Seção Dossiê
Cuidado, Espiritualidade e
Reflexões Contemporâneas
Revista Davar Polissêmica, Belo Horizonte, v. 15, n. 1, jan.-jun., 2021. ISSN 2236-2711.
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A igreja como comunidade do cuidado
The church as a community of care
Jorge Henrique Barro1
Docente no PPG de Teologia da Faculdade Teológica Sul Americana
Resumo: Este artigo acadêmico examina a concepção da igreja como
uma comunidade do cuidado, destacando seu papel essencial nas
relações interpessoais. Explora-se as raízes teológicas e bíblicas desse
conceito, analisando como a igreja, como corpo de Cristo, é chamada a
expressar e praticar o cuidado em várias dimensões. A igreja, ao longo
dos séculos, desempenha um papel fundamental na vida das pessoas e
nas comunidades locais. Uma perspectiva que tem ganhado destaque é
a concepção da igreja como uma comunidade do cuidado. Este
conceito enfatiza o papel transformador da igreja nas vidas pessoas e
na sociedade como um todo. Especial atenção é dada a expressão
bíblica uns aos outros (allelon, no grego), categorizada nessa reflexão
em quatro dimensão, sendo: social, pedagógica, ética e terapêutica.
Essas dimensões implicam no compromisso de amar, edificar,
considerar e cuidar uns aos outros. Toda a igreja tem a
responsabilidade de ser uma comunidade do cuidado pastoral tanto no
acolhimento como na edificação mútua.
Palavras-chave: Igreja. Comunidade. Cuidado. Acolhimento.
Edificação.
Abstract: This academic article examines the conception of the
church as a community of care, highlighting its essential role in
interpersonal relationships. The theological and biblical roots of this
concept are explored, analyzing how the church, as the body of Christ,
is called to express and practice care in various dimensions.
Throughout the centuries, the church has played a fundamental role in
people’s lives and local communities. A perspective that has gained
prominence is the idea of the church as a community of care. This
concept emphasizes the transformative role of the church in peoples’
lives and society as a whole. Special attention is given to the biblical
expression one another (allelon, in Greek), categorized in this
reflection into four dimensions: social, pedagogical, ethical, and
therapeutic. These dimensions imply a commitment to love, build up,
consider, and care for one another. The entire church has the
responsibility to be a community of pastoral care both in welcoming
and mutual edification.
Keywords: Church. Community. Careful. Reception. Edification.
Doutor em Estudos Interculturais pelo Fuller Theological Seminary, Pasadena, California (EUA). Seu
doutorado foi apostilado pela Escola Superior de Teologia (EST), São Leopoldo/RS. É o atual Diretor
Executivo Geral da Faculdade Teológica Sul Americana (FTSA), onde também é professor de vários
cursos, dentre eles no Mestrado Profissional em Teologia. É pastor presbiteriano, escritor e
conferencista.
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Introdução
A igreja, ao longo dos séculos, tem sido uma fonte central de significado
espiritual, um farol de esperança e, em muitos casos, um santuário de cuidado. Este
artigo acadêmico se propõe a explorar a profunda essência da igreja como a
Comunidade do Cuidado, desvelando as ricas camadas de significado que residem na
interconexão entre a fé cristã e o compromisso com o bem-estar coletivo.
Na primeira seção, intitulada Uns aos outros: a vida em comunidade,
mergulharemos na complexidade da comunhão cristã, destacando a expressão bíblica
uns aos outros como um fio condutor que tece a tapeçaria da vida em comunidade e
em comunhão. Cada subseção - dimensão social, pedagógica, ética e terapêutica desvendará as diversas formas pelas quais a comunidade é convocada a amar, edificar,
considerar e cuidar uns dos outros.
Na sequência, refletiremos sobre a dinâmica da Eu-unidade, explorando como
a individualismo de cada membro pode corromper a harmonia do corpo.
Examinaremos alguns exemplos como o casal Ananias e Safira que buscaram ser
proeminentes em relação aos demais membros da igreja primitiva. Também o caso das
viúvas helênicas que foram esquecidas no cuidado em relação as viúvas judias, e ainda,
a separação entre Paulo e Barnabé que se dividiram em função de uma pessoa. O
equilíbrio delicado entre a singularidade de cada pessoa e a busca coletiva é um desafio
para a comunidade.
Por fim, no terceiro segmento, Caminhos para ser uma comunidade do
cuidado, delinearemos estratégias tangíveis para a igreja se afirmar como uma
verdadeira comunidade do cuidado. Sob a perspectiva de uma comunidade pastoral,
destacaremos o papel fundamental do acolhimento e da edificação mútua, sublinhando
a importância de ser não apenas um refúgio espiritual, mas também um espaço de
crescimento e fortalecimento contínuo.
Ao longo desta jornada, exploraremos as interseções entre teologia, prática e
vida eclesial e a realidade cotidiana dos membros da comunidade. Ao fazê-lo,
buscamos não apenas compreender, mas também inspirar e desafiar a igreja a se
tornar, de maneira ainda mais profunda, a comunidade do cuidado, que reflete os
princípios fundamentais do evangelho.
1 “Uns aos outros”: a vida em comunidade
A expressão uns aos outros é derivada da palavra grega allelon (ἀλλήλων), que
significa mutualidade e reciprocidade, marcas sem as quais a igreja jamais seria uma
comunidade. Ocorre cerca de 97 vezes no Novo Testamento2. Dessas, 71 vezes usa-se a
expressão uns aos outros, conforme a imagem a seguir:
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De acordo com o programa Logos.
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Gráfico: Palavra ἀλλήλων (allelon) no Novo Testamento 3
A maioria dessas ocorrências são comandos específicos que ensinam aspectos
positivos do como e do como não se relacionar uns com os outros. A obediência a esses
comandos não é uma opção da relação cristã, mas um imperativo, pelo fato de se
constituir a base relacional da verdadeira comunidade cristã que tem um impacto
direto em seu testemunho no mundo (Jo 13:35).
Tais comandos tornam-se em imperativos para a comunidade cristã porque
“somos um só corpo em Cristo e membros uns dos outros” (Rm 12:5). Essa
mutualidade e interdependência se dão no exercício do “sujeitando-vos uns aos outros
no temor de Cristo” (Ef 5:21). O corpo é de Cristo, e por isso, exige que se viva “no
temor de Cristo”. Esse temor será expresso e visível, pelo menos, por meio de quatro
dimensões em forma de compromissos e atitudes da vida em comunidade:
Atitudes
Amar uns aos outros
Edificar uns aos outros
Considerar uns aos outros
Cuidar uns aos outros
Dimensão
Social
Pedagógica
Ética
Terapêutica
Tabela: Dimensões e compromissos e atitudes do Allelon
1.1 Comunidade significa amar uns aos outros – dimensão social
Se é comunidade é social. Não se trata de um indivíduo que vive de modo
individual no coletivo. A não compreensão desse aspecto leva as pessoas da
comunidade a não se comprometerem com o corpo. Cada pessoa é uma pessoa com
sua individualidade e pessoalidade, mas que se torna corpo. Paulo deixa claro que
“somos um só corpo em Cristo” (Rom 12:5). Somos um é o milagre da convivência e da
comunhão de um com o todo. O todo é feito de cada, de cada parte. É com-unidade, a
unidade que se torna possível com os demais. O eu sem o com é individualismo que
ignora o todo. Esse risco precisa ser eliminado da vida em comunidade porque conspira
Fonte: Aplicativo LOGOS. Português. Palavra no ἀλλήλων (allelon) no Novo Testamento. Disponível
em: https://app.logos.com/guides/word?reference=ἀλλήλων. Acesso em: 14 jan. 2021.
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contra a mutualidade e interdependência. Com-unidade é ser “membros uns dos
outros” (Rm 12:5).
Esse milagre da con-vivência, da partilha da vida em com-unidade só é possível
onde o amor determina o ritmo de ser desses membros uns dos outros. Sem a
experiência e prática do amor nenhuma comunidade sobrevirá. O allelon é mantido e
suportado pelo amor. Somente o amor, o que procede de Deus (1 Jo 4:7), é capaz de
fazer com que o allelon seja conduzido pelas seguintes características:
Marcas da mutualidade (Ef 4:2).
A reciprocidade do perdão (Cl 3:13).
Cultura de honra (Rm 12:10).
Coração apaixonado (1 Pe 1:22).
Fidelidade a tradição escriturísticas (1 Jo 3:11; 2 Jo 1:5; 1 Jo 3:23; Rm 13:8; Gl 6:2).
Revela quem verdadeiramente é filho de Deus e o conhece (1 Jo 4:7).
O amor retributivo (1 Jo 4:11).
O amor evidenciado de Deus em nós (1 Jo 4:12).
A reciprocidade acolhedora (Rm 15:7).
A elasticidade e intensifica do amor (1 Ts 3:12).
Comunidade significa amar uns aos outros. A dimensão social da comunidade
só será mantida se o allelon for caracterizado pelo amor mútuo. Além do amor em sua
dimensão social, o allelon também se caracteriza pela dimensão pedagógica como
uma comunidade edificadora.
1.2 Comunidade significa edificar uns aos outros – dimensão pedagógica
A comunidade, como uma expressão social de amor, é uma comunidade de
qualidade. Não se trata de uma massa de manobra, de gente despreparada, que faz do
allelon uma experiência acrítica e sem qualidade. A comunidade de Jesus é uma
comunidade pedagógica que cresce e se edifica. A vida em comunidade é vida de
edificação mútua. Ninguém pode ser deixado para traz. Deixar ou ignorar um membro
do corpo é desqualificar o todo. Uma comunidade sem qualidade é um risco para si
mesma e para o projeto que Deus tem para ela no mundo.
O allelon é mantido pelas exigências qualitativas. Uma qualidade que faz com
que o allelon seja conduzido pelas seguintes características:
Comunidade pacificadora e edificadora (Rm 14:19).
Comunidade capacitadora (Rm 15:14).
Centralidade da Palavra e adoração (Cl 3:16).
Consolo e edificação (1 Ts 5:11).
Encorajamento e quebrantamento (Hb 3:13; 1 Jo 1:7).
A dimensão social da comunidade, onde o amar uns aos outros se experimenta
e vive de modo voluntário, sem esquecer que é mandamento, prepara o solo para o
crescimento contínuo como dimensão pedagógica de uma comunidade que cresce em
qualidade.
1.3 Comunidade significa considerar uns aos outros – dimensão ética
Agora o allelon pode rumar para a dimensão ética que, acima de tudo é
caracterizado pelo amor mútuo. A dimensão ética cuida dos valores do allelon, visando
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a consideração do outro em comunidade. Esse outro não como estranho e alheio, mas
como membro um dos outros em mutualidade e interdependência.
O allelon é ético. Uma ética não legalista, mas relacional e referencial, que
direciona a comunidade para a valorização da consideração mútua. Ética que faz com
que o allelon seja conduzido pelas seguintes características:
Incitação do amor e boas obras (Hb 10:24).
Que o outro cresça e eu diminua: (Fp 2:3; Rm 15:5).
O poder do auto esvaziamento (Rm 12:16).
Presidir nossas atitudes e não o outro (Rm 14:13; Gl 5:15; Gl 5:26; Tg 4:11; Tg 5:9).
A ética da reciprocidade Cristocêntrica-perdoadora (Ef 4:32).
A ética da transparência (Cl 3:9).
Viver em comunidade é um viver ético que incita o bem e jamais o mal, o certo
e nunca o errado. Se é para fazer guerra, que seja para provocar ao amor e boas obras.
O outro na comunidade é meu membro como eu sou do corpo de Cristo, e isto implica
que o outro cresça e eu diminua. Exige de cada membro uma kenosis diária que, assim
como Cristo que abriu mão “ser igual a Deus” (Fp 2:6), da mesma forma (no grego
phroneo – φρονεω, ter o mesmo entendimento, sentimento, atitude) também abrimos
mão de nós mesmos num processo de auto esvaziamento para que o outro seja superior
a mim mesmo. Implica em que cada um se torna responsável por presidir (ser juiz) de
suas próprias atitudes em vez de querer controlar o outro. Tal ética necessariamente
conduz a uma conduta de reciprocidade perdoadora modela em Cristo que a todos
perdoa, como modelo, para que o mesmo seja feito com cada membro de sua
comunidade, afinal cada deve se despir (ou pelo menos deveria) da velha natureza (ou
velho homem) já que agora “não sois estrangeiros... mas concidadãos dos santos, e sois
da família de Deus” (Ef 2:19).
1.4 Comunidade significa cuidar uns aos outros – dimensão terapêutica
A comunidade de Jesus é uma comunidade cuidadora que visa a cura das
pessoas. Essa é sua dimensão terapêutica. O ministério de Jesus foi um ministério
terapêutico. A palavra therapeuo (no grego θεραπευω) ocorre 43 no Novo Testamento
com dois sentidos muito claros: 1) Servir, realizar o serviço; 2) Sarar, curar, restaurar
a saúde. Therapeuo é encontrada em Mateus 4:23, que diz que “percorria Jesus toda a
Galiléia, ensinando nas sinagogas, pregando o evangelho do reino e curando toda sorte
de doenças e enfermidades entre o povo”. Essa palavra também é confirmada quando
Jesus chama seus discípulos para fazer o mesmo que Ele fazia: “E percorria Jesus todas
as cidades e povoados, ensinando nas sinagogas, pregando o evangelho do reino e
curando toda sorte de doenças e enfermidades” (Mt 9:35). Ao ver o estado e a situação
das pessoas dentre as multidões, Jesus é movido a servi-las, pois, “vendo ele as
multidões, compadeceu-se delas, porque estavam aflitas e exaustas como ovelhas que
não têm pastor” (Mt 9:36). O serviço sem compaixão torna o que serve pior que o
doente que se propõe a curar. A comunidade de Jesus é uma comunidade compassiva,
que serve por amor, na esperança de que as pessoas sejam libertas das aflições e
exaustões que oprimem seu viver cotidiano.
O allelon é terapêutico. Uma terapia que reconcilia o próximo consigo mesmo
em sua integralidade e totalidade, porque o desejo de Deus é que seu povo seja
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santificado em tudo, tanto o “espírito, alma e corpo sejam conservados íntegros e
irrepreensíveis na vinda de nosso Senhor Jesus Cristo” (1 Ts 5:23).
Para que allelon seja assim, íntegro e irrepreensível, precisa ter as seguintes
características:
A reciprocidade da humildade (Jo 13:14).
A reciprocidade da transferência (Ef 4:25).
A reciprocidade do cuidado (1 Co 12:25).
A reciprocidade do carinho e do afeto (2 Co 13:12).
A reciprocidade da mente (1 Pe 3:8).
A reciprocidade do serviço mútuo (1 Pe 4:10; Gl 5:13).
A reciprocidade da liturgia da cura (Tg 5:16).
A reciprocidade do consolo e edificação (1 Ts 5:11).
É fundamental lembrar a Regra de Ouro de Jesus que diz que “tudo quanto,
pois, quereis que os homens vos façam, assim fazei-o vós também a eles; porque esta é
a Lei e os Profetas” (Mt 7:12). Cuidar dos outros exige uma reciprocidade de
tratamento, ou seja, do mesmo modo como eu gostaria de ser tratado. A conjunção pois
neste texto – “tudo quanto, pois” – significa por esta razão, consequentemente,
conformemente, sendo assim. Isso em relação para com a afirmação anterior que diz
“Ora, se vós, que sois maus, sabeis dar boas dádivas aos vossos filhos, quanto mais
vosso Pai, que está nos céus, dará boas coisas aos que lhe pedirem?” (Mt 7:11). Ou seja,
alguém que recebeu a generosidade de Deus-Pai celestial jamais poderia sonegar e
recusar que o outro tenha mesma o mesmo tratamento. Generosidade gera
generosidade. A generosidade de Deus impulsiona a generosidade com o próximo
porque é assim que esperamos e desejamos ser também tratados. Isso é reciprocidade
terapêutica. Trata-se de uma ação positiva – faça aos outros – e não uma ação negativa
– não faça aos outros. É mais do que evitar; é fazer o bem, porque “aquele que sabe
que deve fazer o bem e não o faz nisso está pecando” (Tg 4:17). Faço para o outro o que
eu quero que seja para mim e isso com base na generosidade de Deus.
Isso é o que significa ser e viver em e na comunidade de Jesus, caracterizada
pelo allelon que visa: (1) amar; (2) edificar; (3) considerar; e (4) cuidar uns aos outros.
Uma comunidade assim não significa ausência de problemas e conflitos. Várias
cartas de Paulo revelam isso, como aos Coríntios. As dificuldades e problemas
existentes dentro da comunidade não deveriam trazer desânimo, mas desafiar as
pessoas a serem o que ainda não são e a fazer o que ainda não fazem. Paulo disse ao
seu jovem discípulo-pastor Timóteo que “é para esse fim que labutamos e nos
esforçamos sobremodo, porquanto temos posto a nossa esperança no Deus vivo,
Salvador de todos os homens, especialmente dos fiéis” (1 Tm 4:10). A esperança não
está na comunidade, mas no Deus vivo. Porém, isso não isenta de fazer de
diligentemente labutar e esforçar para que a comunidade de Jesus seja uma
comunidade do cuidado.
É importante ressaltar que ser uma comunidade do cuidado não é o todo da
razão de ser e existir da igreja. Quem vive para si mesmo morre para si mesmo,
parafraseando o Paulo, que disse: “Porque nenhum de nós vive para si mesmo, nem
morre para si” (Rm 14:17). A comunidade é um instrumento da missional de Deus no
e para o mundo. Ela não existe e muito menos é um fim em si mesma. Ser uma
comunidade missional não significa negligenciar a vida interna da igreja. A relação ad
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intra (para dentro) e ad extra (para fora) precisa ser existir. Manter essa tensão é
fundamental para o equilíbrio da igreja. O ad intra sem o ad extra faz com a igreja não
passe de um clube social, como foi no caso da Igreja em Sardes, “que tens nome de que
vives e estás morto” (Ap 3:1). Antes disso, a igreja é o corpo vivo de Cristo, uma
comunidade do cuidado mútuo.
2 “Eu a despeito e acima dos outros”: a eu-unidade
Todas as vezes que a igreja esquece da sua natureza comunitária, entra em rota
de colisão com ela mesma. Esses poucos exemplos a seguir são suficientes para
convencer que quando o eu está acima dos outros dinamita o sentido da comu-nidade
por causa do eu-unidade. Vejamos:
2.1 Ananias e Safira: quando o engano se apresenta com aparência de generosidade
“Entretanto, certo homem, chamado Ananias, com sua mulher Safira, vendeu
uma propriedade, mas, em acordo com sua mulher, reteve parte do preço e, levando o
restante, depositou-o aos pés dos apóstolos” (At 5:1). Esse mas é autoexplicativo. Não
foi um acordo com a comunidade, mas entre Ananias e sua mulher. Tal acordo tinha
por propósito a autopromoção deles na comunidade. Isso, certamente conspiraria
contra a unidade da comunidade e, certamente, promoveria disputa de poder, e neste
caso, o financeiro. Tal situação, de querer ter prestígio entre os irmãos, gerou morte e
não vida, servindo de modelo negativo para que ninguém imitasse essa atitude de
disputa na igreja primitiva. Aqui faltou o allelon.
2.2 As viúvas helênicas: quando grupos ascendem sobre outros
“Ora, naqueles dias, multiplicando-se o número dos discípulos, houve murmuração
dos helenistas contra os hebreus, porque as viúvas deles estavam sendo esquecidas na
distribuição diária” (At 6:1). Mal a igreja primitiva começara e já experimentava os
desafios da vida em comunidade. Favoritismos foi e sempre e será um dos grandes
desafios do viver em comum. Se um determinado grupo tem ascensão sobre outro,
deixa de ser comum, mas especial. Esse grupo passa a ser mais lembrado e destacado
que o outro. Foi o caso das “viúvas deles [helênicas] estavam sendo esquecidas na
distribuição diária”. A igreja primitiva, em seu desafio de ser uma comunidade
multiétnica, já possuía gregos e judeus em sua convivência. Tudo indicava que os
judeus tinham mais destaque na comunidade a ponto de as viúvas gregas estarem
sendo esquecidas, possivelmente omitidas e negligenciadas na distribuição diária das
cestas básicas. Tal situação provocou o surgimento dos diáconos, sendo todos, sem
exceção, gregos, sendo: Estêvão, Filipe, Prócoro, Nicanor, Timão, Pármenas e Nicolau.
Aqui novamente faltou o allelon.
2.3. Separação entre Paulo e Barnabé: quando convicções pessoais rompem
relacionamentos
Muitas são as divisões de igrejas por causa das discórdias:
Alguns dias depois, disse Paulo a Barnabé: Voltemos, agora, para
visitar os irmãos por todas as cidades nas quais anunciamos a palavra
do Senhor, para ver como passam. E Barnabé queria levar também a
João, chamado Marcos. Mas Paulo não achava justo levarem aquele
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que se afastara desde a Panfília, não os acompanhando no trabalho.
Houve entre eles tal desavença, que vieram a separar-se (At 15:36-39).
A vida em comunidade tem o desafio de tratar as discórdias sem que estas
promovam separações. Não foi o caso aqui. O resultado entre esses dois homens, que
se amavam de forma tão intensa e profunda, foi a separação. De novo, faltou o allelon.
Faltou o que o próprio Paulo incentivou as igrejas de Filipos e Roma fazerem. Parece
ter aprendido a lição! “Nada façais por partidarismo ou vanglória, mas por humildade,
considerando cada um os outros superiores a si mesmo” (Fp 2:3) e “Ora, o Deus da
paciência e da consolação vos conceda o mesmo sentir de uns para com os outros,
segundo Cristo Jesus” (Rm 15:5).
Quando o eu a despeito dos outros está acima do uns aos outros o resultado
nunca é a paz, mas divisões. Sem uma compreensão da importância do allelon a igreja
jamais conseguirá ser comu-nidade. Será antes um aglomerado de pessoas que se
juntam em determinados momentos para determinados fins em forma de e-ventos. O
sopro do Espírito é outro porque “há somente um corpo e um Espírito, como também
fostes chamados numa só esperança da vossa vocação; há um só Senhor, uma só fé, um
só batismo; um só Deus e Pai de todos, o qual é sobre todos, age por meio de todos e
está em todos” (Ef 4:4-6). Nas palavras de Paulo, isso exige esforço, que é o
“esforçando-vos diligentemente por preservar a unidade do Espírito no vínculo da paz”
(Ef 4:3).
3 Caminhos para ser uma comunidade do cuidado pastoral
Muito ainda se pensa que o ministério (serviço) do cuidado na igreja é tarefa
exclusiva dos seus líderes pastorais. É essencial e continuará sendo o cuidado realizado
pelos pastores(as), na expressão tão conhecida, como cura d’almas. Eugene Peterson
afirma que, “a cura de almas, pois, é dirigido pelas Escrituras, moldado pelo cuidado
na oração, dedicado a pessoas individualmente ou em grupos, em lugares sagrados e
profanos. É uma determinação em trabalhar com o centro, em concentrar-se no
essencial”4. Líderes pastorais têm essa tarefa, não única e exclusiva, de ser também
cuidador de almas. Paulo menciona essa tarefa aos presbíteros da Igreja de Éfeso,
dizendo: “Atendei por vós e por todo o rebanho sobre o qual o Espírito Santo vos
constituiu bispos, para pastoreardes a igreja de Deus” (At 20:28). Paulo exorta os
presbíteros para atender, que no grego é prosecho, que tem a ideia de levar a e trazer
para perto como um ato de cuidar. É a mesma ideia de trazer um navio a terra como
metáfora para ajudar as pessoas nas travessias dos seus mares revoltos da vida,
atracando em portos seguros.
Os presbíteros, para poderem cuidar de todo o rebanho, precisavam prestar
atenção para si mesmo. Essa lógica é fundamental, pois ninguém tem condições de
cuidar de uma pessoa ou grupo sem antes cuidar de si mesmo. O cuidado de si mesmo
proporciona a solidez necessária para cuidar de todo o rebanho, com a finalidade de
pastoreardes a igreja de Deus.
Por outro lado, há respaldo bíblico para que esse cuidado não seja realizado
exclusivamente pelas lideranças pastorais. A igreja precisa ser incentivada a ser uma
comunidade do cuidado pastoral. Nenhum líder pastoral por si só, por mais
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PETERSON, Eugene H. The contemplative pastor. Grand Rapids: Eerdmans, 1993, p. 54.
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capacitado e dedicado que seja, dará conta do cuidado de toda a igreja. Por isso, allelon
se constitui em uma experiência comunitária que descentraliza e democratiza o
cuidado mútuo. Sem tal compreensão, pastores rumam para a sobrecarga e estafa do
cuidado de toda a igreja. Tal responsabilidade deve e precisa ser compartilhada,
mesmo sabendo dos riscos e perigos que esse cuidado comunitário possa apresentar.
Debaixo da supervisão dos pastores, o corpo pastoreia e cuida o corpo.
Como isso pode acontecer?
3.1 Uma comunidade do acolhimento mútuo
“Portanto, acolhei-vos uns aos outros, como também Cristo nos acolheu para a
glória de Deus” (Rm 15:7). Acolher (proslambano no grego) é levar a, tomar para si
mesmo como companheiro, tomar pela mão ou receber em casa. Somente o allelon
pode realizar tal tarefa em sua plenitude. Quantas expressões de cuidado não são
encontradas na vida em comunidade quando pessoas tomam outras pela mão e as
levam para suas casas para ali terem uma refeição, receberem palavras de consolo,
serem encorajadas e terem suporte para a dura jornada da vida.
O acolhimento transcende as instalações físicas do templo e não se resume ou
se encerra no comitê de boas-vindas de uma igreja. Os encontros públicos da igreja
devem ser marcados por acolhimento amoroso, caloroso, sensível, particularmente,
aos visitantes. Muitos destes o fazem em caráter de sondagem investigativa se tal
ambiente é de fato um ambiente onde se possa vir fazer parte. Uma comunidade
acolhedora espalha seu estilo de vida para todos os lugares sem demarcações
territoriais.
O Paulo revela seu afeto aos Coríntios, dizendo: “Acolhei-nos em vosso coração;
a ninguém tratamos com injustiça, a ninguém corrompemos, a ninguém exploramos.
Não falo para vos condenar; porque já vos tenho dito que estais em nosso coração para
juntos, morrermos e vivermos” (1 Co 7:2-3). Essa mutualidade relacional (juntos) é um
compromisso para, juntos, morrermos e vivermos.
O acolhimento também se expressa e se materializa no campo das ideias,
pensamentos e convicções. A comunidade acolhedora tem o desafio de ter o mesmo
pensar. Implica em tolerância para com os mais fracos na fé. Por isso, “acolhei ao que
é débil na fé, não, porém, para discutir opiniões” (Rm 14:1). Débil (astheneo no grego)
é aquele que é fraco no sentido de estar sem força, sem energia, como também estar
carente de recursos, indigente, pobre e estar debilitado por doença. Na igreja existem
pessoas que estão experimentando diferentes estágios na fé, na busca de terem a mente
de Cristo: “Nós, porém, temos a mente de Cristo” (1 Co 2:16). Contudo, nem todos
chegaram lá por estarem em diferentes estágios da fé. Isso exige tolerância inclusiva.
O fraco não tem força em si mesmo para se tornar forte. Por causa disso, cada pessoa
em comunidade deve desenvolver a consciência do “fiz-me fraco para com os fracos” (1
Co 9:17). O forte pode se fazer fraco por amor ao fraco. Já o fraco não consegue se fazer
forte por amor ao forte. Simpatia, altruísmo e tolerância são atitudes fundamentais na
imitação a Cristo (Rm 15:1-3).
Não faz sentido “discutir opiniões” (1 Co 7:2) com quem é fraco para ganhar uma
discussão. O caminho do forte é o caminho da kenosis, do auto esvaziamento de si
mesmo, porque este é o caminho de Cristo. A referência para o acolhimento é “acolheivos uns aos outros, como também Cristo nos acolheu para a glória de Deus” (Rm 15:7).
Cristo é o modelo de acolhimento para a comunidade – “como também Cristo”. A
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comunidade torna-se acolhedora quando ela experimenta em si mesma o acolhimento
de Cristo para que ao imitá-lo, as pessoas que chegam à comunidade também
aprendam a fazer o mesmo.
Uma comunidade assim, acolhedoramente modelada em Cristo, cuida
tolerantemente dos fracos em seus estágios de fé, especialmente “se alguém for
surpreendido nalguma falta, vós, que sois espirituais, corrigi-o com espírito de
brandura... Levai as cargas uns dos outros e, assim, cumprireis a lei de Cristo” (Gl 6:12).
Os pneumatikos (espirituais), aqueles que já estão em um estágio de fé mais
avançado em sua imitação de Cristo, já são mais maduros para saberem como tratar
dos fracos da comunidade. Por isso mesmo, os fortes não corrigem com força, mas
“com espírito de brandura”, que literalmente, significa gentileza, bondade e
humildade. Os pneumatikos também correm o risco de serem astheneo (fracos).
É no acolhimento mútuo que se cumpre a lei de Cristo de “levai as cargas uns
dos outros e, assim, cumprireis a lei de Cristo” (Gl 6:2). Ter a mente de Cristo significa
se ocupar apenas com “tudo o que é verdadeiro, tudo o que é respeitável, tudo o que é
justo, tudo o que é puro, tudo o que é amável, tudo o que é de boa fama, se alguma
virtude há e se algum louvor existe, seja isso o que ocupe o vosso pensamento” (Fp 4:8).
O segundo aspecto do ser de uma comunidade acolhedora é a edificação mútua,
que agora passamos a refletir.
3.2 Uma comunidade da edificação mútua
Faz-se necessário refletir sobre a finalidade do acolhimento. Não se acolhe
apenas para acolher. O acolhimento pelo acolhimento pode gerar uma comunidade
ensimesmada, que acha que o fim último dela é a sua dimensão interna (ad intra).
Uma vez que as pessoas são acolhidas, pela profunda compreensão e fruto do “amemonos uns aos outros, porque o amor procede de Deus” (1 Jo 4:7), reconhecendo que “se
Deus de tal maneira nos amou, devemos nós também amar uns aos outros” (1 Jo 4:11),
essa comunidade agora deve ser uma comunidade edificadora e capacitadora.
Conforme já destacado, essa é a dimensão pedagógica do allelon. O allelon é
edificador.
Muito significativa é a palavra no grego oikodome (οικοδομη) que tem como
perspectiva o ato de construir uma casa, edificar a partir da fundação, restaurar pela
construção, reconstruir e reparar. De forma metafórica, tais sentidos são emprestados
por Paulo para se referir ao processo de edificação da igreja como sendo um ato que
promove o crescimento do allelon em sabedoria cristã, piedade, afeição, graça, virtude,
santidade e bem-aventurança. Sem edificação, o allelon é corpo atrofiado e subnutrido.
A edificação é que pode garantir um crescimento estável que ruma para a maturidade
(teleiós). Comunhão implica em crescer juntos. Sem tal propósito o corpo sofrerá de
koinonite, a inflamação da koinonia. Sem crescimento a comunidade fica sem
qualidade, fruto de uma fé imatura. Isso foi o que aconteceu com a comunidade dos
cristãos hebreus:
A esse respeito temos muitas coisas que dizer e difíceis de explicar,
porquanto vos tendes tornado tardios em ouvir. Pois, com efeito,
quando devíeis ser mestres, atendendo ao tempo decorrido, tendes,
novamente, necessidade de alguém que vos ensine, de novo, quais são
os princípios elementares dos oráculos de Deus; assim, vos tornastes
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como necessitados de leite e não de alimento sólido. Ora, todo aquele
que se alimenta de leite é inexperiente na palavra da justiça, porque é
criança. Mas o alimento sólido é para os adultos, para aqueles que, pela
prática, têm as suas faculdades exercitadas para discernir não somente
o bem, mas também o mal (Hb 5:11-14).
O autor aos Hebreus faz uma denúncia severa a essa comunidade dos cristãos
hebreus: de mestres a crianças. Uma comunidade que já deveria estar enraizada nos
“princípios avançados dos oráculos de Deus”, mas que ainda patina, mal sabendo e
conhecendo os “princípios elementares dos oráculos de Deus”, sem discernir entre o
bem e o mal, certo e errado.
Uma das finalidades das Escrituras é fazer com que a pessoa se torne adulta
(madura) para saber discernir não somente o bem, mas também o mal. Elas são a
ferramenta primeira para discernimento espiritual. A pessoa sem as Escrituras sabe
sobre “as coisas do homem” (1 Co 2:11). Há um contraste marcante entre as pessoas
que são cheias de discernimento (via as Escrituras) e pessoas que são vazias de
discernimento (sem as Escrituras). Quais são esses contrastes e essas características
que podem estar presentes em comunidade?
São pessoas difíceis: “A esse respeito temos muitas coisas a dizer, e difíceis de explicar,
porquanto vos tendes tornado tardios em ouvir” (Hb 5:11). São pessoas que é de
explicar determinadas coisas, porque elas (a) não querem muitas vezes ouvir (“tardios
em ouvir”). Pode se referir também no sentido espiritual, como espiritualmente
tardias, dando a ideia de que eles eram doentes ou devagar espiritualmente; (b) não
querem ceder e se tornaram duras (“porquanto vos tendes tornado”). “Não é uma
questão do que eles são por natureza, mas do que eles se tornaram por causa de suas
faltas... eles não foram sempre assim”5; (c) não conseguem entender (“muitas coisas a
dizer e difíceis de explicar”). Essa falta de impediam de compreender certos assuntos,
como a ordem de Melquisedeque. Para entender o que é explicado a pessoa precisa
estar crescendo em maturidade, aberta, sendo sensível e desimpedida para ouvir.
Estevão se referiu a este tipo de pessoas em Atos 7.51: “Homens de dura cerviz e
incircuncisos de coração e de ouvidos, vós sempre resistis ao Espírito Santo”. O
problema destes “homens incircuncisos de ouvidos” é que eles receberam “a lei por
mistério de anjos, e não a guardastes” (At 7:53). São pessoas difíceis. A consequência
de Estevão ter dito isto foi: “Ouvindo eles isto, enfureceram-se nos seus corações e
rilhavam os dentes contra ele” (Atos 7.54).
São pessoas que sempre regridem espiritualmente: “Pois, com efeito, quando devíeis
ser mestres, atendendo ao tempo decorrido, tendes novamente necessidade de que
alguém vos ensine de novo quais são os princípios elementares dos oráculos de Deus;
assim vos tornastes necessitados de leite, e não de alimento sólido” (Hb 5.12). Pessoas
que sempre (a) regridem espiritualmente porque com o passar dos anos (“atendendo
ao tempo decorrido”) já deviam estar ensinando como mestres em vez de sempre serem
ensinadas. Não se trata de não ser ensinável, mas sim de ser eternamente dependente
necessitando que alguém que sempre repita as mesmas coisas para que ela aprenda.
Além disso, (b) regridem espiritualmente porque não conseguem dar passos novos e
mais profundos nas Escrituras. Já poderiam alçar voos mais altos no conhecimento de
Deus, da Palavra e ter uma fé sólida. Em vez disto, não conseguem ir adiante, e o que é
5 RIENECKER, Fritz; ROGERS, Cleon. Chave linguística do NT Grego. São Paulo: Vida Nova, 1985, p.
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pior, não conseguem sequer guardar e praticar o básico. Por causa disso, precisam
serem ensinadas novamente sobre os “princípios elementares dos oráculos de Deus”,
que o autor aos Hebreus relaciona em seis: arrependimento de obras mortas (Hb. 6:1);
a fé em Deus (6:1); o ensino dos batismos (6:2); a imposição das mãos (6:2); a
ressurreição dos mortos (6:2); e o juízo eterno (6:2). Depois de tanto tempo, essas
pessoas mal sabem o básico. Tais pessoas que já deveriam ter a capacidade de serem
mestres e, ao contrário, têm a necessidade de voltarem ao jardim da infância para
começar tudo de novo. Aparentemente, o autor aos Hebreus frustrou-se com esta
situação, a dizendo que só voltaria a ensiná-las estes princípios elementares “se Deus
permitir” (6.3). Pessoas assim, que não conseguiam discernir o básico, tão pouco
discerniriam entre o bem e o mal. Pior do que isso, sempre regrediam espiritualmente
porque (c) sempre são necessitadas. São necessitadas de alguém (“necessidade de que
alguém vos ensine de novo”) para sempre estarem ao lado delas. São necessitadas de
leite (“vos tornastes necessitados de leite, e não de alimento sólido”). Poderiam se
alimentar de comida solida (questões mais profundas), mas não passam do estágio do
leite. Pedro disse: “Desejai ardentemente, como crianças recém-nascidas, o genuíno
leite espiritual, para que por ele vos seja dado o crescimento para a salvação” (1 Pe 2:2).
O leite produz crescimento. O problema dessas pessoas é que o leite não fazia isto em
suas vidas. Por esta razão, sempre são necessitadas, são fracas.
São pessoas inexperientes nas Sagradas Escrituras: “Ora, todo aquele que se alimenta
de leite, é inexperiente na palavra da justiça, porque é criança” (Hb 5:13). O cristão de
leite é aquele que é inexperiente na Palavra da justiça. A palavra inexperiente (no grego
apeirós) significa literalmente não provado, sugerindo que a falta de perícia estava
ligada a falta de prática. É uma situação distinta de um estado de completa ignorância.
As coisas de Deus exigem algo mais do que um mero conhecimento casual. Por isso, o
escritor não hesita em colocar seus leitores na categoria do leite. Nunca chegaram a
desenvolver as habilidades necessárias. Sendo inexperientes na Palavra da justiça que
se trata da justiça ética. O discernir entre o bem e o mal exige uma experiência, uma
vivência na Palavra da justiça, porque questões entre bem e mal desembocam
necessariamente em questões de justiça. A inexperiência na Palavra da justiça pode
gerar pessoas injustas, cujo discernimento não é correto.
Diante disto, percebe como realmente é difícil para uma pessoa nessas
condições exercer discernimento espiritual. Isso nos leva a concluir quão fundamental
é ser uma comunidade edificadora nas Escrituras porque “o alimento sólido é para os
adultos, para aqueles que, pela prática, têm suas faculdades exercitadas para discernir
não somente o bem, mas também o mal” (Hb 5:14). O caminho do discernimento entre
o bem e o mal, que conduz à maturidade cristã, é árduo e trabalhoso. Paulo disse que
“o qual nós anunciamos, advertindo a todo homem em toda sabedoria, a fim de que
apresentemos todo homem perfeito (teleiós – maduro) em Cristo” (Cl 1:28). Para isso,
ele disse “eu também me afadigo, esforçando-me o mais possível” (Cl 1:29).
É visível nas comunidades de fé a tendência do evangelho fácil, raso, superficial,
onde as pessoas são cada vez mais consumidoras dos produtos e programas religiosos.
Isso por si já é uma denúncia da falta de maturidade nas Escrituras.
O discernimento entre o bem e o mal deve ter base na Palavra que é a base
objetiva do discernir. Discernimento não é e não pode ser fruto de subjetividade. Jesus,
nas três tentações no deserto pelo diabo (pão-física; reinos deste mundo-política;
colocar Deus em prova-espiritual), disse: (1) “Está escrito: Não só de pão viverá o
homem” (Lc 4:4); (2) “Está escrito: Ao Senhor, teu Deus, adorarás e só a ele darás culto
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(Lc 4:8); (3) “Dito está: Não tentarás o Senhor, teu Deus” (Lc 4:12). É discernimento
que vem da Palavra e isto só vem com muito trabalho e dedicação.
A capacidade de discernir entre o bem e mal é fruto de:
Crescimento em maturidade: “Mas o alimento sólido é para os adultos” (Hb 5.14). A
palavra no grego traduzida por adultos é teleión que significa maduro, perfeito,
plenamente desenvolvido. “Portanto, o discernimento espiritual impõe-se como
constante na vida do cristão, para possibilitar-lhe a passagem da idade infantil da fé
para a do homem perfeito e maduro”6. Paulo assim escreve para a Igreja em Éfeso: “até
que todos cheguemos à unidade da fé e do pleno conhecimento do Filho de Deus, à
perfeita varonilidade, à medida da estatura da plenitude de Cristo, para que não
sejamos como crianças, agitadas de um lado para outro, e levados ao redor por todo
vento de doutrina, pela astúcia com que induzem ao erro” (Ef 4:13-14). Muito desta
infância espiritual dos cristãos também é fruto de pastorados fracos. Pastores e
mestres existem também para providenciar alimento sólido para as ovelhas e isto
implica na formação teológica, formal ou informal.
Prática e exercício: “para aqueles que, pela prática, têm as suas faculdades exercitadas
para discernir não somente o bem, mas também o mal” (Hb 5:14). Pela prática, nas
palavras do autor aos Hebreus, significa pelo hábito. “Refere-se a um hábito físico ou
mental, e não indica o processo, mas o resultado; isto é, a condição produzida pelo
exercício anterior, e se torna, então, a condição habitual, a disposição, tendência
dominante ou caráter”7. Significa que discernimento é também fruto de hábito e
exercício, porque para muitos, discernimento é sinônimo de adivinhação ou intuição,
que pode dar a ideia de algo instantâneo, rápido e de caminho fácil. Discernimento
exige muito treino, prática e exercício. E isto só é possível pela Palavra (base objetiva).
“A maturidade espiritual não advém dos eventos isolados nem de uma grande explosão
espiritual. Advém de uma aplicação regular da disciplina espiritual.8
O hábito é o remédio contra a inexperiência. É contra a inexperiência que o
autor aos Hebreus exorta ao progresso na fé, para que, “pondo de parte os princípios
elementares da doutrina de Cristo, deixemo-nos levar para o que é perfeito, não
lançando, de novo, a base do arrependimento de obras mortas e da fé em Deus, o ensino
de batismos e da imposição de mãos, da ressurreição dos mortos e do juízo eterno. Isso
faremos, se Deus permitir” (Hb 6:1-3).
O allelon é e sempre deve ser edificante (Rm 14:19), porque implica em ser cheio
de todo o conhecimento, aptos para admoestar uns aos outros (Rm 15:14). Para isso,
requer que habite ricamente em nós a palavra de Cristo que nos capacita para instruir
e aconselhar mutuamente em toda a sabedoria (Cl 3:16). O fruto dessas ações são
consolo de uns aos outros e edificação recíproca (1 Ts 5:11), cuja exortação mútua livra
a comunidade de ser seduzida pelo engano do pecado (Hb 3:13).
Conclusão
À medida que exploramos as riquezas da igreja como a Comunidade do
Cuidado, testemunhamos a beleza intrínseca de uma fé que se manifesta não apenas
em rituais litúrgicos, mas em práticas tangíveis de amor e solidariedade. O
DE FIORES, S.; GOFFI, T. (orgs.). Dicionário de espiritualidade. São Paulo: Paulinas, 1989, p. 284.
RIENECKER; ROGERS, 1985, p. 504.
8 GUTHRIE, Donald. Hebreus, introdução e comentário (Série Cultura Bíblica). São Paulo: Vida Nova,
1984, p. 128.
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entrelaçamento das dimensões sociais, pedagógicas, éticas e terapêuticas nos revela
uma visão holística da comunidade cristã, onde o compromisso com o cuidado mútuo
é tecido e entretecido no mais profundo da existência eclesial.
A Eu-unidade emerge como risco que corrompe o chamado à celebração da
diversidade dentro da unidade, reconhecendo que cada indivíduo traz consigo uma
narrativa única, essencial para a riqueza coletiva da comunidade. Nesse contexto, a
igreja se destaca como um espaço e ambiente onde a singularidade é valorizada, e a
jornada espiritual de cada participante contribui para a riqueza espiritual de todos.
À medida que contemplamos os caminhos para ser uma comunidade do
cuidado, vislumbramos a igreja não apenas como um local de adoração, mas como uma
fonte constante de sustento, acolhimento e crescimento. A comunidade pastoral, com
seu compromisso de acolhimento caloroso e edificação mútua, emerge como uma
expressão concreta do mandato bíblico de amar uns aos outros.
Em última análise, a igreja como a Comunidade do Cuidado é convocada a
transcender os limites das paredes eclesiásticas, estendendo suas mãos amorosas para
além de si mesma. Este chamado transcende teorias abstratas e se torna uma prática
diária, uma manifestação viva do evangelho que toca as vidas individuais e, por
extensão, transforma comunidades e sociedades.
Ao encerrar esta reflexão, somos desafiados a não apenas compreender
intelectualmente, mas a internalizar e viver a verdade de que a igreja é, e deve
continuar a ser, uma comunidade do cuidado. Que esta visão inspire e guie cada
comunidade cristã na jornada contínua de expressar o amor de Cristo por meio do
cuidado prático, da aceitação calorosa e da edificação mútua. A Comunidade do
Cuidado não é apenas uma teoria a ser discutida, mas uma realidade a ser vivida,
testemunhada e compartilhada para a glória de Deus e o benefício da humanidade.
Referências
PETERSON, Eugene H. The contemplative pastor. Grand Rapids: Eerdmans, 1993.
RIENECKER, Fritz; ROGERS, Cleon. Chave linguística do NT Grego. São Paulo: Vida
Nova, 1985.
DE FIORES, S.; GOFFI, T. (orgs.). Dicionário de espiritualidade. São Paulo: Paulinas,
1989.
GUTHRIE, Donald. Hebreus, introdução e comentário (Série Cultura Bíblica). São
Paulo: Vida Nova, 1984.
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