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Danças de Errancias e de Experiencias Andarilhas

2023, Revista Portuguesa de Educação Artística

De experiências nascidas da multiplicidade de ações/reflexões em caminhar andarilho, apresentamos uma pesquisa que valorizou as pluriepistemologias e práticas nutridas por desafios e errâncias. Esses pontos de contato nos uniram via projeto desenvolvido em duas disciplinas de pós-graduação, a realização de um colóquio, apresentações orais em eventos científicos e oficinas no Brasil e exterior. Nossa discussão foca nas experiências vividas na disciplina de pós-graduação “Arte, Educação, Somática” ofertada de forma híbrida (virtual e presencialmente), e envolvendo outros dois professores dos programas de pós-graduação da Universidade Federal de Minas Gerais e Instituto Federal de Goiás. Apresentamos e discutimos também o Colóquio “Corpo Design Experiências” planejado com a perspectiva do possível retorno presencial pós auge da crise sanitária pela COVID-19. Entrelaçamos nossas experiências com ideias do educador brasileiro Paulo Freire, e com pensamentos que perambulam pela “errância”, “escuta cuidadora”, “teoria social somática”, “aprendizagem inventiva”, “interações significantes”, dentre outras. From experiences out of the multiplicity of actions/reflections in a wandering walk, we present research valuing pluriepistemologies and practices nourished by challenges and wanderings. These contact points brought us together in a project developed in two graduate courses, a colloquium, oral presentations at scientific events and workshops in Brazil and abroad. Our discussion focuses on lived experiences from the graduate course “Art, Education, Somatic” offered in a hybrid way (virtual and face-to-face), which involved two other professors from the graduate programs of the Federal University of Minas Gerais and the Federal Institute of Goiás. We also present and discuss the Colloquium “Body Design Experiences” planned with the perspective of the possible in person return after the health crisis peak due to COVID-19. We intertwine our experiences with ideas of the Brazilian educator Paulo Freire, and with thoughts on “wandering”, “caring listening”, “somatic social theory”, “inventive learning”, “meaningful interactions”, among others.

Danças de Errâncias e de Experiências Andarilhas Revista Portuguesa de Educação Artística, Volume 13, N.º 1, 2023 DOI: 10.34639/rpea.v13i1.222 https://rpea.madeira.gov.pt Dances of Wanderings and Walking Experiences Valéria Maria Chaves Figueiredo Universidade Federal de Goiás [email protected] Alba Pedreira Vieira Universidade Federal de Viçosa [email protected] RESUMO De experiências nascidas da multiplicidade de ações/reflexões em caminhar andarilho, apresentamos uma pesquisa que valorizou as pluriepistemologias e práticas nutridas por desafios e errâncias. Esses pontos de contato nos uniram via projeto desenvolvido em duas disciplinas de pós-graduação, a realização de um colóquio, apresentações orais em eventos científicos e oficinas no Brasil e exterior. Nossa discussão foca nas experiências vividas na disciplina de pós-graduação “Arte, Educação, Somática” ofertada de forma híbrida (virtual e presencialmente), e envolvendo outros dois professores dos programas de pós-graduação da Universidade Federal de Minas Gerais e Instituto Federal de Goiás. Apresentamos e discutimos também o Colóquio “Corpo Design Experiências” planejado com a perspectiva do possível retorno presencial pós auge da crise sanitária pela COVID-19. Entrelaçamos nossas experiências com ideias do educador brasileiro Paulo Freire, e com pensamentos que perambulam pela “errância”, “escuta cuidadora”, “teoria social somática”, “aprendizagem inventiva”, “interações significantes”, dentre outras. Palavras-chave: Somática; Arte; Educação; Dança; Prática como Pesquisa ABSTRACT From experiences out of the multiplicity of actions/reflections in a wandering walk, we present research valuing pluriepistemologies and practices nourished by challenges and wanderings. These contact points brought us together in a project developed in two graduate courses, a colloquium, oral presentations at scientific events and workshops in Brazil and abroad. Our discussion focuses on lived experiences from the graduate course “Art, Education, Somatic” offered in a hybrid way (virtual and face-to-face), which involved two other professors from the graduate programs of the Federal University of Minas Gerais and the Federal Institute of Goiás. We also present and discuss the Colloquium “Body Design Experiences” planned with the perspective of the possible in person return after the health crisis peak due to COVID-19. We intertwine our experiences with ideas of the Brazilian educator Paulo Freire, and with thoughts on “wandering”, “caring listening”, “somatic social theory”, “inventive learning”, “meaningful interactions”, among others. Keywords: Somatics; Art; Education; Dance; Practice as Research Revista Portuguesa de Educação Artística, Volume 13, Número 1, 2023 [49] 1. Entre Andarilhar, Errâncias e Itinerâncias: Experiências, Fundamentos e Desafios Não decore passos, Aprenda um caminho. Klauss Vianna Esse texto se desdobra a partir de experiências vivenciadas nas disciplinas e oficinas por nós ministradas em 2022 e 2023. Focamos em implicações artístico-educacionais destas itinerâncias realizadas com grupos de discentes e demais participantes, e assim, elaboramos de forma coletiva e colaborativa percursos temáticos e gerativos de sentidos. Tais percursos tornaram-se itinerários possíveis para cada jornada, com aquele grupo de pessoas e suas especificidades (histórias, filosofias, repertórios corporais e outras). Não houve ordenação cronológica obrigatória, mas sim, questões pertinentes à educação, saúde e arte perpassaram o que chamamos de itinerários. Tratamo-os como processos abertos, espaços vivenciais, performáticos, lugares e possibilidade da Prática como Pesquisa (Nelson, 2006) e de seus desdobramentos (e.g., Fernandes, 2018; Vieira, 2020; Vieira et al., 2022). Essa proposta nos levou a buscar por outras direções para investigar fenômenos, pois procuramos romper com os padrões hierárquicos e tradicionais existentes, além de respeitarmos e acolhermos a diversidade de (vetores de) forças e de intertextualidades. A reflexão se deu da/pela experiência vivenciada durante exercício de estágio pós-doutoral da primeira autora 1. Organizamos um colóquio, oferecemos 1 Pós-doutorado (também conhecido como licença sabática) realizado no PPG ARTES da UFMG (Brasil) sob orientação da Profa. Dra. Alba Pedreira Vieira. [50] Danças de Errâncias e de Experiências Andarilhas duas disciplinas da pós-graduação 2 e oficinas performativas experimentais em situações diversas, no decorrer de 2022 no Brasil (Acre, Minas Gerais e Goiás), e em 2023 em Portugal: na cidade de Funchal, Ilha da Madeira, no World Summit of Arts Education/WSAE 2023, e em Lisboa no 1.º Encontro Prática como Pesquisa em Arte, evento especialmente organizado para nos acolher pela Escola Superior de Educação de Lisboa/Instituto Politécnico de Lisboa e pelo Centro de Investigação e de Estudos em Belas-Artes (CIEBA) da Universidade de Lisboa, Faculdade de Belas-Artes. Também ministramos oficina para discentes de graduação em Dança, mestrandos, doutorandos e demais pesquisadores doutores do Programa de Pós-graduação em Motricidade Humana da Universidade de Lisboa. Realizamos ainda seis apresentações orais da nossa pesquisa, três em Portugal nos eventos mencionados e três no Brasil: presencialmente na Reunião Científica (Rio Branco, Acre, 2022) e no Congresso (Belém, Pará, 2023) da Associação Brasileira de Pesquisa e Pós-graduação em Artes Cênicas, e virtualmente no VII Encontro Científico da Associação Nacional de Pesquisadores em Dança. Ao encontrarmos tantas diversas pessoas, percebemos algo em comum: discentes, leitores, espectadores, participantes, experimentadore/as estiveram no geral atento/a/es3, construindo conosco fios e itinerários ativos. Buscávamos evitar o for2 A primeira disciplina 814G “Arte, Educação, Somática”, foi ministrada pelas duas autoras no PPG ARTES da UFMG e, concomitantemente, no Mestrado Profissional em Artes do IFG. Em ambos programas, houve participação de discentes de mestrado, doutorado e graduandos como matrículas especiais. A segunda disciplina, ministrada no semestre seguinte, também no PPG ARTES da UFMG foi TEA IV: “Pesquisa em processos e poéticas da cena contemporânea”; nesta, além das duas autoras, o outro professor foi o Dr. Marcelo Eduardo Rocco de Gasperi (PPGAC UFOP; PPG ARTES UFMG). As duas disciplinas foram ministradas em 2022. 3 Nesse artigo optamos por não padronizar o gênero; ora usamos a forma tradicional, gênero masculino, ora usamos gênero feminino e ora usamos o gênero inclusivo. talecimento de possíveis barreiras que possam ter sido preconcebidas antes dos nossos encontros. As diferenças e singularidades se apresentaram diante de todas nós como grande desafio. Não nos bastava pregar o apoio à diversidade; importava-nos vivê-la de forma incarnada ou corporificada. Também valorizamos intra e inter-relações entre diversas linguagens, principalmente dança, artes visuais e performance. Transversalizar se tornou urgente e o próprio experimento. Pudemos criar cartografias e diagramações ao ler, escrever, multiplicar conexões, valorizar nossas errâncias, andarilhar, jogar, rizomar. Buscamos priorizar subjetividades e a força da conversa criativa. Houve esforço para compreendermos conflitos e derrubar verticalismos, assim, usamos como imagem uma viagem com sentido transatlântico, como ilustrado na Figura 1. A prática é potência criativa que nos instiga a explorar conexões para além do que está dado/óbvio. Explorar o desconhecido é uma orientação na navegação por águas que são ora: calmas/turbulentas, claras quase transparentes/turvas, rasas/profundas. Temos notado ao longo de nossas respectivas experiências como professoras no ensino superior que a educação, incluindo o ensino das Artes e da Dança, muitas vezes se preocupa demasiado com “passar o conteúdo” e, por vezes, esquece-se das subjetividades. A escola, como a conhecemos hoje, foi inventada na aurora do capitalismo, a esse sistema se aliando no que tange à preocupação com a utilidade, produtivismo, notas, resultados, massificação do conhecimento. Precisamos avançar. O sentido “transatlântico” envolve a desintoxicação de modelos prontos teóricos, o pensar modelos outros, individualizados e micropolíticos. Uma das nossas ações investigativas que seguiram essa orientação “transatlântica” é ilustrada na Figura 2 em experiência vivenciada ao final do Colóquio de Figura 1 – Sentido Transatlântico. Traseuntes. Reiniciar Sempre. Pluridisciplinaridades e suas Complexidades. Foto4: Alba Vieira. Figura 2 – Colóquio de Pesquisa em Artes. Ideias, afetos, celebrações. Afetos do presente. Foto5: Valéria Figueiredo. 4 Nota: Itinerâncias transatlânticas. Essa foto do mar Atlântico foi tirada pela segunda autora, sendo usada nesse texto para ilustrar a relação que se constrói entre cruzar o mar Atlântico e as experiências vividas nessa pesquisa: em ambas jornadas, há complexidade na busca constante pela superação de desafios enfrentados. 5 Nota: Esta foto foi tirada pela primeira autora durante a performance realizada no fechamento do Colóquio de Pesquisa em Artes “Corpo Design Experiência” na Praça da Liberdade em Belo Horizonte/Minas Gerais. Uma pergunta foi feita logo no início da atividade: “Como me deixo atravessar pela subjetividade da outra pessoa?” Após longa discussão, docentes e discentes concluíram que se deixaram afetar, nas experiências vividas juntas nas disciplinas de pós-graduação cursadas na UFMG, pelos significados construídos individualmente ao longo das disciplinas ministradas/ cursadas. Resolveram então “inserir”, de forma coletiva e colaborativa, estes significados em uma máscara corporal para ser usada/vestida, na sequência, por participantes em cortejo na praça. Revista Portuguesa de Educação Artística, Volume 13, Número 1, 2023 [51] Pesquisa em Artes realizado na Universidade Federal de Minas Gerais/UFMG em junho de 2022. O Colóquio apresentado na Figura 2 foi a atividade final de duas disciplinas de pós-graduação da UFMG, uma delas tendo sido “Arte, Educação, Somática” ministrada pelas duas autoras deste artigo. A outra disciplina ministrada por dois colegas, um da UFMG e outro do IFG. O Colóquio foi pensado pelos quatro docentes envolvidos na organização do evento como uma forma de aglutinar e transversalizar saberes. Iremos detalhar mais sobre este Colóquio posteriormente. Nesse texto, que encaramos como uma jornada de escrita reflexiva, dialogamos as experiências vividas na disciplina “Arte, Educação, Somática” e no Colóquio com as ideias de “escuta cuidadora e de interações significantes” (Nóvoa, 2017), “errância” (Kohan, 2019a), “somática social” (Green, 2015) e “aprendizagem inventiva” (Kastrup, 2007). A “escuta cuidadora” de Nóvoa (2017) dialoga com a noção de “escuta profunda” (Vieira, 2018) que é tão cara aos povos originários do Brasil, pois não há ansiedade em falar, mas sim uma atenção intensa para que a voz-pensamento da outra pessoa ganhe corpo social, tempo e espaço compartilhados; o silêncio é fala e escuta-se com o corpo todo. Nesse sentido, alerta Ailton Krenak (2020, s/p): “[…] estamos tão centrados em nós mesmos que somos incapazes de ouvir”. Assim, exercitamos na referida disciplina e no Colóquio uma vontade somática de escutar, e de acolher o lugar precioso que a fala-silêncio pode instaurar em ambientes de respeito e solidariedade. Adotamos também a ideia de “errância” de Kohan (2019a), pois para nós, esse pesquisador estabelece interfaces com o que defende o pesquisador da dança André Lepecki (2016, p. 67): “[...] errar como derivar, perder-se, extraviar-se [e] somar [… ao] navegar sem bússola um afeto que chamaria de [52] Danças de Errâncias e de Experiências Andarilhas persistência ética; um desejo de seguir sem precisar saber para onde [… e constuir algo] que não sabemos o que pode ser”. Com essa orientação, a disciplina “Arte, Educação, Somática” acolheu pessoas com histórias, interesses, vontades, sonhos, necessidades e repertórios tão diversos. A liberdade de se permitir “navegar” (considerando o sentido transatlântico) pela “errância” foi crucial para desbravarmos juntas caminhos, e de fazermos escolhas sobre rumos a serem tomados. Havia dentre discentes uma recém-graduada em Psicologia pela Universidade Mackenzie/SP, uma mestranda em Artes Cênicas da UFOP/MG, duas mestrandas do PPG Artes da UFMG/MG, uma graduanda do Curso de Dança do IFG/GO, dois mestrandos do IFG e uma professora de dança do ensino básico de Goiás. Em comum, um acordo tácito de unirmos essas diferentes histórias de vida em prol da construção do conhecimento em arte, educação e somática. Relacionamos a errância de Kohan (2019a) e de Lepecki com o corpo alegre de quem canta e dança como adverte Ailton Krenak (2020, s/p), pois se permite a “qualidade sensível que é de não buscar nada. Você não canta e dança para alguma coisa. […] é como um Dervish: ele está girando, fazendo aquela dança dele, e não está indo a lugar algum”. A partir dessa imagem que nos é oferecida por Krenak, entendemos que nossas interações permitiram esse girar da errância, que buscava promover deslocamentos espirais de pensamentos e dialogar a partir de perspectivas diversas para não nos acomodarmos na monocultura epistêmica. Ainda destacamos ideias de Virginia Kastrup (2001), professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro/UFRJ, sobre “aprendizagem inventiva”: essa é, sobretudo, invenção de problemas, é experiência de problematização. Toma-se como ponto de vista o escutar a arte e a (re)invenção da mesma. Para tal, é necessária a busca por circularidade criadora como chave para entendimento do processo da “aprendizagem inventiva”. Um círculo que nunca fecha, mas que na verdade é uma espiral que sempre busca se ampliar em outros círculos. A política da invenção consiste numa relação com o saber que não é de acumular e consumir soluções, mas de experimentar e compartilhar problematizações, pois [...] a arte não é um alvo, mas um atrator caótico, um ponto que é tendencial, sem ser fixo e sem possibilitar falar em regimes estáveis ou em resultados previsíveis. Colocar o problema da aprendizagem do ponto de vista da arte é colocá-lo do ponto de vista da invenção. A arte surge como um modo de exposição do problema do aprender. (Kastrup, 2001, p. 20) A “somática social” de Green (2015) também esteve presente durante todo o semestre da disciplina “Arte, Educação, Somática” para nos estimular a intervir, em termos micropolíticos, em prol da arte que transforma, ao invés daquela fossilizada. Como não romper nem com a leitura de clássicos e estrangeiros e nem com a aproximação de saberes ancestrais para que pudéssemos impulsionar a criação de paradigmas outros para esse território pindorâmico? Como promover via arte, eucação, somática e saberes afins, a reparação de injustiças do passado orientadas pela sistemática exclusão e invisibilidade de afrodescentes, indígenas, deficientes, e outras – assim conhecidas – pessoas marginalizadas? Como nos tornarmos sujeitos do discurso ao invés de objetos? Como? 2. Contextos das Experiências Vividas e suas Múltiplas Narrativas Professoras de arte no Brasil, cada vez mais, tem denunciado uma gravidade: seus direitos não estão plenamente garantidos. Há importantes dados históricos que comprovam chegada tardia ao país do debate sobre a educação que, de fato, aprofunda questões críticas mais amplas sobre o processo ensino-aprendizagem em todos níveis, inclusive no superior. Lacunas históricas, que se agravaram na pandemia, enfraqueceram o sistema público, incluindo educação básica e universitária, segurança e sistema de justiça. Está evidente o longo caminho a ser conquistado por nós, seres sociais conscientes e imaginativos, e nosso papel em buscar por transformações que beneficiem todas as pessoas, e não apenas uma parcela privilegiada da sociedade. Dentre orientações marcantes no “sentido transatlântico”, destacamos ideias do famoso educador brasileiro Paulo Freire (2004, 1979a, 1979b); ele não escreveu de forma impositiva sobre o que e como fazer, mas nos deu pistas importantes e imprescindíveis para Arte e a Educação como questões sobre estética e ética, que inclui conexões íntimas entre a experiência educacional contextualizada e a “boniteza” do processo. Entendemos com Freire (2004) que contextualizar é estabelecer relações, uma espécie de ponte que é construída pelo fio de seda da aranha, em prol da inter e transdisciplinaridade. Que tal se optamos por estabelecer processos de ensino-aprendizagem, nos quais a conscientização seja mútua? E se abrirmos nossos poros para nos deixarmos contaminar de forma positiva? A teia de aranha é grudenta devido à proteína que a compõe. Poderíamos grudar-nos na itinerância artístico-educacional para propor análises, construir ligas e significados a partir das referências de discentes e docentes. Podemos nos deixar contaminar de forma a estabelecer trocas de críticas reflexivas para nos lançarmos nas errâncias, no desconhecido, na imprevisibilidade, no que não nos é familiar. Assim se iniciaria a Revista Portuguesa de Educação Artística, Volume 13, Número 1, 2023 [53] jornada de descobertas, de incertezas, aonde a única certeza é que estamos nos apoiando nessa jornada pela busca da transformação social em prol de uma educação de qualidade para todas pessoas, e por um mundo mais justo. Paulo Freire não defendeu especificamente direitos de indígenas, de mulheres, de afrodescendentes, dos que lutam pela abolição de desigualdades relacionadas ao gênero e de deficientes. Mesmo assim, ele conseguiu elaborar pensamentos anticoloniais contra a opressão, principalmente no que diz respeito às diferenças socioeconômicas. Ele propôs construir o processo educacional trazendo à tona histórias de vida, ou experiências cotidianas do povo brasileiro. As ideias de Freire são bastante atuais, pois, como afirmam Ferreira e Pita (2020), é vigente no nosso país “a colonialidade do saber e de colonialidade do poder ... [o que explica] como o eurocentrismo ainda se faz presente no discurso da Escola Brasileira” (p. 1). Para Freire (1994), esperança é ação, alegria é ação. Para que isso seja possível, Mota Neto (2016) apresenta o conceito das “ideias forças” presentes na proposta freireana. Uma força que se faz pela construção de uma teia coletiva e colaborativa. Uma das “ideias forças” dentre as sugestões de Paulo Freire e, inspiradoras para nós, afirma que todo ato educacional, para ser significativo ao estudante, deve partir de uma reflexão entre o estudante e seu meio/realidade/contexto. Ou seja, valoriza-se a subjetividade, a especifidade de cada pessoa que estabelece relações com outres seres, e com os ambientes em que vivem. Essa “ideia força” propõe que estudantes se tornem sujeitos a partir de suas aproximações e relações entre “eu e mundo concreto”. Aprofundando as ideias de Freire, Vieira (2007) propõe que o mundo é também construído pelas nossas percepções, sensações, emoções, imagina[54] Danças de Errâncias e de Experiências Andarilhas ções. Somos seres de teias de energia, de sonhos, de conexões visíveis e invisíveis (pelo menos ao olho humano nu). A outra “ideia-força” aponta que, quando o/a estudante se enxerga como alguém conectado/a a seu contexto sociocultural, assume-se como sujeito ativo e transformador por meio da reflexão crítica de sua realidade. Assim, “na medida que o homem, integrado em seu contexto, reflete sobre este contexto e se compromete, constrói a si mesmo e chega a ser sujeito” (Freire, 1979a, p. 20). Ainda outra “ideia-força” de Freire que nos influenciou sugere que, a partir do momento que a pessoa é capaz de refletir sobre sua realidade e responde ativamente às provocações e obstáculos que essa realidade impõe sobre si, ela produz cultura. Ou seja, “integrando-se nas condições de seu contexto de vida, [a pessoa] reflete sobre elas e leva respostas aos desafios que se lhe apresentam, cria cultura” (Freire, 1979b, p. 42). A pessoa ao longo da vida constrói sua história enquanto cria sua própria cultura, a partir de suas decisões e reflexões acerca de seu mundo vivido. Com (Freire 1979a), compreendemos que as pessoas são (ou deveriam ser) fazedoras da história, pois as pessaos imaginam, criam, fazem escolhas, agem, e assim, as histórias, as culturas, os pensamentos vão se formando e reformando. A “ideia-força” sobre as metodologias educacionais nos impactou, pois tem como objetivo a edificação do estudante como sujeito transformador, que cria cultura e faz história para se libertar das relações de poder e opressão impostas ao “ser”. A professora pode mediar esse processo do estudante pelo afeto, estímulo da autonomia e da busca de harmonia com demais pessoas. Frisamos a harmonia no respeito à diversidade. Não precisamos nem devemos ser/pensar/agir/viver de forma igual, mas sim, respeitar uns aos outros em nossas diferenças. A educação – em seu conteúdo, programas e métodos – deve ser adaptada ao fim que persegue: permitir à pessoa chegar a ser sujeito/a/e, construir-se como ser humano, transformar o mundo, estabelecer com os outros seres (humanos e não humanos, vivos e não vivos) relações de reciprocidade, fazer cultura e história (parafraseando Freire, 1980, como citado em Mota Neto, 2016). Como é esse fazer? Essa seria uma pergunta fundamental. Se nos inserimos em um ecosistema, ou em uma comunidade planetária (ou cosmológica, como defendem os povos originários), como colocar todas as ideias discutidas até então em ação? Possíveis respostas exigem um pensar complexo, não há respostas prontas e fáceis. No nosso caso, pensamos e fazemos a partir de afetos e reverberações no/do/pelo corpo. Então, a provocação é por deslocamentos para tensionar o que é tradicionalmente aceito, mas não questionado. Acreditamos ainda em nutrir relações de afeto no processo ensino-aprendizagem em dança para fazer germinar valores de solidariedade e respeito, e para abertura de poros para que possamos, se assim o desejarmos, contaminar-nos positivamente. Outra inquietação nos persegue no “sentido transatlântico”: como deixarmos de ser colônias culturais? Moura (2019, p. 324) sugere produzirmos conhecimentos em arte desde a “formação inicial dos/ das professores/as até os processos educativos em arte que legitimem epistemes anti-hegemônicas, não-eurocêntricas; que [...] ampliem o espectro para uma consciência decolonizada.” Acreditamos ser preciso criar epistemologias anticoloniais, pois ainda valorizamos em nosso país, majoritariamente, as estéticas e conhecimentos europeus como pujantes e dominantes. Promover epistemologias pedagógicas anticoloniais são necessárias, bem como identificar os colonialismos culturais hegemônicos. Nossa escolha: ir contra as histórias de dominação. Conhecer as nossas lutas e nossas histórias ancestrais. Criar movimentos anticoloniais para acolher diferentes propostas metodológicas voltadas para o ensino, a arte, a criação artística que respeitam a diversidade e, ao mesmo tempo, lutem pela justiça social. Valorizamos as multiplicidades, diferentes referentes e formas de pesquisa, reflexão na e pelas práticas, experimentação como saber, provocação para movermos pensamentos corporificados. Essas são questões que nos uniram em vários projetos em parceria. Como já indicamos anteriormente nesse texto, focamos por discutir um deles, uma disciplina que foi experiência compartilhada e interinstitucional articulando dois programas: Pós-graduação em Artes da Universidade Federal de Minas Gerais/UFMG e Profiartes do Instituto Federal de Goiás/IFG, e um Colóquio. Com a oferta da disciplina e o Colóquio, expusemos aos participantes uma das estratégias que temos adotado como parte da nossa luta em prol dos direitos humanos de vivenciarem/vivenciarmos educação de qualidade: o “sentido transatlântico” e tudo que o mesmo engloba em termos de valores, teorias, práticas, filosofias e conceitos. Essa é uma das nossas contribuições para uma sociedade igualitária em oportunidades, garantindo dignidade às pessoas. A conjuntura do nosso Brasil, que viveu várias crises na pandemia (econômicas, políticas, sanitárias, dentre outras), evidenciou os vários desafios que estão postos hoje. O que ainda há de ser conquistado para avançarmos o campo da Arte no país? Quais retrocessos urgem ser superados? A disciplina ofertada, “Arte, Educação, Somática”, faz parte de uma pesquisa ampla, em que a busca é por se conhecer e reconhecer narrativas, histórias, biografias de profissionais de dança. Qui- Revista Portuguesa de Educação Artística, Volume 13, Número 1, 2023 [55] çá tenhamos construído, junto com participantes da disciplina, temáticas, propostas e ações ricas e consistentes para se pensar uma formação em Arte que permita amplo acesso, que seja transversal em seus saberes, que lute contra as hierarquias de poderes e que valorize processos sistemáticos multidimensionais. Talvez um primeiro passo seja reconhecer nosso próprio autoritarismo, como alertou em um dos encontros da disciplina, a convidada professora doutora da Universidade de Brasília, Jennifer Jacomini. A disciplina se constituiu como um jogo colaborativo em que “brincamos” nas itinerâncias investigativas com ideias pluri-ações-reflexivas. Nesse “jogo” surgiram algumas imagens e abstrações potentes que apresentamos a seguir: • Imagem 1 – Somática – Ser Raio (relâmpagos) e ser Para Raio (ir para terra, se acalmar e voltar para cima do solo com a potência necessária, potência de contaminação, palavras calmas, mas firmes); • Imagem 2 – Arte – Deslocamentos, insurgências, transgressões e processos; • Imagem 3 – Saúde – Entre vidas, motivações, desejos e cuidados de si; • Imagem 4 – Transversalizar – Tentativas de aglutinar e adensar. Aranhas e suas teias – forças e vibrações que vem pelos fios. Dentro da proposta do “sentido transatlântico”, mencionada anteriormente nesse texto, usamos também a imagem de uma aranha para ilutrar teias de conexão entre participantes da pesquisa. Essa teia foi materializada por tiras de papel que nos uniram na performance ao fim do Colóquio de Pesquisa em Artes como ilustrado na Figura 3. [56] Danças de Errâncias e de Experiências Andarilhas Figura 3 – Tecendo teias de conexão. Foto6: Cinara dos Santos Santana. A aranha é capaz de sentir vibrações que produzem efeitos no estado vital. Ela ativa seus sensores, e consegue identificar de onde veio o efeito vibratório. Produz conexões ao sentir o ambiente; este, por sua vez, também a sente. Ela decide aonde vai ancorar e se lançar na construção arquitetônica e, assim, vai construindo, tecendo e experimentando a si em íntima relação com o ambiente. Vários modos de tecer podem ser operados, mas se algo não faz sentido para a aranha, ela desfaz, reajusta, faz outras conexões. Ela é agente ativa do ecossistema que tece cada fio de seda delicadíssimo e, ao mesmo tempo, constrói uma rede forte formada por um grande emaranhado de fios. Como seria esse tecer da aranha se fosse feito por um ser humano? Afecções, estado vital, sensações compartilhadas entre pessoas? Há no ser humano a dimensão social, pela necessidade de nos relacionarmos com outres seres: tecemos então 6 Nota: Colóquio Corpo Design Experiência. Durante a elaboração da performance realizada ao fim do Colóquio de Pesquisa em Artes, atividade final da disciplina “Arte, Educação, Somática”, levamos vários papéis coloridos que foram cortados em tiras longas. Essas tiras entrelaçaram nossos corpos como se fosses teias de aranha, uma imagem usada para representar nossa união, nosso trabalho coletivo e colaborativo. A foto foi tirada por uma das discentes participantes da performance. Praça da Liberdade, Belo Horizonte, MG, Brasil. fios de conexão, não para capturar presas como as aranhas, mas para estabelecermos parcerias. Ao tecermos nossas teias conectivas, pela percepção sensorial, várias formas de relações são experimentadas. Há de se cuidar do “fio” que nos une, seres humanes e não humanes, pois ele é tanto invisível como potente. Acreditamos no encontro e no construirmos juntas e, assim, gostaríamos de contaminar outras pessoas. A aranha constrói sua teia com seu corpo. Aprendemos então com ela que o corpo/soma é fundamental para tecer teias conectivas. Sua teia também é abrigo para proteção dos seus ovos. Como pensar nossa teia humana como esse lugar de fecundação de novas formas de conviver? De deixar nascer outras formas de habitar as teias de outros seres? De se deixar fecundar pela potência de viver em comunidade com afeto? Essas imagens das aranhas tecendo teias aprofundam nossas reflexões sobre o “sentido transatlântico” em relação à itinerância do ensinar em dança. Podemos pensar nossa ação no sentido de tecer teias para que os sujeitos discentes se sintam seguros, fortes, confiantes, preparados para intervir, produzir, apreciar, investigar e articular as diferentes linguagens artísticas com a dança. Tecer teias também com o contexto cultural, artístico, histórico, ancestral, cosmológico, ambiental, social, político e educacional. A teia também ajuda a aranha na sua locomoção. Então, podemos pensar nossa ação artístico-educacional como forma de movermos nossas filosofias, deslocarmos nossos pensamentos, dançarmos nossas ações de forma imaginativa, vendo/agindo/escutando/dançando de forma transformadora. Acreditamos que os diversos ambientes educacionais podem se tornar teias que abrigam diferentes experiências, amplificam os espaços de relacionamento e imensas possibilidades de formação e valorização de profissionais de Arte. Profissionais que irão, também, promover e estimular a formação de plateias, artistas, cidadãs, e pensar o mundo sob outras perspectivas – mais solidárias e amorosas. Nós, profissionais de Arte no Brasil, temos sido aranhas que se sentem ameaçadas, pois as últimas ações do governo federal foram devastadoras. Depois de três décadas de conquistas efetivadas, o Ministério da Cultura foi extinto durante o mandato do presidente Jair Bolsonaro. Com a posse no início de 2023 do presidente Luís Inácio Lula da Silva, permanece a esperança por dias melhores. Necessitamos urgentemente nos unir e fortalecer nossas teias em prol da batalha pelos direitos humanos, principalmente pelo direito fundamental de vivenciar a arte, a cultura e a educação de qualidade. Essa forma de pensar de forma transdisciplinar (nessa discussão estamos aliando dança, educação, somática, saúde e política, dentre outros) faz parte de nossas escolhas. Sempre estivemos envolvidas em estudar e concretizar, como docentes de nível superior, a formação dos professores de Arte. Valorizamos intensamente o que se conhece como liberdade de cátedra: escolhas de metodologia, conteúdos, posturas e avaliações – as quais são de inteira responsabilidade de cada docente. Escolhas que não são rígidas, impostas, mas dialogam com discentes e outras pessoas naquele exato momento, naquele curso, naquela disciplina, naquela oficina, naquela palestra ou comunicação oral de um artigo, naquela escrita. Assim, lutamos pela liberdade que considera o acesso igualitário à arte, à educação, à saúde, como foi enfatizado na disciplina ministrada, “Arte, Educação, Somática”, e que explicamos melhor a seguir. Revista Portuguesa de Educação Artística, Volume 13, Número 1, 2023 [57] 3. A Experiência da Disciplina No recorte escolhido para esse artigo, apresentamos o que chamamos de narrativas, errâncias e diálogos de um primeiro itinerário, experiências vividas na disciplina “Arte, Educação, Somática”, ofertada em formato híbrido (virtual e presencial), e que aproximou também de outros7 dois professores dos programas de pós-graduação da UFMG e IFT. Como parte desta disciplina, como já mencionado, realizamos presencialmente o Colóquio Corpo Design Experiência. Este Colóquio foi nossa primeira retomada pós auge da crise sanitária pela COVID-19. O Colóquio foi pensado de forma coletiva e co-participativa, e aconteceu na UFMG de 21 a 23 de junho de 2022 8. Esse conjunto de ações nos permitiu vivenciar experiências que buscaram fomentar e provocar reverberações em processos formativos/performativos/ experimentais para explorarmos junto/e/as desafios e resinificarmos possibilidades e dificuldades de encontro e reencontro pós auge pandêmico, que foi intenso e extenso no nosso país. Juntamo-nos em/ como uma comunidade de práticas artístico-educacionais sedentos pelo reencontro presencial, por nos abraçar e trocas corporificadas face-a-face. Ao longo da disciplina e do Colóquio, consideramos que fomos todo/a/es aprendentes nos processos de aprendizagens e atravessamentos. Na disciplina apresentamos reflexões acerca dos saberes e práticas artístico-pedagógicas em Artes do corpo. Decidimos por receber cinco convidado/ as da área da somática, a saber: Adriano Bittar, Aline 7 Professora Dra. Lúcia Gouvêa Pimentel (UFMG) e professor Dr. Alexandre José Guimarães (IFG). 8 Vide mais sobre o evento em: https://www.youtube.com/ channel/UCo7x1IZYrrGYBYGFRiMGABA/videos; https://www. facebook.com/profile.php?id=100082515891755; https://www. ifg.edu.br/at tachments/ar ticle/18096/chamada _coloquio_ versao_final.pdf. [58] Danças de Errâncias e de Experiências Andarilhas Haas, Ana Maria Alonso Krischke, Jennifer Jacomini de Jesus, Beatriz Adeodato Alves de Souza e Diego Pizarro. Nosso intuito foi alargar a compressão da somática como campo expandido que abarca diferentes perspectivas. Os pontos de vista diversificados dos convidados foram formas de provocar fricções e também possibilitar articulação e construção de saberes importantes para as artes da cena contemporânea. Buscamos estabelecer conexões transversais e discutir aspectos que concernem à colonização do pensamento e às pedagogias anticoloniais. Realizamos experiências teórico-práticas integradas a estudos que articulam conhecimentos e compreensões contemporâneas do corpo, cognição e expressividade. Tangenciamos, de maneira transversal, saúde (com foco na somática), educação e arte para abordar seus aspectos transdisciplinares, e ações decorrentes desses cruzamentos em diferentes ambientes educacionais. Exploramos teias, redes plurais e experiências inclusivas que permitem construir vias e itinerários da arte para propor poéticas emancipatórias e transformadoras em dança e performance. Percebemos que saberes construídos de forma colaborativa incluem múltiplos olhares para a dança, performance e somática como forma de ampliar diálogo e reflexão sobre como as mesmas vêm sendo contaminadas por processos corporalizados, polifônicos, plurais e dialógicos. Tensionamos experiências distendidas entre dança, educação, somática, medicina e ciência da dança, sugerindo que práxis, intersubjetividade e corpo vivente devem ser considerados como centrais. Como mencionado anteriormente, fomos movidas também pela errância, pelo desejo de não antecipar nem o fim nem a direção da viagem. Entramos nesse “jogo” de nos abrirmos para possibilidades de uma vivência polilógica e flexível, como quem quer se alongar e espreguiçar. Nossas escolhas foram baseadas em não querer determinar a priori resultados, mas nos deixarmos levar pelo caminho e pelo caminhar. Acreditamos que relações educacionais se fortalecem quando o foco não é apenas ensinar, mas também afetar e sermos afetadas. Walter Kohan (2019a) sugere que a errância é, primordialmente, não antecipar qual direção será tomada na jornada. Como essa jornada, ou esse caminho, poderia ser contaminado pelo desejo de construirmos coletivamente uma aprendizagem criadora, absorvente e dilatadora – de poros, ouvidos, olhos, sentidos, afetos? De escuta? Acreditamos que um dos desafios somáticos incluiu materializar outras formas de se fazer dança e pedagogia, além de mover esforços para movimentos aprendentes e momentos de ensino surpreendente, crítico, criativo e transformador. Quando pensamos em somática e dança nos interessa, o que Bondia (2002) e Kohan (2019b) discutem como experiência/sentido, ou seja, o que é apreendido nos transforma. Importa não o sujeito das informações, mas o sujeito das experiências, das experiências/ sentido. Nosso interesse na somática como proposta fundante da disciplina incluiu seu estado permanente de ebulição, pois dialogamos e também deflagramos conflitos, vislumbrando possibilidades de construção coletiva de superações. Ficou assim evidente a constituição das diversas relações potentes para a dança com a somática como campo expandido. Jill Green (2015) aponta por uma teoria social somática como abordagem que reconhece a construção social de “corpas” que dançam e o mundo micro e macrocósmico onde elas vivem. Essa noção faz relação com a ação micropolítica de propor uma disciplina na pós-graduação que não é pensada de forma tradicio- nal – professora ensina, aluna aprende. Construímos saberes de forma coletiva, orientadas pelo “sentido transatlântico”. A discussão sobre arte, dança, somática, educação e saúde nessa disciplina foi então o mote para cada pessoa se deslocar, nadar nas “ondas” que apareciam e transbordar as margens; adentrar no processo do aprender de forma colaborativa, e também de transformação, de forma comprometida e implicada. Só podemos conhecer aquilo que nos afeta e com o que nos relacionamos, se também provocamos afetações. A experiência/sentido/estética e cuidado de si e de outres seres vivos e não vives, humanes e não humanes são pensamentos que nos fazem começar a entender melhor hoje o que e como a dança se relaciona com o mundo contemporâneo. Ao longo da disciplina, refletimos essas e outras questões primordiais e escolhas fundantes. A somática, portanto, foi nossa escolha também porque nos levou a pensar em como a dança pode somar com outras áreas, saberes, formar redes e estabelecer diálogos e parcerias, inclusive com a educação. A educação em todos os seus níveis, infantil, médio e superior nunca foi de fato espaço homogêneo; no entanto, sempre foi tratado como se fosse. Expomos nossas inquietações, experiências e reflexões, pois como informamos anteriormente neste artigo, há muitos anos estamos atuando nesse meio como docentes. É certo que percebemos as diversas narrativas presentes nas falas de professoras de Arte em diferentes ambientes educacionais e as muitas dificuldades enfrentadas ainda hoje, em especial na dança. Propomos assim, pensar a educação e a arte na sua diversidade, como lugar de liberdade, inclusão, de pluralidade de saberes, de diferentes modos de fazer, imaginar, sonhar e que também involve a busca por maneiras de se ampliar o diálogo e a reflexão sobre como a dança vem, pode e deve Revista Portuguesa de Educação Artística, Volume 13, Número 1, 2023 [59] ser contaminada por processos dialógicos, sociais, políticos, perceptivos, afetivos e imaginativos. Pensamos assim, em propiciar na disciplina experiências conectivas e distendidas para que todes nós, docentes, discentes, convidades, nos encontrássemos nos espaços do “entre”. Essa articulação da dança com os espaços formativos foi mola propulsora para nos auxiliar a compreender e tornar possível uma práxis artística em que intra e intersubjetividade e corpo vivente fossem vivenciados como protagonistas. Mais e mais perguntas e indefinições nos convocaram e provocaram durante a jornada. Como colocar em ação o sonho da aprendizagem criadora, íntima, absorvente e dilatadora na/da dança? Enfrentamos desafios inúmeros tais como: ter de ocupar o lugar da “cadeira” e ficar diante do computador durante as quatro horas semanais dos nossos encontros virtuais; adaptar e aprender rapidamente a forma do ensinar remotamente, o que não nos permitia tocar e nem sentir nossos cheiros e os do ambiente das outras pessoas presentes na mesma aula; desenvolver o conteúdo que parecia infinito quando tínhamos que delimitar e selecionar prioridades do mesmo para que coubesse no tempo pré-fixado pela carga horária semestral da disciplina; adaptar a maneira de nos relacionarmos (virtualmente) para que pudéssemos de alguma forma contemplar as diferentes narrativas e interesses investigativos. Não medimos esforços e imaginações para que a disciplina fosse geradora de movimento aprendente, e para que se tornasse momento de ensinagem crítica, inventiva, criativa, artística, de pertencimento e transformadora. [60] Danças de Errâncias e de Experiências Andarilhas 4. Algumas Suspeitas e Indícios, mas Sempre em Busca das Errâncias De reuniões semanais no primeiro semestre de 2022, nosso grupo de estudantes e professores foi tramando experiências virtuais e presenciais preocupados com a formação ampliada, entre saberes da arte, da educação e da somática. A ideia foi, mesmo numa instituição de espaços e funções bastante demarcados em relação ao saber e ao poder, poder criar outras formas de intercâmbios de conhecimentos, reconhecendo as singularidades e favorecendo a desierarquização dos sujeitos. Temos esperança que a disciplina alcançou seus objetivos, principalmente pelos comentários recebidos nos encontros virtuais e no Colóquio. Destacamos outro fruto das nossas experiências e saberes construídos na disciplina: as aulas com convidados foram editadas e estão disponibilizadas como um videobook nos canais de Youtube da Mosaico Cia de Dança Contemporânea (@mosaicociadedancacontempor2943) (vinculada à Universidade Federal de Viçosa) e do Lapiac (vinculado à Universidade Federal de Goiás) https:// www.youtube.com/playlist?list=PLi8ttbnBk2JwvX2uaBP6ZRpKV8hZVvELn. Apresentamos a seguir experiências vivenciadas no Colóquio Corpo Design Experiências, que aconteceu presencialmente na UFMG de 21 a 23 de junho de 2022. Esse projeto buscou fomentar e provocar reverberações em processos formativos/performáticos/experimentais. Juntamo-nos em/como uma comunidade de práticas; fomos todo/a/es aprendentes nos processos de aprendizagens e atravessamentos. Ilustramos na Figura 4 um dos materiais de divulgação do referido Colóquio. martes2022/featured. Estivemos juntos, como parte das ações performativas do Colóquio, no Espaço do conhecimento da UFMG. Escolhemos visitar em grupo a exposição “Mundo Indígenas”, que também podia ser vista de forma online, com curadoria de cinco povos indígenas que compartilharam no evento seus conhecimentos e percepções de mundo/cosmologias. Na exposição, havia uma máscara que nos impactou profundamente, e a mesma é ilustrada na Figura 5. Figura 4 – Material de divulgação do Colóquio9. Uma pergunta que nos inquietou ao longo de toda a jornada da disciplina e do Colóquio: como poderíamos criar canais de expressão e significação de vivências integrativas implicada com o impacto afetivo gerado nos/com sujeitos? Sem uma resposta definitiva, seguíamos traçando caminhos e imaginando um campo de forças colaborativas que pudesse alargar o sensível, com possibilidades de trânsitos, rotas e experiências vividas em grupo. O Colóquio foi composto por apresentações orais de palestrantes convidados e das diversas pesquisas dos discentes que participaram das duas disciplinas envolvidas na organização do evento: “Tópicos Especiais em Artes IV: Design-Educação, Transformação e Autonomia” (docentes Prof.ª. Lucia Pimentel e Prof. Alexandre Guimarães) e “Tópicos Especiais em Artes IV: Arte, Educação, Somática”/UFMG – Artes do Corpo e Práticas Pedagógicas/IFG (Prof.ª Alba Vieira e Prof.ª Valéria Figueiredo). Atividades do Colóquio podem ser vistas no Canal de Youtube do Colóquio Pesquisa em Artes 2002 @coloquiopesquisaemartes2022 e nos links: https://www.youtube. com/@coloquiopesquisaemartes2022/streams e https://www.youtube.com/@coloquiopesquisae9 Nota: Colóquio Corpo Design Experiência. Material de divulgação na íntegra disponível em: https://fefd.ufg.br/n/156066-coloquiode-pesquisa-em-artes-corpo-design-experiencias Figura 5 – Máscara indígena. Foto10: Valéria Figueiredo. 10 Nota: Durante a visita à exposição “Mundo Indígenas” nós nos deparamos com essa máscara que cobre o corpo todo; entendemos como sendo uma máscara que não separa corpo e mente, um dos princípios fundamentais da somática. Elegemos no grupo que, essa máscara, seria reproduzida por nós em papel cartão de cores variadas, por meio de várias tiras cortadas – reproduzindo assim, a nosso modo, as tiras que compõem a máscara indígena. A fotografia foi tirada pela primeira autora deste artigo. Revista Portuguesa de Educação Artística, Volume 13, Número 1, 2023 [61] Elegemos a partir das experiências vivenciadas na exposição em Belo Horizonte/MG11, dois recortes de inspiração, sendo elas: Xakriabá – Corpo-Território e Maxakali – Yãy hã mĩy, conceitos do território corpo casa e as máscaras de transformar. A imagem a seguir revela um pouco de nossas experiências práticas que aconteceram na Praça da Liberdade em Belo Horizonte durante um dia de ação performativa. Figura 6 – Nossa máscara somática. Foto12: Valéria Figueiredo. A disciplina ministrada na UFMG, o Colóquio e a performance nos permitiram refletir como é importante continuamente questionar, problematizar, duvidar, e colocar reticências e pontos de interrogação 11 Espaço do conhecimento UFMG, disponível em: https://www. ufmg.br/espacodoconhecimento/. 12 Nota: Essa foto, tirada pela primeira autora, revela um momento de construção coletiva e colaborativa da máscara somática elegida para ser usada por participantes durante a performance. A máscara somática foi inspirada pela máscara indígena apresentada na figura anterior. [62] Danças de Errâncias e de Experiências Andarilhas em vez de colocarmos pontos finais. Então... como pensar nosso projeto na dança em espaço-tempo que nos permite vivenciar múltiplas interpretações e possibilidades de diferentes sentidos para fluxos de subjetividades? Como construir significados e percepções tendo em vista a convivência com seres de muitos e diferentes contextos? Como dilatar a própria noção de cultura, de educação, de arte, de dança, de visão de mundo? Continuar se questionando e se sentindo inquietas pode ser uma maneira de nos situarmos como agentes da nossa história, de sermos e estarmos atuantes na convivência com as diferenças que nos constituem e as igualdades que nos integram. Nossa experiência nessa primeira itinerância esteve em busca de indícios e dimensões que trouxessem formas para se pensar o complexo cotidiano educacional e formativo de artistas e professores que se dedicam à educação formal e não formal. Como aprender a observar, a ter uma escuta cuidadora e com interações significantes como sugeriu Nóvoa (2017) e se deixar capturar, sempre, por sua prática docente e artística? Como é/pode ser a formação do profissional de dança? O que e como ensinar e pensar uma educação e uma dança que tenham sentidos em seus diferentes ambientes? Como pensar a somática como possibilidade de ampliação da liberdade de (con)viver de forma ética/estética para caminharmos/navegarmos juntas colaborativamente a partir da bússsola do “sentido transatlântico”? São muitas perguntas e por isso escolhas foram feitas como norteadoras de rotas iniciais para nossas experiências apresentadas neste texto. Buscamos seguir um “sentido transatlântico” no qual: compreendemos o corpo vivo e dançante/movente de forma constelar; valorizamos o não apagamento das diferenças e das diversidades sociais e culturais de sujeites; pensamos de forma anticolonial; acolhe- mos as singularidades, narrativas, experiências de discentes que emergem junto com as pluralidades técnicas e metodológicas em dança; desenvolvemos vários modos de se ensinar como fundamento para o exercício de se ensinar-aprender com a dança; ampliamos as possibilidades de autoconhecimento a partir das capacidades pessoais e coletivas, dos lugares que se atravessam e que criam trajetos, trânsitos, demografias pessoais, mapas coletivos e colaborativos. Queríamos viver uma experiência com sabor de aventura, que se permitisse vaguear pelo desconhecido, pelo sonho. Acreditamos que conseguimos. Em nosso entender, nossas errâncias nos permitiram construir uma itinerância a partir e com os saberes de um corpo de potência aberto, o que demandou uma enorme capacidade porosa. Foi necessário revermos as muitas dicotomias ainda existentes entre prática e teoria, entre corpo e mente, entre fazer e pensar, e outras. Foi preciso tensionar a formação de sujeitos críticos, criativos, conscientes, cidadãos, participativos com aquela de sujeitos alienados, passivos, despolitizados e tecnicistas. O educar em/para/com dança é, acima de tudo, humanizar, mas sem perder de vista que devemos também criticar posturas antropocêntricas. A dança pode humanizar e mediar saberes que penetram e alargam as possibilidades não somente da própria vida, mas também das relações estéticas, éticas, sociais, políticas, educacionais, ecológicas. A qualidade do estar consciente é importante. Estar presente e atenta somaticamente, de prontidão, são essenciais para o exercício da liberdade. A arte e a invenção, a busca por uma circularidade criadora são chaves para o entendimento do processo da aprendizagem que se articula com princípios somáticos. A política da invenção consiste numa relação com o saber que não é de acumular e consu- mir soluções, mas de experimentar e compartilhar problematizações. A adoção da arte como ponto de vista faz parte desta política. Complementamos nosso conjunto referencial com as propostas de Vieira (2016) acerca de “dramaturgias de “corpes” dançantes: ela propõe caminhos abertos e plurais para a composição, para experimentar a dança. A artista e pesquisadora sugere: […] como o pensamento, acredito que Dramaturgias (…) do corpo dançante sempre se deslocam quando nós nos colocamos em um estado flexível como aquele quando estamos improvisando. Que nossa imaginação continue incluindo reticências, nas dramaturgias dos nossos corpos, nos nossos trabalhos (Vieira, 2016, p. 119). Como relatamos neste texto, realizamos nossa primeira experiência/itinerância de oficina/ateliê/ encontro presencial em Belo Horizonte, na UFMG, aonde realizamos o Colóquio que nos permitiu uma camada a mais de reflexões sobre o que tínhamos vivenciado nesse evento e nos encontros online ao longo do semestre na disciplina “Arte, Educação, Somática”. Vislumbramos pequenos “choques” que, no encontro com outro/a/es, vão construindo possibilidades de miudezas de nossos cotidianos necessários. A contrapelo. Fizemos juntas passeios, conversas; trocamos primeiros abraços, conhecemos com o tato, o cheiro, o olhar e a escuta, as formas corporais umas das outras. Sentimo-nos. Exercitamos carinhos e cuidados. Também houve tensões e estranhamentos; talvez até desconfianças, pois não há perfeição no encontro entre seres humanes. Mas muitas de nós insistimos no compromisso de escavar sentidos e afetos. Para essas pessoas, confiança e respeito mútuos aos poucos foi se fortalecendo. Como uma mônada benjaminiana, criamos juntes a disciplina, o grupo de estudos com encontros se- Revista Portuguesa de Educação Artística, Volume 13, Número 1, 2023 [63] manais, os encontros virtuais e presenciais, passeios pela cidade e por exposições de Belo Horizonte. Fizemos escolhas para performance em uma tarde de sol quente e com bastante luz na Praça da Liberdade. Culminamos a disciplina de Arte... com uma performance artística; assim como a disciplina foi construída no coletivo, essa foi a forma para escolha de objetos, maneiras de feituras, possibilidades de experimentações na performance “final”, cujo processo de construção é ilustrado na Figura 7. Acreditamos que fizemos arte com sabor somático priorizando o “sentido transatlântico” do fazer errante, e dos tempos, corpos e dos espaços entrecruzados. Provocamos certa ruptura com a linearidade de encerrar o Colóquio com uma discussão teórica no auditório da UFMG. A relação íntima teoria-prática esteve presente na performance em que buscamos justamente tensionar tais supostas dicotomias à medida que deslocamentos de percepção nos agregaram e nos acalentaram. A Performance celebrou e corporificou a práxis como pesquisa. Um dos participantes vestindo a máscara somática e realizando a sua dança performativa é ilustrada na Figura 8. Figura 7 – A performance da performance; ou momento de construção da performance. Foto13: Valéria Figueiredo. O acolhimento da performance como uma construção grupal trouxe à tona guardados de memória e sentidos construídos durante o semestre; a performance foi a celebração poética dos mesmos. A construção da narrativa desse artigo, uma ou- 13 Nota: Docentes e discentes colaborando e construindo a performance de forma coletiva. A figura ilustra o momento em que as tiras que compuseram a máscara somática estavam sendo cortadas. 14 Nota: Performer usando a máscara somática construída pelo grupo realiza movimentações dançantes na Praça da Liberdade, enquanto é acompanhada com músicas cantadas pelo restante do grupo. [64] Danças de Errâncias e de Experiências Andarilhas Figura 8 – Performer dançando com a máscara somática. Foto14: Valéria Figueiredo. tra camada reflexiva dessa experiência, nos revela mais uma pergunta: o que temos em comum? Temos muitas diferenças, mas como seres humanos, somos e devemos ser livres. Parece fácil dizer, mas com certeza difícil de conquistar, pois ainda não nos apropriamos plenamente de aspectos fundantes dos direitos humanos como direito à vida digna, à liberdade, à educaçao e arte de qualidade e à segurança. Uma prática de fato libertadora ainda há que se conquistar no campo da Dança. A somática e a educação podem nos dar algumas pistas de como nos expandirmos e potencializarmos nossa área de atuação. E também a poesia. Para esse momento da nossa narrativa textual, escolhemos incluir um poema da poetisa goiana Cora Coralina. Palavras que nos convidam a mais reflexões, e a imaginar a dança como movimentos e pausas entre o quebrar pedras e plantar flores; ajuntar pedras e tecer tapetes. Das Pedras – Cora Coralina Ajuntei todas as pedras Que vieram sobre mim. Levantei uma escada muito alta. E no alto subi. Teci um tapete floreado E no sonho me perdi. Uma estrada, Um leito, Uma casa, Um companheiro. Tudo de pedra. Entre pedras cresceu a minha poesia. Minha vida... Quebrando pedras E plantando flores. (Coralina, 2022, s/p) Durante todo o semestre da disciplina Arte..., professoras e artistas da Dança nos revelaram suas histórias, suas experiências que nasceram da prática artística e/ou docente. Confessaram saberes do corpo que brotaram do seu percurso profissional. Fizeram algo mais do que apenas registar para nós docentes e demais colegas, suas trajetórias e experiências; acabaram por afetar formas de pensar e de agir do grupo, pois trouxeram em suas falas e gestos a motivação para modificar as suas/nossas práticas. Firmaram compromisso em manter uma atitude crítica e reflexiva nas suas relações somáticas com o mundo. Ficou forte para nós, docentes aprendizes, a vontade de (re)construir continuamente nossas experiências quando trilhamos com discentes os seus/nossos percursos de formação. Em caráter experimental, utilizamos a experiência da disciplina e do ateliê-biográfico-artístico da performance como lugares que revelam, reverberam, acionam ações constitutivas e narrativas. Buscamos conhecer e desenvolver um performar artístico-somático-educacional singular. Como professoras e artistas, mas também nós como alunas, moldamos e demos forma a experiências vividas traçando interfaces entre narrativas de si, das poéticas, das relações ético-estéticas. Nosso tapete (lembrando Cora Coralina) foi costurado por tecituras coletivas e construído na prática do fazer artístico. Essa costura foi também materializada pelo nosso fazer da máscara somática, ilustrada na Figura 9, quando usada por um dos participantes, logo antes da sua performance em forma de movimentações pela praça. Fundamental em nossa práxis tem sido a escuta sensível do nosso fazer docente para suscitar a construção de significados que viabilizam mudanças de olhares, outros movimentos de pensamentos e de lógicas sobre o que podemos compreender como somática, arte, dança, aprendizado, formação, experiência teórico-prática na criação de proposições. Exercitamos também a escuta sensível e acolhedora como formação de si e do outro; como escolha artística e pedagógica. Revista Portuguesa de Educação Artística, Volume 13, Número 1, 2023 [65] fazer, não dizer, não fazer. Escrever e não escrever. Apagar e escrever. Reescrever. Para uma próxima experiência artístico-educacional, nosso compromisso é que essa seja cada vez mais um exercício de construir saberes coletivos e colaborativos, de (re) olhar pra si e para onde e como estou nos/com outres. A vontade é que nossas experiências revelem a busca por uma vida inventada com mais poesia e dança; um alargar do mundo com alegria e festa, como nos convida Ailton Krenak (2020). E mais: que possamos cada vez mais trazer para nossas experiências artístico-educacionais vivências somáticas, histórias e poéticas corporificadas das narradoras que somos todas nós. Referências Bibliográficas Figura 9 – Performer posa com a máscara somática “tecida” pelo grupo. Foto15: Valéria Figueiredo. Nesse momento de fechar provisoriamente esse artigo, percebemos que essa foi mais uma camada para corporificar, ainda mais, o fazer/sentir/narrar os encontros propositivos da disciplina “Arte, Educação, Somática”. Essa experiência trouxe à tona aspectos que já faziam parte de nossas memórias, nuances despercebidas das experiências, histórias mal contadas ou f(r)icções com o real que puderam iluminar por palavras e imagens (figuras nesse texto apresentadas). Esta escrita acrescentou uma camada para aprofundarmos nossa compreensão de como podemos construir experiências de formação em Arte, em especial em Dança, considerando elementos ético-estéticos das narrativas pessoais. Precisamos nos provocar por exercícios de dizer, 15 Nota: Nosso tapete coletivo, saberes, foi tecido pelo grupo ao longo do semestre da disciplina Arte…; o grupo também costurou/ teceu de forma colaborativa a máscara somática, usada pelos performers, participantes do grupo. 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