser disseminado, discutido e conhecido, contudo, essas não são as únicas funções sociais da escola no capitalismo. A educação oferecida pelo Estado às massas reproduz as condições de existência social, formando as pessoas para ocuparem postos ou lugares oferecidos pela estrutura social. Apesar disso, a escola não pode ser considerada a única e nem a principal responsável pela reprodução da ordem social e nem pode sozinha ser considerada capaz de transformar essa realidade, pois não se aprende ou se desenvolve socialmente apenas na escola (Santos et. al., 2021). Na sociedade capitalista, as práticas disciplinares ensinadas pela escola, para autores como Tragtenberg (1985), são orientadas para controlar o corpo do cidadão, por meio de exercícios de utilização do tempo, espaço, movimento, gestos e atitudes, buscando produzir corpos submissos e dóceis, práticas que ajudam a manter o status quo. Dessa forma, na escola, em menor escala, as relações de poder existentes na sociedade são reproduzidas, avançando em seu poder de dominação com punição e ensinamentos que desencadeiam a aceitação do que foi imposto (Santos et. al., 2021). A educação contemporânea, da forma como está caracterizada nos sistemas de ensino, é o resultado de uma evolução histórica que se encontra particularmente ligada ao desenvolvimento do modo de produção capitalista, da evolução da ciência e da cultura e da dinâmica conflituosa das classes sociais (Vieitez; Dal Ri, 2000, p. 14). 49 A partir da década de 1970 observa-se o aprofundamento da crise do capital em todo o mundo, marcada por uma intensidade que levou o capital a se reproduzir de forma destrutiva (Mészáros, 2002). A crise provocou elevados níveis de inflação e desemprego, reduzindo as taxas de crescimento econômico e diminuindo a acumulação do capital (Santos; Paixão, 2014). Com o objetivo de superar a crise, na década de 1980, a classe dominante empregou estratégias que alteravam o modelo de organização do trabalho e da produção, além de criar um conjunto de normas e valores sociais para aumentar a produtividade e a obtenção do lucro. Essas ações acabaram por orientar a forma de organizar o trabalho e a educação na sociedade atual. O trabalho se tornou mais alienado e explorado e a educação se tornou mercadoria, com a implementação de padrões empresariais ao plano educacional. Teve início um processo de reestruturação do capitalismo. Essa fase se caracterizou pela mundialização do capital que direcionou a edificação de novas formas de acumulação do capital e dos mecanismos que envolvem a sua regulamentação, introduzindo a informática e novas tecnologias ligadas à microeletrônica. Foi um processo consolidado por iniciativas conduzidas por corporações capitalistas, chancelado pelo Fundo Monetário Internacional (FMI) e pelo Banco Mundial (BM), com o objetivo de recuperar as taxas de lucros que foram abaladas pela crise. Nesse intermeio os países dependentes foram transformados em prestadores de serviços, transferidores de dinheiro a título de pagamento da dívida externa e de suas renegociações com os países centrais, redesenhando a geopolítica mundial (Santos; Paixão, 2014). No Brasil, durante o governo FHC, o BM passou a orientar as reformas educacionais no país e passou a difundir que por meio da educação é possível curar os males econômico-sociais como o desemprego, a pobreza e a exclusão (Batista, 2011). Assim como outros organismos de ação multilateral, o BM possui ideários que se difundem rapidamente. Esses organismos geralmente são instituições que formulam, recomendam, financiam e supervisionam as políticas educacionais dos países signatários, tendo por objetivo capacitar a força de trabalho para se adaptar de forma subalterna às reestruturações do capital, inclusive para a realização de atividades do setor informal (Batista, 2011). Dentre os organismos de ação multilateral mais atuantes destacamos as ações da Organização para a Educação, a Ciência e a Cultura das 50 Nações Unidas (UNESCO), Comissão Econômica para a América Latina (CEPAL), Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) e Organização Internacional do Trabalho (OIT) (Batista, 2011). São agências de cunho monetário, comercial, financeiro e creditício que formulam as recomendações para as políticas públicas para os países periféricos e semiperiféricos. Para os males como o desemprego, a pobreza e a exclusão, os ideários dessas instituições apontam a educação profissional, a qualificação, capacitação ou adestramento como soluções para os países periféricos, através do desenvolvimento das habilidades necessárias para moldar o trabalho flexível e adaptável (Batista, 2011). Nesse sentido, a escola toma um papel central, pois sob a égide das agências orienta as massas de acordo com o lineamento ideológico e as necessidades do capital, intervindo no PPP, no currículo, nas formas de gestão e organização da escola. As agências transformaram a educação em um negócio lucrativo e para o alcance dos objetivos inseriram mudanças na política e na economia mundial pela doutrina neoliberal. Uma das formas de atuação são as conferências realizadas para selar os acordos, tais como a Conferência Mundial sobre Educação para todos (1990), Conferência de Cúpula de Nova Délhi (Índia, 1993) e Cúpula Mundial de Educação para Todos (Dakar, 2000). No caso da Declaração de Jomtien, em 1990, foram 155 países representados por seus governantes que a subscreveram e a aprovaram, comprometendo-se em assegurar que a educação das crianças, jovens e adultos fosse de qualidade. O Brasil foi um dos países signatários com a maior taxa de analfabetismo do mundo e convidado a desenvolver ações para impulsionar as políticas educacionais ao longo da década, não apenas na escola, mas na família, comunidade, meios de comunicação, por meio do fórum consultivo coordenado pela UNESCO (Frigotto; Ciavatta, 2003). O Brasil aderiu às recomendações expedidas pela Conferência Mundial da Educação para Todos e outros eventos patrocinados pela Unesco e BM, e com isso as políticas educacionais passaram a ser orientadas por essas agências. Em 1999, ações que incidiam sobre a transferência de responsabilidade da oferta de políticas sociais da esfera pública para as instâncias de natureza privada foram desencadeadas. Essas ações possibilitaram que o Estado se afastasse de suas obrigações e repassasse verbas públicas às empresas de natureza 51 privada para cumprirem o papel que é do Estado (Adrião; Peroni, 2011). Mesmo com a Lei nº 9394/96 de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB) (BRASIL, 1996), que tem como um dos princípios a gestão democrática na escola, por exemplo, leis e decretos que apoiam, por inúmeras frentes ou vias, as parcerias público-privadas acabaram por interferir diretamente na autonomia das instituições educacionais e dos sistemas de ensino. Essas políticas públicas em educação atuam em benefício das agências em detrimento da autonomia da educação pública, deixando de lado os apontamentos dos que atuam na educação, como professores e diretores de escola. Ao aderir às recomendações das agências por meio das políticas educacionais nacionais, a escola passa a ser um espaço aberto à agenda do capital, que interfere, por meio dos empresários, deliberadamente na educação das mais variadas formas, inculcando nos alunos os seus dogmas e cultivando o status quo, direcionando o ensino para o trabalho assalariado e, na atualidade, para o empreendedorismo. O trabalho tem relação direta com a maneira como as pessoas se comportam e se organizam socialmente e tem participação ativa na consolidação da cultura dos povos. E assim como a educação, o trabalho não é atemporal, tampouco neutro. Em O capital, principal obra de Marx (2013), a categoria trabalho ganhou centralidade. Conforme o autor, é somente por meio do trabalho que o ser humano pode se constituir como ser social, pois por meio do trabalho o homem transforma a natureza e é transformado por essa ação. A ação do homem sobre a natureza é intencional e planejada, e isso o diferencia dos demais seres vivos. O homem planeja sua ação no campo das ideias e depois atua sobre a natureza para alcançar o que planejou. Nesse entremeio, através do trabalho no meio natural, o homem desenvolve técnicas e habilidades. E é nesse processo que se constrói como ser social (Marx, 2013). Mediando a relação entre homem e natureza, o trabalho desenvolve mudanças sobre a natureza e sobre o próprio homem. Essas mudanças, de geração em geração, se acumulam gradativamente e refinam as habilidades humanas e o desenvolvimento das técnicas e conhecimentos, possibilitando a transformação do meio social e natural. Friederich Engels (1876) em “O papel do trabalho na transformação 52 do macaco em homem” aponta como o trabalho desempenhou um papel fundamental nas mudanças físicas e cerebrais que ocorreram no desenvolvimento do ser humano, desde sua forma mais primitiva. Além de uma fonte de riqueza, o trabalho é “[...] a condição básica e fundamental de toda a vida humana. E em tal grau que, até certo ponto, podemos afirmar que o trabalho criou o próprio homem” (Engels, 1876, p.5). O autor detalha como por meio do trabalho o ser humano passou a andar ereto, deixando as mãos livres para adquirir destreza, habilidade e flexibilidade para criar ferramentas. Os órgãos dos sentidos foram desenvolvidos à medida que o cérebro se desenvolvia, com clareza de consciência, capacidade de abstração e de discernimento cada vez maiores, num desenvolvimento gradual, chegando ao ponto de o homem ser capaz de construir um importante elemento: a sociedade. Mudanças na vida em sociedade são recorrentes na história. A caça e a pesca, o uso do fogo e a domesticação de animais são processos que permitiram que o homem pudesse viver em qualquer clima, espalhando-se pela superfície da Terra. Essa dinâmica de vida do homem gerou novas demandas de trabalho e com elas novas atividades que levaram o homem a aprender a executar operações mais complexas e a se aperfeiçoar a cada geração. Caça, pesca, agricultura, fiação, tecelagem, elaboração de metais, olaria, navegação, comércio e os ofícios, junto às artes e às ciências são elementos que foram agregados ao trabalho. A sociedade passou a ser dominada por essas criações e o rápido progresso deixou de ser atribuído ao trabalho das mãos e passou a ser atribuído à cabeça, ao desenvolvimento do cérebro (Engels, 1876). Os homens levaram milhares de anos para aprender que suas formas de produzir acarretariam consequências aos ambientes natural e social. Nos séculos XVII e XVIII, homens trabalharam para criar a máquina a vapor sem saber que este instrumento subverteria as condições sociais (sobretudo na Europa) e concentraria a riqueza nas mãos de uma minoria, privando a maioria da população de toda a propriedade, permitindo que a burguesia dominasse social e politicamente o proletariado (Engels, 1876). Quando Marx (2010, 2013) escreveu sobre o trabalho ontológico, tratou do trabalho mediador entre o homem e a natureza, que humaniza o homem e o transforma em um ser social. A sua análise do trabalho na sociedade capitalista, sob as bases da propriedade privada, aponta um trabalho para a 53 produção de mercadorias, com o único objetivo de obter lucro a partir da exploração da classe trabalhadora. Nesse contexto, de acordo com o autor, o homem se separa da verdadeira essência do trabalho e é levado a vender sua força de trabalho, que se transforma em mercadoria. Na forma como a sociedade capitalista está organizada, o trabalho é um instrumento de opressão e desumanização e o trabalhador se torna escravo de seu trabalho, possuindo uma relação de estranhamento com ele. Para pensarmos o trabalho na sociedade contemporânea precisamos refletir sobre os elementos centrais do processo de transformações do capitalismo financeiro e mundializado que, de acordo com Raposo (2020), são a precarização e a superexploração do trabalho. Laudares (2006), por exemplo, afirma que com as políticas neoliberais implementadas na década de 1990, o trabalhador foi inserido numa nova concepção de empregabilidade e foi colocado como responsável pelo sucesso da empresa em que trabalha e que somente dele depende a permanência no seu emprego ou ocupação. É o exemplo de uma sociedade em que o dono da empresa lucra e o trabalhador, além de produzir, age para que a empresa obtenha sucesso e assim possa manter o seu salário. Ao tratar o processo de terceirização das grandes indústrias brasileiras, Lima (2011) afirma que a terceirização foi o meio pelo qual se reduziu o quadro do setor produtivo e muitos trabalhadores foram despejados do mercado de trabalho formal, fazendo crescer o trabalho autônomo que assumiu um papel central na condução do empreendedorismo no país. A análise de Raposo (2020) traz novos elementos para essa discussão, o autor afirma que, na atualidade, o trabalho se manifesta precarizado e super explorado através de novas modalidades de terceirização e flexibilização do contrato de trabalho, que possibilita o trabalho monitorado e controlado por novos dispositivos. Abílio (2020) corrobora a análise e afirma que, principalmente na América Latina, o trabalho está caracterizado por informalidade, terceirização, pela extensão do tempo de trabalho e pelo rebaixamento do valor da força de trabalho. A precarização do trabalho coloca o trabalhador numa relação em que, sem vínculo empregatício e sem qualquer direito trabalhista, ele passa a assumir os riscos de sua ocupação, como os motoristas de aplicativo, 54 que arcam com as despesas e dividem os lucros com o dono do aplicativo. É a uberização do trabalho. Com essa breve análise é possível afirmar que o capitalismo não comporta apenas o assalariamento e vem superando suas formas de exploração do trabalhador, com a precarização do trabalho de forma rápida e violenta. No contexto de reconfiguração das forças de subordinação do homem ao capital, o Estado aparece como regulador e implementador de políticas socialmente compensatórias. Nunca houve pleno emprego no capitalismo, que necessariamente requer a existência e manutenção de um exército de reserva. Mas Lisboa (1999) considera novas a potência e a generalidade que acentuam as tendências de exclusão, pois a reestruturação industrial trouxe à tona a ideia de que pior do que a miséria de ser explorado pelos capitalistas é a desgraça de não ser explorado de forma nenhuma e ser um excluído da economia. Ao mesmo tempo em que o capitalismo se renova, guarda a sua essência. “O que temos assistido não é exatamente o desaparecimento do trabalho, mas sua mutação” (Lisboa, 1999, p. 57). A precarização do trabalho é um fenômeno que se acentua desde a década de 1970 em resposta à crise estrutural do capital. Em 2020, a emergência da pandemia de SARS-CoV-2 (Covid-19) agravou, também, a questão da saúde dos trabalhadores. Estudos, como o de Souza (2021), constatam que as dimensões da precarização do trabalho se acentuaram nesse período estabelecendo vínculo com a pandemia. A precarização, o home office e a uberização são determinados por Souza (2021) como componentes que se destacam na conjuntura econômico-política. No caso da pandemia de Covid-19 os trabalhadores precisaram criar formas de garantir o seu sustento e a grande maioria se submeteu a formas de trabalho precarizado. Com base em documentos de órgãos oficiais brasileiros e de instituições de defesa do trabalho, o autor (Souza, 2021) analisou as principais decisões ou acontecimentos relacionados ao complexo do trabalho no estágio inicial da pandemia. No mundo do trabalho uma das principais repercussões está relacionada à questão do emprego. O Governo Federal implementou Programas que aparentemente foram criados para beneficiar e garantir o emprego, contudo, serviram para uma maior precarização do trabalho no país. 55 Uma das estratégias foi a Medida Provisória 927, de 22 de março de 2020, que permitiu a suspensão dos contratos de trabalho por quatro meses sem pagamento dos salários, além do prolongamento da carga horária trabalhada, sem aumento das remunerações, e custeio por parte dos trabalhadores de seus equipamentos de proteção individuais. Souza (2021) aponta que a precarização do trabalho nas atuais condições dificulta ainda mais a construção de identidades coletivas, além de pulverizar e enfraquecer entidades como sindicatos, quando aumenta o número de categorias profissionais e coloca cada um em seu sindicato competindo entre si. No campo, os trabalhadores no Brasil tem sido alvo de ações do agronegócio que objetivam a acumulação do capital, além de devastar os recursos naturais e assolar os seres humanos para perpetuar o latifúndio. A presença do agronegócio no campo representa a ampliação da desigualdade socioeconômica e da violência, pois seu desenvolvimento se baseia no trabalho assalariado e na produção de monocultivos em larga escala, forçando a concentração fundiária. Com isso, os trabalhadores são submetidos a uma superexploração, com extensas jornadas de trabalho e baixa remuneração (Leite, 2017). O agronegócio tem promovido um ideário que busca hegemonizar seu projeto político de classe, distorcendo os efeitos e causas do seu modelo. Esse ideário penetra a escola pública agindo diretamente no fazer pedagógico com materiais didáticos que submetem a escola pública aos interesses das empresas do agronegócio. No contexto de reconfiguração das forças de subordinação do homem ao capital, o Estado aparece como regulador e implementador de políticas socialmente compensatórias. Para o MST a escola deve ser ligada a outro PPP e ao pensar a escola, o MST pensou uma pedagogia própria: a Pedagogia do Movimento. O processo de elaboração dessa pedagogia teve início com as discussões nos Encontros Nacionais do Movimento que agregavam elementos trazidos de todos os estados do país por meio dos seus representantes estaduais e municipais. Em 1990, um dos encontros do Coletivo Nacional de Educação do MST estabeleceu que a proposta educacional do MST seria elaborada por escrito, com o acúmulo das experiências e das discussões. Para facilitar esse processo, foi estabelecido o uso de princípios pedagógicos e filosóficos que poderiam orientar o trabalho em diversos territórios do MST sem normatizá-lo (Caldart, 2012). 56 A síntese dos objetivos e princípios da educação no MST inicialmente teve como parâmetro os estudos de Paulo Freire e de alguns pensadores e educadores socialistas, como Krupskaya, Pistrak, Makarenko e José Martí, com o objetivo de que essas teorias se entrelaçassem à prática dos sujeitos Sem Terra. Durante a elaboração da proposta pedagógica do MST, frentes de atuação foram se ampliando e foi preciso refletir sobre a formação de educadores, a alfabetização dos jovens e adultos, a educação infantil etc. A ampliação fez com que a luta por escola e a proposta pedagógica fossem compreendidas como novas dimensões no Movimento (Caldart, 2012). O conceito de escola, por exemplo, foi ampliado. De acordo com Caldart (2012, p. 276), o sentido dessa ampliação “[...] está na progressiva compreensão de que ela deve ser vista não apenas como um lugar de aprender a ler, a escrever e a contar, mas também de formação dos sem-terra como trabalhadores, como militantes, como cidadãos, como sujeitos.” Essa é uma mudança que requer o estabelecimento de vínculo entre a escola e as experiências educativas do cotidiano do Movimento, tais como, lutas, organização, produção, mística etc. Portanto, a escola deve estar vinculada à vida. É nesse sentido que a educação se torna uma necessidade para o MST. De acordo com Caldart (2012), estar na escola fazendo parte dela e não apenas para conseguir algo dela, como um emprego ou um diploma é o processo de ocupar a escola. A ocupação da escola, no sentido literal, está na busca pelo espaço específico para a formação escolar, mas o Movimento ocupa a escola quando extrapola os muros da escola e produz nos sujeitos a necessidade de aprender. No período de gestação do MST, ainda nos primeiros acampamentos, foram as mães, professoras e religiosas que perceberam a necessidade de um atendimento pedagógico para as crianças. Essas mulheres começaram a reunir as crianças e explicar o que estava acontecendo e os motivos de sofrerem ações violentas com experiências repressoras, por exemplo. As atividades desenvolvidas eram canto, desenho, encenações etc. A preocupação com as crianças aumentou com o passar do tempo, pois eram cerca de 760 crianças que há muito tempo estavam sem escola e a luta passou a ser frente aos órgãos públicos (Caldart, 2012). A escola é a continuidade da luta do Movimento que ocupa a terra. Caldart (2012, p. 244-245) afirma que ocupar a terra e ocupar a escola são duas ações do mesmo processo. 57 O nascimento do MST traz a marca de um outro jeito: ocupar a terra, criar o fato político e então fazer audiências, negociar, prosseguir a luta. Em relação à escola, o processo não foi diferente. As famílias sem-terra começaram reivindicando escolas, seja para os acampamentos ou para os assentamentos. Como negociar geralmente não era suficiente, logo a palavra de ordem do conjunto passou a valer também para a questão das escolas: ocupar é a única solução? A forma é que até podia ser um pouco diferente: ocupar a escola significava primeiro organizá-la por conta própria, começar o trabalho e os registros formais já sabidos como obrigatórios, mesmo que em condições materiais precárias, e então iniciar as negociações com os órgãos púbicos para sua legalização. Às vezes esse se transformava, então, no momento da ocupação literal: se a legalização tardasse muito, secretarias de educação poderiam ser ocupadas, marchas poderiam ser realizadas, e de preferências de forma massiva, envolvendo todas as pessoas que tivessem alguma relação com a escola em questão: a comunidade, as professoras e as crianças, repetindo a cada ação o círculo da história que lhes permitiu assumir esta condição de sujeitos: somos Sem Terra sim senhores e exigimos escola para nossos filhos! Enquanto o Movimento organizava a luta por escola nos acampamentos e assentamentos, foi desenvolvendo a proposta pedagógica para essa escola. Em 1992, o Movimento lançou o Boletim da Educação n.1, “Como deve ser uma escola de Assentamento” (MST, 1992). Esse documento foi muito usado e sua edição esgotada. O MST decidiu escrever um novo texto sobre a educação inserindo as reflexões, recriações e novos entendimentos que haviam sido construídos através das práticas pedagógicas vivenciadas desde o último boletim, e lançaram o documento Princípios da Educação do MST, Caderno da Educação n. 8 (MST, 1996), que apresenta ideias/convicções para o trabalho com educação no Movimento. O documento (MST, 1996) apresenta os princípios da educação do MST dividindo-os em princípios filosóficos e pedagógicos. Os princípios filosóficos dizem respeito à visão de mundo e às concepções gerais em relação à pessoa humana, à sociedade e ao que o MST entende por educação. Os princípios pedagógicos dizem respeito ao jeito de pensar e fazer a educação para concretizar os princípios filosóficos (MST, 1996). Quando o MST (1996, p. 5) trata a educação, está considerando “[...] a educação uma das dimensões da formação humana, entendida tanto no 58 sentido amplo da formação humana, como no sentido mais restrito de formação de quadros para a nossa organização e para o conjunto das lutas dos trabalhadores.” De acordo com o documento (MST, 1996), os princípios filosóficos são: 1. Educação para a transformação social: esse princípio é o horizonte que define o caráter de educação no MST e dele saem algumas características essenciais da proposta de educação do Movimento. Tais como: • Educação de classe – tem relação com uma educação que em última instância visa fortalecer o poder popular e a formação de militantes para as organizações dos trabalhadores e para o MST. Visa desenvolver nos educadores e nos educandos a consciência de classe e a consciência revolucionária; • Educação massiva - ligada ao direito de todos à educação; • Educação organicamente vinculada ao Movimento Social – uma educação que se adequa a dinâmica das necessidades do Movimento e participa ativamente dos processos de mudanças; • Educação aberta para o mundo – ligada ao entendimento de que a educação deve abrir horizontes, ajudar a projetar o futuro, “[...] precisa nos ajudar a continuar rompendo as cercas” (MST, 1996, p. 7); • Educação para a ação – é a compreensão de que além de desenvolver a consciência revolucionária é preciso desenvolver sujeitos capazes de intervir e transformar a realidade material, a chamada consciência organizativa, em que as pessoas passam da crítica à intervenção da realidade; • Educação aberta para o novo - à educação é atribuída a responsabilidade de ajudar na compreensão das novas relações que vão surgindo tanto nos processos políticos quanto nos processos econômicos amplos em que o Movimento se insere. São relações interpessoais e sociais que requerem novos valores, novos posicionamentos diante da realidade; Portanto, este primeiro princípio filosófico tem relação com a construção de novas relações sociais e o efetivo papel da escola nesse processo. 59 • Educação para o trabalho e a cooperação: A educação e a escola devem estar ligadas à luta pela Reforma Agrária e também aos desafios da implementação de novas relações de produção no campo e na cidade; • Educação com/para valores humanistas e socialistas: Está relacionado ao cultivo em seus educandos e educadores dos valores que têm relação com o processo de transformação da pessoa humana e sua liberdade; • Educação como um processo permanente de formação e transformação humana: Esse princípio tem relação com a capacidade do ser humano de mudar e transformar-se num processo educativo; 2. Os princípios pedagógicos, que têm por objetivo efetivar os princípios filosóficos, são: • Relação entre prática e teoria: Diz respeito à capacidade de articular com competência teórica e prática, ligando o que se aprende com a própria vida; • Combinação metodológica entre processos de ensino e de capacitação: Além de relação a teoria e a prática é preciso introduzir os processos de ensino e capacitação, em que se aprende como fazer e em outros momentos se faz para depois tomar o conhecimento sobre a ação; • A realidade como base da produção do conhecimento: Este princípio tem relação com o entendimento de que a realidade é o mundo que nos cerca e não somente o que os olhos podem alcançar; • Conteúdos formativos socialmente úteis: É o entendimento de que os conteúdos não são a parte mais importante do processo educativo, são instrumentos ligados ao ensino e à capacitação e que, portanto, precisam ser escolhidos adequadamente, pois não é uma escolha neutra, tem a ver com os objetivos educacionais e sociais mais amplos do MST; • Educação para o trabalho e pelo trabalho: Para o MST vincular trabalho e educação é uma condição para a realização de seus objetivos políticos e pedagógicos. Essa vinculação pode ser entendida por meio das dimensões da educação ligada ao mundo do trabalho 60 • • • • • • • • e do trabalho como método pedagógico. Educação ligada ao mundo do trabalho – diz respeito à necessidade de a escola se ligar às exigências dos processos produtivos que estão cada vez mais exigentes e complexos; O trabalho como método pedagógico - A dimensão do trabalho como método pedagógico tem relação com o entendimento de que a articulação entre o estudo e o trabalho é fundamental; Vínculo orgânico entre processos educativos e processos políticos: A educação é política, pois se envolve num projeto de transformação ou de conservação social e vincular organicamente os processos educativos e processos políticos significa fazer a política adentrar os processos pedagógicos; Vínculo orgânico entre processos educativos e processos econômicos: Os processos que dizem respeito à produção, à distribuição e ao consumo e de serviços necessários ao desenvolvimento da vida humana em sociedade são o que o MST chama de processos econômicos. As relações econômicas são as que movem as sociedades e educam as pessoas e se a educação tem a ver com a formação de consciências, é preciso vinculá-la com os processos econômicos; Vínculo orgânico entre educação e cultura: As escolas e os cursos de formação precisam ser espaços privilegiados para viver e produzir cultura; Gestão democrática: É preciso compreender que estudar a democracia não é o suficiente, é preciso vivenciar espaços de participação democrática e a escola é um lugar importante para isto; Auto-organização dos estudantes: Expressão tomada de Pistrak, auto-organização se refere a uma participação autônoma com um tempo e espaço para que os alunos se encontrem, discutam e tomem suas decisões tanto relacionadas às questões próprias do coletivo dos estudantes quanto relacionadas à gestão da escola; Criação de coletivos pedagógicos e formação permanente dos educadores/das educadoras: Parte da concepção de que os princípios pedagógicos defendidos pelo MST só podem ser colocados em práticas se realizados por meio da cooperação; 61 • Atitude e habilidades de pesquisa: Neste princípio o MST se refere a pesquisa que investiga a realidade, na busca por compreender o que ainda não entendem e conhecer o desconhecido; • Combinação entre processos pedagógicos coletivos e individuais: O processo educativo acontece primeiramente no indivíduo, mas no sentido onilateral só ocorre quando o indivíduo estiver com outras pessoas, de preferência seus iguais; 3. Os princípios servem para nortear os projetos políticos e pedagógicos das escolas do MST, mas cada escola possui suas especificidades e pode inserir nelas elementos que considerem pertinentes. Apesar de a Pedagogia do Movimento ser uma pedagogia própria do MST, o Movimento (1999) aponta que não se trata de uma nova pedagogia, mas se trata de colocar em movimento pedagogias já existentes. Dessa forma, a Pedagogia do Movimento é constituída por pedagogias como: • Pedagogia da luta social – construída com base no entendimento de que a luta educa para uma postura de enfrentamento e transformação. Ela é capaz de movimentar e transformar a própria pedagogia, pois o Movimento se constitui na luta e ao mesmo tempo a conforma (Caldart, 2012). Ou seja, a luta está na base da formação dos sem-terra, e é a vivência dela que constitui o próprio ser do MST, trazendo presente a própria possibilidade da vida em movimento, onde o que hoje é de um jeito, amanhã já pode ser diferente, ou até já estar mesmo de ponta-cabeça (Caldart, 2012, p. 335). • Pedagogia da organização coletiva - que diz respeito à descoberta do passado em comum para a criação de um mesmo futuro coletivo. • Pedagogia da terra - tem relação com o entendimento de que a relação do ser humano com a terra pode ensinar que as coisas acontecem processualmente. O MST não se contenta em lutar pela terra, ele almeja alterar o modelo de desenvolvimento da agricultura e do campo como um todo (Caldart, 2012). • Pedagogia do trabalho e da produção – essa Pedagogia brota do valor do trabalho para garantir a qualidade de vida social e no papel que ele desempenha ao identificar o Sem Terra como classe 62 • trabalhadora. Pedagogia da cultura – tem a ver com o jeito de viver dos Sem Terra, com o jeito como conduzem a vida e como cultivam os valores e os ideais do MST. É uma matriz pedagógica que necessariamente deve estar misturada às demais. Há cultura na pedagogia da luta, na pedagogia da organização coletiva, na pedagogia da terra e da produção, na pedagogia da história. Porque a cultura, tal como está sendo entendida aqui, não é uma esfera específica da vida ou um tipo particular de ação, mas sim o processo através do qual um conjunto de práticas sociais e de experiências humanas (por vezes contraditórias e com pesos pedagógicos diferentes entre si) aos poucos, lentamente, vai se constituindo em um modo de vida [...] que articula costumes, objetos, comportamentos, convicções, valores, saberes, que embora díspares e por vezes até contraditórios entre si, possuem um eixo integrador ou uma base primária que nos permite distinguir um modo de vida de outro, uma cultura de outra (Caldart, 2012, p. 365). • • • Pedagogia da escolha – Brota das escolhas individuais e como elas são movidas por uma construção social e, portanto, coletiva. Quando se reconhece que as escolhas e as tomadas de decisão ensinam os sujeitos, se reconhece que cultivar valores e refletir sobre eles é uma forma de aprender a dominar impulsos, influências e a ser mais coerente com aquilo que se fala e aquilo que se faz. Pedagogia da história – essa Pedagogia está baseada no cultivo da memória e ligada à compreensão do sentido da história não apenas resgatando-a, mas cultivando e produzindo-a. Pedagogia da alternância – essa Pedagogia é produzida em experiências de escolas do campo que buscam a integração entre a escola e a família e a comunidade do estudante. Diz respeito a dois tempos especificamente, porém, há casos em que pode haver outros tempos estabelecidos. Tempo aula, que diz respeito ao tempo em que o estudante permanece na escola; e Tempo Comunidade, diz respeito ao tempo que o estudante volta para sua casa/comunidade para colocar em prática aquilo que aprendeu. A Pedagogia da alternância possibilita a troca de conhecimentos teóricos e práticos 63 e é capaz de fortalecer os laços familiares e o vínculo dos educandos com as comunidades assentadas. 2.1 O TRABALHO NO MST Na Pedagogia do MST o trabalho é categoria central, um requisito para que o Movimento alcance os seus objetivos (MST, 1994, 1996). A tese da união do ensino com o trabalho produtivo remonta às análises de Marx e Engels sobre a educação, que mantiveram, durante os mais de 40 anos em que trabalharam juntos, uma insistência quanto à necessidade de unir o ensino com o trabalho produtivo na educação da classe trabalhadora (Dal Ri, 2004). Segundo Dal Ri (2004), Marx argumentava que era necessário retirar a educação das jovens gerações das mãos do Estado burguês e da Igreja para que ela se tornasse um instrumento de transformação da sociedade moderna. Essa tese aponta a importância da escola no processo de formação para o trabalho real. As teses sobre a união do ensino com o trabalho produtivo foram recuperadas por Lênin e operacionalizadas na constituição do novo sistema educacional após a Revolução Russa por alguns pensadores e educadores soviéticos, em especial Moisey Pistrak, Anton Makarenko e Nadezhda Krupskaya que desenvolveram experiências práticas em escolas soviéticas e aplicaram a tese da união do ensino com o trabalho produtivo, elaborando teorias voltadas ao tema da politecnia. Pistrak apresentou no livro Fundamentos da Escola do Trabalho (2008), escrito na década de 1920 e inserido no contexto das lutas pela construção e consolidação do socialismo na União Soviética a construção de uma pedagogia marxista ligada ao desenvolvimento dos fenômenos sociais interpretados do ponto de vista do materialismo-histórico. O autor apontava para a importância de o professor ser capaz de criar o método mais adequado para desenvolver a aptidão das crianças e ao tratar da educação escolar, desenvolveu um sistema de organização do material educativo em complexos, que consiste em tomar um objeto de estudo examinado por alguma disciplina ou série de disciplinas congêneres e ao redor dele reunir o material educativo. Esse sistema de organização foi denominado por Pistrak (2008) de Sistema de Complexos de Estudos. 64 Makarenko foi um educador ucraniano que desenvolveu o conceito e a prática do coletivismo, pois acreditava que a educação deveria estar voltada para o coletivo e que a autogestão era a grande educadora das massas. Quando o MST (1994, 1996) pensa o trabalho, ele também pensa o mundo da produção, porém de forma diferente das relações capitalistas de trabalho. No caso das relações capitalistas de produção, o trabalho produtivo é aquele que gera mais-valia, e o trabalho improdutivo, o que não gera mais-valia, como, por exemplo, trabalhos ligados ao Estado, como de administração, de educação, de cozinha, de secretaria etc. De acordo com o MST (1994), alguns tendem a pensar que se o que gera riqueza é o trabalho produtivo, então este é mais educativo, porque é mais valorizado. O Movimento afirma que esse pensamento está equivocado, pois: 1. Não existe trabalho só manual ou só intelectual e somente juntando manual e intelectual há educação; 2. Numa perspectiva de sociedade igualitária, todo trabalho necessário para garantir qualidade da vida social é produtivo, seja ele qual for. Dessa forma, neste texto o termo trabalho produtivo se refere à atividade necessária para garantir a qualidade da vida social na coletividade do MST, pois essa é a perspectiva do Movimento. O MST liga a educação ao mundo do trabalho organizando a escola para que o trabalho seja o seu pilar fundamental. Para que essa dimensão aconteça, o MST (1992; 1994) elaborou um currículo combinando os objetivos político-econômicos do Movimento com as condições de cada território. Inicialmente é feito um levantamento de dados sobre o território e são levantadas as tarefas que precisam ser realizadas e, após isso, é iniciado o planejamento. Geralmente são atividades ligadas aos trabalhos domésticos, trabalhos ligados à gestão da escola, à produção agropecuária, trabalhos ligados à cultura e à arte etc. Em seguida é elaborado o currículo adequado às necessidades específicas combinadas com os objetivos mais amplos do Movimento, tratando o mundo do trabalho e da produção por meio da seleção de conteúdos. O MST (1996) aponta que a escola deve ser a responsável por propor as experiências de trabalho e acompanhá-las para que sejam educativas, de forma que os estudantes: • Desenvolvam o amor pelo trabalho, especialmente pelo trabalho no meio rural; 65 • • Entendam o valor do trabalho como produtor de riquezas; Saibam diferenciar as relações de exploração das relações igualitárias de construção social pelo trabalho; • Superem a discriminação entre o valor do trabalho manual e do trabalho intelectual, sendo educados para ambos; • Exerçam trabalhos mais educativos do ponto de vista técnico e da superação das relações de exploração e de dominação; • Vinculem mais diretamente as escolas com a busca de soluções para os problemas enfrentados nos acampamentos e assentamentos; • Desenvolvam habilidades, comportamentos, hábitos e posturas necessários aos postos de trabalho que estão sendo criados através dos processos de luta e de conquista das áreas de Reforma Agrária. Ao combinar o estudo com o trabalho produtivo, o MST (1996) instrumentaliza outras dimensões da Pedagogia e coloca o trabalho como uma prática privilegiada que é capaz de provocar necessidades de aprendizagem, o que tem a ver com o princípio da relação entre prática e teoria, com a construção de objetos de capacitação e com a ideia de produzir conhecimento sobre a realidade. O trabalho enquanto princípio educativo tem relação com a convicção do Movimento (1994) de que todo trabalho é educativo, mesmo sob os moldes do capitalismo. O trabalho pode educar para uma prática coletiva ou para uma prática competitiva, por exemplo. O número de dimensões que o trabalho consegue articular vai determinar se ele é mais ou menos educativo. Para ser considerado plenamente educativo seus principais elementos são: 1. A apropriação dos resultados do trabalho; 2. Gestão democrática dos processos de trabalho; 3. Compreensão do que se está fazendo, para que e para quem (MST, 1994). O trabalho é educativo quando influencia a consciência das pessoas e a forma como elas entendem o mundo e se posicionam diante da realidade. Para o Movimento (1994) um dono de banco e um agricultor que vai ao banco pedir um empréstimo, enxergam o mundo de formas diferentes. Isso se dá por conta da dimensão forte que é o trabalho na formação da personalidade. O trabalho é educativo, pois produz conhecimento e cria habilidades. Parte do conhecimento científico da humanidade foi formulado para tornar a relação com a natureza mais facilitada e enriquecedora para o ser humano. 66 À medida que se domina a técnica ou a tecnologia necessária para o trabalho, esses conhecimentos são disseminados e ampliados. O trabalho é educativo, pois provoca necessidades humanas superiores. O trabalho está voltado ao atendimento das necessidades básicas e permite o aumento do círculo de objetos e de pessoas nos relacionamentos. Esse círculo aumenta as necessidades, pois além da simples necessidade de comer, aparece a necessidade de comer bons alimentos. Assim como aparecem as necessidades de caráter mais cultural: ler, conhecer lugares, frequentar festas, aprender cada vez mais sobre o que nos cerca, sobre o mundo em geral etc. Quanto maiores e mais complexas as necessidades, maiores os motivos para se qualificar no trabalho (MST, 1994). Os vários espaços em que o trabalho é realizado são considerados educativos. Dessa forma, atividades que envolvam as várias fases do processo produtivo são consideradas experiências educativas por meio do trabalho, tais como: 1. Atividades na área da escola; 2. Atividades na área da produção; 3. Atividades na família; 4. Atividades de trabalho voluntário; 5. Atividades na administração da escola. Mas o trabalho não está ligado somente ao ensino, e sim à educação, em seu sentido amplo e, por isso, a articulação com o trabalho produtivo que acontece na escola, extrapola os seus muros. Segundo Caldart (2012), a Pedagogia do Movimento não cabe na escola, mas a escola cabe nela, não como um modelo pedagógico, mas como um jeito de ser escola, uma postura diante da tarefa de educar, um processo pedagógico, um ambiente educativo. Ao elaborar a Pedagogia do Movimento, baseada em princípios educativos, o MST consegue nortear as escolas dos assentamentos e acampamentos, sem métodos que as enquadre em um modelo padronizado, permitindo a construção autônoma de suas propostas de trabalho em cada território de atuação. Algumas escolas possuem autonomia, outras não, algumas possuem mais recursos que outras, tanto recursos financeiros, quanto de pessoal, de estrutura física, organizacional etc. Dentre as escolas do MST, o Colégio Iraci Salete Strozak conseguiu não só elaborar, mas colocar em prática parte de sua proposta pedagógica na luta travada com o Estado para manter um PPP baseado nos princípios da educação do MST. 67 CAPÍTULO III O COLÉGIO ESTADUAL DO CAMPO IRACI SALETE STROZAK Imagem 1 – Fachada do Colégio Strozak Fonte: arquivo pessoal da autora (2021) A história do Colégio Strozak entrelaça-se à história da luta pela terra e por educação na região do médio centro-oeste do estado do Paraná. De acordo com Sapelli, Leite e Bahniuk (2019), a empresa GiacometMarodin Indústria de Madeiras S/A é um latifúndio madeireiro que há décadas grilou mais de 100 mil hectares de terra na mesorregião Centro-Oeste do Paraná. Com a grilagem a empresa passou a explorar a mata nativa e o plantio de extensas áreas de pinus e eucalipto, abrangendo os municípios de Quedas do Iguaçu, Rio Bonito do Iguaçu, Nova Laranjeiras e Espigão Alto do Iguaçu. 69 As terras de Rio Bonito do Iguaçu que sempre se caracterizaram por fertilidade do solo foram alagadas pela construção de uma Usina Hidrelétrica que, dentre outros problemas, causou a expulsão das famílias para outras regiões e prejuízos ambientais na fauna e flora da região (Hammel; Silva; Andreetta, 2007). Em março de 1996, quando Jaime Lerner governava o estado do Paraná, pelo Partido Democrático Trabalhista (PDT), dois grandes acampamentos se estabeleceram às margens da Rodovia BR-158, entre os municípios de Saudade do Iguaçu e Laranjeiras do Sul. Em abril, os trabalhadores saíram em direção às duas extremidades do latifúndio da Giacomet-Marodin rumo à ocupação. Essa ocupação estava localizada em um ponto estratégico, às margens da BR-158 e próximo à sede da fazenda. O local ficou conhecido como Buraco, a maior ocupação já registrada no país, com cerca de 3 mil famílias, contabilizando 12 mil pessoas. O Buraco recebeu esse nome também por sua estrutura. Durante a pesquisa empírica, conhecemos o espaço geográfico do Buraco enquanto passávamos pela BR-158 e foi possível perceber que se trata de uma cratera às margens da rodovia. Apesar de ser um ponto estratégico, viver em um buraco acarreta certos problemas de higiene, saúde e alimentação, principalmente com a aglomeração de pessoas. É o que relatam Hammel, Silva e Andreetta (2007) quando afirmam que com a superlotação os problemas cresciam cada vez mais. Os acampados chegaram à decisão de ocupar o local chamado Portão, uma guarita com vários pistoleiros que protegiam a entrada da fazenda. Cerca de 150 pessoas se organizaram e tomaram a guarita e levaram os pistoleiros às autoridades do município de Laranjeiras do Sul e ocuparam a sede da fazenda (Hammel; Silva; Andreetta, 2007). As pessoas que estavam no Buraco estavam passando fome, pois não tinham como plantar alimentos, por se tratar de uma área de preservação ambiental. Assim, ao ocuparem a sede da fazenda, com o lema É necessário plantar!, deram início ao plantio de milho, feijão e verduras. Em janeiro de 1997, um grupo que trabalhava na área que seria desapropriada foi atacado por pistoleiros. No ataque foram assassinados o jovem Vanderlei das Neves e o senhor José Alves dos Santos, acusados de caçarem em área proibida. Havia 70 marcas de sangue no chão que comprovavam que os corpos haviam sido arrastados 100 metros para dentro da mata (Hammel; Silva; Andreetta, 2007). O episódio repercutiu negativamente nacional e internacionalmente e a empresa Giacomet-Marodin mudou sua denominação para Araupel. Conforme Hammel, Silva e Andreetta (2007, p. 64), mais de 1500 famílias ocuparam o que foi o latifúndio da empresa Giacomet-Marodin e uma análise pode demonstrar o desenvolvimento e crescimento do município após a ocupação, com a instalação de cooperativas, lojas e bancos, pois “Os assentados movimentam não apenas o comércio local, mas o de toda a região.” O município não é mais o mesmo, aquele pequeno vilarejo com cerca de 6.000 pessoas que até 1996 possuía um imenso latifúndio, contribuindo timidamente para o desenvolvimento local, hoje conta com aproximadamente 20.000 mil pessoas que movimentam a economia local e regional (Hammel; Silva; Andreeta, 2007 p. 65). A luta pela terra e pela reforma agrária avançou nos anos 1990, como já mencionamos, e nessa época cresceu também a reivindicação por políticas públicas para Educação do Campo e no campo. O MST no Paraná passou a reivindicar as terras sob o domínio da Araupel, por serem terras pertencentes à União e por não cumprirem sua função social. Em 1996, aproximadamente 3.500 famílias se organizaram para ocupar a fazenda Giacomet-Marodin e conquistaram parte da terra em 1997, com uma área de cerca de 25 mil hectares, que deu origem ao Assentamento Ireno Alves dos Santos, com 934 famílias, e ao Assentamento Marcos Freire, com 578 famílias assentadas. Os dois Assentamentos concentraram cerca de 7 mil pessoas e passaram a ser a base da economia do município de Rio Bonito do Iguaçu. Em 2004 foi conquistado o Assentamento Celso Furtado, em Quedas do Iguaçu e, em 2005, o Assentamento 10 de Maio em Rio Bonito do Iguaçu (Sapelli; Leite; Bahniuk, 2019). Em 2014, ainda havia 35 mil hectares de terra que estavam ilegalmente em posse da Araupel e a partir de um acampamento provisório no Assentamento Ireno Alves dos Santos, aproximadamente 5 mil pessoas ocuparam em 17 de maio a Fazenda Rio das Cobras, em Rio Bonito do Iguaçu. Somente em 2017, o Tribunal Regional Federal da 4ª Região anulou os 71 títulos de propriedade da madeireira Araupel ocupadas pelo MST e confirmou a prática da grilagem. Dos 13.545 habitantes do município de Rio Bonito do Iguaçu, 10.339 são do meio rural e atualmente cultivam, também de forma agroecológica, uma diversidade de frutas, de verduras, hortaliças, mandioca, feijão, abóbora e milho, criam galinhas, porcos e algumas cabeças de gado. De acordo com Sapelli, Leite e Bahniuk (2019), dois grupos possuem certificação para produtos orgânicos e um terceiro grupo já encaminhou o pedido para também ser certificado. Em 2017 o feijão enlatado da merenda escolar foi substituído pelo feijão orgânico produzido coletivamente pelas famílias do Acampamento. No caso do Assentamento Marcos Freire, onde está localizado o Colégio Strozak, há de acordo com Janata (2015), cerca de 578 famílias assentadas que estão organizadas em onze comunidades. A maior comunidade é a Centro Novo, com cerca de 120 famílias. Mesmo com o intenso processo de luta pela terra, no Assentamento Marcos Freire, 80% dos moradores compraram os lotes e não participaram do processo de ocupação, o que enfraqueceu o vínculo com o MST no decorrer dos anos. A educação sempre foi prioridade nos Acampamentos e Assentamentos do MST. Desse modo, primeiramente uma escola foi adaptada no galpão da Sede da Fazenda, em 1997, a escola Vanderlei das Neves. O Estado colocou como condição para autorizar o funcionamento da escola a emissão de posse da terra aos assentados pelo Incra. Precariamente a escola oferecia o ensino para os anos iniciais e finais, se dividindo em duas com a Escola José Alves dos Santos. Quando os assentados foram para os seus lotes individuais, a escola precisou se estabelecer em uma área central com o objetivo de atender aos estudantes de todo o assentamento. Sem ajuda para custear transporte, merenda e a construção de salas, os assentados, educadores e educandos mudaram a extensão da escola José Alves para Vila Velha, uma antiga vila residencial onde os funcionários da Usina Hidrelétrica de Salto Santiago viviam. Essas mudanças ocorreram em 1998, mas os assentados precisaram se organizar para atender às exigências da Secretaria Estadual da Educação do Paraná, que queria impedir o funcionamento do novo colégio. O nome do Colégio é uma homenagem a Iraci Salete Strozak, militante 72 que fazia parte do Setor de Educação do MST e lutava para que a educação acontecesse no assentamento. Iraci faleceu num acidente de ônibus, em 21 de novembro de 1997, no trajeto entre Laranjeiras do Sul e Cantagalo, na BR 277. O Colégio, aos poucos, recebeu doação de mobiliários, armários e carteiras e, em 2000, passou a funcionar em dois períodos (matutino e vespertino) com oito turmas. Surgiu então a necessidade de mudar para um espaço maior. Pensando que num lugar mais baixo teriam mais facilidade com a questão da água o Colégio foi para Vila Velha. Receberam a doação de quinze casas de madeira da Gerasul, e como a prefeitura recusou-se a fazer o transporte, contrataram caminhões e pessoas para desmanchar, mesmo sem saber se teriam condições de pagar pelos serviços prestados. Conforme a escola se constituía, os docentes se formavam, planejavam suas aulas levando em conta a conjuntura de atuação e os sujeitos do processo. No ano de 2003, o Colégio Strozak mudou-se definitivamente para a Comunidade Centro Novo, Assentamento Marcos Freire, município de Rio Bonito do Iguaçu, onde permanece. O Colégio fica a aproximadamente 25 quilômetros da sede do município e a 8,5 quilômetros da BR 158. Atualmente a estrutura do Colégio é composta por oito salas de aula, laboratório de ciências, de informática, biblioteca, sala de multiuso, cozinha, refeitório, banheiros, sala de direção, coordenação pedagógica, sala de educadores, secretaria, almoxarifado e uma pequena sala de artes e educação física. Imagem 2 – Corredor que dá acesso às salas de aula e onde é realizada a mística Fonte: arquivo pessoal da autora (2021) 73 Imagem 3 – Sala dos professores Fonte: arquivo pessoal da autora (2021) Em 2004 o Colégio Strozak foi escolhido para ser a escola-base das Escolas Itinerantes (EIs) do MST no Paraná. A escolha se deu pela localização do Colégio e por estar situado em um dos maiores Assentamentos da América Latina e pelo trabalho desenvolvido. No estado do Paraná, a quantidade de acampamentos abriu uma nova demanda, que foi a necessidade da criação de escolas para os acampamentos. Contudo, essas escolas precisariam acompanhar os estudantes em sua situação de itinerância. As EIs são fruto dessa trajetória de luta pela terra, por reforma agrária, por educação e por escola. As EIs surgiram e permanecem com a precariedade de estrutura física e do efetivo de professores, pois lidam com contratos precarizados, profissionais sem formação adequada para o trabalho no Movimento e com uma organização de tempos educativos imposta pelo Estado que não condiz com a proposta do Movimento. Isso é o que apontam Sapelli, Leite e Bahniuk (2019) quando afirmam que para o Estado do Capital não há interesse em financiar uma escola que o questione e o desafie, e disso decorre a precariedade dessas escolas. A primeira experiência com uma escola itinerante aconteceu antes da fundação do MST, em um acampamento na Encruzilhada Natalino, no estado do Rio Grande do Sul, em 1982, com cerca de 600 famílias. Essa escola só foi legalizada em 1984, com a efetivação do Assentamento Nova Ronda Alta. A segunda experiência foi na Fazenda Annoni, no município de 74 Sarandi, também no estado do Rio Grande do Sul. Ambas as escolas não foram legalizadas antes, como escolas de acampamento, pois somente em 1996 o Conselho Estadual de Educação do Rio Grande do Sul aprovou a escola itinerante como uma experiência pedagógica (Sapelli; Leite; Bahniuk, 2019). As experiências das EIs do Rio Grande do Sul serviram de exemplo para a organização do MST em outros estados do país, tais como Goiás, Santa Catarina, Alagoas e Piauí. No Paraná houve uma experiência em 1999, no acampamento em frente ao Palácio Iguaçu, em Curitiba. O Movimento estava acampado para protestar contra a repressão e perseguição política do governo Jaime Lerner aos trabalhadores Sem Terra e a falta de políticas em relação à reforma agrária. Nessa ocasião, os trabalhadores Sem Terra organizaram uma escola que funcionou durante 14 dias e foi batizada como Escola Itinerante Terra e Vida (Sapelli; Leite; Bahniuk, 2019). De acordo com o PPP (Strozak, 2020) do Colégio Strozak, em 2004, quando o Setor de Educação do MST e a Coordenação de Educação do Campo da Secretaria Estadual de Educação solicitaram que o Colégio fosse a escola-base das EIs do Paraná, existiam cerca de 67 acampamentos com aproximadamente 13 mil famílias acampadas, o que representava uma grande quantidade de crianças. Por meio da resolução nº. 614/2014, o Conselho Estadual de Educação autorizou a implantação das EIs e no mesmo ano, foram organizados os processos de autorização para o funcionamento da Educação Infantil, 1º e 2º Ciclos de Ensino Fundamental e a mantenedora assumiu o financiamento dos recursos físicos, humanos, e a capacitação de educadores no programa de formação permanente, mas na época não houve cumprimento da promessa, tornando o trabalho muito precarizado, e até os dias atuais, de acordo com o PPP, o repasse financeiro é insuficiente. Quando o Colégio Strozak passou a ser a escola-base das EIs, a demanda de trabalho cresceu significativamente, pois deixou de atender apenas os seus educandos e passou a atender mais de dois mil educandos com o mesmo quadro de pessoal (Sapelli; Leite; Bahniuk, 2019). Em 2005 eram nove EIs, chegando a 118 turmas e 2.642 educandos. Em 2006 eram doze EIs. Contudo, as EIs estavam espalhadas por todo o estado do Paraná e a distância da escola-base era uma dificuldade para realização do trabalho. Com a dificuldade para a escola-base acompanhar o trabalho das EIs, 75 em 2007, a Secretaria de Estado da Educação do Paraná criou outra escola-base no município de Querência do Norte (Strozak, 2020). Portanto, em 2008, o Colégio Estadual do Campo Centrão, situado no Assentamento Pontal do Tigre, passou a ser também escola-base das EIs, abrangendo as escolas localizadas ao noroeste e norte do estado. A Escola Centrão manteve a proposta de referência para as EIs a partir da experiência do Colégio Strozak, ou seja, o sistema de Complexos de Estudo e os Ciclos de Formação Humana (Sapelli; Leite; Bahniuk, 2019). O Colégio Centrão permaneceu como escola-base até dezembro de 2011, quando por conta de problemas estruturais, o Setor de educação do MST decidiu que o Colégio Strozak deveria voltar a ser a escola-base das nove EIs em funcionamento (Sapelli; Leite; Bahniuk, 2019). O custeio das despesas com o pessoal das EIs, desde 2004, é pago por meio de um convênio entre o Governo do Paraná e a Associação de Cooperação Agrícola e Reforma Agrária do Paraná (Acap). Os recursos repassados à Acap são destinados a pagar salários, encargos sociais, 13º salário etc. Anteriormente, os trabalhos de serviços gerais, preparação da merenda, serviço administrativo, serviços de biblioteca etc., eram prestados voluntariamente pela comunidade. Acordado o convênio, esses postos de trabalho passaram a ser remunerados. O convênio foi um avanço, mas com ele ampliou-se a fiscalização e o excessivo controle pela Secretaria Estadual da Educação, que desgastou as comunidades escolares com o excesso de burocracia (Sapelli; Leite; Bahniuk, 2019). Em 2015, algumas funções foram extraídas do convênio e os postos de trabalho precisaram ser cobertos por meio da autogestão comunitária e coletiva, dificultando a realização de projetos. Outra dificuldade diz respeito aos atrasos no repasse das parcelas mensais do recurso financeiro, o que deixa os trabalhadores que permanecem sem salários na data correta (Sapelli; Leite; Bahniuk, 2019). Em 2014, houve duas grandes ocupações na região Centro do Estado do Paraná, uma no município de Rio Bonito do Iguaçu e outra em Quedas do Iguaçu. A ocupação de Rio Bonito do Iguaçu deu origem ao acampamento Herdeiros da Terra de Primeiro de Maio, com cerca de 3 mil famílias acampadas. Neste mesmo ano, teve início a organização da Escola Itinerante Herdeiros do Saber, que os acampados construíram. O primeiro espaço 76 ocupado ficou conhecido como Herdeiros I e deu origem à Escola Itinerante Herdeiros do Saber I. O espaço do alojamento de uso dos funcionários da empresa ex-proprietária do latifúndio, passou a ser da Escola Herdeiros do Saber II. No espaço conhecido como Lambari, próximo ao rio Lambari, originou-se a escola Herdeiros do Saber III e no espaço conhecido como Guajuvira, que recebeu esse nome devido às árvores nativas, construiu-se a Escola Herdeiros do Saber IV (Strozak, 2020). Quando o Incra autorizou que as famílias se espalhassem pela terra para produzir alimentos garantindo o sustento familiar, os assentados se mudaram para seus lotes. Nesse momento, as escolas foram reorganizadas oferecendo educação infantil, anos iniciais e finais do ensino fundamental e ensino médio na Escola Herdeiros I, e educação infantil e anos iniciais na Escola Herdeiros II (Strozak, 2020). Em 2017, houve um processo de descentralização das EIs e a Secretaria Estadual da Educação do Paraná indicou para cada EI uma determinada escola-base, localizada em cada município. Dessa forma, a partir de 2018, o Colégio Strozak passou a ser a escola-base apenas da Escola Itinerante Herdeiros do Saber. Ana Hammel, que trabalhou no Colégio Strozak de 2003 a 2013, como professora, coordenadora e diretora, intermediando as relações entre o Estado e as EIs, com o objetivo de efetivar as políticas públicas que garantissem o PPP, afirma que a tese do Estado é a de que a descentralização facilitaria o processo de escola-base, mas na realidade isso não se concretiza, pois escolas não vinculadas ao MST têm outro Projeto, o que implica que vincular as EIs à outra escola-base significa vinculá-la a um PPP incompatível com os objetivos do MST. Na atualidade a distribuição das EIs pode ser visualizada no seguinte mapa. 77 Imagem 4 – Registro fotográfico de um mapa em exposição na sala dos professores do Colégio Strozak sobre a distribuição das EIs do estado do Paraná. Fonte: arquivo pessoal da autora (2021) Há uma movimentação constante das EIs. Algumas permanecem muitos anos em funcionamento no mesmo território, enquanto outras circulam dentro do município de origem ou entre municípios do Estado, como é o caso da Escola Itinerante Carlos Marighela. Outras são transformadas em escolas de assentamento ou encerram suas atividades. Não é só na relação com as EIs que o Colégio tem enfrentado dificuldades e pressões do Estado. A professora Jaqueline Boeno D’ávila, afirma que o Estado está cada vez mais pressionando e redimensionando a forma da escola. [...] o próprio planejamento, a nossa proposta é por complexos de estudos, mas o Estado determina que a gente utilize a BNCC e o Referencial Curricular, então como você pensa que a escola tem autonomia pedagógica para pensar sua proposta, mas o Estado direciona esta proposta pedagógica? Então, assim, parece que a gente vai na contramão, a gente constrói, a gente pensa uma proposta curricular, mas o Estado vem e intervêm, ele muda, ele altera aquela forma que a gente pensou, então por mais que a gente avance em termos pedagógicos o Estado dá esse direcionamento (D’ávila, 2021). A professora enfatiza que a escola consegue avançar na proposta em termos teóricos, mas há impasses, pois o Estado intervém e direciona o projeto 78 pedagógico da escola. Em 2020, o Colégio Strozak atendia a um total de 362 estudantes na escola base; 504 alunos na Herdeiros I e 54 alunos na Herdeiros II Guajuvira, totalizando 1120 estudantes (Strozak, 2020). Teresa Fátima Dias (2021), assentada e mãe de aluno, em entrevista afirma que ajudou a construir a escola Herdeiros I, pregando as tábuas que hoje formam os barracões que servem como salas de aula. “Isso tudo aqui fomos nós que construímos, os acampados né [...] nós chegamos a pregar, até eu mesma, subia aí nas escadas, pregava, arrumava, fomos nós que construímos a escola. Então, por isso que eu digo, essa escola é nossa.” Imagem 5: Salas de aula da Escola Itinerante Herdeiros do Saber I Fonte: arquivo pessoal da autora (2021) Dias (2021) afirma que o coletivo participa de outras atividades junto às crianças da escola, tais como plantio de árvores, pintura das salas etc. Para organizar a realização das tarefas são feitos grupos de trabalho compostos por pais, funcionários e professores e, dessa forma, as ações são mobilizadas. São trabalhos educativos para os participantes, pois ensinam novas formas de se relacionar com o trabalho que se institui de forma coletiva. É uma forma de articulação entre educação e trabalho produtivo no que diz respeito à organização coletiva e à produção de bens e serviços. Além disso, a fala da entrevistada aponta que no trabalho realizado instituiu-se a posse da escola: nós construímos e ela é nossa. 79 Imagem 6: Salas de aula da Escola Itinerante Herdeiros do Saber I Fonte: arquivo pessoal da autora (2021) A Escola foi construída em forma de ciranda. No centro as crianças plantaram árvores e grama, mas o solo do acampamento foi castigado pelo plantio de pinus, o que dificulta o crescimento das plantas. Em entrevista, o professor Tiago Prestes afirma que quando a terra estava em negociação para que as famílias fossem assentadas, ficou acordado que o pinus seria extraído pela própria empresa, pois ela seria beneficiada com a venda da terra e também com o trabalho da destoca. [...] quando eles tiram todo pinus ficam só os tocos e quem paga pra fazer a destoca? São os acampados que estão ali. Tem que fazer toda a destoca, todo o processo de recuperação do solo, porque pinus acaba com o solo. Perceba que aqui na frente tem essa grama que faz dois anos que foi plantada e não vai pra frente, porque o pinus acaba com o solo (Prestes, 2021). Para uma comunidade de agricultores essa é uma questão fulcral. Como tirar o seu sustento de uma terra improdutível? O solo de todo o assentamento precisa de recuperação, pois foi maltratado por anos de produção de pinus sem interrupção. Essa necessidade desencadeia ações por parte dos assentados, que sem condições de desenvolverem o solo e conseguirem o próprio sustento recorrem ao arrendamento de terras. Dessa forma, parte dos lotes do acampamento trabalha com a terra arrendada, pois é uma forma de limpar o solo, tendo em vista que o arrendatário faz a destoca para o uso, fertiliza e corrige o solo. Todavia, quando arrendam a terra, não têm mais como viver da terra e precisam deixar o campo e ir para a cidade para poder trabalhar. 80 Isso mostra que conquistar a terra é apenas o início de uma luta muito maior, que é a de viver nela e dela. Na escola a realidade é de salas de aulas precárias, com mobiliário padrão. As paredes são de madeira e o teto coberto com telha deixam o ambiente quente e escuro. Imagem 7: Interior de uma sala de aula da Escola Itinerante Herdeiros do Saber I Fonte: arquivo pessoal da autora (2021) De acordo com o Plano de Estudos do Colégio Strozak (Strozak, 2013), a matriz fundamental do trabalho pedagógico deve ser o vínculo entre a escola e a vida. Esse vínculo se materializa por meio das matrizes formativas do trabalho, da luta social, da cultura e da história. O Colégio aponta suas concepções a respeito de cada uma dessas matrizes em seu Plano de Estudos. A matriz formativa do trabalho traz uma concepção ampla, que entende o trabalho como atividade humana criadora, construtora do mundo e do próprio ser humano. Essa matriz se refere, portanto, à luta para converter todos os seres humanos em trabalhadores com a intencionalidade de um trabalho voltado para a associação de produtores livres, com formas complexas e abrangentes de cooperação entre os camponeses. Essa intencionalidade no dia a dia da escola pode ser sintetizada em alguns pontos básicos: - Ambiente educativo organizado pelo princípio da atividade (todos trabalhando) e da relação entre teoria e prática; - Inserção dos estudantes em diferentes formas de trabalho socialmente útil, considerando as características de cada idade e as condições objetivas da escola e de seu entorno. Podem ser atividades domésticas ou de auto-serviço na própria escola, podem ser trabalhos sociais no acampamento ou assentamento, podem chegar a ser atividades produtivas com os 81 estudantes mais velhos (8º e 9º anos). - Nessas atividades, das mais simples às mais complexas, importa garantir o exercício real da organização coletiva do trabalho, em diferentes formas e crescendo em níveis de exigência. - Destacamos que pela potencialidade formadora específica da relação com a terra devemos garantir que nossos estudantes tenham, já nos anos finais do ensino fundamental, alguma experiência de trabalho agrícola (na escola ou fora dela), visando inclusive potencializar o estudo e a relação de apropriação social e não exploradora da natureza. Havendo possibilidades na escola ou no seu entorno, os estudantes devem desenvolver ou se envolver em experiências que lhes permitam compreender o que são práticas agroecológicas, mais simples ou complexas, conforme a realidade local e os vínculos que a escola possa desenvolver nessa perspectiva. - É importante ter em vista as possibilidades de inserção dos estudantes mais velhos em processos produtivos (agro)industriais geridos por trabalhadores – ainda que seja em determinado período apenas, como ‘estágio’, trabalho de campo, trabalho de ’férias escolares’, se isso implicar em ir para outro local que não o acampamento ou assentamento onde os estudantes moram/estudam. - O trabalho humano em geral, os processos produtivos do campo em particular e a participação dos estudantes no trabalho devem ser objeto de estudo científico na escola por meio das disciplinas de ensino ou de outras atividades curriculares que se possa organizar para isso (Strozak, 2013, p. 13-14). Dessa forma, o Colégio abrange a matriz formativa do trabalho ao trabalho humano geral, com o objetivo de que os estudantes se organizem em torno do trabalho de forma que suas experiências os envolvam com os processos locais, desde as práticas mais simples até as mais complexas. A matriz formativa da luta social é a convicção de que a luta social educa as pessoas, o que significa afirmar que o ser humano se constitui também nas atitudes de inconformismos e não apenas nos processos de conformação social. É uma matriz ligada à formação para o estado permanente de luta, que é algo que a escola precisa garantir (Strozak, 2013). Formar-se para estar em estado permanente de luta (característica de lutadores e militantes de movimentos sociais) não é algo que seja da natureza da tarefa educativa da escola garantir, mas ela pode ajudar a cultivar a visão 82 de mundo e a postura cotidiana intencionada pela atuação nas diferentes matrizes formadoras, e também pelo vínculo com outros processos educativos. No dia a dia da escola o trabalho com essa matriz requer: - Trabalhar o ambiente educativo de modo que exija e ajude a desenvolver uma postura cotidiana que inclua como aprendizados: pressionar as circunstâncias para que sejam diferentes do que são construindo a convicção de que nada é impossível de mudar; projetar o futuro (dimensão de projeto, de utopia); construir parâmetros coletivos que orientem cada ação na direção do projeto; desenvolver o sentimento de indignação diante das injustiças e de buscar contestar e enfrentar as situações que desumanizam; capacitar-se para tomada de posição e de decisões, para fazer análise da realidade, para querer construir e para agir de forma organizada [...] (Strozak, 2013, p. 14). Diferente do acontece na escola oficial, que cultiva a aceitação passiva dos acontecimentos, o trabalho com a matriz formativa da luta social almeja a contestação, a indignação e o enfrentamento, tomando decisões para analisar a realidade e construindo formas de ação que possam modifica-la. A matriz formativa da organização coletiva está ligada à criação de traços fundamentais que a participação em uma organização coletiva cria no ser humano. Para o MST é fundamental a formação de seres humanos que sejam lutadores e construtores; que identifiquem o que precisa ser construído e os melhores caminhos para que a construção seja feita. A participação em uma organização cultiva um modo de vida coletivo e ensina hábitos e habilidades para o trabalho coletivo e a atividade organizada. Essa é uma matriz que se realiza articulada às matrizes da luta social e do trabalho. No dia a dia da escola essa intencionalidade pode ser sintetizada nos seguintes aspectos: - Participação ativa dos estudantes e da comunidade na construção da vida escolar. Nosso objetivo (processual) é chegar a formas cada vez mais coletivas de gestão e de organização do trabalho da escola (envolvendo os estudantes). - Garantir que as práticas de trabalho socialmente necessário realizadas na escola ou por sua intermediação sejam desenvolvidas através de uma organização coletiva do trabalho, que se complexifique à medida que avance a idade dos estudantes e a formação dos educadores na mesma direção. 83 - Desenvolver atividades que exijam processos de auto-organização dos estudantes. Pode-se começar com esse exercício em atividades pontuais ou específicas até se chegar a construir a auto-organização como base da participação dos estudantes no processo de gestão coletiva da escola. - Deve também ser nosso objetivo que os estudantes se envolvam na realização de tarefas coletivas orgânicas ao MST ou a outras formas de organização de trabalhadores que os estudantes integrem, visando qualificar sua capacidade organizativa de forma combinada à sua formação para o trabalho social e a militância política (Strozak, 2013, p. 15). A auto-organização possui um papel fulcral no PPP do Colégio Strozak, contudo, os limites impostos pela realidade concreta, inclusive com a pandemia, são demasiados. A professora do Colégio Strozak, D’ávila (2021), filha de assentados, relata que percebe uma regressão nas questões referentes à auto-organização. [...] já teve momentos que a gente teve grupo de teatro, grupo de hip-hop, a gente tinha núcleos setoriais, auto-organização da juventude, então parece que a juventude tinha uma consciência política do seu papel dentro da escola e ela contribuía para construir essa escola. Parece que hoje a nossa juventude está [...] não é que tá morna, mas parece que está estagnada, no sentido de que ela não percebe a importância dela dentro da escola. O aluno não reconhece qual é o papel dele na escola. [...] parece que eles não conseguem enxergar qual o papel deles nessa escola. Mas, se a gente pegar a história do Iraci tem algumas coisas que a gente conseguiu manter, dentro da condição de pandemia e de cortes de recursos com a educação. A gente consegue fazer bastante coisa, que outras escolas não conseguem. A gente consegue fazer uma resistência dentro de um espaço e de uma condição histórica que não nos permite avançar. A gente consegue fazer um trabalho significativo. O que a professora aponta é que grupos que promoviam a participação e a discussão da juventude na escola promoviam a consciência política do papel dos jovens na escola e que com o fim desses grupos a juventude deixa de se sentir parte desse ambiente, deixando de participar de sua construção. Ainda assim, a professora percebe que o que tem sido feito no Colégio Strozak tem um valor significativo para a vida dos jovens. A matriz formativa da cultura tem relação com o entendimento da 84 cultura como experiência humana de participação em processos de trabalho, de luta, de organização coletiva na construção de um determinado modo de vida que produz e reproduz conhecimentos. O Plano de Estudos (Strozak, 2013) aponta que ao educar as pessoas é preciso “[...] considerar o peso formador da cultura em suas diferentes manifestações. E em nossa realidade atual a intencionalidade pedagógica com essa matriz deverá incluir o cultivo em nossos estudantes da identidade de trabalhadores [...]” (Strozak, 2013, p. 16). O trabalho com essa matriz tem em sua raiz a crítica à cultura hegemônica na sociedade capitalista e o cultivo de parâmetros de relações sociais e de hábitos cotidianos, que expressem e consolidem os objetivos sociais, políticos e humanos. Para isso é importante intensificar os processos específicos de apropriação de conhecimentos produzidos pela humanidade ao longo da história e de produção de novos conhecimentos que a realidade atual exija. Alguns dos aspectos básicos dessa matriz são: - Ajudar a guardar a raiz do Movimento, ajudando no cultivo de sua memória coletiva e na formação de sua consciência histórica. Foi aprendendo do passado que o MST se fez como é: aprendendo dos lutadores que vieram antes, cultivando a memória de sua própria caminhada; trabalhando sua mística, simbologia e traços da identidade Sem Terra. Esses elementos precisam compor o ambiente educativo de nossas escolas. - Também é muito importante hoje, pelos desafios do projeto de Reforma Agrária Popular do MST, ajudar no enraizamento crítico e na recriação do modo de vida camponês, que inclui conhecer os traços do modo camponês de fazer agricultura, os conhecimentos que se produz e se utiliza nela, as tradições culturais, as relações sociais típicas de famílias e de comunidades de camponeses. - Planejar situações que desenvolvam valores, postura, hábitos: referência de relações sociais e de convivência coletiva; desenvolvimento da afetividade e da criatividade (Strozak, 2013, p. 16). A matriz formativa da história aponta que o ser humano se forma transformando-se ao transformar o mundo, ou seja, no movimento que faz a história. E a sua dimensão educativa está no próprio Movimento. Ao projetar o futuro, a partir das lições do passado cultivadas no presente, se faz a história. A perspectiva histórica é importante para o MST, para se manter 85 como um lutador do povo. A escola objetiva o enraizamento dos sujeitos no Movimento debatendo o vínculo entre passado, presente e futuro, incluindo a discussão e a clareza sobre o projeto de vida humana, de sociedade e a contradição que existe no desenvolvimento histórico. A escola pode ajudar levando em conta os aprendizados básicos e necessários: [...] compreender a nossa própria vida como parte da história; respeitar a história; aprender a ver cada ação ou situação numa perspectiva histórica, quer dizer, em um movimento entre passado, presente e futuro, e compreendê-las em suas relações com outras ações, situações, uma totalidade maior (Strozak, 2013, p. 17). O trabalho com essa matriz passa por alguns aspectos prioritários e são eles: - Trabalhar com atividades que permitam estabelecer a relação entre memória e história. - Exercitar a análise do movimento da realidade em situações da vida (cotidiano e realidade mais ampla): aprender a observar o movimento de transformação nos diferentes fenômenos, da natureza e da sociedade. - Trabalhar as contradições como noção prática, que aos poucos pode se desenvolver como compreensão teórica. O que move uma realidade são suas contradições; sem contradições não há movimento; não há desenvolvimento; não há transformação, não há história. – ‘As coisas opõem-se umas às outras e completam-se umas às outras’ (expressão chinesa). No dia a dia da organização coletiva da vida escolar é possível ir aprendendo métodos de análise e de atuação que permitam conviver com o contraditório e superar contradições antagônicas. - Cultivo de valores e convicções: ‘costume’ de movimento (disponibilidade à ação militante, às lutas, aos processos); postura diante das contradições e dos conflitos, transformação como perspectiva. - Tratar a história como uma ciência de estudo fundamental, encontrando métodos adequados de fazer esse estudo, ancorando-o no movimento do dia a dia da escola, que pode ser trabalhada como uma grande oficina de fazer e aprender história. (...) O processo educativo nas escolas é enquadrado em objetivos, tempos e espaços pré-determinados, aprisionando-o. O trabalho com as matrizes formadoras projeta o processo educativo para além do que está posto. 86 O desenvolvimento multilateral do ser humano não pode ser trabalhado efetivamente na escola sem que se rompa com a forma escolar porque ela foi pensada desde uma matriz cognitivista, centrada exclusivamente na sala de aula e tendo como base de concepção metodológica a separação entre conhecimentos escolares e vida concreta. Para assumir essa concepção de educação que defendemos e abrigar o trabalho com as matrizes formadoras e a realidade atual a escola precisa ser transformada: na sua matriz formativa e nas relações sociais constituintes de sua organização do trabalho. Essa transformação implica em pensar o ambiente educativo da escola descentrado da sala de aula, ou seja, a escola inteira (espaços, tempos e relações) deve ser intencionalizada para educar, incluída nesse todo a sala de aula (algo que pode ser facilitado pela organização do trabalho pedagógico em diferentes tempos educativos). E fazer isso considerando a adequação entre nossos objetivos de educação (formativos e de ensino) e os diferentes ciclos de desenvolvimento humano, respeitando as características próprias a cada idade, tanto do ponto de vista intelectual como físico e afetivo (Strozak, 2013, p. 18). Nesse processo de transformação da forma escolar há a construção de estudos que garantem o ensino de conteúdos relacionados ao estudo da realidade atual. O Plano de Estudos (Strozak, 2013) aponta que é um desafio construir uma forma de organização como a vislumbrada pelos documentos do MST, articulando coerentemente a concepção de educação e os elementos das matrizes formativas. Geralmente, a escola está comprometida com funções de exclusão e subordinação, porém, no caso do Colégio Strozak, o seu objetivo é vivenciar relações em sintonia com os princípios da sociedade que almeja construir e, portanto, é preciso proporcionar situações democráticas para formar a juventude que vai construir uma sociedade baseada em novas formas de relações sociais. As bases desta nova forma escolar incluem a garantia do acesso ao conhecimento e da vivência de novas relações no interior da escola e entre a escola e a vida. Uma escola que possui um estreito vínculo com a vida social e contato direto com o trabalho socialmente necessário. As tarefas de autosserviço, prestadas aos outros e a si mesmo, em hortas, em oficinas, com o uso de metal, madeira, ou em atividades preparatórias e adjacentes ao trabalho produtivo que tem relação econômica são modalidades de trabalho presentes no Plano de Estudos. 87 Para que a escola se vincule aos variados tipos de trabalho é preciso que todos os integrantes da escola conheçam adequadamente a realidade, as possibilidades educativas, as lutas e sua organização social. É importante submeter as relações internas da escola à uma transformação, que altere a lógica de poder existente, com o objetivo de horizontalizar as relações entre educandos e educadores. Horizontalizar as relações é dar a oportunidade para os estudantes viverem a escola, tomando decisões a respeito da organização da vida escolar, opinando e decidindo quando necessário. Nesse processo, ser representado não é suficiente, é preciso que os estudantes conduzam os processos na escola com apoio e orientação dos educadores profissionais, mas é fundamental que os processos nos quais esses estudantes estejam inseridos impliquem responsabilidade real pelo cumprimento de objetivos que afetam a vida de todos. A principal instância de decisão da escola é a Assembleia Escolar, que funciona como um dos mecanismos participativos, que exercitam a capacidade de organização e de decisão dos estudantes. A Comissão Executiva da Assembleia é outra instância, composta por estudantes coordenadores dos Núcleos Setoriais, que se encarregam de aspectos da vida escolar. A terceira instância são os Núcleos Setoriais. Os Núcleos Setoriais agrupam estudantes para articularem ações e realizarem trabalhos para executar demandas em porções da realidade. O Colégio Strozak possui quatro Núcleos Setoriais: 1. Núcleo setorial de embelezamento interno; Núcleo setorial de embelezamento externo; 3. Núcleo setorial de comunicação; 4. Núcleo setorial de apoio ao ensino. Strozak (2013) propõe uma troca semestral de coordenadores dos Núcleos Setoriais como uma atividade rotativa entre a experiência de coordenar e de ser coordenado, como garantia de participação política efetiva dos estudantes tornando o processo mais democrático. Além de a liderança ser rotativa, o documento também indica a necessidade da rotatividade da participação por diferentes Núcleos Setoriais para que esses estudantes vivenciem a responsabilidade em diversos aspectos da vida. No caso da Escola Herdeiros do Saber I, há demanda estudantil pela criação de Núcleos Setoriais que ainda não estão organizados de forma sistematizada. É o que aponta Prestes (2021) em entrevista: 88 Os estudantes daqui eles são os irmãos mais novos dos ex-integrantes do coletivo da juventude que eram do acampamento, que realmente era muito forte e muito atuante quando o acampamento estava aqui, esse acampamento aqui... mas quando acampamento né, quando as famílias não tinham ido pros lotes ainda, então existiu um coletivo da juventude com muita força, muito atuante, então eles faziam diversas ações, tanto dentro do acampamento nas escolas, quanto participavam em eventos fora, assim [...] era uma juventude muito bem fortalecida e esses alunos que estão demandando agora são irmãos desses que participavam desse momento. Então, eles têm alguma chama que está fazendo assim, cadê? Os Núcleos Setoriais prestam contas à Comissão Executiva e a Comissão Executiva presta contas à Assembleia Geral, que deve ocorrer no início e no final de cada semestre. A Assembleia dever contar com a participação de todos os envolvidos com a escola, o que inclui a comunidade. A Assembleia, a Comissão Executiva e os Núcleos Setoriais são possibilidades formativas dos estudantes no desenvolvimento de sua auto-organização. D’ávila (2021), professora que já foi aluna do Colégio, afirma que as atividades acontecem conforme há determinação de práticas de trabalhos, ou seja, quando há a necessidade da realização de uma certa tarefa um grupo de estudantes e docentes é convocado para realizá-la. Contudo, a unificação entre a escola, comunidade, funcionários e professores, as vezes é insuficiente para manter os projetos e programas, pois a conjuntura nacional, de certa forma, enfraqueceu as parcerias e os projetos em nível federal que permitiam a formação dos estudantes, desestabilizando o diálogo com a juventude, deixando na escola apenas aquilo que é garantido em outras escolas, como professores e funcionários para a carga horária básica. Além disso, a pandemia ajudou a modificar o relacionamento entre escola e estudantes. O trabalho realizado no Colégio Strozak requer um redimensionamento dos tempos na escola que precisa prever o exercício da autonomia dos estudantes. Dessa forma, para atingir os objetivos, o Colégio reorganiza os seus tempos, setorizando o dia da escola em tempos educativos. A viabilização dos tempos educativos requer um tempo mais longo na escola, como a escola de tempo integral, por exemplo. Os tempos sugeridos no Plano de Estudos são: 1. Tempo Abertura – um momento coordenado pelos Núcleos Setoriais da escola em que a coletividade se encontra para vivenciar 89 2. 3. 4. 5. 6. a mística. Durante este tempo deve ocorrer a conferência dos Núcleos e das turmas com as palavras de ordem, entoar o hino nacional, música ou apresentações previamente agendadas. Neste tempo podem ser feitos informes e a equipe responsável pela mística desenvolve a atividade. Durante a pesquisa empírica a mística realizada pelos estudantes ocupou o tempo de uma aula, ou seja, para ser realizada a atividade, a professora cedeu o tempo de aula, entendendo ser a atividade parte de processo de aprendizagem. Tempo Trabalho - um momento organizado pelo Núcleo Setorial de Apoio ao Ensino em articulação com os educadores e os Núcleos Setoriais de Trabalho, Saúde e Cultura. Tem por objetivo exercitar a divisão social do trabalho, estabelecendo uma interdependência entre a necessidade do trabalho de cada um e a continuidade da vida da coletividade. Este momento é implementado em duas horas diárias e realizado por turmas, associado à idade dos estudantes e ao trabalho socialmente necessário externo à escola. Tempo Leitura – um momento organizado a partir das leituras planejadas para cada turma, com o objetivo de construir o gosto e a disciplina pela leitura. Pode ser efetivado de várias formas, em momentos de grupos, momentos coletivos ou de forma individual. Deve ser acompanhado pelo Núcleo Setorial de Leitura. Tempo Reflexão Escrita – um tempo educativo diário de 20 minutos dedicado à manutenção pessoal da leitura que cada integrante da coletividade realiza do processo de vivência em coletividade, dos aprendizados relevantes, do que foi discutido nos diferentes tempos educativos e da apropriação do conhecimento. Tempo Cultura – tempo destinado ao cultivo e à reflexão sobre expressões culturais diversas e à complementação da formação política e ideológica do conjunto da coletividade. Todo mês a coletividade realiza um planejamento deste tempo educativo organizando as atividades do Núcleo Setorial de Cultura. Tempo Aula – um momento diário destinado à execução das disciplinas do planejamento curricular, conforme cronograma das aulas. Este tempo educativo está sob responsabilidade dos educadores 90 e do Núcleo Setorial de Ensino. É o maior tempo educativo, devendo respeitar as determinações oficiais sobre ele. Acontece mesclado aos demais tempos educativos, com aulas acontecendo tanto no período da tarde quanto nos períodos da manhã ou da noite. 7. Tempo de Estudo – é um tempo destinado à iniciativa de estudo dos educandos, em que se desenvolvem atividades de pesquisa, e realizam os trabalhos encaminhados pelas disciplinas. bem como estudos coletivo e/ou individuais. Neste tempo, que pode ocorrer uma ou mais vezes na semana, podem aparecer iniciativas criativas de grupos de educandos procurando estudar sobre assuntos de interesse comum, de curiosidades, e pode ser dedicado à escrita espontânea. O Tempo Estudo é definido junto com os educadores das disciplinas específicas, os quais informam o Núcleo Setorial de Ensino que trata de organizar o tempo e cobrar os resultados. A duração deste tempo é fixada de acordo com o conjunto das atividades propostas pelos educandos e pelos educadores, não extrapolando o limite. Este tempo também inclui a realização de estudos etnográficos na região. 8. Tempo Oficina – é um momento destinado às atividades que contribuem para o processo de ensino e aprendizagem acerca da cooperação, de habilidades manuais, cognitivas, motoras entre outras. Neste tempo podem ser devolvidas oficinas de artesanato, de danças, de esportes, de ginástica, de construção de materiais (brinquedos, materiais didáticos etc.) de música e outras possibilidades. Inclui também trabalhos mais elaborados com metal e madeira que permitam exercitar a organização científica do trabalho. A execução de cada oficina é mediada de acordo com a disponibilidade e com a capacidade de cada responsável, sendo dirigida tanto pelos educandos, pelos educadores da escola, como por voluntários da comunidade ou por convidados. 9. Tempo Notícia – é o tempo para acompanhar noticiários, seja pela televisão, rádio ou jornais impressos e fazer o debate sobre as informações obtidas. É planejado pelo Núcleo Setorial de Comunicação. Faz parte dele também a edição do Jornal Escolar. 91 10. Tempo de Estudo Independente Orientado – é o tempo destinado a acompanhar os estudantes que estão com alguma dificuldade de compreensão em algum aspecto. A duração deste tempo é fixada pelo educador da disciplina em que o educando apresenta a dificuldade. 11. Tempo dos Núcleos Setoriais – é um momento que faz parte do processo de gestão da coletividade e acontece duas vezes na semana. 12. Tempo Abertura e Outros Tempos – acontece com o objetivo de discutir os diversos aspectos relevantes da vida na escola, desde a organização da escola, funcionamento dos Núcleos, estruturas físicas, reivindicações e proposições, ou seja, um espaço para a constituição do Núcleo de Base. 13. Tempo dos educadores – reservado para o encontro dos educadores, para estudarem, planejarem e acompanharem o desenvolvimento do conjunto dos estudantes. Possui um cronograma fixo e as atividades não estão submetidas à deliberação, pois podem ser alteradas de comum acordo. A escola define dentro do regime de trabalho a possibilidade de planejamento coletivo, com vista a potencializar o tempo dos educadores. Já apontamos que as sociedades propõem uma educação de acordo com os seus objetivos de formação para a população. Caldart e Freitas (2017) apontam que no caso da Revolução Russa, o plano educacional objetivava preparar um novo homem e uma nova mulher para viver em uma sociedade sem classes. Nesta nova organização social, os coletivos atuaram como uma peça fundamental, os sovietes e a educação tiveram a tarefa de preparar a juventude ativa para participar na vida coletiva. Isto implicava que os trabalhadores se tornassem proprietários da produção, extinguindo as classes sociais. Os objetivos da educação após a revolução se expandiram a partir dessa necessidade. O trabalho se tornou o centro da organização do sistema educativo. “Pela porta de entrada do trabalho, chega-se, por suas conexões, à vida, à auto-organização (pessoal e coletiva) e ao conhecimento sistematizado – em estreita ligação com o estudo da atualidade – que em última instância valida a forma e o conteúdo da nova escola” (Caldart; Freitas, 2017, p. 15). Portanto, não era uma questão apenas de alteração dos conteúdos trabalhados na escola, mas o jeito, a forma da escola, suas práticas e suas conexões 92 sociais, as relações de trabalho e de poder que precisavam ser modificadas (Caldart; Freitas, 2017). Guardadas as devidas diferenças, é isso que o Colégio Strozak tenta implementar em sua prática pedagógica, baseando-se metodologicamente nos estudos e fundamentos da escola do trabalho de Pistrak, que atuou liderando por duas décadas a construção da escola e o desenvolvimento de uma pedagogia marxista na extinta União Soviética. Doutor em Ciências Pedagógicas, professor e membro do Partido Comunista desde 1924, Pistrak viu na revolução socialista de outubro a possibilidade da criação da nova escola do trabalho. Para Pistrak (2008) o trabalho na escola soviética só poderia ser feito com uma teoria pedagógica revolucionária, pois é a teoria que precede a prática revolucionária e dessa forma, a teoria marxista deveria ser assimilada como um instrumento ativo de transformação da escola. Além disso, seria necessário que a teoria comunista viesse junto a uma prática ativa quando em alguma medida cada professor fosse um ativista social. “O domínio do método marxista é mais da metade da tarefa em relação ao domínio das ideias comunistas da educação” (Pistrak, 2008, p. 36). Dessa forma, a escola deveria estar ligada às finalidades da educação comunista na época, o que incluía: 1. A ligação com a atualidade; e 2. Autoorganização dos estudantes. Quando Pistrak se refere à ligação da escola com a atualidade, se refere ao que gira em torno da revolução social, pois era o contexto em que a escola estava inserida, mas também à fortaleza capitalista e a necessária revolução mundial. Para dominar a atualidade seria necessária a unificação do ensino em torno de grupos de fenômenos como objetos de estudo, concentrando o ensino ao redor de um eixo, ou seja, o denominado Sistema de Complexos de Estudos. Além da ligação da escola com a atualidade, a auto-organização é amplamente trabalhada por Pistrak, que designa à escola a função de formar, ampliar e dirigir os interesses da criança, criar interesses coletivos, organizar e unir as crianças em torno de interesses vivos, por meio do coletivo infantil. Outra forma de auto-organização tem relação com as ocasiões em que as crianças se organizavam ao redor de alguma coisa e a realizavam coletivamente, como uma excursão, sarau, exposição, trabalho escolar etc., e também a autodireção escolar. 93 Os dois aspectos: atualidade e auto-organização, determinam o caráter da escola do trabalho soviética; ambos decorrem de uma só ideia básica, de uma só compreensão marxista e revolucionária das tarefas da escola em nossa época histórica de desenvolvimento tão rápido. A organização da escola nesta base cria para as crianças um ambiente sólido e saudável no qual se desenvolverá um espírito social forte, de trabalho, jovial e animado nas futuras gerações (Pistrak, 2008, p. 55). Na base do trabalho escolar, os tipos de trabalho considerados adequados para o momento da escola soviética eram: 1. Autosserviço pessoal e coletivo; 2. Participação no trabalho social externo à escola, que não exige qualificação especial; 3. Trabalho agrícola; 4. Trabalho produtivo na fábrica; 5. Trabalho cuja natureza é de serviço. O que Pistrak apontou para a escola da revolução foi que ao ligar a escola com o trabalho, os conhecimentos científicos seriam gravados profundamente, pois a necessidade de tais conhecimentos seria incontestável e corresponderiam às finalidades principais da escola, ajudando na concretização de seus objetivos. No caso do MST há elementos que o impedem de realizar a proposta tal como foi pensada por Pistrak, pois diferentemente do que acontecia na época da revolução na extinta União Soviética, o MST luta para construir na escola pública capitalista as bases de uma Educação do Campo que tenha como pilar fundamental a Pedagogia do Movimento. Além disso, o MST enfrenta o agronegócio com a força da agricultura familiar, de base agroecológica. O Colégio Strozak propõe formas de inserir a Pedagogia Socialista em seu PPP, mas encontra entraves impostos pelo Estado. No caso do Colégio, os tempos formativos precisam ser modificados, e há necessidade de aumento de carga horária para a realização do trabalho com os estudantes. Contudo, aumento na carga horária implica aumento de disciplinas e mais cobranças a respeito daquilo que o Estado considera importante. Como fazer os alunos permanecerem mais tempo na escola sem a custódia do Estado? Os professores não têm como permanecer mais tempo no Colégio, pois saem de uma escola para outra sem pausa e não há monitores ou pessoas contratadas para realizarem oficinas ou atividades extras. Até mesmo atividades como a 94 mística15 são realizadas no tempo de aula, ou seja, ela só acontece se o professor dispensar alguns minutos da sua aula para tal. Caso contrário, a organização e realização da mística não encontra espaço na escola. Nesse sentido percebemos a dificuldade de realização da proposta pelo MST e o quão significativo é que o Colégio Strozak ainda consiga realizá-la, mesmo que parcialmente. 15 “No MST, mística refere algo intangível, é a qualidade de confiança, coragem e firmeza ante situações favoráveis ou adversas da luta pela terra. Mística é também o nome dado a cerimônias com características rituais realizadas precipuamente com intuito motivacional. Entretanto, longe de limitar-se ao encorajamento dos militantes, tais cerimônias desempenham importantes funções políticas e organizativas, com relevância atestada por serem atividades prescritivas, objeto de regulação e reflexão especializada. Embora tarefa de equipes rotativas, altamente valorizada, ela é considerada competência de militantes experientes, especialmente do setor de formação política. No MST mística é: a) uma qualidade ou valor; b) uma prática ritual; c) um “princípio organizativo” e c) um “método de trabalho de base”.2 Em suas múltiplas dimensões, como veremos, a mística é veículo e expressão da cosmologia do MST, desempenhando papel político fulcral na articulação de suas instâncias organizativas e na propulsão da ação coletiva sem-terra” (Chaves, 2022, p.3). 95 CAPÍTULO IV ARTICULAÇÃO ENTRE EDUCAÇÃO E TRABALHO NO COLÉGIO STROZAK: COMPLEXOS DE ESTUDO E CICLOS DE FORMAÇÃO HUMANA. Quando Pistrak (2008) tratou da educação escolar, desenvolveu um sistema de organização do material educativo em Complexos, que consiste em tomar um objeto de estudo examinado por alguma disciplina ou série de disciplinas congêneres e ao redor dele reunir o material educativo. Pistrak denominou esse trabalho pedagógico de Sistema de Complexos de Estudos. O Colégio Strozak é uma escola que coloca em prática a Pedagogia do Movimento e adota a metodologia de Complexos de Estudo e Ciclos de Formação Humana, baseado nos estudos e nas experiências da Pedagogia Soviética e de Paulo Freire (Strozak, 2020). Os passos para aplicação dos Complexos são, basicamente, os seguintes: escolher um objeto de estudo, o tema e subtema do Complexo fazendo as relações dos Complexos entre si; selecionar o enfoque do estudo para cada tema do Complexo; organizar o trabalho dos estudos sobre o tema do Complexo. A escolha do tema dos Complexos se encontra no plano social, pois deve ser um conteúdo socialmente significativo e importante para a compreensão da realidade atual. E o Complexo funciona como uma unidade de trabalho, que ocorre de forma interdisciplinar. Para realizar o trabalho com o Complexo, inicialmente é necessária uma pesquisa sobre a realidade do mundo dos estudantes, que permita a compreensão de sua realidade profundamente. O estudo deve perpassar várias dimensões da vida, tais como o trabalho material, as formas de organização 97 vigentes, as lutas e anseios da comunidade, as fontes educativas disponíveis, dentro e fora da escola. A escola se torna, portanto, um centro cultural e de pesquisa que permite o estudo, a compreensão e a transformação da vida cotidiana (Strozak, 2020). O trabalho aparece como método geral na unidade do Complexo, mas se incluem também as bases das ciências e das artes, os processos de desenvolvimento da auto-organização dos estudantes inseridos em seus objetivos formativos e os métodos específicos de domínio das disciplinas envolvidas no Complexo (Strozak, 2013). O Plano de Estudos e o PPP apontam que o Complexo não é um método de ensino, mas uma unidade curricular que tem por objetivo integrar a ação das variadas disciplinas para que o estudante compreenda e transforme uma determinada porção da realidade. De acordo com Leite (2017), porção da realidade pode ser compreendida como aspectos da prática social que em alguma medida determinam a vida social, como o trabalho, por exemplo. Em entrevista, a ex-diretora do Colégio Strozak, Ana Hammel (2021) afirma que é importante compreender o quão profundo é a proposta do Sistema de Complexos. [...] mexer na organização da escola, na estrutura, já é um processo muito rico assim. Você olhar para essa forma escolar e poder reorganizar ela e poder pensar a partir de outra lógica que não seja essa lógica da seriação, da cela da aula, ou simplesmente trabalhar a cognição. Olhar pra essa forma escolar, do jeito que a criança aprende, do jeito de ensinar, já é um processo muito rico. Só que não basta a gente mexer nisso, se a gente também não mexer no currículo como um todo. Só que mexer no currículo não é mexer no conteúdo, mas é nessa forma. E aí a gente diz que o Complexo de Estudo, ele é mais uma estrutura metodológica, uma forma de a gente organizar o conhecimento com um vínculo com a realidade, com o trabalho como o motor central. É entender que a gente educa de várias formas, mas o trabalho é educativo, a cultura, essa inserção, essa relação na auto-organização. Então o Complexo nos possibilita colocar isso, como o ser humano aprende e ensina (Hammel, 2021). Entendemos, portanto, que os Complexos de Estudos possibilitam 98 uma reorganização do trabalho pedagógico, para que ele tenha ligação com a realidade concreta da escola e dos estudantes. As aprendizagens esperadas são direcionadas pelos objetivos formativos de ensino e não pelo domínio de um trabalho propriamente dito. Não se trata de inserir a criança em trabalhos, mas sim na prática social do trabalho para garantir correlação com a vida e dando sentido à aprendizagem. É a compreensão da realidade que eleva o nível dos êxitos esperados em cada Complexo, tanto do ponto de vista do ensino quanto do ponto de vista dos objetivos formativos. O Plano de Estudos aponta que para introduzir o Sistema de Complexos no Colégio, o trabalho pedagógico precisa estar organizado para contemplar um conjunto de Complexos semestralmente. Esses Complexos devem articular as atividades teórico-práticas realizadas a partir das diferentes disciplinas. Para exemplificar, usaremos o Plano de Trabalho elaborado para o 6º ano, que para o segundo semestre reúne um conjunto de quatro Complexos desenvolvidos a partir das seguintes porções da realidade: 1. A luta pela Reforma Agrária; 2. Manejo dos ecossistemas; 3. Autosserviço; 4. As formas de organização coletiva dentro e fora da escola. A partir dessas porções da realidade as disciplinas devem ser planejadas para orientar o trabalho produtivo. Os componentes curriculares devem observar os objetivos formativos, que são: 1. Exercitar a expressão oral e escrita; 2. Utilizar conceitos na compreensão de questões da realidade concreta; 3. Formular conceitos simples desde fenômenos da realidade; 4. Exercitar o raciocínio lógico; 5. Demonstrar postura de curiosidade intelectual; 6. Desenvolver capacidade de observação da realidade e percepção dos problemas da vida; 7. Aprender a elaborar hipóteses de solução diante de problemas da prática; 8. Aprender procedimentos básicos de pesquisa para aprofundamento e comprovação de hipóteses ou posições sobre fatos; 9. Saber fazer análises e compor sínteses (mentais e escritas); 10. Desenvolver a capacidade de discernir sobre os vários lados de uma situação ou questão antes de tomar decisões e de agir; 11. Apropriar-se de tecnologias de produção e uso social; 12. Praticar valores de solidariedade, cooperação, responsabilidade, empatia, honestidade humildade, respeito e outros, demonstrando hábitos e emoções de vida coletiva: disposição e entusiasmo de colaborar para o bem-estar dos outros; 13. Demonstrar disponibilidade para ações de militância social/ 99 política; 14. Desenvolver a capacidade de iniciativa e de agir organizadamente diante de problemas; 15. Desenvolver hábitos de trabalho individual e coletivo; 16. Aprender algumas habilidades técnicas relacionadas a trabalhos socialmente úteis; 17. Compreender a lógica da cooperação ou da organização do trabalho coletivo a partir de participação (na escola ou fora dela) em formas de trabalho que envolvam as atividades de planejamento, execução e balanço crítico coletivo; 18. Conhecer as formas de organização da produção e do trabalho no campo, compreendendo o atual contraponto de lógicas entre agronegócio e agricultura camponesa, e sua relação com as lutas sociais dos movimentos sociais camponeses da atualidade; 19. Cultivar a memória e a identidade de trabalhador, camponês, Sem Terra; 20. Valorizar a produção cultural e fazer a análise crítica da atuação da indústria cultural e das tradições culturais; 21. Desenvolver a cultura corporal, possibilitando ampliar a consciência, a expressividade, o respeito e o cuidado com o corpo; 22. Consolidar hábitos de higiene e de cuidados com a saúde; 23. Desenvolver a sensibilidade estética, a criatividade e a capacidade de expressão artística; 24. Desnaturalizar as relações de opressão, demonstrando consciência e indignação diante de injustiças e situações de exploração entre os seres humanos e da natureza; 25. Realizar as atividades com comprometimento e autodisciplina posicionando-se criticamente diante delas; 26. Desenvolver a afetividade, ampliando gradativamente o equilíbrio emocional; 27. Estabelecer/perceber relações entre conteúdos de ensino, atividades práticas e questões da realidade atual; 28. Perceber as conexões que ligam entre si os fenômenos, naturais e sociais, compreendendo, pelas questões da prática, o que são contradições, o que é movimento e como acontecem as transformações na natureza, na sociedade. Um dos quatro Complexos do 6º ano (2º semestre) foi organizado a partir da porção da realidade A luta pela reforma agrária. De acordo com o Plano de Estudos (Strozak, 2013, p. 67), “Essa luta envolve não só a necessidade de acesso à terra como meio de produção, mas é uma luta por condições adequadas para viver e produzir, o que implica em moradia, acesso à tecnologia, viabilização da circulação e venda da produção e outros.” Em cada Complexo são envolvidos alguns componentes curriculares. No caso do Complexo 1 foram envolvidos os componentes Educação Física, Língua Estrangeira Moderna, Espanhol, História e Geografia e Matemática. 100 Cada componente possui justificativa, conteúdos, objetivos de ensino, que devem se ligar aos objetivos formativos, pré-requisitos, metodologias e avaliação para o trabalho com o Complexos. O componente curricular de História, por exemplo, apresenta o trabalho com os seguintes conteúdos: América pré-colonização, povos pré-colombianos, povos indígenas e a colonização do Brasil, primeira civilização e o modo de produção escravista; Egito, Mesopotâmia, Grécia, Roma, Índia, China e Povos Africanos. Como objetivos de ensino, o Plano de Estudos (Strozak, 2013) elenca: Conhecer os diferentes modos de produção dos povos indígenas PréColombianos; Perceber como o processo de colonização condiciona a produção da existência da América e do Brasil; Identificar o modo de produção e organização social nas sociedades escravistas: Ásia e África; Entender a organização da sociedade colonial. Cada educador tem autonomia para desenvolver a sua disciplina de acordo com as suas inclinações metodológicas, a que introjetou ao longo de sua formação teórica e prática. Contudo, espera-se que os educadores interliguem as relações de significação das aprendizagens com a luta pela terra. Essa forma de organização se repete nos demais complexos, perpassando por todas as disciplinas. A organização do trabalho por Complexos implica uma organização do currículo específica, como mostramos. Quando o educador é contratado para trabalhar no Colégio ou na escola itinerante, precisa se adaptar a essa nova forma de organização do trabalho pedagógico. É um projeto diferenciado que se distancia da proposta da Secretaria Estadual de Educação do Paraná, logo, um desafio para esses profissionais. Contudo, é nessa nova forma de organização que podemos perceber a articulação da educação com a realidade concreta da vida dos estudantes e com a Pedagogia do Movimento, principalmente com os eixos que são avaliados em cada disciplina de cada Complexo. O Plano de Estudos aponta que a avaliação requer dos estudantes a demonstração de atitudes e vivências relacionadas aos temas trabalhados, tais como “Demonstrar na organização coletiva no acampamento/assentamento e na escola práticas mais solidárias” (Strozak, 2013, p. 60); “A partir do lugar em que vive, o educando identifique e compreenda as bases das relações de trabalho;” (Strozak, 2013, p. 83); “Estabelecer relações entre o modo de 101 produção europeu e os indígenas (Incas, Maias e Astecas), estabelecer relações entre as técnicas Incas de armazenamento e cultivo das sementes e as realizadas dentro do acampamento” (Strozak, 2013, p. 84); “A partir do lugar em que vive, o educando já identifica e compreende as bases das relações de trabalho (quem trabalha, com o que trabalha e porque trabalha) [...]” (Strozak, 2013, p. 100); “O educando identifica, relaciona e diferencia as formas de ocupação e uso do solo, em particular para agricultura pecuária, extrativismo, desde o lugar em que vive, assim como, em diferentes paisagens e regiões brasileiras.” (Strozak, 2013, p. 111); “Utilizar regra de três para operações diversas: para comparar preços, para montagem de receituários de adubos orgânicos e agroecológico.” (Strozak, 2013, p. 144); “Utilizar cálculos algébricos para abstrair dados no planejamento da propriedade, da comunidade e da produção.” (Strozak, 2013, p. 144); “Levar os educandos e educandas a serem sujeitos articulados com a família e comunidade para melhorar as condições de produção ao mensurar dados e produzir de forma planejada utilizando escalas, medidas dos ângulos e porcentagem.” (Strozak, 2013, p. 145); “Estudar e mensurar dados da reforma agrária no Brasil.” (Strozak, 2013, p. 194). Os objetivos são mensuráveis e quando alcançados fazem sentido na vida dos estudantes, podendo fazer diferença imediata na sua convivência familiar e comunitária. Organizar o trabalho pedagógico por meio dos Complexos envolve uma mudança na perspectiva teórica de educação, mas não só isso. É preciso uma reorganização dos tempos e espaços da escola e na forma como os estudantes serão avaliados. O Sistema de Complexos requer um tempo maior de trabalho e o fechamento das médias é semestral e não trimestral, como acontece nas escolas estaduais do Paraná. Além disso, não são atividades avaliativas que valerão notas e serão as responsáveis pelo processo avaliativo de cada estudante. Os docentes elaboram pareceres descritivos sobre o processo de aprendizagem e acompanham o avanço de cada estudante. O Conselho de Classe é participativo e os pais têm acesso ao Parecer Descritivo16 para que possam compreender o processo de aprendizagem de seus filhos. Dias (2021) afirma que, no Colégio Strozak, os pais têm grande influên16 Trata-se de um documento detalhado em que o professor precisa descrever os momentos de aprendizagem em que constam os saltos qualitativos do aluno no processo de ensino-aprendizagem. 102 cia sobre a proposta pedagógica, dando opiniões, sugestões e propondo mudanças e que no Conselho os pais ficam cientes do processo de aprendizagem das crianças e também de seu comportamento e participação. A criança também está presente no Conselho e pode se manifestar. Dessa forma, o Conselho de Classe Participativo constrói formas de melhorar o processo de aprendizagem dos estudantes em parceria com a família e comunidade docente. Essa forma de organização da proposta pedagógica é o que resultou na fala de Dias (2021) no capítulo anterior, quando afirma que a escola é de todos. O pertencimento não tem relação com a estrutura física da escola, ou com sua localização apenas, esse pertencimento é pedagógico e cultural também. Todos são responsáveis por manter a escola funcionando bem para que nela os estudantes possam conhecer mais sobre suas próprias realidades e fazer a diferença em suas comunidades. Além dos Complexos de Estudo, a organização do Colégio Strozak ocorre por meio dos Ciclos de Formação Humana (CFH), com base nos estudos de Paulo Freire. Os CFH apresentam uma nova forma de organização dos tempos e espaços. Por exemplo, no Colégio Strozak o Ensino Médio é concentrado no período da manhã, as turmas do Ensino Fundamental no período da tarde, e as turmas do curso de formação docente alternam entre ambos os períodos. Os CFH propõem que os estudantes que atingirem o aproveitamento necessário ao final do ciclo avancem para o ciclo imediatamente seguinte e aqueles que não atingirem sejam encaminhados para a classe intermediária, que faz parte do PPP do Colégio Strozak e não gera matrícula no Sistema Estadual de Registro Escolar (SERE). A proposta é que ao fazer parte da Classe Intermediária, o estudante possa alcançar o aproveitamento previsto para o ano e que assim possa avançar no ciclo, eliminando características de retenção existentes na rede estadual. É uma classe entre uma turma e outra que tem por objetivo ajudar o estudante a superar as dificuldades que impedem seu pleno desenvolvimento. A classe intermediária é organizada em torno de áreas, tais como a Linguagem, Ciências da Natureza e Ciências Sociais e cada área tem 5 horas/ aula semanais. Quando o estudante é encaminhado para a classe intermediária, a família opta pela participação do estudante e assume apoiá-lo para superar seus limites em um trabalho conjunto com a escola. 103 Os CFH modificaram a forma de o professor organizar o seu trabalho, pois, enquanto na escola oficial o aluno que não atingiu o objetivo (nota) é reprovado, o projeto pedagógico dos Ciclos indica uma intermediação e o estudante continua no processo educativo. Os documentos analisados, apontam que há um avanço teórico, mas que há dificuldades em sua aplicação. Uma das professoras entrevistadas, que preferiu não ser gravada nem identificada na entrevista, aponta que a proposta do Colégio Strozak é ótima, mas por ser diferenciada, é de difícil apropriação e quando alguns professores começam a se apropriar dela, o ano letivo termina e nem sempre esses profissionais retornam para a escola. Contudo, a diretora do Colégio, Jucélia Castelari (2021), aponta que nem sempre isso é algo negativo, pois professores que estão há muito tempo no Colégio podem recusar a se apropriar dos conhecimentos e não integrar os Complexos ao trabalho pedagógico da forma como o Colégio propõe, enquanto novos professores podem desempenhar um excelente trabalho nesse sentido, mesmo sem vínculo efetivo no cargo. Um dos professores entrevistados, Tiago Prestes (2021), afirmou que já conhecia a proposta dos Complexos de Estudos e do CFH por ter sido estagiário por meio do Programa de Iniciação à Docência no Colégio e que, após formado e convocado no Processo Seletivo para professor, optou por trabalhar no Colégio Strozak e no Colégio Itinerante Herdeiros do Saber I. A escolha pessoal do professor se deveu à sua integração com a proposta do Colégio, contudo, em entrevista ele aponta algumas dificuldades na inserção dos Complexos ao trabalho pedagógico: É uma boa proposta, mas ela tem algumas limitações, ela tem muitas limitações, porque a gente não consegue fazer com que os estudantes sintam pertencentes à escola e que o comprometimento com os estudos deles é [...] reflete não só na vida deles como estudantes, mas no desenvolvimento dos lotes deles. Eu até procuro mostrar pra eles, por exemplo, eu trabalho aqui a disciplina de matemática, eu tento mostrar pra eles, por exemplo, cálculo de área e perímetro, o quanto que aprender cálculo de área e perímetro pode ser importante para eles dentro da propriedade deles sabe, o quanto que eu vou produzir num metro quadrado, o quanto que eu preciso fechar, quanto de tela, por exemplo, que eu preciso fechar pra fazer uma horta, sabe [...] e eu tento o máximo trazer o conteúdo de uma 104 maneira que eles consigam adaptar dentro da realidade deles. Mas, mesmo assim, eles não têm esse comprometimento com a realidade deles. Para o professor é preciso fazer um resgate, um resgate histórico, para entender o significado da escola, e tudo o que ela representa (Prestes, 2021). Apesar de o Colégio ter seu PPP específico e uma proposta elaborada e aprovada pela Secretaria Estadual de Educação, não pode se desvincular da proposta curricular do Estado. Com a necessidade de implementação da Base Nacional Comum Curricular (BNCC), o Colégio tem encontrado novos desafios no que se refere à organização do trabalho pedagógico. Até 2019, o Colégio não havia implementado em seu projeto a BNCC, mas a partir de 2020 a Base foi incorporada à, tendo como base o Referencial Curricular do Paraná. “A adaptação ocorreu a partir da construção coletiva para atender a especificidade do contexto das escolas inseridas em áreas de Reforma Agrária” (Strozak, 2020, p. 10). De acordo com Hammel (2021), a BNCC retira elementos fundamentais da filosofia, sociologia, história etc., trazendo de forma muito amarrada o que deve ser trabalhado com os estudantes. “Nosso grande problema da BNCC é como ela trata a questão das disciplinas no currículo. Para nós, por exemplo, a gente já trabalhava com uma matriz mais equitativa [...] que não é esse número que tem na BNCC.” Outra preocupação de Hammel (2021) é a questão das propostas dos itinerários formativos. Outra questão que está posta é o processo de luta que a gente está fazendo, o último que acompanhei o Paraná estava propondo para as escolas do campo paranaenses a formação no agronegócio na escola, e Escola Itinerante e o Colégio Iraci já falaram que não querem né, e que eles possam oferecer a agroecologia na escola. Mas quem vai dar a formação para esses professores que não têm formação na rede? O Paraná vai garantir o espaço para que eles tenham formação? E se o estudante não quiser fazer a agroecologia ele vai ter a opção de escolher outro itinerário? Então quando chega no chão da escola, as questões têm várias variantes que nem sempre o Estado considera. Então isso acaba sendo um problema, então quando a escola tem um corpo docente que é capaz de lidar com as adversidades, conseguindo mesmo diante de um modelo precário, imposto, como é a BNCC [...] têm resistência, eles têm discutido, eles se reúnem, eles fazem proposta, questionam o Estado e isso é um processo educativo, não só para os alunos, mas também para os professores. 105 É possível perceber que mesmo com a organização e elaboração de um PPP que contemple as bases para uma formação significativa para os alunos do Colégio, há um entrave entre as possibilidades e a realidade concreta. Um exemplo é que quando o Colégio Strozak propõe o rompimento da escola em séries, está avançando sua proposta para além da progressão continuada, que é a proposta de outras Secretarias Estaduais e Municipais. Mas para que a adoção dos Ciclos seja válida, necessita de uma mudança significativa nas concepções que sustentam as práticas pedagógicas e a consolidação das mesmas. Não se trata de uma reorganização da estrutura curricular, mas sim do modelo de ensino, pois o que prevê a organização em Ciclos são os agrupamentos referências e os reagrupamentos. Agrupamentos são as turmas de origem em que os estudantes estão matriculados. Reagrupamentos são novas turmas, que se formam a partir das necessidades e potencialidades que são identificadas nos estudantes e serão utilizadas como forma de recuperação de ensino. Os agrupamentos trazem a concepção de que as diferenças são necessárias para a efetivação do processo educativo. Com os agrupamentos e reagrupamentos a escola é colocada em movimento e cria tempos e espaços de aprender. Uma das implicações mais concretas da organização dos CFH é que são necessários registros mais qualitativos do que quantitativos da avaliação e a participação dos estudantes e dos educadores na organização dos sujeitos na escola e nos Conselhos de Classe Participativo. Um registro mais qualitativo é uma das marcas do Colégio, que avalia os seus estudantes por meio do Parecer Descritivo. Contudo, até mesmo a elaboração dos Pareceres pode ser um problema no contexto de escola, pois o tempo de alguns professores não colabora para o cumprimento da proposta. É o que destaca o professor Tiago Prestes (2021): [...] o Parecer ele tem uma intencionalidade de te dar uma dimensão sobre o aprendizado do educando. Só que como a gente, pra gente ter um salário um pouco melhor, a gente tem que pegar muitas aulas né, então a gente não consegue dar o acompanhamento e atenção devido pros educandos. Então assim, se pegar o Parecer que a gente produz e pegar o Parecer por exemplo, dos professores dos anos iniciais tem uma diferença muito grande, eles têm um acompanhamento, eles estão todos os dias ali, conversando com os mesmos estudantes, eu não. De manhã estou numa turma, de tarde estou em outra, de tarde estou em outra, outro dia eu 106 estou em outra escola, eu trabalho em duas escolas, mas tem professora que trabalha em 5, 6 escolas, sabe. Então a gente não consegue dar um acompanhamento e dar a atenção devida para fazer a avaliação daquele educando, a gente não consegue fazer isso. A professora D’ávila (2021) afirma que a proposta tem limitações e que o Estado a ataca por todos os lados. Até a própria relação com o Estado é difícil. Igual na Escola Iraci e aqui na Itinerante, até a formação pedagógica e a formação continuada o Estado direciona, não tem como a gente fazer algo diferente, trabalhar outras perspectivas, trazer a Universidade, trazer outros pesquisadores porque sempre o Estado determina o conteúdo dessas formações, então por mais que a gente tenha, esteja, dentro de um assentamento que tenha uma história de luta, é um território de luta, de conquista, mas a gente ainda não consegue fazer uma educação diferenciada, porque o Estado intervém, o Estado direciona, ele limita também. Então a gente ainda dentro dessa relação com o Estado, a gente não consegue avançar. E é claro, a forma da escola também dificulta, por que essa forma ainda? As aulas, cinco aulas, que tem que estar em sala de aula. Como que a gente rompe com a cela de aula ne? Que tem que estar tudo fechadinho ali, né? A gente não consegue pensar a auto-organização da juventude, pensar a questão do trabalho. O trabalho que de uma certa forma pode ser realizado na própria escola, que tem conhecimento também, conteúdo escolar, só que normalmente essa forma ela já vem pronta e delimitada. É assim que se faz escola. E a gente gostaria de fazer uma outra escola ainda. Só que dentro dessa relação com o Estado a gente não consegue. A fala da professora mostra que o avanço teórico do Colégio também é fruto de muita luta, pois com as constantes intervenções do Estado, a própria organização da proposta é um desafio e colocá-la em prática um desafio maior ainda. O Plano de Estudos aponta para uma elaboração curricular que combina os objetivos político-econômicos do Movimento com as condições da sua realidade. Quando tratamos do ensino, nos referimos a ações específicas na escola. Mas a educação é ampla e a escola ao propor a articulação com o trabalho, não fica restrita aos seus muros. No caso do Colégio Strozak, as suas ações ecoam para o Assentamento Marcos Freire e para a cidade de Rio Bonito do Iguaçu. 107 A professora D’ávila (2021) afirmou que o desmonte da máquina pública dificulta as possibilidades da escola. Trabalhos ligados à arte e cultura que contavam com a participação de formadores no contraturno escolar, por exemplo, foram cortados. Logo, a escola fica dependente de voluntariado ou trabalho extra não remunerado de professores, o que dificulta ou inviabiliza a realização de parte da proposta. O MST (1996) afirma que a escola deve ser responsável por propor experiências de trabalho e acompanhá-las para que sejam educativas. No campo teórico, o professor Nilton José Costa Silva (2021), do Colégio Strozak, em entrevista, explicou que em sua disciplina faz um debate específico com os estudantes para que compreendam o valor do trabalho e a importância dele na vida do ser humano. Aqui a gente procura trabalhar a questão de que os alunos, aqueles que queiram né, se mantenham no campo, mas que ele tenha a condição e o entendimento de que ele pode fazer disso algo melhor pra ele. Não por ser do interior, por ser uma escola do interior que ele vai ser menos do que aquele, uma possibilidade menor do que aquele que está na cidade. Mas na realidade a gente vê isso né? Geralmente as escolas da cidade têm uma estrutura, uma condição, uma estrutura melhor do que as escolas do campo. Mas essa relação com o trabalho, a gente procura trabalhar isso com eles, da importância do trabalho, mas não aquele trabalho, vamos dizer assim, aquele trabalho como um escravo, vamos dizer assim entre aspas né. O trabalho como uma coisa natural, uma coisa que as pessoas precisam, mas tem que ser prazeroso pra você, pra tua sobrevivência, pra que você faça aquilo que você gosta também. A gente trabalha dentro dessa perspectiva. O professor afirma que na atualidade há dificuldades, diferença na luta, certo distanciamento entre as famílias e os professores. Mas, mesmo assim, afirma que a escola avançou pedagogicamente. O professor diz que vale a pena trabalhar no Colégio e que não abre mão, pois sente que pode fazer a diferença na vida das pessoas e na proposta da escola, debatendo, dando opinião, sendo ouvido, sendo criticado e é isso que ele tenta ensinar aos alunos. O debate do professor em sala de aula aponta para a concepção de que o trabalho faz parte da construção do sujeito. Para o professor, os debates 108 em que os estudantes do Colégio são envolvidos e a proposta de trabalho pedagógico formam os estudantes para lidar com questões da realidade e isso implica uma articulação do pensamento que os diferencia de estudantes de outras escolas. 4.1 EDUCAÇÃO E TRABALHO PRODUTIVO NO COLÉGIO STROZAK Ao combinar a educação com o trabalho, o MST (1996) estabelece o trabalho como prática que provoca a aprendizagem e teoricamente observamos isso no Plano de Estudos do Colégio, em objetivos formativos, tais como: 1. desenvolver hábitos de trabalho individual e coletivo; 2. aprender técnicas relacionadas a trabalhos socialmente úteis; 3. compreender por meio do trabalho coletivo a partir de participação na escola ou fora dela, a lógica da cooperação ou da organização do trabalho coletivo; 4. conhecer as formas de organização da produção e do trabalho no campo. No campo prático, uma das atividades de destaque da articulação entre educação e trabalho produtivo foi a construção de uma cisterna para acabar com o problema de distribuição de água na escola. A professora D’ávila (2021) revela que o Colégio Strozak sofria com a falta de água do município e que, a partir de discussões e com a ajuda de uma universidade, os estudantes foram inseridos no trabalho coletivo da escola e da comunidade para a construção da cisterna. De acordo com a professora, as discussões giraram em torno da organização pedagógica para aliar a demanda ao Complexo de Estudo. Dessa forma, o Colégio desenvolveu um trabalho que uniu teoria e prática, para que os alunos não apenas participassem da construção da cisterna, mas planejassem sua construção. [...] surgiu a ideia de construir uma cisterna pra captar água, para quando faltar água a escola ter esse recuso, ter um reservatório. Daí eu lembro que a gente dizia: Essa cisterna tem que ser fruto de um trabalho coletivo da escola e da comunidade, não basta alguém vir de fora e construir a cisterna para gente, a gente quer construir a cisterna. E foi muito bacana, envolveu professores, os alunos participaram, os alunos que ajudaram a medir, a projetar, a bater cimento, a construir a própria cisterna. [...] e daí era isso, pra nós o trabalho tinha que ter um sentido, os alunos vão aprender o 109 que? área, perímetro, quantidade? E em Artes o que a gente vai fazer? vai contar a história através de paisagem, retrato. Daí parece que pra nós tinha que ter um sentido o trabalho. A construção da cisterna envolveu os alunos em ações organizadas para sanar uma demanda da comunidade. Como dissemos anteriormente, a articulação entre educação e trabalho produtivo extrapola os muros da escola. E a fala da professora mostra como as ações se organizam em torno de uma demanda. Para a construção da cisterna foram necessários conhecimentos que os alunos desenvolveram enquanto trabalhavam. Construir uma cisterna não é uma tarefa que vem atrelada aos materiais didáticos de escolas do ensino básico. Foi uma oportunidade que surgiu no Colégio Strozak e os estudantes puderam aprender na prática e desenvolver suas habilidades específicas. Quando o Colégio organiza esse tipo de atividades coloca em prática o que o MST (1996) aponta como tarefa das escolas do Movimento, ou seja, vincular mais diretamente as escolas com a busca de soluções para os problemas enfrentados nos acampamentos e assentamentos. Pistrak (2008) afirmou que o trabalho realizado pelos estudantes na escola deve ser o trabalho necessário para as pessoas e que os conhecimentos científicos trabalhados para a realização desses trabalhos devem corresponder às finalidades principais da escola. Em uma ação como foi a construção da cisterna, além de ser um trabalho necessário, muitos conhecimentos científicos foram trabalhados com os estudantes. Enquanto a cisterna organizou um trabalho em prol de uma demanda específica, o trabalho no Jornal do Colégio é uma atividade permanente realizada pelo Núcleo Setorial de Comunicação, responsável pela organização, produção e distribuição do Jornal Frutos da Luta. A elaboração do Jornal é um dos elementos em que podemos perceber a materialização da articulação entre educação e trabalho produtivo. O professor e ex-diretor do Colégio, Rudison Luiz Ladislau (2021), em entrevista, afirmou que o Jornal tem vários objetivos, dentre os quais está a divulgação do trabalho pedagógico e comunitário realizado no Colégio e pelo Colégio. Outro objetivo é a escrita, pois geralmente a escola ensina a cópia e não a produção e o Jornal possui o intuito de ajudar a produção de autoria, além de produzir conhecimento e material pedagógico. Outro objetivo do Jornal destacado pelo professor é o trabalho de base com a comunidade, 110 mantendo o vínculo entre a escola e a comunidade, com cerca de mil famílias. Outro importante elemento é o fator histórico de um material escrito sobre a escola, assentamentos e acampamentos diante da grandiosidade da sua história no município de Rio Bonito. O Jornal Frutos da Luta resgata os sujeitos da história do assentamento. Os estudantes participam do processo de produção do Jornal desde o levantamento das possíveis reportagens até a redação, envio para a gráfica e distribuição. Imagem 8 – Capa do Jornal Frutos da Luta Fonte: Blog do Colégio Strozak disponível em: https://jornalfrutosdaluta.blogspot. com/2019/10/colegio-iraci-salete-fez-lancamento-de.html Acesso em 20 fev de 2022. Antes da pandemia, os alunos foram à gráfica para conhecer o trabalho da produção de um jornal e com o objetivo de acompanhar o processo como um todo. Contudo, a incidência da pandemia estagnou o projeto. De 111 acordo com o professor Ladislau (2021), ao participarem do processo gráfico de produção do Jornal, os estudantes enxergam as contradições existentes no meio das comunicações. Depois de impresso, o Jornal é entregue aos estudantes do Colégio Strozak e para todas as escolas do Assentamento, o que inclui escolas municipais e estaduais, além de ser enviado para a Universidade Federal da Fronteira Sul, em Laranjeiras do Sul, para o Setor de Educação do MST, para a Câmara dos Vereadores, para a Prefeitura de Rio Bonito e para o centro comercial de Rio Bonito. Uma das características da produção do Jornal é que as notícias não são cópias de outras, como ocorre em veículos midiáticos. O Jornal Frutos da Luta produz notícias de interesse do Assentamento e que são fruto da realidade da população assentada. Os educadores também escrevem algumas notícias, mas a organização e produção do Jornal ficam a cargo dos estudantes do 9º ano do Ensino Fundamental ao 3º ano do Ensino Médio, mas, também, há produções de estudantes do 5º ano, por exemplo, caso encontrem algo que seja pertinente à edição, como um desenho ou uma poesia. O professor Ladislau (2021) relatou que o jornal adquire uma proporção importante na vida dos estudantes, pois a produção escrita é uma dimensão educativa difícil de ser trabalhada e o jornal cumpre essa tarefa. A aluna Katlyn Kayane da Silva Santiago (2021), que faz parte do Núcleo Setorial de Comunicação, matriculada no Ensino Médio do Colégio, assentada desde a infância, trabalha no Jornal desde 2019. De acordo com a aluna, a equipe responsável pelo Jornal é composta por alunos, que dividem as tarefas de digitação, notícias e diagramação do Jornal. Santiago (2021) relatou que os encontros acontecem às terças-feiras para organizar as tarefas, mas, caso haja necessidade os estudantes se organizam em outras datas. De acordo com Santiago (2021), depois de finalizada a diagramação, o Jornal é enviado para a gráfica, que imprime os exemplares e os disponibiliza aos estudantes para distribuição. Depois de cada término do jornal, depois de ser enviado pela gráfica, eles distribuem aqui no Colégio para os alunos, professores, funcionários, todos. E também aconteceu uma vez que eu lembro quando eu estava no primeiro ano que dois alunos subiram no ônibus de meio dia pra subir lá no Rio Bonito, na cidade, no centro, distribuiu um pouco, para 112 conhecerem um pouquinho do nosso trabalho. E daí depois disso, eu acho que mais ou menos uma semana a gente já começa a procurar as reportagens, na próxima semana já fazendo né, procurando todas as informações necessárias para ir fazendo o próximo (Santiago, 2021). Primeiramente os alunos observam o que pode vir a ser notícia, como um espaço que necessita de calçamento, uma mística interessante, a história de um aluno etc. E depois reúnem as informações e passam a organizar o levantamento de dados e a implementação no Jornal. Santiago (2021) afirma que o Jornal trouxe experiências positivas e ajudou a melhorar o desempenho escolar: [...] nossa eu mudei totalmente sabe, tipo eu comecei a pensar mais, eu comecei a analisar mais o meu comportamento, comecei a ter espírito de liderança, de ajuda, de empatia, de muito autoconhecimento. E daí comecei a pesquisar e querer saber mais, e fiquei bem curiosa para tudo quanto é tipo de assunto. Diagramação também aprendi bastante, diagramação, fazer texto, sabe tipo, elaborar bem certinho o texto, diferenciar o texto, como precisa ser o texto jornalístico sabe. Eu por exemplo, aprendi a fazer os textos que precisa fazer para o professor, eu aprendi a fazer no Jornal, nas reportagens aprendi como fazia. Então creio que isso ajuda muito também, como posso dizer, saber que tem aquela responsabilidade com alguma coisa, se sentir importante, ah o meu trabalho tá sendo valorizado, tipo sabe, é muito bom. A aluna afirma que o jornal é importante por informar a comunidade sobre os acontecimentos no Assentamento e sobre o que acontece no Colégio. É no Colégio que há oportunidade para os estudantes entenderem seu valor e como se inserem na sociedade, pois compreendem como as coisas realmente são e não só como elas parecem. O desenvolvimento do trabalho com o Jornal está ligado ao processo cultural em que os alunos precisam estar inseridos, pois nesse processo cultivam a identidade Sem Terra e permanecem na luta. Um outro projeto que articula a educação ao trabalho é o Centro da Memória, que tem por objetivo manter a história da construção do assentamento em exposição. O Centro da Memória desenvolve com os estudantes o projeto Tecendo Arte, que objetiva gerar renda para as mulheres do assentamento, 113 que costuram bolsas e fazem artesanatos variados para venda em feiras, como a Jornada da Agroecologia, em Curitiba, a Feira de Economia Solidária Agroecológica e em eventos de Universidades. Além do Tecendo Arte, os estudantes também fazem parte do projeto Centro da Memória Terra e Povo, que foi criado com o objetivo de recolher e organizar materiais para exposições sobre a história do Assentamento desde a época do Buraco. Inicialmente os estudantes fizeram um resgate oral com os membros de suas famílias e junto a isso recolheram material que pudesse ajudar a contar a história, tais como jornais, fotos, utensílios etc. Além do Centro da Memória, foi lançado um livro com as entrevistas cedidas pelos assentados. Os estudantes com ajuda dos docentes escreveram os textos e funcionários do Colégio digitaram o material, com um trabalho coletivo em prol de um mesmo objetivo. O trabalho envolve várias Matrizes da Pedagogia do MST e articula ações educativas. A vivência dos estudantes com as trabalhadoras os insere diretamente no processo produtivo e nisso há grande potencial educativo (Ladislau, 2021). Imagem 9 - Capa do livro Memórias literárias do acampamento Buraco e Assentamentos de Rio Bonito do Iguaçu – Paraná Fonte: arquivo pessoal da autora (2021) 114 Durante a divulgação da Festa da Colheita, estudantes se organizaram para embelezar os pontos de ônibus do assentamento, envolvendo professores, assentados e estudantes. A ação foi a de pintar os pontos de ônibus e propagar a arte no assentamento. Durante a atividade os assentados atuavam como profissionais e os estudantes como aprendizes. O projeto de embelezamento dos pontos de ônibus partiu de discussões e envolveu outras escolas do assentamento. Foram levantadas as demandas e as pessoas necessárias para a realização do trabalho, tais como pessoas que dominam a técnica do desenho, para auxiliar os estudantes. O professor Ladislau (2021) também destacou o trabalho com muralismo no Colégio, em que estudantes aprendem com voluntários a realizar o trabalho no assentamento e na escola. Imagem 10- Foto de um mural no Colégio Strozak Fonte: arquivo pessoal da autora (2021) Ladislau (2021) afirma que no Colégio Strozak os estudantes participavam de oficinas, geralmente com temas relacionados à pintura, diagramação do Jornal, muralismo, oratória e agroecologia. Mas essas ações diminuíram com o passar do tempo. Os trabalhos realizados pelos alunos do Colégio Strozak articulam um número significativo de dimensões e envolvem os alunos, mas não têm como horizonte um rendimento econômico. Os trabalhos realizados pelos alunos são organizados em prol de benefícios coletivos, como o caso da cisterna para captação de água, da horta, do embelezamento dos pontos de ônibus e do Centro da Memória. 115 Em entrevista, Hammel (2021) afirmou que a proposta do Colégio é para que os estudantes compreendam que estudar é um trabalho e deve ser desenvolvido com zelo e responsabilidade. Escrever uma notícia para o Jornal, cuidar da horta ou jardins, ajudar na construção da cisterna, deve fazer parte do cotidiano dos estudantes, mas eles também devem compreender o quão importante é saber geografia, história, matemática etc. Essas atividades envolvem os estudantes em processos que os ensinam para que serve o que aprendem na escola. Ao usar a matemática para calcular quantos metros de tela são necessários para fechar a horta do Colégio, ou quantos litros de tinta serão usados para embelezar os pontos de ônibus etc., os estudantes aguçam parte de seu conhecimento para modificar a própria realidade. De acordo com o professor Silva (2021) em suas aulas de história ele tem por objetivo mostrar aos estudantes as contradições existentes no mundo do trabalho capitalista, pois somente quando eles as percebem é que podem modificá-las. De uma forma geral eu trabalho dentro dessa perspectiva, de mostrar tudo aquilo que o trabalho proporciona ao trabalhador e o que que o resultado disso também proporciona pra ele. As vezes a pessoa não tem esse entendimento, de que ela trabalha, trabalha, trabalha, e de repente você não tem acesso a muitas coisas que você ajuda a produzir. Então a gente procura mostrar nesse aspecto, que o trabalhador, qualquer que seja ele, tem que ser valorizado. O que leva uma profissão a ter um determinado valor e uma outra profissão, valor monetário no caso, e outra não? No caso valor social, a gente tenta mostrar para eles que todos são importantes dentro da sociedade, mas daí já vem a questão, que é de praxe, mas por que o médico ganha tanto e daí fulano ali ganha tanto? Aí a gente procura mostrar isso. A sociedade que nós vivemos faz isso, ela direciona, o médico é doutor, ele tem um valor. Mas que valor é esse? Que valor é esse dentro da sociedade? Todos nós temos uma função e uma função específica e importante, agora por que o valor monetário é dado diferença? E não é só a questão da monetarização, do dinheiro, da questão econômica né, porque daí isso é uma consequência né, e é a consequência de você ter um padrão de vida ou não. Então de repente a pessoa tá sofrido, trabalha feito um condenado, não tem acesso a muitas coisas, aquela vida sofrida, e o outro que trabalha talvez um pouco menos, com todos os privilégios que é possível, que o dinheiro possa trazer, então eu trabalho, mas o trabalhador fica as vezes 116 desmotivado, não adianta estudar, não adianta trabalhar, fazer o que? Mas a gente precisa mostrar que através da organização, do conhecimento, você pode ir mudando essa realidade, é demorado né? Mas a gente tem que acreditar nisso, e eu acredito. No caso dos estudantes do Colégio Strozak, as atividades de trabalho não os beneficiam economicamente, contudo, estão aprendendo a lidar com a organização do trabalho de forma coletiva. Docentes, estudantes, assentados e funcionários se unem em torno do coletivo. A Pedagogia do MST não cabe na escola, por isso nem sempre a escola consegue realizá-la totalmente. A escola avança, mas está presa na fôrma da escola oficial e luta contra os tempos, espaços e recursos limitados. Ao propor uma nova organização política, o Colégio Strozak organiza o trabalho da maneira como entende que seus estudantes devam compreender o trabalho, para o bem coletivo, afirmando que o trabalho está para além da questão econômica, mas faz parte da vida como um todo. Ao introduzirem os alunos em práticas de trabalho que envolvem o coletivo e não apenas a economia, o trabalho toma nova concepção para os estudantes e por meio da inserção deles nos processos de luta e de expressão cultural, uma personalidade voltada para o coletivo vai sendo construída. 117 CONCLUSÃO Com base nos dados apresentados, podemos afirmar que a proposta pedagógica do Colégio Strozak está solidamente construída sobre os princípios da Pedagogia do Movimento e que implementa, dentro de suas possibilidades, o Sistema de Complexos de Estudos e os Ciclos de Formação Humana. O Plano de Estudos do Colégio aponta diversas modalidades de trabalho para serem desenvolvidas, tais como autosserviço, tarefas socialmente necessárias, oficinas etc. Além destas tarefas, a proposta aponta tempos educativos que são formativos, e que implicam a realização de trabalhos pelos estudantes, o que necessariamente inclui mudanças na organização do trabalho pedagógico. Um dos entraves para articular a educação ao trabalho produtivo no Colégio é que o Estado organiza, por exemplo, aulas de 50 minutos cada, e essa organização interfere nos tempos educativos que o Colégio propõe. Além dos Complexos de Estudo, o Colégio organiza os Ciclos de Formação Humana que intencionam que a escola recomponha os conteúdos que os estudantes não assimilaram enquanto seguem os estudos regulares, por meio da classe intermediária. Outro desafio para o Colégio é a implementação da Base Nacional Comum Curricular, que propõe os Itinerários Formativos para que os estudantes escolham o que querem estudar. Contudo, os Itinerários propostos têm ampla ligação com o agronegócio, que está em desacordo com os princípios da Pedagogia do Movimento e da RAP. Das atividades práticas de articulação entre educação e trabalho produtivo, constatadas por meio das entrevistas, temos a construção da cisterna para o assentamento, que colocou em prática os conhecimentos teóricos em prol de um benefício coletivo; o Jornal Frutos da Luta, que está ligado ao processo cultural em que os alunos precisam estar inseridos, pois nesse processo cultivam a identidade Sem Terra e permanecem na luta; o Centro da 119 Memória, com projetos que vinculam os estudantes às questões econômicas; embelezamento, que une oficinas e trabalho socialmente necessário. Os trabalhos realizados pelos alunos do Colégio Strozak articulam um número significativo de dimensões e os envolvem em trabalhos reais, e que apesar de não terem por horizonte uma remuneração financeira imediata, são trabalhos educativos em prol de benefícios coletivos. São trabalhos que beneficiam o coletivo e ensinam os estudantes a gerir democraticamente os processos, o que os aproxima do Trabalho Associado (TA), pois se no capitalismo o trabalho é subordinado ao capital de diversas formas, há experiências de organização de trabalhadores que resistem a essa subordinação. Com base nas experiências acompanhadas, afirmamos que as práticas de articulação entre educação e trabalho no Colégio remetem às Organizações do Trabalho Associado (OTAs), que se organizam a partir de empresas falidas (ou com ameaça de falência) ou empresas que foram formadas pela decisão de um coletivo de trabalhadores. Obviamente não é o caso do Colégio Strozak, mas a forma como preparam os estudantes para gerirem democraticamente os projetos, para a participação de todos de forma democrática, para participação em Assembleias e para o trabalho em benefício coletivo nos remete a essas Organizações. Na literatura o TA aparece como uma expressão equivalente a cooperativas de trabalhadores ou populares. Vieitez e Dal Ri (2001, 2010) apontam que o trabalho associado diz respeito a uma determinada variante transitória, que apresenta um potencial de impulsionar a mudança social e que não necessariamente toma forma de cooperativa, apesar de as cooperativas estarem presentes nele. É nesse sentido que a articulação da educação com o trabalho produtivo, no Colégio, pode se aproximar dessas experiências, pois as relações educam intencionando impulsionar a mudança e a construção de novas formas de se relacionar, tendo o Movimento como educador coletivo. Nas OTAs, controlar econômica e administrativamente as unidades de produção é uma maneira de os trabalhadores salvarem os seus postos de trabalho e criarem novos postos presididos por uma perspectiva social que não a capitalista. “Quando os trabalhadores se juntam para engendrar um empreendimento de trabalho associado da estaca zero, temos um movimento de negação das relações de produções capitalistas” (Vieitez; Dal Ri, 2009, p. 114). Geralmente, as OTAs se constituem em meio a um processo de luta 120 social e têm por características elementos que as diferenciam das empresas capitalistas. Uma análise de Vieitez e Dal Ri (2009) aponta que do ponto de vista da socialização da pessoa ou da educação é possível afirmar que a vivência das relações democráticas nas OTAs é em si mesma uma atividade educativa. O TA possui uma dimensão pedagógica que para Vieitez e Dal Ri (2009, p. 77) é subversiva, pois questiona a tese burguesa de que a organização da produção deve estar nas mãos dos capitalistas, já que o argumento liberal afirma que isso ocorre “[...] não porque estes sejam detentores da propriedade, mas por razões de ordem humana e técnica” (Vieitez; Dal Ri, 2009, p. 77-78). Enquanto sob os moldes do trabalho assalariado os saberes permanecem fragmentados, cabendo aos empresários ou diretores a sua unificação, o TA torna a unificação função do trabalhador coletivo que se apropria dos elementos parciais do processo de trabalho e dos elementos que envolvem aspectos da economia política da produção (Vieitez; Dal Ri, 2009). De acordo com Dal Ri (2004), quando alguns movimentos sociais, como o MST, articulam a educação e o trabalho, se utilizam de formas de TA e concebem essas relações de trabalho e de produção como parte de uma nova formação, pois o trabalho pode tanto educar para novas relações sociais como para sua permanência. Podemos afirmar que o avanço teórico do MST é maior do que ele consegue realizar em sua realidade concreta, mas o fato de propor teoricamente é o primeiro passo para alcançar seus objetivos. Contudo, já afiramos anteriormente neste texto que a Pedagogia do MST não cabe na escola, por isso nem sempre a escola consegue realizá-la totalmente. O Colégio avança, mas está preso na fôrma da escola oficial e luta contra os tempos, espaços e recursos limitados. É no tensionamento com o Estado que a escola se torna um instrumento de resistência. Ao introduzirem os alunos em práticas de trabalho que envolvem o bem comum e não apenas a questão econômica, o trabalho toma novas proporções na concepção desses estudantes e passa a ser um meio de inserção desses estudantes nos processos de luta e de expressão cultural, que ajuda a construir uma personalidade voltada para a coletividade e não para o individualismo, além de possuir um caráter de classe. Nossa pesquisa apontou que o MST enfrenta muitos obstáculos para implementar sua proposta pedagógica por meio dos Complexos de Estudo e 121 dos Ciclos de Formação Humana, desde precarização na estrutura do Colégio até a falta de pessoas para colocar a proposta em prática. As EIs são uma grande conquista para o Movimento, porém como são mantidas pelo Estado, diversas ocorrências documentadas mostram a negligência do governo em relação financiamento para a manutenção e melhorias. Além disso, a proposta pedagógica das EIs ou da escola-base não é de amplo conhecimento de professores formados pelo Estado, e quando são selecionados para trabalharem em escolas no/do MST, por meio de concursos públicos ou processos seletivos, os professores em grande parte apresentam resistência ou desconhecimento das teorias propostas. Em 2021 o MST contabilizou 400 mil famílias que conquistaram a terra por meio da luta e da organização dos trabalhadores, e que após a conquista da terra permanecem organizadas, 160 cooperativas em atuação, 120 agroindústrias e 1.900 associações. São números surpreendentes se levarmos em consideração que no país, além de não haver políticas efetivas de reforma agrária, registram-se medidas governamentais que cerceiam os trabalhadores e afetam sua organização, formas de luta e sobrevivência. Para além do que o MST consegue realizar, a sua educação é uma estratégia, um recurso de luta e resistência, pois exerce um tensionamento constante com o poder estatal, no que diz respeito à formação de professores, ao currículo formal e às condições político-pedagógicas. 122 REFERÊNCIAS ABÍLIO, Ludmila Costhek. Uberização: a era do trabalhador just-in-time? Estudos Avançados, São Paulo, v. 34, n. 98, p. 111-126, jan. 2020. ADRIÃO, Theresa; GARCIA, Teise; BORGHI, Raquel; ARELARO, Lisete. As parcerias entre prefeituras paulistas e o setor privado na política educacional: expressão de simbiose? Educação & Sociedade, Campinas, v. 33, n. 119, p. 533-549., abr.-jun. 2012. ALENTEJANO, Paulo. Estrutura Fundiária. In: CALDART, Roseli Salete. et al. (org.); Dicionário da Educação do Campo. Rio de Janeiro: Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio; São Paulo: Expressão Popular, 2012, p. 355-360. BATISTA, Eraldo Leme; GOMES, Helica Silva Carmo. 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