PERcursos Linguísticos • Vitória (ES) •v. 10 •n. 25 • 2020 • ISSN: 2236-2592 • Dossiê:
Discursos de resistência e corpos (re)existentes •
GESTUALIDADE EM PERSPECTIVA DIALÓGICA:
APONTAMENTOS NOS TEXTOS VOLOCHINOVIANOS DE 1926 E
1930
Michel Pratini Bernardo da Silva 1
Pedro Farias Francelino2
RESUMO: O presente artigo objetiva refletir acerca dos principais apontamentos teóricos
sobre gestualidade desenvolvidos por Volóchinov em dois de seus textos da primeira metade
do século XX: A palavra na vida e a palavra na poesia: para uma poética sociológica (1926)
e Estilística do discurso literário II: a construção do enunciado (1930). Como aporte teórico,
utilizamos os pressupostos teórico-metodológicos do Círculo de Bakhtin, especialmente as
considerações de Valentin Volóchinov. Utilizamos a metodologia da pesquisa bibliográfica,
uma vez que nos apoiamos nos referidos ensaios já publicados para sistematizar ideias
teóricas e desenvolver reflexões acerca da temática da gestualidade. Salientamos que, no
decurso das nossas reflexões, fizemos uso de algumas charges que nos auxiliaram no processo
de construção da argumentação. Os resultados revelaram que, ao construir os ensaios,
Volóchinov aborda, mesmo que brevemente, questões sobre a gestualidade. Em A palavra na
vida e a palavra na poesia: para uma poética sociológica, verificamos que a gestualidade
está diretamente ligada à noção de extraverbal, bem como ao caráter compartilhado e
subentendido das avaliações de um dado grupo social e à personificação do terceiro
participante. Já em Estilística do discurso literário II: a construção do enunciado,
observamos que a gestualidade se relaciona à noção de réplica (resposta) e à ideia de
orientação social do enunciado.
PALAVRAS-CHAVE: Gestualidade. Volóchinov. Ensaios de 1926 e 1930. Enunciado.
ABSTRACT: The present paper aimed to reflect about the main theoretical notes around
gesture developed by Volóchinov in two of his texts of the first half of the twentieth century:
Discourse in Life and Discourse in Art: for a sociological poetics (1926) and The stylistic of
the literary discourse II: construction of the utterance (1930). As theoretical contribution, we
used the theoretical and methodology assumptions of Bakhtin Circle, specially the
considerations of Valentin Volóchinov. We highlighted that the investigation of our research
was bibliography, once we support each other in essays already published to summarize the
ideas and to develop reflections concerning of them. We emphasize that, in the course of our
reflections, we were used some cartoons that help us in the process of the construction of our
argument. The results revealed that, in constructing the essays, Volóchinov points out, even
though briefly, the questions about gesture. In Discourse in Life and Discourse in Art: To the
sociological poetic, we verify that the gesture is linked to the notion of extraverbal, as well as
1
Programa de Pós-Graduação em Linguística da Universidade Federal da Paraíba (PROLING/UFPB), João
Pessoa, Paraíba, Brasil. Endereço Eletrônico:
[email protected]
2
Programa de Pós-Graduação em Linguística da Universidade Federal da Paraíba (PROLING/UFPB), João
Pessoa, Paraíba, Brasil. Endereço Eletrônico:
[email protected]
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in the shared and implied character of the evaluations of a specific social group, and the
personification of the third participant. While, In The stylistic of the literary discourse II:
construction of the utterance, we observed that the gesture is relate to the notion of reply
(response) and the idea of social orientation of utterance.
KEYWORDS: Gesture. Volóchinov. Essays of 1926 e 1930. Utterance.
Na interação discursiva, elementos verbais e não verbais são, indispensavelmente,
produtores de sentidos. Um olhar, uma expressão do rosto e/ou um movimento do corpo
podem significar bastante em um determinado contexto enunciativo. Nesse sentido, neste
artigo, compreendemos os gestos (estáticos ou não), isoladamente ou em conjunto com
elementos verbais, como enunciados concretos, unidades reais da comunicação discursiva.
Em virtude disso, objetivamos refletir acerca dos principais apontamentos teóricos
sobre gestualidade desenvolvidos por Volóchinov em dois de seus textos produzidos na
primeira metade do século XX: A palavra na vida e a palavra na poesia: para uma poética
sociológica (1926) e Estilística do discurso literário II: a construção do enunciado (1930)3. A
escolha desses ensaios se justifica na medida em que são escritos do autor utilizados com
grande frequência entre pesquisadores da comunidade acadêmica nacional e internacional da
área de estudos da linguagem, pois neles estão muitos dos conceitos basilares de uma teoria
dialógica do discurso. Além disso, são dois manuscritos em que se apresenta, de forma clara e
deliberada, uma discussão sobre a temática da gestualidade, embora carente de maiores
aprofundamentos.
Desse modo, em nosso estudo, buscamos sistematizar e promover uma reflexão sobre
os principais apontamentos teóricos, presentes nesses ensaios, que nos revelam a natureza
dialógica dos enunciados concretos que, parcial ou integralmente, manifestam-se em gestos.
Como pressupostos teóricos, utilizamos o pensamento linguístico-filosófico do Círculo de
Bakhtin (especialmente os textos de Volóchinov), bem como os estudos discursivos de
autores que se pautam nessa perspectiva de investigação da linguagem.
O presente estudo é, inicialmente, de cunho bibliográfico e, por conseguinte, analítico,
uma vez que se apoia em textos publicados para sistematizar ideias e desenvolver reflexões a
seu respeito. O corpus analítico é composto por dois ensaios de Volóchinov, os quais foram
publicados, respectivamente, em 1926 e 1930. Ressaltamos ainda que, no decurso de nossas
incursões, utilizamos enunciados verbo-visuais, como charges, a fim de elucidar o fenômeno
3
A edição em análise foi traduzida por Sheila Grilo e Ekaterina VólKova Américo, em 2019, pela Editora 34.
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investigado. Tecidas essas considerações preliminares, procedamos à exposição da nossa
investigação.
Apontamentos volochinovianos sobre gestualidade
Neste estudo, consideramos os ensaios apresentados como posições socioaxiológicas
de um determinado sujeito sobre um objeto do discurso. Em outros termos, A palavra na vida
e a palavra na poesia: para uma poética sociológica e Estilística do discurso literário II: a
construção do enunciado se constituem enunciados concretos, unidades reais da comunicação
discursiva acadêmica da conjuntura sócio-histórica em que seu autor viveu. Em razão disso,
compreendemos que, para a investigação de qualquer enunciado vivo e concreto, é
indispensável recuperarmos o contexto extraverbal que o engendrou, procedimento que
buscaremos realizar neste momento.
Os manuscritos em tela são de autoria de Valentin Nikoláievitvh Volóchinov, filósofo,
músico, linguista e crítico literário ligado ao Círculo de Bakhtin. Nascido em 18 de junho de
1895, em São Petersburgo, o autor ingressou no Instituto de História Comparada das
Literaturas e Línguas do Ocidente e do Oriente (ILIAZV), renomado centro universitário de
Língua e Literatura russas, em março de 1925.
Na instituição, Volóchinov desenvolveu, entre os anos de 1925 e 1932, as atividades
de doutorando, pesquisador, docente e técnico-administrativo (cargos de chefia). Segundo
Grillo e Américo (2019), é comum, nos trabalhos do autor, a presença explícita de pensadores
marxistas soviéticos, uma vez que o marxismo tornou-se, na época, uma orientação
hegemônica na área das ciências humanas, uma abordagem teórico-metodológica oficial e
obrigatória para o ingresso em instituições de pesquisa soviéticas.
Entre os textos que escreveu quando esteve na ILIAZV, estão A palavra na vida e a
palavra na poesia: para uma poética sociológica (1926) e Estilística do discurso literário II:
a construção do enunciado (1930). No primeiro, o qual organizou em sete seções, buscou
destacar a importância de uma abordagem sociológica para os estudos poético-literários,
enquanto, no segundo, visou discutir a estilística do discurso literário em perspectiva
sociológica.
De acordo com Grillo e Américo (2019), ao investigarem seis relatórios desenvolvidos
por Volóchinov durante o processo de doutoramento do pesquisador na ILIAZV, A palavra
na vida e a palavra na poesia é fruto de um resumo expandido de um livro que nunca chegou
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a ser publicado por ele. A obra, que, inicialmente, recebeu o nome Ensaio de poética
sociológica, passou a se chamar, no decorrer dos relatórios, Introdução à poética sociológica.
Ainda conforme as autoras, publicar artigos para, em seguida, transformá-los em um livro era
um modo de trabalho recorrente de Volóchinov.
Sobre Estilística do discurso literário II: a construção do enunciado, ressaltamos que
o texto, publicado em 1930 (um ano após a defesa de doutoramento de Volóchinov), faz parte
de uma série de quatro ensaios sobre a estilística do discurso literário. Segundo Grillo e
Américo (2019), embora tenha prometido quatro ensaios (O que a linguagem/língua?; A
construção do enunciado; A palavra e sua função social; Gênero e estilo do enunciado
literário), o autor publicou apenas três textos, uma vez que o último estaria, à ocasião, em
processo de elaboração. Conforme as pesquisadoras, o quarto título nunca foi encontrado
entre os manuscritos do estudioso.
Gestualidade em A palavra na vida e a palavra na poesia: para uma poética sociológica
(1926)
Em Palavra na vida e palavra na poesia: para uma poética sociológica (1926),
Volóchinov elabora, inicialmente, uma crítica aos teóricos que aplicam o método sociológico
na investigação, exclusivamente, de questões históricas nos estudos literários. Para o autor, a
literatura é um fenômeno social e carece de uma abordagem sociológica. Em seu raciocínio,
dois pontos de vistas podem ser considerados errôneos: o primeiro é a fetichização da obra de
arte como coisa, visão que considera apenas os aspectos materiais da obra de arte e a
combinação de suas propriedades; o segundo ponto de vista é aquele que se limita ao estudo
do psiquismo do criador ou do contemplador.
Segundo Volóchinov ([1926] 2019), os dois pontos de vistas falham por buscarem
encontrar o todo na parte, ou seja, isolam a estrutura da parte e a apresentam como o todo.
Entretanto, para ele, o artístico não está apenas no objeto ou no psiquismo do criador ou do
contemplador, está na interação entre os três elementos. Apresentada essa problemática,
Volóchinov expõe o objetivo do texto: “Compreender a forma do enunciado poético enquanto
forma dessa comunicação estética específica, realizada no material da palavra”
(VOLÓCHINOV, [1926] 2019, p. 117). Para isso, analisa o discurso do cotidiano comum,
pois nele estariam as sementes da futura forma literária, para, em seguida, investigar a forma
do enunciado literário.
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Após esse contexto teórico-metodológico, Volóchinov inicia suas considerações,
afirmando que a palavra, em uma dimensão imanente, não é autossuficiente, uma vez que ela
surge de uma situação extraverbal. Somente em contato com vida, com a situação extraverbal
que a engendrou, que ela se torna um todo concreto. Para Volóchinov, “a palavra entra em
contato direto com o acontecimento cotidiano, fundindo-se com ele em uma unidade
indivisível” (VOLÓCHINOV, [1926] 2019, p.118), isto é, em uma unidade inseparável. O
autor traz, em seu texto, a ilustração de uma situação vivenciada por duas pessoas em um
contexto de contemplação da neve que caía no ambiente em que ambos se encontravam. Ele
se utiliza desse exemplo para desenvolver a noção de contexto extraverbal, afirmando que
este
(...) é composto por três aspectos: 1) O horizonte espacial comum dos
falantes (a unidade do visível: o quarto, a janela etc.); 2) o conhecimento e
compreensão da situação comum aos dois; e finalmente 3) a avaliação
comum dessa situação (...). É sobre tudo isso que o enunciado se apoia
diretamente – o “visto por ambos” (flocos de neve vistos pela janela), o
“conhecido por ambos” (o mês de maio) e o “avaliado em concordância” (o
inverno que já cansou, a primavera desejada) –, tudo isso está incluído no
seu sentido vivo e é absorvido por ele, permanecendo, no entanto, sem
marcação e expressão verbal. (VOLÓCHINOV, [1926] 2019, p.118-119)
(Destaques do autor).
Os apontamentos apresentados nos possibilitam uma reflexão sobre a questão da
gestualidade, especialmente ao analisarmos atentamente os três elementos que constituem o
aspecto extraverbal do enunciado. Faremos isso, a partir deste momento, retomando dois
enunciados publicados no período da campanha eleitoral para presidência do Brasil, em 2018.
Os gestos, materializados nas charges selecionadas, refletem/refratam os posicionamentos
axiológicos dos sujeitos partícipes do pleito eleitoral da época. Observemos:
Imagem 1 – Charge Bolsonaro
Disponível em: http://www.ivancabral.com/
2019/11/charge-patria-amada.html
Imagem 2 - Charge Lula
Disponível em: http://www.brasil247.com/charges/aroeirarock-in-lula
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O primeiro aspecto que faz parte da situação extraverbal do enunciado é o horizonte
espacial comum dos falantes. Em outras palavras, é aquilo que é conjuntamente visto pelos
sujeitos que compõem a situação de comunicação. Os gestos, por sua vez, fazem parte desse
aspecto. Na imagem 1, por exemplo, observamos o candidato à Presidência da República Jair
Bolsonaro com suas mãos direcionadas para cima, representando uma arma de fogo, aspecto
que ganhou grande proporção durante as eleições de 2018. Esse gesto vem acompanhado de
um sorriso largo do candidato, sugerindo sentimento de satisfação e de regozijo por
corresponder às expectativas do segmento que o apoia politicamente. A gesticulação tornouse reconhecida, em todo o país, como uma marca ideológica dos militantes e apoiadores do
candidato.
De semelhante modo, na imagem 2, observamos uma gesticulação realizada por Luís
Inácio Lula da Silva, ex-presidente do Brasil e ícone do Partido do Trabalhadores (PT), que,
na ocasião, tinha como candidato à Presidência da República o professor e advogado
Fernando Haddad. O gesto, que representa a letra “L” de “Lula”, tornou-se um escudo de luta
dos militantes e apoiadores de Fernando Haddad e do PT. Não podemos deixar de ressaltar
que apenas um movimento de rotação, para cima ou para baixo, diferenciava os gestos
adotados por ambos os candidatos, todos saturados de sentidos.
O segundo aspecto da situação extraverbal é o conhecimento e a compreensão da
situação comum aos sujeitos, isto é, aquilo que é conjuntamente sabido pelos participantes da
situação de comunicação: o conhecimento compartilhado. Nas imagens 1 e 2, os gestos
apenas veiculam o sentido que têm, em virtude de: reconhecermos, inicialmente, a forma e o
movimento das mãos (arma de fogo e letra do alfabeto), bem como que o “L” de Lula
remonta a outros momentos históricos do país, de pleitos eleitorais anteriores, quando esse
signo já era muito utilizado; sabermos que o enunciado se materializou na campanha eleitoral
de 2018; conhecermos os perfis dos partidos e dos candidatos envolvidos no processo;
sabermos os discursos de cada um em relação às propostas de governo para o país etc.
Por fim, o terceiro aspecto que compõe a situação extraverbal do enunciado é
avaliação comum dessa situação. Nesse momento, entram em jogo os julgamentos de valores,
a avaliação dos sujeitos em relação aos gestos discursivos dos candidatos. Em um dos
enunciados apresentados acima, é veiculado, de forma consistente, o discurso do
armamentismo, temática que gerou posicionamentos divergentes em 2018. Dessa forma,
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quem adotasse, pelas ruas e lugares do país, o gesto da arma na mão, era, por conseguinte, a
favor do porte e da posse legal de armas. Por outro lado, quem aderisse ao “L” de “Lula”, era,
consequentemente, contra o porte e posse legal de armas e a favor de outras pautas de uma
agenda política mais progressista.
Outro conceito discutido por Volóchinov em Palavra na vida e palavra na poesia é a
entonação, a partir do qual ele desenvolverá breves reflexões sobre gestualidade. Segundo o
autor, ela “sempre está no limite entre o verbal e o extraverbal, entre o dito e não dito”
(VOLÓCHINOV, [1926] 2019, p.123) e dois aspectos são essenciais para determinar, à
palavra, um tom de aprovação, reprovação, indignação, humor, alegria etc., sobre os quais,
sucintamente, falaremos a seguir.
O primeiro diz respeito ao fato de que a entonação só é possível por causa do caráter
compartilhado e subentendido das avaliações de um dado grupo social. Ela tem por base um
“apoio coral”, o qual corresponde ao compartilhamento de uma mesma avaliação por um
grupo de sujeitos. Caso isso não aconteça, a entonação pode enfraquecer ou cessar. O segundo
aspecto que determina a tonalidade discursiva do enunciado é o terceiro participante ou
objeto do discurso, o qual, explica Volóchinov, tem tendência à personificação, pois é visto
como se fosse um objeto vivo, passível de indignação, de ironia etc. Essa humanização do
objeto é chamada de metáfora entonacional.
De semelhante modo, ocorre com a metáfora gestual, fenômeno que envolve,
especificamente, a gestualidade. Para autor,
(...) entendemos o gesto de modo amplo, o que inclui a expressão facial,
tomada como a gesticulação do rosto. Assim, como a entonação, o gesto
precisa de apoio coral das pessoas que estão em torno: apenas no ambiente
da cumplicidade social é possível um gesto livre e seguro. Por outro lado, o
gesto, assim como a entonação, abre a situação e introduz o terceiro
participante, o protagonista. No gesto sempre dorme o embrião do ataque ou
defesa, da ameaça ou do carinho, sendo que ao observador ouvinte é
reservado o lugar de cumplicidade ou testemunha (VOLÓCHINOV, [1926]
2019, p. 126-127).
Conforme observamos, a gestualidade também leva em consideração o caráter
compartilhado e subentendido das avaliações de um dado grupo social e o terceiro
participante ou objeto do discurso. Assim, ao visualizarmos as imagens 1 e 2 apresentadas
anteriormente, reconhecemos, graças ao compartilhamento social desses aspectos, os gestos
da arma e da letra “L”, bem como as avaliações que cada grupo faz deles. Esse princípio
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volochinoviano funciona para todos os gestos, inclusive os mais simples do cotidiano, a
exemplo da palavra “tchau”.
É muito pertinente destacar, na citação acima, a afirmação de Volóchinov segundo a
qual o gesto demanda um apoio coral e, um pouco mais que isso, a postura da cumplicidade.
Nesse sentido, observamos que os gestos materializados nas charges, dos dois sujeitos
retratados, não se limitam a um tempo, o das eleições de 2018. Como já afirmamos
anteriormente, no caso do ex-presidente Lula, o gesto do “L” precede a esse momento, tendo
já aparecido, e de forma muito mais intensa, em disputas eleitorais das quais ele já participou.
Essa reiteração, em 2018, apenas consolida a adesão – o apoio coral, portanto – de sua
militância.
O mesmo se pode dizer do candidato – e hoje presidente – Jair Bolsonaro. No caso
dele, que é mais recente, o uso do signo ideológico gestual da mão em forma de arma
continua até os dias de hoje, praticamente há quase dois anos das eleições, e essa reiteração,
inclusive, adquire outros matizes entonacionais, outros sentidos, pois a crise política que se
instaurou recentemente tem levado o presidente a repetir esse gesto, agora não apenas no
contexto de uma promessa de campanha – a do armamento – mas no contexto de uma
reafirmação dos compromissos assumidos como forma de manutenção no poder.
Não podemos deixar de evidenciar que, para Volóchivov ([1926] 2019), os gestos
também constituem uma resposta, conceito 4 recorrente nos textos do Círculo de Bakhtin. Para
o autor, eles não se constituem elementos emocionais ou passivos do falante; pelo contrário,
“Ao entonar e gesticular, o homem ocupa uma posição social ativa em relação a determinados
valores, condicionada pelos próprios fundamentos da sua existência social” (VOLÓCHINOV,
[1926] 2019, p. 127).
Caminhando para as últimas seções do ensaio, Volóchinov, ao investigar agora o
discurso literário, afirma que a obra poética está entrelaçada com o contexto cotidiano não
dito. Nesse sentido, as avaliações sociais subentendidas e os sujeitos que participam da
interação social são muito importantes em sua constituição. Vale ressaltar que, conforme
salientamos no início deste artigo, Volóchinov não elabora um aprofundamento de suas
considerações sobre gestualidade no ensaio em questão, especialmente no momento em que
4
Qualquer enunciado vivo é uma réplica, uma resposta responsiva ativa do sujeito em relação a um objeto do
discurso. Segundo Bakhtin ([1953] 2016), todo ouvinte ocupa simultaneamente uma posição responsiva ativa ao
perceber e compreender o significado de um discurso, ou seja, ele concorda, discorda, completa, polemiza etc.
Para Volóchinov ([1929] 2009, p. 101), toda enunciação, mesmo na forma imobilizada da escrita, é uma resposta
a alguma coisa. Desse modo, “Toda inscrição prolonga aquelas que a precedem, trava uma polêmica com elas,
conta com as reações ativas da compreensão, antecipa-as” (VOLÓCHINOV, [1929] 2009, p. 101).
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discorre sobre o discurso literário, motivo pelo qual não discutiremos, com mais intensidade,
esta parte.
Gestualidade em Estilística do discurso literário II: a construção do enunciado (1930)
Conforme exposto, Estilística do discurso literário II: a construção do enunciado
(1930) compõe uma série inconclusa que Volóchinov denominou Estilística do discurso
literário. No ensaio, o autor busca, em sua primeira seção (Comunicação social e interação
discursiva), retomar aspectos teóricos discutidos no artigo precedente – O que é
linguagem/língua (1930) – chegando à relevante conclusão de que “a essência real da língua é
o acontecimento social da interação discursiva, realizada em um ou muitos enunciados”
(VOLÓCHINOV [1930] 2019, p. 268).
Nas duas seções seguintes (Discurso monológico e discurso dialógico e A
dialogicidade do discurso interior), o autor busca evidenciar a natureza dialógica de todo
discurso, inclusive do discurso interior, o qual, a seu ver, independente da nossa vontade,
sempre se funde com outros pontos de vista que não participam da classe social a que
pertencemos. “É como se a nossa consciência se dividisse em duas vozes independentes e
contraditórias entre si” (VOLÓCHINOV [1930] 2019, p. 275).
Nas seções posteriores (A orientação social do enunciado; A parte extraverbal
(subentendida) do enunciado; A situação e a forma do enunciado; a entonação, a escolha e a
disposição de palavras; e A estilística do enunciado cotidiano), Volóchinov realiza uma
produtiva discussão, mostrando dois aspectos: 1. O sentido do enunciado cotidiano “depende
da situação e de como está determinada a orientação social para o ouvinte-participante dessa
situação” (VOLÓCHINOV [1930] 2019, p. 286); 2. Todo enunciado apresenta uma forma
composta por três elementos fundamentais: a entonação, as escolhas lexicais e a disposição
das palavras.
Antes de discutirmos os apontamentos teóricos sobre gestualidade que aparecem no
decorrer do ensaio, vale ressaltar que, no texto, Volóchinov concebe o discurso literário como
discurso do cotidiano, da realidade social, produzido por uma pessoa real em condições reais.
Na visão dele, esse procedimento de simular a interpretação de um enunciado literário como
um enunciado do cotidiano é um “fazer de conta” e ocorre porque não há um disco gramofone
que veicule a transmissão de uma conversa real entre pessoas vivas. Dado o exposto, a partir
desse momento, discutiremos dois aspectos importantes sobre nosso objeto de estudo, os
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quais aparecem no ensaio em investigação: o gesto como réplica de um enunciado e o gesto
como resultado da orientação social do enunciado.
Assim como em Palavra na vida e palavra na poesia, ao abordar a noção de réplica,
Volóchinov discute a questão da gestualidade, conforme vemos a seguir:
Em condições normais, sempre concordamos ou não concordamos com
aquilo que ouvimos. Habitualmente, respondemos a todo enunciado do
interlocutor, se não com palavras, ao menos com gestos: o movimento das
mãos, o sorriso, o balanço da cabeça etc. É possível falar que toda
comunicação ou interação discursiva ocorre na forma de uma troca de
enunciados na forma de um diálogo (VOLÓCHINOV, [1930] 2019, p. 272).
(Destaques do autor).
Nesse sentido, os gestos também constituem uma réplica, uma resposta responsiva
ativa do sujeito em direção a um objeto do discurso. Logo, a gestualidade pode acompanhar
um dado material verbal ou, isoladamente, constituir um todo semântico produtor de sentido.
Por meio dos gestos, podemos concordar ou discordar, aceitar ou refutar etc., isto é, podemos
nos posicionar frente a outros discursos que circulam numa dada esfera de comunicação da
língua. Utilizamos, inevitavelmente, todos os nossos sistemas de linguagens para nos
comunicarmos uns com os outros. Somos, por sua vez, sujeitos ativamente responsivos.
Ao buscar evidenciar a importante natureza dos elementos extraverbais no processo de
produção de sentidos de um enunciado, Volóchinov apresenta o seguinte exemplo: “O homem
de barbicha branca, sentado à mesa, depois de um minuto de silêncio disse: “É!”. O jovem em
pé à sua frente enrubesceu, deu-lhe as costas e foi embora.” (VOLÓCHINOV, [1930] 2019, p.
28). Segundo o estudioso, no fragmento exposto, verificamos duas réplicas que têm os
sentidos determinados pela relação entre elementos verbais e extraverbais. A primeira é um
enunciado verbal, constituído pela oração “É”, enquanto a segunda é um enunciado gestual,
caracterizado pela reação orgânica do interlocutor (o rubor do rosto) e o seu gesto (sair em
silêncio). Dessa forma, a gestualidade, em relação ou não com a materialidade verbal,
constitui-se um enunciado concreto ou, pelo menos, parte integrante dele.
Em relação às charges 1 e 2 expostas nesse artigo, vale destacar que cada uma mostra
os gestos que ganharam evidência durante o pleito eleitoral de 2018. Elas constituem réplicas,
compreensões responsivas ativas dos sujeitos-enunciadores sobre os discursos que envolvem
essas expressões gestuais, assiduamente veiculados pelos militantes, apoiadores e candidatos
à Presidência da República. Se observarmos a parte verbal, em ambos os casos, os sujeitos
Bolsonaro e Lula parecem responder, com esses gestos que estamos analisando, aos gritos
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motivadores de seus seguidores e apoiadores. No caso da charge 1, com as mãos levantadas e
com os dedos dispostos em forma de arma, o candidato parece reagir à euforia da multidão
que grita: “Mito!, Mito!...”. De modo parecido, a mão erguida com os dedos em formato de
“L” parece sugerir uma reação do ex-presidente Lula ao enunciado “Aumenta que isso aí é
Lula livre!” (não necessariamente vindo de uma multidão, como sugere o enunciado da
charge 1).
Outro aspecto discutido em Estilística do discurso literário II: a construção do
enunciado é a orientação social do enunciado concreto. Segundo Volóchinov ([1930] 2019),
ela sempre estará presente em qualquer enunciado do homem, seja ele verbal ou mesmo
gestual (por meio dos gestos e expressões faciais), uma vez que é uma das forças vivas
organizadoras que, em relação com as condições extraverbais, constitui a força estilística e a
estrutura gramatical do enunciado.
Para Volóchinov ([1930] 2019), o autor de uma obra literária realiza o processo de
construção da imagem externa de uma personagem com base na orientação social do
enunciado. Nesse viés,
Essa forma exterior corporal do comportamento social do homem
(movimento das mãos, pose, tom da voz), que costuma acompanhar o seu
discurso, é determinada principalmente pela consideração e, por conseguinte,
pela avaliação correspondente do auditório presente (VOLÓCHINOV,
[1930] 2019, p. 281).
Nesse sentido, ao gesticular, sempre levamos em consideração o nosso interlocutor, o
outro que participa do processo de interação discursiva. Em vista disso, os “modos do
homem” (VOLÓCHINOV, [1930] 2019, p. 281), suas expressões gestuais, resultam da
orientação social de seu enunciado. É importante salientar que a relação “eu” e “outro”,
através da orientação social do enunciado, pressupõe, devido à forte influência do método
marxista nos escritos volochinovianos, a consideração da inter-relação sócio-hierárquica entre
os interlocutores, isto é, o pertencimento da classe social dos interlocutores, seus bens, suas
profissões, seus cargos etc.
Segundo Volóchinov ([1930] 2019), possuir “bons modos” é considerar o seu
interlocutor, enquanto dispor de “maus modos” é desconsiderá-lo; é ignorar a relação sóciohierárquica entre ambos. Nesse sentido, o autor busca mostrar que a gestualidade não é
resultado de características inatas ou do próprio caráter do sujeito, mas da relação que ocorre
entre os sujeitos da interação discursiva.
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Ao discutir isso, Volóchinov cita um exemplo presente no livro Almas Mortas, de
Gógol, importante escritor russo. Segundo o estudioso, os “bons modos” de Tchítchikov
(personagem da história), os quais diferem a depender de quem ele visita, correspondem à
expressão gestual de uma consideração do seu auditório social, isto é, da habilidade de
compreender a personalidade do seu interlocutor. Esse procedimento também ocorre nas
charges 1 e 2, as quais também foram elaboradas levando-se em consideração um auditório
social, a saber: internautas interessados por política brasileira que acessam as respectivas
páginas na internet dos autores dos enunciados.
A partir das considerações apresentadas, formulamos um quadro que sintetiza os
principais apontamentos discutidos. Vejamos:
Quadro 1 – Síntese dos apontamentos sobre gestualidade nos escritos de 1926 e 1930
Quadro-síntese
Gestualidade
1) Horizonte espacial comum;
Palavra da
vida e
palavra na
poesia:
para uma
poética
sociológica
(1926)
Extraverbal
2) Conhecimento e compreensão da situação
comum;
3) Avaliação comum.
Metáfora
gestual
Resposta
1) O caráter compartilhado e
subentendido das avaliações de um
dado grupo social;
2) O terceiro participante.
1) O gesto como réplica de um enunciado.
1) O gesto como réplica de um enunciado.
Estilística
do
discurso
literário II:
a
construção
do
enunciado
(1930)
Resposta
1) O gesto como resultado da orientação
social do enunciado
Orientação
social
Fonte: Elaboração própria a partir de Volóchinov ([1926, 1930] 2019)
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No quadro acima, observamos categorias discutidas durante nossa investigação, as
quais podem embasar futuras discussões analíticas sobre gestualidade, aspecto cujo estudo
vem crescendo no campo das pesquisas em discurso na atualidade. Adiante, partimos para
nossas considerações finais sobre a reflexão elaborada.
Considerações finais
O presente artigo buscou investigar apontamentos teóricos sobre a questão da
gestualidade nos escritos volochinovianos, especialmente nos textos produzidos na primeira
metade do século XX, a saber: A palavra na vida e a palavra na poesia: para uma poética
sociológica (1926) e Estilística do discurso literário II: a construção do enunciado (1930). A
pesquisa visou sistematizar ideias teóricas e desenvolver uma análise acerca da forma como o
autor construiu reflexões produtivas para o estudo da gestualidade em perspectiva sociológica
nos estudos da linguagem. Durante nossas discussões, fizemos uso de algumas charges para
compreender de forma mais empírica a natureza dialógica da gestualidade, foco do nosso
estudo.
Em A palavra na vida e a palavra na poesia: para uma poética sociológica (1926),
verificamos que a gestualidade, como materialidade em que se concretiza o enunciado,
pertence ao elemento extraverbal da unidade real da comunicação discursiva, o qual é
constituído pelo horizonte espacial comum, pelo conhecimento e compreensão da situação
comum e pela avaliação comum. Além disso, os gestos têm por base o caráter compartilhado
e subentendido das avaliações de um dado grupo social, bem como são direcionados ao
terceiro participante, o qual é personificado, compreendido como um objeto vivo.
Em Estilística do discurso literário II: a construção do enunciado (1930),
observamos, durante a discussão do autor, dois apontamentos que refletem diretamente a
questão da gestualidade. O primeiro corresponde à noção de resposta: todos os enunciados são
uma réplica, uma resposta responsiva do sujeito em direção a um objeto do dizer. Logo, os
gestos não são elementos acidentais ou fortuitos; pelo contrário, são, individualmente ou em
relação com os elementos verbais, réplicas, enunciados-resposta. Já o segundo apontamento,
apresentado pelo ensaio, diz respeito à orientação social do enunciado: os gestos, assim como
as escolhas estilísticas, gramaticais e frasais, levam em consideração o interlocutor, isto é, a
inter-relação sócio-hierárquica entre os interlocutores que participam da interação discursiva.
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A presente discussão revela que a temática da gestualidade tem seu lugar nas reflexões
desenvolvidas pelos autores do conhecido Círculo de Bakhtin, a exemplo de Valentin
Volóchinov. Sabemos que essas considerações não aparecem, na maioria das vezes, em
primeiro plano nas obras, porém, elas nos possibilitam uma reflexão sobre o assunto, a fim de
desenvolvermos importantes pesquisas científicas no campo de estudos do discurso.
Destacamos, por fim, que este trabalho, em grande parte, é bibliográfico, por isso, estudos
analíticos, com base nas categorias discutidas, poderão ser produzidos posteriormente.
Referências
BAKHTIN, Mikhail. Os gêneros do discurso. Organização, tradução, posfácio e notas de
Paulo Bezerra; notas da edição russa de Serguei Botcharov. São Paulo: Editora 34, 2016.
176p.
GRILLO, Sheila; AMÉRICO, Ekaterina Vólkova. Registros de Valentin Volóchinov nos
arquivos do ILIAZV. In: VOLÓCHINOV, Valentin. A palavra na vida e a palavra na poesia:
ensaios, artigos, resenhas e poemas. Organização, tradução, ensaio introdutório e notas de
Sheila Grillo e Ekaterina Vólkova Américo. São Paulo: Editora 34, 2019. 400p.
VOLÓCHINOV, Valentin Nikolaevich. Marxismo e filosofia da linguagem: Problemas
fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. Trad. Sheila Grillo e Ekaterina
Vólkova Américo. Ensaio introdutório de Sheila Grillo. 1. ed. São Paulo: Editora 34, 2017
[1929].
VOLÓCHINOV, Valentin Nikolaevich. A palavra na vida e a palavra na poesia: para uma
poética sociológica (1926). In: VOLÓCHINOV, Valentin Nikolaevich. A palavra na vida e a
palavra na poesia: ensaios, artigos, resenhas e poemas. Organização, tradução, ensaio
introdutório e notas de Sheila Grillo e Ekaterina Vólkova Américo. São Paulo: Editora 34,
2019. 400p.
VOLÓCHINOV, Valentin Nikolaevich. Estilística do discurso literário I: a construção do
enunciado. In: VOLÓCHINOV, Valentin Nikolaevich. A palavra na vida e a palavra na
poesia: ensaios, artigos, resenhas e poemas. Organização, tradução, ensaio introdutório e
notas de Sheila Grillo e Ekaterina Vólkova Américo. São Paulo: Editora 34, 2019. 400p.
Charge 1. Disponível em: http://www.ivancabral.com/2019/11/charge-patria-amada.html.
Acesso em: abril de 2020
Charge 2. Disponível em: http://www.brasil247.com/charges/aroeira- rock-in-lula Acesso em:
abril de 2020.
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