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BVPS Coleção v.3 Textos de Alcida Rita Ramos.

2024, Biblioteca Virtual do Pensamento Social

Agora é hora de compartilhar, mais uma vez, seus sonhostexto-lutas com leitoras e leitores da BVPS. Na Série foram publicados 10 textos e um bônus. Neste volume, adicionamos mais dois textos selecionados pela autora. Yanomamis, viagens etnográficas de antropólogos e de indígenas, reflexões sobre a antropologia brasileira, etnologia e políticas públicas, cosmopolitismo e a renascença artística indígena são alguns dos temas cobertos. Todos eles perpassados sempre pelos sonhos. Acreditamos que não estamos errados ao afirmar que a etnóloga Alcida tem aprendido e muito com os grupos que estuda. É certamente o caso dos Yanomamis, cujo mundo onírico, povoado pelo cotidiano, lhe revela o cosmos. Com Alcida é assim também, uma nova paisagem de afetos e experiências se abre em seus sonhos-textos. E existe algo melhor do que compartilhar sonhos?

ALCIDA RITA RAMOS "QUE NÃO TEMO CONTRASTES NEM MUDANÇAS,/ ANDANDO EM BRAVO MAR, PERDIDO O LENHO" ANTROPOLOGIA COMO ESCRITA Organização: André Botelho e Maurício Hoelz BVPS Coleção 003 | Outubro de 2024 BVPS Coleção. Número 003, outubro de 2024. Ramos, Alcida Rita. "Que não temo contrastes nem mudanças, /andando em bravo mar, perdido o lenho". Antropologia como escrita. 2024. Organização: André Botelho e Maurício Hoelz. Revisão: Caroline Tresoldi. Edição: João Mello e Caroline Tresoldi. Capa: Rennan Pimentel. Sumário Nota à publicação .................................................................................... 7 Singularidade e pluralidade: sonhos e textos de Alcida Rita Ramos .........................................................................................................9 O sonho da paz interétnica: viagem à terra de Macunaíma ...... 11 A “viagem” dos índios: maldição ou benção? ................................ 16 A tragédia Yanomami .......................................................................... 31 Nações dentro da nação: um desencontro de ideologias ......... 43 O antropólogo no papel de testemunha: laudos antropológicos e responsabilidade social .....................................................................58 Sonhando com ABYA-YALA ............................................................. 74 Por una antropología universal: vislumbrando diálogos entre teorías nativas y académicas ............................................................ 101 Renascença Indígena .......................................................................... 112 Meditações indígenas e ecúmeno antropológico ......................129 Pulp fictions del indigenismo ............................................................ 159 Sonho de uma tarde de inverno: a utopia de uma antropologia cosmopolita ...........................................................................................186 Referências ............................................................................................ 197 Sobre os textos ..................................................................................... 215 BVPS Coleção. O suporte digital das publicações sem dúvida tem feito circular com mais agilidade e amplitude não apenas informações, mas também o conhecimento produzido na universidade. Foram essas possibilidades — também elas, não inteiramente livres de ambiguidades — que nos motivaram a criar o Blog da Biblioteca Virtual do Pensamento Social em 2017. O Blog da BVPS é um espaço de formação de editores/as, autores/as e leitores/as de comunicação pública das ciências sociais, literaturas e artes, e aposta sempre na conversa entre diferentes gerações. De lá para cá, temos experimentado muito. Posts menores, posts maiores; ensaios teóricos e visuais; conjuntos diversificados, como os que chamamos de Ocupação ou Séries, Colunas etc. Uma das vantagens principais das publicações digitais é esta: as múltiplas possibilidades de formato que permitem. E, talvez, ainda mais importante, a pluralidade de itinerários de leitura que então comporta. BVPS Coleção se propõe a ser mais um desses suportes experimentais, reunindo publicações do Blog e outras que formem um conjunto expressivo sobre um tema, questão ou mesmo autor/a. Equipe BVPS Nota à publicação Num momento de impasse, pisca um farol. Descrente do encantamento da produção acadêmica, desencantada com o sistema de avaliação (peer review), já começava a desacelerar, quando à minha frente se abre um caminho que se bifurca à moda de Borges. Um caminho com largas margens e amplas paisagens convida-me a experimentar novos modos e temas de escrita antropológica. Como se cortassem as amarras de um navio fundeado, lancei-me à deriva promissora de novos horizontes. E aqui me encontro. Durante a reunião da ANPOCS de 2022, participei (à distância) de uma Sessão Especial intitulada A tragédia Yanomami. A partir daí, começou a minha interação, cada vez mais intensa, com André Botelho, então presidente da associação de quem recebi o convite. Foi como se um grande portal se abrisse à minha frente e eu pudesse fugir das garras da academia. Eu, que sonhava com os antigos Folhetins (não confundir com a era folhetinesca que degenerou no pulp), que acolhiam textos de gente como Marcel Proust, Machado de Assis, e tantos outros, de repente, me dei conta que, na era digital, havia folhetins, sim, e se chamavam Blogs! A partir daí, despejei dezenas de textos nos arquivos da Biblioteca Virtual do Pensamento Social. Não importava se muitos já haviam sido publicados. Não importava se não seguissem uma sequência lógica. Não importava se eram inéditos ou não. Com uma generosidade que eu nunca vira antes, André Botelho criou a série Autorais e a inaugurou com textos meus, inicialmente 10, com mais um de bônus. Terminada a série, me 7 senti órfã e me queixei. Mais um ato generoso de André e lá estava eu de volta ao Blog da BVPS estreando mais uma Coluna. Recebeu o nome de Desassossegos. Para escapar da acusação de plagiar o meu patrício Fernando Pessoa, acrescentamos um s e pluralizamos o meu estado de espírito. A Coluna continua, alimentada por minhas memórias de 60 anos como etnógrafa e sugestões, sempre bem-vindas de André, mas não exclusivamente. Tudo isso criou em mim um conforto intelectual nunca antes sentido e uma liberdade de ousar que sorvo como um manjar dos deuses. Alcida Rita Ramos Brasília, 25 de setembro de 2024 8 Singularidade e pluralidade: sonhos e textos de Alcida Rita Ramos Um conjunto de textos de Alcida Rita Ramos deu início a uma nova série de publicações da BVPS, a que chamamos de “Autorais”, pois seu objetivo é reunir textos pouco conhecidos, fora de circulação e inéditos de mesma autoria. Como para fazer uma coletânea, reviramos juntos os baús de publicações e apontamentos de colegas e nos deixamos penetrar por sua singularidade, percebendo regularidades, alimentando a imaginação e, o mais difícil, fazendo escolhas. Foi uma grande honra para a BVPS que essa nova série tenha sido inaugurada com a Professora Alcida Rita Ramos (UnB). E por muitos motivos. A qualidade dos seus textos, a importância da sua trajetória acadêmica, seu pioneirismo na etnologia brasileira, sua amizade e luta lado a lado com os povos indígenas, sua qualidade reflexiva e capacidade de imaginação sem fim são alguns deles. Ressaltamos ainda o fato de ser ela a mulher protagonista da sua geração na história da sua disciplina e na antropologia, uma história ainda muito contada pelo ponto de vista masculino. Eleita recentemente para a Academia Brasileira de Ciência, Alcida tem e merece todo o reconhecimento dos seus pares e da comunidade acadêmica em geral. Tudo isso é verdade e suficiente para a série Autorais, que agora se desdobra neste terceiro número da Coleção BVPS. Mas, como curadores, não podemos deixar de expressar a alegria incomum no árduo trabalho editorial com que se deu todo o processo de contatos, 9 escolhas, reescritas, escritas. O entusiasmo contagiante de Alcida nos atingiu de modo certeiro, nos inspirou e moveu. Seus textos eruditos, mas de uma beleza narrativa extremamente cristalina, nos fascinam. Revirando seu baú, encontramos muitas contas dispersas, mas de imediato nos chamaram a atenção algumas delas que, reunidas, formariam um fio muito próprio da sua singularidade em meio à pluralidade constitutiva de uma carreira aberta e em curso. Sonhos. Não sabemos o quanto a própria Alcida estava ciente antes de nossa interpelação sobre esse fio tão singular nos seus escritos e lutas tão plurais. Sonhamos com Alcida. Agora é hora de compartilhar, mais uma vez, seus sonhostexto-lutas com leitoras e leitores da BVPS. Na Série foram publicados 10 textos e um bônus. Neste volume, adicionamos mais dois textos selecionados pela autora. Yanomamis, viagens etnográficas de antropólogos e de indígenas, reflexões sobre a antropologia brasileira, etnologia e políticas públicas, cosmopolitismo e a renascença artística indígena são alguns dos temas cobertos. Todos eles perpassados sempre pelos sonhos. Acreditamos que não estamos errados ao afirmar que a etnóloga Alcida tem aprendido e muito com os grupos que estuda. É certamente o caso dos Yanomamis, cujo mundo onírico, povoado pelo cotidiano, lhe revela o cosmos. Com Alcida é assim também, uma nova paisagem de afetos e experiências se abre em seus sonhos-textos. E existe algo melhor do que compartilhar sonhos? O título desta brochura foi retirado do soneto “Não Pode Tirar-me as Esperanças”, de Luís Vaz de Camões, 1595. André Botelho e Maurício Hoelz 10 O sonho da paz interétnica: viagem à terra de Macunaíma [2003] Nos dias 13 e 14 de maio de 2003, tive a magnífica oportunidade de visitar o leste do estado de Roraima, onde vivem cerca de vinte mil indígenas de cinco etnias: Macuxi, Wapixana, Ingarikó, Taurepang e Patamona. No ambiente mágico do lavrado roraimense, entre campos abertos, banhados salpicados de jaburus e garças-brancas, serras de avançada idade geológica, grande silêncio, Mulher Yanomami decorando o corpo do marido xamã. Acervo da profunda beleza e um céu de dar inveja ao Planalto Central, trava-se um centenário confronto, muitas vezes sangrento, pela posse da terra. A morte de líderes indígenas é tão rotineira na região quanto a impunidade dos assassinos. Tanta violência cresce em proporção ao fortalecimento étnico e político daqueles povos indígenas. Do final dos anos 1960 – quando, a caminho da área Yanomami, onde passaria dois anos em pesquisa de doutorado, 11 me choquei com a visão de pessoas Macuxi varrendo, cabisbaixas, as ruas de Boa Vista – aos dias de hoje, os indígenas do lavrado deram enormes saltos de conscientização e engajamento no campo interétnico. Agora eles mostram sua força na expulsão de mais de 100 fazendeiros que há muito ocupavam a área de São Marcos, na indenização ganha da Eletronorte pela linha de transmissão que lhes corta as terras, levando eletricidade da Venezuela para Boa Vista (o chamado linhão de Guri), e na incansável luta pela homologação de outra área, Raposa/Serra do Sol, demarcada em 1998, mas alvo de pressões de políticos locais e arrozeiros que atravancam o término do processo administrativo de homologação e registro em cartório daquela área indígena. Essa viagem de corpo e alma ao lavrado foi tão inspiradora para mim como já o fora mentalmente para Mário de Andrade, que, embevecido com a riqueza cultural dos Pemon-Macuxi, elaborou o seu personagem Macunaíma, tão mítico quanto o Makunai’mî dos Macuxi. Mas, apesar de partilhar com o escritor modernista o gozo estético pela região, minha ida a Roraima teve cunho prioritariamente político. Como membro suplente do antropólogo Roque Laraia no Conselho Indigenista da FUNAI, acompanhei os demais membros do Conselho e o presidente do órgão, Eduardo Aguiar de Almeida, para a reunião ordinária que teve lugar na missão católica e aldeia macuxi de Maturuca, na Serra do Sol. Os conselheiros ouviram uma torrente de insatisfações e demandas, desde a exigência de justiça pela morte recente de um líder da comunidade Uiramutã, seriamente invadida, passando por pedidos de veículos e outros bens já tornados essenciais, até a grande preocupação com o crescimento desenfreado da vila de Pacaraima na divisa com a Venezuela, 12 nascida de um velho pelotão de fronteira do exército brasileiro e transformada no sonho militar de “vivificar” a fronteira norte do país, como reza o Projeto Calha Norte. Mas é a necessidade de homologação da Terra Indígena Raposa/Serra do Sol que mais mobiliza agora as energias dos povos do lavrado e da serra. São energias que se manifestam em pressões sobre autoridades em Brasília, no recrutamento de apoio de entidades simpatizantes da causa indígena, em pronunciamentos escritos e falados, e nas canções que compõem e com as quais receberam, esfuziantes, a comitiva da FUNAI. Enquanto na fria e fechada sala de reuniões da FUNAI o Conselho Indigenista avalia os problemas indígenas, numerosos e cabeludos, com horário marcado até o almoço, lá, na própria aldeia, o contato direto, aberto e imediato com os índios exerce um insubstituível poder de empatia e envolvimento. A concretude dos rostos crispados ao descrever abusos de brancos, da fala embargada por soluços pela morte do parente, da ubiquidade das crianças sorrindo e brincando porque, afinal, a vida continua, mais do que compensou o custo de deslocar o Conselho para a área indígena, tanto em dinheiro quanto em percalços de viagem. Nada, em suma, se compara à experiência vivida e ao profundo sentimento de solidariedade que dela advém. Que essa reunião in loco do Conselho Indigenista, a última da gestão, renda os frutos prometidos que os povos indígenas do lavrado roraimense esperam e pelos quais têm lutado e sofrido por tanto tempo. Homologar a Terra Indígena Raposa/Serra do Sol é uma possante dívida interna que o Estado brasileiro tem com eles. O não pagamento dessa dívida pode custar ao governo Lula o incalculável juro de arcar com o peso do caos social em Roraima. Fazendeiros já indenizados e 13 afastados da área indígena retornam com o argumento de que ela não está homologada. Em prol da ordem pública e da justiça social, é preciso acatar a lei que já demarcou essa área contínua e respeitar os direitos históricos, sociais e culturais desses povos que já foram considerados os guardiães das fronteiras nacionais. É responsabilidade do governo – e especialmente deste que tanto prometeu – exercer sua autoridade na observância dessa lei, como também é responsabilidade dos antropólogos manter perenemente acesa a tocha da justiça étnica. A luta pelos direitos territoriais de povos como os Macuxi e os Yanomami, para mencionar os maiores grupos indígenas de Roraima, tem sido um esforço conjunto com antropólogos que, tendo convivido íntima e prolongadamente com eles, ficaram indelevelmente marcados pela sua paciência, sabedoria e respeito aos outros. Na arte da reciprocidade, somos meros aprendizes. Posfácio Vinte anos depois dessa viagem de sonhos à terra de Macunaíma, e após longos e tensos anos em que o Supremo Tribunal Federal analisou e rejeitou os argumentos de políticos e fazendeiros de Roraima para anular a demarcação anterior, os habitantes da Raposa Serra do Sol afirmam que a homologação da T. I. Raposa Serra do Sol, em 2014, diminuiu sensivelmente a tensão social naquele estado. Comemoram a tranquilidade que sentem por estarem a salvo de ataques em suas próprias casas e roças e louvam o valor incalculável que essa tranquilidade tem para os seus habitantes de todas as gerações. No entanto, a decisão do STF pela demarcação de cerca de 1.750.000 hectares de terra contínua da Raposa Serra do Sol 14 teve um certo gosto de vitória de Pirro. Além de levantar o espectro do marco temporal, deixou um rastro de 19 condições para serem aplicadas a todos os casos futuros, o que traz ainda mais insegurança aos povos indígenas que ainda não têm suas terras demarcadas. Uma análise profunda das consequências dessas condições é útil e necessária para avaliarmos o que, na prática, significa, por exemplo, a quinta condição: “O usufruto dos índios não se sobrepõe ao interesse da Política de Defesa Nacional. A instalação de bases, unidades e postos militares e demais intervenções militares, a expansão estratégica da malha viária, a exploração de alternativas energéticas de cunho estratégico e o resguardo das riquezas de cunho estratégico a critério dos órgãos competentes (o Ministério da Defesa, o Conselho de Defesa Nacional) serão implementados independentemente de consulta a comunidades indígenas envolvidas e à Funai”. Aqui, a palavra-chave é estratégia. Em seu nome, muitos povos indígenas já foram acintosamente espoliados. Está aí uma das grandes diferenças entre usufruto e propriedade. Mas, apesar de tudo, os sonhos de paz interétnica continuam a ser sonhados. Cestaria Ye’kwana Setembro de 2023 15 A “viagem” dos índios: maldição ou benção? [1987] Numa noite de março de 1973, depois de prolongados rituais xamanísticos, numa aldeia Sanumá, com o alucinógeno sakona prodigamente aspirado por vários pajés, estes foram inesperadamente atacados por espíritos inimigos. A comunidade esteve em perigo durante horas. O ataque veio em línguas de fogo avançado sobre os pajés. Em frenético desespero, toda a sua perícia esotérica foi posta em defesa própria e da aldeia, enquanto as mulheres se atiravam sobre eles sacudindo galhos molhados na ânsia de aliviar sua agonia. Nessa batalha mágica entre pajés e espíritos, ganharam os primeiros. Mas nem sempre é assim. Contra a morte quem perde são os pajés, apesar de sua sabedoria, de seus espíritos auxiliares e dos alucinógenos que lhes abrem o caminho ao sobrenatural. Xamã yanomami, de posse de espíritos auxiliares. Foto de Bruce Albert, ca. 1975 16 Pesadelo para nós, sonho para muitos índios, é como podemos expressar metaforicamente o que as drogas representam em mundos tão diferentes. Enquanto entre nós o tráfico e uso de drogas são um pesadelo para os guardiães do status quo, entre muitos dos índios brasileiros, as drogas representam o sonho de sociedades em ressonância com o mundo extranatural. Uma encara as drogas como um mal a ser erradicado, outra as adota como um bem, um veículo privilegiado de expressão de sensibilidade e sabedoria. Não importa quão iluminado um jovem universitário possa sentir-se sob a ação da maconha, o fato é que suas sensações não têm o reconhecimento nem a tolerância de seu povo. É uma experiência declarada ilegal, ilegítima, daninha para ele e para a sociedade inteira, condutora de distúrbios que podem levá-lo à cadeia ou ao hospício. Não existe entre nós nenhum contexto, fora de certas áreas restritas a hospitais, em que o uso de drogas seja apropriado e legalmente aceito. Pelo sonho, muitas vezes dourado, que a droga induz, uma pessoa paga caro, não só em termos financeiros – pois, quanto mais proibido, mais proibitivo o custo – mas ainda em termos da ansiedade gerada pelo alto risco da punição. O antropólogo, que nunca perde a oportunidade de cantar os louvores da diversidade cultural, de se declarar um relativista inveterado, tomando cada expressão cultural em seus próprios termos, por mais calejado que esteja com os contrastes humanos, ainda assim se surpreende ante a imensa distância que vai do sonho ao pesadelo, da bênção que são certas drogas em sociedades indígenas à maldição que essas mesmas, ou outras, representam para nós (o “nós” aqui entendido como o superego nacional, da autoridade constituída, familiar, estatal ou eclesiástica). Para nós, um problema nacional, ou, mais 17 ainda, internacional; para eles, uma das melhores coisas que a cultura inventou. A experiência antropológica de contrastes e comparações nos leva a concluir que alucinógenos em si não são bons nem maus. O que os torna um bem ou um mal são os valores construídos sobre a sua utilização. O mesmo fumo que é usado pelos índios Canela em suas práticas rituais pode ser tragado por qualquer um de nós. No entanto, para os índios, admite-se que ele seja parte de seus costumes e tradições, o que é aceitável, embora mal tolerado; mas para os brancos é sumariamente proibido por lei. Cabe, porém, uma ressalva. Refiro-me exclusivamente a plantas psicotrópicas e não a substâncias produzidas por meios químicos em laboratórios, pois estas não fazem parte do acervo indígena. A ligação entre o humano e o extra-humano Coca, ayahuasca (Banisteriopsis Caapi), yopo ou panca (do gênero Virola), maconha, ou o prosaico tabaco, são algumas das substâncias que compõem o conjunto de plantas psicotrópicas utilizadas por várias sociedades indígenas, dentro e fora do Brasil. Com exceção do tabaco, todas as demais têm seu uso restrito a contextos rituais. “O uso ritual de plantas psicotrópicas entre grupos indígenas do continente sul-americano”, dizem Browman e Schwarz (1979: 11), “está relacionado ao papel do xamã, enquanto mediador entre o mundo observável e o mundo culturalmente construído dos espíritos” (cf. ReichelDolmatoff. 1971; 1974; 1975), Harner, 1973 e Coelho, 1976). O tabaco é exceção porque pode ser utilizado também fora de situações rituais, podendo ser fumado, mascado ou sugado. 18 Mas, no seu papel ritual, ele “é a substância mediadora entre o mundo atual e o mundo espiritual: abre ou fecha as portas entre os dois mundos” (Viveiros de Castro, 1979: 46). Quanto às outras plantas, exige-se sempre que sejam tomadas em ocasiões especiais e por pessoas específicas. Essas ocasiões são rituais e as pessoas os seus oficiantes ou aprendizes de oficiantes. Em praticamente todas as sociedades indígenas, as crianças são excluídas; em outras, as mulheres também; já em várias outras, as práticas rituais com uso de drogas podem ser tanto masculinas como femininas. As drogas, para os povos indígenas, são assunto sério e não podem ser tratadas levianamente. Elas representam, virtualmente, um elemento de ligação entre o mundo humano e o extra-humano ou sobrenatural. É através das drogas que os homens se aproximam dos espíritos, do saber esotérico, da compreensão do cosmos. Como diz Norman Whitten Jr. (1978: 29), sobre os Canelos de fala quíchua da Amazônia equatoriana, “os xamãs empregam ayahuasca, o cipó da vida… que lhes permite viajar entre o mundo dos humanos e o dos espíritos. Crê-se que a ayahuasca induz uma realidade semelhante aos sonhos, a qual medeia entre o domínio humano… e o domínio dos espíritos… Os costumes e conhecimentos antigos são transmitidos através da dinâmica conhecimento-visão, embutida num processo contínuo de aprendizagem”. Ou seja, os psicotrópicos indígenas estão aí a serviço da sociedade. Ao xamã, ou pajé, não é permitida a extravagância de uma “viagem” individual, introspectiva. Ele deve sair da sua individualidade para se projetar no coletivo, a serviço de seu povo. Xamã e droga são considerados bens sociais, não no sentido de mercadoria, mas em termos da contribuição que dão ao bem-estar da comunidade. As drogas, antes de tudo, são bens 19 coletivos e não individuais; são elementos de coesão e não de contradição e conflito; são legítimas e seu uso encorajado, dentro dos limites específicos que a sociedade traça em torno delas. Da natureza as culturas humanas selecionam certos animais e plantas, transformando-os em entidades especiais capazes de lançar os homens ao mundo sobrenatural, cujos mistérios, eles também criados por essas culturas, são desvendados por meio desses mesmos animais e plantas, já agora transfigurados em espíritos e alucinógenos. Postos a serviço dos homens, esses alucinógenos e esses espíritos são peças fundamentais nas curas de doenças e outros infortúnios, na proteção das comunidades contra-ataques mágicos ou cataclismas naturais, na propiciação de boas caçadas, na iniciação de novos especialistas do sobrenatural. Para que o universo se mantenha em equilíbrio, essa cadeia de múltiplos elos deve ser mantida em sua inteireza e fluidez. Os alucinógenos são, em suma, a liga que une a corrente da vida – natureza, sociedade, cosmos. Os Yanomami e sua magia Para retratar mais de perto o que representam as drogas numa sociedade indígena, apresento minha experiência vivida entre os índios Sanumá, subgrupo da grande família linguística Yanomami, que vive na região de fronteira entre o Brasil e a Venezuela, em plena mata amazônica, na área montanhosa do Maciço das Guianas, tão bela quanto misteriosa, desde o pico da Neblina às águas do rio Uraricoera. Ao todo, os Yanomami contam com cerca de 20.000 pessoas, das quais talvez umas 2.000 são Sanumá. O habitat 20 destes últimos é a parte mais setentrional do território Yanomami, nas serras Parima e Pacaraima. O uso de psicotrópicos parece ser comum a toda a família linguística. Mas, para evitar uma falsa impressão de total uniformidade Yanomami, é necessário enfatizar as diferenças que existem entre os vários subgrupos. Refiro-me, pois, especificamente aos Sanumá do vale do rio Auaris, sabendo que entre os Sanumá do lado venezuelano há algumas distinções e que estas se tornam ainda maiores quando comparamos os Sanumá com os Yanomami, falantes de uma das seis línguas Yanomami do vale do rio Catrimami, o subgrupo mais meridional em Roraima. Também estes são usuários de drogas, mas têm sua maneira própria de sistematizar o conhecimento e aplicação das mesmas. As plantas alucinógenas são reservadas exclusivamente para homens adultos, pois somente os homens podem ser xamãs. Por conseguinte, minha experiência se limitou a participar como observadora dos rituais xamânicos, em posição semelhante a das mulheres e crianças Sanumá. Não me foi dada, portanto, a oportunidade de sentir os efeitos dessas drogas. Pude constatar, porém, que os iniciados na arte e ciência do xamanismo não perdem o contato e o sentido de estar no mundo que os cerca, pois, frequentemente, interrompem seus cânticos para repreender uma criança, ou fazer algum comentário de caráter, vamos dizer, “secular” ou cotidiano. Os psicotrópicos não são as únicas plantas mágicas dos Sanumá. Existem outras, por eles chamadas alawali, às quais são atribuídas propriedades especiais: umas protegem contra mauolhado, outras ajudam as crianças a crescer, outras ainda servem para aquilo que poderíamos chamar de “poções de amor” e várias outras que são usadas em ataques mágicos contra 21 desafetos, provocando esterilidade em mulheres, ou instabilidade na saúde física e mental das pessoas atingidas. Contra esses males atuam os xamãs, especialistas em tratar doenças e lidar com o sobrenatural. Na bagagem de conhecimento esotérico de um xamã está o uso de plantas alucinógenas, não só para desfazer os efeitos de alawali, mas também para exercer outras atividades mágicas, todas elas dirigidas ao bem-estar da sua comunidade, nem que isso implique em ataques a pessoas de outras aldeias. De modo a contextualizar melhor o papel das drogas entre os Sanumá do Auaris, é necessário dizer alguma coisa sobre a sua teoria das doenças e da morte, eventos que estão inextricavelmente ligados não só à natureza, mas também à sociedade dos homens e à ordem dos espíritos. Drogas, espíritos e homens Não é exagero dizer que para os Sanumá a morte é uma construção humana, pois quase, ninguém morre de causas “naturais”. Embora reconheçam plenamente a letalidade do veneno de uma cobra como, por exemplo, a jararaca, que quando alguém cai de uma árvore de 25 metros pode quebrar o pescoço e morrer, o que importa não é o processo mecânico que levou à morte, mas a intenção que provocou o acidente. É porque alguém fez algum tipo de magia contra a vítima que a cobra a mordeu, ou o pé escorregou do tronco da árvore. É porque alguém soprou alawali que uma pessoa definha até morrer. Este fenômeno, em suas linhas gerais, não é exclusivo dos Sanumá. Ele foi magistralmente relatado por EvansPritchard (1978), a propósito da bruxaria como causa de 22 infortúnios entre os Azande do Sudão africano. Entre os Azande, como entre os Sanumá, é a relação de causalidade que importa: ela une doença e morte à ação ou intenção humana. Em centenas de casos de mortes coletados durante o levantamento genealógico que fiz entre os Sanumá, foram registradas apenas duas ou três ocorrências de mortes que poderíamos chamar de “naturais”; eram pessoas muito idosas, que, segundo me disseram, morreram de velhice. Todas as demais, inclusive mortes no parto, foram atribuídas a magia ou a outras causas humanamente provocadas. Existem, pelo menos, duas outras causas de doenças, além do efeito de plantas alawali e de outras fórmulas mágicas. Uma delas é o ataque de espíritos que se aproveitam da fraqueza ou da vulnerabilidade momentânea das pessoas. Há uma variedade de espíritos malévolos – sai de –, cada um com uma propensão definida: uns atacam crianças, outros atacam adolescentes, outros atacam de maneira mais generalizada. Contra esses espíritos o melhor remédio é tomar medidas preventivas, como, por exemplo, fechar as aberturas das casas à noite, para barrar sua entrada. É raro, porém, que os ataques de sai de levem, sozinhos, à morte de alguém. Uma terceira fonte de doenças e aflições e, possivelmente, de morte, é o ataque de espíritos de animais comestíveis que foram ingeridos indevidamente por pessoas que estavam em estado ritual que demanda observar tabu alimentar com relação àquela espécie animal. Esses ataques são tratados pelos xamãs com o auxílio de plantas alucinógenas. A morte pode ser igualmente provocada por assassinatos que podem ocorrer de duas maneiras: uma, com armas – flechas, machados, terçados etc. –, a outra, matando-se certos animais que são as representações concretas de indivíduos 23 vivos. Para cada Sanumá que nasce, nasce também, ao mesmo tempo e em lugar distante do seu território, um determinado animal (geralmente, um tipo de gavião para homens e um certo mamífero para as mulheres). O destino desse duo humanoanimal se torna único: o que acontecer a um, acontecerá ao outro. Se um caçador, sem querer ou de propósito, matar esse animal, o seu correspondente humano morrerá também. Os xamãs fazem o diagnóstico dessa morte, mas são impotentes para evitá-la. Esses dois tipos de assassinato podem ser vingados com ataques armados ou mágicos. É nos casos de doenças diretamente provocadas pelo ser humano, isto é, por magia e por quebra de tabus alimentares, que os Sanumá usam drogas com maior intensidade ao realizar as curas xamanísticas. As drogas representam um recurso fundamental nas curas, porque é através delas que o xamã consegue convocar, dentre os seus inúmeros espíritos auxiliares, aqueles que têm as condições apropriadas à erradicação do mal. Num artigo elegante e elucidativo, Kenneth Taylor (1979) descreve a trajetória desses espíritos – hekula – , desde o momento em que se desincorporam de sua forma, geralmente animal, até chegarem ao estado da imortalidade e indestrutibilidade, quando ganham o poder de efetuar curas através do desempenho dos xamãs, no peito de quem se alojam durante as sessões xamanísticas. Dormindo durante o dia em sua grande moradia no seio de certas montanhas, os hekula só são persuadidos a se deslocar para o peito do xamã pela atração do cheiro do psicotrópico que este inala, acompanhado do cântico que identifica cada hekula. As drogas chamadas pelos Sanumá de sakona (Virola calofiloidea) e palalo (Anadanthera peregrina), sendo chamariz para os hekula, atuam como elemento de ligação importantíssimo nas operações de cura. Há 24 que notar que, durante a noite, o xamã não necessita delas, pois os hekula, entidades notívagas, vêm espontaneamente ao peito dos xamãs com simples chamada de seus cânticos. Mas, como a doença não escolhe hora do dia para se manifestar, é muito comum o xamanismo diurno, portanto, com o uso de alucinógeno. Esse uso entre os Sanumá do Auaris está, como já disse, restrito aos xamãs e seus aprendizes. É bem verdade que uns poucos homens tomam a droga sem ser xamãs e, por isso mesmo, não têm condições de controlar o seu efeito. Simplesmente, entram num estado de torpor, sem canalizá-lo para qualquer atividade. Limitam-se a ficar sentados ou deitados em distante letargia, alheios ao que se passa em redor. Esses homens que, por uma série de razões sociais e psicológicas, nunca conseguiram fazer um aprendizado satisfatório de xamanismo, tomam a droga apenas nesses contextos rituais como se eles mesmos estivessem no lugar de xamãs. Como, entre os Sanumá, ser homem é quase sinônimo de ser xamã, pelo menos, a inalação do alucinógeno leva essas pessoas ao ponto mais próximo do xamanismo. Portanto, para todos os efeitos, o uso de drogas está limitado à esfera xamânica. Mas o xamanismo não se restringe a curas. Ele pode ser acionado para a defesa da comunidade contra o ataque de espíritos enviados por inimigos, para agredir magicamente outras comunidades, para propiciar uma boa caçada, para treinar novos xamãs, ou apenas para manter em boa forma as habilidades dos xamãs experimentados, desenvolvendo neles cada vez mais a capacidade de acumular conhecimento esotérico. São poucas as noites sanumá em que não acordamos ao som dos cânticos de algum xamã que, apenas com os recursos de sua voz, é capaz de impressionantes mala25 barismos sonoros, entrecortados por melodias simples ou rebuscadas que ficam gravadas na nossa mente e evocam a lembrança de um mundo partilhado por homens e espíritos em cumplicidade mágica. As sessões xamanísticas podem ser realizadas por um xamã solitário ou por um conjunto deles. Quando se trata apenas de atender a um doente, cujo problema foi facilmente diagnosticado pelo xamã, este desempenha o ritual sozinho. Mas há outras ocasiões ‒ por exemplo, quando chegam visitantes de outras comunidades trazendo doses já prontas de sakona ‒ em que vários xamãs se reúnem no espaço aberto da aldeia, aspiram a droga e cada um chama, numa sequência de cânticos, vários de seus hekula. O ar se enche de altas vozes masculinas em múltiplas trilhas sonoras, do compasso sincopado de muitas batidas de pé, umas rápidas, outras lentas, no ritmo corporal que acompanha cada cântico e que representa alguma característica do hekula do momento. Mulheres e crianças observam ou ignoram, prosseguindo com seus afazeres normalmente. Se nessas ocasiões houver doentes, todos os xamãs se debruçam sobre eles, trazendo os hekula que se prestam às curas específicas. Mas essas sessões também têm o caráter de confraternização de homens com homens e de homens com espíritos (talvez até de espíritos com espíritos). Elas podem durar uma tarde ou um dia inteiro, com os xamãs sustentando suas vozes e ritmos quase sem interrupções, e sem pausas para alimentação, tomando reforços espaçados de sakona. À noitinha, passado o efeito do alucinógeno, exaustos, os xamãs, finalmente, vão para suas redes, para acordar antes do clarear do dia, como sempre acontece na rotina da vida sanumá. 26 Como se faz um xamã Alguns jovens, ante as agruras do treinamento em xamanismo, chegam a recuar e protelar seu aprendizado. É necessário fazer uma prolongada abstinência alimentar e sexual para se alcançar o resultado desejável. São treinados pelo pai ou por um homem experiente e maduro, meses a fio, tomando o alucinógeno e aprendendo os cânticos xamanísticos. O tutor passa, então, alguns dos seus hekula para o peito do aprendiz, com muito tato e cuidado, e, ao longo de sua vida, o novo xamã vai adquirindo novos hekula por sua conta. O número de espíritos assistentes de um único xamã pode chegar a mais de trezentos. Uma das fases mais difíceis do aprendizado é o domínio das reações provocadas pela droga. É necessário canalizá-las na direção correta, que é a comunicação com os espíritos, a capacidade consciente de poder chamá-los a atuar para os fins por ele desejados. Uns poucos rapazes nunca conseguem esse feito, sucumbindo totalmente ao efeito da droga, incapazes de qualquer concentração nos cânticos e compassos do repertório xamânico. A carreira de um xamã depende, pois, em grande medida, da sua capacidade de se sobrepor às sensações físicas e psicológicas causadas pelos alucinógenos. A idade da iniciação xamanística varia de família a família. Alguns jovens começam a mostrar sintomas de inquietação, têm ataques estranhos, vagueiam pelos caminhos em altos brados, tornam-se esquivos em certos momentos, inexplicavelmente. É o prenúncio da necessidade de iniciação, diagnosticado por um xamã. Pode acontecer por volta dos 12 ou 13 anos. Outros, já bem depois da puberdade e mesmo do 27 casamento, é que decidem, sem qualquer sinal prévio aparente, tornar-se aprendizes de xamã. Para alguns, o caminho do xamanismo abre portas para o prestígio político. É principalmente quando colocam os seus talentos xamânticos a serviço da resolução de crises sociais de sua comunidade, chamando seus hekula e mandando-os verificar eventos importantes ocorridos à distância. Mas é também pela demonstração da autoridade que emana de um conhecimento profundo e dedicação à causa que abraçam, isto é, o bem-estar de seus companheiros, que um xamã adquire posição de destaque entre seus pares, podendo chegar à posição de líder da aldeia. Como em qualquer outro lugar, há bons e maus profissionais. Uns xamãs são extremamente talentosos e sempre procurados para curas, outros não chegam a convencer e praticam seu xamanismo mais para seu próprio deleite e treinamento, por falta de uma clientela maior. Mundos ameaçados Como os Sanumá, dezenas de povos indígenas do Brasil construíram mundos mágicos com plantas alucinógenas, tecendo uma teia de relações tal que dá sentido ao universo como um todo. As inquietudes pessoais, os desgastes sociais e as preocupações coletivas encontram alívio nessas práticas elaboradas ao longo de incontáveis gerações, através da dedicação de seus xamãs e do partilhar de crenças comuns que se reproduzem, mas nunca de forma idêntica. Cada xamã traz a sua contribuição pessoal à interpretação e reinterpretação constantes do cosmos e seus habitantes, sempre através de um 28 nexo inteligível a todos, compreensível tanto em seus aspectos reconfortantes quanto nos inquietantes e até cruéis. Mas, encravadas num estado nacional com outras leis e outros projetos, as sociedades indígenas sofrem, provavelmente as piores provações de sua longa história. Esse todo complexo e integrador, que é o xamanismo e sua utilização de psicotrópicos em sociedades como a dos Sanumá, cai num torvelinho de ignorância, desrespeito e repressão quando entram em cena forças externas com poder até de polícia, como são os missionários, agentes governamentais e outras personagens do contato interétnico. No caso específico dos Sanumá, a reação dos missionários – protestantes – foi a de tentar erradicar o hábito da inalação de sakona, como uma forma de neutralizar as práticas de xamanismo. Não compreendendo e não querendo compreender as razões intelectuais, emocionais e sociais dos Sanumá, ou por que os Sanumá mantêm essas práticas, os missionários insistem que a droga é suja, que o xamanismo é coisa do diabo e que tudo isso deve ser substituído pela assepsia do culto batista. Em outros contextos brasileiros, o uso de drogas tem custado aos índios até mesmo prisões, como no caso de um homem Tenetehara que, nos anos 1970, foi preso e torturado no Maranhão, sob o pretexto de ter usado maconha. Pela prática de suas tradições legítimas os nossos índios pagam o preço da incompreensão, sofrendo agressões que, afinal, mal entendem. Como poderão aceitar que um elemento integrador e benéfico como o uso de suas drogas possa se tornar fonte de punição? Que sentido faz o mundo quando as crenças mais arraigadas passam de sublimes a criminosas por decisão de estranhos? Na colisão de orientações tão conflitantes quanto as que brancos e índios têm sobre drogas, as maiores vítimas são os 29 índios que, forçados a transformar em maldição o que tinham por bênção, assistem perplexos ao bombardeio que sofrem suas crenças e esteios emocionais que sempre fizeram parte de suas vidas e forjaram suas personalidades individuais e coletivas. Assim como é uma violência social tentar transformar o índio à imagem do branco, queira ele ou não, também é uma violência espiritual aplicar os mesmos pesos e medidas a experiências tão distintas como são o mundo mágico dos índios e o que é considerado por quase todos nós o submundo criminoso dos brancos. Se fizermos o esforço de um olhar desarmado para essas expressões culturais que são as drogas entre os povos indígenas, talvez possamos vislumbrar uma outra maneira de se ser humano e, quem sabe, voltaremos outra vez a nós mesmos um pouco mais sábios. Como disse o poeta Hugo von Hoffmansthal, o caminho mais curto até nós é a volta ao mundo (Bleicher, 1980). Escultura de xamã Ye’kwana 30 A tragédia Yanomami [2022] A máxima que Marx consagrou – a história acontece como tragédia e se repete como farsa – não se aplica ou se inverte no caso Yanomami. Pois, da primeira grande investida contra sua terra e suas vidas na virada da década de 1980 para 1990 à que assistimos agora, atônitos, a intensidade e intencionalidade dos ataques aumentaram de tal modo que não se pode mais atribuí-los à mera ganância financeira. O que no princípio tinha algo de tragicômico (invasores fantasiados de militares num dia de Carnaval, por exemplo), transformou-se num teatro de horrores sem trégua e sem limites. O que antes se atribuía a aventureiros cegos pelo luzir do ouro, agora são ações de um governo que quer matar sem sujar as mãos. Basta que um flagelo humano no posto de presidente abra uma porteira e a boiada passa e o massacre começa. 1973-1975. A primeira grande invasão veio com a construção da rodovia Perimetral Norte que cortou em linha reta de leste a oeste no sul do território Yanomami mais de 200 km em Roraima e no Amazonas. A obra dessa inútil estrada, fadada ao abandono, durou menos de três anos, tempo suficiente para estilhaçar a vida de comunidades inteiras atingidas por ela. Sarampo, gripe e outras pestilências de branco devastaram famílias, desequilibraram subsistências e mataram mais de 22% de seus habitantes, quase inviabilizando o seu 31 tecido social. (Imaginemos a perda de 22% da população brasileira: um número tão alto que nem a pandemia da Covid19 conseguiu matar). No levantamento do Projeto Radambrasil em 1975, a terra Yanomami revelou-se rica em minérios (cassiterita, ouro, materiais radioativos…) e pobre em fertilidade de solos. Essa notícia deflagrou um avanço de garimpeiros (modestos 500 pelos padrões atuais) em busca de cassiterita. Profetizando um futuro inimaginável naquela época (1975-76), a Serra de Surucucus assistiu a sérios conflitos armados entre indígenas e garimpeiros provocados por roubos de roças e abusos sexuais contra mulheres indígenas. Ainda com algum escrúpulo para manter uma boa imagem do governo, o então Ministro do Interior, o militar Rangel Reis, ordenou a retirada dos invasores. Ordem inócua, gesto propagandístico, resultado pífio. 1980. Começa outra invasão, agora por ouro, no alto rio Uraricoera. Eram cerca de dois mil garimpeiros que, nove anos depois, haviam se transformado em 50 mil, espalhados por toda a região central das terras Yanomami no Brasil, atravessando a fronteira e causando problemas diplomáticos com a Venezuela. A situação alcançou um estado crítico a partir de agosto de 1987, com a chegada de milhares de garimpeiros que primeiro usavam os campos de pouso das missões religiosas e da FAB, para logo depois abrirem um número crescente de pistas. Dois anos depois, estimava-se mais de 80 pistas clandestinas, algumas do lado venezuelano da fronteira. O rio Mucajaí ficou poluído por mercúrio e assoreamento em toda a sua extensão. Os rios Uraricoera, Catrimani e Couto de Magalhães, contaminados por mercúrio e óleo, não tinham mais peixes. A ininterrupta decolagem e aterrissagem de aviões e helicópteros 32 afugentou a caça, levando os Yanomami à penúria e à humilhante situação de depender da comida dos garimpeiros. Mesmo as comunidades que não sofreram diretamente a presença concreta do garimpo poluente acabaram atingidos pelos efeitos das ondas de choque da corrida do ouro. Epidemias que começavam num determinado ponto grassavam como fogo selvagem por dezenas de aldeias, deixando um rastro de devastação social, ecológica e econômica. Tuberculose, malária e outras tantas pestilências alienígenas mutilaram e mataram, umas de maneira fulminante, outras aos poucos, corroendo o equilíbrio demográfico de comunidades inteiras, deixando órfãos ao deus-dará, ameaçando seriamente sua produção de bens materiais e culturais e a própria reprodução social. Através dessas ondas de choque, a tragédia Yanomami ampliou-se – e continua num crescendo desvairado – a cada nova pista que se abre, a cada novo barranco que se dilapida, a cada novo acampamento garimpeiro que se instala. Como células cancerígenas, os efeitos daninhos da atividade garimpeira espalharam-se – e continuam se espalhando – pelas artérias, veias e capilares da grande cadeia orgânica que é o mundo Yanomami. Ficou-se sem saber o número de indígenas mortos em conflitos armados e por doenças contagiosas propagadas pelos invasores porque, a partir agosto de 1987, a Funai, os militares do Conselho de Segurança Nacional e o então governador de Roraima, Romero Jucá, proibiram pesquisadores, profissionais de saúde, missionários católicos, jornalistas e outros observadores de entrar em território Yanomami. 33 1991-1992. A tragédia do garimpo não poupou meu local de trabalho de campo. O vale do rio Auaris, no divisor de águas entre o Brasil e a Venezuela, foi o cenário da minha pesquisa de doutorado (1968-1970), naquela época, um paraíso etnográfico. Sem pressões, sem invasões, sem epidemias, num recôndito rincão da mata amazônica, desempenhei sem pressa meu rito de passagem malinowskiano para me tornar uma antropóloga de verdade. Mal sabia eu que a transformação desse paraíso em inferno seria apenas uma questão de tempo. Nos meses de março e abril de 1991, a região do alto rio Auaris em Roraima, estando na periferia da atividade garimpeira, parecia longe da infestação de malária. No entanto, tornou-se palco de uma das mais violentas crises de saúde registradas no território Yanomami. Das aldeias mais atingidas, Kadimani, onde passei metade dos 18 meses de pesquisa de campo, destacou-se em quantidade de doentes e em gravidade do estado de saúde de seus habitantes. Por aquela época, já o Brasil aparecia aos olhos do mundo como omisso em proteger os direitos indígenas, deixando que dezenas de milhares de invasores infestassem uma das terras indígenas mais focalizadas pelos meios de comunicação no país e fora dele. Depois de três anos de proibição para realizar pesquisa antropológica com os Yanomami, a FUNAI, afinal, concedeu-nos autorizações para entrar na área. Em menos de um mês, Bruce Albert e eu retornamos à área. Enquanto Bruce acompanhava uma equipe médica a Toototobi, no estado do Amazonas, eu revisitei Auaris depois de quase 17 anos de ausência. Coube-me o papel de intérprete de uma equipe médica da então Fundação Nacional de Saúde conduzida pela Dra. Ivone Menegola. Era apenas uma viagem exploratória sobre as condições locais de saúde. No entanto, uma semana 34 depois de nos instalarmos na minha antiga casa na aldeia adjacente à missão da MEVA, começaram a chegar mensageiros de Kadimani com notícias sobre o estado desesperador de seus parentes. Por falta de transporte, não conseguimos alcançá-los imediatamente e mandamos os mensageiros de volta com o recado para que os doentes tentassem chegar à missão. No final de março, chegou a primeira leva numa desoladora fila indiana de gente desnutrida, amparada em bastões ou nas costas dos menos fracos, arrastando-se até a minha casa. A semana que se seguiu foi de trabalho frenético para atender a todos, dia e noite, ao mesmo tempo que nos desdobrávamos para alimentar 133 pessoas famintas e macilentas. Como solução de emergência, mandamos vir gêneros alimentícios de Boa Vista para não sobrecarregar os limitados recursos dos habitantes locais. Casos de anemia profunda necessitavam transfusão de sangue. Foram feitas nove transfusões com doadores da própria missão. Na minha rede faleceu um menino, aumentando o número de mortos para três, dois dos quais haviam morrido antes desse traslado para Auaris. Outros residentes de Kadimani faleceram em vários outros lugares do território Yanomami, alguns trazidos de volta à missão. A cada avião que chegava com um cadáver, redobrava o pranto dos parentes alojados precariamente num alpendre da missão. O pranto pungente e sofrido somava-se ao desalento dos desnutridos num lamento sonoro que replicava o desespero visual. O choro das famílias de Kadimani debruçadas sobre seus mortos, devolvidos um após outro, tornou-se um eco recorrente e símbolo fúnebre de uma situação que só não se tornou um morticínio generalizado graças à coincidência da presença da equipe médica naquele momento em Auaris. A 35 malária Falciparum, quase sempre letal sem o devido tratamento, teria levado a comunidade de Kadimani à extinção, deixando desgarrado um punhado de sobreviventes. Nossa estada em Auaris chegou ao fim, conseguimos evitar um número significativo de óbitos, mas a invasão não parou, a malária continuou a ceifar vidas e assim permaneceu o drama dos Sanumá até que, em 1992, a Terra Indígena Yanomami (TIY), demarcada no ano anterior, foi homologada, os invasores retirados, embora parcialmente, e seguiu-se um interlúdio de relativa tranquilidade na vida Yanomami, até Jair Bolsonaro chegar ao poder em 2018. Em 1993, o então deputado federal Jair Bolsonaro apresentou à Comissão de Defesa do Consumidor, Meio Ambiente e Minorias o Projeto de Decreto Legislativo 365 que tornaria “sem efeito o Decreto de 25 de maio de 1992, que homologou a demarcação administrativa da terra indígena Yanomami, nos Estados de Roraima e Amazonas”. O argumento, já surrado pelo uso excessivo e fútil dos militares, apelava para a segurança nacional que estaria ameaçada pela possibilidade de o povo Yanomami criar um Estado próprio às expensas do Brasil e da Venezuela. O projeto teve como relator o deputado Fernando Gabeira. Com firmeza e agilidade, utilizando amplamente dados antropológicos sobre os Yanomami,1 o relator votou pela rejeição do projeto, justificando: “Examinados os argumentos apresentados para embasar a presente proposta, em face das razões técnicas e 1 Referiu-se, entre outros documentos, ao meu artigo “Nações dentro da nação. Um desencontro de ideologias”, publicado na coletânea organizada por George Zarur Etnia e nação na América Latina, v. 1, p. 79-88. Washington, DC: Interamer 44, 1994. O presente texto baseia-se nas publicações da CCPY, especialmente: Boletim Urihi, n. 13, datado de junho de 1990 e Sanumá memories. Yanomami ethnography in times of crisis. Madison: University of Wisconsin Press, 1995. 36 legais expendidas, julgo-me no dever de rejeitar o presente Projeto de Decreto Legislativo, de forma a defender nosso patrimônio genético e cultural e como forma de afirmar a nossa cidadania”. Com essa tentativa frustrada, Bolsonaro, já como presidente do país, desiste dos canais competentes e adota a omissão ativa como meio para chegar ao fim que, há quase 30 anos, lhe foi legitimamente negado: a destruição do território e, por extensão, do povo Yanomami. 2020. O caráter um tanto farsista, embora letal, da corrida do ouro que afligiu os Yanomami no século passado muda de tom e torna-se dantesco ao promover uma escalada de horrores inéditos na história interétnica desse grande povo. Para cúmulo do infortúnio, a não declarada guerra total contra eles veio acompanhada de uma das mais virulentas pandemias em tempos modernos. A fúria com que a atual corrida do ouro tem atacado a terra e a vida dos Yanomami tem todos os ingredientes de uma orquestrada campanha genocida que visa exaurir os recursos naturais da TIY, ao mesmo tempo que tenta eliminar de uma vez por todas as etnias que a ocupam. Invasões garimpeiras não são novidade para muitos Yanomami e seus vizinhos Ye’kwana. O que é novo são as investidas do governo federal contra eles, medidas flagrantemente 37 inconstitucionais que desafiam o estado de direito, insuflam a propagação de notícias falsas para confundir a opinião pública e aplicam incentivos sem rodeios ao saque e à extrema violência. Esse é o carimbo que o presidente Bolsonaro imprime à sua passagem pela história do país. Mais uma vez, os Sanumá, Yanomami da região do rio Auaris, foram protagonistas de notícias aterradoras. No dia 24 de junho de 2020, a jornalista Eliane Brum do El País Brasil, escreveu: “Três mulheres vivem um horror para o qual será preciso inventar um nome. Elas são Sanöma… Em maio, essas mulheres e seus bebês foram levados para Boa Vista… com suspeita de pneumonia. No hospital, as crianças teriam sido contaminadas por covid-19. E lá morreram. E então seus pequenos corpos desapareceram, possivelmente enterrados no cemitério da cidade. Duas das mães estão com covid-19, amontoadas na Casa de Saúde Indígena (CASAI), abarrotada de doentes. Lá, corroídas pelo vírus, elas imploram pelos seus bebês”. Em mensagem gravada em sua língua materna, uma das jovens mães diz à jornalista: “Sofri para ter essa criança. E estou sofrendo. Meu povo está sofrendo. Preciso levar o corpo do meu filho para a aldeia. Não posso voltar sem o corpo do meu filho”, condição necessária para lhe dar um funeral digno nos moldes Yanomami, que exigem a cremação do cadáver e ritos apropriados. O roubo e enterro dos corpos foram justificados pelo risco que os corpos, supostamente infectados pelo coronavírus, representariam para a população. Apurou-se mais tarde que os bebês foram exumados e testados. Não havia covid-19! A agressão contida no sepultamento clandestino das crianças sanumá foi uma sórdida infâmia, disfarçada de ignorância, contra essas mulheres e, por extensão, contra todos os 38 Yanomami. Como explicou Bruce Albert a Eliane Brum, “não há pior afronta e sofrimento para os Yanomami do que fazer ‘desaparecer’ seus mortos”. A brutalidade continuou em outras frentes. O relatório Yanomami sob ataque, uma realização das duas associações indígenas da TIY – Hutukara Associação Yanomami e Associação Wanasseduume Ye’kwana – foi publicado em abril de 2022 com dados do Sistema de Monitoramento do Garimpo Ilegal da TI Yanomami coletados em 2021, com o apoio do Instituto Socioambiental (ISA). Essa publicação nos dá em texto e imagens a magnitude dos crimes que há quatro anos vêm sendo cometidos contra o meio ambiente e os habitantes da Terra Indígena Yanomami. Cita uma estimativa, conservadora, do aumento do garimpo na TIY de 2016 a 2020 em inimagináveis 3.350%, comparando com dados das corridas de ouro anteriores. Uma das razões apontadas no relatório é a “Fragilização das políticas ambientais e de proteção a direitos dos povos indígenas e, consequentemente, da fiscalização regular e coordenada da atividade ilícita em Terras Indígenas”. Enquanto a linha de frente de hordas de garimpeiros – controlados por poderosos setores empresariais escusos e até do crime organizado – ataca sem rodeios, nos bastidores políticos, o governo limpa o terreno para o avanço, afastando agências e agentes fiscalizadores do caminho da notória boiada celebrizada por um demolidor ministro do meio ambiente. A violência contra os Yanomami tem seguido de perto esses números inconcebíveis. Sem a aparente astúcia das canetadas presidenciais, as fileiras garimpeiras não medem esforços nem imaginação para despejar os Yanomami de suas legítimas terras. Na região do Palimiu, os Yanomami começaram a ver sinais de mudança no 39 comportamento dos invasores. O relatório revela: “Se antes [de 2019] apenas os barqueiros transitavam encapuzados, agora outros homens também o faziam, vestidos quase sempre de roupas pretas. As armas também haviam mudado. De espingardas de caça, passaram a circular com pistolas e fuzis. E, a abordagem nas comunidades tornou-se mais agressiva e violenta. Há relatos de garimpeiros bêbados invadindo casas e assediando mulheres, e de gritos de ameaça durante encontros furtivos no rio: ‘Vamos acabar com os yanomami’, diziam”. O que se seguiu fez notícia dentro e fora do país. “Assim, no dia 10 de maio de 2021, sete embarcações com homens armados, vestidos de coletes e balaclavas, se aproximaram da comunidade Yakepraopë e abrigam fogo contra seus moradores, incluindo mulheres e crianças… Na fuga, duas crianças morreram”. Fortes indícios apontavam a presença de membros do PCC, à busca “de vingança pelos homens feridos no revide de arco e flecha que os Palimiutheri conseguiram realizar”. Inconformados, os assaltantes fizeram outros ataques nos meses que se seguiram, incluindo o disparo de “quatro tiros contra mulheres que procuravam um parente desaparecido no rio…”. Os efeitos dessa saraivada logo apareceram. Os moradores queixaram-se a agentes do Ministério Público Federal que, antes dos ataques, “a pescaria era boa, a caçaria era boa”. Não mais: “O rio está contaminado… e a caça emagreceu…”. Novamente, 30 anos depois do pandemônio do início dos anos 1990, como se não bastasse a covid-19, a malária volta à cena com força redobrada. Apenas na região do Uraricoera, que inclui Palimiu, eram mais de 1.800 casos. Calcula-se que a média de contaminação por malária era de quase dois casos por 40 pessoa, enquanto na região do rio Auaris, entre 2019 e 2020, os casos de malária subiram para 247%. O mesmo fenômeno se repete em praticamente toda a TIY. A espiral de tragédias não para de crescer. Essa espiral chega agora a um paroxismo de criminalidade inédita. No fim de abril de 2022, chegou à grande imprensa nacional e internacional a notícia de que uma menina sanumá da comunidade de Aracaçá, na região do rio Uraricoera, fora estuprada até a morte por garimpeiros. Dada a grande repercussão do caso, agentes da Polícia Federal foram à área examinar a situação. Encontraram a aldeia carbonizada e vazia. Na ausência de vítimas, no estilo habitual da ignorância cultivada sobre os usos e costumes indígenas (repetindo o episódio do massacre de Haximu em 1993), 2 os investigadores começaram por tomar as casas queimadas e desertas como evidência de que nada havia acontecido, apenas malentendidos, conflito de narrativas. Aos poucos, surgiram depoimentos de indígenas que corroboraram a existência dos crimes e denunciaram o suborno que os emudeceu.3 Seu silêncio era pago em ouro e, ironia das ironias, o mesmo ouro extraído de suas próprias terras. Posteriormente, soube-se que a destroçada aldeia de Aracaçá fora evacuada – como sói acontecer na tradição Yanomami após mortes, especialmente, as violentas – e os habitantes buscaram refúgio em outras áreas da TIY. Aracaçá, cuja história interétnica é uma das mais trágicas do mundo 2 Sobre o massacre do Haximu, ver Albert (2001) “Haximu: Foi genocídio!”. Documentos Yanomami. n. 1, 2001. São Paulo: Comissão PróYanomami (CCPY). 3 Disponível em: https://www.nsctotal.com.br/noticias/yanomamisencontrados-foram-cooptados-pelo-garimpo-diz-lideranca-indigena. Acesso: 13 de maio de 2022. 41 Yanomami,4 suscitou o seguinte comentário da imprensa: “Os acontecimentos pelos quais passaram daria um filme de terror: assédio moral (com farta distribuição de bebidas alcoólicas) e sexual, estupros coletivos, prostituição, assassinatos, suicídio, cooptação para trabalhos no garimpo. Um verdadeiro genocídio com a conivência deste governo e que se espalha, pelo menos, por metade das terras dos yanomami”. Conclui a matéria: “Bolsonaro está de braços cruzados. Os órgãos de fiscalização também”.5 Em suma, a boiada bolsonarista deixa na Terra Indígena Yanomami um rastro sinistro de terra arrasada. O lamento do líder da região do Palimiu assim o confirma: “Que todos vocês voltem seus olhos para nós! Nós estamos sofrendo junto com a floresta! A floresta morreu!… Acabaram com todas as árvores que comíamos os frutos!… E quem foi que fez isso? Foram os garimpeiros que acabaram com elas! A nossa terra está completamente morta!… Aqui onde moramos estamos arrasados! Da mesma forma como a floresta está devastada, nós também estamos!” 4 A história recente da comunidade de Aracaçá é narrada na nota do Instituto Socioambiental (ISA), “Comunidade Aracaçá vive tragédia humanitária, alerta organização Yanomami”, de 6/5/2022. Disponível em: https://www.socioambiental.org/noticias-socioambientais/comunidadearacaca-vive-tragedia-humanitaria-alerta-organizacao-yanomami. Acesso: 13 de maio de 2022. 5 Disponível em: https://conexaoplaneta.com.br/blog/tragedia-humanitariavivida-pela-comunidade-aracaca-e-retrato-da-terra-indigena-yanomamidesintrusao-do-garimpo-ilegal-ja/. Acesso: 13 de maio de 2022. 42 Nações dentro da nação: um desencontro de ideologias [1996] Microscopista e grupo de apoio indígena percorrem o Rio Auaris, Terra Indígena Yanomami, no combate à malária Por que a ideia de “nações indígenas” é um problema no Brasil? Por que ela ofende suscetibilidades estatistas? E se assim é, por que não utilizar apenas o conceito de “etnias” quando se quer referir aos povos indígenas que fazem parte do território nacional? Por que muitos defensores da causa indígena, incluindo a própria União das Nações Indígenas, insistem em aderir ao termo “nações indígenas”, mesmo enfrentando a fúria 43 dos que defendem a soberania nacional contra o que seria, em sua imaginação, o efeito dominó de separatismos indígenas? Porque, arrisco dizer, no cenário nacional, o conceito de etnia não tem nem força política, nem legitimidade ideológica, já que a sociedade brasileira se quer homogênea e integrada dentro de um Estado único que a represente. Etnias são tidas como excrescências sociais que a História impingiu à pátria e que devem ser aplainadas e diluídas na correnteza nacional. Contra essa pasteurização étnica, o movimento indigenista, que agrega tanto índios como brancos, necessita de uma bandeira à altura da luta para que o país admita o direito dos índios de serem etnicamente diferentes dos demais brasileiros. Por ser um termo politicamente fraco, etnia foi relegado ao âmbito cultural e, como instrumento de luta política na arena do contato interétnico, foi adotada a expressão “nações indígenas”. Tomado de empréstimo ao mundo ocidental moderno, o termo “nação”, tanto a nível nacional quanto internacional, é o único instrumento semântico que transmite o reconhecimento de que é legítimo ser diferente e, embora o Ocidente propague a ideia de nação como algo unitário e até universal, espera-se que cada nação seja diferente das outras em seu conteúdo cultural; “fala-se de ‘caracteres nacionais’ e cada país alimenta estereótipos acerca dos países vizinhos”, diz Dumont (1985: 124). Por outro lado, as diferenças internas são, quando muito, toleradas, mas nunca oficialmente exaltadas. Desde que foi adotado no Brasil, o termo “nações indígenas” tem incomodado muita gente, principalmente, nas duas últimas décadas. Governantes tomam-no como expressão de perigo para a soberania nacional e protestam contra os defensores dos índios, que a usam como símbolo de luta pelos direitos humanos dos povos indígenas enquanto coletividades, 44 por paradoxal que isso pareça1. Os índios, pelo menos alguns, parecem apropriar-se dele mais ou menos como os indianistas do século passado (José de Alencar, por exemplo) se apossaram de símbolos indígenas para marcar a brasilidade face à Europa, ou seja, como emblema de alteridade legítima. Obviamente, no trânsito desse termo entre os seus diversos usuários, cria-se uma imensa área cinzenta de incomunicabilidade, seja ela proposital ou não. Como o termo “nação” está ligado a uma vastíssima produção intelectual de onde surge um campo minado de concepções e contra concepções, pretendo apenas congelar três momentos da via crucis desse conceito. Selecionei três autores como poderia ter selecionado quaisquer outros três ou mais. Para o meu objetivo, entretanto, bastam estes: • Marcel Mauss, para quem nação propriamente dita é o protótipo europeu ocidental do Estado-nação, ou seja, “uma sociedade material e moralmente integrada, com poder central estável, permanente, com fronteiras determinadas, com relativa unidade moral, mental e cultural de seus habitantes que, por conseguinte, acatam o Estado e suas leis” (Mauss, 1972: 286). • Anthony Smith que, ao estudar o fenômeno do nacionalismo, distingue três termos: tribo, etnia e nação; esta, por sua vez, não se confunde nem com o “Estadonação”, nem com a “nação-Estado”. “Nações”, diz Smith (1983: 187), “são ‘etnias’ economicamente integradas em torno de um sistema de trabalho com 1 Embora os direitos universais do Homem se refiram a direitos individuais, eles têm sido invocados na defesa dos povos indígenas contra os abusos dos Estadosnação a que estão sujeitos. Alcida Rita Ramos, “Indigenismo de resultados”, Revista Tempo Brasileiro, 100 (1990a): 133-149. 45 complementaridade de papéis, cujos membros possuem igualdade de direitos enquanto cidadãos de uma comunidade política não mediada”. • Benedict Anderson, para quem a nação é: uma comunidade política imaginada — e imaginada como sendo inerentemente limitada e soberana. É imaginada porque os membros até das menores nações nunca chegam a se conhecer mutuamente (…), mas em suas mentes está a imagem de sua comunhão. (…) [E] limitada porque até a maior delas (…) tem limites bem definidos, ainda que elásticos, para além dos quais estão outras nações. (…) É imaginada como soberana porque o conceito nasceu numa era em que o Iluminismo e a Revolução destruíam a legitimidade do reino dinástico hierárquico, ordenado pelo poder divino. (…) [É] imaginada como comunidade porque (…) a nação é sempre concebida como um profundo companheirismo horizontal (Anderson, 1991: 6-7). O conceito de “nação” no campo minado do indigenismo Na situação específica da formação histórica brasileira no que tange às populações indígenas, vemos uma certa coincidência entre as posturas dos agentes políticos do indigenismo e essas três posições acadêmicas: temos os estatistas maussianos acoplando nação e Estado na mágica frase “soberania nacional”; temos a Igreja propondo que nação não rima com Estado e, por conseguinte, nada existe contra defender a figura das “nações indígenas”; e temos as Organizações Não Governamentais e as organizações 46 indígenas, advogando a autodeterminação das etnias indígenas, mas uma autodeterminação realizada em termos culturais e não político-estatais. Se, a nível acadêmico, é magra a concordância de posições sobre o tema “nação”, no campo da política do indigenismo, o que predomina é uma verdadeira guerra de interpretações. Um exemplo retumbante dessa guerra ocorreu em 1987, durante a assembleia constituinte, quando o Conselho Indigenista Missionário, braço indigenista da Igreja Católica, insistiu na defesa da expressão “nações indígenas” em sua proposta aos parlamentares. A reação do establishment econômico e militar foi rápida e fulminante. Assumindo o papel de veículo desse establishment, o jornal O Estado de S. Paulo manteve durante semanas uma violenta campanha de desmoralização da Igreja, que estaria advogando a criação de nações indígenas como uma manobra para permitir a tomada da Amazônia por interesses estrangeiros. Por sua vez, num exercício de musculação ideológica, a Igreja utilizou-se da fatídica expressão “nações indígenas” como se fosse um peso arremessado contra o Estado, rememorando as rixas agonísticas entre Estado e Igreja nos velhos tempos pré-modernos. Por pouco, esses francoatiradores não atingiram os próprios índios que, joguetes de uma disputa da qual não participavam, tiveram ameaçada sua bem-articulada campanha junto aos parlamentares constituintes. A celeuma provocada por essa peleja IgrejaEstado deixou como sequela o ódio de todos contra todos: Estado, Igreja e ONGs. A vertente estatista do nacionalismo brasileiro, em seu repúdio à utilização do termo “nações indígenas”, torna-se mais explícita no discurso militar da segurança nacional, mas 47 floresce nas falas de alguns profissionais liberais, como esta, por exemplo, do advogado Breno B. de Almeida Alves: Se examinarmos os pressupostos do Estado moderno, temos, como sabido, de início, território; os índios já têm língua, têm costumes, e também têm uma forma de governo. Há então a questão da nação. Se juntarmos tudo isto, vamos dar a eles condição de praticamente ter um Estado dentro de outro Estado. Essa questão, a terminologia nação, se nos ativermos à terminologia “nation”, é a mesma coisa que Estado. Teremos então aí um problema muito sério, inclusive essa expressão “nação indígena” começou a ser usada pelos parlamentares, que falavam nas reuniões das Comissões sobre “nação indígena”; alguns diplomatas legais (…) falam de nação indígena. E isso é um perigo muito grande para nós, de praticamente os índios assumirem, tomarem conhecimento desse conceito, e pedirem a independência da “nação” deles com base nos pressupostos do Estado moderno (Cançado Trindade, org. 1992: 237). No entanto, como diz Smith (1983: 178), “o objeto de devoção nacionalista é a ‘nação’ e não o Estado — mesmo quando ambos coincidem”. É a preocupação com a homogeneidade interna da “nação” que move os estatistas a combater em “nações indígenas”, antes que elas passem da concretude da palavra à virtualidade da ação. Talvez o maior problema com o termo “nação” seja o excesso de significado que se acumulou sobre ele. Esse excesso presta-se admiravelmente a manipulações ideológicas e serve de baluarte a posições necessariamente conflituosas, como são, por exemplo, os interesses desenvolvimentistas e os 48 “humanistas”, digamos assim. Para os desenvolvimentistas, “nação indígena” sinaliza o perigo de aliciamento dos índios contra o desenvolvimento e a soberania nacional. Para os humanistas, “nação” é o conceito canônico moderno da diferença legitimada, a partir do qual tanto se pode reivindicar direitos de cidadania, quanto direitos universais inerentes à humanidade como um todo. Em contraposição a isso, análises recentes têm enfatizado os efeitos do desenraizamento que resulta de migrações a nível global sobre o destino da nação em sua concepção moderna. Homi Bhabha, por exemplo, afirma que a nação “preenche o vazio deixado pelo desenraizamento de comunidades e parentes, transformando essa perda na linguagem da metáfora” (1990: 291). E mais, “a nação deixa de ser o símbolo da modernidade para se tornar o sintoma de uma etnografia de ‘contemporâneo’ dentro da cultura” (1990: 298); ela “torna-se uma forma liminar de representação social, um espaço que é internamente marcado pela diferença cultural e por histórias heterogêneas de povos em disputa, autoridades antagônicas e culturais locais em tensão” (1990: 299; ênfase no original). “Nação” é uma palavra que entrou de contrabando, clandestina, como diz Bourdieu (1989), na retórica indigenista brasileira. Nos Estados Unidos, o uso de “nações indígenas” serviu como uma espécie de senha para a tomada de territórios pelo nascente Estado norte-americano, através de declarações de guerra e assinatura de tratados, ainda que fantoches, com os donos desses territórios. Já no Brasil, o termo “nações indígenas” é recente e surgiu da consciência de que nunca se reconheceu nas culturas-etnias indígenas um mínimo de vulto que merecesse crédito político. Reduzindo os índios à condição de eternas crianças, o Estado brasileiro deu um golpe de mestre: 49 conquistou-os sem se dar ao trabalho de encenar o teatro de uma diplomacia burlesca ao estilo norte-americano2. Expressão adventista na arena do contato interétnico, o termo “nação indígena” foi despido de suas complexidades e passou a ser usado como uma má tradução, rendição depauperada como as que costumam acompanhar a transposição de certos conceitos em contextos de comunicabilidade precária. Vêm à mente as simplificações circulantes naquela zona de penumbra semântica que encobre grupos indígenas, cujo comando da língua portuguesa é limitado demais para expressar complexos domínios de sua vida, e onde elaborados rituais são rotulados de meras “brincadeiras” por eles mesmos, replicando de maneira desavisada o paternalismo regional. Afinal, “o etnocentrismo não é sempre traído pela pressa em se satisfazer com certas traduções ou com certos equivalentes domésticos? ” (Derrida, 1976: 123). Se retirarmos o termo nação indígena do contexto histórico e polissêmico ocidental, ele perde a conotação tanto de organização estatal quanto de nacionalismo, pois não se refere nem a Estado-nação, nem a patriotismo, nem a orgulho nacional e nem a comunidades imaginadas e articuladas pelo amálgama que Anderson chama de print capitalism — a difusão da imprensa e literatura massificada — ou que Rowe e Schelling (1991) atribuem à cultura popular. Em outras palavras, é “nação” sem nação. 2 Sob a tutela do Estado, os índios brasileiros são considerados pelo Código Civil como relativamente capazes para desempenhar certos atos da vida civil. Essa medida, que nasceu como salvaguarda protetora das vidas e terras indígenas, ao longo deste século tem sido uma trajetória eivada por excessos de paternalismo que ferem frontalmente o espírito da preocupação que a originou. 50 Pressentindo esse deslocamento de sentido que, de fato, poupa os povos indígenas de um destino nacionalista, os guardiães do nacionalismo brasileiro, ainda apegados à definição integracionista de “nação”, atribuem o perigo que representam as nações indígenas não diretamente aos índios, mas a fontes subversivas nacionais ou à cobiça estrangeira, forças que, aos olhos de certos estatistas, se revestem do poder e da capacidade de manipular a suposta inocência moral e ingenuidade política dos indígenas. Em busca do coletivo universal Embora as ONGs e as associações indígenas não levantem a bandeira de um nacionalismo indígena, elas se aproximam, provavelmente sem saber, de alguns aspectos do conceito de comunidades imaginadas. Quando Benedict Anderson propõe que o nacionalismo resulta de um processo de autoconsciência de uma coletividade, ele enfatiza a necessidade de se reconhecer a dimensão imaginada do sentimento de pertencer a uma nação. A ideia de se fazer parte de uma mesma comunidade nacional é alimentada pelo que ele chama de print capitalism, a disseminação vasta e acessível de informações reconhecidas por todos os leitores como um denominador comum, mesmo que esses leitores não se conheçam uns aos outros. Apesar das ressalvas que podem ser feitas à capacidade de demonstração que Anderson faz de seu insight e às críticas de que foi alvo por privilegiar uma suposta hegemonia da escrita em detrimento da força das expressões orais da cultura popular (Rowe & Schelling, 1991), fica a convicção de que é por vias indiretas, insidiosas e 51 capilares que se faz a ligadura dos componentes da comunidade, transformando-a em nação. Deduz-se daí que, para haver nação e nacionalismo, é preciso uma boa dose de anonimato e impessoalidade, ainda que seguindo modos comuns e próprios de ser anônimo e impessoal. Em outras palavras, é preciso haver a figura ideológica do indivíduo: “a nação, no sentido preciso e moderno do termo, e o nacionalismo — distinto do simples patriotismo — estão historicamente vinculados ao individualismo como valor” (Dumont, 1985: 21). Nesse sentido, as ditas “nações indígenas”, ou melhor dizendo, as sociedades indígenas, não podem ser confundidas com nações, uma vez que suas comunidades não são imaginadas, mas vividas, ou seja, a ligação entre seus membros não é feita por meios indiretos como a imprensa ou a divulgação literária massificada, nem por uma ideologia individualista, mas através de contatos diretos, face a face e imbuídos do coletivo. Aqui, a impessoalidade e o anonimato não são nem cultivados, nem desejados e, em vez de print capitalism ou de “cultura popular”, teríamos uma espécie de oralidade consensual. Ora, as entidades pró-índio parecem empenhadas em construir uma ponte improvável entre o individualismo ocidental, responsável pela formulação dos direitos universais do Homem, e o coletivismo étnico. Vislumbra-se uma tendência para a criação de um campo imaginado de destinos comuns. É o campo do movimento pan-indígena, especialmente com a promoção de encontros nacionais de representantes indígenas, da circulação de filmes e vídeos por aldeias e sociedades indígenas distantes entre si e da crescente tendência para a formação de organizações indígenas no campo 52 dos direitos humanos. Tanto a Igreja quanto as ONGs leigas têm sido agentes fundamentais na criação desse campo imaginado. Mas, não é por ser imaginado que esse campo da política do contato é uma nação em potencial, pois congrega uma tal diversidade de línguas, costumes e tradições, que não passa de uma colcha de retalhos costurada para convenientemente defender os índios do oponente comum que é a sociedade envolvente. Seria, parafraseando Lévi-Strauss (1962: 26), um tipo de bricolage político, uma fabricação estratégica de ação limitada a ganhos e perdas no campo das relações interétnicas. Não deixa de ser oportuno olhar mais de perto o papel de agentes externos no surgimento de uma imaginação indígena coletiva onde antes ela não existia ou tinha outros contornos. Desse modo, a ideia de “nação” torna-se o modelo privilegiado para se delinear uma comunidade despertada politicamente. Tomo o caso Yanomami como uma lente de aumento para se ver melhor os detalhes, ainda que de maneira extremamente breve. Alcida durante uma expedição médica para tratamento de malária entre os Sanumá, Walobiu, 1991. Por Karis Rodrigues 53 A nação que não é São cerca de 22.000 Yanomami no Brasil e na Venezuela, massa humana suficientemente grande para inibir o conhecimento face a face de todos os seus membros. Embora o território inteiro dos Yanomami esteja ligado por uma vasta rede de trilhas e de cursos d’água que ligam, virtualmente, todas as comunidades entre si, essa ligação se dá como elos de uma cadeia, em que o último elo quase nada sabe sobre o primeiro. Não havendo formas de comunicação global, ela se dá de maneira setorizada, talvez em círculos concêntricos de densidade variada de informações, ou seja, partir do conhecido para o imaginado. Mas quem está incluído nesse imaginado? São comunidades suficientemente distantes para que não tenham contato direto entre si e suficientemente próximas para que se saiba que elas existem. Com tais comunidades se mantém um sistema de relações simbólicas, em que o imaginário é a força motriz por excelência. É o complexo do duplo animal, do alter ego, totemismo individual, como diria Durkheim (1989)3. Por meio dele, certas comunidades longe uma da outra estão inextricavelmente ligadas sem, no entanto, terem qualquer tipo de interação face a face. Ao nascer, cada pessoa Yanomami tem um equivalente ontológico na forma de um determinado animal que vive em território distante. Para cada conjunto de aldeias, existe outro conjunto geograficamente longínquo, onde estão os duplos animais de seus membros. Desse modo, cada comunidade tem o seu 3 Sobre o fenômeno do duplo animal entre os Yanomami ver a tese de doutorado de Bruce Albert, Temps du sang, temps des cendres (Nanterre: Université Paris, 1985) e Memórias sanumá de Alcida Rita Ramos (São Paulo/Brasília: Marco Zero/Editora Universidade de Brasília, 1990b). 54 acervo de outras comunidades com as quais se imaginam relacionadas, mas nunca com a totalidade dos 22.000 Yanomami. Somos nós, de fora, que percebemos a matriz geral, onde esse padrão vai-se repetindo em blocos, recobrindo, assim, todo o território Yanomami. Somos também nós, agentes externos, que, ansiosos por lhes garantir direitos territoriais à altura de suas necessidades, fustigamos a imaginação Yanomami, insinuando-lhes uma unidade imaginada através da divulgação de fotos, de vídeo e de outros mecanismos destinados a criar uma consciência comum que os abranja a todos4. Yanomami é um termo inventado por brancos para dar conta da totalidade que escapa aos próprios Yanomami que, por sua vez, se veem a si mesmos ou aos outros como Sanumá, Yanam, Waikã, Xamatari, Yanomam etc. Mais recentemente, a Casa do Índio, uma combinação de hospital e albergue em Boa Vista, tem sido um catalisador dessa consciência, ao reunir num mesmo espaço constrito homens e mulheres de vários subgrupos Yanomami, antes desconhecidos entre si. O resultado tem sido pouco alentador para quem almeja chegar a ver a grande “nação” Yanomami harmoniosamente consciente de sua união indivisa. A heterogênea clientela Yanomami da Casa do Índio encontra-se, conhece-se, chega a odiar-se, e continua cultivando a distância que sempre manteve entre si. Mesmo assim, os Yanomami têm sido citados nominalmente pelos militares como um caso paradigmático do perigo que representa a criação de nações indígenas. Na proposta do Projeto Calha Norte, argumentam contra a criação 4 Desde que este texto foi escrito, a era digital entrou na Terra Indígena Yanomami, possibilitando o contato por internet com, virtualmente, todas as aldeias que disponham dos recursos necessários. Nota da autora, 2024. 55 da área indígena Yanomami porque, estando em ambos os lados da fronteira internacional, poderia levar manipuladores brancos a arrebanhar todos eles, do Brasil e da Venezuela, e criar o Estado Yanomami. Estatistas que são, os idealizadores desse projeto efetuam uma operação clássica no ramo do nacionalismo: onde há língua, usos e costumes comuns ligados a um território próprio, há necessariamente nação e onde há nação, há Estado. Sua posição presume que “a população colonizada aspira ao autogoverno de uma nova comunidade política cujos limites foram estabelecidos pelo colonizador” (Smith, 1983: 176). Conscientemente ou não, essa reserva dos militares nada mais faz do que dar foro de concretude a uma ficção que não precisa ser sólida para se desmanchar no ar. Se dermos o crédito que, ao menos em parte, merece a análise de Pierre Clastres (1978) sobre a recusa dos extintos Tupinambá em adotar a forma estatal de governo, podemos afirmar que os povos indígenas no Brasil, as ditas “nações indígenas” na acepção seja de quem for, por moto próprio, não mostram qualquer intenção de se transformar em estados, nem de promover um “nacionalismo indígena”. O fato de terem falhado as tentativas de criar uma organização indígena única, piramidal, a exemplo das federações do Equador ou do Peru, diz-nos alguma coisa muito próxima daquilo que Clastres caracterizou como o repúdio do Um em favor do Múltiplo. Se o conceito de etnia não é politicamente potente e legítimo para alçar a causa indígena ao plano das grandes problemáticas nacionais, a exemplo, entre outros, dos sindicatos ou das organizações empresariais, o conceito de nação, por inapropriado, mais parece ir contra do que a favor dessa causa, ao menos em certas conjunturas cruciais para o 56 país, como foi a assembleia constituinte de 1987-88. Por transbordar de significado, o conceito de nação acaba esvaziando-se, principalmente, quando passa a ser uma metáfora política, como é o caso das “nações indígenas”, sempre que tomada ao pé da letra. Se a singeleza de etnia mantém a situação dos povos indígenas na obscuridade política, a complexidade de nação ameaça confundi-la como um ofuscante holofote que os expõe a todo tipo de oportunismo. Esse é o dilema que enreda os índios num labirinto semântico criado por um mundo pouco afeito a reconhecer e, muito menos, a respeitar nuances quando se trata de alteridade. 57 O antropólogo no papel de testemunha: laudos antropológicos e responsabilidade social [1990] No afã de servir ao que acreditamos serem os interesses dos povos indígenas que estudamos, nós, antropólogos, raramente paramos para pensar no que estamos fazendo quando nos envolvemos com questões de ordem jurídica, quando pomos à disposição de profissionais da lei a perícia que nos é atribuída por sermos “especialistas”. Mas, somos especialistas em quê? Esta é uma pergunta delicada e antipática e só me permito fazê-la porque sou parte do problema que eu mesma levanto. Jovem casal curtindo a paz doméstica. Auaris, ca. 1969. Foto da autora 58 Até que ponto sou eu uma especialista em Yanomami? Os 27 meses descontínuos que passei, quase todos, em duas aldeias de menos de 100 pessoas cada uma, pertencentes a apenas um dos quatro grandes subgrupos daquela etnia autorizam-me a tomar o lugar e a voz dos mais de 9 mil Yanomami no Brasil?1 Ou, tomemos outro profissional que tenha trabalhado por longos períodos com o universo inteiro de uma sociedade indígena. O conhecimento que foi por ele acumulado seria suficiente para torná-lo porta-voz de tudo o que é relevante para aquela sociedade? Em outras palavras, a pequena fatia da vida indígena que conseguimos assimilar em nossas pesquisas, sempre necessariamente limitadas no tempo e no espaço, será suficiente para termos aquela visão, ao mesmo tempo global e específica, que nos habilite a fazer afirmações que, ao passar para o domínio da lei, são metamorfoseadas em fatos e verdades jurídicos? Em que se baseia, afinal, a ideia de “perícia antropológica”? Uma primeira consideração toca diretamente naquela contingência histórica que transformou os povos indígenas em gente indefesa face ao Estado-nação que os engoliu. Graças à vulnerabilidade dos indígenas, somos revestidos de uma autoridade que é baseada, justamente, num saber que adquirimos dos próprios índios. Somos os tradutores de seus anseios. Mas, como todo tradutor, fazemos, no máximo, uma aproximação, quando não escorregamos em traições ao original. Até que ponto somos também porta-vozes delegados por eles é uma medida da consciência, da confiança e disposição mútuas que variam em cada caso. 1 Em números de 2023, são 30 mil yanomami habitando a Terra Indígena Yanomami no Brasil. 59 Quando escrevemos um laudo antropológico demonstrando que o povo X necessita de tanta terra ou que o povo Y deve ser indenizado por isto ou por aquilo, sentimos a reconfortante sensação do dever cumprido. Ao mesmo tempo em que fizemos uma boa ação, somos gratificados com o reconhecimento externo da nossa posição de experts. Mas, quantos de nós não sentimos uma ponta de desconforto por estarmos ocupando um lugar que, na verdade, não é nosso; por sermos, enfim, os intermediários dos intermediários? Não creio que esse sentimento seja apenas um desassossego idiossincrático de minha parte, e nem descarto a outra face da moeda, ou seja, a possibilidade de nos sentirmos lesados caso os índios assumam o papel de peritos deles mesmos e, assim, nos tornando descartáveis. Não podemos esquecer que, enquanto autores de laudos periciais, somos, afinal, uma vicissitude conjuntural na trajetória interétnica dos índios. Nem sempre fomos peritos para eles no passado e nem o seremos para sempre no futuro. Nossa atuação nesse campo é uma contingência histórica e, como tal, deve ser avaliada. No fundo, tudo isso aponta para a incômoda questão do paternalismo que reconhecemos, por exemplo, no Estado e na Igreja, mas que afastamos de nós mesmos com brios feridos quando nos é atribuído. Por outro lado, não há dúvida de que o que nos sustenta é a convicção, historicamente mais do que justificável, de que o respeito àquilo que defendemos para os indígenas que nos tocam mais de perto teria salvo muitos outros povos indígenas da extinção e da desagregação ao longo dos séculos de conquista. Suas terras, sua saúde, seu direito à vida e à diversidade cultural talvez tivessem sido salvos de tanta rapina. São esses os valores que nos redimem, que dão às nossas 60 incursões pelos campos cerrados da lei um sentido que mais do que supera as críticas que possamos – e que devemos – fazernos em nosso papel de “especialistas”. Esses valores são-nos legados pelos princípios humanistas da própria antropologia. Há uma outra consideração que deve ser cuidadosamente examinada, que é o processo pelo qual nos tornamos experts. Refiro-me à sua repercussão em nosso pensar a antropologia como disciplina científica construída de teorias, conceitos, pressupostos, parâmetros e, por que não, de modas. Quando vamos a campo, não somos uma tabula rasa nem existencial, nem profissional. As posturas teóricas, os conceitos, os métodos, até as técnicas que levamos como ferramentas de pesquisa vão talhar os dados que levantarmos; vão ser amplificadores de percepção, mas também anteolhos. Domesticamos a realidade que nos rodeia com categorias que nos são familiares, tanto em termos da nossa socialização cultural como do nosso treinamento profissional. O resultado é que transformamos a nossa vivência de campo numa linguagem que não pertence àquela realidade. A partir daí, iremos reproduzir essa linguagem em nossos escritos que poderão incluir, entre outras coisas, laudos periciais, depoimentos oficiais, declarações públicas etc., mas, não nos iludamos, essa linguagem acadêmica, aparentemente neutra, nem sempre é inofensiva. Tomemos o exemplo que nos dá Fred Meyers, antropólogo norte-americano que faz pesquisa entre os Pintupi da Austrália e está engajado na defesa dos direitos dos Aborígenes. Chamado pelo governo australiano a depor como especialista, Meyers viu-se na posição de ter que questionar e tentar derrubar a maneira como o conceito de “grupo local de descendência” vinha sendo aplicado aos Aborígenes desde os tempos de Radcliffe-Brown. 61 De posse desse conceito, as autoridades nacionais da Austrália insistiam em obrigar os Aborígenes a provar que tinham, realmente, grupos locais de descendência, se quisessem fazer jus às terras que pleiteavam. Essa categoria analítica – aliás, já um tanto fora de moda – ganhou, assim, o status de fato jurídico nas mãos do poder, mesmo que a intenção original de quem primeiro o aplicou pudesse estar totalmente desligada da política do contato. Advindo do reino supostamente inócuo do parentesco, esse conceito passou a ser o principal instrumento do Estado contra os Aborígenes (Meyers, 1986: 147). Uma faceta pouco conhecida da antropologia norteamericana revela-nos uma figura já antiga e bastante relevante para esta discussão: a testemunha pericial. O antropólogo como expert witness entrou na cena judicial americana a partir de 1946 com a criação da Indian Claims Commission (Rosen, 1977: 556). Mas, embora a maioria dos depoimentos antropológicos nos tribunais norte-americanos fosse sobre assuntos indígenas daquele país, outros casos também levaram antropólogos ao banco das testemunhas: o direito dos Amish (grupo religioso de origem europeia que vive na zona rural do leste dos Estados Unidos) de não mandar seus filhos para a rede escolar nacional, a justeza ou não do sistema de segregação racial em escolas, a “insanidade cultural” dos queimadores de arquivos de recrutamento durante a guerra do Vietnã. Foi para tentar provar o relativismo cultural nos tribunais que vários cientistas sociais norte-americanos chegaram ao conceito de “incapacidade social” atribuível a grupos minoritários como uma forma contundente de expor aos olhos da lei a realidade das diferenças culturais, fossem elas criadas pela experiência histórica dos indígenas, pela vida nos guetos urbanos ou pela tradição religiosa de uma minoria etnicamente diferenciada. 62 Aos nossos ouvidos, essa “incapacidade social” ressoa como um eco da “incapacidade relativa” do nosso Código Civil de 1916 que, por mais de um século, contemplou os povos indígenas como o único segmento socialmente constituído no país a merecer tal “distinção”. Assim, chegou-se ao mesmo conceito legal por caminhos distintos: nos Estados Unidos, pela experiência de cientistas sociais expostos à complexidade da lei; no Brasil, por determinação de juristas expostos à complexidade cultural. Lawrence Rosen, o antropólogo americano que, em 1977, discorreu sobre o assunto, não poupa esforços para ressaltar as repercussões geradas por esse tipo de envolvimento por parte de cientistas sociais. Ele aponta o problema de depoimentos contraditórios como consequência de interpretações distintas dadas por diversos antropólogos ao mesmo assunto, a reputação de soft science da antropologia afetando decisões de juízes, a importância da autoridade do perito como fiel da balança nas decisões judiciais e – de especial relevância para nós – o impacto que essas experiências individuais de antropólogos podem ter sobre o pensar antropológico. Citando o caso de Julian Steward, que testemunhou na Comissão de Reivindicações Indígenas sobre a organização política dos Paiute setentrionais, Rosen ressalta que esse envolvimento levou Steward a aprofundar sua pesquisa sobre bandos de caçadores. Conclui que os depoimentos de antropólogos perante a Comissão estimularam um aumento de pesquisas em etnografia e em etnohistória, dando aos estudiosos a “oportunidade e a necessidade de reavaliar abordagens técnicas e metodológicas há muito aceitas, com o resultado de que cada uma destas pôde ser reafirmada ou abandonada”. É evidente, afirma Rosen, que “essa participação 63 em casos judiciais tem tido um efeito recíproco no pensamento antropológico” (Ray apud Rosen, 1977: 567). Mais reveladora ainda é a declaração do próprio Steward sobre o papel do antropólogo nessas situações: “Ele mesmo transforma-se em ‘prova’, pois o seu testemunho está baseado, de maneira incalculável, na sua teoria (explícita ou implícita), nas suas experiências com o povo, nas suas viagens pelo território…”. Em outras palavras, sua autoridade de expert está calcada num tipo de experiência pessoal e sui generis com o grupo estudado, experiência essa virtualmente irreproduzível por outro profissional. Some-se a isso a influência que um ou outro tipo de teoria exerce sobre cada antropólogo e teremos uma situação muito próxima dos “imponderáveis” de Malinowski, isto é, aspectos pouco afeitos à precisão e à previsão, mas de importância fundamental para se desvelar um determinado ethos. A reflexão de Steward contém, numa cápsula, esse dilema do antropólogo: o de ser, a um só tempo, sujeito e objeto de seu próprio trabalho. Essa condição merece um exame cuidadoso, sob pena de, desavisados, sermos solicitados a participar como autoridades em algum assunto quando, ao mesmo tempo, somos barrados em nosso trabalho como antropólogos. É o caso, por exemplo, de muitos etnólogos no Brasil que colaboram com um dos poderes do Estado, o judiciário, fornecendo laudos periciais sobre povos indígenas do norte da Amazônia, enquanto um outro poder desse mesmo Estado, o executivo, nos proíbe de voltar ao campo para continuarmos a exercer o nosso direito de trabalhar. A pecha de persona non grata aderiu à imagem do etnógrafo no Brasil como uma mancha pecaminosa atirada pela mão certeira de militares que reconhecem o potencial de denúncia que representa o 64 testemunho ocular do antropólogo. Não existe – como, aliás, nunca existiu – o cientista social desligado e acima de qualquer contradição de ordem social ou política. Tão constitutivos de seu ser social quanto o seu trabalho propriamente científico são aqueles fatores que o assaltam assim que ele transpõe o umbral da torre de marfim. E, do momento em que está do lado de fora, tudo pode acontecer. No Brasil, o palco onde desempenhamos a nossa perícia não é o espetáculo público do tribunal, mas os bastidores do Ministério Público. É com a Procuradoria Geral da República, mais especificamente com a sua Sexta Câmara, que os antropólogos interagem em seu papel de expert witnesses. Reconhecendo o potencial de serviços que podem ser prestados nesse terreno, a Associação Brasileira de Antropologia (ABA) selou acordo com a Procuradoria, de modo a transformar em envolvimento coletivo da categoria o que até então era participação individual de alguns antropólogos em processos judiciais. Ficou então oficializado esse tipo de engajamento que antes dependia da ousadia e dos contatos pessoais de cada antropólogo. Trazer uma associação profissional para essa arena, com seu carimbo de legitimidade, reforça ainda mais algumas das considerações que citei, especialmente no que toca o pensar antropológico, ao se introduzir o interesse por temas que, sem esse estímulo, talvez deixassem de ser explorados. Dirijo-me agora a um caso específico, o caso Yanomami. A saga Yanomami não começou nestes últimos meses, apesar da imensa cobertura da imprensa sobre o impacto de mais de 40 mil garimpeiros invasores. Ela tomou corpo no início dos anos 1970, com a construção da rodovia Perimetral Norte e com o levantamento mineral da Amazônia empreendido pelo Projeto Radam Brasil. Peões com má saúde, garimpeiros afoitos e 65 empresários gananciosos fizeram em quatro anos mais estragos entre os Yanomami das bacias dos rios Ajarani e Catrimani e da Serra de Surucucus em Roraima do que tudo que os indígenas têm na memória, mesmo considerando os tempos de guerra com outros indígenas da região. Em 1975, em pleno regime militar, abre-se uma pequena brecha no controle autoritário suficiente para, com um aceno da FUNAI, vários antropólogos se porem à disposição para elaborar e dirigir projetos de assistência a populações indígenas. Um desses foi o Plano Yanoama, dirigido por Kenneth Taylor, na época professor da Universidade de Brasília, e do qual participei. Menos de um ano depois de haver começado, o projeto era encerrado pela recusa explícita dos militares de permitir que um estrangeiro atuasse na fronteira. As razões implícitas foram apenas parcialmente desvendadas. 2 Só em meados da década de 1980, novos elementos, como o Projeto Calha Norte, permitiram, em retrospecto, entender melhor aquela reação que, aliás, atingiu não só o Plano Yanoama, mas todos os outros cinco que então operavam na Amazônia, envolvendo antropólogos nacionais e estrangeiros residentes no Brasil. Ficou muito claro, onze anos depois, que os militares não queriam qualquer concorrência no controle dos destinos da Amazônia e seus habitantes. Uma das grandes preocupações do Plano Yanoama era promover a demarcação das terras indígenas antes que surgissem litígios sobre elas e antes que as riquezas minerais nelas contidas fossem tomadas de assalto por garimpeiros ou por empresas mineradoras. Nada foi feito além 2 Em seu livro Os Fuzis e as Flechas, o jornalista Rubens Valente (2017) expõe os acontecimentos daquele período. 66 de uma tentativa da FUNAI, na época frustrada, de retalhar a área indígena em 22 lotes pequenos e descontínuos. Os anos 1980 viram a maior campanha, ao menos nas últimas décadas, em defesa de um povo indígena brasileiro, tanto a nível nacional como internacional. Instâncias como a ONU e a OEA foram acionadas para exercer pressão sobre o governo brasileiro no sentido de demarcar as terras tradicionais dos Yanomami. Durante dois ou três momentos, essa meta parecia a ponto de se realizar, para logo se diluir na eterna técnica da procrastinação oficial. A FUNAI chegou a assinar uma proposta em 1985 para a criação de um Parque Yanomami com área superior a nove milhões de hectares. Três anos depois, o grupo interministerial encarregado das demarcações, sob o comando da SADEN (Secretaria de Assessoramento da Defesa Nacional), decidiu por mais um retalhamento das terras Yanomami, desta vez, em 19 áreas descontínuas, cercadas por duas florestas nacionais e pelo Parque Nacional do Pico da Neblina. Era o Projeto Calha Norte em ação. Além de diminuir o território Yanomami em 70% de sua área tradicional, os militares promoveram a ampliação de pistas de pouso que se tornaram chamarizes para a grande invasão garimpeira que começou em agosto de 1987. Daí em diante, pouco se soube em primeira mão do que ocorria na área, graças à expulsão de equipes médicas não governamentais, de missionários católicos, e à taxativa proibição da entrada de antropólogos em toda a extensão da Amazônia afetada pelo Calha Norte. Os Yanomami passaram a viver o cerco surdo de massas desprovidas como formigas em marcha cega pela floresta, deixando atrás de si um deserto de fauna, rios mortos, grandes viveiros de malária e outras doenças altamente voláteis. Veio a desnutrição, a pesada mortalidade, principalmente infantil, a 67 desagregação econômica e, podemos só imaginar, porque não pudemos presenciar, o caos existencial e material de um povo tomado de assalto pelo pior dos desastres que lhes poderia ser vaticinado. Novamente, entra o antropólogo em seu duplo papel de acadêmico-ativista, desta vez, como autor de um laudo pericial solicitado pela Procuradoria Geral da República e que, somado a um volumoso dossiê, iria fundamentar a Ação Cautelar apresentada ao Juiz da Sétima Vara do Distrito Federal, demonstrando a necessidade de proteção das vidas e da terra Yanomami. No tempo recorde de quatro dias, a 20 de outubro de 1989, veio a liminar que estabelecia a interdição da área proclamada pela FUNAI em 1985, ignorando as 19 áreas e suas circundantes florestas nacionais, e a ordem de expulsão dos garimpeiros que, a essa altura, já andavam por perto de 50 mil, espalhados por quase toda a região mais central e densa do território Yanomami. A reação negativa à liminar veio rápida e ousada: empresários, donos de aviões e outros agentes de garimpo começaram a despejar dezenas de índios doentes nos hospitais e na Casa do Índio em Boa Vista, transferindo para a FUNAI as atenções acusadoras da opinião pública. Em novembro, mais de 200 Yanomami se amontoavam na Casa do Índio, praticamente, sem assistência médico-sanitária, famintos pela falta de comida suficiente, assistindo à morte contínua de suas crianças, as maiores vítimas desse desastre. Em outra frente, o governador de Roraima, Romero Jucá, tentava neutralizar os efeitos da liminar, pressionando o governo federal a aprovar seu Projeto Meridiano 62, que tenta legalizar a atividade garimpeira em área indígena. A partir daí, começou um confuso jogo de pingue-pongue envolvendo o 68 governo estadual, o governo federal e o poder judiciário, onde a peça oscilante era o governo federal, enquanto o Congresso Nacional, em seu recesso sacrossanto de fim de ano, aparecia como a grande ausência. Os antropólogos “especialistas” em Yanomami não tiveram mãos a medir para atender a jornalistas estrangeiros e nacionais, ávidos por informações etnográficas de última hora, tentando fazer sentido de uma situação sem sentido. Acabei participando, inesperadamente, e a contragosto, de uma audiência com o Presidente Sarney, expondo-lhe a apreensão de todos os que se preocupam com os Yanomami sobre a manutenção dos garimpos em pleno território indígena, para acabar ouvindo do Presidente o inusitado comentário: “A senhora pode ficar tranquila, porque eu sinto a mesma coisa que a senhora! Os garimpeiros vão sair de perto dos índios”. Poucas semanas depois, seu Ministro da Justiça, Saulo Ramos, vai a Roraima e reitera o acordo de permitir a permanência dos garimpeiros na área indígena, em frontal desobediência à ordem judicial e flagrante exposição da mentira presidencial. Por trás da nossa aparente ingenuidade (faziam parte do grupo os cantores Arnaldo Antunes, Rita Lee, Gilberto Gil e Sting) de buscar uma interlocução com agentes do poder comprometidos com interesses opostos aos dos indígenas, está uma tática bastante rotineira nos meios indigenistas, que é a de provocar declarações públicas desses agentes sobre suas posições, ainda que retoricamente vazias, e criar visibilidade nos meios de comunicação para o problema que nos ocupa. Em nenhum momento daquela tarde de janeiro no Palácio do Planalto, tive qualquer dúvida sobre a vacuidade da retórica do então presidente da República. Mas também, em nenhum 69 momento, lamentei ter perdido meu tempo ouvindo palavras ao vento. A situação Yanomami, transformada em cause célebre nacional e estrangeira, mereceu até uma fala presidencial, em cadeia nacional de rádio e televisão no horário mais nobre da TV brasileira, antes da novela das oito. É possível que o pingue-pongue continue nos próximos cinco anos, talvez com novos jogadores e mais algumas demonstrações coloridas de pirotecnia.3 O caso Yanomami conseguiu congregar numa mesma arena política um número insólito e inesperado de personagens desencontrados com posturas e interesses os mais antagônicos: o capital selvagem dos empresários do garimpo, as massas falidas de garimpeiros desgarrados, os Yanomami e sua diversidade interna, o governo local abertamente a favor do garimpo, o governo federal numa oscilação de pêndulo entre atender aos interesses privados e manter uma imagem de democracia, o poder judiciário local a serviço dos poderes econômicos, o poder judiciário federal a serviço do estado de direito e, em meio a todo esse emaranhado de atores e papeis, os antropólogos, associados a outros militantes da causa indígena. O poder de fogo do antropólogo em situações como essa é muito limitado e ele ainda corre o risco de se queimar por atrair para si atenções e ações retaliatórias de quem se sente atacado pelo seu testemunho. Mas não creio que nenhum de nós que encara esse tipo de desafio é inocente a ponto de 3 Em outubro de 1990, o Presidente da República, Fernando Collor de Mello, numa tremenda operação mediática mandou explodir as pistas de pouso clandestinas na terra yanomami. No ano seguinte, assinou a demarcação da Terra Indígena Yanomami. 70 imaginar que o seu laudo pericial vá salvar o povo indígena do flagelo, nem que o seu mérito seja universalmente reconhecido. Fazemos isso porque nos sentimos atores de um complicado processo político, porque acreditamos que o nosso conhecimento acumulado deve servir para mais do que simplesmente o prestígio da academia e porque não dormiríamos bem se nos omitíssemos em meio a tragédias como a dos Yanomami. No fundo, dou razão a Rosen (1977: 573), quando evocou Carl Sandburg ao dizer: “an expert is just a damned fool a long ways from home” (o perito é só um idiota longe de casa). Arte de Yaki Sanöma 71 Post-scriptum Reler este texto em março de 2018 4 choca por sua atualidade, se não conjuntural, certamente, estrutural. Estão lá os mesmos personagens que hoje frequentam os gabinetes de agentes da Polícia Federal, de procuradores da República e de juízes à espreita de seus crimes lesa-cidadania: Fernando Collor – o da pirotecnia nas pistas de pouso clandestinas –, José Sarney, Romero Jucá5 … A cupidez de nossos representantes políticos – fantasmas vivos, ao que parece, indestrutíveis – continua a assombrar os cidadãos e, em especial, os indígenas. Ao texto original acrescento, primeiro, o caso paradigmático dos Caxixó, que expôs sardonicamente a fantasia das perícias antropológicas. Um grupo de pessoas em Minas Gerais reivindicava território próprio e, para isso, declarava-se de origem indígena. A FUNAI, com seu status de relativamente incapaz dentro do aparato estatal brasileiro, convocou uma antropóloga universitária para decidir se os Caxixó eram ou não eram índios. Conclusão: não eram índios. Inconformados, os interessados apelaram à Procuradoria da República em Minas Gerais, que determinou nova perícia. Outra antropóloga profissional foi designada para desempenhar a mesma missão. Conclusão: eram índios. Para desempatar, uma terceira missão antropológica entrou em campo. O resultado dessa paródia está descrito em Santos e Oliveira (2003). O segundo acréscimo ao texto original, muito mais edificante e alvissareiro, evoca a participação cada vez maior e mais visível dos próprios indígenas, agora formados e em 4 5 E, novamente, em 2023. Figuras anódinas, comparadas com o que veio depois, na gestão Bolsonaro. 72 formação em antropologia em diversas universidades do país. Enfim, chegamos ao segundo milênio da nossa brava era com grandes esperanças nesses jovens que, em vez de condenar irrevogavelmente – e, por vezes, com razão – a antropologia como instrumento de colonização, fazem afirmações como esta: “ela [a antropologia] tem a grande oportunidade de se enriquecer e avançar, pois é uma disciplina que pode criticar a si mesma” (Sarmento, 2018: 17). O autor da frase é Francisco Sarmento, indígena Tukano do Rio Negro, Amazonas, mestre em antropologia e doutorando na Universidade de Brasília. 73 Sonhando com ABYA-YALA [2019] ABYA-YALA, América antes da América 1 Sobre distopias Uma angústia coletiva enche o ar como se vivêssemos o clima de fim de uma festa para a qual gastamos muito mais do que podíamos. Não é exatamente o gosto amargo de uma ressaca, mas uma espécie de ansiedade e a vontade de criar um futuro novo. Cresce o sentimento de que como está não pode continuar. É preciso mudar o mundo. Estado e Mercado estão exterminando seres e espécies de todos os tipos, incluindo humanos. A consciência de uma hecatombe que se aproxima provoca um profundo desespero, como mostra esta passagem do sacerdote e sociólogo belga, François Houtart: Quando mais de 900 milhões de humanos, em números crescentes, vivem abaixo da linha da pobreza …; quando, a cada 24 horas, dezenas de milhares de pessoas morrem de fome; quando grupos étnicos, modos de vida e culturas desaparecem diariamente, pondo em risco o legado da humanidade; quando a desigualdade entre homens e mulheres aumenta no sistema econômico formal e informal; quando o clima se deteriora, não 1 Abya-Yala, expressão do povo Kuna do Panamá, significa Terra Madura, Terra Viva, Terra Florescente. Refere-se ao que os europeus chamaram América. 74 podemos, simplesmente, falar de crises financeiras conjunturais (Houtart, 2014: 56). Se são humanos os responsáveis por esses estragos, esses mesmos humanos devem reparar os danos e refazer o mundo de outra maneira, the world otherwise, como diz o antropólogo colombiano Arturo Escobar (2007). Os esforços intelectuais para romper o monólito que é o pensamento Ocidental sobre como viver neste mundo concebem a sociedade humana de maneira muito mais democrática, no sentido que deve ser dado ao termo democracia (Graeber, 2007; Levitas, 2013). No entanto, seguindo os velhos hábitos, distopias cada vez mais virulentas circulam livremente pelo mundo. Silvia Rivera Cusicanqui (2018: 51), antropóloga ativista boliviana, pergunta: “Até quando vamos deixar a ideologia do progresso repetir todas as mentiras que nos enrolam há tantos anos?”; prossegue apresentando alguns dos males do progresso, como “a profunda irracionalidade da bolsa de valores”, e contrasta-a com um mundo diferente, onde poderíamos recuperar “formas humanas, orgânicas, saudáveis de fazer coisas através e com o mercado” (Rivera Cusicanqui, 2018: 52). Enquanto os críticos das utopias as consideram impossíveis de alcançar, Ruth Levitas (2013: xii) responde: “o que é realmente impossível é continuar como estamos, com sistemas sociais e econômicos que enriquecem uns poucos, mas destroem o meio ambiente e depauperam a maior parte da população do mundo”. Indo mais longe na imprudência humana, Alan Weisman, numa profecia sinistra, imagina o planeta livre de humanos: “imagine um mundo do qual, de repente, todos desaparecemos. Amanhã”. E continua: “Improvável, talvez, mas digamos que não seja impossível. Suponhamos que um vírus natural ou produto 75 diabólico da nano engenharia dirigido especificamente ao Homo sapiens nos pegue, mas deixa tudo mais intacto”. [Citar esta passagem, justamente, quando a pandemia da Covid-19 se alastrava à minha volta foi, no mínimo, surreal!]. De onde o autor tirou essa ideia, se não da observação prolongada da maneira desastrosa com que o Homo sapiens tem tratado seu planeta materno? Mas, qual Homo sapiens? É justo chamar a atual voragem que cobre a Terra pelo pomposo nome de Era do Antropoceno? Será que foram os Yanomami ou os Cherokee ou os Inuit que causaram o derretimento das geleiras, o buraco na camada de ozônio, ou os incêndios infernais na Amazônia? Por sorte, nem todos os Homo sapiens são iguais, pace os ensinamentos dos biólogos! Alguns são mais sapiens que outros. Da maneira como andam as coisas, em termos da quimera do desenvolvimento (Rist, 1997), quanto mais pesada fica a tecnologia, mais escassa se torna a sapientia. Ainda muito saudável, reina a ilusão de que a alta tecnologia é o remédio para os males que a própria tecnologia engendra. Em sua crítica meticulosa e sóbria da tecnologia baseada em combustíveis fósseis, o antropólogo sueco Alf Hornborg (2016: 32) diz: “Depois de mais de 200 anos, ainda tendemos a imaginar que o progresso tecnológico nada mais é do que varinha mágica do engenho que, sem as implicações políticas ou morais necessárias que vêm de fora, vai resolver nossos problemas locais de sustentabilidade”. Ao pôr os pontos nos iis do Antropoceno, Hornborg afirma que: quanto mais os combustíveis fósseis e outros recursos que ela [a tecnomassa] acumula e dissipa hoje, mais dissipará amanhã. Este relato da nossa 76 entrada no Antropoceno não se refere às propriedades biológicas da espécie Homo sapiens, mas à forma específica da organização social que surgiu muito recentemente na história humana, como estratégia de um segmento da humanidade para dominar o restante (Hornborg, 2016: 33). Em outras palavras, não se pode atribuir o atual desarranjo planetário a “traços inatos da nossa espécie”, mas sim a um de seus segmentos, a “uma categoria social”. Um exemplo: “Um americano médio emite hoje tanto dióxido de carbono quanto 500 cidadãos médios de algumas nações da África e Ásia” (Hornborg, 2016: 33). Então, justificadamente, Hornborg pergunta: será que Antropoceno é a palavra certa para a intemperança do West às custas do Rest? Ao responder, sugere que chamemos “a era geológica inaugurada no fim do século XVIII pelo nome de Tecnoceno” (Hornborg, 2016: 34). Ao emular os hábitos pródigos da América do Norte, governos latino-americanos ̶ em especial o Brasil ̶ se esmeram em destruir, estimular a destruição ou passivamente deixar destruir os recursos naturais na esperança fútil de concretizar a quimera do “desenvolvimento”. Cerca de um milhão de indígenas e outros povos tradicionais que, durante séculos, se não milênios, vivem de modo sustentável em solo brasileiro, têm sofrido os efeitos das políticas equivocadas, brutais e desastradas de uma enfiada interminável de presidentes e políticos ineptos. A rica cultura ancestral, celebrada pelos recentes achados arqueológicos, responsável, entre outras coisas, pela existência da espetacular floresta amazônica (Fausto & Neves, 2018; Hornborg & Hill, 2011; Neves & Heckenberger, 77 2019), mal consegue sobreviver ao assalto sem trégua do Estado e do Mercado que já leva séculos (Sweet, 1974). Realidades indígenas, utopias brancas Proponho um exercício de confronto de opostos, uma tentativa de pesar certas práticas ocidentais contra modos indígenas de manejo da vida. Um dos elementos nada secundários desse exercício é o papel do Estado em forjar políticas que afetam diretamente a sobrevivência dos povos indígenas. Infalivelmente, elas propõem planos globais mirabolantes para satisfazer o Mercado, seja no modo capitalista ou não. O resultado é o mesmo: um planeta em queda livre para a Menina sanumá, aldeia de Auaris, ruína. 1969 Neste exercício, sigo a sugestão de Ruth Levitas (2013) e uso a noção de utopia como uma espécie de método que nos permite estabelecer contrastes para realçar alguns traços indígenas que são especialmente caros à minha experiência na Amazônia. Volto a esses traços na última seção deste trabalho. O que vou dizer agora pode parecer um exercício em maniqueísmo — um jogo de mocinho e bandido em meio ao 78 tiroteio para destruir o planeta —, mas essa não é minha intenção. Comparar realidades indígenas e utopias ocidentais é o meu modo de, primeiro, ponderar sobre a exaustão e eventual colapso do modelo estatal como organizador da vida coletiva e, segundo, reconhecer cada vez mais os méritos dos modos indígenas de viver. Durante muito tempo, confinei minha vivência com os Sanumá ao nicho etnográfico da paisagem acadêmica da antropologia. As lições que aprendi com aqueles Yanomami do Norte provocavam-me apenas estímulos pessoais e profissionais e um desejo de emular meus anfitriões em contextos pós campo. Só muito recentemente, percebi o potencial das lições indígenas para imaginarmos alternativas da vida humana como um todo. Perturba-me ver o enorme acervo etnográfico que a antropologia acumulou em menos de dois séculos juntando poeira nas estantes da disciplina, com sua exagerada especialização e crescente irrelevância. É uma cornucópia de diversidade quase esquecida das novas gerações e virtualmente desconhecida do grande público. Portanto, não nos deve surpreender que os leigos comumente vejam os indígenas como exóticos e folclóricos, arcaicos remanescentes de eras passadas. Quanto a nós, antropólogos, supostamente “especialistas” em estudos indígenas, é inadmissível sermos refratários à pletora de possibilidades advindas dos anfitriões de nossas pesquisas de campo durante meses ou anos a fio. Foi com a leitura cuidadosa de anarquistas contemporâneos, como James Scott e David Graeber, que expõem a falácia do Estado democrático e corrigem a origem convencional da democracia (Graeber, 2007), que sacudi meus vícios acadêmicos e rasurei, ao menos em parte, uma série de ideias recebidas de professores míopes. A partir de então, comecei a perceber o 79 valor da etnografia como fonte de inspiração para imaginar, ou sonhar, com uma outra maneira de conduzir a vida coletiva sem o peso do Estado. Em suma, comecei a ver o mundo indígena como um tipo de utopia capaz de nos mover a pensar numa recomposição social do nosso próprio tecido sociopolítico. No entanto, o que significa investir em tal recomposição? Quão fundo temos que ir no coração da vida indígena para chegar ao conhecimento necessário para conduzir povos não indígenas (os ditos brancos em linguagem comum) a refletir sobre seu mundo de maneira crítica e esclarecida? Por que, afinal, os brancos estão agora nos apuros que eles mesmos criaram? Com a astúcia habitual, diz Ailton Krenak: “Tem quinhentos anos que os índios estão resistindo, eu estou preocupado é com os brancos, como que vão fazer para escapar dessa” (Krenak, 2019: 31; Danowski & Viveiros de Castro 2015). Alguns desesperados que buscam conforto recuperando bens comuns vandalizados em mercados mundo a fora aferram-se à ideia em voga do bem viver. Adotam-na e adaptam-na como querem e propõem incluí-la numa Declaração Universal do Bem Comum da Humanidade nas Nações Unidas (Daiber & Houtart; 2012). Chegam a usá-la como plataforma para políticas estatais (Acosta, 2019) como panaceia para os desmandos do Mercado (Acosta & Brand, 2018; Solón, 2019). Tudo isso seria meritório se esses autores tomassem a noção de bem viver na sua totalidade, no seu sentido cultural profundo, em vez de retalhála numa versão depauperada, mercantilizada, tirada de seu contexto. No afã de livrar o capitalismo de seus piores efeitos, apropriam-se de um conceito cuja profundidade mal parecem perceber. A proliferação do bem viver pelas “comunidades epistêmicas” (Cuestas-Caza, 2018: 51-52) tem levado intelectuais indígenas a apontar alguns equívocos. Armando Muyolema, 80 professor quíchua do Equador, freia tal entusiasmo com uma advertência pertinente. Explica que bem viver é usado como parte inextricável do substrato cultural que lhe dá sentido e não deve ser separado dele (cf. Cubillo-Guevara, 2016; Quick & Spartz, 2018). Além disso, central a bem viver ‒ tradução pobre e precipitada do conceito andino de Sumak Kawsay ‒ há um outro termo, na verdade, um preceito: minga ou minka (traduzível por mutirão). Forasteiros não percebem imediatamente a profundidade desse conceito. Ao traduzi-lo simplesmente como bem viver, perdem sua potência (Cuestas-Caza, 2018). Muyolema critica quem usa Sumak Kawsay de maneira leviana, pois é impossível entender bem viver sem minga. Um etnógrafo competente deveria captar profundidades desse tipo. No entanto, ao se tentar traduzir o conceito para uma língua dominante, perde-se a essência de seu significado, pois uma tradução raramente alcança o núcleo mais íntimo da cultura que o gera. Por isso, quando for importante disseminar a saberia indígena, nada substitui etnografias produzidas por etnógrafos indígenas (Ramos, 2008). Voltando a Muyolema, diz ele: “o que chama a atenção do uso e disseminação desta categoria… é o escasso desenvolvimento conceitual referente às suas fontes culturais e linguísticas e à práxis social que descreve e à qual se relaciona”. Afirma que “sumak kawsay se refere a 301 ‘estados de coisas’ ou a um ‘projeto político’ que busca alcançar uma vida plena (um estado de coisas harmônico e equilibrado)”. Esses princípios estão codificados na linguagem e incluem, “por exemplo, noções de solidariedade, de transformação social, de reciprocidade, de pobreza e riqueza, de relação com o meio ambiente, de relação com a experiência e o tempo, da pessoa e do coletivo” (Muyolema, 2012: 301-302). Esses princípios 81 compõem a instituição da minga. Para entendermos melhor quão central é a noção de minga ou minka, não apenas nos Andes, mas por todo o mundo indígena das Américas, cito novamente Armando Muyolema. [Minka] designa trabalho coletivo, mas não qualquer trabalho coletivo. É aquele feito como um ato de solidariedade, seja para uma pessoa, uma família ou uma comunidade maior. Comunidade e individualidade incluem a relação com o lugar e com outras formas de vida… Tampouco se trata de qualquer tipo de solidariedade: a prática da minka vai além do sentido de solidariedade entendida como uma adesão momentânea à causa de outrem. Pelo contrário, o ato de cuidar de algo implica responsabilidade de velar, uma responsabilidade que tem sentido na construção do social, como numa relação e interação que transcende o humano… Minka envolve uma responsabilidade normativa e continua, que advém de se cuidar de algo ou de alguém como um modo permanente de coexistência (Muyolema, 2012: 303). Como um fato social total maussiano, minga “é uma instituição que articula o social com o econômico, o ritual com o político, o pessoal com o coletivo” (Muyolema, 2012: 305). Se os fãs brancos do bem viver desconhecerem essa profunda realidade indígena, conclui Muyolema, o conceito de sumak kawsay “corre o risco de acabar domesticado e reduzido à sua dimensão estética, submerso no simbolismo capitalista da democracia cultural” (Muyolema, 2012: 306). Minha própria experiência de viver junto aos Yanomami abriu-me portas para outros modos de ser. Por exemplo, como 82 criar filhos sem castigos físicos ou como se zangar sem extravasar a raiva para outras pessoas. Também importante é sublinhar a profundidade semântica do conceito uli a na língua sanumá ou urihi em outras línguas yanomami. Uli a/Urihi significa floresta, país, lar, suporte vital. Ao tentar transmitir essa noção numa de nossas línguas indo-europeias, entramos em longas discussões quase filosóficas que confundem mais do que esclarecem. A maneira descuidada e blasé com que muitos estrangeiros tratam a profundidade intelectual e ética de conceitos indígenas beira o que Jack Goody (2006), muito apropriadamente, chamou de roubo da história, ao se referir ao hábito milenar do Ocidente de tomar como suas as invenções e filosofias de outros povos. Ou como esses forasteiros, pragmáticos e rudes, procuram, encontram e louvam o conhecimento científico dos indígenas, mas descartam suas “crenças” como meros ornamentos sem valor de mercado (Ramos, 2006). É comum encontrá-los no submundo da biopirataria. Portanto, é importante reforçar a posição de Muyolema de que tão ou mais importante do que a “transculturação de objetos, de ideias, de modos de vida… é a capacidade de ouvir e aprender de outrem” (Muyolema, 2012: 307). Esta discussão nos revela o valor potencial das lições indígenas para nos alertar contra distopias e considerar modos de vida alternativos. Exploremos brevemente trabalhos dedicados à problemática do que significa viver fora do domínio do Estado e o valor da autonomia. 83 Povo sem Estado Em seu premiado livro The art of not being governed, James Scott toma a vasta região do Sul Asiático identificado como Zomia para ilustrar o que é a vida além do Estado. Zomia ocupa as zonas de fronteira de seis país (Índia, China, Birmânia, Camboja, Vietnã, Laos e Tailândia). Inspirado em Pierre Clastres, Edmund Leach e Gonzalo Aguirre-Beltrán, entre outros, Scott identifica uma formação sociopolítica baseada nos princípios do associacionismo, consenso e persuasão como mecanismos de controle social, além de parcimônia econômica e ambiental. Os habitantes de Zomia, afirma Scott, cultivam relações comerciais com os centros estatais circundantes, mas mantêm uma distância segura para não serem “politicamente capturados” (Scott, 2009: 8). O imenso conjunto de povos móveis com muitas línguas e culturas distintas conseguiu por muito tempo escapar do jugo do Estado. Neste como em outros livros, o esforço analítico do autor é demonstrar que o regime rígido e impessoal da governança estatal gera conflitos internos, que levam à procura de modelos alternativos. Essas alternativas são, geralmente, mais compatíveis com a escala humana de viver em sociedade. “Viver dentro de um Estado significava, virtualmente por definição, impostos, recrutamento militar, trabalho servil e, para a maioria, servidão” (Scott, 2009: 7; ver Gelderloos, 2016). Isto me lembra o povo mura no Brasil colonial, alvo de uma interminável caçada humana pelos militares que, ao classificá-los de “nômades”, justificavam-se por persegui-los. A partir daí “nomadismo” passou a ser considerado crime contra a soberania nacional. Tidos como inconquistáveis, os “nômades” mura estavam em todos os lugares, ou seja, em lugar 84 nenhum, portanto, desafiando o controle estatal. Tornaram-se um sério problema que frustrava os poderes coloniais (Amoroso 1992; Ramos 1995: 36-37). Como os habitantes de Zomia, os Mura resistiram bravamente à incorporação do Estado, não por defender “um lugar no mapa, mas por uma posição vis-à-vis o poder” (Scott, 2009: 162). Poderíamos dizer o mesmo sobre os insurgentes da Cabanagem da Amazônia no século XIX, que lutaram contra as forças imperiais, perderam batalhas militares, mas, se observarmos com cuidado a análise de Mark Harris (2010), conseguiram preservar a maior parte de seus modos de vida até hoje. Em suma, perderam vidas e espaços, mas não sua “posição vis-à-vis o poder”, o seu modo de vida próprio, ou seja, seu bem viver, como se diz atualmente. Percebo a insurreição da Cabanagem como um gigantesco movimento regional de negros, índios e mestiços para mostrar ao Estado que seu mundo amazônico descentralizado, associativo, veio para ficar. Seria como uma Zomia à brasileira. Quando menciono os méri tos da descentralização, da autonomia de povos e comunidades tradicionais, comparando com as limitações impostas pelo Estado, vem à tona a questão da escala. Um país de dimensões continentais como o Brasil precisaria do controle estatal para ser governável, é o argumento apresentado. Pergunto por quê. Sabemos muito bem que a população brasileira está longe de ser homogênea. Sem falar de sociedades indígenas e quilombolas ‒ a epítome da diversidade interna do país ‒, o território nacional está totalmente coberto por uma vasta gama de estilos de vida diversos. Juntar toda essa diversidade humana sob o comando de um punhado de indivíduos discrepantes que raramente contribuem para o bem comum é tão arbitrário quanto a divisão do país em estados e municípios com limites escolhidos 85 ao acaso, por vezes, a esmo. O Brasil Profundo (espelhado no México Profundo de Bonfil Batalla, 1990) segue uma lógica bem distinta da do Estado monolítico, monopolista. Com seus partidos políticos em frangalhos e crises constantes de governabilidade, o Estado reduz a cidadania a um refém inerte à mercê dos caprichos do sistema eleitoral e de líderes autoritários. Como astutamente apontou o saudoso José Murilo de Carvalho (2001, 2002), no Brasil não haveria cidadania, mas estadania. Em tese, nada impediria a diversidade humana do país de seguir outros princípios organizativos, por exemplo, um tipo de confederação coordenada por um corpo de conselheiros legítimos, sem prerrogativas pessoais, na tomada de decisões. No lugar da atual escala pantagruélica do Estado, tão grande que os seres humanos praticamente desaparecem, engolidos por sua máquina desengonçada, teríamos outro tipo de arranjo, mais aos moldes da vida social. Sonho? Sim, talvez, mas os sonhos são muito bons para desafiar ideias fixas. Contra a artificialidade de um Estado unitário e centralizado, a realidade social brasileira parece aumentar sua diversidade e dar sinais, ainda que tímidos, de começar a privilegiar equivalências em vez das desigualdades históricas. O trabalho excepcional do antropólogo Alfredo Wagner sobre cartografias sociais nos mostra claramente a dimensão da diversidade humana no Brasil. Em especial seu projeto sobre Nova Cartografia Social da Amazônia focaliza processos de retomada de terras por comunidades dedicadas a reafirmar suas identidades coletivas. Essas identidades são nomeadas por lugares, atividades, origem étnica, tais como ribeirinhos, seringueiros, coletores de piaçaba, pescadores artesanais, coletores da castanha, quilombolas, indígenas, toda uma gama de homens e mulheres organizados de formas próprias e 86 mobilizados politicamente na defesa de seus direitos e da preservação do meio ambiente (Wagner, 2013). Tal diversidade social não se limita à Amazônia. O próprio Wagner organizou um volume sobre comunidades de faxinais no Sul do país, mostrando que a instituição da minka não está restrita aos Andes (Wagner, 2009) e que o território brasileiro inteiro transborda de diversidade humana, infelizmente, escondida do olhar nacional pelo desinteresse secular do Estado-nação. Utopias são boas para sonhar Ella está en el horizonte… Me acerco dos pasos, ella se aleja dos pasos. Camino diez pasos y el horizonte se corre diez pasos más allá. Por mucho que yo camine, nunca la alcanzaré. ¿Para qué sirve la utopía? Para eso sirve: para caminar. Pensamentos expostos em Palabras andantes do escritor uruguaio Eduardo Galeano, eles resumem o exercício aparentemente fútil de perseguir utopias. No entanto, seu remate dá o tom do presente texto: caminhar pelas trilhas indígenas com olhos bem abertos para sinais de sabedoria e resiliência, como uma bisbilhotice metodológica que nos aguce o sentido de deslocamento do mundo em que vivemos. Sigo, pois, os passos ilusórios de Galeano pelo emaranhado dos utopistas euro-americanos, cujo sentido agudo de deslocamento desencadeou uma quantidade de fantasias dignas de menção. A longo prazo, seus sonhos se tornaram bons para 87 ousarmos pensar no World Otherwise. Com Layla Martínez, podemos arriscar: “Sí hay futuro, y tenemos que escribirlo”. A verdadeira avalanche de textos escritos sobre utopia explica minha timidez ao abordar este assunto. No entanto, é preciso mirá-los, ainda que de soslaio e com extrema brevidade, para refletir sobre “políticas indigenistas” no sentido mais amplo possível. Ao me referir a Realidades indígenas, Utopias brancas, chamo a atenção para a ideia de que o que é utópico para os brancos, aturdidos pela opressão do Estado, é rotina para a maioria dos povos indígenas. Autores de utopias criaram fantasias sobre lugares deliciosamente opostos aos seus. Tão deliciosos e perfeitos eram eles que mereceram um nome próprio: utopia, o não lugar, um espaço aporético de existência impossível. Thomas Morus ([1516] 1992) imagina a Ilha Utopia como o exato oposto da Inglaterra do século XVI oprimida sob Henrique VIII que, aliás, mandou executar o autor. William Morris, outro inglês, caiu no sono depois de uma reunião extenuante da Liga Socialista e acordou “numa sociedade futura baseada na propriedade comum e no controle democrático dos meios de produção” ([1890] 2018). O norte-americano Edward Bellamy ([1888] 2016) compõe seu enredo de ficção científica onde o herói, um jornalista, também cai num sono hipnótico e acorda 113 anos depois. Enquanto dorme, no ano 2000, os Estados Unidos se metamorfoseiam em utopia socialista! Por sua vez, Henry David Thoreau ([1845] 2004), outro norteamericano, rebelou-se contra as armadilhas da sociedade industrial e se refugiou na sua idealizada Walden, afastado de toda interação humana, enterrado nas profundezas de sua própria individualidade, cercado pela alardeada “natureza”. Devemos-lhe a noção de desobediência civil. 88 É longa a lista de descontentes e visionários, como nos lembram vários observadores: Ángel Cappelletti (1966), Ruth Levitas (1990, 2013), Gregory Claeys (2013), Manuela Aguilera (2014), dentre muitos outros. Francis Wolff (2017), que concentra o olhar nas utopias políticas, afirma que hoje, em vez de sonhar eternamente com o Bem, as utopias passaram a ser uma luta indefinida contra o Mal. Todos esses autores tentaram alcançar um regard eloigné, um olhar distanciado, imaginando lugares e situações diametralmente opostos àqueles em que viveram e sofreram. Thomas Morus inventou o não lugar, talvez inspirado nas notícias que chegavam do recém-descoberto “Novo Mundo”. Como diz María Isabel Navarro (2016: 2), é “a existência de uma geografia desconhecida na qual habitam comunidades humanas recém descobertas que engendra um diagnóstico do mundo conhecido em chave ahistórica…”. A leitura de Jean-Jacques Rousseau sobre os Tupinambá da costa brasileira provocou em Morus a urgência de produzir um retrato dos anciens regimes europeus absolutamente crítico e condenatório. Por boas razões. O próprio Rousseau, menos sonhador, mas não mais realista, manifestou-se de maneira surpreendentemente contemporânea. Eu quisera escolher para mim uma pátria desviada, por uma feliz impossibilidade, do feroz amor das conquistas e preservada, por uma posição ainda mais feliz, do temor de tornar-se a conquista de outro Estado; uma cidade livre, colocada entre muitos povos, nenhum dos quais tivesse interesse em invadi-la e cada um dos quais tivesse interesse em impedir que outros a invadissem; uma república, em uma palavra, que não fosse tentada pela ambição 89 dos seus vizinhos e pudesse razoavelmente contar com o socorro destes quando necessário. Conclui-se daí que, em posição tão feliz, ela não teria que temer senão a si mesma, e que, se os seus cidadãos fossem exercitados nas armas, seria antes para entreter entre eles o ardor guerreiro e a altivez de coragem, que ficam tão bem à liberdade e que nutrem o gosto dela, do que pela necessidade de assegurar a própria defesa (Rousseau, 1753: 4-5). Enquanto escritores utopistas inventavam ideais não existentes por falta de realidades no seu campo de visão, nós, etnógrafos, não precisamos criar mundos imaginários, pois temos o privilégio de encontrá-los concretamente nas nossas pesquisas de campo. Na seca, o Rio Auaris é um parque de diversões 90 As utopias são fantásticas? Já que nós, etnógrafos, temos contatos imediatos com a alteridade e nos expomos a experiências vivas, concretas com o que poderíamos chamar de nossa própria utopia, o que estamos esperando? De fato, deveríamos considerar as sociedades indígenas não como utopias, mas como topoi (‘lugares comuns’), pois são bastante reais. Aliás, a noção de topos é um lugar privilegiado para começarmos uma conversa sobre o assunto. Os mundos indígenas tornam-se utópicos quando projetados sobre situações contrastantes, quando são convertidos em modelos improváveis, se não impossíveis de ser postos em prática. No entanto, dispomos de uma pletora de materiais etnográficos esperando para ser analisados com instrumentos antropológicos e com visões de longo alcance. Com razão, Ruth Levitas (2013) considera utopia um método para ensaiar a reconstituição das sociedades ocidentais. A estas alturas, já está claro que não me dirijo a utopias políticas no sentido explorado, por exemplo, por Russell Jacoby (1999) e a Escola de Frankfurt. Além da tremenda complexidade dessa província intelectual que não domino, eu me afasto do seu viés ocidental. Tampouco sigo o caminho da ficção científica, como Ray Bradbury e Ursula Le Guin, por mais que aprecie sua imaginação. Em vez disso, privilegio autores mais próximos, como, por exemplo, o equatoriano Armando Muyolema (2012) e a boliviana Silvia Rivera Cusicanqui (2018). Confio no meu treinamento antropológico para focalizar a alteridade como um espelho. Baseada no meu trabalho de campo entre os Sanumá, os Yanomami mais setentrionais do Brasil, tento mapear algumas facetas que me parecem especialmente relevantes para contrastar modelos indígenas com modelos brancos na arte de 91 manejar o mundo. Desse rico arquivo cultural, seleciono quatro elementos que demonstram uma sabedoria cultural que faria muito bem ao Ocidente. É uma escolha limitada e arbitrária, mas suficiente para o que quero demonstrar. Não sigo nenhuma ordem em particular, mas, em geral, vai do mais íntimo ao mais público. Criação dos filhos. Durante os 23 meses da minha primeira estada em aldeias sanumá, nunca vi ou ouvi crianças serem punidas fisicamente, mas observei o efeito de uma reprimenda cochichada de uma mãe provocar uma explosão de choro no filho. No campo, sempre admirei a paciência dos pais em lidar com as piores birras dos filhos (Ramos, 1995: 5). Nesse aspecto, os Sanumá não são exceção no mundo indígena. Eles apenas seguem uma ética muito divulgada de como lidar com crianças, consideradas não como seres humanos incompletos, mas como, digamos, pré adultos. Nada de linguagem infantilizada, nada de indústria de brinquedos que prolonga a infância até a adolescência (e muitas vezes além), nada de contextos proibidos, nada de assuntos impróprios para crianças. Nem mesmo a relativa novidade das escolas segregaas do resto da comunidade. A total participação na vida diária poupa as crianças sanumá de muitos problemas sociais e psicológicos que atormentam muitos pais brancos. Sua criação não depende exclusivamente de pai e mãe, com suas personalidades muitas vezes incompatíveis, uma vez que os parentes em volta partilham normalmente dessa tarefa. As crianças nunca ficam sozinhas na aldeia enquanto os adultos saem para os seus afazeres. Há sempre um adulto de plantão, nem que seja a própria etnógrafa. 92 Tal cenário é radicalmente distinto daquele descrito por Bauman e Mazzeo sobre crianças ocidentais contemporâneas, cujos pais estão muito ausentes de casa. Os chamados ‘meninos da chave’ (latchkey kids, com a chave da casa pendurada ao pescoço) vivendo num lar geralmente vazio de adultos (um setor sempre crescente de crianças americanas) são grandes candidatos a desenvolver o que Hochschild chama de ‘egos terceirizados’, como uma colcha-deretalhos com uma composição frouxa de serviços (na maior parte compráveis) oferecidos por peritos conselheiros especializados em, virtualmente, qualquer aspecto da vida (Bauman & Mazzeo, 2016: 37). Será que as crianças sanumá se tornam melhores adultos do que as crianças brancas em suas respectivas sociedades? Se tomarmos como medida os dados sobre problemas psicológicos e criminalidade em ambos os tipos de sociedade, a resposta talvez seja por demais óbvia para merecer mais comentários. Persuasão. De novo, o modo como os Sanumá conduzem sua vida política não é excepcional no universo indígena. Seu regime de persuasão difere drasticamente da política de coerção dos brancos. Persuasão é o clássico modo indígena de exercer poder. Sem leis impessoais que reforcem a conformidade, o líder de aldeia precisa persuadir as pessoas a agir (Kracke, 1978). “O poder de convencer emana da experiência vivida transformada em autoridade para persuadir as pessoas a tomar decisões e desempenhar ações coletivas” 93 (Ramos, 2015: 66). Não é por acaso que as sociedades indígenas valorizam tanto as habilidades oratórias de um líder. A persuasão é domínio da oralidade por excelência, oralidade que faz, como diria J. L. Austin em suas famosas conferências publicadas em 1962 como How to do things with words. Junto à persuasão está a noção de consenso. Ao contrário das expectativas do senso comum, o consenso não implica, obrigatoriamente, harmonia. Em situações tensas, chegar ao consenso pode levar a longos debates que, por sua vez, podem provocar mais animosidade. Disputas sérias podem levar dias inteiros antes de se chegar ao consenso. Podemos mesmo dizer que quanto maior a disputa, mais longo será o processo consensual (Ramos, 2015). O consenso faz parte de um modelo político para resolver problemas e nada tem a ver com fantasias sobre comunismo primitivo ou harmonia da vida pristina. É uma alternativa à controversa eleição pelo voto. Dentre outros traços pseudodemocráticos, a exclusão do perdedor em eleições e a impessoalidade do sigilo do voto são totalmente incompatíveis com os sistemas indígenas de tomada de decisões. Juntos, persuasão e consenso estão na raiz da democracia propriamente dita. Não é um legado grego, mas o apanágio de comunidades politicamente autônomas (Graeber, 2007), ocupando espaços que fogem ao controle do Estado. Novamente, a questão de escala traz um tema espinhoso. É difícil imaginar como países grandes como o Brasil, com mais de 200 milhões de pessoas, poderiam adotar o consenso como uma regra política. Até que ponto poderia um Estado centralizado observar os requisitos do consenso universal? (Ramos, 2015). É um tema que ultrapassa muito o espaço e as intenções deste texto, mas que merece atenção analítica. 94 Comuns. Uma das piores tragédias na história europeia foi a implantação de sistema fundiário conhecido como enclosures (cercamentos), que chegou ao auge no século XIX. Por ele, as terras de uso comum passaram a ser propriedade privada. Vigente já no século XVII, esse sistema foi criticado por Thomas Morus em seu livro Utopia. Foi um dispositivo calculado para produzir pobreza extrema que viesse alimentar com mão de obra as primeiras máquinas que deslancharam a Revolução Industrial. A vida rural nunca mais foi a mesma. A perda de terras comuns afetou os camponeses de maneira não muito diferente da perda de terras tradicionais pelos povos indígenas das Américas. A motivação foi um pouco distinta, mas o efeito foi o mesmo: enriquecer os ricos produzindo pobres onde antes não os havia. A ideologia do destino manifesto proclamada por povoadores, exércitos, missionários e outros usurpadores fez tanto mal aos habitantes de Abya Yala quanto os micróbios europeus que os consumiram. Não é exagero! Em nome do impulso conquistador sem princípios, os brancos roubaram o suporte vital dos povos indígenas, deixando-os, como aos camponeses britânicos sem terras comuns, na situação de escolher entre morrer e vender seus corpos como força de trabalho. A noção de propriedade privada da terra é contrária às ideias indígenas e não poderia ser-lhes mais estranha. Simplesmente, não faz sentido. Com extraordinária habilidade etnográfica, Keith Basso acompanhou seus anfitriões Apache Ocidentais numa excursão durante a qual, em conversa normal, ele descobriu que seu conhecimento histórico está profundamente entranhado em topônimos ligados à fabricação de lugares. Como uma máquina 95 do tempo discursiva, nomes de lugares referem-se a “lugares tornados memoráveis … por acontecimentos de muito tempo atrás, quando os ancestrais distantes dessas pessoas se assentavam no país” (Basso, 1996: 8), talvez há centenas ou milhares de anos. Assim, os Apache retêm uma longa diacronia de seus territórios, porque sua memória coletiva e sua terra coletiva estão juntas. Os povos indígenas contemporâneos da Amazônia herdaram de seus ancestrais a perícia de preservar a floresta e explorá-la ao mesmo tempo, sem falar que, ao assim fazerem, eles construíram a floresta, como demonstram a etnografia (Balée, 2013) e as novas descobertas da arqueologia (Neves, 2022, Fausto & Neves, 2018). Aldeias e roças pertencem a quem as ocupa. Ao se mudarem, deixam a terra livre para quem quiser tomá-la, ou melhor, tomá-la emprestada. Um engenhoso sistema de pousio evita que o solo se exaure e ainda conserve produtos de ciclo longo, como a palmeira pupunheira. Em suma, os povos indígenas, velhos habitantes da Amazônia, sabem, exatamente, como tratar a floresta tropical, aquele “inferno verde” dos piores pesadelos do homem branco. A terra, recurso natural estreitamente ligado à vida social como um todo, não pode e não deve ser objeto de propriedade individual, privada. A atitude dos não indígenas para com a terra é uma aberração, continua a intrigar muitos povos indígenas e começa a alarmar muitos ocidentais sob a égide do Aquecimento Global. Emulando, direta ou indiretamente, a sabedoria milenar indígena, o movimento contemporâneo mundial conhecido como Commons, como tantas outras tentativas de restaurar a sanidade do Ocidente, assume o risco de enfrentar “encontros desagradáveis com o poder do duo 96 Mercado/Estado” (Bollier, 2014: 5). É um risco calculado em face do assombroso prospecto de catástrofes universais. Guerra. Chamar as escaramuças indígenas de guerra é, data venia, um capitis diminutio e uma injustiça nada poética. É um impropério que ofusca as diferenças radicais entre os assassinatos autorizados das civilizações orientais e ocidentais e as incursões em terras indígenas por povos indígenas com a sua modesta potência para matar. A quantidade de vítimas não é o mais importante. Guerras “civilizadas” têm por objetivo exterminar ao máximo o inimigo e deixar os derrotados num estado de ruína e humilhação. Nada disso se aplica às incursões indígenas. Há rivalidade? Sim. Há mortos? Sim. Pode até haver uma certa glorificação passageira dos vencedores. Mas extermínio, nunca. Táticas de terra arrasada, nunca. Lembremos dos Tupinambá, notórios por seus guerreiros na costa brasileira do século XVI. Apesar da reputação histórica, suas conquistas guerreiras eram bem moderadas, apesar da fanfarra. Matar apenas um homem ou tomar apenas um cativo era suficiente para satisfazer os requisitos de um jovem para entrar na idade adulto e se casar (Fernandes, 1963). Enquanto Florestan Fernandes analisava a sociedade tupinambá com base nos cronistas do século XVI que buscavam o significado daquela belicosidade, Napoleon Chagnon, um antropólogo norte-americano convertido à sociobiologia aplicada aos Yanomami, reconhecia que “a guerra yanomamö propriamente dita é a incursão, raid” (Chagnon, 1968: 118). Chagnon alega que os “guerreiros” yanomami se empenham em matar inimigos em incursões cuidadosamente planejadas. No entanto, “em menos de cinco horas, o primeiro atacante voltava… reclamando de dor no pé” (Chagnon, 1968: 130). Ao 97 fim e ao cabo, os homens yanomami contentam-se com bravatas verbais. Muitas vezes, a violência declarada concretizase como brincadeira de mau gosto. A isso se resume a ferocidade yanomami tão decantada nos escritos de Chagnon. Quando os Yanomami da aldeia de Haximu, na fronteira entre Brasil e Venezuela, em visita a outra aldeia distante, deixaram os velhos, algumas mulheres e criancinhas no acampamento de verão, assim fizeram porque nunca poderiam imaginar que seres humanos fossem capazes de atacar e matar mulheres e crianças. Por isso, ficaram assombrados, sem compreender por que um grupo de garimpeiros invadiu o acampamento e massacrou dezesseis pessoas, todas indefesas (Albert, 2001). A ética guerreira que os protegera até então sucumbiu com aquela ação selvagem inimaginável. Atividades guerreiras envolvem um complexo sistema de comunicação em que as partes precisam umas das outras para manter a sociabilidade. Num artigo curto de 1942, Claude Lévi-Strauss apresenta uma análise sagaz, tomando guerra e troca como duas faces da mesma moeda. Impressionado com a facilidade com que os Nambiquara passavam da agressão à cooperação, afirmou: “As trocas comerciais representam guerras potenciais, pacificamente resolvidas; e as guerras são o resultado de transações malsucedidas”. Fenômeno comum entre povos das Américas, “a guerra e o comércio constituem atividades que dificilmente se conseguirá estudar isoladamente” (Lévi-Strauss, 1942: 143). Esses exemplos confirmam que aniquilar inimigos não é nem prático nem desejável, pois a continuidade das relações extra aldeias depende dessas negociações, mesmo sob a aparência de atos destrutivos. A lacuna invencível entre as 98 atitudes indígenas e “civilizadas” com relação aos inimigos é um lembrete sombrio da tragédia do Ocidente. Finalmente... Depois de passar dois anos em intenso contato com os Sanumá e um posterior exílio voluntário, cheguei à melancólica conclusão de que o modelo estatal não é uma solução afável para o ser humano. Na verdade, senti um choque cultural ao contrário. Ser exposta ao funcionamento de mundos indígenas e confiar na força de suas tradições e conhecimento intensificou minha aversão por viver em permanente estado de exceção, sempre sob o risco da volta de governantes totalitários (Agamben, 2005). Enfrentar intermináveis atos contra a cidadania, conviver com desigualdade e injustiça endêmicas e a eterna quebra de princípios corrói a confiança que todo cidadão deveria ter no seu próprio país. Não tenho ilusões sobre a invulnerabilidade das sociedades indígenas a desmandos, mesmo porque testemunhei certos episódios em contrário. No entanto, a abstração impessoal do que foi chamado, de maneira imprecisa, de comunidades imaginadas, transforma ânimos e rusgas passageiros num padrão fixo de “primitivismo”, simplesmente, pela força do hábito. Aqui, sem escusas, faço minhas as palavras de Rousseau (1753: 10): “Comecei alguns raciocínios, arrisquei algumas conjecturas, menos na esperança de resolver a questão do que na intenção de a esclarecer e de a reduzir ao seu verdadeiro estado”. Mais próximo no tempo, no espaço e no espírito, as sábias palavras de Gersem Baniwa acendem meu entusiasmo pela possibilidade de transformar utopias em realidade para todos. 99 Considero a antropologia como uma lente multifocal, multidimensional e multicósmica que possibilita ao indígena enxergar coisas que a própria antropologia não consegue ou não quer enxergar, porque este dispõe de outras formas, propósitos e ângulos para enxergar. Neste sentido, a antropologia pode oferecer aos indígenas um bem precioso e complexo que é o conhecimento sobre o mundo do branco (Baniwa, 2015: 234). Há décadas sendo inundada de realidades indígenas, venho absorvendo um mundo de inquestionável sabedoria, mas relegado a uma espécie de nicho selvagem, o famoso savage slot de Trouillot (1991). Agora, finalmente, dou-me conta de quanto precisamos dessas realidades para a nossa própria sobrevivência moral, se não física. Afinal, utopias são boas para pensarmos e nos indignarmos. Como Mario Benedetti expressou no YouTube, Cómo voy a creer/ dijo el fulano que el mundo se quedó sin utopías… E como reforçou José Mujica, igualmente no YouTube, No me quiten la utopía! 100 Por una antropología universal: vislumbrando diálogos entre teorías nativas y académicas [2010] Lo que voy a decir es más una provocación que una demostración y resulta de una incomodidad que he sentido últimamente sobre los rumbos de la etnología indígena. La mayoría de los teóricos más ambiciosos de la antropología se destacó por su habilidad de tomar los preceptos nativos locales, alrededor del mundo, Cesta Yanomami como materia prima para construir grandes esquemas descriptivos o explicativos a gran escala. Cada teoría recogida en sociedades indígenas se transformaba así en algo distinto a la suma de sus partes, lo cual relegaba cada mundo nativo específico al anonimato del “dato etnográfico”. Así ocurrió, por ejemplo, con el evolucionismo y el estructuralismo, y la tendencia continúa como puede percibirse en muchos de los estudios sobre la Amazonía indígena. Digo la mayoría de los teóricos porque siempre hay excepciones redentoras. Pensemos, por ejemplo, en Evans- 101 Pritchard cuando, intrigado con la extensión del fenómeno de la brujería entre los Azande, llegó a la conclusión de que se trataba nada más ni nada menos que de una teoría del conocimiento que tomaba la causalidad de manera mucho más satisfactoria, socialmente hablando, de que, por ejemplo, la teoría occidental de la probabilidad. Al contrario de esta última que deja un residuo de indefinición sobre causas y efectos, la teoría Zande explica los infortunios en su totalidad. No obstante, aunque Evans-Pritchard haya abierto esa puerta tan promisoria, ni él ni nadie más siguió ese camino hasta las últimas consecuencias. Y, preguntémonos, ¿cuáles serían esas consecuencias? Parece que la respuesta más interesante sería la de tomar teorías como la de los Azande como epistemologías intelectualmente equiparadas a las occidentales, o sea, acogerlas como socias plenas de las teorías académicas, en igualdad de condiciones intelectuales, evitando, así, que las teorías nativas queden sumergidas bajo las académicas como ha hecho la tradición antropológica. La antropología ha ampliado mucho los horizontes de la comprensión interétnica, pero también ha creado puntos ciegos que nos impiden ir más allá de las ideas recibidas de la tradición de la disciplina. Tales ideas han sido responsables por un lamentable acomodamiento que a veces es perezoso, otras veces insidioso, comenzando por el propio vocabulario de la etnología corriente. Tomemos, por ejemplo, términos como mito. Este término no tiene neutralidad semántica y hace parte del lenguaje común compartido por antropólogos y no antropólogos. Justamente, es por usar ese lenguaje común que nuestros escritos pueden ser leídos por no especialistas. Pero por ser leídos no quiere decir que sean comprendidos en el 102 sentido que los autores le quieren dar. Y ahí es donde está el problema. ¿Y qué decir de canibalismo? ¿Y de “predación”, muy utilizado por los adeptos del perspectivismo? Además de los riesgos políticos que ese término acarrea para los indios, la insistencia en el concepto de “predación” les atribuye cualidades que no son adecuadamente demostradas por los análisis antropológicos corrientes. Es más un artificio discursivo que una demostración empírica. Otro concepto problemático es cosmología. El canon que Lévi-Strauss inauguró con el concepto de “ciencia de lo concreto”, cuyo aparente objetivo era elevar el conocimiento indígena al nivel de la ciencia, de hecho, termina rebajándolo a una posición infra-científica. El resultado es que los indios tienen ciencia de lo concreto, pensamiento mítico-místico, cosmología etc., mientras nosotros tenemos hipótesis, proposiciones y teorías, o sea, todo un aparato epistemológico supuestamente tan eficaz que nos lleva a creer que somos omniscientes, capaces de alcanzar y comprender los rincones más íntimos de los “sistemas cosmológicos” en cualquier lugar del mundo. Esa falta de humildad y autocrítica, aunque pueda ser inconsciente, no es del todo inocente. Además de eso, ha creado puntos ciegos en muchas investigaciones y limita el potencial de la actividad antropológica. Por un lado, es muy incómodo enfrentar indígenas que nos desafían en nuestra capacidad interpretativa sobre sus mundos. No son pocos los escenarios etnográficos en los que la desconfianza de los indios sobre el trabajo de los antropólogos es patente. Por otro lado, la arrogancia intelectual que todos reconocemos en algunos contextos académicos contribuye para cercenar la posibilidad de que ampliemos la capacidad de la antropología para 103 construir un verdadero ecúmeno teórico, en el sentido de congregación igualitaria de teorías sociales distintas. Aún peor, tal arrogancia ha contribuido para crear imágenes que, en lugar de generar un conocimiento mejor de los pueblos indígenas, acaba por alimentar estereotipos contra ellos. Cuando analicé algunos términos como palabras clave de un largo proceso de sumisión de los indios en Brasil — niño, primitivo, nómade, salvaje… — llegué a la conclusión de que el conjunto de esos términos y sus respectivos conceptos constituían un verdadero orientalismo brasilero. Para mi asombro, fue con gran facilidad que encontré escritos antropológicos que nutrieron — y aún nutren — esos estereotipos que persisten en disminuir la integridad intelectual de los indígenas. Veamos, por ejemplo, lo que George Peter Murdock escribió en 1934 sobre los supuestamente extintos Tasmanos: Bajo una forma simple de organización social y política, los Tasmanos vivían una vida de cazadores nómades. No conocían la agricultura y no poseían animales domésticos –excepto los parásitos que pululaban en sus cuerpos y que de vez en cuando ellos agarraban y comían! Ni el perro, el compañero casi universal del hombre salvaje, conocían hasta que éste fue introducido por los blancos (Murdock, 1934: 4). O los comentarios de Francis Huxley en 1956 sobre los indios Urubu del Brasil oriental: “Bien parece que la vida de los Urubus es básicamente innoble, y los indios pueden ser descritos adecuadamente como salvajes. De hecho, aunque esta palabra sea ruda, de nada vale negar que los Urubus son 104 salvajes”. Empero, continúa Huxley, “en realidad, los salvajes tienen moral y su mundo, por más irracional que sea, no es desordenado ni inútil” (Huxley, 1956: 13). ¿Y qué decir sobre primitivo? Con solo activar la memoria unos minutos, me surgieron los siguientes títulos de grandes obras antropológicas: Primitive Culture (Tylor), Primitive Mentality (Levy-Bruhl), Primitive Marriage (McLennan), Primitive Classifications (Durkheim y Mauss), Primitive Art (Boas), Primitive Religion (Lowie, Radin), Our Primitive Contemporaries (Murdock), Primitive Man as Philosopher (Radin), Primitive Social Organization (Service), The Fa-ther in Primitive Psychology (Malinowski), Primitive World and its Transformations (Redfield). Esto no es cosa del pasado, pues el término continua vivo, como señala Neil Whitehead (1993: 198): “En todas las narrativas estándar del contacto a lo largo de la costa brasilera, los Amerindios son presentados como ‘primitivos’, ‘de la edad de piedra’ o ‘nómades desnudos’”. Y, según Hsu (1964: 174), que ya se quejaba de ese abuso verbal en 1964, “el significado más problemático del término ‘primitivo’ es aquel relacionado a varios tonos de inferioridad”. En fin de cuentas, como suele ocurrir en los orientalismos, no es solamente con armas que se aniquilan los llamados débiles e inconvenientes. En el caso brasilero, imágenes de la nación y del indio son derramadas copiosamente de las ficciones de literatos, de las decisiones de los legisladores, de las piedades misioneras, de las propuestas de los defensores de los derechos humanos, de las columnas de los periodistas, de los análisis antropológicos y de las quejas y reivindicaciones de los propios indios, para no hablar de la profusión de opiniones de “Brazilinanists” tan monológicas como las nacionales. 105 Pero volvamos a la cuestión de la desigualdad epistemológica, lo que, según Eduardo Viveiros de Castro, es la condición sine qua non para conjurar los análisis antropológicos. Él dice: La ciencia del antropólogo es de otro orden que la ciencia del nativo, y necesita serlo: la condición de posibilidad de la primera es la deslegitimación de las pretensiones de la segunda, su “epistemocidio”, en el fuerte decir de Bob Scholte (1984: 964). El conocimiento por parte del sujeto exige el desconocimiento por parte del objeto. … La matriz relacional del discurso antropológico es hileomórfica: el sentido del antropólogo es forma; el del nativo, materia. El discurso del nativo no detenta el sentido de su propio sentido. De hecho, como diría Geertz, todos somos nativos; pero en derecho, unos siempre son más nativos que otros (Viveiros de Castro, 2002: 115). Pero ¿por qué tiene que ser así? ¿Cuáles son las premisas que sustentan tales afirmaciones? ¿No serán ellas un terco reflejo de la creencia inquebrantable en la división del trabajo etnográfico entre aquel que conoce, el sujeto cognoscente (el etnógrafo) y aquel que se deja conocer, el objeto cognoscible (el nativo)? ¿El movimiento reciente de auto-crítica antropológica de los 80’s no habrá debilitado en nada a esa creencia? En lo absoluto, no estoy en desacuerdo con el hecho de que haya diferencias de interpretación entre antropólogos y nativos. Mis objeciones no se refieren a contenidos, sean empíricos o teóricos, sino a la actitud que no admite igualdad en la diferencia. Sí, las explicaciones antropológicas son necesariamente de naturaleza diversa de las indígenas, pero eso 106 no las hace intelectualmente superiores. Tal vez sea el momento de decir que cuanto más profundo y extenso es nuestro conocimiento etnográfico de un pueblo, menos arrogantes nos volvemos y percibimos más claramente la falacia de que algunos son más nativos que otros. Una discusión anterior en la antropología giró en torno de lo que sería historia, etnohistoria, consciencia histórica fuera de los límites de la intelectualidad euro-americana. ¿Los indios tendrían una noción de Historia, con H (hache) mayúscula al estilo occidental, o sus eventos serían eternamente metabolizados y fagocitados por sus estructuras? Entre otros, John y Jean Comaroff (1992: 5), tan perturbados con ese falso problema como muchos de nosotros, golpearon el martillo a inicio de los años 90 con la declaración de que “la consciencia y las representaciones históricas pueden tomar formas muy diferentes a aquella de Occidente”. Esto también es lo que Ilongot Headhunting, de Renato Rosaldo, nos mostró años antes. Mensaje corto y fino, ahora me sirve para interpelar otro campo del conocimiento: la teoría o, si preferimos, la epistemología. Parafraseando lo que acabo de decir, pregunto: ¿los indios tendrían una noción de Teoría, con T (té) mayúscula al estilo occidental, o sus conocimientos estarían eternamente enredados y encarcelados en sus cosmologías y ciencias de lo concreto? Stuart Kirsch, un joven antropólogo de Michigan, tan enfadado como yo con este reduccionismo, no aborda la cuestión al estilo Comaroff, pero abre una puerta promisoria al postular lo que denomina como antropología en reverso. Habiendo trabajado con el pueblo Yonggom de Nueva Guinea, Kirsch se dejó inundar por la riqueza interpretativa que encontró y se dio cuenta de que ritos y narrativas de las que 107 participó nada más eran que, digamos, una “consciencia teórica” refinada y compleja en la que él, todavía tímidamente, identifica “formas de antropología indígena comparables al análisis antropológico de sus mitos” (Kirsch, 2006: 153). Tomo el término “comparables” más en el sentido de la inteligibilidad de que de la profundidad, porque por más exhaustivo que sea un análisis académico, difícilmente éste alcanza la densidad y los matices de un análisis nativo. No es por azar que el historiador George Sioui de la etnia Huron de Canadá expresa una profunda frustración ante la dificultad de hacer que los “blancos” comprendan lo que los indígenas intentan explicar. La puerta que Kirsch nos abre da oportunidad a una importante reflexión sobre simetrías y diálogos interculturales. Si realmente es posible “revertir la antropología”, por ejemplo, ¿qué podrá ser la “antropología indígena”, en Brasil, cuando la educación universitaria, aunque sea incipiente, pueda proveer a los indios con los instrumentos de análisis con los cuáles hemos construido nuestro conocimiento etnográfico? Ese proceso ya comenzó y deberá florecer en las próximas décadas. Pero es preciso tener cautela y no súper-estimar los beneficios de la educación formal en detrimento de la instrucción tradicional perpetuada por la transmisión oral, la cual exige un aparato cognoscitivo de otro orden. Así como la escolaridad trae nuevos horizontes, ella también tiene el gran potencial de borrar conocimientos enaltecidos por la tradición indígena. Fijemos un poco nuestra atención en el ejemplo que nos da Kirsch. En el transcurso de su etnografía, como ocurre con los buenos etnógrafos, él va montando un edificio de significados nativos que es verdaderamente un sistema epistemológico de conceptos encadenados con gran capacidad explicativa sobre el mundo en el que viven los Yonggom. Esa 108 epistemología pasa a ser un instrumento de comprensión y acción sobre las vicisitudes generadas por la invasión de su territorio, ya sea por poderosas empresas mineras que vienen destruyendo su base ambiental y económica, o por el feroz régimen dictatorial que Indonesia implantó en la parte oeste de Nueva Guinea. Uno de los fundamentos de aquel sistema es lo que podríamos llamar episteme de la reciprocidad y su opuesto, la “reciprocidad no retribuida”, que están en la base de la organización social, emocional y mental de ese pueblo. En el régimen de aguda fricción interétnica a la que fueron sometidos, los Yonggom extraen sentido de los actos que perciben como no humanos, o anti-humanos, de los invasores, sometiéndolos al cálculo cultural ofrecido por su propio marco conceptual. Puedo citar más un ejemplo, esta vez de la Amazonía. El pueblo Ye’kwana, al menos del lado brasilero de la frontera con Venezuela, de acuerdo con la etnografía de Karenina Andrade (2007), se prepara para asumir el rol hegemónico, que hoy es de los blancos, en el próximo ciclo de vida en la Tierra. Esta preparación implica la captura de todos los tipos de conocimiento que están a su alcance, en especial, a través de la escuela. Es fácil reconocer en esa profecía ye’kwana un tipo de episteme altamente elaborado y capaz de orientar el pensar y el hacer de ese pueblo. Se trata de un complejo sistema, al mismo tiempo social, económico, político y metafísico (un verdadero hecho social total). Simplemente relegarlo al nicho ya bastante agotado de una cosmología más es perder una óptima oportunidad de refinar la perspicacia antropológica y explorar otras posibilidades más productivas y fieles a las propuestas por los propios indígenas. En el caso de los Yonggom y los Ye’kwana, ninguno de los clichés etnográficos, 109 como mito, cosmología, etc., logra explicar esas realidades que trasbordan de las márgenes conceptuales de la antropología. Esos ejemplos tipifican las situaciones en que casos empíricos fuerzan los límites disciplinares, rasgan el tejido ya desgastado de las ideas recibidas y nos inducen a “tomar a los nativos en serio”, refrán que no siempre se cumple. En suma, lo que propongo es traer de vuelta la inquietud que tenía Johannes Fabian en los años 80 sobre la negación de la contemporaneidad a los pueblos no occidentales, por parte de los antropólogos. También vale la pena tomar en serio la dura advertencia de Jack Goody al acusar a Occidente de robar la Historia de chinos, musulmanes, hindúes y otros, ignorando las invenciones de esos pueblos para enaltecer las suyas propias. Ya tenemos una Historia Robada, no vamos a insistir también en incurrir en una Teoría Robada. Volvamos al comienzo porque es importante aclarar algunos puntos. Cuando me refiero a que la práctica antropológica de tomar las teorías nativas como materia prima para desarrollar teorías académicas, no quiero decir que la antropología renuncie a su posición distanciada. La falacia del going native simplemente transforma al antropólogo en no antropólogo. A ejemplo del francés Tocqueville (2003 [18351840]), quien “descubrió” una América que, por el hábito, era invisible a los americanos, la mirada de fuera es tan importante como la mirada de dentro si queremos realmente desvendar mundos culturales. No obstante, hay que evitar dos trampas: una es la de la arrogancia de la superioridad académica; la otra es la pseudo humildad de trivializar la teoría antropológica y, por un falso mimetismo, reducirla ingenuamente a una imitación de las teorías nativas. Mi propuesta es que, manteniendo sus características propias, cada una a su manera 110 y ambas en diálogo puedan llevar a un intercambio fructífero con el enfrentamiento de ideas y de perspectivas. Ese ejercicio dialógico podría inhibir la construcción de teorías antropológicas pretenciosas e hiper-generalizantes con poca potencia heurística. Al poner una teoría académica bajo el examen de la crítica nativa, ciertamente, esa teoría sufrirá reparaciones y ajustes. A mi manera de ver, este es un modo altamente proficuo para el avance de la antropología. Necesitamos de tiempo para domesticar estas ideas y volverlas operacionales. Imagino que sin la participación directa de los propios indígenas no tengamos soporte y tal vez coraje para cortar las amarras que nos sujetan a la inercia de la disciplina. Esta es una condición necesaria para expandir los horizontes de la antropología y acoger otras epistemologías de manera más igual, con la humildad de quien quiere aprender y la ambición de quien se quiere superar. Entonces, sí, podremos llevar a la antropología hasta sus últimas consecuencias, o sea, a la interlocución cultural en su plenitud. Quién sabe si así llegaremos a una verdadera antropología ecuménica, universal. 111 Renascença Indígena [2023] O que leva um grupo de pessoas, uma coletividade, a congregar esforços e talentos para produzir impactos no mundo ao redor? Será condição necessária viver as agruras do purgatório para emergir no paraíso? Será que são os gigantescos desarranjos Homem Sanumá tecendo um tipiti. Auaris, ca. 1969. Foto da autora sociais, como na Europa pós-medieval, a mola propulsora sem a qual não surgirá uma nova era? Ou, como no Sul dos Estados Unidos, é preciso amargar uma prolongada escravidão para produzir o extraordinário movimento cultural conhecido como Harlem Renaissance? Trazer essa discussão para o contexto da arte indígena contemporânea pode parecer um tanto descabido, mas nos ajuda a esclarecer alguns aspectos do movimento cultural a que ora assistimos, que nos encanta, mas que mal compreendemos. O que há — se é que há — em comum entre a Renascença do Harlem no início do século XX e o que chamo de Renascença 112 Indígena no Brasil atual? Primeiro, temos coletividades etnicamente diferenciadas do resto da população nacional — negros americanos e indígenas brasileiros. Segundo, ambos os momentos têm na mobilidade espacial o estopim para atividades criativas. Vale a pena puxar alguns desses fios históricos. No admirável livro The Warmth of Other Suns, Isabel Wilkerson (2011) acompanha a saga daqueles migrantes no que chama de “história épica da Grande Migração da América”, o êxodo espetacular de boa parte da população negra dos estados do Sul para o Norte, depois da derrota dos confederados e o fim da escravidão negra em 1865. Entre fracassos e êxitos, sobreviventes negros do cataclisma que foi a guerra de Secessão americana, eventualmente, estabeleceram-se na periferia de Manhattan e criaram uma das mais impressionantes efervescências culturais daquele país. “O fluxo de migrantes negros logo rompeu os últimos diques raciais no Harlem” (Wilkerson, 2011: 250) que, nos anos 1920, deram lugar à famosa Renascença que congregou pintores, escritores, músicos e atletas que fizeram a fama da nata cultural dos Estados Unidos e projetaram a Negritude no resto do mundo. A Grande Depressão de 1929 e a Segunda Guerra Mundial mutilaram esse portentoso movimento, mas não destruíram seu legado duradouro, como atestam nomes como Louis Armstrong, W.E.B. Du Bois, Zora Neale Hurston, entre muitos outros. Assim como os artistas do Harlem nasceram do movimento de gente pelo país, também no Brasil a explosão artística que agora assistimos protagonizada por indígenas resulta da mobilidade de pessoas para fora das aldeias. O movimento no espaço leva ao movimento de sensibilidades 113 estéticas, como bem expressou o saudoso artista plástico Jaider Esbell. Minhas andanças por tantos cantos talvez tivessem me preparado para enxergar e sentir aquilo que a colonização tirara dos nossos povos quando aqui chegaram, a alma maior. Eu agora posso entender melhor o sentido desses encontros que ocorrem sempre, desde sempre, mas que, pela urgência da derrocada humanitária sobre a ecologia, é preciso que nos exibamos em simultâneo. É preciso falar, escrever, performar, atuar, enfeitiçar, pois, em matéria de arte para nós, povos indígenas, a obra não basta (Esbell, 2021: 11). Mas, ao contrário dos artistas do Harlem, o movimento dos indígenas brasileiros para fora das aldeias não foi feito em massa, embora a motivação não seja tão diferente. Aqui, agora, como lá, então, há um componente de expulsão, aqui expresso na invasão das terras ancestrais com o consequente empobrecimento da qualidade de vida; lá, resultado da quebra dos grilhões da escravidão, anunciando um futuro possível sob “o calor de outros sóis”. Não que não houvesse arte indígena antes desta Renascença. Sem entrar pela arqueologia à busca de exemplos, pensemos na estética indígena mundial nos últimos tempos: as manifestações gráficas do Dreamtime dos Aborígenes australianos, as miniaturas de marfim dos Inuit, ou os totens dos Kwakiutl e seus vizinhos canadenses. Mais perto de nós, temos as joias que os Waurá do Alto Xingu produzem com palha, barro e madeira, os figurinos Karajá, os tecidos Huni Kuin, a plumária Urubu-Kaapor, Kayapó e Bororo, a pintura corporal 114 Kadiweu, os ubíquos bancos zoomorfos… Muito acertadamente, diz o antropólogo Pedro Cesarino (2021: 29), “ao tomar para si as técnicas introduzidas pelo invasor não indígena, artistas diversos não apenas traduzem para o papel esquemas gráficos e narrativos já praticados em outras mídias como também inauguram um novo gênero capaz de subverter, pela beleza e pelo sentido, a violência do colonizador”. Sair de casa e espraiar-se pelo mundo expande a consciência de que é possível ampliar as possibilidades estéticas. No entanto, é fundamental manter os vínculos com a comunidade de origem, pois é ela a fonte de inspiração que propicia combinar o tradicional com o inusitado, o estranho, aquilo que fustiga as imaginações. Nas artes plásticas, além do inesquecível Jaider Esbell, filho inspirado do povo Macuxi de Roraima, uma pletora de artistas bebendo inspiração dentro e fora de casa compõem um acervo estético invejável: Carmézia Emiliano, também Macuxi, Daiara Tukano, Denilson Baniwa, Isabel Maxakali, Aislan Pankararu, Joseca Pintura do artista indígena Aislan Pankararu Yanomami, Yaka 115 Huni Kuin, Rivaldo Tapyrapé… e a lista continua. Catálogos de exposições dentro e fora do Brasil estão repletos de obras indígenas que nos arrebatam os sentidos. À tradição da palha, do barro, da madeira e das plumas esses artistas adicionaram a tela, as tintas, o acrílico com naturalidade, assim como na escola adotaram diretamente o computador sem percorrer os longos e lentos passos dos nossos ancestrais que, laboriosamente, aprenderam — e esqueceram — o que é escrever a carvão, a pena de ganso, a caneta tinteiro, a esferográfica, a máquina de escrever manual, depois elétrica para, por fim, chegarem à era digital. Com a perspicácia de um aprendizado que já leva mais de meio milênio, os indígenas cortaram todo o tortuoso caminho dos brancos pela escrita sem perder uma vírgula de sua integridade mental. Enquanto os antepassados produziam arte para consumo interno, sem fazer concessões ao mundo exterior, esses novos artistas plásticos dirigem seus talentos ao universo artístico mais amplo, incluindo o mercado de arte. Mostram o imaginário indígena, mas em imagens que fazem sentido estético para o observador forasteiro. Utilizam recursos técnicos e visuais com grande sensibilidade e perícia, o que os equipara aos seus congêneres não indígenas e, ao mesmo tempo, traduzem esteticamente aspectos que, por outros meios, poderiam passar despercebidos ou ser ininteligíveis. Com apelo ao belo, o observador admira a obra, mesmo que não alcance o seu significado profundo ou os temas explorados, muitas vezes, advindos de regiões recônditas, inatingíveis de suas respectivas culturas. Esse aspecto de fazer arte para fora também o encontramos em vários outros contextos da produção indígena. Exemplifico com um parêntesis. Quando Bruce Albert e eu 116 concebemos o conteúdo do que viria a ser Pacificando o Branco, tínhamos em mente contrabalançar nossa grande frustração por estarmos naquele momento proibidos de entrar nas áreas indígenas devido à recrudescência do regime militar. Era o fim dos anos 70, início dos 80. Como recorte geográfico, selecionamos, justamente, a região à qual não podíamos voltar: o norte da Amazônia brasileira alvo de projetos militares, em especial, a faixa de fronteira afetada pela construção da rodovia Perimetral Norte. Era como se, simbolicamente, voltássemos à área. O recorte temático foi, apropriadamente, o impacto do contato forçado sobre os vários povos indígenas daquela enorme faixa de fronteira. O resultado é uma série de textos que exploram os mecanismos de defesa daqueles povos face a agressões que só podiam combater com seus próprios recursos, como, por exemplo, xamanismo, rituais de cura etc. Por aquela época, organizei um seminário na Universidade de Brasília intitulado Do tacape ao vídeo. O projeto Vídeo nas Aldeias de Vincent Carelli estava a todo vapor e eram frequentes as imagens de jovens Kayapó de câmera em punho, filmando dentro e fora de suas aldeias. Minha ideia ao organizar aquele evento era, precisamente, contrabalançar o efeito Pacificando. Enquanto o livro expunha mecanismos e estratégias de defesa para uso Esteira Waurá interno, ou seja, para neutralizar 117 os efeitos deletérios do contato e abrandar medos e iras dentro das próprias comunidades longe da vista de forasteiros, o seminário, ao contrário, explorava, justamente, as ações indígenas diretamente arremessadas aos brancos, os genéricos agressores dos índios nos embates interétnicos. Com este parêntesis quero dizer que, como nas obras de arte, é possível identificar, na ética e estética tradicionais, posturas e ações que interessam apenas aos indígenas, enquanto outras, na ética e estética contemporâneas, têm o propósito de impactar o mundo exterior. Geralmente, não se misturam umas com as outras, mesmo quando o produto da arte tradicional entra no mercado, com frequência, chamado desdenhosamente de “artesanato”. Escritores indígenas estão igualmente em ascensão. Séculos de déficit educacional por parte do Estado atrasaram a chegada de intelectuais e escritores indígenas ao cenário nacional. Por paradoxal que pareça, foi sob a influência da rígida tutela dos Salesianos no Alto Rio Negro que os primeiros escritores indígenas começaram a ser publicados. Alfabetizados com rigor, os Desana publicaram uma série de volumes com narrativas míticas sob os auspícios da União das Nações Indígenas do Rio Tiquié (UNIRT) e da Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro (FOIRN). Inaugurando a série Narradores Indígenas do Rio Negro, o livro de 1995, Antes o Mundo não Existia, marcou época e, originalmente, foi destinado ao uso exclusivo dos próprios indígenas. Seguiram-se vários outros de autores Desana sobre suas crenças e narrativas, formando um conjunto, reminiscente dos contos, lendas e sagas nórdicos, que se tornou clássico. Com a entrada de estudantes indígenas nos programas de pós-graduação já no século XX, o 118 número de autores e livros foi aumentando e hoje temos um acervo que não para de crescer. Um dos pioneiros no campo da literatura indígena, Kaká Werá Jecupé, personifica, como todos citados aqui, uma trajetória marcada por deslocamentos, perda e recuperação de identidade étnica. Em Todas as vezes que dissemos adeus, Werá relata o destino dos pais, comum a tantos povos indígenas que, expulsos de suas terras, viram seu modo de vida tradicional esgarçar-se pelo país e reduzi-los a párias. A tribo dos meus pais e de meus antepassados moravam (sic) ao norte do país, espalharam-se pelas cidades mineiras a partir das margens do rio São Francisco, tornando-se peões das fazendas que brotavam nos cerrados como erva daninha, outros foram tornando-se sitiantes, rezadores, benzedeiras, andarilhos, errantes, caboclos, pescadores, mendicantes, sitiados, artesãos, matutos, capiaus, caipiras (Jecupé, 2002: 15-16). Nesse contexto esmagador, gesta-se uma carreira literária. Werá não é o primeiro nem será o último a reverter o infortúnio e retirar dele a energia mental e emocional para continuar e criar. Ouso dizer que, em maior ou menor grau, todos os indígenas artistas — e não só eles — vingam à sombra, como diria José Saramago. Será mesmo inescapável sofrer para criar, pois, como disse Rubem Alves, ostra feliz não faz pérola? Para gozarmos das obras de artistas indígenas teríamos então que louvar seus sofrimentos? Ou, ao nos rebelarmos contra a crueza da dominação étnica, também nós, flagelados por osmose, fazemos pérolas, mesmo que sejam apenas pérolas barrocas? 119 Nos tempos da Nova República pós-ditadura, por fortuna, hospedei líderes indígenas que vinham a Brasília travar suas batalhas políticas pelos corredores do poder federal. No fim do dia, quase sempre frustrante, quantos relatos ouvi de Álvaro Tukano, de Marcos Terena e, principalmente, de Ailton Krenak sobre a via crucis daqueles homens (quase nunca mulheres) que, fazendo das tripas coração, enfrentavam o dragão do poder estatal para voltar cabisbaixos às pocilgas onde se hospedavam na capital federal. Corroídos de frustração, afogavam-se em bebida e acabavam caídos por uma sarjeta qualquer da cidade, voltando para casa com um gosto amargo de derrota. Pois bem, é dessa frustração que surgem belas pérolas. Por respeito à brevidade e intimidada com a abundância de obras e autores, menciono, me desculpando pela descortesia de resumi-los, além de Kaká Werá, mais dois autores e três autoras, lamentando deixar de fora todos os outros, por ora, relegados ao silêncio. Daniel Munduruku, escritor renomado, também nasceu e cresceu à sombra do desencontro interétnico e nunca chegou a viver plenamente a vida de aldeia característica do seu povo. Escritor prolífico, é autor de uma longa lista de livros que trazem ao mundo não indígena a leveza profunda da sabedoria ancestral, como a aprendeu do bisavô dissidente que a manteve sólida, mesmo longe das comunidades tradicionais. Daniel abraçou a escrita com a clara consciência de que ela não destrói a memória feita de oralidade. Ao contrário, reforça a capacidade indígena de abarcar com a mesma capacidade formatos mentais distintos. “A escrita é uma técnica”, afirma, e reforça ser preciso dominá-la “com perfeição para poder 120 utilizá-la a favor da gente indígena” (Munduruku, 2020: 78). Dominar essa técnica é uma “demonstração de capacidade de transformar a memória em identidade, pois ela reafirma o Ser na medida em que a reforça e acrescenta ao repertório tradicional outros acontecimentos e fatos que atualizam o pensar ancestral” (Munduruku, 2020: 79, minha ênfase). Sim, crescer à sombra da tradição tem o potencial de enriquecê-la, pois, como afirmou o filósofo Hans-Georg Gadamer (1975), tradição estanque é tradição morta. É ela que orienta e impulsiona os membros de uma cultura a ir além dos limites canônicos; “todos os esforços bem-sucedidos de animar uma tradição exigem que ela mude para torná-la relevante no contexto presente. Abraçar uma tradição é fazê-la sua, alterando-a” (Barthol, s.d.). Demonstrações não faltam aqui. Um hiato de quatro décadas separa Eliane Potiguara, a pioneira, das escritoras indígenas de hoje no Brasil. É autora de vários livros, dentre eles, Metade Cara, Metade Máscara, publicado em 2004, agora esgotado e altamente valorizado, e o mais recente, O Vento Espalha Minha Voz Originária, publicado em 2023. Eliane traz no nome sua origem étnica, neta que é de avós migrantes Potiguara do Nordeste brasileiro. Nasceu no Rio de Janeiro, tem vivido em meios urbanos e ela mesma explica porque: “A minha família, já antes de eu nascer, desde 1900, começou a emigrar, junto com outras famílias do nosso povo. Começou um processo de migração muito grande. Foi uma migração em massa de vários povos saindo de suas regiões” (Potiguara, 2019: 105), migração essa que grita por ser devidamente analisada, a exemplo da Grande Migração Negra dos Estados Unidos. 121 Mulher cosmopolita, participante de muitos congressos e assembleias internacionais em prol dos direitos humanos, é considerada a primeira escritora indígena a ser publicada, criou a Rede Grumin de Mulheres Indígenas e cravou seu lugar destacado nos meios literários nacionais. Seguindo suas pegadas, outras mulheres indígenas trilham caminhos semelhantes. Julie Dorrico é uma delas. Um dia minha mãe decidiu me criar mulher E criou, lá na década de 1990, bem certinho. Decidiu, porém, que minha língua não seria nem o macuxi, como de minha ancestral, nem o inglês dos britânicos, mas o português. Eu não quis não. Então resolvi criar a minha própria. Como não posso fugir do verbo que me formou, Juntei mais duas línguas para contar uma história: O inglexi e o macuxês. Neste poema, Julie Dorrico (2019: 21) condensa a voz da mistura, essa mistura criativa desenhada para olhos forasteiros, ainda perplexos com os feitos indígenas no mundo dos brancos. Nasceu em Rondônia de mãe Macuxi e pai peruano, garimpeiro na fronteira Roraima-Guiana. Optou por ser Macuxi e, assim, resumiu em si mesma uma indianidade que atravessa a Amazônia de leste a oeste. É doutora em Teoria da Literatura e privilegia a poesia como modo de expressão. São também dela estrofes como estas: Quando Makunaima criou a Raposa Serra do Sol, ele convocou de sua criação gente que faria a diferença no 122 mundo. Então ele criou os macuxis Quando Makunaima me encontrou eu estava no estéril asfalto da vida. Em sonho, ele me chamou! Quando Makunaima me encontrou, soltou um: ̶ Já era tempo! Eu concordei Na terra dos garimpos, o pesadelo da busca do ouro chegou a ela na figura do pai não indígena: Durante nove anos, eu tive o afeto do meu pai. Mas ele enlouqueceu, como todo homem do ouro que não escapa da maldição de matar os outros envenenados aos pouquinhos. Poderíamos atribuir tal leveza de expressão à sua feminilidade? De onde vem essa aptidão para falar com tanta doçura do amargor vida? Ailton Krenak vem, consistentemente, transformando oralidade em escrita, sem nunca perder verve nem eloquência. Falas, entrevistas e outras apresentações têm sido transcritas e publicadas em livros de ampla divulgação. Perspicácia, sabedoria, tranquilidade e, acima de tudo, o inesgotável senso de humor, atributo indígena por excelência, fazem das suas falas e textos a alegria dos leitores. Ailton Krenak jovem, anos 80, parou o Congresso Nacional ao usar a tribuna para acusar as 123 autoridades brasileiras de omissão, sem que elas percebessem que estavam sendo acusadas e, ainda por cima, com muita ironia. A maior dessas ironias correu por conta da pintura preta com que Ailton, de terno branco, cobriu todo o rosto ao som de uma voz enganosamente meiga e tranquila. Como todos os outros autores que menciono aqui, Ailton Krenak é produto do confuso mundo interétnico. Mineiro do vale do Rio Doce, desde a adolescência viveu em centros urbanos no sul do país, formou-se jornalista e, com trinta e poucos anos, aderiu ao movimento indígena que vivia um período de grande ebulição às vésperas da Assembleia Nacional Constituinte. A partir daí, tornou-se um dos atores mais proeminentes na luta pelos direitos indígenas. Também ele é exemplo de um insider que, depois de viver como outsider, voltou a ser insider com energia redobrada e múltiplas experiências acumuladas. Capaz de absorver grande quantidade de informações vindas da intelectualidade, da política e de outros campos, Ailton Krenak sabe como poucos aplicar o que Gustave Flaubert chamou de le mot juste, a palavra certa no momento certo, o que muito contribui para o seu sucesso nos meios de comunicação. Alguns exemplos: Tem quinhentos anos que os índios estão resistindo, eu estou preocupado é com os brancos, como que vão fazer para escapar dessa (Krenak , 2019: 31). Os brancos que me perdoem, mas eu não sei de onde vem essa mentalidade de que o sofrimento ensina alguma coisa. Se ensinasse, os povos da diáspora, que passaram pela tragédia inenarrável da 124 escravidão, estariam sendo premiados no século XXI (Krenak, 2022: 47-48). Um outro lugar que a gente pode habitar além dessa Terra dura: o lugar do sonho. Não o sonho comumente referenciado de quando se está cochilando ou que a gente banaliza “estou sonhando com o meu próximo emprego, com o próximo carro”, mas que é uma experiência transcendente onde o casulo do humano implode de dentro para fora e a experiência espiritual e transcendente abre para outras visões da vida não limitada (Krenak, 2020: 141). Mago da crítica indígena do mundo industrial em rota de colisão com o planeta, Ailton Krenak, manancial de sabedoria adquirida na voragem da “mistura”, continua a ocupar um lugar central na Renascença Indígena. Fecho este passeio pela sensibilidade indígena com outra poeta do mundo interétnico. Márcia Wayna Kambeba, que leva o nome de um povo amazônico, mas nasceu entre outro, os Tikuna. É formada em geografia, mas mostra outros talentos no livro Ay Kakyri Tama. Eu Moro na Cidade. Dele extraio as seguintes estrofes do poema “Silêncio Guerreiro” (Kambeba, 2018: 29). No território indígena O silêncio é sabedoria milenar Aprendemos com os mais velhos A ouvir mais que falar Silenciar é preciso Pra ouvir com o coração 125 A voz da Natureza O choro do nosso chão. É preciso silenciar Para pensar na solução De frear o homem branco E defender o nosso lar Para nós, para a nação Ao lado de conceitos como sonho, cuidados, sabedoria, está o silêncio de quem ouve, de quem respeita o interlocutor com atenção concentrada e respeitosa. É uma das mais evidentes qualidades indígenas, especialmente, quando comparada à estridência nacional e, de resto, ocidental, estridência que berra, atravessando até o aparente silêncio das redes sociais. Ter dos próprios indígenas a confirmação de impressões plasmadas no campo, como foi para mim a cortesia do ouvinte que, realmente ouve, dá-nos a sensação de que, afinal, a etnografia compensa. Coda Aproveitando que o tema dos sonhos é recorrente nestes escritos, acrescento-lhe mais uma camada de interesse. Puxo da memória a lembrança de um comentário seminal, um desabafo de Davi Kopenawa. Era o fim dos anos 80, início dos 90, quando dezenas de milhares de garimpeiros violavam as terras e as vidas de boa parte dos Yanomami. Davi, meu hóspede regular quando vinha a Brasília, viu, pela primeira vez, na tela da televisão, o gigantesco estrago dos garimpos em terras Yanomami. Permaneceu mudo, imóvel, perplexo, olhar fixo na 126 TV, incrédulo diante das imagens soturnas de grandes crateras lamacentas escancaradas ao céu. Depois, falou: “os brancos não sabem sonhar e porque não sabem sonhar, estragam tudo”. Começou então a desabafar na sua língua Yanomãe. Pedi licença para gravar, mandei as fitas para Bruce Albert e aí nascia a semente que germinou em A Queda do Céu. Por uma sorte do destino, a região do Demini, morada de Davi, fora poupada do assalto garimpeiro. Por isso, ele via o desastre pela primeira vez em duas dimensões a milhares de quilômetros de distância. O choque mediático reverbera nele até hoje. Debruçar-me sobre o movimento artístico indígena dáme um prazer não de todo livre de angústias. Ao ler os comentários de Graça Graúna, vejo o porquê. A literatura indígena contemporânea é um lugar utópico (de sobrevivência), uma variante do épico tecido pela oralidade; um lugar de confluência de vozes silenciadas e exiladas (escritas) ao longo dos mais de 500 anos de colonização. Enraizada nas origens, a literatura indígena contemporânea vem se preservando na auto-história de seus autores e autoras e na recepção de um público-leitor diferenciado, isto é, uma minoria que semeia outras leituras possíveis no universo de poemas e prosas autóctones (Graúna, 2013: 15, minha ênfase). Escrita como exílio. Imagem contundente que diz volumes! É destino de quem, para ser ouvido, precisa dominar os meios de ser lido, o que não é tarefa fácil se se nasce e amadurece mentalmente na oralidade. Mas, já que é para dominar a escrita, que modalidades da escrita ocidental mais se amoldam às formas de expressão verbal dos povos indígenas? 127 Numa rápida mirada pela minha estante de escritores indígenas, ainda com frustrantes espaços vazios, é flagrante a presença da poesia e da narrativa, o que em inglês se conhece como storytelling, definida como a arte interativa de utilizar palavras e ações para revelar os elementos e imagens de uma história e, ao mesmo tempo, estimular a imaginação do ouvinte-leitor. É, em suma, a quintessência da oralidade tornada escrita. Advertência. Este texto trata, exclusivamente, da produção artística, especificamente, artes plásticas e literatura, de indígenas brasileiros. A sua presença, sempre crescente, em outros campos, como na academia, no direito e em outras esferas profissionais, tem sido objeto de outros escritos e o será dos que hão de vir. 128 Meditações indígenas e ecúmeno antropológico [2014] Sempre me surpreendo com as grandes dificuldades que têm os povos de culturas nativas ao tentar sensibilizar forasteiros sobre seus valores tradicionais. Também me pergunto por que há tanta falta de comunicação intercultural (…) e, sobretudo, como se pode criar uma vontade coletiva e individual por tal comunicação (Georges E. Sioui, 1992: xxi). Lições indígenas Começo com uma espécie de depoimento pessoal sobre algumas estranhezas que sempre me acompanharam e que, só há relativamente pouco tempo, me vieram à plena consciência com a atenção que merecem. Tanto durante minha estada entre os Sanumá,1 quanto em várias ocasiões, como, por exemplo, eventos políticos em Brasília, algumas características sempre me chamaram a atenção no estilo de comunicação indígena, dentre elas, o uso da repetição e a extrema paciência para ouvir. Fosse na intimidade das aldeias, na impessoalidade de fóruns políticos ou na formalidade de encontros acadêmicos, percebi 1 Subgrupo Yanomami do Norte do Brasil com quem desenvolvi prolongada pesquisa de campo em 1968-1970, 1973, 1974, 1990, 1991,1992 e 2005, em parte financiada pelo CNPq, e que resultou em três livros e diversos artigos. 129 nesses traços a feição que distingue o modo indígena de se comunicar e que passei a admirar, embora sem a competência e a perseverança necessárias para seguir à risca. Foi preciso me debruçar sobre questões de epistemologias transculturais e sobre políticas da diferença para que essas impressões se transformassem em objeto de reflexão antropológica. O valor da repetição, o exercício incondicional da atenção solícita, os modos de transmissão de conhecimentos e os estilos de argumentação passaram a constituir termos de comparação com o nosso modo acadêmico de expressar e comunicar, decantado no que Lévi-Strauss chamou de pensamento domesticado em contraste com um pensamento selvagem. 2 A partir de impressões sensoriais, comecei a desenvolver uma preocupação teórica e metodológica sobre modos de apreender e de transmitir conhecimento. No campo, passei a apreciar e usufruir das vantagens da imitação para sedimentar o aprendizado da língua, por exemplo, da repetição como modo de instilar e destilar o conhecimento, e da escuta atenta e paciente a fim de maximizar a capacidade de apreensão de significados. Ao comparar esses traços distintamente indígenas com a maneira acadêmica de proceder, não pude evitar a conclusão de que o nosso sistema de aprendizado e de apreensão de significados é um irremediável refém de malentendidos. A intolerância à repetição, a impaciência para ouvir e a exaltação da originalidade que menospreza a imitação levam-nos a enfrentar um dos maiores problemas na nossa profissão e em tantas outras, que são as interpretações parciais 2 Traduzir pensée sauvage como pensamento selvagem é fazer injustiça a LéviStrauss. Seria mais apropriado e fidedigno dizer pensamento silvestre, no sentido de não ser cultivado em bancos escolares, não estar imbuído de ethos científico. 130 ou errôneas, se não mesmo hostis, do que dizemos e escrevemos. Aprendemos com a teoria da comunicação que o que conduz informação é o dado novo, inesperado e, se a sorte ajudar, uma gema serendipity. No entanto, se levarmos essa proposição às últimas consequências, comunicar, no sentido da teoria da comunicação, é não compreender, porque, seguindo a dinâmica do nosso cérebro, é passando uma mensagem repetidamente pelos neurotransmissores que ela é devidamente registrada. O conhecimento, feito de informações, resulta de mensagens reiteradas com insistência, a exemplo da técnica de aprendizado linguístico conhecida como drill (exercícios repetitivos). A repetição é, portanto, a maneira mais eficaz de nos fazermos entender. Dizer a mesma coisa várias vezes de diversas maneiras é proteger a nossa intenção de lutar contra mal-entendidos. Ao contrário do modo indígena de comunicação ‒ seja oral ou escrito ‒, o mundo acadêmico proíbe repetir, o que gera constantes queixas de autores cujos escritos são lidos a contrapelo de sua intenção. O historiador estadunidense Donald L. Fixico, indígena pertencente a múltiplas etnias, dá à repetição o nome de método circular e define-o como uma filosofia circular que focaliza um único ponto e usa exemplos familiares para ilustrá-lo ou explicá-lo. Garante que todos compreendam e que tudo seja levado em conta, aumentando, assim, a possibilidade de harmonia e equilíbrio dentro da comunidade e com tudo mais (Fixico, 2003: 15-16, tradução minha). Algo semelhante ocorre com o ouvir. A paciência dos ouvintes indígenas contrasta flagrantemente com a agitação 131 que, muitas vezes, nos assalta ao ouvir uma palestra, um debate, uma argumentação. Ouvimos na expectativa de nos interpormos e apresentarmos a nossa versão do assunto. Interrupções ruidosas até podem ser tomadas como medida de sucesso do evento. Por vezes, as falas se sobrepõem e correm como paralelas que talvez nem no infinito se encontrem. Podemos dizer que isso é “falta de educação”, um acinte à etiqueta, mas acontece com maior frequência do que muitos gostaríamos. De qualquer modo, seja raro ou comum, esse tipo de gafe não faz parte do universo indígena. Shawn Wilson, da etnia Cree do Canadá, afirma que, por ser relacional, a pesquisa deve ser tida como uma cerimônia (Wilson, 2008). Eu acrescentaria que, quando observamos a comunicação praticada por indígenas, ela também, sendo relacional, é uma cerimônia. Ser cerimonioso não é apenas ser formal, seguir um rito de pompa e circunstância, mas também ser cortês, polido e respeitoso para com o interlocutor em qualquer contexto. Talvez essa noção se aproxime de jeong, o conceito sul-coreano que subjaz ao ethos nacional com sua ênfase no afeto, na empatia e na lealdade. Se a intercomunicação fosse sempre tratada como cerimônia, ela asseguraria que uma etiqueta da interação superasse os percalços advindos da compreensão involuntariamente incompleta ou distorcida, da má interpretação intencional e do desrespeito gerado pela ignorância, muitas vezes, cultivada. Talvez a inibição de muitos indígenas para se expressar em meios não indígenas resulte de algum receio de serem atropelados pela nossa afobação, pelo descaso com a quintessência da comunicação plena, que é a repetição, muito mais compatível com os ritmos de aprendizado do cérebro humano. Pensar que a repetição é uma necessidade da 132 comunicação oral e que, adultos e alfabetizados, já não precisamos mais dela, é um erro, como provam as frequentes desculpas: “Ah, eu não quis dizer isso, minha intenção não era essa, fui mal interpretada!” O problema da comunicação intercultural fica mais evidente no contexto da educação indígena: são dois sistemas de transmissão de conhecimentos que não deveriam se anular mutuamente, mas, na prática, ainda não foram assimilados de maneira apropriada pelos projetos de educação dita intercultural, sejam públicos, sejam privados e, muito menos, pela maioria dos educadores não indígenas. É o que expressa, sem esconder uma grande frustração, o trabalho de Gersem Luciano, da etnia Baniwa do Uapés brasileiro. Vejamos um dos seus exemplos sobre a inadequação de aplicar os rudimentos que têm certos atores externos sobre o mundo indígena: muitas iniciativas bem intencionadas de constituição de escolas de pajés, por exemplo, nunca deram certo, porque são tentativas de escolarizar questões que não são escolarizáveis, pois não podem ser coletivizadas e nem deixadas sob a responsabilidade de um professor (Luciano, 2011: 197). Mais adiante, continua: [A] dificuldade da escola indígena definir seu papel e sua função social ‒ se é formar um bom cidadão brasileiro profissionalmente ou um bom indígena ‒ tem gerado modelos administrativos e pedagógicos que operam à beira de uma escola ou de um processo educativo do ‘faz de conta’, com 133 metodologias e epistemologias parciais ineficientes (Luciano, 2011: 254). Gersem Baniwa vai mais longe em sua crítica profunda ao modelo escolar aplicado aos povos indígenas: “A ideia de interculturalidade é bastante confusa, pouco clara e de difícil aplicação na prática pedagógica e consequentemente na vida das pessoas” (Luciano, 2011: 259). Quando passamos à comparação dos mundos indígena e não indígena, verificamos que o primeiro nos apresenta a série de lições citadas acima, que servem de pano de fundo para cotejarmos as nossas próprias premissas sobre a eficácia dos recursos da comunicação humana. E não me refiro apenas à comunicação oral, mas também à escrita, como veremos adiante. Essas e outras lições indígenas têm me inspirado para encetar uma jornada que trace os caminhos do conhecimento indígena e antropológico e que prospectos eles abrem para pensarmos numa antropologia abrangente, ecumênica no sentido de se abrir a todas as vozes. Assim, este artigo debruçase sobre a problemática que venho abordando sobre o quão desejável e necessário é acolher no seio da antropologia acadêmica as teorias indígenas, para criarmos um novo horizonte transcultural que possamos chamar plenamente de antropologia ecumênica (Ramos, 2008, 2011). Para tanto, evoco alguns ‒ dentre muitos ‒ membros da intelectualidade indígena mundial que expõem propostas de especial relevância para esta discussão, pois desafiam premissas arraigadas na academia ocidental, lembrando-nos, ao mesmo tempo, que o Ocidente ‒ ou um certo Ocidente ‒ não é tão distante como se pensa, principalmente, em algumas vertentes da filosofia e da física 134 moderna. Quero explorar equivalências e contrastes, de modo a demonstrar que não há incompatibilidades inexoráveis entre teorias indígenas e teorias ocidentais e quanto o campo antropológico tem a ganhar ao abraçar, em igualdade de condições intelectuais, aqueles pensadores que, abusivamente, têm sido chamados de “Outros”. Esboço de uma antropologia ecumênica Uma detida análise de textos indígenas mostraria que a repetição é uma característica comum. Boa parte deles foi escrita em inglês, justamente, a língua ocidental talvez mais refratária à repetição, principalmente, em sua forma escrita, se a compararmos, por exemplo, com o francês, o português e o espanhol. Uma coletânea intitulada Reinventing the enemy’s language, contendo mais de 100 textos escritos exclusivamente por mulheres indígenas dos Estados Unidos, Canadá e Havaí, propõe inundar a língua inglesa com conceitos e imagens indígenas. O meio ‒ a língua inglesa ‒ é propositalmente sujeito a intervenções (como certos artistas plásticos e músicos criam sobre obras pré-existentes), de modo a chamar a atenção dos leitores para o conteúdo descrito. A intenção é deixar a oralidade exsudar na escrita, por exemplo, com o uso da primeira pessoa do singular, a conexão direta com os leitores e imagística própria: Nos sistemas educacionais euro-americanos, aprendemos estratégias literárias, gramáticas e técnicas que diferem muito das construções tribais que são culturalmente específicas. Então nos vêm à 135 consciência as nossas invenções literárias, mediando entre o tempo e espaço literais e metafóricos (Harjo & Bird, 1997: 28, tradução minha). Aqui, diria Marshall McLuhan (1967), o meio é [parte d]a mensagem. Impregnar uma língua avessa a repetições e floreados como é o inglês é, em si mesmo, uma contravenção e, consequentemente, uma asserção de liberdade. O que essas mulheres almejam é, precisamente, utilizar os estereótipos dos falantes ocidentais do inglês para devolver o insulto, por assim dizer, e asseverar “uma tenacidade nativa para continuar [apesar de tudo]” (Harjo & Bird, 1997: 30). O movimento político indígena, que tomou proporções globais a partir dos anos 1970 e desembocou na aprovação da Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas em 2007, abriu caminho para que escritores indígenas encontrassem uma oferta editorial que antes não lhes era franqueada. Editoras sensibilizadas começaram a publicar trabalhos indígenas que não tinham acesso às grandes editoras, principalmente, as universitárias. Vimos que formas de adquirir e transmitir conhecimento separam os mundos indígenas e não indígenas: imitar, repetir, ouvir, relacionar versus informar, lecionar, mostrar eficiência, destacar-se. Vejamos então o que os aproxima. Spirit, esprit, Geist Um dos temas mais recorrentes nos escritos indígenas, principalmente, na América do Norte, é a espiritualidade. Ciente da ausência de ressonância desse conceito na academia, 136 Shawn Wilson adverte que, devido à carência desse aspecto humano entre os não indígenas, é preciso fazer um esforço especial para explicá-lo: “a espiritualidade não é separada, mas parte integral e entranhada no todo que é a visão de mundo indígena” (Wilson, 2008: 89, tradução minha). Para ele, “espiritualidade é o sentido interior de conexão com o universo”, e religião seria “a manifestação exterior da espiritualidade”. Já Gregory Cajete da etnia Tewa (Pueblo) do sudoeste norte-americano, afirma que espírito e espiritualidade nada têm a ver com religião, mas com a busca de verdade ou verdades: “A ciência nativa, em seus níveis mais altos de expressão, é um sistema de caminhos para chegar a essa verdade perpetuamente em movimento, ou ‘espírito’” (Cajete, 2000: 19). Ao descartar a ligação de espírito com religião, Cajete insiste que, na sua língua, não há palavra nem conceito para esta última. Em vez disso, vincula espiritualidade à fenomenologia de Merleau-Ponty e dá a Lucien Lévy-Bruhl a credibilidade que seus próprios pares nunca lhe deram. Por sua vez, Margaret Kovach, da etnia Cree do Canadá, que também inclui o componente da espiritualidade em sua análise de metodologias indígenas, afirma que os “pesquisadores indígenas, muitas vezes, ouvem o chamado da fenomenologia de Heidegger” (Kovach, 2009: 30). Num registro afim da fenomenologia, podemos citar o hermeneuta alemão Hans-Georg Gadamer, principalmente, quando expõe quatro conceitos humanistas que devem ser resgatados do esquecimento racionalista. Esses conceitos são: Bildung, “intimamente associado à ideia de cultura, designa, principalmente, o modo propriamente humano de se desenvolver talentos e capacidades naturais” (Gadamer, 1975: 11); senso comum, que “não significa apenas uma faculdade 137 geral de todos os homens, mas o sentido que funda a comunidade”; juízo (ou julgamento), “que significa julgar o que é certo e errado e uma preocupação com o ‘bem comum’” (p. 31); e gosto, noção originalmente mais ligada à moral do que à estética. “Em sua natureza essencial, gosto não é um fenômeno privado, mas social de primeira ordem”. Gadamer prossegue: “Em última instância, todas as decisões morais requerem gosto”, o que é admiravelmente ilustrado nas análises de Keith Basso (1996) sobre os Apache Ocidentais. Tomando esse fio condutor, apontado por Cajete, podemos igualmente evocar autores ocidentais, como Blaise Pascal do século XVII, que nos legou a distinção entre esprit de géométrie e esprit de finesse. Enquanto o primeiro se refere a princípios concretos, lógicos, racionais, distantes do senso comum, o segundo aponta para princípios partilhados por todos, relativos a sentimentos, ao senso de justiça, à compreensão e expressão (jeong?). Pascal percebeu que a ciência positiva ocidental não abarca uma importante dimensão do conhecimento; a excluída é, justamente, o que equivale à espiritualidade indígena.3 Foi também nesse “espírito” que Montesquieu criou o seu Espírito das Leis e que Bachelard discorreu sobre La formation de l’esprit scientifique. Lembremos, além do mais, do conceito de esprit de corps, relacional por excelência, comandando a solidariedade daquilo que Linda 3 Notemos que, no contexto acadêmico, o termo francês esprit é, muitas vezes, traduzido para o inglês como mind. A relutância anglicana de utilizar spirit no discurso científico revela a incapacidade ou o repúdio de contaminar esse discurso com o que poderia ser tomado como misticismo. Encontramos na internet referência ao “espírito do princípio da incerteza” de Heisenberg. A cândida combinação de “espírito” com o sofisticado princípio da mecânica quântica revela, ao menos no âmbito da popularização da ciência, uma disposição de aliar o imponderável, imensurável, ao gênio da cientificidade ocidental. 138 Tuhiwai Smith, intelectual Maori da Nova Zelândia, chamou de “comunidades de interesse” (Tuhiwai Smith, 1999: 191). Em outra tradição europeia, há a noção de Geist, como em Zeitgeist, Volksgeist ou Geisteswissenschaften, com objetos diferentes, mas conotações semelhantes. Zeitgeist, o Espírito do Tempo, evoca uma totalidade temporal com tonalidade sociocultural própria, composta de manifestações que vão muito além das conquistas científicas. Volksgeist refere-se ao espírito comum de um povo, enquanto Geisteswissenschaften, inicialmente uma tradução do termo Ciências Morais, de John Stuart Mill, passou a designar áreas de conhecimento mais próximas das noções de significado e compreensão (Verstehen). Em suma, a teoria indígena de espírito tem, em tese, uma clara contrapartida na história intelectual da Europa. Sendo assim, cabe indagar sobre a necessidade de Shawn Wilson de explicitar tão estoicamente a ideia indígena de espiritualidade. A lacuna de conhecimento é, portanto, mais imaginada do que real e intensamente incutida pelo estilo anglo de expressão escrita. Espírito, para Cajete, corresponde a uma verdade mutável: Como o nascimento de uma criança ou um raio ligando céu e terra por uma fração de segundo, são esses os momentos infinitos tanto do caos como da ordem. São esses os preceitos da ciência nativa, pois a verdade não está num ponto fixo, mas sim num ponto de equilíbrio em constante mudança, perpetuamente criado e perpetuamente novo (Cajete, 2000: 19, tradução minha). Mais uma vez, evoca-se o espírito do princípio do imponderável, do mutável, do não controlável, em suma, da 139 teoria do caos (ou seria do wabi sabi japonês?). O papel da metáfora é central nessas operações mentais. Na ciência nativa, afirma Cajete (2000: 29), “a mente metafórica é o facilitador do processo criativo; ela inventa, integra e aplica à tarefa de viver os níveis profundos da percepção e intuição humanas”. Temos na metáfora mais uma ponte entre o estilo indígena e o ocidental. Mas, antes de abordar este ponto, abro um parêntese para esclarecer um aspecto importante da questão de se generalizar sobre isso que chamo de “estilo”. Quando digo indígena, não me refiro a uma essência cultural única para todos os povos não ocidentais e, quando digo ocidental, não tenho em mente um bloco uniforme não indígena, pois reconheço plenamente que, dentro de cada um desses imensos e difusos continentes conceituais, há uma variedade tão grande quanto há entre ambos. Porém, no “mundo indígena”, que cobre tanto o Novo como o Velho Mundo, é claramente discernível um substrato comum, ainda que com características locais próprias, que se distingue do universo, digamos, judaico-cristão, e que Lévi-Strauss, limitando-se ao domínio da oralidade, esquadrinhou com a análise estrutural dos mitos. Voltando-nos para a produção escrita de membros desses disseminados “povos indígenas”, encontramos igualmente esse substrato que, mesmo infiltrado por sistemas escolares ocidentais, exibe traços comuns. Por sua vez, o Ocidente monolítico é também uma quimera, senão por outras razões, ao menos pela linguagem, cujo longo e complexo processo histórico levou à geração de uma tal diversidade que chega à ininteligibilidade mútua entre as chamadas línguas indo-europeias. (Afinal, quem criou a imagem da Torre de Babel?). No entanto, por baixo dessas diferenças, há um reconhecível substrato de ocidentalidade. A influência dos 140 idiomas dos colonizadores sobre os povos autóctones não foi pequena, mas também não foi tão grande a ponto de anuviar modos de expressão pré-existentes, ou seja, isso que chamo de estilo indígena. Voltemos à questão da metáfora. George Lakoff e Mark Johnson (2003 [1980]) empenharam-se em demonstrar a necessidade estrutural que têm as línguas, como o inglês que lhes serve de exemplo, de utilizar metáforas, seja no cotidiano, seja na academia. Mais do que mero tropo, a metáfora é básica para a comunicação, ou seja, “o sistema conceitual humano é estruturado e definido metaforicamente” (Lakoff & Johnson, 2003: 6, tradução minha). Sustentam ainda que “a verdade é sempre relativa a um sistema conceitual, que qualquer sistema conceitual humano é majoritariamente de natureza metafórica e que, portanto, não existe verdade que seja totalmente objetiva, incondicional ou absoluta”. Se para um norte-americano tempo é dinheiro, para um brasileiro, a inflação come o salário e para um colombiano, estar falido é estar na panela, para um Bororo da Amazônia brasileira, um papagaio é um homem de certo clã (Crocker, 1977), para um Kaluli da Nova Guiné, um determinado pássaro é um ancestral (Feld, 1982), enquanto um Apache Ocidental caça com histórias (Basso, 1996: 58). A capa hermética que cobre as metáforas numa língua pouco ou nada conhecida é responsável por muita trapalhada semântica quando se trata de traduzi-las. Metáforas elaboradas são traduzidas literalmente e, muitas vezes, levam ao ridículo (como traduzir literalmente to go out on a limb para o português). Complexidades são reduzidas a banalidades que acabam sendo transformadas em estereótipos. A densidade intelectual contida em metáforas impérvias à apreensão imediata passa 141 por um esmagamento de sentido e se transforma em infantilidade, simplesmente, porque a tradução é incompetente ou mal-intencionada. Um dos grandes problemas que os povos indígenas enfrentam é a apropriação desinformada e leviana de suas ideias e cerimônias por estranhos deslumbrados com a suposta mística indígena. Seguidores do movimento New Age têm contribuído para semear descrédito sobre sistemas de crenças, de cura etc. Como dizem Lakoff e Johnson, as metáforas são uma parte essencial do pensamento de um grupo humano específico e não apenas figuras de linguagem. Há mesmo dúvida “se as metáforas ilustram uma cognição ou se a cognição não é talvez moldada pelas metáforas” (De Man, 1978: 14, tradução minha). Isto quer dizer que conceitos densos relativos, por exemplo, ao significado da vida, à mecânica celeste, à cadeia ecológica de certa região, estão contidos em metáforas cuja inteligibilidade imediata, superficial, opera como um trompe l’oeil, uma ilusão de ótica, enquanto seu significado profundo está fora do alcance dos forasteiros e, muitas vezes, até dos antropólogos não indígenas. Exemplo dessa complexidade comunicativa é a história educacional dos havaianos. Ao dominar a tecnologia da escrita, a eles imposta por missionários norte-americanos, passaram a produzir textos com múltiplas camadas de significado em que apenas a mais banal era destinada aos colonizadores (Silva, 2004). Neste, como em outros sentidos, as etnografias próprias dos nativos apresentam uma real possibilidade de chegar a traduções que façam justiça à sua riqueza discursiva. Esta não é mais uma possibilidade apenas teórica: “existe a nova situação de sujeitos indígenas estudando a si mesmos como sujeitos que pensam e produzem conhecimento” (Luciano, 2011: 105). 142 Community, comunalidad, terroir Muito difundida nos escritos indígenas é a ideia de que o lócus do conhecimento humano é a comunidade. Igualmente disseminada é a afirmação de que o conhecimento indígena é sempre relacional. Gregory Cajete, para quem a “comunidade sempre foi o foco comum da intenção e atenção na psicologia social de cada pessoa nativa” (Cajete, 2000: 98-99, tradução minha), vincula o pertencer a uma comunidade ao desenvolvimento do sentido de responsabilidade para com o mundo, ênfase também dada por Shawn Wilson. É na imitação e na observação dos processos na natureza que a comunidade aprende a ser responsável em suas relações. “Foi primeiro observando e depois fazendo que as crianças nativas aprenderam a natureza dos recursos de alimentação, comunidade e relações de vida” (Cajete, 2000: 101). Margaret Kovach começa sua análise das epistemologias indígenas, afirmando que a prática histórica surge da noção de lugar. Etnógrafo zeloso e sensível, o saudoso Keith Basso mergulhou na densidade do sentido de lugar entre os Apache Ocidentais, autores de um idioma social calcado na sua paisagem: “um único topônimo pode fazer o trabalho comunicativo de uma saga inteira ou uma narrativa histórica” (Basso, 1996: 89, tradução minha). O vínculo entre comunidade e lugar manifesta-se em inúmeros contextos e temporalidades. Aqui, a díade comunidade-lugar é indissociável e um verdadeiro fato social total, à la Marcel Mauss. Pelo contraste entre a sua vida na aldeia e num internato salesiano, Gersem Baniwa põe numa cápsula a aparente incomensurabilidade desses dois mundos: 143 A vida na aldeia havia me ensinado a evitar e combater essas mazelas das pessoas, principalmente por ocasião dos ritos de iniciação, dos ritos do dabucuri e das atividades coletivas. Na aldeia quase tudo era partilhado na família e na comunidade, ao contrário da missão, onde a comida, o pão, embora produzidos pelos alunos indígenas, [estes] não podiam comer. Onde a casa dos padres construída pelos indígenas, mas não tinham acesso, não podendo dispor dela em caso de necessidade. Tudo isso, desde o início, me despertou forte sensação de injustiça, de desigualdade (Luciano, 2011: 17). As mazelas a que Gersem Baniwa se refere são nada menos que “a disputa, a concorrência, a injustiça, a desigualdade, a violência, a falta de solidariedade, a falta de hospitalidade, o individualismo e o egoísmo” (Luciano, 2011: 17). É como se o internato fosse a vida na aldeia retratada em negativo: o claro torna-se escuro, o escuro torna-se claro. No entanto, esse doloroso aprendizado operou o efeito dialético de transformar o jovem indígena num pensador crítico e competente. Antítese da comunidade, o internato forneceu o elemento-chave para criar a síntese do intelectual indígena engajado nos dois mundos. Esse elemento-chave é a educação. Não é por acaso que tantos indígenas se especializam em Educação, como Gregory Cajete, Margaret Kovach, Linda Tuhiwai Smith, para mencionar apenas autores citados aqui. Esta última, em seu influente livro Decolonizing methodologies: Research and indigenous peoples, lista 25 projetos de pesquisa que refletem um modo próprio de conduzir uma investigação. “Os métodos passam a ser os meios e procedimentos que orientam os problemas centrais da pesquisa. Muitas vezes, as metodologias indígenas misturam abordagens existentes e 144 práticas indígenas” (Tuhiwai Smith, 1999: 143, tradução minha). É uma combinação do treinamento acadêmico dos pesquisadores com o entendimento do senso comum das próprias comunidades alvo da investigação. Esses projetos ilustram as preocupações intelectuais indígenas, sempre imersas em problemáticas que afetam diretamente as comunidades e seus membros. Cito alguns como exemplos: testemunhos, celebração da sobrevivência, revitalização, educação, proteção etc. A educação formal, muitas vezes tida como um mal necessário, foi o que também possibilitou ao antropólogo mexicano Floriberto Díaz transitar em dois tipos de cultura, a materna mixe e a nacional. Seu livro, publicado postumamente, Escrito (Díaz, 2007), tem como subtítulo “comunalidad, energia viva del pensamiento mixe”. Comunalidad tem papel central na longa jornada de Díaz pelas 435 páginas de seus escritos, que eram esparsos antes de serem organizados num único volume. Comunalidad, a exemplo do spirit anglo-saxão e do esprit francês, é aquilo que dá sentido à comunidade. Em sua retórica nítida e direta, Díaz ecoa e congrega as afirmações de seus semelhantes, tanto do Norte como do Sul: [N]o se entiende una comunidad indígena solamente como un conjunto de casas con personas, sino personas con historia, pasada, presente y futura, que no sólo se pueden definir concretamente, físicamente, sino también espiritualmente en relación con la naturaleza toda. Pero lo que podemos apreciar de la comunidad es lo más visible, lo tangible, lo fenoménico. (…) [E]l espacio en el cual las personas realizan acciones de recreación y de 145 transformación de la naturaleza, en tanto que la relación primera es la de la Tierra con la gente, a través del trabajo (Díaz, 2007: 39). Diaz continua: “Para entender cada uno de sus elementos hay que tener en cuenta ciertas nociones: lo comunal, lo colectivo, la complementariedad y la integralidad”. É lá onde “me siento y me paro, (…) la porción de la Tierra que ocupa la comunidad a la que pertenezco para poder ser yo”. Talvez este último enunciado seja o que mais se aplica à noção francesa de terroir. Normalmente associado a vinhos de qualidade, esse conceito inebria também por outras razões. Refere-se a porções de terra de alta qualidade “sob a ação de uma coletividade social congregada por relações familiares e culturais e por tradições de defesa comum e de solidariedade da exploração de seus produtos”.4 A porção de terra a que pertenço para poder ser eu em comunidade expressa elegante e poeticamente o “espírito” francês. Comunidades inteiras ‒ assim na França como no México ‒ mostram orgulhosas os seus produtos em feiras pelo país a fora, identificam-se com eles, respeitam os limites de outras comunidades, tanto em termos territoriais como de especialização, e são respeitadas por elas. A noção de terroir denota comunidades identificadas pela sutileza de sons e aromas que lhes são próprios. 5 Através dela, a exemplo do México Profundo identificado pelo antropólogo Guillermo Bonfil Batalla (1990), poderíamos chegar a uma França Profunda, como poderíamos também desvelar uma 4 Informação recolhida em http://pt.wikipedia.org/wiki/Terroir (acesso em 14/12/2012). 5 Agradeço à socióloga da Universidade de Brasília, Dra. Christiane Girard, por me ter ensinado o sentido profundo de terroir. 146 América Profunda, congregando todas as suas comunidades indígenas, com sua espiritualidade e comunalidade. Temos aqui uma conjugação intercultural, intercivilizacional e intertemporal de conceitos afins que parecem falar-se mutuamente: espírito, comunalidade, lugar. Seriam como pilares naturais sustentando uma ponte sobre as águas turbulentas dos desencontros culturais e dos conflitos políticos. Holismo indígena, holismo ocidental O conjunto de considerações feitas até aqui sinaliza o gênio holístico do pensar indígena: relações viscerais com a coletividade, humana e não humana, com a terra, com a espiritualidade (imanência, nos termos de Díaz, verdade, segundo Cajete). Estas características têm sido proverbialmente atribuídas aos povos indígenas e reconhecidas por eles próprios. Pergunta-se, então, se elas são exclusivas do mundo indígena. A resposta parece ser um enfático não. Tanto no Ocidente antigo como no contemporâneo, encontramos instigantes semelhanças com o universo cognitivo indígena. Por exemplo, ramos não positivistas da ciência ocidental, como a mecânica quântica e a teoria do caos, sugerem que algumas pontes podem ser estendidas entre eles e o conhecimento indígena. O imensurável e o imprevisível de certos experimentos da física contemporânea têm o efeito de conduzir os pesquisadores a perguntas e inquietações não muito distantes das que encontramos em textos indígenas. Em outro registro, há a grande discussão que procura desmistificar a origem ocidental (leia-se europeia) de grandes feitos comerciais, políticos, filosóficos e científicos (Abu- 147 Lughod, 1989; Goody, 2008, 2011). Como periferia da Ásia, principalmente antes da era cristã, a Europa beneficiou-se de inúmeras descobertas do, por ela chamado, Oriente (à moda do Orientalismo, de Edward Said).6 “No entanto, essas conquistas foram constantemente subestimadas na comparação com os gregos, cuja posição foi sempre vista a partir da perspectiva da posterior dominação europeia do mundo, isto é, teleologicamente” (Goody, 2008: 45). Um dos exemplos mais retumbantes desse “roubo da história” foi a apropriação do zero inventado pelos árabes e dos algarismos arábicos (advindos da Índia, apesar do nome). Sem eles, a ciência ocidental teria sido uma quimera irrealizável, pois sem o zero e com os incômodos algarismos romanos, dificilmente se comporiam equações simples e complexas, muito menos computadores. Hoje, esses vetustos caracteres romanos pouco mais fazem do que adornar alguns de nossos prefácios. Nem mesmo o decantado Capitalismo é tão ocidental como se pretende: “as origens da modernidade e do capitalismo são mais amplas e encontram-se não apenas no conhecimento árabe, mas também nos influentes empréstimos da Índia e da China” (Goody, 2011: 11, tradução minha). A mesma soberba que nega criatividade ao resto do mundo também menospreza outras expressões filosóficocientíficas, aplicando-lhes alcunhas como “orientais”, “précapitalistas” ou “primitivas”. No entanto, como pensava a Europa antes de se tornar hegemônica no Velho Mundo? O filósofo alemão Paul Feyerabend (1975) ajuda-nos a entender, traçando uma história do pensamento ocidental que ele divide 6 Ver a discussão de Edward Said (1979) sobre a invenção do Oriente pela Europa. 148 em Cosmologia A (“arcaica”) e Cosmologia B (“racional”). Ao propor uma “epistemologia anarquista”, Feyerabend rejeita o racionalismo da ciência convencional e afirma que a proliferação de teorias é benéfica apenas para a própria ciência. Crítico severo da racionalidade dogmática de certas vertentes científicas, ele busca elementos em ciências humanas como a linguística e a antropologia, em figuras como Benjamin Whorf, Evans-Pritchard e Robin Horton, para refutar a omnisciência e a eficácia social da academia. Ao descrever as características da Cosmologia A vigente na Antiguidade Clássica, Feyerabend refere-se ao que chama de “agregado paratático”, ou seja, o conjunto de recursos para adquirir e transmitir conhecimento que privilegia o real, o palpável, o visível, o imediatamente apreendido pelos sentidos e a relação entre elementos. Um exemplo é a maneira pictórica ateniense de representar um homem vivo e um homem morto. Sendo exatamente a mesma figura, é possível determinar o seu estado pela relação que a figura tem com os elementos que a rodeiam. O vivo está em posição vertical, o morto, na horizontal. O artista arcaico, diz ele, trata a superfície sobre a qual pinta como um escritor trata um pedaço de papiro; é uma superfície real, para ser vista como uma superfície real (…) e as marcas que ele desenha são comparáveis às linhas de um desenho ou às letras de uma palavra. São símbolos que informam o leitor sobre a estrutura do objeto, de suas partes, da maneira como elas se relacionam entre si (Feyerabend, 1975: 262, ênfase no original; tradução minha). 149 A partir dos séculos VII e V (ainda somos fiéis aos algarismos romanos) antes de Cristo, dá-se uma transformação drástica que afetará o futuro da ciência e da percepção ocidentais. Surge a perspectiva na pintura e a separação entre essência e aparência, entre sabedoria e conhecimento verdadeiro. Diversamente do “arcaico”, o novo artista, usando a perspectiva, “toma a superfície e as marcas que põe sobre ela como estímulos que deflagram a ilusão de um arranjo de objetos tridimensionais”. Feyerabend prossegue: o conceito de objeto mudou de um conceito de agregado de partes perceptíveis de igual importância para o conceito de uma essência imperceptível subjacente a uma multiplicidade de fenômenos enganadores (Feyerabend, 1975: 264, tradução minha). O mais vistoso espécime moderno dessa Cosmologia B talvez seja Magritte, que pintou um cachimbo e, sardonicamente, deu-lhe o famoso título: “Isto não é um cachimbo”, ao qual Michel Foucault acrescenta: “En ninguna parte hay pipa alguna”! (Foucault, 1981: 43). Ou seja, não há que confundir a representação com o objeto representado. Ao criticar os rumos da racionalidade positiva da ciência moderna, Feyerabend emula o trabalho antropológico por sua capacidade de revelar sistemas de conhecimento alternativos e mais compatíveis com a compreensão do mundo, e lamenta que a academia moderna rechace em tom azedo a possibilidade de atribuir status de ciência às formas não ocidentais de conhecimento, especialmente, dos povos indígenas. Ao fim e ao cabo, diz Feyerabend, o que fica de tanta racionalização não são métodos nem teorias, mas 150 juízos estéticos, juízos de gosto, preconceitos metafísicos, desejos religiosos, em suma, o que fica são nossos desejos subjetivos: a ciência em seu grau mais geral e avançado devolve ao indivíduo uma liberdade que ele parece perder ao entrar em suas partes mais pedestres (Feyerabend, 1975: 285, tradução minha). Ou seja, a pequena ciência reprime, a alta ciência liberta. Vozes indígenas no ecúmeno antropológico Apontar as grandes diferenças entre os modos de conhecer e de propagar conhecimento entre povos indígenas e ocidentais não traz novidade, pois é a forma antropológica privilegiada de fomentar o relativismo cultural e o respeito pelo diverso. O que surpreende é constatar os pontos de convergência entre eles. Na história da humanidade, discernese uma clara bifurcação de modelos de conhecimento, tendo-se assumido que uma linha, a ocidental, produziu de maneira linear e única uma ciência calcada na racionalidade, na abstração, se se quiser, no positivismo, e outra, a não ocidental, levou ao misticismo, ao holismo, à experiência imediata, se se preferir, à pensée sauvage. No entanto, nem só de racionalismo viveu e vive o conhecimento do Ocidente. Ainda evocando Feyerabend, não é demais relembrar que não haveria pensamento domesticado, ou seja, ciência, nem alta nem baixa, se não fosse a criatividade da pensée sauvage. “Em todos os tempos o ser humano abordou o seu meio circundante com os sentidos bem abertos e uma inteligência fértil; em todos 151 os tempos fez descobertas incríveis; em todos os tempos podemos aprender com suas ideias” (Feyerabend, 1975: 307). Que ideias são essas? É uma longa lista: Tribos primitivas têm classificações mais detalhadas de animais e plantas do que a zoologia e a botânica científicas contemporâneas, conhecem remédios cuja eficácia pasma os médicos (…), resolvem problemas difíceis de maneiras que ainda não são bem compreendidas (construção de pirâmides, navegação polinésia), tiveram uma astronomia altamente desenvolvida e conhecida internacionalmente na velha Idade da Pedra, astronomia essa que era factualmente adequada e emocionalmente satisfatória, resolvia problemas físicos e sociais (…), era testada por meios simples e engenhosos (…). Houve a domesticação de animais, a invenção da agricultura rotativa, novos tipos de plantas foram criados e mantidos em estado puro para evitar a cross-fertilização, temos invenções químicas, temos a arte mais extraordinária comparável às melhores realizações atuais (Feyerabend, 1975: 306-307; ênfase no original). Da pena de um físico contemporâneo, tais feitos adquirem uma potência ainda maior, talvez pela própria surpresa do autor, que já não é mais a nossa, da antropologia, habituados que somos a nos surpreender a cada pesquisa consumada.Ao ponderar sobre tudo isso, não é implausível vislumbrar uma espécie de metaciência que englobasse todas as manifestações do saber, acadêmicas ou não, ocidentais ou não, racionais ou não, conhecidas e por conhecer. Seria algo como uma cacofonia disciplinada ou, melhor dito, uma multiglossia 152 subjacente a toda e qualquer forma de conhecimento humano, potencialmente compartilhada, ainda que, muitas vezes, renegada. De fato, foi sobre essa resistência que se fundou a ciência moderna. A ascensão do racionalismo na Grécia Antiga, afirma Feyerabend (1987: 65), “é um exemplo fascinante da tentativa de transcender, desvalorizar e descartar formas complexas de pensamento e experiência”. Tais formas compreendiam ontologias sutilmente articuladas que incluíam espíritos, batalhas, ideias, deuses, arco-íris, dores, minérios, planetas, animais, festividades, justiça, destino, doença, divórcios, o céu, a morte, o medo ‒ e assim por diante. Cada entidade se comporta de maneira complexa e própria que, embora seguindo um padrão, revela constantemente novos e surpreendentes elementos e, portanto, não podem ser capturados numa fórmula (Feyerabend, 1987: 64). Tal é a complexidade e riqueza que o estreito racionalismo científico abandona por não ser “científico”. Conclui-se de tudo isto que as proverbiais diferenças entre o pensamento indígena e o científico ocidental não são tão grandes assim e que um acoplamento antropológico, em vez de resultar em algum híbrido estéril, levaria a um novo patamar de conhecimento e compreensão. Tal conclusão desautoriza a distinção levi-straussiana entre pensamento silvestre e pensamento domesticado, pois não há pensamento que não seja, sempre já, produto de uma fina domesticação. A antropologia seria sábia se seduzisse a intelectualidade indígena a engrossar suas fileiras, de modo a empreender um 153 programa de revitalização, injetando teorias, problemáticas, abordagens e sensibilidades novas numa disciplina que já se vê a caminho da decrepitude. Resta saber se tal proposta de revitalização atrai o interesse dos indígenas, se eles estão dispostos a dar ainda mais de si, depois de passarem meio milênio fazendo, exatamente, isso: sobrevivência e renovação, numa infinidade de experimentos em resiliência e domesticação da virulência invasora, em face desse flagelo vindo do Velho Mundo que os assolou em tempos de conquista que, por sinal, ainda não acabaram. Levemos essa ideia às últimas consequências. Perguntemo-nos se o resultado dessa conjunção de saberes, ou ecúmeno antropológico, não tornaria desnecessária a própria antropologia como a conhecemos hoje. Uma antropologia totalmente ecumênica não seria, afinal, uma contradição em termos? Ou seria uma dimensão pós-antropológica de conhecimentos entrecruzados? Construir pontes de significado atravessando inúmeras áreas de cognição e emotividade talvez torne dispensável manter uma disciplina que surgiu, precisamente, por falta dessas e de outras pontes. Tendo cumprido seu desígnio, a velha antropologia poderia ter um desfecho digno de Missão Impossível. Ou, pondo em prática sua densa, embora curta vida, ela ainda pode se transformar ou se transportar para uma nova dimensão, já livre da falácia dos sujeitos pensantes e objetos pensáveis. Acabamento: como a antropologia pode ser escrita Uma boa costureira termina uma peça de roupa com tal esmero que mal se distingue o direito do avesso. É o segredo 154 da haute couture. Na escrita, ao se chegar ao fim de um texto, é preciso arrematá-lo, como faz a costureira. É o momento das conclusões, considerações finais, epílogo, coda, ou o que se queira chamar. É aí que a peça recebe o acabamento, os ajustes, os esclarecimentos e talvez o sempre almejado convencimento dos leitores. Tarefa difícil e delicada, ela é pouco ou nada explorada na antropologia e, muitas vezes, perde-se numa reprodução ociosa do que já foi exposto acima. Podemos, no entanto, buscar inspiração em outros meios que nos falam pelo olho, no caso das artes visuais, ou pelo ouvido, como na música. Por sua vez, o que podem fazer as palavras? Por exemplo, qual seria o equivalente escrito da cena final de Tempos Modernos ou de 2001? Ou dos últimos acordes da Tocata e fuga, de Bach? Como dar à palavra o mesmo poder de remexer no âmago do leitor? Sim, a literatura faz isso continuamente. Mas, e a nossa antropologia, que viaja pelo mundo, convive com sons, imagens, sabores, dores e deslumbramentos tão diversos? Não é capaz de expressar essas sensibilidades, usando a mesma linguagem dos literatos? Se não é capaz, por que não é? O que a tolhe? Que formação cruel a deixou tão entrevada, incapaz de transmitir a riqueza de outras gentes e inebriar leitores e, ao invés de inspirar, sufoca estudantes com etnografias feitas de argamassas indigestas de dados? No entanto, tivemos excelentes professores na fase talvez mais heroica da disciplina: Malinowski, Evans-Pritchard, Maurice Leenhardt… Parece que, ao se disciplinar, ela perdeu o encanto e o encantamento. Departamentalizou-se, burocratizou-se, afastou-se dos focos de criatividade, caiu, em suma, na enfadonha vala comum da ciência normal, no dizer de Thomas Kuhn. 155 Para regozijo de uns e desespero de outros, a antropologia, oxalá, não será mais a mesma. Como já vimos, um dos recursos mais promissores para se chegar a um futuro revigorado e digno da disciplina é a adesão de antropólogos indígenas ao cenário acadêmico, onde ela mesma foi gestada durante mais de século. Nasce do mal-entendido – para dar o benefício da dúvida – dos nossos antepassados e até mesmo de alguns contemporâneos, de que os “nativos” só são bons para ser estudados. Porém, de tanto se exporem a antropólogos abelhudos, perceberam, apesar destes, que há mérito na antropologia como campo de saber. Como o camelo bíblico que é capaz de passar pelo buraco de uma agulha, os indígenas, de objetos de pesquisa, brutos diamantes, passam a sujeitos da ação antropológica com uma agilidade e flexibilidade invejáveis. O que me leva a concluir que a antropologia é muito maior do que a soma de seus praticantes e até pode sobreviver a eles. São os indígenas antropólogos — ou antropólogos indígenas — que permitem a esta costureira de textos dar o acabamento às ideias de tal modo que a diferença entre o direito e o avesso da escrita antropológica seja sumariamente obliterada. Na crescente produção publicada por indígenas, antropólogos ou não, o que primeiramente salta aos olhos é a preferência por certos estilos e campos de expressão da língua portuguesa que mais se coadunam com a sensibilidade indígena. Vemos textos de poesia e vemos textos do que em inglês se chama story telling, narrativas que aproximam o escritor do leitor. No entanto, tenho plena consciência de que um mundo de significados fica fora do nosso alcance, mesmo quando escritos por escritores indígenas, pelo inevitável efeito redutor da tradução, principalmente, de ideias e sensações. Volto a Julie Dorrico, nascida Macuxi na fronteira do Brasil com 156 a Guiana, que resolveu suas dúvidas linguísticas com muito humor: [Minha mãe] decidiu … que minha língua não seria nem o macuxi, como de minha ancestral, nem o inglês dos britânicos, mas o português. Eu não quis não. Então resolvi criar a minha própria. Como não posso fugir do verbo que me formou, Juntei mais duas línguas para contar uma história: O inglexi e o macuxês. Na apresentação do livro do Dr. Justino Sarmento, o antropólogo Luis Cayón, ferrenho tukanólogo, exalta os méritos das autoetnografias indígenas: Além de me transportar até muitas memórias especiais dos meus trabalhos de campo, avanço a leitura enquanto a pluma de Justino Sarmento Rezende consegue fazer reverberar na minha mente cantos em tuyuka e tukano que nunca ouvi. Continuam explicações muito detalhadas e profundas sobre xamanismo, ritual, vida social e transformações atuais que nunca antes vislumbrara: são verdadeiras revelações! Sinto que estou entendendo algo a mais, mas não é apenas com o intelecto. Estou comovido com os sentimentos à flor da pele. Atordoado, me pergunto: Que poder é esse!? (Cayón, 2023: 13). É o direito-avesso, num todo integrado, à moda do sentipensar de Eduardo Galeano, impregnando a consciência 157 etnográfica. É a sensibilidade indígena a serviço da compreensão antropológica. É a antropologia que nos promete o século XXI. 158 Pulp fictions del indigenismo [2004] Un orientalismo americano Este análisis forma parte de un proyecto más amplio, cuyo objetivo principal es comprender a la nación brasileña a través de las representaciones que ha hecho de sus indios en los últimos 500 años. La multiplicidad de estas representaciones y de sus autores hace del estudio del indigenismo una empresa muy compleja y aparentemente infinita, porque adonde vayamos nos topamos con sus manifestaciones. Están, por ejemplo, hechos de gran impacto como la legislación que declara a los indios como “relativamente incapacitados” o, en los comentarios cotidianos, simples, aparentemente sin consecuencia, como el de un taxista urbano confesando que su abuela indígena había sido "cazada con un lazo”. En resumen, lo que escriben y publican los medios, lo que crean los novelistas, lo que revelan los misioneros, lo que defienden los activistas de derechos humanos, lo que analizan los antropólogos sobre los indios ‒ y los indios niegan o corroboran ‒ constituye un edificio ideológico que tiene “la cuestión de los indios' como pilar” (Ramos, 1998: 6), Parece ser inagotable la capacidad caleidoscópica del país para producir nuevos diseños interétnicos sobre una estructura profunda y duradera. Entre los componentes de ese caleidoscopio está la práctica difundida de la esencialización, tanto por parte de la población 159 mayoritaria como de los propios indios. El concepto de cultura, sea en sus manifestaciones locales o como un molde genérico de indianidad (o “indigenidad”, como en Bowen, 2000: 13), tiene una amplia circulación en los dominios del indigenismo. Seleccioné cuatro contextos en los cuales el proceso de naturalización de los indios y la esencialización de su “cultura” ‒ en singular ‒ son especialmente evidentes, ofreciendo un marco adecuado para discutir las implicaciones teóricas y políticas de estos procesos. Los ejemplos esbozados abajo están tomados de la vida civil de Brasil, algunos cotidianos, otros más excepcionales, donde indios y no indios se encuentran en relaciones capilares cuyo contenido raramente se explicita. Lo que ocurre en las grietas de la racionalidad occidental es revelador de las formas en las que la otredad se construye y se vive. Las farsas, los misticismos desenfrenados y los rituales equivocados que se consideran aquí son ejemplos de fenómenos de la tensión generada por la atracción y repulsión de los opuestos, que se desarrollan en los márgenes de la lógica occidental y, por esta razón, claramente revelan facetas inesperadas de las relaciones interétnicas que las convenciones formales intencionalmente esconden. En este sentido, la parte “ficticia” de la interetnicidad es otro de los ladrillos que construyen el extraordinario edificio ideológico del indigenismo. El material escogido evoca los fenómenos inconscientes, subterráneos, asociados con los actos fallidos freudianos (cuando uno dice X queriendo significar Y). Manifiestas en las colectividades más que en los individuos, esas expresiones de lo “no dicho” nacional tienen un inmenso potencial para revelar lo que de otra forma podría pasar como meros faits divers, curiosidades o “infelicidades” de lo exótico (Mason, 1998). 160 Episodio I El material utilizado aquí fue extraído de alrededor de veinte artículos de diarios desde 1988 a 1996, Muestran fotografías de personas famosas en Brasil siendo “coronadas” con atuendos de plumas por hombres y mujeres indígenas. Entre las celebridades están los jugadores de fútbol Romario y Ronaldo, la ex primera dama Ruth Correa Leite Cardoso, el ex presidente Fernando Collor de Mello, Luiz Inácio Lula da Silva (entonces candidato a presidente) y una cantidad de ministros, gobernadores y legisladores. En las décadas de 1980 y 1990, prácticamente cualquiera que aspirara a ser alguien en Brasil debía ser fotografiado recibiendo o esquivando una corona india. Tanta atención pública dispensada a un objeto indígena debe su reputación a que se dice que la corona trae mala suerte a sus portadores no indios. Con la corona se asocian las plumas de papagayo, siendo el papagayo un “mal agüero en la creencia popular”, de acuerdo con la presentadora de noticias de la televisión (Marcia Peltier Pesquisa, Rede Manchete, 23 de diciembre de 1997). Los medios masivos de comunicación pueden no haber creado estas creencias, pero ciertamente las ampliaron, particularmente en los picos de la efervescencia política. Sin querer correr el riesgo, figuras públicas, como el ex presidente José Sarney, admiten su miedo y nunca permitieron que les colocarán una de esas coronas en la cabeza. Algunos indios y simpatizantes de los indios rechazan todo esto como superstición de “hombres blancos” ‒ “los blancos siempre mezclan todo”, dijo el líder Shavante Mário Juruna (Correio Braziliense, 12 de junio de 1988: 5) ‒ y respondieron a la superstición diciendo que es el propio “blanco” el mal augurio para los indios (Correio Braziliense, 26 de septiembre de 1988: 8). 161 El legislador pro-indio Tadeo França repudió la creencia y agregó una posible explicación: “A lo largo de la historia los indios se han convertido en especialistas en el arte de perder. Quizá por esta razón, en el inconsciente de los “blancos”, la corona de plumas representa el sufrimiento de una raza en extinción y los blancos temen un destino similar” (Correio Braziliense, 12 de junio de 1988: 5). De todas maneras, esto no disuadió a muchos indios de continuar con esa nueva tradición interétnica. Al contrario, ellos se muestran perfectamente dispuestos, de hecho, ansiosos de jugar el juego de la “maldición de la corona”. Abonando la creencia, una lista de infortunios que han acosado a famosos se cita como evidencia de los poderes ocultos del artefacto y, por extensión, de los propios indios: Tancredo Neves, nombrado presidente en 1985, murió de septicemia justo antes de asumir el cargo; Fernando Collor de Mello, electo presidente en 1989, fue depuesto dos años después de asumir; Ulysses Guimarães, un influyente legislador, desapareció en el mar en un accidente de helicóptero el día del aniversario del Descubrimiento de América en 1992; Luiz Inácio Lula da Silva, en ese entonces varias veces candidato a presidente, nunca fue electo. 1 En 1995, una caricatura muestra a Luiz Eduardo Magalhães, entonces presidente de la Cámara de Diputados, vistiendo un collar indígena mientras rechaza la corona. Dice la leyenda: “Luiz Eduardo Magalhães [...] hizo todo lo que pudo para evitar que un grupo de indios le ponga la corona en la cabeza. Según el folclore político, da mala suerte”. (Folha de São Paulo, 8 de abril de 1995, sec. 1, p, 4). Político prometedor entrando en los 40 años, Magalhães murió al sufrir un ataque cardíaco tres años 1 Hasta el momento de la primera redacción de este artículo. 162 después. Incluso la estatua de la Justicia que está frente a la Corte Suprema en Brasilia fue coronada por indios durante una protesta por la demarcación de sus tierras en 1996 (Ramos, 1998: 262). Nada le ha ocurrido a la estatua, pero sigue tan ciega como siempre. La profecía autocumplida de la creencia popular en los poderes ocultos de los indios, que recuerda los miasmas históricos de Putumayo descriptos por Taussig (1987), no se limita al destino de personalidades públicas, sino que se extiende a sus trabajos también. Veamos un ejemplo de Brasilia. Episodio 2 En la década de 1980, el Banco do Brasil proporcionó fondos para la construcción de un edificio monumental que serviría como Museo Nacional del Indio, localizado en Brasilia, sede del Distrito Federal y capital de la Nación. Oscar Niemeyer, el famoso arquitecto que construyó Brasilia y una cantidad de edificios modernistas en todo el mundo, fue elegido para este trabajo. Se inspiró en las casas redondas tradicionales de muchos indígenas y, transformando la paja en cemento, erigió el monumento en el lugar apropiado, conocido como Eje Monumental. Pero, al contemplar su propia realización, e incluso antes de terminarla, Niemeyer concluyó que la construcción era demasiado grande y bella pura los indios. Junto con el gobernador del Distrito Federal, Niemeyer proclamó su obra maestra futura sede del Museo de Arte Moderno. Dirigiéndose a los indios, el gobernador justificó el cambio diciendo que “los indios no quieren ser objeto de contemplación folclórica, sino de estudio y respeto por parte de 163 la comunidad [o sea, de la sociedad mayoritaria]” (Correio Braziliense, 5 de junio de 1988: 39). El premio consuelo para los indios sería la construcción de su museo en el campus de la Universidad de Brasilia, “para el mejor conocimiento de los estudiantes de antropología” (Cunha, 1988: 3). El momento era sugerente, porque la nueva Constitución acababa de ser aprobada y los indios estaban en la ciudad celebrando sus modestas victorias. Una noticia describe la ocasión. Las naciones indígenas interrumpieron las conmemoraciones de sus triunfos en la Constitución para registrar una pérdida. El Museo de los Indios de Brasilia, que debía ser inaugurado el 15, se transformará en el Museo de Arte Moderno, por sugerencia del arquitecto Oscar Niemeyer, apoyado por el gobernador del Distrito Federal, José Aparecido de Oliveira (Jornal do Brasil, 6 de junio de 1988). La reacción inicial de algunos indios fue, de cierta forma, fatalista. El mismo diario agrega: El Chamán Prepori Kajabi, que hizo el ritual chamánico en el Congreso Nacional para asegurarse que los derechos indígenas fueran reconocidos en la Constitución, repitió el ritual este fin de semana frente al Museo del Indio inacabado y concluyó: “el museo es algo de los hombres blancos y los indios no deben pelear por algo que siempre fue de los blancos” (Jornal do Brasil, 6 de junio de 1988). 164 Pero después vino la maldición indígena sobre la fantasía de cemento de Niemeyer. Como dijo un simpatizante de los indios consternado: Muchos artistas juraron nunca poner un pie en el MAM (Museo de Arte Moderno) o exhibir sus obras en su acervo, porque la maldición lanzada sobre él por los indios Preporé y Sapain, cuando evocaron el Espíritu de las Aguas, es una amenaza permanente para creyentes y no creyentes, todavía no deshecha (Fonteles, 1989: 6). Diez años después, ninguna obra de arte significativa, en cantidad o calidad había sido llevada al museo, que estaba decayendo rápidamente por las lluvias despiadadas de la estación lluviosa de Brasilia. En las extensiones verdes de la capital federal se veía el delirio de Niemeyer, una semi-ruina hechizada que era al mismo tiempo un monumento que ofendía a la vista y un testigo ocular de otro acto más de falta de respeto oficial a los indios brasileños. Recientemente, en un acto de deliberada distracción, el gobierno revirtió su decisión y le dio el museo abandonado a los indios. Hasta aquí vimos cómo la imaginería interétnica se construye y naturaliza en los límites de un país específico. Sin embargo, lo que ocurre en Brasil no es muy diferente de las variantes blancas, anglosajonas y protestantes sobre el tema de los indios o las variantes de los Apaches del Oeste sobre los “Blancos” que Basso (1979), Stedman (1982), Strong (1996) y los autores de la colección sugestivamente titulada Dressing in Feathers (Vistiendo de Plumas) (Bird, 1996) describen en los Estados Unidos. Pero el proceso de esencialización no está confinado al Estado-nación. También hay una multitud de 165 prodigios indígenas mediáticamente atractivos, dirigidos a públicos internacionales. Los siguientes episodios, aunque comparten hechos y protagonistas, tienen diferentes agendas, mensajes y resultados. Ambos ocurrieron en Brasil, pero parte de su importancia tuvo que ver con la presencia masiva de extranjeros. Mi asunto principal no será la importancia institucional y las consecuencias de estos eventos, sino que me limitaré a los aspectos directamente relevantes para la cuestión del esencialismo. Episodio 3 En junio de 1989, el viejo pueblo de Altamira, en el estado norteño de Pará, tuvo sus cinco días de fama. La ocasión fue una enorme reunión convocada por miembros de nueve comunidades Kayapó para protestar contra los planes del gobierno brasileño de construir una serie de centrales hidroeléctricas a lo largo del río Xingú. El megaproyecto amenazaba inundar las tierras de once pueblos indígenas. Representantes de 24 grupos indígenas, funcionarios del gobierno, 300 ambientalistas, miembros de organizaciones no gubernamentales, la Iglesia Católica, antropólogos y otras personas pro-indios se congregaron en la humilde Altamira. En total, alrededor de 3000 personas asistieron a la gigantesca asamblea en las afueras de la ciudad. A su vez, una parte de la mayoría de la población que estaba a favor de la represa desfilaba montada a caballo, aumentando el nerviosismo que normalmente domina las relaciones interétnicas en la región. El primer día, 20 de junio, había alrededor de 100 periodistas de 166 Brasil y del exterior. El último día, 24 de junio, sólo la prensa extranjera sumaba más de 150 personas. Paralelamente a los eventos políticos principales, que incluían a líderes indios y a funcionarios del gobierno, personalidades del mundo del espectáculo ‒ como el rock star inglés Sting y el cantante brasileño Milton Nascimento ‒ le agregaban emoción a la atmósfera ya electrizada. Intentando mezclarse miméticamente con los hombres y mujeres indígenas vestidos con ropas ceremoniales, grupos de mujeres jóvenes en éxtasis hablando una variedad de lenguas europeas, vestidas en mínimos trajes tropicales, con pintura en la cara y el cuerpo, bailaban y sonreían a las cámaras en estado de gracia, como si vivieran alguna energizante fantasía New Age (O'Connor, 1993). Algunas escenas fuertes fueron registradas en palabras e imágenes y tuvieron amplia circulación. La que más impresionó al público mostraba una mujer Kayapó de mediana edad agitando un machete que tocó las mejillas del director de la empresa de energía del Estado. Capturado desde varios ángulos, su gesto dio la vuelta al mundo y fascinó a los telespectadores. Insensibles a las realidades etnográficas, algunos incluso sugirieron que fuera elegida la Mujer del Año por su coraje al desafiar a un hombre poderoso, Eso, sin embargo, tiene más que ver con la cultura que con el coraje: El primer Encuentro de Naciones Indígenas de Xingú obtuvo una dimensión dramática la mañana del 21 cuando la india Kayapó, Tuira, emergió del público y puso su machete en la cara del director de Electronorte, José Antônio Muniz Lopes, quien estaba tratando de justificar la construcción de la represa de Kararaô. El director de Electronorte y el 167 representante del Gobierno Federal, Fernando Cézar Mesquita, se pusieron pálidos en el momento en que el machete cortó el aire a algunos centímetros de la cara de Muniz Lopes. El líder Paulinho Paiakan inmediatamente explicó que no era un gesto de guerra, sino simplemente un gesto ritual por medio del cual una mujer Kayapó expresa su indignación (Centro de Documentação e Informação-CEDI, 1991: 335). Igualmente espectacular fue la llegada de Paiakan, el principal promotor del evento: Cien periodistas brasileños y extranjeros observaban la majestuosa llegada del líder índio. Paiakan descendió de la aeronave Bandeirante vestido de shorts y con una corona de plumas, adornado con la pintura ritual y exhibiendo la cicatriz de su abdomen (de una reciente cirugía de apendicitis). Comenzó a llorar cuando pisó el suelo. Varios de los guerreros que lo protegían de la histeria de los periodistas también lloraron. Protegido por líderes de las once comunidades Kayapó que fueron a su encuentro, el líder lentamente cruzó las barreras de los guerreros, saludando a sus conocidos. La escena dejó a los extranjeros hechizados (CEDI, 1991: 331). Es importante mencionar, para esclarecimiento etnográfico, que el llanto ritual es parte de las ceremonias de llegada en muchas sociedades indígenas del Brasil Central (véase, por ejemplo, Wagley, 1977). Otro incidente importante ocurrió cuando el director de Electronorte anunció que no más se le daría el nombre de 168 Kararaô a la represa, porque era una agresión a la cultura Kayapó. Paiakan escuchó atentamente su promesa de cambiar el nombre y de no usar nombres indígenas en sus hidroeléctricas. Después [Paiakan] les pidió a los guerreros que le mostraran lo que significaba Kararaô. Un grupo de guerreros se levantó y en medio del estadio comenzó a cantar furiosamente y a representar una danza de guerra (CEDI, 1991: 335). La apoteótica sesión de cierre tuvo a un líder Kayapó mostrando una copia de la Constitución Brasileña, al cantante Milton Nascimento saludando a los indios y a Benedita da Silva, popular miembro del Congreso, afrobrasileña, vistiendo una corona de plumas. Los periodistas extranjeros que cubrían el evento “parecían en trance” (CEDI, 1991: 335). Con sus múltiples funciones, la reunión puso de relieve el fenómeno de un mercado internacional de exotismo, manifiesto en la interrelación entre consumidores no indígenas y productores indígenas de recursos culturales como mercancías. Mostró las dos caras de la misma moneda: por un lado, un ávido público blanco, cuya proximidad con los indios “reales” sirvió como inspiración para sus búsquedas místicas o simplemente como emoción barata; por otro lado, los igualmente ávidos indios “reales”, convirtiendo su capital cultural en una fuerza política contra políticas estatales indeseables. Ambos lados reforzaban los deseos del otro, ostentando sus egos actuados frente a las fascinadas cámaras de los medios. El evento de Altamira es uno de esos fenómenos que, al desplegar sus complejidades, hacen del análisis social un deleite 169 y un desafío. Podemos atrevernos a llamarlo hecho social total de políticas interétnicas. Porque ahí encontramos, del lado no indio, a Altamira exponiendo los mensajes ambiguos recurrentes: los indios como obstáculos para el desarrollo que deben ser combatidos o persuadidos para dar lugar al progreso, y los indios como guardianes de la naturaleza y víctimas virtuosas de la civilización, como culturas modelos para un Occidente más esclarecido. De parte de los indios, vemos la instrumentalización intensa de sus primordialidades culturales, su aguda sagacidad política y su tremenda capacidad de organización, Por ejemplo, no fue por casualidad que los Kayapó eligieron el final de junio para realizar el evento. Como explica Terence Turner (1991a), el encuentro de Altamira estaba planeado para coincidir con la fase final de la fiesta asociada a la cosecha de nuevo maíz, la ceremonia más importante en la que participan las aldeas indígenas. Los habitantes de las aldeas Kayapó, habiendo llevado a cabo las dos primeras fases del ritual, estaban ansiosos por encontrarse en Altamira, como hubieran hecho en sus hogares. Esa fue la forma astuta que los organizadores encontraron para motivar a tantos indios, la mayoría de ellos monolingües, para ir todos juntos a una serie de eventos políticos que de otra manera no hubieran captado su interés. Por otro lado, la experiencia que líderes como Paiakan tenían de sus contactos previos con agencias multilaterales, como el Banco Mundial y las varias ONG de Brasil y del extranjero, se convirtió en ayuda financiera para llevar a cabo el encuentro. Personalidad bien vista entre los ambientalistas, Paiakan se hizo conocido como conservacionista preocupado por el futuro de la selva. Después de Altamira fue condecorado con el premio de las Naciones Unidas Global 500, el premio de la Sociedad para 170 un Mundo Mejor y fue tema de tapa de un número de la revista Parade en 1992, bajo el título “Un hombre que podría salvar al mundo”. La ironía de esto es que Paiakan era uno de los Kayapó que acumuló una fortuna sustancial con la venta de madera y las regalías de garimpeiros de oro que estaban en su reserva. En el último episodio veremos una reversión dramática en la fortuna de Paiakan, Un año era un héroe, al año siguiente un monstruo. Episodio 4 En 1992, la Conferencia de las Naciones Unidas sobre Medio Ambiente y Desarrollo, conocida también como la Cumbre de Río, congregó un número significativo de representantes indígenas de muchos países. En un campamento improvisado junto a la Bahía de Guanabara, organizaron el Forum Global, una serie de eventos independientes de los debates oficiales que se llevaron a cabo en un hotel elegante de una zona cara de Río de Janeiro. Como en el caso de Altamira, los indios, ahora de todo el mundo, atrajeron la atención de seguidores fascinados, multitud de periodistas y del público en general, y le robaron el show a la contraparte oficial. Lo que me interesa aquí, sin embargo, no es la Cumbre en sí, sino un hecho que tuvo lugar a miles de kilómetros, en la Amazonia, y que tuvo fuerte eco en Río de Janeiro. El segundo día de la Cumbre, mientras esperaban a Paiakan en el Forum Global, las noticias decían que él había violado a una chica no india durante una parranda en su rancho cerca de la ciudad de Redención, adyacente a la reserva Kayapó. El caso fue rápidamente tragado por una ola sensacionalista que 171 duró meses. Acusaciones de salvajismo y canibalismo se le imputaban a Paiakan y a su mujer, de quien se decía que le había infligido severos daños corporales a la chica. Paiakan fue objeto de bromas pornográficas y su nombre estuvo en la boca de todos. Veja, una de las revistas brasileñas de más amplia circulación, colocó en la portada una fotografía ampliada de la cara de Paiakan, El titular decía: “El salvaje: el líder y símbolo de la pureza ambiental tortura y viola a una estudiante blanca, y luego huye a su tribu” (10 de junio de 1992). Veja y la mayoría de los diarios no tuvieron escrúpulos en condenar a Paiakan antes del juicio. Fue declarado culpable hasta que se probara su inocencia. El caso levantó una polémica mayor relacionada a la imputabilidad de Paiakan. Como indio, sería legalmente juzgado como “relativamente incapacitado”, porque la ley considera que los indígenas no están preparados social y culturalmente para operar en la sociedad nacional como ciudadanos normales. Por lo tanto, están oficialmente amparados por el Estado. Mientras su esposa, que no habla portugués, fue considerada incuestionablemente “primitiva” (Ramos, 1988: 54-55), las opiniones sobre Paiakan se dividían. Algunos le adjudicaban la responsabilidad plena porque estaba de hecho emancipado de su estatus especial indígena, después de todo, era un indio rico que tenía un rancho y un auto. Otros mantenían que, como indio, no podía haber hecho otra cosa. Por un lado, aunque sabía lo que estaba haciendo, estaba siendo llevado por su “instinto salvaje”, como fue planteado por Veja; por el otro, era un ejemplo irrecuperable de la ineptitud de los indígenas para la vida cívica. En cualquier caso, la opinión pública lo despojó de su humanidad. Entre los argumentos a favor y en contra de la inimputabilidad de Paiakan, estaba la declaración de un abogado de la Fundación Nacional del Indio 172 (FUNAD, de que sólo “un informe antropológico mostrando que Paiakan era un indio integrado a la civilización podría hacerlo pasible de ser procesado penalmente” (Ramos, 1998: 54). Esto puede ser sorprendente viniendo de un abogado, pues esta afirmación no tiene fundamento, considerando que los indios son tan imputables como cualquier brasileño en relación a la responsabilidad penal (Carneiro da Cunha, 1992). Paiakan fue absuelto en 1994 por insuficiente evidencia. Pero un nuevo juicio en 1999 lo condenó a seis años de prisión. Después de este juicio sus abogados buscaron desesperadamente a un experto antropólogo que estuviera dispuesto a declarar la incapacidad civil de Paiakan. Desde sus puntos de vista, no había problema en negociar su libertad por su capacidad de agencia. Esta cause célebre detonó un diluvio de argumentos que fueron más allá del caso en sí. Sectores anti-indígenas aprovecharon la injusticia que significaba el hecho de darles ese trato especial a miembros de una minoría y así crear un doble estatuto en la ciudadanía. La revista Veja, por ejemplo, se quejaba porque “la dificultad (de los ambientalistas) de aceptar el lado criminal de Paiakan viene de un hábito mental reciente según el cual es siempre correcto relativizar el comportamiento inconveniente de las minorías” (citado en ISA, 1996: 412). El periodista Janer Cristaldo “demandó que Paiakan sea castigado y cuestionó lo que él llama privilegios jurídicos de los indios brasileños”. De acuerdo con Cristaldo, “el indio no trabaja, no produce, simplemente devasta” (ISA, 1996; 417). El abogado Miguel Reale Júnior afirmó que Paiakan no era más inimputable y debía ir a juicio por estupro e intento de asesinato. Añadió: “debemos poner un freno al mito del indio naturalista, desde el momento que dejó su tribu y se aculturó, 173 dejó de ser un indio para ser un civilizado” (citado en ISA, 1996: 413). Estas opiniones son atractivas para los que sostienen la idea débil de que la democracia significa igual tratamiento a todos, a pesar de que no todos sean iguales en una sociedad tan desigual como Brasil. Así usado, el concepto de democracia ingresa en el dominio de los símbolos inagotables que siempre están abiertos a interpretaciones conflictivas (Ricoeur, 1978: 242-265), dependiendo de la posición que se esté defendiendo. Defensores de la causa indígena estaban preocupados por el hecho de que las repercusiones negativas del escándalo pudieran ser usadas por intereses anti-indios para minar los derechos indígenas. La acusación contra Paiakan podría convertirse en un argumento conveniente para el “lobby antiambientalista” que se opone a la demarcación de las tierras indígenas, temía Sydney Possuelo, el presidente de la Fundación Nacional del Indio, FUNA1, de la época (ISA, 1996: 413), El Ministro de Relaciones Exteriores, Celso Lafer, afirmó que “el gobierno brasileño estaba preocupado por la publicidad del crimen atribuido a Paiakan y temía que el asunto pudiera ser explotado para poner en peligro la lucha de los indios” (Folha de São Paulo, 10 de junio de 1992, sec, 1: 14). Desde la Cumbre de Río el legislador ambientalista Fábio Feldmann declaró: “En este momento, cuando estamos luchando por los derechos de los indios, la duda se ha expandido sobre toda la lucha por la preservación de las naciones indias y del medio ambiente. Creo que el periodismo en Brasil debería ser más responsable” (Folha de São Paulo, 9 de junio de 1992, sec, 1: 10). Desde Londres, Stephen Cory, director de la ONG Survival International, culpó a Anita Rodick, la dueña de la cadena de negocios de cosméticos Body Shop, por el escándalo de Paiakan. Según él, “ella puso 174 demasiado poder en manos de un único individuo”, cuando eligió la comunidad de Paiakan como centro de sus operaciones para recolectar materia prima. Cory concluyó que el crimen atribuido a Paiakan era un “serio retroceso” para la protección de los derechos de los indios (Seidl, 1992, sec. I: 10). Detrás del sentimiento común de indignación por el tratamiento dado a los indígenas, estos testimonios, como sus opuestos, también revelan los intereses detrás de los autores: la FUNAI, “guardiana” de los indios, teme que su rol – demarcar las tierras indígenas” – sea socavado, el Ministro de Relaciones Exteriores teme publicidad negativa, el ambientalista identifica la defensa de los indios con la defensa del medio ambiente y el director de la ONG reprende a su antigua enemiga, la empresaria “verde”. Así, rebosante con intensos significados, el caso Paiakan, particularmente en asociación con el megaevento ambientalista que ocurría en la Cumbre de Rio, se transforma en un verdadero laboratorio para observar el nacimiento de lo que Latour (1993: 11) llamaría híbrido o cuasi objeto, o sea, el indio como una combinación de componentes naturales y productos humanos. Es la naturalización de los indios en su máxima expresión. ¿Qué hay en común entre el episodio 1, en que los indios son extensiones de la misteriosa y cruda naturaleza, el episodio 2, en que los indios son portadores de fuerzas diabólicas, el episodio 3, en que los indios cultivan maravillas exóticas, y el episodio 4, en que los indios son protegidos indebidamente corno criaturas salvajes? Entre otras semejanzas, todos apuntan a la misma dirección: la fabricación de una relación metonímica entre los indios y la naturaleza indómita. Las ambivalencias que despliega la sociedad brasileña hacia los indígenas se manifiestan en un movimiento pendular 175 recurrente entre distancia y proximidad. Mientras hay voces nacionales que proclaman que los brasileños somos subdesarrollados porque tenemos indios en el patio trasero, también hay quienes afirman que somos una nación especial precisamente porque coexistimos con la sabiduría y la pureza de los indios. Estas concepciones opuestas no significan, por supuesto, ninguna relación con las realidades de la vida indígena. Son fabricaciones que sirven a diferentes intereses y se aplican solamente dentro de ciertas coyunturas. En este sentido, el indio es un producto de la ingeniería ideológica de los no indios. Parte naturaleza, parte artificio, los indios proveen a la nación de un reservorio de argumentos que justifican posiciones tan diferentes como las mencionadas. Como los otros privilegiados de los brasileños, los indios condensan lo que Coronil le atribuye al occidentalismo, por sacar a la luz su génesis de relaciones asimétricas de poder, incluyendo el poder de oscurecer su génesis de desigualdad, de desligar sus conexiones históricas y, por lo tanto, presentar como atributos internos y separados de entidades cerradas lo que en realidad son productos históricos de pueblos conectados (Coronil, 1997: 14). La asociación metonímica de los indios con la naturaleza también está motivada por otra ambivalencia, la de Brasil con su geografía tropical. Por un lado, es la tierra bendecida donde todo crece sin esfuerzo. Por otro, es un infierno terrestre de pestes y enfermedades, inapropiadas para el florecimiento de una civilización superior. El registro sociohistórico sobre el país abunda en afirmaciones que defienden una u otra posición 176 (Leite, 1992). No es de extrañar que la relación indio-naturaleza sea tan fuerte en las mentes brasileñas. Mientras para algunos los indios pueden ser tan difíciles de manejar como los trópicos, para otros son tan indispensables cuanto el “pulmón del mundo”, un conocido epíteto que la imaginación ecológica grosera le atribuyó a la selva amazónica. “Lo exótico no está en casa” Aunque esté estrechamente relacionado con el esencialismo, el exotismo tiene una lógica propia. Como en el caso del colesterol, es posible identificar un exotismo negativo y uno positivo. El exotismo negativo resulta del abuso político de la alteridad, sea esta directamente extraída de prácticas nativas sacadas de contexto o en descripciones etnográficas distorsionadas (un ícono de mal exotismo es la imagen del Yanomami creada por varios autores que siguieron las huellas de Napoleón Chagnon). Inversamente, el lado positivo del exotismo afirma que la diversidad cultural es fundamental para rebajar al occidente bombástico que posa como ganador, frente al resto inútil, tomado como perdedor. Cuando promueve un movimiento hacia la otredad constructiva, el exotismo se despoja de su -ismo junto con la virulencia política y ética y, como una bandera de la diferencia afirmativa, se transforma en una herramienta legítima para contrarrestar a la afectación hegemónica y al complejo de superioridad de las sociedades mayoritarias. ¿Existe el exotismo en casa, o sea, involucrando minorías nacionales, o solamente aparece cuando hay una distancia física considerable entre el exotizador y el exotizado? Tiendo a 177 concordar con Peter Mason (1998: 148) cuando sostiene que “lo exótico no está en casa” porque “la presentación de lo exótico necesariamente implica desplazamiento y despegue”. Quisiera, sin embargo, añadir mayor complejidad a este argumento. La coexistencia histórica de sociedades nacionales con sus otros internos tiende a erosionar el sabor exótico que los rasgos culturales tuvieron en el pasado. El proceso de metabolización cognitiva y afectiva de las diferencias domésticas desgasta el sentido de separación que caracteriza la mirada exótica desde lejos. La maldición de la corona de plumas ilustra este punto. Diferente de la distante fascinación o la repulsión que caracterizan la reacción de un distante observador de diferencias, los brasileños que ora creían, ora se mofaban de los poderes ocultos del artefacto, lo hacen involucrados de una manera que puede llevarlos a la participación. Este proceso de participación sea intencional o no, señalaría el pasaje del exotismo al esencialismo. De hecho, uno puede observar este proceso cuando una minoría no reconocida como tal, luchando para afirmar sus diferencias culturales, golpea la muralla de la indiferencia nacional. Hay un momento en el que esa minoría tendrá que crear artificialmente un desplazamiento y una distinción para ser notada. Hay muchos ejemplos en el dominio de la así llamada etnogénesis, en la que las minorías reviven o reinventan las tradiciones culturales, en busca de reconocimiento étnico (Hill, 1996; Oliveira, 1999). Los indígenas del Nordeste brasileño ilustran este mecanismo. Para resistir a la indiferencia de la Nación e incluso la negación de una singularidad étnica, estos indios hicieron un esfuerzo colectivo para distanciarse de la masa de la población nacional, desplegando diacríticos asociados con la indigenidad en la 178 imaginación popular. Algunos, como los Pataxó en el estado de Bahía, en su búsqueda de una identidad cultural, intentaron llenar el vacío cultural dejado por la pérdida de su idioma materno aprendiendo la lengua de los Maxacali, en el estado vecino de Minas Gerais. ¿Cómo podrían proclamar ser diferentes de los brasileños si el único idioma que hablaban era el portugués? ¿Cuán bueno puede ser un idioma oficial nacional como vehículo de distinción étnica? Aquellos que tuvieron éxito en afirmar sus personajes étnicos exhibiendo trazos exóticos están aptos para unirse al coro de la autenticidad, sea real o construida. Si, como sostiene Rosaldo, demandar autenticidad de minorías culturalmente despojadas implica un acto de “nostalgia imperialista” (Rosaldo, 1989: 68-86), la resurrección cultural de pueblos como los indios del Nordeste de Brasil puede significar un alivio irónico de este malestar de la mayoría. Una vez que las diferencias culturales se crean y son admitidas por la sociedad en su conjunto ‒ y aquí los medios cumplen un rol fundamental ‒ el distanciamiento artificial no es más necesario y el exotismo da lugar al esencialismo. Mientras el exotismo en casa puede no durar, es precisamente en casa que el esencialismo como práctica política prospera, como ejemplifica la situación europea. El boomerang esencialista En el complejo juego de intereses, comprensiones y malentendidos que son parte de la zona de contacto interétnico (White, 1991, Conklin & Graham, 1995), la manipulación de las primordialidades (a la Geertz, 1973, capítulo 10) por medio de 179 diacríticos culturales superenfatizados o el énfasis en la separación por una lengua y rituales exclusivos, indica que los pueblos indígenas como los Kayapó y los Shavante, entre otros, insisten en mantener “las especificidades sin, de cualquier manera, renunciar a los posibles beneficios que el Estadonación circunvecino les puede ofrecer. Con este fin, no dudan en complacer expectativas estereotípicas por parte de los no indios. Bajo la apariencia de seguir aquello que se espera de ellos, los indios refuerzan lo que quieren que la sociedad nacional vea en ellos, si eso les trae beneficios políticos. Dos conceptos conocidos me vienen a la mente al tratar de darle sentido a todo esto. Uno es el concepto de Goffman de manejo de las impresiones: “El actor dramatúrgicamente prudente deberá adaptar su actuación a las condiciones de información bajo las que actuará” (1959; 222). El otro es la sismogénesis de Bateson: “un proceso de diferenciación en las normas de comportamiento individual que resulta de la interacción acumulativa entre individuos” (1958: 175). Ambos conceptos resaltan la reciprocidad de las partes involucradas en la interacción y su constante escrutinio de las acciones y reacciones de cada una. El concepto de Goffman enfatiza las minucias de la interacción cara a cara, en la que los actores deliberadamente ajustan su comportamiento de acuerdo a su propia lectura de las reacciones de su interlocutor. En la sismogénesis de Bateson, tenemos el factor de la experiencia acumulada influenciando la predisposición de un actor hacia otro. En el caso de la corona de plumas y del Museo del Indio, los indígenas y no indígenas actuaron sus roles respectivos de manera hiperbólica como forma de reforzar un contexto en el cual la otredad (de los indios respecto a los blancos y viceversa) 180 ha sido desde largo tiempo construida. También significaba una distancia irónica entre los indios y los poderosos. En el caso del encuentro de Altamira, para muchos de los forasteros la otredad significó proximidad, una forma de alcanzar la autenticidad por ósmosis, por contagio, siguiendo la suposición de que la indianidad es parte de una naturaleza redentora. En ambos casos, los indios se comportaron tal como se esperaba de ellos, adornando las capas exteriores de su indianidad. Como cada parte actuó según las expectativas del otro, los indios y no indios compartieron la misma forma gramatical de esencialización. Su aceptación tácita a discordar en situaciones en las que los antagonismos debían dar lugar a la maximización de beneficios sociales es, una vez más, una reminiscencia de la definición operacional de Leach de ritual y mito aplicada a sus datos de Alta Birmania, “un lenguaje de argumento, no un coro de armonía” (Leach, 1954: 278). Bajo las fábulas extravagantes proporcionadas por los medios, ambas partes estaban usando la cultura como artefacto político productivo para sus propios fines. Debemos dejar en claro que el actuar la cultura no es necesariamente un acto de esencialismo. No sería apropiado, por ejemplo, llamar esencialista a la actuación de un rito de pasaje para los propósitos internos de una sociedad dada. Pero cuando los rasgos culturales se despliegan fuera de sus contextos culturales específicos, tenemos, al menos potencialmente, un acto de instrumentalización. ¿Son los indígenas personas libres para instrumentalizar sus culturas a voluntad? ¿Pueden aspirar a quererlo todo? Dado el hecho de que la esencialización ocurre en un contexto de desigualdad política en el que los indios están invariablemente en el extremo más débil del espectro de poder, invocar 181 símbolos resonantes de alteridad puede traer efectos boomerang, como en el caso de Paiakan, el líder Kayapó. La respuesta feroz de los medios al alegado crimen de violación equiparóse a los altos elogios que obtuvo como defensor genuino de la integridad de los indios y del medio ambiente. En el juicio era un salvaje vistiendo plumas antes que un humano masculino. Parte de la indignación contra él tenía que ver con su éxito económico, que ofendió a personas para las cuales los verdaderos indios deben ser puros y pobres. El ejercicio de Paiakan en esencialismo tropezó con las barreras levantadas por la lógica de la política interétnica. Reflexiones Vestidos con plumas, remeras o trajes de ejecutivos, los indios brasileños son una población creciente que desdice las pseudoprofecías que nunca se cansan de anunciar su extinción. Entre los mensajeros del día del juicio final, intelectuales de diferentes convicciones declararon el fin de los indígenas en Brasil en una fecha específica que al final no llega nunca. El antropólogo Darcy Ribeiro, que había previsto su desaparición para alrededor del año 2000, reconsideró su profecía cuando se dio cuenta de que la población indígena no solo se estaba recuperando de uno de sus puntos más bajos en la década de 1950, sino que la vitalidad del movimiento indio en la de 1980 anunciaba un futuro prometedor. De hecho, eran menos de 100.000 en 1950, y la población indígena es actualmente [2003] de más de 700.000 personas, aunque sigue siendo una fracción de la población nacional. 182 Uno estaría tentado a generalizar y afirmar que cuanto más pequeña la población nativa, mayor su visibilidad. Sin embargo, ejemplos contrarios importantes, como el caso de los pueblos indígenas en los Estados Unidos y, particularmente, en Argentina, rápidamente desmienten esa generalización. Uno podría creer que el caso brasileño tal vez sea único en América. El Indio ha habitado la conciencia de los no indígenas del país desde sus días coloniales. La nacionalidad brasileña ha creado una imaginería indígena que se ajusta a sus propias premisas de que los indios son los herederos legítimos de la tierra, un pilar imprescindible para su fundación como sociedad única basada en el mito de las tres razas (india, negra y blanca) y para su reclamo de independencia cultural frente a las influencias europeas. Quizá la novedad del indigenismo contemporáneo sea el rol activo que los indios tienen en la construcción de este imaginario nacional. Los dos primeros episodios discutidos aquí ejemplifican la empresa colectiva de indios y no indios en la producción de un escenario pluriétnico. Ambos episodios muestran cuán complicado el proceso de forjar la otredad puede ser. La forma indirecta en que algunos sectores de la sociedad urbana brasileña crean una grieta esencial entre “civilizados” e indios revela una ambivalencia interesante en los sistemas de creencias. Muchos brasileños cosmopolitas son reacios a admitir su susceptibilidad a fenómenos sobrenaturales, particularmente cuando emanan del misterioso mundo indígena y por eso transfieren su incomodidad metafísica al populacho ingenuo: el papagayo es un ave de mal agüero en la creencia popular tradicional. Raramente confiesan en público ser creyentes, esas personas urbanas intentan abarcarlo todo: jugar el juego folclórico y mantener su yo racional distanciado 183 de los indios “pre-lógicos”. Su ignorancia de las formas de vida indígena, a menudo tácitamente alimentada, es una prueba convincente de esta distancia. Una vez que la gran división indios/no indios es establecida con firmeza, se abre un abanico de posibilidades simbólicas: los diacríticos indígenas se disponibilizan para cuantas significaciones y resignificaciones sean necesarias para dar cuenta de las fisuras no racionales en el alegado mundo racional de los asuntos cívicos. Plumas coloridas y sesiones esotéricas de chamanismo son algunos de los ítems más adecuados a este propósito por su atractivo visual y por reafirmar la confianza en que, gracias a la ignorancia etnográfica protectora, la distancia social cómodamente se preserva. Así son los caminos de esencialización. La opresión casi nunca es tan completa como para no dejar alternativas al oprimido. En las décadas recientes, particularmente desde la promulgación de la Constitución Federal de 1988, los indios brasileños han aumentado el número de opciones interétnicas para incluir vías de acción política más allá de la satisfacción de los gustos esencialistas de la sociedad mayoritaria. Mientras que “jugar a los indios” ha sido una forma muy efectiva de afirmar sus derechos y sus reclamos, los líderes indígenas cada vez más están favoreciendo otras tácticas de ganar poder, sea rechazando por completo el llamado a la esencialización o invocando primordialidades culturales no como bastiones de la otredad inconmensurable, sino como afirmación de igualdad dentro de un régimen de diferencias legítimas. En el largo y sinuoso camino de cuasi-objetos a sujetos plenos, los indios brasileños, como muchos nativos en todo el mundo, han aprendido a valorar el concepto de cultura y, con una notable sagacidad, le han enseñado al mundo no 184 indígena, incluyendo a los antropólogos, cómo absorber críticamente y reformular las ideas recibidas. Actuando muchas veces en contradicción con el sentido común, mujeres y hombres indígenas han mostrado una sabiduría política extraordinaria detrás de lo que parecía a muchos no indios pura ingenuidad. Mucho más avanzados que la capacidad crítica de sus observadores, los líderes indios han sorprendido muchas veces a los antropólogos con sus tácticas novedosas y talentos estratégicos (Albert, 2001; Ramos, 1998). Frente a todo esto, podemos preguntarnos; ¿hasta dónde la teoría social nos ayuda a comprender la originalidad de la imaginación política indígena? Para limitarnos al asunto aquí analizado, cuando los teóricos dicen que el esencialismo es una mala política, lo que hacen es crear un punto ciego. En tanto este punto ciego persista, siempre correremos el riesgo de chocar con la realidad. 185 Sonho de uma tarde de inverno: a utopia de uma antropologia cosmopolita [2012] Prelúdio O tema do universo antropológico dividido em zonas diferenciadas de poder parece se agigantar quando visto do centro desse poder. A dicotomia Centro versus Periferia assume berrantes cores primárias quando observada contra o pano de fundo da paisagem branca de neve e, ao que parece, inabalável da Metrópole. O que se segue é um breve exercício de fantasiar o que seria dessa paisagem se o jogo de poder fosse outro.1 Criar uma ficção de democracia acadêmica como recurso retórico, a exemplo da caricatura, ajuda a ressaltar os traços mais salientes da problemática em questão. Utopias são boas para sonhar. Seu horizonte, ainda que inalcançável ‒ e talvez por isso mesmo ‒ traz um dinamismo e, principalmente, dúvidas sobre os topoi e cânones acadêmicos que nos são impostos mais por inércia política do que por convencimento intelectual. É desnecessário dizer que a hegemonia antropológica que nos perturba, pelo menos a nós, 1 O formato deste pequeno ensaio, como se fosse uma fábula, uma narrativa mítica ou, mais sobriamente falando, uma utopia, veio–me de assalto num dia azul e gélido de fevereiro no Meio-Oeste dos Estados Unidos durante minha estada na Universidade de Wisconsin, Madison, no primeiro semestre de 2005. Talvez por isso ele pareça um tanto etéreo, irreal, ou mesmo fantasmagórico sem, no entanto, trair seu compromisso com o empenho analítico e a seriedade intelectual. 186 que estamos fora da Metrópole, não é um produto autônomo, mas sim reflexo de um estado de coisas muito mais abrangente, ou seja, a divisão mundial de trabalho e as decorrentes trocas desiguais entre povos e nações. Por que então não sonhar com o que poderia ser em outra dimensão histórico-política? Por que não emular o que nos ensina a sabedoria etnográfica sobre diversidade e como conviver com ela? Por que, por uma vez, não nos deixamos guiar pela experiência indígena, já que os nossos próprios recursos explanatórios se mostram insuficientes na conjuntura atual, em que sentimentos agonísticos impregnam nossos discursos profissionais e parecem nos conduzir a um beco sem saída? Utopia Era uma vez uma utopia chamada Cosmantrópolis2, alcunha talvez tão inusitada quanto o seu conteúdo, o que não é de surpreender. Para fundar a utopia, os pais fundadores da Cosmantrópolis inspiraram-se nos sábios poliglotas do rio Uaupés, no noroeste amazônico, onde a regra de exogamia linguística pode reunir sob o mesmo teto falantes de muitas línguas, mesmo que uma delas, a do líder da casa comunal, seja predominante. Construíram, então, uma comunidade de múltiplas vozes, numa espécie de Babel organizada e solidária no sentido durkheimiano de solidariedade, neste caso, orgânica. 2 Inspiro-me no importante trabalho em que Gustavo Lins Ribeiro (2005), em seu louvável esforço de renovação, advoga a necessidade de se criar um espaço cosmopolítico, que contemple uma antropologia verdadeiramente mundial, em que antropologias nacionais tenham oportunidades iguais de expressão e influência. 187 Todos partilhavam idiomas, ideias, soluções e propostas, sem que cada um dos parceiros perdesse sua identidade e cor local, preservadas como capital simbólico a serviço da coletividade. Cosmantrópolis prosperou e tornou-se a comunidade pensante mais criativa e vivaz na paisagem das ciências sociais. Publicações proliferavam com um público escritor e leitor sem fronteiras. Seminários, longe de imitar toscamente a alienante linha de montagem industrial, duravam o tempo necessário para que todos os participantes, guardando respeito pela vez do próximo, pudessem expressar por extenso suas ideias e as ter plenamente discutidas. Assim corria o fluxo de conceitos, juízos e opiniões sem as conhecidas travas de tempo e de espaço. Recursos para pesquisa não se limitavam a reforçar ideias dominantes e agraciavam em especial a ousadia da experimentação intelectual de onde quer que ela viesse, principalmente se fosse capaz de derrubar pseudoverdades teóricas e receitas metodológicas cristalizadas, muitas vezes, em modismos passageiros. Os editores de textos tinham como norma multar quem fizesse de conta que suas ideias eram originais e quem omitisse dar o devido e justo crédito a colegas dos países onde desenvolveram suas pesquisas de campo. A exemplo dos sábios nativos do Uaupés e alhures, os fundadores de Cosmantrópolis viam com maus olhos o culto à personalidade, pois desconfiavam que, por trás do hiperbólico e súbito sucesso individual, haveria sempre algo cheirando a ocultos passes de mágica que enaltecem o indivíduo, mas denigrem o coletivo. Por isso, não encorajavam a tendência à proliferação daqueles híbridos intelectuais vulgarmente 188 conhecidos como “étnicos chiques 3”. Esses ilustres profissionais ‒ embora trouxessem grandes contribuições para a geração e manutenção de polêmicas que, muitas vezes, vinham a calhar para interromper uma sonolenta rotina acadêmica típica da ciência normal kuhniana ‒ pouco faziam para ter reconhecida a tradição que originalmente os inspirou 4. Enfim, Cosmantrópolis seguia seu curso de pequenas transgressões em meio a uma vigiada tranquilidade social e justiça intelectual, quando forças maiores começaram a agir. Mais uma vez, a etnografia indígena nos traz inspiração. Um dia, o demiurgo reuniu o povo escolhido e apresentou-lhe o dilema da escolha. Dispôs uma série de objetos à sua frente e convidou-o a escolher o que quisesse. Havia todo o equipamento tradicional já conhecido e também um grande número de novidades ininteligíveis. O povo escolhido selecionou o que quis e rejeitou o resto. Ficaram então com arcos, flechas, canoas, panelas de barro, redes de dormir e todos os objetos que faziam sentido no seu universo. 3 Alguns pensadores, como Ahmad (1992), não escondem seu profundo desconforto com o fenômeno do (ou da) intelectual que migra para a Metrópole e assume a posição de porta-voz de seu país, estrangulando, assim, a voz dos que ficaram para viver a realidade que o (a) migrante deixou para trás. 4 Publicar em inglês pode trazer reconhecimento ao autor, mas quase nunca à antropologia nacional de sua origem. Como um gato preto em campo de neve (na vívida imagem do novelista gaúcho Erico Verissimo), tenho me visto tomar dimensões inesperadas que não são tanto o resultado aleatório de um esforço solitário, individual, quanto parte integrante da minha tradição antropológica nacional que, por sua vez, e como a minha produção, é um amálgama de influências internas e externas, embora com um sabor próprio. Os estudantes da Metrópole que leem textos meus, ou de outros em situação semelhante, e se impressionam com certas descrições e posições não têm como alcançar o mundo invisível que me sustenta e me dá coerência. No entanto, não é por não o verem que ele não existe, a exemplo da fábula dos “povos sem história” que só não a exibem porque os estudiosos ocidentais não têm os meios necessários para alcançá-la. O que passa por ausência de uns é, lamentavelmente, produto da ignorância de outros. 189 Um tanto surpreso, o demiurgo avisou que aquilo que fora rejeitado seria oferecido aos forasteiros, os homens brancos que ainda não faziam parte do mundo do povo escolhido, mas que, um dia, despontariam no horizonte. Motores, aviões, rádios, espingardas, roupas e toda sorte de objetos não identificados acabaram nas mãos dos desconhecidos. Passa-se o tempo e, inexoravelmente, as novas gerações são assaltadas por forasteiros como que caídos do céu em máquinas voadoras soltando fumaça, envoltos em peles artificiais, carregando canos que cospem fogo e, sem pedir licença nem dar satisfações, fazem exigências, apropriam-se da terra e de tudo mais que lhes interessa, assim transformando o povo escolhido em povo, se não vencido, sem dúvida, oprimido. Como se isso não bastasse, juntando insulto a dano, vieram os missionários e impuseram o humilhante império de uma das línguas locais, além, naturalmente, da sua própria, em detrimento de todas as outras. Em retrospecto, essas novas gerações lamentam que seus ancestrais tenham feito tão má escolha perante o demiurgo, mas uma coisa é certa e fonte de orgulho: o atual poderio dos brancos nada mais é do que o resultado do exercício da agencialidade dos índios. Foi porque eles fizeram a escolha errada que os brancos chegaram a ser o que são hoje, ou seja, o produto de um erro fatal. Os índios perderam bens preciosos, como vidas, terra e, quase sempre, autonomia, mas conservaram a convicção e o orgulho de quem já teve e, portanto, poderá voltar a ter, o destino nas próprias mãos. E assim também Cosmantrópolis se viu subitamente colonizada por uma enxurrada de hábeis tecnologias e empreendimentos do saber que desestabilizaram o sistema horizontal de igualdade na diferença e instalaram a 190 verticalidade do poder de produção, distribuição e consumo de bens antropológicos. Impôs-se a todos o humilhante império de uma das línguas em detrimento de todas as outras, uma simples língua franca. Perderam-se as referências nacionais que davam o sabor orgânico e cosmopolita à profissão 5. Tamanha foi a concentração de riqueza que tornou obsoletos os mecanismos de controle da desigualdade. Reconhecer plenamente a legitimidade e utilidade de outros saberes deixou de ter importância estrutural. Pasteurizando complexas ideias vindas do que hoje se chama Sul Global para afofar o próprio ninho, as antropologias do que hoje se chama Norte Global fincaram bandeiras em solo conquistado à moda de astronautas na Lua. Cosmantrópolis entrou em colapso, dando lugar à crescente hegemonia da Metrópole, enquanto o resto, fragmentado e impotente no que passou a ser chamado de Periferia, entregouse à autocomiseração, lamentando a injustiça da história. Moral da história Quais seriam então as questões centrais que impedem o florescimento de uma antropologia genuinamente cosmopolita? Vimos algumas: a forte hegemonia linguística, a desigualdade do mercado editorial, a intransitividade de ideias da Periferia para a Metrópole e até um certo cultivo da ignorância estudada por parte desta última sobre o que se 5 Quem minimamente educado deixaria de perceber o Brasil na literatura de Machado de Assis, ou a Argentina na obra de Borges (ambos universalistas)? Por que isso não acontece na antropologia? Será uma questão de se ser ou não minimamente educado? E por que é permitido não se ser minimamente educado? 191 produz fora dela, o que muito contribui para a invisibilidade do que não é metropolitano. Vejamos alguns exemplos. Na década de 1990, antropólogos metropolitanos deramse conta daquilo que muitas antropologias latino-americanas há muito já sabiam, ou seja, a necessidade de trazer a problemática indígena para o contexto político mais amplo. Alguns (por exemplo, Thomas 1991) promoveram um ato de contrição pela ingenuidade ou culpa de terem criado um Outro culturalmente exótico e politicamente isolado. Não lhes ocorreu olhar para além de seu umbigo profissional, buscar alternativas antropológicas e descobrir se sua sensação de mal-estar vem da antropologia como disciplina universal, ou do seu modo específico de praticá-la. Isso nada mais é do que uma visão etnocêntrica ou míope da antropologia que, afinal de contas, enquanto campo de conhecimento, é muito mais do que a mera soma de seus profissionais, independentemente de onde eles operam. Além disso, abandonar o apelo da diversidade, com o argumento de que cultivá-la é contribuir para a dominação dos fracos, é perder o sentido político da diferença, quando é, exatamente, esse sentido que pode atuar como antídoto contra a certeza que tem a Metrópole do seu próprio poder e da suposta impotência do Outro. Pois é essa mesma diversidade que é capaz de desestabilizar a imperturbável autossatisfação da Metrópole e deveria ser ela o estímulo para os metropolitanos se dedicarem a fazer a etnografia de sua própria casa. Mas, ao exercitar o que chamam de repatriação da antropologia, eles esbarram na falta daquele savoir político que marca os pesquisadores latino–americanos, para quem a antropologia em casa é, praticamente, tão antiga quanto a sua própria profissão. Ao descobrirem que a antropologia não vive apenas do estudo dos “primitivos”, os metropolitanos propõem dar- 192 lhes as costas para se dedicar ao estudo do próprio Centro e da gigantesca teia de poder que enreda os povos periféricos. Isso parece provocar uma reação quase matricida com relação à disciplina. Acusada, por exemplo, de transformar o conceito de cultura num instrumento de dominação (Abu-Lughod 1991), a antropologia passa a ser também responsável por reforçar o desequilíbrio de poder mundial que esses pesquisadores parecem ter acabado de descobrir. Depois de passar décadas pesquisando fora de casa, dão-se conta de que o poder, mais do que nada, clama pela atenção dos antropólogos. É o que poderíamos chamar de nostalgia do Centro. Assim, continuar a estudar “primitivos” assume um caráter politicamente incorreto se não for feito no contexto de opressão e injustiça histórica. Ou seja, o trabalho antropológico aos olhos desses adventistas só é legítimo se investigar os caminhos da dominação ocidental sobre povos marginalizados. Em si mesmos esses povos não seriam mais capazes de gerar outro interesse que não o do exotismo. É como se dependessem dos antropólogos para tornar as suas “agonias de opressão” (Herzfeld, 1997: 23) politicamente visíveis e relevantes. Se tais antropólogos se dispusessem a sair por um instante da Metrópole e examinassem as feições que a antropologia assume na Periferia, veriam que o problema de contextualizar o local numa perspectiva política mais abrangente é o pão com manteiga das antropologias mexicana, argentina, colombiana ou brasileira, para nos limitarmos ao circuito latino–americano. Se há aí um cânone facilmente reconhecível, ele é baseado em relações interétnicas e não no estudo monográfico unitário. Portanto, para quem cresceu profissionalmente com a noção de que fazer antropologia é um ato político (Ramos, 1999/2000) que, por definição, privilegia a contextualização das transações 193 sociais intra e interpovos, essas questões que, ultimamente, vêm perturbando nossos colegas metropolitanos soam um pouco como descobrir a pólvora. Supor que a supressão do cânone etnográfico por si só eliminaria os efeitos perniciosos do exotismo é deslocar o eixo do problema, pois o trabalho antropológico nunca acontece no vácuo, seja no campo, seja no escritório, e nem o antropólogo tem pleno controle do seu produto, que passa a integrar o vasto mercado de trocas simbólicas com suas regras e consequências próprias. Dependendo do contexto sociopolítico, o público leitor ‒ elemento fundamental da produção antropológica ‒ pode, em última instância, neutralizar uma ideia potencialmente fecunda. Esperemos, algum dia, poder perfurar a couraça da Metrópole e inseminá–la com o vírus da autodúvida. É verdade que toda sociedade tem seus mecanismos de defesa contra potenciais ataques aos seus limites, mas é raro encontrar uma manifestação tão forte quanto a extraordinária capacidade que tem a Metrópole de fagocitar o estranho, o diferente, transformando tudo numa polpa de fácil digestão mental. Se, por um lado, é evidente o apetite voraz que têm os centros de disseminação por bens culturais, também é certo que, subjacente à história processual, há sempre um movimento dialético que se desenrola em silêncio, quase sempre imperceptivelmente, mas que tem o poder de transformar o curso dos acontecimentos. É bem possível que a atual onda de globalização já tenha em seu bojo o esboço de seus próprios limites, trazendo para o horizonte uma nova era. Mesmo levando em conta o limitado poder que tem o discurso antropológico para mudar corações e mentes neste vasto mundo, nem tudo está perdido na nebulosidade da globalização. Afinal, os atuais meios instantâneos de 194 comunicação criam condições de possibilidade para a cooperação entre membros da Metrópole e da Periferia que, por sua vez, não chegam a ser blocos monolíticos totalmente refratários à dissidência. Nos espaços liminares de transgressão criados pelo fluxo de ideias que, embora tímido, já existe, reside o potencial de se reconfigurar os cânones impostos pela Metrópole e de se revisitar a utopia da Cosmantrópolis. Fechando o círculo, voltemos a ela. Desponta no horizonte uma luz que, embora ainda tênue, tem o potencial de transformar o panorama político da antropologia mundial. As Antropologias Mundiais ou Antropologias Alternativas são o começo de “um movimento coletivo de pluralizar as visões prevalecentes da antropologia num contexto em que persiste a hegemonia dos discursos anglo-saxões sobre a diferença” (Ribeiro 2005). Envolvendo profissionais de vários países, a maioria do Sul Global, mas não só, da periferia antropológica ‒ ver, por exemplo, o Fórum da Wenner-Gren Foundation Pathways to Anthropological Futures de 12 de outubro de 2022 ‒, esse movimento lança um olhar crítico sobre a disseminação internacional da antropologia, ampliando sua paisagem plural e engajando antropólogos de várias regiões em conversações produtivas que conduzam a uma antropologia crítica de si mesma e à construção de um cânone antropológico policêntrico (Ribeiro 2005) ou, melhor ainda, de cânones diversos, mas acadêmica e politicamente equivalentes. Há, pois, que cuidar com muito carinho dessa delicada planta no nascedouro para que possa dar os frutos promissores. Isso nos mostra que o cosmopolitismo não reside, afinal, na Metropóle que, com honrosas exceções, tende a se satisfazer com o tedioso exercício de autorreferência. A cosmopolítica antropológica está lá onde se lê em várias línguas, onde se 195 acolhem ideias de fora sem gerar fidelidades acríticas e estéreis. Lá onde se reconhece que a agencialidade de incautos ancestrais pode gerar a força e o impulso necessários para superar o status quo. Lá onde, como disse o politicamente incorreto, mas perspicaz, Domingo Faustino Sarmiento, “las cosas hay que hacerlas. Bien o mal, hay que hacerlas”! 196 Referências ABU-LUGHOD, Janet. (1989). Before European Hegemony: The world system A.D. 1250-1350. Oxford: Oxford University Press. ABU-LUGHOD, Janet. (1991). Writing against culture. In: FOX, R. G. (org.). Recapturing Anthropology: Working in the present. Santa Fé: School of American Research Press, p. 137-162. ACOSTA, Alberto. (2019). O bem viver. Uma oportunidade para imaginar outros mundos. 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Originalmente podem ser encontrados em: • O sonho da paz interétnica: viagem à terra de Macunaíma: versão ampliada de “O sonho da paz interétnica”, publicado em 2003 no site do Conselho Indígena de Roraima. • A “viagem” dos índios: maldição ou benção?: publicado originalmente na revista Humanidades, 1986. • A tragédia Yanomami: publicado no Informativo da Associação Brasileira de Antropologia (ABA), n. 9/2022. • Nações dentro da nação: um desencontro de ideologias: publicado na coletânea organizada por George Zarur, Etnia e nação na América Latina (1996). • O antropólogo no papel de testemunha: laudos antropológicos e responsabilidade social: versão ampliada de texto apresentado em 1990 no Simpósio “Laudo Periciais Antropológicos”, durante a XVII Reunião Brasileira de Antropologia. • Sonhando com ABYA-YALA: texto baseado na conferência proferida no “Painel Especial sobre Políticas Indigenistas”, na XIII Reunião de Antropologia do Mercosul (RAM), em 2019, com o título “Realidade Indígenas, Utopias Brancas”. 215 • Por uma antropologia universal: vislumbrando diálogos entre teorias nativas y académicas: texto baseado em uma conferência proferida na Universidad de los Andes, na Colômbia, em 2010. • Renascença Indígena: publicado na Coluna “Autorais” do Blog da BVPS, em 05/12/2023. blogbvps.com • Meditações indígenas e ecúmeno antropológico: versão revista e traduzida do espanhol de “Mentes indígenas y ecúmene antropológico”, publicada na coletânea organizada por Débora Betrisey e Silviana Merenson, Antropologías contemporâneas: Saberes, ejercicios y reflexiones (2014). • Pulp fictions del indigenismo: o texto é uma versão reduzida do que foi publicado no livro La antropologia brasileña contemporânea (2004), organizado por Alejandro Grimson, Gustavo Lins Ribeiro e Pablo Semán. O original em inglês, “Pulp fictions of indigenism”, foi publicado em Race, Nature, and the Polities of Difference (2003), organizado por Donald Moore, Jake Kosek e Anand Pandian. • Sonho de uma tarde de inverno: a utopia de uma antropologia cosmopolita: versão revista de texto publicado na revista Teoria & Sociedade, 2014. As imagens reproduzidas nessa brochura foram publicadas originalmente nos respectivos posts do Blog da BVPS, sempre com a devida autorização dos autores, quando necessárias. 216 Expediente da BVPS O Blog da BVPS é um espaço de formação de editores/as, autores/as e leitores/as de comunicação pública das ciências sociais, literaturas e artes, e aposta sempre na conversa entre diferentes gerações. Corpo Editorial Editor responsável Maurício Hoelz | professor do Departamento de Ciências Sociais e do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ). Editora-executiva Caroline Tresoldi | doutoranda em Sociologia no Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Assistentes editoriais João Mello | doutorando em Sociologia no Programa de Pós-graduação em Sociologia e Antropologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Miguel Cunha | doutorando em Ciências Sociais no Programa de Pósgraduação em Ciências Sociais da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ). Onildo Araújo Correa | doutorando em Sociologia no Programa de Pósgraduação em Sociologia e Antropologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). 217 Assistentes de mídias Maria Gabriella de Faria | mestranda em Ciências Sociais no Programa de Pósgraduação em Ciências Sociais da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ). Rennan de Medeiros Pimentel | mestre em Sociologia no Programa de PósGraduação em Sociologia e Antropologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e doutorando em Ciência Política no Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Conselho editorial Andre Bittencourt | professor do Departamento de Sociologia e do Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Antonio Brasil Jr. | professor do Departamento de Sociologia e do Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Denilson Lopes | professor titular da Escola de Comunicação e do Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Cultura da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Diana Klinger | professora de Teoria Literária da Universidade Federal Fluminense (UFF). Eduardo Coelho | professor do Departamento de Letras Vernáculas e do Programa de Pós-Graduação em Letras (Ciência da Literatura) da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Eliane Robert Moraes | professora do Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas e do Programa de Pós-Graduação em Literatura Brasileira da Universidade de São Paulo (USP). 218 Elide Rugai Bastos | professora titular de Sociologia da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Lucas Carvalho | professor do Departamento de Sociologia e Metodologia das Ciências Sociais e do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal Fluminense (UFF). Mariana Chaguri | professora do Departamento de Sociologia e do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Mário Augusto Medeiros da Silva | professor do Departamento de Sociologia e do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Nísia Trindade Lima | pesquisadora titular da Casa de Oswaldo Cruz/Fundação Oswaldo Cruz e professora de Pós-Graduação do Programa de História das Ciências e da Saúde da mesma instituição. Simone Meucci | professora do Departamento de Ciências Sociais e do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal do Paraná (UFPR). Wander Melo Miranda | professor emérito da Faculdade de Letras da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e membro da Academia Mineira de Letras (AML). Coordenação da Biblioteca Virtual do Pensamento Social (BVPS) André Botelho | professor do Departamento de Sociologia e do Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Autor corporativo Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) Largo de São Francisco, 1, 20051-070 – Rio de Janeiro, RJ. 219