ALCIDA RITA RAMOS
"QUE NÃO TEMO CONTRASTES NEM MUDANÇAS,/
ANDANDO EM BRAVO MAR, PERDIDO O LENHO"
ANTROPOLOGIA COMO ESCRITA
Organização: André Botelho e Maurício Hoelz
BVPS Coleção 003 | Outubro de 2024
BVPS Coleção. Número 003, outubro de 2024.
Ramos, Alcida Rita. "Que não temo contrastes nem mudanças, /andando em bravo
mar, perdido o lenho". Antropologia como escrita. 2024.
Organização: André Botelho e Maurício Hoelz.
Revisão: Caroline Tresoldi.
Edição: João Mello e Caroline Tresoldi.
Capa: Rennan Pimentel.
Sumário
Nota à publicação .................................................................................... 7
Singularidade e pluralidade: sonhos e textos de Alcida Rita
Ramos .........................................................................................................9
O sonho da paz interétnica: viagem à terra de Macunaíma ...... 11
A “viagem” dos índios: maldição ou benção? ................................ 16
A tragédia Yanomami .......................................................................... 31
Nações dentro da nação: um desencontro de ideologias ......... 43
O antropólogo no papel de testemunha: laudos antropológicos
e responsabilidade social .....................................................................58
Sonhando com ABYA-YALA ............................................................. 74
Por una antropología universal: vislumbrando diálogos entre
teorías nativas y académicas ............................................................ 101
Renascença Indígena .......................................................................... 112
Meditações indígenas e ecúmeno antropológico ......................129
Pulp fictions del indigenismo ............................................................ 159
Sonho de uma tarde de inverno: a utopia de uma antropologia
cosmopolita ...........................................................................................186
Referências ............................................................................................ 197
Sobre os textos ..................................................................................... 215
BVPS Coleção. O suporte digital das publicações sem dúvida
tem feito circular com mais agilidade e amplitude não apenas
informações, mas também o conhecimento produzido na
universidade. Foram essas possibilidades — também elas, não
inteiramente livres de ambiguidades — que nos motivaram a
criar o Blog da Biblioteca Virtual do Pensamento Social em
2017. O Blog da BVPS é um espaço de formação de editores/as,
autores/as e leitores/as de comunicação pública das ciências
sociais, literaturas e artes, e aposta sempre na conversa entre
diferentes gerações. De lá para cá, temos experimentado muito.
Posts menores, posts maiores; ensaios teóricos e visuais;
conjuntos diversificados, como os que chamamos de Ocupação
ou Séries, Colunas etc. Uma das vantagens principais das
publicações digitais é esta: as múltiplas possibilidades de
formato que permitem. E, talvez, ainda mais importante, a
pluralidade de itinerários de leitura que então comporta. BVPS
Coleção se propõe a ser mais um desses suportes
experimentais, reunindo publicações do Blog e outras que
formem um conjunto expressivo sobre um tema, questão ou
mesmo autor/a.
Equipe BVPS
Nota à publicação
Num momento de impasse, pisca um farol. Descrente do
encantamento da produção acadêmica, desencantada com o
sistema de avaliação (peer review), já começava a desacelerar,
quando à minha frente se abre um caminho que se bifurca à
moda de Borges. Um caminho com largas margens e amplas
paisagens convida-me a experimentar novos modos e temas de
escrita antropológica. Como se cortassem as amarras de um
navio fundeado, lancei-me à deriva promissora de novos
horizontes. E aqui me encontro.
Durante a reunião da ANPOCS de 2022, participei (à
distância) de uma Sessão Especial intitulada A tragédia
Yanomami. A partir daí, começou a minha interação, cada vez
mais intensa, com André Botelho, então presidente da
associação de quem recebi o convite. Foi como se um grande
portal se abrisse à minha frente e eu pudesse fugir das garras da
academia. Eu, que sonhava com os antigos Folhetins (não
confundir com a era folhetinesca que degenerou no pulp), que
acolhiam textos de gente como Marcel Proust, Machado de
Assis, e tantos outros, de repente, me dei conta que, na era
digital, havia folhetins, sim, e se chamavam Blogs! A partir daí,
despejei dezenas de textos nos arquivos da Biblioteca Virtual do
Pensamento Social. Não importava se muitos já haviam sido
publicados. Não importava se não seguissem uma sequência
lógica. Não importava se eram inéditos ou não.
Com uma generosidade que eu nunca vira antes, André
Botelho criou a série Autorais e a inaugurou com textos meus,
inicialmente 10, com mais um de bônus. Terminada a série, me
7
senti órfã e me queixei. Mais um ato generoso de André e lá
estava eu de volta ao Blog da BVPS estreando mais uma Coluna.
Recebeu o nome de Desassossegos. Para escapar da acusação de
plagiar o meu patrício Fernando Pessoa, acrescentamos um s e
pluralizamos o meu estado de espírito. A Coluna continua,
alimentada por minhas memórias de 60 anos como etnógrafa e
sugestões, sempre bem-vindas de André, mas não
exclusivamente.
Tudo isso criou em mim um conforto intelectual nunca
antes sentido e uma liberdade de ousar que sorvo como um
manjar dos deuses.
Alcida Rita Ramos
Brasília, 25 de setembro de 2024
8
Singularidade e pluralidade: sonhos e textos de Alcida
Rita Ramos
Um conjunto de textos de Alcida Rita Ramos deu início a
uma nova série de publicações da BVPS, a que chamamos de
“Autorais”, pois seu objetivo é reunir textos pouco conhecidos,
fora de circulação e inéditos de mesma autoria. Como para
fazer uma coletânea, reviramos juntos os baús de publicações e
apontamentos de colegas e nos deixamos penetrar por sua
singularidade, percebendo regularidades, alimentando a
imaginação e, o mais difícil, fazendo escolhas.
Foi uma grande honra para a BVPS que essa nova série
tenha sido inaugurada com a Professora Alcida Rita
Ramos (UnB). E por muitos motivos. A qualidade dos seus
textos, a importância da sua trajetória acadêmica, seu
pioneirismo na etnologia brasileira, sua amizade e luta lado a
lado com os povos indígenas, sua qualidade reflexiva e
capacidade de imaginação sem fim são alguns deles.
Ressaltamos ainda o fato de ser ela a mulher protagonista da sua
geração na história da sua disciplina e na antropologia, uma
história ainda muito contada pelo ponto de vista masculino.
Eleita recentemente para a Academia Brasileira de
Ciência, Alcida tem e merece todo o reconhecimento dos seus
pares e da comunidade acadêmica em geral. Tudo isso é
verdade e suficiente para a série Autorais, que agora se desdobra
neste terceiro número da Coleção BVPS. Mas, como curadores,
não podemos deixar de expressar a alegria incomum no árduo
trabalho editorial com que se deu todo o processo de contatos,
9
escolhas, reescritas, escritas. O entusiasmo contagiante de
Alcida nos atingiu de modo certeiro, nos inspirou e moveu. Seus
textos eruditos, mas de uma beleza narrativa extremamente
cristalina, nos fascinam. Revirando seu baú, encontramos
muitas contas dispersas, mas de imediato nos chamaram a
atenção algumas delas que, reunidas, formariam um fio muito
próprio da sua singularidade em meio à pluralidade
constitutiva de uma carreira aberta e em curso. Sonhos. Não
sabemos o quanto a própria Alcida estava ciente antes de nossa
interpelação sobre esse fio tão singular nos seus escritos e lutas
tão plurais. Sonhamos com Alcida.
Agora é hora de compartilhar, mais uma vez, seus sonhostexto-lutas com leitoras e leitores da BVPS. Na Série foram
publicados 10 textos e um bônus. Neste volume, adicionamos
mais dois textos selecionados pela autora. Yanomamis, viagens
etnográficas de antropólogos e de indígenas, reflexões sobre a
antropologia brasileira, etnologia e políticas públicas,
cosmopolitismo e a renascença artística indígena são alguns dos
temas cobertos. Todos eles perpassados sempre pelos sonhos.
Acreditamos que não estamos errados ao afirmar que a
etnóloga Alcida tem aprendido e muito com os grupos que
estuda. É certamente o caso dos Yanomamis, cujo mundo
onírico, povoado pelo cotidiano, lhe revela o cosmos. Com
Alcida é assim também, uma nova paisagem de afetos e
experiências se abre em seus sonhos-textos. E existe algo
melhor do que compartilhar sonhos?
O título desta brochura foi retirado do soneto “Não Pode
Tirar-me as Esperanças”, de Luís Vaz de Camões, 1595.
André Botelho e Maurício Hoelz
10
O sonho da paz interétnica: viagem à terra de
Macunaíma
[2003]
Nos dias 13 e 14 de maio
de 2003, tive a magnífica
oportunidade de visitar o leste
do estado de Roraima, onde
vivem cerca de vinte mil
indígenas de cinco etnias:
Macuxi, Wapixana, Ingarikó,
Taurepang e Patamona. No
ambiente mágico do lavrado
roraimense, entre campos
abertos, banhados salpicados
de jaburus e garças-brancas,
serras de avançada idade
geológica, grande silêncio,
Mulher Yanomami decorando o
corpo do marido xamã. Acervo da
profunda beleza e um céu de
dar inveja ao Planalto Central, trava-se um centenário
confronto, muitas vezes sangrento, pela posse da terra. A morte
de líderes indígenas é tão rotineira na região quanto a
impunidade dos assassinos. Tanta violência cresce em
proporção ao fortalecimento étnico e político daqueles povos
indígenas. Do final dos anos 1960 – quando, a caminho da área
Yanomami, onde passaria dois anos em pesquisa de doutorado,
11
me choquei com a visão de pessoas Macuxi varrendo,
cabisbaixas, as ruas de Boa Vista – aos dias de hoje, os indígenas
do lavrado deram enormes saltos de conscientização e
engajamento no campo interétnico. Agora eles mostram sua
força na expulsão de mais de 100 fazendeiros que há muito
ocupavam a área de São Marcos, na indenização ganha da
Eletronorte pela linha de transmissão que lhes corta as terras,
levando eletricidade da Venezuela para Boa Vista (o chamado
linhão de Guri), e na incansável luta pela homologação de outra
área, Raposa/Serra do Sol, demarcada em 1998, mas alvo de
pressões de políticos locais e arrozeiros que atravancam o
término do processo administrativo de homologação e registro
em cartório daquela área indígena.
Essa viagem de corpo e alma ao lavrado foi tão
inspiradora para mim como já o fora mentalmente para Mário
de Andrade, que, embevecido com a riqueza cultural dos
Pemon-Macuxi, elaborou o seu personagem Macunaíma, tão
mítico quanto o Makunai’mî dos Macuxi. Mas, apesar de
partilhar com o escritor modernista o gozo estético pela região,
minha ida a Roraima teve cunho prioritariamente político.
Como membro suplente do antropólogo Roque Laraia no
Conselho Indigenista da FUNAI, acompanhei os demais
membros do Conselho e o presidente do órgão, Eduardo Aguiar
de Almeida, para a reunião ordinária que teve lugar na missão
católica e aldeia macuxi de Maturuca, na Serra do Sol. Os
conselheiros ouviram uma torrente de insatisfações e
demandas, desde a exigência de justiça pela morte recente de
um líder da comunidade Uiramutã, seriamente invadida,
passando por pedidos de veículos e outros bens já tornados
essenciais, até a grande preocupação com o crescimento
desenfreado da vila de Pacaraima na divisa com a Venezuela,
12
nascida de um velho pelotão de fronteira do exército brasileiro
e transformada no sonho militar de “vivificar” a fronteira norte
do país, como reza o Projeto Calha Norte. Mas é a necessidade
de homologação da Terra Indígena Raposa/Serra do Sol que
mais mobiliza agora as energias dos povos do lavrado e da serra.
São energias que se manifestam em pressões sobre autoridades
em Brasília, no recrutamento de apoio de entidades
simpatizantes da causa indígena, em pronunciamentos escritos
e falados, e nas canções que compõem e com as quais
receberam, esfuziantes, a comitiva da FUNAI. Enquanto na fria
e fechada sala de reuniões da FUNAI o Conselho Indigenista
avalia os problemas indígenas, numerosos e cabeludos, com
horário marcado até o almoço, lá, na própria aldeia, o contato
direto, aberto e imediato com os índios exerce um
insubstituível poder de empatia e envolvimento. A concretude
dos rostos crispados ao descrever abusos de brancos, da fala
embargada por soluços pela morte do parente, da ubiquidade
das crianças sorrindo e brincando porque, afinal, a vida
continua, mais do que compensou o custo de deslocar o
Conselho para a área indígena, tanto em dinheiro quanto em
percalços de viagem. Nada, em suma, se compara à experiência
vivida e ao profundo sentimento de solidariedade que dela
advém.
Que essa reunião in loco do Conselho Indigenista, a última
da gestão, renda os frutos prometidos que os povos indígenas
do lavrado roraimense esperam e pelos quais têm lutado e
sofrido por tanto tempo. Homologar a Terra Indígena
Raposa/Serra do Sol é uma possante dívida interna que o Estado
brasileiro tem com eles. O não pagamento dessa dívida pode
custar ao governo Lula o incalculável juro de arcar com o peso
do caos social em Roraima. Fazendeiros já indenizados e
13
afastados da área indígena retornam com o argumento de que
ela não está homologada. Em prol da ordem pública e da justiça
social, é preciso acatar a lei que já demarcou essa área contínua
e respeitar os direitos históricos, sociais e culturais desses povos
que já foram considerados os guardiães das fronteiras nacionais.
É responsabilidade do governo – e especialmente deste que
tanto prometeu – exercer sua autoridade na observância dessa
lei, como também é responsabilidade dos antropólogos manter
perenemente acesa a tocha da justiça étnica. A luta pelos direitos
territoriais de povos como os Macuxi e os Yanomami, para
mencionar os maiores grupos indígenas de Roraima, tem sido
um esforço conjunto com antropólogos que, tendo convivido
íntima e prolongadamente com eles, ficaram indelevelmente
marcados pela sua paciência, sabedoria e respeito aos outros. Na
arte da reciprocidade, somos meros aprendizes.
Posfácio
Vinte anos depois dessa viagem de sonhos à terra de
Macunaíma, e após longos e tensos anos em que o Supremo
Tribunal Federal analisou e rejeitou os argumentos de políticos
e fazendeiros de Roraima para anular a demarcação anterior, os
habitantes da Raposa Serra do Sol afirmam que a homologação
da T. I. Raposa Serra do Sol, em 2014, diminuiu sensivelmente
a tensão social naquele estado. Comemoram a tranquilidade
que sentem por estarem a salvo de ataques em suas próprias
casas e roças e louvam o valor incalculável que essa
tranquilidade tem para os seus habitantes de todas as gerações.
No entanto, a decisão do STF pela demarcação de cerca de
1.750.000 hectares de terra contínua da Raposa Serra do Sol
14
teve um certo gosto de vitória de Pirro. Além de levantar o
espectro do marco temporal, deixou um rastro de 19 condições
para serem aplicadas a todos os casos futuros, o que traz ainda
mais insegurança aos povos indígenas que ainda não têm suas
terras demarcadas. Uma análise profunda das consequências
dessas condições é útil e necessária para avaliarmos o que, na
prática, significa, por exemplo, a quinta condição: “O usufruto
dos índios não se sobrepõe ao interesse da Política de Defesa
Nacional. A instalação de bases, unidades e postos militares e
demais intervenções militares, a expansão estratégica da malha
viária, a exploração de alternativas energéticas de cunho
estratégico e o resguardo das riquezas de cunho estratégico a
critério dos órgãos competentes (o Ministério da Defesa, o
Conselho de Defesa Nacional) serão implementados
independentemente de consulta a comunidades indígenas
envolvidas e à Funai”. Aqui,
a palavra-chave é estratégia.
Em seu nome, muitos povos
indígenas
já
foram
acintosamente espoliados.
Está aí uma das grandes
diferenças entre usufruto e
propriedade.
Mas, apesar de tudo, os
sonhos de paz interétnica
continuam a ser sonhados.
Cestaria Ye’kwana
Setembro de 2023
15
A “viagem” dos índios: maldição ou benção?
[1987]
Numa noite de março de 1973, depois de prolongados
rituais xamanísticos, numa aldeia Sanumá, com o alucinógeno
sakona prodigamente aspirado por vários pajés, estes foram
inesperadamente atacados por espíritos inimigos. A
comunidade esteve em perigo durante horas. O ataque veio em
línguas de fogo avançado sobre os pajés. Em frenético
desespero, toda a sua perícia esotérica foi posta em defesa
própria e da aldeia, enquanto as mulheres se atiravam sobre eles
sacudindo galhos molhados na ânsia de aliviar sua agonia. Nessa
batalha mágica entre pajés e espíritos, ganharam os primeiros.
Mas nem sempre é assim. Contra a morte quem perde são os
pajés, apesar de sua sabedoria, de seus espíritos auxiliares e dos
alucinógenos que lhes abrem o caminho ao sobrenatural.
Xamã yanomami, de posse de espíritos auxiliares. Foto de Bruce Albert, ca. 1975
16
Pesadelo para nós, sonho para muitos índios, é como
podemos expressar metaforicamente o que as drogas
representam em mundos tão diferentes. Enquanto entre nós o
tráfico e uso de drogas são um pesadelo para os guardiães
do status quo, entre muitos dos índios brasileiros, as drogas
representam o sonho de sociedades em ressonância com o
mundo extranatural. Uma encara as drogas como um mal a ser
erradicado, outra as adota como um bem, um veículo
privilegiado de expressão de sensibilidade e sabedoria.
Não importa quão iluminado um jovem universitário
possa sentir-se sob a ação da maconha, o fato é que suas
sensações não têm o reconhecimento nem a tolerância de seu
povo. É uma experiência declarada ilegal, ilegítima, daninha
para ele e para a sociedade inteira, condutora de distúrbios que
podem levá-lo à cadeia ou ao hospício. Não existe entre nós
nenhum contexto, fora de certas áreas restritas a hospitais, em
que o uso de drogas seja apropriado e legalmente aceito. Pelo
sonho, muitas vezes dourado, que a droga induz, uma pessoa
paga caro, não só em termos financeiros – pois, quanto mais
proibido, mais proibitivo o custo – mas ainda em termos da
ansiedade gerada pelo alto risco da punição.
O antropólogo, que nunca perde a oportunidade de cantar
os louvores da diversidade cultural, de se declarar um relativista
inveterado, tomando cada expressão cultural em seus próprios
termos, por mais calejado que esteja com os contrastes
humanos, ainda assim se surpreende ante a imensa distância
que vai do sonho ao pesadelo, da bênção que são certas drogas
em sociedades indígenas à maldição que essas mesmas, ou
outras, representam para nós (o “nós” aqui entendido como o
superego nacional, da autoridade constituída, familiar, estatal
ou eclesiástica). Para nós, um problema nacional, ou, mais
17
ainda, internacional; para eles, uma das melhores coisas que a
cultura inventou.
A experiência antropológica de contrastes e comparações
nos leva a concluir que alucinógenos em si não são bons nem
maus. O que os torna um bem ou um mal são os valores
construídos sobre a sua utilização. O mesmo fumo que é usado
pelos índios Canela em suas práticas rituais pode ser tragado
por qualquer um de nós. No entanto, para os índios, admite-se
que ele seja parte de seus costumes e tradições, o que é aceitável,
embora mal tolerado; mas para os brancos é sumariamente
proibido por lei. Cabe, porém, uma ressalva. Refiro-me exclusivamente a plantas psicotrópicas e não a substâncias
produzidas por meios químicos em laboratórios, pois estas não
fazem parte do acervo indígena.
A ligação entre o humano e o extra-humano
Coca, ayahuasca (Banisteriopsis Caapi), yopo ou panca (do
gênero Virola), maconha, ou o prosaico tabaco, são algumas das
substâncias que compõem o conjunto de plantas psicotrópicas
utilizadas por várias sociedades indígenas, dentro e fora do
Brasil. Com exceção do tabaco, todas as demais têm seu uso
restrito a contextos rituais. “O uso ritual de plantas psicotrópicas
entre grupos indígenas do continente sul-americano”, dizem
Browman e Schwarz (1979: 11), “está relacionado ao papel do
xamã, enquanto mediador entre o mundo observável e o
mundo culturalmente construído dos espíritos” (cf. ReichelDolmatoff. 1971; 1974; 1975), Harner, 1973 e Coelho, 1976). O
tabaco é exceção porque pode ser utilizado também fora de
situações rituais, podendo ser fumado, mascado ou sugado.
18
Mas, no seu papel ritual, ele “é a substância mediadora entre o
mundo atual e o mundo espiritual: abre ou fecha as portas entre
os dois mundos” (Viveiros de Castro, 1979: 46). Quanto às outras
plantas, exige-se sempre que sejam tomadas em ocasiões
especiais e por pessoas específicas. Essas ocasiões são rituais e as
pessoas os seus oficiantes ou aprendizes de oficiantes. Em
praticamente todas as sociedades indígenas, as crianças são
excluídas; em outras, as mulheres também; já em várias outras,
as práticas rituais com uso de drogas podem ser tanto masculinas como femininas.
As drogas, para os povos indígenas, são assunto sério e não
podem ser tratadas levianamente. Elas representam,
virtualmente, um elemento de ligação entre o mundo humano
e o extra-humano ou sobrenatural. É através das drogas que os
homens se aproximam dos espíritos, do saber esotérico, da
compreensão do cosmos. Como diz Norman Whitten Jr. (1978:
29), sobre os Canelos de fala quíchua da Amazônia equatoriana,
“os xamãs empregam ayahuasca, o cipó da vida… que lhes
permite viajar entre o mundo dos humanos e o dos espíritos.
Crê-se que a ayahuasca induz uma realidade semelhante aos
sonhos, a qual medeia entre o domínio humano… e o domínio
dos espíritos… Os costumes e conhecimentos antigos são
transmitidos através da dinâmica conhecimento-visão,
embutida num processo contínuo de aprendizagem”. Ou seja,
os psicotrópicos indígenas estão aí a serviço da sociedade. Ao
xamã, ou pajé, não é permitida a extravagância de uma
“viagem” individual, introspectiva. Ele deve sair da sua
individualidade para se projetar no coletivo, a serviço de seu
povo. Xamã e droga são considerados bens sociais, não no
sentido de mercadoria, mas em termos da contribuição que dão
ao bem-estar da comunidade. As drogas, antes de tudo, são bens
19
coletivos e não individuais; são elementos de coesão e não de
contradição e conflito; são legítimas e seu uso encorajado, dentro dos limites específicos que a sociedade traça em torno delas.
Da natureza as culturas humanas selecionam certos
animais e plantas, transformando-os em entidades especiais
capazes de lançar os homens ao mundo sobrenatural, cujos
mistérios, eles também criados por essas culturas, são
desvendados por meio desses mesmos animais e plantas, já
agora transfigurados em espíritos e alucinógenos. Postos a
serviço dos homens, esses alucinógenos e esses espíritos são
peças fundamentais nas curas de doenças e outros infortúnios,
na proteção das comunidades contra-ataques mágicos ou
cataclismas naturais, na propiciação de boas caçadas, na
iniciação de novos especialistas do sobrenatural. Para que o
universo se mantenha em equilíbrio, essa cadeia de múltiplos
elos deve ser mantida em sua inteireza e fluidez. Os alucinógenos são, em suma, a liga que une a corrente da vida – natureza,
sociedade, cosmos.
Os Yanomami e sua magia
Para retratar mais de perto o que representam as drogas
numa sociedade indígena, apresento minha experiência vivida
entre os índios Sanumá, subgrupo da grande família linguística
Yanomami, que vive na região de fronteira entre o Brasil e a
Venezuela, em plena mata amazônica, na área montanhosa do
Maciço das Guianas, tão bela quanto misteriosa, desde o pico da
Neblina às águas do rio Uraricoera.
Ao todo, os Yanomami contam com cerca de 20.000
pessoas, das quais talvez umas 2.000 são Sanumá. O habitat
20
destes últimos é a parte mais setentrional do território
Yanomami, nas serras Parima e Pacaraima. O uso de
psicotrópicos parece ser comum a toda a família linguística.
Mas, para evitar uma falsa impressão de total uniformidade
Yanomami, é necessário enfatizar as diferenças que existem
entre os vários subgrupos. Refiro-me, pois, especificamente aos
Sanumá do vale do rio Auaris, sabendo que entre os Sanumá do
lado venezuelano há algumas distinções e que estas se tornam
ainda maiores quando comparamos os Sanumá com os
Yanomami, falantes de uma das seis línguas Yanomami do vale
do rio Catrimami, o subgrupo mais meridional em Roraima.
Também estes são usuários de drogas, mas têm sua maneira
própria de sistematizar o conhecimento e aplicação das
mesmas.
As plantas alucinógenas são reservadas exclusivamente
para homens adultos, pois somente os homens podem ser
xamãs. Por conseguinte, minha experiência se limitou a
participar como observadora dos rituais xamânicos, em posição
semelhante a das mulheres e crianças Sanumá. Não me foi dada,
portanto, a oportunidade de sentir os efeitos dessas drogas.
Pude constatar, porém, que os iniciados na arte e ciência do xamanismo não perdem o contato e o sentido de estar no mundo
que os cerca, pois, frequentemente, interrompem seus cânticos
para repreender uma criança, ou fazer algum comentário de
caráter, vamos dizer, “secular” ou cotidiano.
Os psicotrópicos não são as únicas plantas mágicas dos
Sanumá. Existem outras, por eles chamadas alawali, às quais são
atribuídas propriedades especiais: umas protegem contra mauolhado, outras ajudam as crianças a crescer, outras ainda servem
para aquilo que poderíamos chamar de “poções de amor” e
várias outras que são usadas em ataques mágicos contra
21
desafetos, provocando esterilidade em mulheres, ou instabilidade na saúde física e mental das pessoas atingidas. Contra
esses males atuam os xamãs, especialistas em tratar doenças e
lidar com o sobrenatural. Na bagagem de conhecimento
esotérico de um xamã está o uso de plantas alucinógenas, não
só para desfazer os efeitos de alawali, mas também para exercer
outras atividades mágicas, todas elas dirigidas ao bem-estar da
sua comunidade, nem que isso implique em ataques a pessoas
de outras aldeias.
De modo a contextualizar melhor o papel das drogas entre
os Sanumá do Auaris, é necessário dizer alguma coisa sobre a
sua teoria das doenças e da morte, eventos que estão
inextricavelmente ligados não só à natureza, mas também à
sociedade dos homens e à ordem dos espíritos.
Drogas, espíritos e homens
Não é exagero dizer que para os Sanumá a morte é uma
construção humana, pois quase, ninguém morre de causas
“naturais”. Embora reconheçam plenamente a letalidade do
veneno de uma cobra como, por exemplo, a jararaca, que
quando alguém cai de uma árvore de 25 metros pode quebrar o
pescoço e morrer, o que importa não é o processo mecânico
que levou à morte, mas a intenção que provocou o acidente. É
porque alguém fez algum tipo de magia contra a vítima que a
cobra a mordeu, ou o pé escorregou do tronco da árvore. É
porque alguém soprou alawali que uma pessoa definha até
morrer. Este fenômeno, em suas linhas gerais, não é exclusivo
dos Sanumá. Ele foi magistralmente relatado por EvansPritchard (1978), a propósito da bruxaria como causa de
22
infortúnios entre os Azande do Sudão africano. Entre os Azande, como entre os Sanumá, é a relação de causalidade que
importa: ela une doença e morte à ação ou intenção humana.
Em centenas de casos de mortes coletados durante o
levantamento genealógico que fiz entre os Sanumá, foram
registradas apenas duas ou três ocorrências de mortes que
poderíamos chamar de “naturais”; eram pessoas muito idosas,
que, segundo me disseram, morreram de velhice. Todas as
demais, inclusive mortes no parto, foram atribuídas a magia ou
a outras causas humanamente provocadas.
Existem, pelo menos, duas outras causas de doenças, além
do efeito de plantas alawali e de outras fórmulas mágicas. Uma
delas é o ataque de espíritos que se aproveitam da fraqueza ou
da vulnerabilidade momentânea das pessoas. Há uma variedade
de espíritos malévolos – sai de –, cada um com uma propensão
definida: uns atacam crianças, outros atacam adolescentes,
outros atacam de maneira mais generalizada. Contra esses
espíritos o melhor remédio é tomar medidas preventivas,
como, por exemplo, fechar as aberturas das casas à noite, para
barrar sua entrada. É raro, porém, que os ataques de sai
de levem, sozinhos, à morte de alguém.
Uma terceira fonte de doenças e aflições e, possivelmente,
de morte, é o ataque de espíritos de animais comestíveis que
foram ingeridos indevidamente por pessoas que estavam em
estado ritual que demanda observar tabu alimentar com relação
àquela espécie animal. Esses ataques são tratados pelos xamãs
com o auxílio de plantas alucinógenas.
A morte pode ser igualmente provocada por assassinatos
que podem ocorrer de duas maneiras: uma, com armas –
flechas, machados, terçados etc. –, a outra, matando-se certos
animais que são as representações concretas de indivíduos
23
vivos. Para cada Sanumá que nasce, nasce também, ao mesmo
tempo e em lugar distante do seu território, um determinado
animal (geralmente, um tipo de gavião para homens e um certo
mamífero para as mulheres). O destino desse duo humanoanimal se torna único: o que acontecer a um, acontecerá ao
outro. Se um caçador, sem querer ou de propósito, matar esse
animal, o seu correspondente humano morrerá também. Os
xamãs fazem o diagnóstico dessa morte, mas são impotentes
para evitá-la. Esses dois tipos de assassinato podem ser vingados
com ataques armados ou mágicos.
É nos casos de doenças diretamente provocadas pelo ser
humano, isto é, por magia e por quebra de tabus alimentares,
que os Sanumá usam drogas com maior intensidade ao realizar
as curas xamanísticas. As drogas representam um recurso
fundamental nas curas, porque é através delas que o xamã
consegue convocar, dentre os seus inúmeros espíritos
auxiliares, aqueles que têm as condições apropriadas à
erradicação do mal. Num artigo elegante e elucidativo, Kenneth
Taylor (1979) descreve a trajetória desses espíritos – hekula –
, desde o momento em que se desincorporam de sua forma,
geralmente animal, até chegarem ao estado da imortalidade e
indestrutibilidade, quando ganham o poder de efetuar curas
através do desempenho dos xamãs, no peito de quem se alojam
durante as sessões xamanísticas. Dormindo durante o dia em
sua grande moradia no seio de certas montanhas, os hekula só
são persuadidos a se deslocar para o peito do xamã pela atração
do cheiro do psicotrópico que este inala, acompanhado do
cântico que identifica cada hekula. As drogas chamadas pelos
Sanumá de sakona (Virola calofiloidea) e palalo (Anadanthera
peregrina), sendo chamariz para os hekula, atuam como
elemento de ligação importantíssimo nas operações de cura. Há
24
que notar que, durante a noite, o xamã não necessita delas, pois
os hekula, entidades notívagas, vêm espontaneamente ao peito
dos xamãs com simples chamada de seus cânticos. Mas, como a
doença não escolhe hora do dia para se manifestar, é muito
comum o xamanismo diurno, portanto, com o uso de
alucinógeno.
Esse uso entre os Sanumá do Auaris está, como já disse,
restrito aos xamãs e seus aprendizes. É bem verdade que uns
poucos homens tomam a droga sem ser xamãs e, por isso
mesmo, não têm condições de controlar o seu efeito.
Simplesmente, entram num estado de torpor, sem canalizá-lo
para qualquer atividade. Limitam-se a ficar sentados ou
deitados em distante letargia, alheios ao que se passa em redor.
Esses homens que, por uma série de razões sociais e
psicológicas, nunca conseguiram fazer um aprendizado
satisfatório de xamanismo, tomam a droga apenas nesses
contextos rituais como se eles mesmos estivessem no lugar de
xamãs. Como, entre os Sanumá, ser homem é quase sinônimo
de ser xamã, pelo menos, a inalação do alucinógeno leva essas
pessoas ao ponto mais próximo do xamanismo.
Portanto, para todos os efeitos, o uso de drogas está
limitado à esfera xamânica. Mas o xamanismo não se restringe
a curas. Ele pode ser acionado para a defesa da comunidade
contra o ataque de espíritos enviados por inimigos, para agredir
magicamente outras comunidades, para propiciar uma boa
caçada, para treinar novos xamãs, ou apenas para manter em
boa forma as habilidades dos xamãs experimentados,
desenvolvendo neles cada vez mais a capacidade de acumular
conhecimento esotérico. São poucas as noites sanumá em que
não acordamos ao som dos cânticos de algum xamã que, apenas
com os recursos de sua voz, é capaz de impressionantes mala25
barismos sonoros, entrecortados por melodias simples ou
rebuscadas que ficam gravadas na nossa mente e evocam a
lembrança de um mundo partilhado por homens e espíritos em
cumplicidade mágica.
As sessões xamanísticas podem ser realizadas por um
xamã solitário ou por um conjunto deles. Quando se trata
apenas de atender a um doente, cujo problema foi facilmente
diagnosticado pelo xamã, este desempenha o ritual sozinho.
Mas há outras ocasiões ‒ por exemplo, quando chegam visitantes de outras comunidades trazendo doses já prontas
de sakona ‒ em que vários xamãs se reúnem no espaço aberto da
aldeia, aspiram a droga e cada um chama, numa sequência de
cânticos, vários de seus hekula. O ar se enche de altas vozes
masculinas em múltiplas trilhas sonoras, do compasso
sincopado de muitas batidas de pé, umas rápidas, outras lentas,
no ritmo corporal que acompanha cada cântico e que representa alguma característica do hekula do momento. Mulheres e
crianças observam ou ignoram, prosseguindo com seus afazeres
normalmente. Se nessas ocasiões houver doentes, todos os
xamãs se debruçam sobre eles, trazendo os hekula que se
prestam às curas específicas. Mas essas sessões também têm o
caráter de confraternização de homens com homens e de
homens com espíritos (talvez até de espíritos com espíritos).
Elas podem durar uma tarde ou um dia inteiro, com os xamãs
sustentando suas vozes e ritmos quase sem interrupções, e sem
pausas para alimentação, tomando reforços espaçados
de sakona. À noitinha, passado o efeito do alucinógeno,
exaustos, os xamãs, finalmente, vão para suas redes, para
acordar antes do clarear do dia, como sempre acontece na
rotina da vida sanumá.
26
Como se faz um xamã
Alguns jovens, ante as agruras do treinamento em
xamanismo, chegam a recuar e protelar seu aprendizado. É
necessário fazer uma prolongada abstinência alimentar e sexual
para se alcançar o resultado desejável. São treinados pelo pai ou
por um homem experiente e maduro, meses a fio, tomando o
alucinógeno e aprendendo os cânticos xamanísticos. O tutor
passa, então, alguns dos seus hekula para o peito do aprendiz,
com muito tato e cuidado, e, ao longo de sua vida, o novo xamã
vai adquirindo novos hekula por sua conta. O número de
espíritos assistentes de um único xamã pode chegar a mais de
trezentos.
Uma das fases mais difíceis do aprendizado é o domínio
das reações provocadas pela droga. É necessário canalizá-las na
direção correta, que é a comunicação com os espíritos, a
capacidade consciente de poder chamá-los a atuar para os fins
por ele desejados. Uns poucos rapazes nunca conseguem esse
feito, sucumbindo totalmente ao efeito da droga, incapazes de
qualquer concentração nos cânticos e compassos do repertório
xamânico. A carreira de um xamã depende, pois, em grande
medida, da sua capacidade de se sobrepor às sensações físicas e
psicológicas causadas pelos alucinógenos.
A idade da iniciação xamanística varia de família a família.
Alguns jovens começam a mostrar sintomas de inquietação,
têm ataques estranhos, vagueiam pelos caminhos em altos
brados,
tornam-se
esquivos
em
certos
momentos,
inexplicavelmente. É o prenúncio da necessidade de iniciação,
diagnosticado por um xamã. Pode acontecer por volta dos 12 ou
13 anos. Outros, já bem depois da puberdade e mesmo do
27
casamento, é que decidem, sem qualquer sinal prévio aparente,
tornar-se aprendizes de xamã.
Para alguns, o caminho do xamanismo abre portas para o
prestígio político. É principalmente quando colocam os seus talentos xamânticos a serviço da resolução de crises sociais de sua
comunidade, chamando seus hekula e mandando-os verificar
eventos importantes ocorridos à distância. Mas é também pela
demonstração da autoridade que emana de um conhecimento
profundo e dedicação à causa que abraçam, isto é, o bem-estar
de seus companheiros, que um xamã adquire posição de
destaque entre seus pares, podendo chegar à posição de líder da
aldeia.
Como em qualquer outro lugar, há bons e maus
profissionais. Uns xamãs são extremamente talentosos e
sempre procurados para curas, outros não chegam a convencer
e praticam seu xamanismo mais para seu próprio deleite e
treinamento, por falta de uma clientela maior.
Mundos ameaçados
Como os Sanumá, dezenas de povos indígenas do Brasil
construíram mundos mágicos com plantas alucinógenas,
tecendo uma teia de relações tal que dá sentido ao universo
como um todo. As inquietudes pessoais, os desgastes sociais e as
preocupações coletivas encontram alívio nessas práticas
elaboradas ao longo de incontáveis gerações, através da
dedicação de seus xamãs e do partilhar de crenças comuns que
se reproduzem, mas nunca de forma idêntica. Cada xamã traz a
sua contribuição pessoal à interpretação e reinterpretação
constantes do cosmos e seus habitantes, sempre através de um
28
nexo inteligível a todos, compreensível tanto em seus aspectos
reconfortantes quanto nos inquietantes e até cruéis.
Mas, encravadas num estado nacional com outras leis e
outros projetos, as sociedades indígenas sofrem, provavelmente
as piores provações de sua longa história. Esse todo complexo e
integrador, que é o xamanismo e sua utilização de psicotrópicos
em sociedades como a dos Sanumá, cai num torvelinho de
ignorância, desrespeito e repressão quando entram em cena
forças externas com poder até de polícia, como são os
missionários, agentes governamentais e outras personagens do
contato interétnico. No caso específico dos Sanumá, a reação
dos missionários – protestantes – foi a de tentar erradicar o
hábito da inalação de sakona, como uma forma de neutralizar as
práticas de xamanismo. Não compreendendo e não querendo
compreender as razões intelectuais, emocionais e sociais dos
Sanumá, ou por que os Sanumá mantêm essas práticas, os
missionários insistem que a droga é suja, que o xamanismo é
coisa do diabo e que tudo isso deve ser substituído pela assepsia
do culto batista.
Em outros contextos brasileiros, o uso de drogas tem
custado aos índios até mesmo prisões, como no caso de um
homem Tenetehara que, nos anos 1970, foi preso e torturado
no Maranhão, sob o pretexto de ter usado maconha. Pela prática
de suas tradições legítimas os nossos índios pagam o preço da
incompreensão, sofrendo agressões que, afinal, mal entendem.
Como poderão aceitar que um elemento integrador e benéfico
como o uso de suas drogas possa se tornar fonte de punição?
Que sentido faz o mundo quando as crenças mais arraigadas
passam de sublimes a criminosas por decisão de estranhos?
Na colisão de orientações tão conflitantes quanto as que
brancos e índios têm sobre drogas, as maiores vítimas são os
29
índios que, forçados a transformar em maldição o que tinham
por bênção, assistem perplexos ao bombardeio que sofrem suas
crenças e esteios emocionais que sempre fizeram parte de suas
vidas e forjaram suas personalidades individuais e coletivas.
Assim como é uma violência social tentar transformar o
índio à imagem do branco, queira ele ou não, também é uma
violência espiritual aplicar os mesmos pesos e medidas a
experiências tão distintas como são o mundo mágico dos índios
e o que é considerado por quase todos nós o submundo
criminoso dos brancos. Se fizermos o esforço de um olhar
desarmado para essas expressões culturais que são as drogas
entre os povos indígenas, talvez possamos vislumbrar uma
outra maneira de se ser humano e, quem sabe, voltaremos outra
vez a nós mesmos um pouco mais sábios. Como disse o poeta
Hugo von Hoffmansthal, o caminho mais curto até nós é a volta
ao mundo (Bleicher, 1980).
Escultura de xamã Ye’kwana
30
A tragédia Yanomami
[2022]
A máxima que Marx consagrou – a história acontece
como tragédia e se repete como farsa – não se aplica ou se
inverte no caso Yanomami. Pois, da primeira grande investida
contra sua terra e suas vidas na virada da década de 1980 para
1990 à que assistimos agora, atônitos, a intensidade e
intencionalidade dos ataques aumentaram de tal modo que não
se pode mais atribuí-los à mera ganância financeira. O que no
princípio tinha algo de tragicômico (invasores fantasiados de
militares num dia de Carnaval, por exemplo), transformou-se
num teatro de horrores sem trégua e sem limites. O que antes
se atribuía a aventureiros cegos pelo luzir do ouro, agora são
ações de um governo que quer matar sem sujar as mãos. Basta
que um flagelo humano no posto de presidente abra uma
porteira e a boiada passa e o massacre começa.
1973-1975. A primeira grande invasão veio com a
construção da rodovia Perimetral Norte que cortou em linha
reta de leste a oeste no sul do território Yanomami mais de 200
km em Roraima e no Amazonas. A obra dessa inútil estrada,
fadada ao abandono, durou menos de três anos, tempo
suficiente para estilhaçar a vida de comunidades inteiras
atingidas por ela. Sarampo, gripe e outras pestilências de branco
devastaram famílias, desequilibraram subsistências e mataram
mais de 22% de seus habitantes, quase inviabilizando o seu
31
tecido social. (Imaginemos a perda de 22% da população
brasileira: um número tão alto que nem a pandemia da Covid19 conseguiu matar).
No levantamento do Projeto Radambrasil em 1975, a terra
Yanomami revelou-se rica em minérios (cassiterita, ouro,
materiais radioativos…) e pobre em fertilidade de solos. Essa
notícia deflagrou um avanço de garimpeiros (modestos 500
pelos padrões atuais) em busca de cassiterita. Profetizando um
futuro inimaginável naquela época (1975-76), a Serra de
Surucucus assistiu a sérios conflitos armados entre indígenas
e garimpeiros provocados por roubos de roças e abusos sexuais
contra mulheres indígenas. Ainda com algum escrúpulo para
manter uma boa imagem do governo, o então Ministro do
Interior, o militar Rangel Reis, ordenou a retirada dos invasores.
Ordem inócua, gesto propagandístico, resultado pífio.
1980. Começa outra invasão, agora por ouro, no alto rio
Uraricoera. Eram cerca de dois mil garimpeiros que, nove anos
depois, haviam se transformado em 50 mil, espalhados por toda
a região central das terras Yanomami no Brasil, atravessando a
fronteira e causando problemas diplomáticos com a Venezuela.
A situação alcançou um estado crítico a partir de agosto de
1987, com a chegada de milhares de garimpeiros que primeiro
usavam os campos de pouso das missões religiosas e da FAB,
para logo depois abrirem um número crescente de pistas. Dois
anos depois, estimava-se mais de 80 pistas clandestinas,
algumas do lado venezuelano da fronteira. O rio Mucajaí ficou
poluído por mercúrio e assoreamento em toda a sua extensão.
Os rios Uraricoera, Catrimani e Couto de Magalhães,
contaminados por mercúrio e óleo, não tinham mais peixes. A
ininterrupta decolagem e aterrissagem de aviões e helicópteros
32
afugentou a caça, levando os Yanomami à penúria e à
humilhante situação de depender da comida dos garimpeiros.
Mesmo as comunidades que não sofreram diretamente a
presença concreta do garimpo poluente acabaram atingidos
pelos efeitos das ondas de choque da corrida do ouro.
Epidemias que começavam num determinado ponto
grassavam como fogo selvagem por dezenas de aldeias,
deixando um rastro de devastação social, ecológica e
econômica. Tuberculose, malária e outras tantas pestilências
alienígenas mutilaram e mataram, umas de maneira
fulminante, outras aos poucos, corroendo o equilíbrio
demográfico de comunidades inteiras, deixando órfãos ao
deus-dará, ameaçando seriamente sua produção de bens
materiais e culturais e a própria reprodução social.
Através dessas ondas de choque, a tragédia Yanomami
ampliou-se – e continua num crescendo desvairado – a cada
nova pista que se abre, a cada novo barranco que se dilapida, a
cada novo acampamento garimpeiro que se instala. Como
células cancerígenas, os efeitos daninhos da atividade
garimpeira espalharam-se – e continuam se espalhando – pelas
artérias, veias e capilares da grande cadeia orgânica que é o
mundo Yanomami.
Ficou-se sem saber o número de indígenas mortos em
conflitos armados e por doenças contagiosas propagadas pelos
invasores porque, a partir agosto de 1987, a Funai, os militares
do Conselho de Segurança Nacional e o então governador de
Roraima, Romero Jucá, proibiram pesquisadores, profissionais
de saúde, missionários católicos, jornalistas e outros
observadores de entrar em território Yanomami.
33
1991-1992. A tragédia do garimpo não poupou meu local
de trabalho de campo. O vale do rio Auaris, no divisor de águas
entre o Brasil e a Venezuela, foi o cenário da minha pesquisa de
doutorado (1968-1970), naquela época, um paraíso etnográfico.
Sem pressões, sem invasões, sem epidemias, num recôndito
rincão da mata amazônica, desempenhei sem pressa meu rito
de passagem malinowskiano para me tornar uma antropóloga
de verdade. Mal sabia eu que a transformação desse paraíso em
inferno seria apenas uma questão de tempo.
Nos meses de março e abril de 1991, a região do alto rio
Auaris em Roraima, estando na periferia da atividade
garimpeira, parecia longe da infestação de malária. No entanto,
tornou-se palco de uma das mais violentas crises de saúde
registradas no território Yanomami. Das aldeias mais atingidas,
Kadimani, onde passei metade dos 18 meses de pesquisa de
campo, destacou-se em quantidade de doentes e em gravidade
do estado de saúde de seus habitantes.
Por aquela época, já o Brasil aparecia aos olhos do mundo
como omisso em proteger os direitos indígenas, deixando que
dezenas de milhares de invasores infestassem uma das terras
indígenas mais focalizadas pelos meios de comunicação no país
e fora dele. Depois de três anos de proibição para realizar
pesquisa antropológica com os Yanomami, a FUNAI, afinal,
concedeu-nos autorizações para entrar na área. Em menos de
um mês, Bruce Albert e eu retornamos à área. Enquanto Bruce
acompanhava uma equipe médica a Toototobi, no estado do
Amazonas, eu revisitei Auaris depois de quase 17 anos de
ausência. Coube-me o papel de intérprete de uma equipe
médica da então Fundação Nacional de Saúde conduzida pela
Dra. Ivone Menegola. Era apenas uma viagem exploratória
sobre as condições locais de saúde. No entanto, uma semana
34
depois de nos instalarmos na minha antiga casa na aldeia
adjacente à missão da MEVA, começaram a chegar mensageiros
de Kadimani com notícias sobre o estado desesperador de seus
parentes. Por falta de transporte, não conseguimos alcançá-los
imediatamente e mandamos os mensageiros de volta com o
recado para que os doentes tentassem chegar à missão.
No final de março, chegou a primeira leva numa
desoladora fila indiana de gente desnutrida, amparada em
bastões ou nas costas dos menos fracos, arrastando-se até a
minha casa. A semana que se seguiu foi de trabalho frenético
para atender a todos, dia e noite, ao mesmo tempo que nos
desdobrávamos para alimentar 133 pessoas famintas e
macilentas. Como solução de emergência, mandamos vir
gêneros alimentícios de Boa Vista para não sobrecarregar os
limitados recursos dos habitantes locais.
Casos de anemia profunda necessitavam transfusão de
sangue. Foram feitas nove transfusões com doadores da própria
missão. Na minha rede faleceu um menino, aumentando o
número de mortos para três, dois dos quais haviam morrido
antes desse traslado para Auaris. Outros residentes de Kadimani
faleceram em vários outros lugares do território Yanomami,
alguns trazidos de volta à missão.
A cada avião que chegava com um cadáver, redobrava o
pranto dos parentes alojados precariamente num alpendre da
missão. O pranto pungente e sofrido somava-se ao desalento
dos desnutridos num lamento sonoro que replicava o desespero
visual. O choro das famílias de Kadimani debruçadas sobre seus
mortos, devolvidos um após outro, tornou-se um eco
recorrente e símbolo fúnebre de uma situação que só não se
tornou um morticínio generalizado graças à coincidência da
presença da equipe médica naquele momento em Auaris. A
35
malária Falciparum, quase sempre letal sem o devido
tratamento, teria levado a comunidade de Kadimani à extinção,
deixando desgarrado um punhado de sobreviventes.
Nossa estada em Auaris chegou ao fim, conseguimos
evitar um número significativo de óbitos, mas a invasão não
parou, a malária continuou a ceifar vidas e assim permaneceu o
drama dos Sanumá até que, em 1992, a Terra Indígena
Yanomami (TIY), demarcada no ano anterior, foi homologada,
os invasores retirados, embora parcialmente, e seguiu-se um
interlúdio de relativa tranquilidade na vida Yanomami, até Jair
Bolsonaro chegar ao poder em 2018.
Em 1993, o então deputado federal Jair Bolsonaro
apresentou à Comissão de Defesa do Consumidor, Meio
Ambiente e Minorias o Projeto de Decreto Legislativo 365 que
tornaria “sem efeito o Decreto de 25 de maio de 1992, que
homologou a demarcação administrativa da terra indígena
Yanomami, nos Estados de Roraima e Amazonas”. O
argumento, já surrado pelo uso excessivo e fútil dos militares,
apelava para a segurança nacional que estaria ameaçada pela
possibilidade de o povo Yanomami criar um Estado próprio às
expensas do Brasil e da Venezuela. O projeto teve como relator
o deputado Fernando Gabeira. Com firmeza e agilidade,
utilizando amplamente dados antropológicos sobre os
Yanomami,1 o relator votou pela rejeição do projeto,
justificando: “Examinados os argumentos apresentados para
embasar a presente proposta, em face das razões técnicas e
1
Referiu-se, entre outros documentos, ao meu artigo “Nações dentro da nação.
Um desencontro de ideologias”, publicado na coletânea organizada por George
Zarur Etnia e nação na América Latina, v. 1, p. 79-88. Washington, DC: Interamer
44, 1994. O presente texto baseia-se nas publicações da CCPY, especialmente:
Boletim Urihi, n. 13, datado de junho de 1990 e Sanumá memories. Yanomami
ethnography in times of crisis. Madison: University of Wisconsin Press, 1995.
36
legais expendidas, julgo-me no dever de rejeitar o presente
Projeto de Decreto Legislativo, de forma a defender nosso
patrimônio genético e cultural e como forma de afirmar a nossa
cidadania”.
Com essa tentativa frustrada, Bolsonaro, já como
presidente do país, desiste dos canais competentes e adota a
omissão ativa como meio para chegar ao fim que, há quase 30
anos, lhe foi legitimamente negado: a destruição do território e,
por extensão, do povo Yanomami.
2020. O caráter um tanto farsista,
embora letal, da corrida do ouro
que afligiu os Yanomami no século
passado muda de tom e torna-se
dantesco
ao
promover
uma
escalada de horrores inéditos na
história interétnica desse grande
povo. Para cúmulo do infortúnio, a
não declarada guerra total contra
eles veio acompanhada de uma das
mais virulentas pandemias em
tempos modernos.
A fúria com que a atual
corrida do ouro tem atacado a terra
e a vida dos Yanomami tem todos
os ingredientes de uma orquestrada campanha genocida que
visa exaurir os recursos naturais da TIY, ao mesmo tempo que
tenta eliminar de uma vez por todas as etnias que a ocupam.
Invasões garimpeiras não são novidade para muitos Yanomami
e seus vizinhos Ye’kwana. O que é novo são as investidas do
governo federal contra eles, medidas flagrantemente
37
inconstitucionais que desafiam o estado de direito, insuflam a
propagação de notícias falsas para confundir a opinião pública
e aplicam incentivos sem rodeios ao saque e à extrema
violência. Esse é o carimbo que o presidente Bolsonaro
imprime à sua passagem pela história do país.
Mais uma vez, os Sanumá, Yanomami da região do rio
Auaris, foram protagonistas de notícias aterradoras. No dia 24
de junho de 2020, a jornalista Eliane Brum do El País Brasil,
escreveu: “Três mulheres vivem um horror para o qual será
preciso inventar um nome. Elas são Sanöma… Em maio, essas
mulheres e seus bebês foram levados para Boa Vista… com
suspeita de pneumonia. No hospital, as crianças teriam sido
contaminadas por covid-19. E lá morreram. E então seus
pequenos corpos desapareceram, possivelmente enterrados no
cemitério da cidade. Duas das mães estão com covid-19,
amontoadas na Casa de Saúde Indígena (CASAI), abarrotada de
doentes. Lá, corroídas pelo vírus, elas imploram pelos seus
bebês”. Em mensagem gravada em sua língua materna, uma das
jovens mães diz à jornalista: “Sofri para ter essa criança. E estou
sofrendo. Meu povo está sofrendo. Preciso levar o corpo do
meu filho para a aldeia. Não posso voltar sem o corpo do meu
filho”, condição necessária para lhe dar um funeral digno nos
moldes Yanomami, que exigem a cremação do cadáver e ritos
apropriados.
O roubo e enterro dos corpos foram justificados pelo risco
que os corpos, supostamente infectados pelo coronavírus,
representariam para a população. Apurou-se mais tarde que os
bebês foram exumados e testados. Não havia covid-19! A
agressão contida no sepultamento clandestino das crianças
sanumá foi uma sórdida infâmia, disfarçada de ignorância,
contra essas mulheres e, por extensão, contra todos os
38
Yanomami. Como explicou Bruce Albert a Eliane Brum, “não
há pior afronta e sofrimento para os Yanomami do que fazer
‘desaparecer’ seus mortos”.
A brutalidade continuou em outras frentes. O
relatório Yanomami sob ataque, uma realização das duas
associações indígenas da TIY – Hutukara Associação Yanomami
e Associação Wanasseduume Ye’kwana – foi publicado em abril
de 2022 com dados do Sistema de Monitoramento do Garimpo
Ilegal da TI Yanomami coletados em 2021, com o apoio do
Instituto Socioambiental (ISA). Essa publicação nos dá em texto
e imagens a magnitude dos crimes que há quatro anos vêm
sendo cometidos contra o meio ambiente e os habitantes da
Terra Indígena Yanomami. Cita uma estimativa, conservadora,
do aumento do garimpo na TIY de 2016 a 2020 em
inimagináveis 3.350%, comparando com dados das corridas de
ouro anteriores. Uma das razões apontadas no relatório é a
“Fragilização das políticas ambientais e de proteção a direitos
dos povos indígenas e, consequentemente, da fiscalização
regular e coordenada da atividade ilícita em Terras Indígenas”.
Enquanto a linha de frente de hordas de garimpeiros –
controlados por poderosos setores empresariais escusos e até do
crime organizado – ataca sem rodeios, nos bastidores políticos,
o governo limpa o terreno para o avanço, afastando agências e
agentes fiscalizadores do caminho da notória boiada
celebrizada por um demolidor ministro do meio ambiente. A
violência contra os Yanomami tem seguido de perto esses
números inconcebíveis.
Sem a aparente astúcia das canetadas presidenciais, as
fileiras garimpeiras não medem esforços nem imaginação para
despejar os Yanomami de suas legítimas terras. Na região do
Palimiu, os Yanomami começaram a ver sinais de mudança no
39
comportamento dos invasores. O relatório revela: “Se antes [de
2019] apenas os barqueiros transitavam encapuzados, agora
outros homens também o faziam, vestidos quase sempre de
roupas pretas. As armas também haviam mudado. De
espingardas de caça, passaram a circular com pistolas e fuzis. E,
a abordagem nas comunidades tornou-se mais agressiva e
violenta. Há relatos de garimpeiros bêbados invadindo casas e
assediando mulheres, e de gritos de ameaça durante encontros
furtivos no rio: ‘Vamos acabar com os yanomami’, diziam”. O
que se seguiu fez notícia dentro e fora do país.
“Assim, no dia 10 de maio de 2021, sete embarcações com
homens armados, vestidos de coletes e balaclavas, se
aproximaram da comunidade Yakepraopë e abrigam fogo
contra seus moradores, incluindo mulheres e crianças… Na fuga,
duas crianças morreram”. Fortes indícios apontavam a presença
de membros do PCC, à busca “de vingança pelos homens
feridos no revide de arco e flecha que os Palimiutheri
conseguiram realizar”.
Inconformados, os assaltantes fizeram outros ataques nos
meses que se seguiram, incluindo o disparo de “quatro tiros
contra mulheres que procuravam um parente desaparecido no
rio…”. Os efeitos dessa saraivada logo apareceram. Os
moradores queixaram-se a agentes do Ministério Público
Federal que, antes dos ataques, “a pescaria era boa, a caçaria era
boa”. Não mais: “O rio está contaminado… e a caça
emagreceu…”.
Novamente, 30 anos depois do pandemônio do início dos
anos 1990, como se não bastasse a covid-19, a malária volta à
cena com força redobrada. Apenas na região do Uraricoera, que
inclui Palimiu, eram mais de 1.800 casos. Calcula-se que a
média de contaminação por malária era de quase dois casos por
40
pessoa, enquanto na região do rio Auaris, entre 2019 e 2020, os
casos de malária subiram para 247%. O mesmo fenômeno se
repete em praticamente toda a TIY. A espiral de tragédias não
para de crescer.
Essa espiral chega agora a um paroxismo de criminalidade
inédita. No fim de abril de 2022, chegou à grande imprensa
nacional e internacional a notícia de que uma menina sanumá
da comunidade de Aracaçá, na região do rio Uraricoera, fora
estuprada até a morte por garimpeiros. Dada a grande
repercussão do caso, agentes da Polícia Federal foram à área
examinar a situação. Encontraram a aldeia carbonizada e vazia.
Na ausência de vítimas, no estilo habitual da ignorância
cultivada sobre os usos e costumes indígenas (repetindo o
episódio do massacre de Haximu em 1993), 2 os investigadores
começaram por tomar as casas queimadas e desertas como
evidência de que nada havia acontecido, apenas malentendidos, conflito de narrativas. Aos poucos, surgiram
depoimentos de indígenas que corroboraram a existência dos
crimes e denunciaram o suborno que os emudeceu.3 Seu
silêncio era pago em ouro e, ironia das ironias, o mesmo ouro
extraído de suas próprias terras.
Posteriormente, soube-se que a destroçada aldeia de
Aracaçá fora evacuada – como sói acontecer na tradição
Yanomami após mortes, especialmente, as violentas – e os
habitantes buscaram refúgio em outras áreas da TIY. Aracaçá,
cuja história interétnica é uma das mais trágicas do mundo
2
Sobre o massacre do Haximu, ver Albert (2001) “Haximu: Foi
genocídio!”. Documentos Yanomami. n. 1, 2001. São Paulo: Comissão PróYanomami (CCPY).
3
Disponível
em:
https://www.nsctotal.com.br/noticias/yanomamisencontrados-foram-cooptados-pelo-garimpo-diz-lideranca-indigena. Acesso:
13 de maio de 2022.
41
Yanomami,4 suscitou o seguinte comentário da imprensa: “Os
acontecimentos pelos quais passaram daria um filme de
terror: assédio moral (com farta distribuição de bebidas
alcoólicas) e sexual, estupros coletivos, prostituição,
assassinatos, suicídio, cooptação para trabalhos no garimpo. Um
verdadeiro genocídio com a conivência deste governo e que se
espalha, pelo menos, por metade das terras dos yanomami”.
Conclui a matéria: “Bolsonaro está de braços cruzados. Os
órgãos de fiscalização também”.5
Em suma, a boiada bolsonarista deixa na Terra Indígena
Yanomami um rastro sinistro de terra arrasada. O lamento do
líder da região do Palimiu assim o confirma: “Que todos vocês
voltem seus olhos para nós! Nós estamos sofrendo junto com a
floresta! A floresta morreu!… Acabaram com todas as árvores
que comíamos os frutos!… E quem foi que fez isso? Foram os
garimpeiros que acabaram com elas! A nossa terra está
completamente morta!… Aqui onde moramos estamos
arrasados! Da mesma forma como a floresta está devastada, nós
também estamos!”
4
A história recente da comunidade de Aracaçá é narrada na nota do Instituto
Socioambiental (ISA), “Comunidade Aracaçá vive tragédia humanitária, alerta
organização
Yanomami”,
de
6/5/2022.
Disponível
em:
https://www.socioambiental.org/noticias-socioambientais/comunidadearacaca-vive-tragedia-humanitaria-alerta-organizacao-yanomami. Acesso: 13
de maio de 2022.
5
Disponível em: https://conexaoplaneta.com.br/blog/tragedia-humanitariavivida-pela-comunidade-aracaca-e-retrato-da-terra-indigena-yanomamidesintrusao-do-garimpo-ilegal-ja/. Acesso: 13 de maio de 2022.
42
Nações dentro da nação: um desencontro de ideologias
[1996]
Microscopista e grupo de apoio indígena percorrem o Rio Auaris,
Terra Indígena Yanomami, no combate à malária
Por que a ideia de “nações indígenas” é um problema no
Brasil? Por que ela ofende suscetibilidades estatistas? E se assim
é, por que não utilizar apenas o conceito de “etnias” quando se
quer referir aos povos indígenas que fazem parte do território
nacional? Por que muitos defensores da causa indígena,
incluindo a própria União das Nações Indígenas, insistem em
aderir ao termo “nações indígenas”, mesmo enfrentando a fúria
43
dos que defendem a soberania nacional contra o que seria, em
sua imaginação, o efeito dominó de separatismos indígenas?
Porque, arrisco dizer, no cenário nacional, o conceito de etnia
não tem nem força política, nem legitimidade ideológica, já que
a sociedade brasileira se quer homogênea e integrada dentro de
um Estado único que a represente. Etnias são tidas como
excrescências sociais que a História impingiu à pátria e que
devem ser aplainadas e diluídas na correnteza nacional. Contra
essa pasteurização étnica, o movimento indigenista, que agrega
tanto índios como brancos, necessita de uma bandeira à altura
da luta para que o país admita o direito dos índios de serem
etnicamente diferentes dos demais brasileiros. Por ser um
termo politicamente fraco, etnia foi relegado ao âmbito cultural
e, como instrumento de luta política na arena do contato
interétnico, foi adotada a expressão “nações indígenas”.
Tomado de empréstimo ao mundo ocidental moderno, o
termo “nação”, tanto a nível nacional quanto internacional, é o
único instrumento semântico que transmite o reconhecimento
de que é legítimo ser diferente e, embora o Ocidente propague
a ideia de nação como algo unitário e até universal, espera-se
que cada nação seja diferente das outras em seu
conteúdo cultural; “fala-se de ‘caracteres nacionais’ e cada país
alimenta estereótipos acerca dos países vizinhos”, diz Dumont
(1985: 124). Por outro lado, as diferenças internas são, quando
muito, toleradas, mas nunca oficialmente exaltadas.
Desde que foi adotado no Brasil, o termo “nações
indígenas” tem incomodado muita gente, principalmente, nas
duas últimas décadas. Governantes tomam-no como expressão
de perigo para a soberania nacional e protestam contra os
defensores dos índios, que a usam como símbolo de luta pelos
direitos humanos dos povos indígenas enquanto coletividades,
44
por paradoxal que isso pareça1. Os índios, pelo menos alguns,
parecem apropriar-se dele mais ou menos como os
indianistas do século passado (José de Alencar, por exemplo) se
apossaram de símbolos indígenas para marcar a brasilidade
face à Europa, ou seja, como emblema de alteridade legítima.
Obviamente, no trânsito desse termo entre os seus diversos
usuários,
cria-se
uma
imensa
área
cinzenta de
incomunicabilidade, seja ela proposital ou não.
Como o termo “nação” está ligado a uma vastíssima
produção intelectual de onde surge um campo minado de
concepções e contra concepções, pretendo apenas congelar três
momentos da via crucis desse conceito. Selecionei três autores
como poderia ter selecionado quaisquer outros três ou mais.
Para o meu objetivo, entretanto, bastam estes:
•
Marcel Mauss, para quem nação propriamente dita é o
protótipo europeu ocidental do Estado-nação, ou seja,
“uma sociedade material e moralmente integrada, com
poder central estável, permanente, com fronteiras
determinadas, com relativa unidade moral, mental e
cultural de seus habitantes que, por conseguinte, acatam
o Estado e suas leis” (Mauss, 1972: 286).
•
Anthony Smith que, ao estudar o fenômeno do
nacionalismo, distingue três termos: tribo, etnia e nação;
esta, por sua vez, não se confunde nem com o “Estadonação”, nem com a “nação-Estado”. “Nações”, diz Smith
(1983: 187), “são ‘etnias’ economicamente integradas em
torno
de
um sistema
de
trabalho
com
1
Embora os direitos universais do Homem se refiram a direitos individuais, eles
têm sido invocados na defesa dos povos indígenas contra os abusos dos Estadosnação a que estão sujeitos. Alcida Rita Ramos, “Indigenismo de
resultados”, Revista Tempo Brasileiro, 100 (1990a): 133-149.
45
complementaridade de papéis, cujos membros possuem
igualdade de direitos enquanto cidadãos de uma
comunidade política não mediada”.
•
Benedict Anderson, para quem a nação é:
uma comunidade política imaginada — e imaginada
como sendo inerentemente limitada e soberana. É
imaginada porque os membros até das menores
nações nunca chegam a se conhecer mutuamente
(…), mas em suas mentes está a imagem de sua
comunhão. (…) [E] limitada porque até a maior delas
(…) tem limites bem definidos, ainda que elásticos,
para além dos quais estão outras nações. (…) É
imaginada
como soberana porque
o
conceito nasceu numa era em que o Iluminismo e a
Revolução destruíam a legitimidade do reino
dinástico hierárquico, ordenado pelo poder divino.
(…) [É] imaginada como comunidade porque (…) a
nação é sempre concebida como um profundo
companheirismo horizontal (Anderson, 1991: 6-7).
O conceito de “nação” no campo minado do indigenismo
Na situação específica da formação histórica brasileira no
que tange às populações indígenas, vemos uma certa
coincidência entre as posturas dos agentes políticos do
indigenismo e essas três posições acadêmicas: temos os
estatistas maussianos acoplando nação e Estado na mágica frase
“soberania nacional”; temos a Igreja propondo que nação não
rima com Estado e, por conseguinte, nada existe contra
defender a figura das “nações indígenas”; e temos as
Organizações Não Governamentais e as organizações
46
indígenas, advogando a autodeterminação das etnias indígenas,
mas uma autodeterminação realizada em termos culturais e
não político-estatais. Se, a nível acadêmico, é magra
a concordância de posições sobre o tema “nação”, no campo da
política do indigenismo, o que predomina é uma verdadeira
guerra de interpretações. Um exemplo retumbante dessa
guerra ocorreu em 1987, durante a assembleia constituinte,
quando o Conselho Indigenista Missionário, braço indigenista
da Igreja Católica, insistiu na defesa da expressão “nações
indígenas” em sua proposta aos parlamentares. A reação
do establishment econômico
e
militar
foi
rápida
e
fulminante. Assumindo o papel de veículo desse establishment, o
jornal O Estado de S. Paulo manteve durante semanas uma
violenta campanha de desmoralização da Igreja, que estaria
advogando a criação de nações indígenas como uma manobra
para permitir a tomada da Amazônia por interesses
estrangeiros. Por sua vez, num exercício de musculação ideológica, a Igreja utilizou-se da fatídica expressão “nações
indígenas” como se fosse um peso arremessado contra o Estado,
rememorando as rixas agonísticas entre Estado e Igreja nos
velhos tempos pré-modernos. Por pouco, esses francoatiradores não atingiram os próprios índios que, joguetes de
uma disputa da qual não participavam, tiveram ameaçada sua
bem-articulada
campanha
junto
aos
parlamentares
constituintes. A celeuma provocada por essa peleja IgrejaEstado deixou como sequela o ódio de todos contra todos:
Estado, Igreja e ONGs.
A vertente estatista do nacionalismo brasileiro, em seu
repúdio à utilização do termo “nações indígenas”, torna-se mais
explícita no discurso militar da segurança nacional, mas
47
floresce nas falas de alguns profissionais liberais, como esta, por
exemplo, do advogado Breno B. de Almeida Alves:
Se examinarmos os pressupostos do Estado
moderno, temos, como sabido, de início, território;
os índios já têm língua, têm costumes, e também
têm uma forma de governo. Há então a questão da
nação. Se juntarmos tudo isto, vamos dar a
eles condição de praticamente ter um Estado dentro
de outro Estado. Essa questão, a terminologia nação,
se nos ativermos à terminologia “nation”, é a mesma
coisa que Estado. Teremos então aí um problema
muito sério, inclusive essa expressão “nação indígena” começou a ser usada pelos parlamentares, que
falavam nas reuniões das Comissões sobre “nação
indígena”; alguns diplomatas legais (…) falam de
nação indígena. E isso é um perigo muito grande
para
nós,
de
praticamente
os
índios
assumirem, tomarem conhecimento desse conceito,
e pedirem a independência da “nação” deles com
base nos pressupostos do Estado moderno (Cançado
Trindade, org. 1992: 237).
No entanto, como diz Smith (1983: 178), “o objeto de
devoção nacionalista é a ‘nação’ e não o Estado — mesmo
quando ambos coincidem”. É a preocupação com a
homogeneidade interna da “nação” que move os estatistas a
combater em “nações indígenas”, antes que elas passem da
concretude da palavra à virtualidade da ação.
Talvez o maior problema com o termo “nação” seja o
excesso de significado que se acumulou sobre ele. Esse excesso
presta-se admiravelmente a manipulações ideológicas e serve
de baluarte a posições necessariamente conflituosas, como são,
por exemplo, os interesses desenvolvimentistas e os
48
“humanistas”, digamos assim. Para os desenvolvimentistas,
“nação indígena” sinaliza o perigo de aliciamento dos índios
contra o desenvolvimento e a soberania nacional. Para os
humanistas, “nação” é o conceito canônico moderno da
diferença legitimada, a partir do qual tanto se pode reivindicar
direitos de cidadania, quanto direitos universais inerentes à
humanidade como um todo. Em contraposição a isso, análises
recentes têm enfatizado os efeitos do desenraizamento que
resulta de migrações a nível global sobre o destino da nação em
sua concepção moderna. Homi Bhabha, por exemplo, afirma
que a nação “preenche o vazio deixado pelo desenraizamento
de comunidades e parentes, transformando essa perda na
linguagem da metáfora” (1990: 291). E mais, “a nação deixa de
ser o símbolo da modernidade para se tornar o sintoma de uma
etnografia de ‘contemporâneo’ dentro da cultura” (1990: 298);
ela “torna-se uma forma liminar de representação social, um
espaço que é internamente marcado pela diferença cultural e por
histórias heterogêneas de povos em disputa, autoridades
antagônicas e culturais locais em tensão” (1990: 299; ênfase no
original).
“Nação” é uma palavra que entrou de contrabando,
clandestina, como diz Bourdieu (1989), na retórica indigenista
brasileira. Nos Estados Unidos, o uso de “nações indígenas”
serviu como uma espécie de senha para a tomada de territórios
pelo nascente Estado norte-americano, através de declarações
de guerra e assinatura de tratados, ainda que fantoches, com os
donos desses territórios. Já no Brasil, o termo “nações
indígenas” é recente e surgiu da consciência de que nunca se
reconheceu nas culturas-etnias indígenas um mínimo de vulto
que merecesse crédito político. Reduzindo os índios à condição
de eternas crianças, o Estado brasileiro deu um golpe de mestre:
49
conquistou-os sem se dar ao trabalho de encenar o teatro de
uma diplomacia burlesca ao estilo norte-americano2.
Expressão adventista na arena do contato interétnico, o
termo “nação indígena” foi despido de suas complexidades e
passou a ser usado como uma má tradução, rendição
depauperada como as que costumam acompanhar a
transposição de certos conceitos em contextos de comunicabilidade precária. Vêm à mente as simplificações circulantes
naquela zona de penumbra semântica que encobre grupos
indígenas, cujo comando da língua portuguesa é limitado
demais para expressar complexos domínios de sua vida, e onde
elaborados rituais são rotulados de meras “brincadeiras” por
eles mesmos, replicando de maneira desavisada o paternalismo
regional. Afinal, “o etnocentrismo não é sempre traído pela
pressa em se satisfazer com certas traduções ou com certos
equivalentes domésticos? ” (Derrida, 1976: 123).
Se retirarmos o termo nação indígena do contexto
histórico e polissêmico ocidental, ele perde a conotação tanto
de organização estatal quanto de nacionalismo, pois não se
refere nem a Estado-nação, nem a patriotismo, nem a orgulho
nacional e nem a comunidades imaginadas e articuladas pelo
amálgama que Anderson chama de print capitalism — a difusão
da imprensa e literatura massificada — ou que Rowe e Schelling
(1991) atribuem à cultura popular. Em outras palavras, é “nação”
sem nação.
2
Sob a tutela do Estado, os índios brasileiros são considerados pelo Código Civil
como relativamente capazes para desempenhar certos atos da vida civil. Essa
medida, que nasceu como salvaguarda protetora das vidas e terras indígenas, ao
longo deste século tem sido uma trajetória eivada por excessos de paternalismo
que ferem frontalmente o espírito da preocupação que a originou.
50
Pressentindo esse deslocamento de sentido que, de fato,
poupa os povos indígenas de um destino nacionalista, os
guardiães do nacionalismo brasileiro, ainda apegados à
definição integracionista de “nação”, atribuem o perigo que
representam as nações indígenas não diretamente aos índios,
mas a fontes subversivas nacionais ou à cobiça estrangeira,
forças que, aos olhos de certos estatistas, se revestem do poder
e da capacidade de manipular a suposta inocência moral e
ingenuidade política dos indígenas.
Em busca do coletivo universal
Embora as ONGs e as associações indígenas não levantem
a bandeira de um nacionalismo indígena, elas se aproximam,
provavelmente sem saber, de alguns aspectos do conceito de
comunidades imaginadas. Quando Benedict Anderson propõe
que o nacionalismo resulta de um processo de autoconsciência
de uma coletividade, ele enfatiza a necessidade de se
reconhecer a dimensão imaginada do sentimento de pertencer
a uma nação. A ideia de se fazer parte de uma
mesma comunidade nacional é alimentada pelo que ele chama
de print capitalism, a disseminação vasta e acessível de
informações reconhecidas por todos os leitores como um
denominador comum, mesmo que esses leitores não se
conheçam uns aos outros. Apesar das ressalvas que podem ser
feitas à capacidade de demonstração que Anderson faz de
seu insight e às críticas de que foi alvo por privilegiar uma
suposta hegemonia da escrita em detrimento da força das
expressões orais da cultura popular (Rowe & Schelling, 1991),
fica a convicção de que é por vias indiretas, insidiosas e
51
capilares que se faz a ligadura dos componentes da
comunidade, transformando-a em nação. Deduz-se daí que,
para haver nação e nacionalismo, é preciso uma boa dose de
anonimato e impessoalidade, ainda que seguindo modos
comuns e próprios de ser anônimo e impessoal. Em outras
palavras, é preciso haver a figura ideológica do indivíduo: “a
nação, no sentido preciso e moderno do termo, e o
nacionalismo — distinto do simples patriotismo — estão
historicamente vinculados ao individualismo como valor”
(Dumont, 1985: 21).
Nesse sentido, as ditas “nações indígenas”, ou melhor
dizendo, as sociedades indígenas, não podem ser confundidas
com nações, uma vez que suas comunidades não são
imaginadas, mas vividas, ou seja, a ligação entre seus membros
não é feita por meios indiretos como a imprensa ou a
divulgação
literária
massificada,
nem
por
uma
ideologia individualista, mas através de contatos diretos, face a
face e imbuídos do coletivo. Aqui, a impessoalidade e o
anonimato não são nem cultivados, nem desejados e, em vez
de print capitalism ou de “cultura popular”, teríamos uma
espécie de oralidade consensual.
Ora, as entidades pró-índio parecem empenhadas em
construir uma ponte improvável entre o individualismo
ocidental, responsável pela formulação dos direitos universais
do Homem, e o coletivismo étnico. Vislumbra-se uma
tendência para a criação de um campo imaginado de destinos
comuns. É o campo do movimento pan-indígena,
especialmente com a promoção de encontros nacionais de
representantes indígenas, da circulação de filmes e vídeos por
aldeias e sociedades indígenas distantes entre si e da crescente
tendência para a formação de organizações indígenas no campo
52
dos direitos humanos. Tanto a Igreja quanto as ONGs leigas têm
sido agentes fundamentais na criação desse campo imaginado.
Mas, não é por ser imaginado que esse campo da política
do contato é uma nação em potencial, pois congrega uma tal
diversidade de línguas, costumes e tradições, que não passa de
uma colcha de retalhos costurada para convenientemente
defender os índios do oponente comum que é a sociedade
envolvente. Seria, parafraseando Lévi-Strauss (1962: 26), um
tipo de bricolage político, uma fabricação estratégica de ação
limitada a ganhos e perdas no campo das relações interétnicas.
Não deixa de ser oportuno olhar mais de perto o papel de
agentes externos no surgimento de uma imaginação indígena
coletiva onde antes ela não existia ou tinha outros contornos.
Desse modo, a ideia de “nação” torna-se o modelo privilegiado
para se delinear uma comunidade despertada politicamente.
Tomo o caso Yanomami como uma lente de aumento para se
ver melhor os detalhes, ainda que de maneira extremamente
breve.
Alcida durante uma expedição médica para tratamento de malária
entre os Sanumá, Walobiu, 1991. Por Karis Rodrigues
53
A nação que não é
São cerca de 22.000 Yanomami no Brasil e na Venezuela,
massa humana suficientemente grande para inibir o
conhecimento face a face de todos os seus membros. Embora o
território inteiro dos Yanomami esteja ligado por uma vasta
rede de trilhas e de cursos d’água que ligam, virtualmente, todas
as comunidades entre si, essa ligação se dá como elos de uma
cadeia, em que o último elo quase nada sabe sobre o
primeiro. Não havendo formas de comunicação global, ela se
dá de maneira setorizada, talvez em círculos concêntricos de
densidade variada de informações, ou seja, partir do conhecido
para o imaginado. Mas quem está incluído nesse imaginado?
São comunidades suficientemente distantes para que não
tenham contato direto entre si e suficientemente próximas para
que se saiba que elas existem. Com tais comunidades se
mantém um sistema de relações simbólicas, em que o
imaginário é a força motriz por excelência. É o complexo do
duplo animal, do alter ego, totemismo individual, como diria
Durkheim (1989)3. Por meio dele, certas comunidades longe
uma da outra estão inextricavelmente ligadas sem, no entanto,
terem qualquer tipo de interação face a face. Ao nascer,
cada pessoa Yanomami tem um equivalente ontológico na
forma de um determinado animal que vive em território
distante. Para cada conjunto de aldeias, existe outro conjunto
geograficamente longínquo, onde estão os duplos animais de
seus membros. Desse modo, cada comunidade tem o seu
3
Sobre o fenômeno do duplo animal entre os Yanomami ver a tese de
doutorado de Bruce Albert, Temps du sang, temps des cendres (Nanterre: Université
Paris, 1985) e Memórias sanumá de Alcida Rita Ramos (São Paulo/Brasília:
Marco Zero/Editora Universidade de Brasília, 1990b).
54
acervo de outras comunidades com as quais se imaginam
relacionadas, mas nunca com a totalidade dos 22.000
Yanomami. Somos nós, de fora, que percebemos a matriz geral,
onde esse padrão vai-se repetindo em blocos, recobrindo,
assim, todo o território Yanomami. Somos também nós,
agentes
externos,
que,
ansiosos
por
lhes
garantir
direitos territoriais à altura de suas necessidades, fustigamos a
imaginação Yanomami, insinuando-lhes uma unidade
imaginada através da divulgação de fotos, de vídeo e de outros
mecanismos destinados a criar uma consciência comum que os
abranja a todos4. Yanomami é um termo inventado por brancos
para dar conta da totalidade que escapa aos próprios Yanomami
que, por sua vez, se veem a si mesmos ou aos outros como
Sanumá, Yanam, Waikã, Xamatari, Yanomam etc. Mais
recentemente, a Casa do Índio, uma combinação de hospital e
albergue em Boa Vista, tem sido um catalisador dessa
consciência, ao reunir num mesmo espaço constrito homens e
mulheres de vários subgrupos Yanomami, antes desconhecidos
entre si. O resultado tem sido pouco alentador para quem
almeja chegar a ver a grande “nação” Yanomami harmoniosamente consciente de sua união indivisa. A heterogênea clientela
Yanomami da Casa do Índio encontra-se, conhece-se, chega a
odiar-se, e continua cultivando a distância que sempre manteve
entre si.
Mesmo assim, os Yanomami têm sido citados
nominalmente pelos militares como um caso paradigmático do
perigo que representa a criação de nações indígenas. Na
proposta do Projeto Calha Norte, argumentam contra a criação
4
Desde que este texto foi escrito, a era digital entrou na Terra Indígena
Yanomami, possibilitando o contato por internet com, virtualmente, todas as
aldeias que disponham dos recursos necessários. Nota da autora, 2024.
55
da área indígena Yanomami porque, estando em ambos os
lados da fronteira internacional, poderia levar manipuladores
brancos a arrebanhar todos eles, do Brasil e da Venezuela, e
criar o Estado Yanomami. Estatistas que são, os idealizadores
desse projeto efetuam uma operação clássica no ramo do
nacionalismo: onde há língua, usos e costumes comuns ligados
a um território próprio, há necessariamente nação e onde há
nação,
há
Estado.
Sua
posição
presume
que
“a
população colonizada aspira ao autogoverno de uma nova
comunidade política cujos limites foram estabelecidos pelo
colonizador” (Smith, 1983: 176). Conscientemente ou não, essa
reserva dos militares nada mais faz do que dar foro de
concretude a uma ficção que não precisa ser sólida para
se desmanchar no ar.
Se dermos o crédito que, ao menos em parte, merece a
análise de Pierre Clastres (1978) sobre a recusa dos extintos
Tupinambá em adotar a forma estatal de governo, podemos
afirmar que os povos indígenas no Brasil, as ditas “nações
indígenas” na acepção seja de quem for, por moto próprio, não
mostram qualquer intenção de se transformar em estados, nem
de promover um “nacionalismo indígena”. O fato de
terem falhado as tentativas de criar uma organização indígena
única, piramidal, a exemplo das federações do Equador ou do
Peru, diz-nos alguma coisa muito próxima daquilo que Clastres
caracterizou como o repúdio do Um em favor do Múltiplo.
Se o conceito de etnia não é politicamente potente e
legítimo para alçar a causa indígena ao plano das grandes
problemáticas nacionais, a exemplo, entre outros, dos
sindicatos ou das organizações empresariais, o conceito de
nação, por inapropriado, mais parece ir contra do que a favor
dessa causa, ao menos em certas conjunturas cruciais para o
56
país, como foi a assembleia constituinte de 1987-88. Por
transbordar de significado, o conceito de nação acaba
esvaziando-se, principalmente, quando passa a ser uma
metáfora política, como é o caso das “nações indígenas”, sempre
que tomada ao pé da letra. Se a singeleza de etnia mantém a
situação dos povos indígenas na obscuridade política,
a complexidade de nação ameaça confundi-la como um
ofuscante holofote que os expõe a todo tipo de oportunismo.
Esse é o dilema que enreda os índios num labirinto semântico
criado por um mundo pouco afeito a reconhecer e, muito
menos, a respeitar nuances quando se trata de alteridade.
57
O antropólogo no papel de testemunha: laudos
antropológicos e responsabilidade social
[1990]
No afã de servir ao que acreditamos serem os interesses
dos povos indígenas que estudamos, nós, antropólogos,
raramente paramos para pensar no que estamos fazendo
quando nos envolvemos com questões de ordem jurídica,
quando pomos à disposição de profissionais da lei a perícia que
nos é atribuída por sermos “especialistas”. Mas, somos
especialistas em quê? Esta é uma pergunta delicada e antipática
e só me permito fazê-la porque sou parte do problema que eu
mesma levanto.
Jovem casal curtindo a paz doméstica. Auaris, ca. 1969. Foto da autora
58
Até que ponto sou eu uma especialista em Yanomami? Os
27 meses descontínuos que passei, quase todos, em duas aldeias
de menos de 100 pessoas cada uma, pertencentes a apenas um
dos quatro grandes subgrupos daquela etnia autorizam-me a
tomar o lugar e a voz dos mais de 9 mil Yanomami no
Brasil?1 Ou, tomemos outro profissional que tenha trabalhado
por longos períodos com o universo inteiro de uma sociedade
indígena. O conhecimento que foi por ele acumulado seria
suficiente para torná-lo porta-voz de tudo o que é relevante
para aquela sociedade? Em outras palavras, a pequena fatia da
vida indígena que conseguimos assimilar em nossas pesquisas,
sempre necessariamente limitadas no tempo e no espaço, será
suficiente para termos aquela visão, ao mesmo tempo global e
específica, que nos habilite a fazer afirmações que, ao passar
para o domínio da lei, são metamorfoseadas em fatos e
verdades jurídicos?
Em que se baseia, afinal, a ideia de “perícia
antropológica”? Uma primeira consideração toca diretamente
naquela contingência histórica que transformou os povos
indígenas em gente indefesa face ao Estado-nação que os
engoliu. Graças à vulnerabilidade dos indígenas, somos
revestidos de uma autoridade que é baseada, justamente, num
saber que adquirimos dos próprios índios. Somos os tradutores
de seus anseios. Mas, como todo tradutor, fazemos, no máximo,
uma aproximação, quando não escorregamos em traições ao
original. Até que ponto somos também porta-vozes delegados
por eles é uma medida da consciência, da confiança e disposição
mútuas que variam em cada caso.
1
Em números de 2023, são 30 mil yanomami habitando a Terra Indígena
Yanomami no Brasil.
59
Quando
escrevemos
um
laudo
antropológico
demonstrando que o povo X necessita de tanta terra ou que o
povo Y deve ser indenizado por isto ou por aquilo, sentimos a
reconfortante sensação do dever cumprido. Ao mesmo tempo
em que fizemos uma boa ação, somos gratificados com o
reconhecimento externo da nossa posição de experts. Mas,
quantos de nós não sentimos uma ponta de desconforto por
estarmos ocupando um lugar que, na verdade, não é nosso; por
sermos, enfim, os intermediários dos intermediários? Não creio
que esse sentimento seja apenas um desassossego
idiossincrático de minha parte, e nem descarto a outra face da
moeda, ou seja, a possibilidade de nos sentirmos lesados caso os
índios assumam o papel de peritos deles mesmos e, assim, nos
tornando descartáveis. Não podemos esquecer que, enquanto
autores de laudos periciais, somos, afinal, uma vicissitude
conjuntural na trajetória interétnica dos índios. Nem sempre
fomos peritos para eles no passado e nem o seremos para
sempre no futuro. Nossa atuação nesse campo é uma
contingência histórica e, como tal, deve ser avaliada. No fundo,
tudo isso aponta para a incômoda questão do paternalismo que
reconhecemos, por exemplo, no Estado e na Igreja, mas que
afastamos de nós mesmos com brios feridos quando nos é
atribuído.
Por outro lado, não há dúvida de que o que nos sustenta é
a convicção, historicamente mais do que justificável, de que o
respeito àquilo que defendemos para os indígenas que nos
tocam mais de perto teria salvo muitos outros povos indígenas
da extinção e da desagregação ao longo dos séculos de
conquista. Suas terras, sua saúde, seu direito à vida e à
diversidade cultural talvez tivessem sido salvos de tanta rapina.
São esses os valores que nos redimem, que dão às nossas
60
incursões pelos campos cerrados da lei um sentido que mais do
que supera as críticas que possamos – e que devemos – fazernos em nosso papel de “especialistas”. Esses valores são-nos
legados pelos princípios humanistas da própria antropologia.
Há uma outra consideração que deve ser cuidadosamente
examinada, que é o processo pelo qual nos tornamos experts.
Refiro-me à sua repercussão em nosso pensar a antropologia
como disciplina científica construída de teorias, conceitos,
pressupostos, parâmetros e, por que não, de modas. Quando
vamos a campo, não somos uma tabula rasa nem existencial,
nem profissional. As posturas teóricas, os conceitos, os métodos,
até as técnicas que levamos como ferramentas de pesquisa vão
talhar os dados que levantarmos; vão ser amplificadores de
percepção, mas também anteolhos. Domesticamos a realidade
que nos rodeia com categorias que nos são familiares, tanto em
termos da nossa socialização cultural como do nosso
treinamento profissional. O resultado é que transformamos a
nossa vivência de campo numa linguagem que não pertence
àquela realidade. A partir daí, iremos reproduzir essa
linguagem em nossos escritos que poderão incluir, entre outras
coisas, laudos periciais, depoimentos oficiais, declarações
públicas etc., mas, não nos iludamos, essa linguagem acadêmica,
aparentemente neutra, nem sempre é inofensiva.
Tomemos o exemplo que nos dá Fred Meyers,
antropólogo norte-americano que faz pesquisa entre os Pintupi
da Austrália e está engajado na defesa dos direitos dos
Aborígenes. Chamado pelo governo australiano a depor como
especialista, Meyers viu-se na posição de ter que questionar e
tentar derrubar a maneira como o conceito de “grupo local de
descendência” vinha sendo aplicado aos Aborígenes desde os
tempos de Radcliffe-Brown.
61
De posse desse conceito, as autoridades nacionais da
Austrália insistiam em obrigar os Aborígenes a provar que
tinham, realmente, grupos locais de descendência, se quisessem
fazer jus às terras que pleiteavam. Essa categoria analítica –
aliás, já um tanto fora de moda – ganhou, assim, o status de fato
jurídico nas mãos do poder, mesmo que a intenção original de
quem primeiro o aplicou pudesse estar totalmente desligada da
política do contato. Advindo do reino supostamente inócuo do
parentesco, esse conceito passou a ser o principal instrumento
do Estado contra os Aborígenes (Meyers, 1986: 147).
Uma faceta pouco conhecida da antropologia norteamericana revela-nos uma figura já antiga e bastante relevante
para esta discussão: a testemunha pericial. O antropólogo
como expert witness entrou na cena judicial americana a partir
de 1946 com a criação da Indian Claims Commission (Rosen, 1977:
556). Mas, embora a maioria dos depoimentos antropológicos
nos tribunais norte-americanos fosse sobre assuntos indígenas
daquele país, outros casos também levaram antropólogos ao
banco das testemunhas: o direito dos Amish (grupo religioso de
origem europeia que vive na zona rural do leste dos Estados
Unidos) de não mandar seus filhos para a rede escolar nacional,
a justeza ou não do sistema de segregação racial em escolas, a
“insanidade cultural” dos queimadores de arquivos de
recrutamento durante a guerra do Vietnã. Foi para tentar
provar o relativismo cultural nos tribunais que vários cientistas
sociais
norte-americanos
chegaram
ao
conceito
de
“incapacidade social” atribuível a grupos minoritários como
uma forma contundente de expor aos olhos da lei a realidade
das diferenças culturais, fossem elas criadas pela experiência
histórica dos indígenas, pela vida nos guetos urbanos ou pela
tradição religiosa de uma minoria etnicamente diferenciada.
62
Aos nossos ouvidos, essa “incapacidade social” ressoa como um
eco da “incapacidade relativa” do nosso Código Civil de 1916
que, por mais de um século, contemplou os povos indígenas
como o único segmento socialmente constituído no país a
merecer tal “distinção”. Assim, chegou-se ao mesmo conceito
legal por caminhos distintos: nos Estados Unidos, pela
experiência de cientistas sociais expostos à complexidade da lei;
no Brasil, por determinação de juristas expostos à
complexidade cultural.
Lawrence Rosen, o antropólogo americano que, em 1977,
discorreu sobre o assunto, não poupa esforços para ressaltar as
repercussões geradas por esse tipo de envolvimento por parte
de cientistas sociais. Ele aponta o problema de depoimentos
contraditórios como consequência de interpretações distintas
dadas por diversos antropólogos ao mesmo assunto, a
reputação de soft science da antropologia afetando decisões de
juízes, a importância da autoridade do perito como fiel da
balança nas decisões judiciais e – de especial relevância para nós
– o impacto que essas experiências individuais de antropólogos
podem ter sobre o pensar antropológico.
Citando o caso de Julian Steward, que testemunhou na
Comissão de Reivindicações Indígenas sobre a organização
política dos Paiute setentrionais, Rosen ressalta que esse
envolvimento levou Steward a aprofundar sua pesquisa sobre
bandos de caçadores. Conclui que os depoimentos de
antropólogos perante a Comissão estimularam um aumento de
pesquisas em etnografia e em etnohistória, dando aos
estudiosos a “oportunidade e a necessidade de reavaliar
abordagens técnicas e metodológicas há muito aceitas, com o
resultado de que cada uma destas pôde ser reafirmada ou
abandonada”. É evidente, afirma Rosen, que “essa participação
63
em casos judiciais tem tido um efeito recíproco no pensamento
antropológico” (Ray apud Rosen, 1977: 567).
Mais reveladora ainda é a declaração do próprio Steward
sobre o papel do antropólogo nessas situações: “Ele mesmo
transforma-se em ‘prova’, pois o seu testemunho está baseado,
de maneira incalculável, na sua teoria (explícita ou implícita),
nas suas experiências com o povo, nas suas viagens pelo
território…”. Em outras palavras, sua autoridade de expert está
calcada num tipo de experiência pessoal e sui generis com o
grupo estudado, experiência essa virtualmente irreproduzível
por outro profissional. Some-se a isso a influência que um ou
outro tipo de teoria exerce sobre cada antropólogo e teremos
uma situação muito próxima dos “imponderáveis” de
Malinowski, isto é, aspectos pouco afeitos à precisão e à
previsão, mas de importância fundamental para se desvelar um
determinado ethos.
A reflexão de Steward contém, numa cápsula, esse dilema
do antropólogo: o de ser, a um só tempo, sujeito e objeto de seu
próprio trabalho. Essa condição merece um exame cuidadoso,
sob pena de, desavisados, sermos solicitados a participar como
autoridades em algum assunto quando, ao mesmo tempo,
somos barrados em nosso trabalho como antropólogos. É o
caso, por exemplo, de muitos etnólogos no Brasil que
colaboram com um dos poderes do Estado, o judiciário,
fornecendo laudos periciais sobre povos indígenas do norte da
Amazônia, enquanto um outro poder desse mesmo Estado, o
executivo, nos proíbe de voltar ao campo para continuarmos a
exercer o nosso direito de trabalhar. A pecha de persona non
grata aderiu à imagem do etnógrafo no Brasil como uma
mancha pecaminosa atirada pela mão certeira de militares que
reconhecem o potencial de denúncia que representa o
64
testemunho ocular do antropólogo. Não existe – como, aliás,
nunca existiu – o cientista social desligado e acima de qualquer
contradição de ordem social ou política. Tão constitutivos de
seu ser social quanto o seu trabalho propriamente científico são
aqueles fatores que o assaltam assim que ele transpõe o umbral
da torre de marfim. E, do momento em que está do lado de fora,
tudo pode acontecer.
No Brasil, o palco onde desempenhamos a nossa perícia
não é o espetáculo público do tribunal, mas os bastidores do
Ministério Público. É com a Procuradoria Geral da República,
mais especificamente com a sua Sexta Câmara, que os
antropólogos interagem em seu papel de expert witnesses.
Reconhecendo o potencial de serviços que podem ser prestados
nesse terreno, a Associação Brasileira de Antropologia (ABA)
selou acordo com a Procuradoria, de modo a transformar em
envolvimento coletivo da categoria o que até então era
participação individual de alguns antropólogos em processos
judiciais. Ficou então oficializado esse tipo de engajamento que
antes dependia da ousadia e dos contatos pessoais de cada
antropólogo. Trazer uma associação profissional para essa
arena, com seu carimbo de legitimidade, reforça ainda mais
algumas das considerações que citei, especialmente no que toca
o pensar antropológico, ao se introduzir o interesse por temas
que, sem esse estímulo, talvez deixassem de ser explorados.
Dirijo-me agora a um caso específico, o caso Yanomami.
A saga Yanomami não começou nestes últimos meses, apesar da
imensa cobertura da imprensa sobre o impacto de mais de 40
mil garimpeiros invasores. Ela tomou corpo no início dos anos
1970, com a construção da rodovia Perimetral Norte e com o
levantamento mineral da Amazônia empreendido pelo Projeto
Radam Brasil. Peões com má saúde, garimpeiros afoitos e
65
empresários gananciosos fizeram em quatro anos mais estragos
entre os Yanomami das bacias dos rios Ajarani e Catrimani e da
Serra de Surucucus em Roraima do que tudo que os indígenas
têm na memória, mesmo considerando os tempos de guerra
com outros indígenas da região.
Em 1975, em pleno regime militar, abre-se uma pequena
brecha no controle autoritário suficiente para, com um aceno
da FUNAI, vários antropólogos se porem à disposição para
elaborar e dirigir projetos de assistência a populações indígenas.
Um desses foi o Plano Yanoama, dirigido por Kenneth Taylor,
na época professor da Universidade de Brasília, e do qual
participei. Menos de um ano depois de haver começado, o
projeto era encerrado pela recusa explícita dos militares de
permitir que um estrangeiro atuasse na fronteira. As razões
implícitas foram apenas parcialmente desvendadas. 2 Só em
meados da década de 1980, novos elementos, como o Projeto
Calha Norte, permitiram, em retrospecto, entender melhor
aquela reação que, aliás, atingiu não só o Plano Yanoama, mas
todos os outros cinco que então operavam na Amazônia,
envolvendo antropólogos nacionais e estrangeiros residentes
no Brasil. Ficou muito claro, onze anos depois, que os militares
não queriam qualquer concorrência no controle dos destinos da
Amazônia e seus habitantes. Uma das grandes preocupações do
Plano Yanoama era promover a demarcação das terras
indígenas antes que surgissem litígios sobre elas e antes que as
riquezas minerais nelas contidas fossem tomadas de assalto por
garimpeiros ou por empresas mineradoras. Nada foi feito além
2
Em seu livro Os Fuzis e as Flechas, o jornalista Rubens Valente (2017) expõe os
acontecimentos daquele período.
66
de uma tentativa da FUNAI, na época frustrada, de retalhar a
área indígena em 22 lotes pequenos e descontínuos.
Os anos 1980 viram a maior campanha, ao menos nas
últimas décadas, em defesa de um povo indígena brasileiro,
tanto a nível nacional como internacional. Instâncias como a
ONU e a OEA foram acionadas para exercer pressão sobre o
governo brasileiro no sentido de demarcar as terras tradicionais
dos Yanomami. Durante dois ou três momentos, essa meta
parecia a ponto de se realizar, para logo se diluir na eterna
técnica da procrastinação oficial. A FUNAI chegou a assinar
uma proposta em 1985 para a criação de um Parque Yanomami
com área superior a nove milhões de hectares. Três anos depois,
o grupo interministerial encarregado das demarcações, sob o
comando da SADEN (Secretaria de Assessoramento da Defesa
Nacional), decidiu por mais um retalhamento das terras
Yanomami, desta vez, em 19 áreas descontínuas, cercadas por
duas florestas nacionais e pelo Parque Nacional do Pico da
Neblina. Era o Projeto Calha Norte em ação. Além de diminuir
o território Yanomami em 70% de sua área tradicional, os
militares promoveram a ampliação de pistas de pouso que se
tornaram chamarizes para a grande invasão garimpeira que
começou em agosto de 1987. Daí em diante, pouco se soube em
primeira mão do que ocorria na área, graças à expulsão de
equipes médicas não governamentais, de missionários
católicos, e à taxativa proibição da entrada de antropólogos em
toda a extensão da Amazônia afetada pelo Calha Norte. Os
Yanomami passaram a viver o cerco surdo de massas
desprovidas como formigas em marcha cega pela floresta,
deixando atrás de si um deserto de fauna, rios mortos, grandes
viveiros de malária e outras doenças altamente voláteis. Veio a
desnutrição, a pesada mortalidade, principalmente infantil, a
67
desagregação econômica e, podemos só imaginar, porque não
pudemos presenciar, o caos existencial e material de um povo
tomado de assalto pelo pior dos desastres que lhes poderia ser
vaticinado.
Novamente, entra o antropólogo em seu duplo papel de
acadêmico-ativista, desta vez, como autor de um laudo pericial
solicitado pela Procuradoria Geral da República e que, somado
a um volumoso dossiê, iria fundamentar a Ação Cautelar
apresentada ao Juiz da Sétima Vara do Distrito Federal,
demonstrando a necessidade de proteção das vidas e da terra
Yanomami. No tempo recorde de quatro dias, a 20 de outubro
de 1989, veio a liminar que estabelecia a interdição da área
proclamada pela FUNAI em 1985, ignorando as 19 áreas e suas
circundantes florestas nacionais, e a ordem de expulsão dos
garimpeiros que, a essa altura, já andavam por perto de 50 mil,
espalhados por quase toda a região mais central e densa do
território Yanomami.
A reação negativa à liminar veio rápida e ousada:
empresários, donos de aviões e outros agentes de garimpo
começaram a despejar dezenas de índios doentes nos hospitais
e na Casa do Índio em Boa Vista, transferindo para a FUNAI as
atenções acusadoras da opinião pública. Em novembro, mais de
200 Yanomami se amontoavam na Casa do Índio,
praticamente, sem assistência médico-sanitária, famintos pela
falta de comida suficiente, assistindo à morte contínua de suas
crianças, as maiores vítimas desse desastre.
Em outra frente, o governador de Roraima, Romero Jucá,
tentava neutralizar os efeitos da liminar, pressionando o
governo federal a aprovar seu Projeto Meridiano 62, que tenta
legalizar a atividade garimpeira em área indígena. A partir daí,
começou um confuso jogo de pingue-pongue envolvendo o
68
governo estadual, o governo federal e o poder judiciário, onde
a peça oscilante era o governo federal, enquanto o Congresso
Nacional, em seu recesso sacrossanto de fim de ano, aparecia
como a grande ausência.
Os antropólogos “especialistas” em Yanomami não
tiveram mãos a medir para atender a jornalistas estrangeiros e
nacionais, ávidos por informações etnográficas de última hora,
tentando fazer sentido de uma situação sem sentido. Acabei
participando, inesperadamente, e a contragosto, de uma
audiência com o Presidente Sarney, expondo-lhe a apreensão
de todos os que se preocupam com os Yanomami sobre a
manutenção dos garimpos em pleno território indígena, para
acabar ouvindo do Presidente o inusitado comentário: “A
senhora pode ficar tranquila, porque eu sinto a mesma coisa
que a senhora! Os garimpeiros vão sair de perto dos índios”.
Poucas semanas depois, seu Ministro da Justiça, Saulo Ramos,
vai a Roraima e reitera o acordo de permitir a permanência dos
garimpeiros na área indígena, em frontal desobediência à
ordem judicial e flagrante exposição da mentira presidencial.
Por trás da nossa aparente ingenuidade (faziam parte do
grupo os cantores Arnaldo Antunes, Rita Lee, Gilberto Gil e
Sting) de buscar uma interlocução com agentes do poder
comprometidos com interesses opostos aos dos indígenas, está
uma tática bastante rotineira nos meios indigenistas, que é a de
provocar declarações públicas desses agentes sobre suas
posições, ainda que retoricamente vazias, e criar visibilidade
nos meios de comunicação para o problema que nos ocupa. Em
nenhum momento daquela tarde de janeiro no Palácio do
Planalto, tive qualquer dúvida sobre a vacuidade da retórica do
então presidente da República. Mas também, em nenhum
69
momento, lamentei ter perdido meu tempo ouvindo palavras
ao vento.
A
situação
Yanomami,
transformada
em cause
célebre nacional e estrangeira, mereceu até uma fala
presidencial, em cadeia nacional de rádio e televisão no horário
mais nobre da TV brasileira, antes da novela das oito. É possível
que o pingue-pongue continue nos próximos cinco anos, talvez
com novos jogadores e mais algumas demonstrações coloridas
de pirotecnia.3
O caso Yanomami conseguiu congregar numa mesma
arena política um número insólito e inesperado de personagens
desencontrados com posturas e interesses os mais antagônicos:
o capital selvagem dos empresários do garimpo, as massas
falidas de garimpeiros desgarrados, os Yanomami e sua
diversidade interna, o governo local abertamente a favor do
garimpo, o governo federal numa oscilação de pêndulo entre
atender aos interesses privados e manter uma imagem de
democracia, o poder judiciário local a serviço dos poderes
econômicos, o poder judiciário federal a serviço do estado de
direito e, em meio a todo esse emaranhado de atores e papeis,
os antropólogos, associados a outros militantes da causa
indígena.
O poder de fogo do antropólogo em situações como essa
é muito limitado e ele ainda corre o risco de se queimar por
atrair para si atenções e ações retaliatórias de quem se sente
atacado pelo seu testemunho. Mas não creio que nenhum de
nós que encara esse tipo de desafio é inocente a ponto de
3
Em outubro de 1990, o Presidente da República, Fernando Collor de Mello,
numa tremenda operação mediática mandou explodir as pistas de pouso
clandestinas na terra yanomami. No ano seguinte, assinou a demarcação da
Terra Indígena Yanomami.
70
imaginar que o seu laudo pericial vá salvar o povo indígena do
flagelo, nem que o seu mérito seja universalmente reconhecido.
Fazemos isso porque nos sentimos atores de um complicado
processo político, porque acreditamos que o nosso
conhecimento acumulado deve servir para mais do que
simplesmente o prestígio da academia e porque não
dormiríamos bem se nos omitíssemos em meio a tragédias
como a dos Yanomami. No fundo, dou razão a Rosen (1977: 573),
quando evocou Carl Sandburg ao dizer: “an expert is just a
damned fool a long ways from home” (o perito é só um idiota longe
de casa).
Arte de Yaki Sanöma
71
Post-scriptum
Reler este texto em março de 2018 4 choca por sua
atualidade, se não conjuntural, certamente, estrutural. Estão lá
os mesmos personagens que hoje frequentam os gabinetes de
agentes da Polícia Federal, de procuradores da República e de
juízes à espreita de seus crimes lesa-cidadania: Fernando Collor
– o da pirotecnia nas pistas de pouso clandestinas –, José
Sarney, Romero Jucá5 … A cupidez de nossos representantes
políticos – fantasmas vivos, ao que parece, indestrutíveis –
continua a assombrar os cidadãos e, em especial, os indígenas.
Ao texto original acrescento, primeiro, o caso paradigmático
dos Caxixó, que expôs sardonicamente a fantasia das perícias
antropológicas. Um grupo de pessoas em Minas Gerais
reivindicava território próprio e, para isso, declarava-se de
origem indígena. A FUNAI, com seu status de relativamente
incapaz dentro do aparato estatal brasileiro, convocou uma
antropóloga universitária para decidir se os Caxixó eram ou não
eram índios. Conclusão: não eram índios. Inconformados, os
interessados apelaram à Procuradoria da República em Minas
Gerais, que determinou nova perícia. Outra antropóloga
profissional foi designada para desempenhar a mesma missão.
Conclusão: eram índios. Para desempatar, uma terceira missão
antropológica entrou em campo. O resultado dessa paródia está
descrito em Santos e Oliveira (2003).
O segundo acréscimo ao texto original, muito mais
edificante e alvissareiro, evoca a participação cada vez maior e
mais visível dos próprios indígenas, agora formados e em
4
5
E, novamente, em 2023.
Figuras anódinas, comparadas com o que veio depois, na gestão Bolsonaro.
72
formação em antropologia em diversas universidades do país.
Enfim, chegamos ao segundo milênio da nossa brava era com
grandes esperanças nesses jovens que, em vez de condenar
irrevogavelmente – e, por vezes, com razão – a antropologia
como instrumento de colonização, fazem afirmações como
esta: “ela [a antropologia] tem a grande oportunidade de se
enriquecer e avançar, pois é uma disciplina que pode criticar a
si mesma” (Sarmento, 2018: 17). O autor da frase é Francisco
Sarmento, indígena Tukano do Rio Negro, Amazonas, mestre
em antropologia e doutorando na Universidade de Brasília.
73
Sonhando com ABYA-YALA
[2019]
ABYA-YALA, América antes da América 1
Sobre distopias
Uma angústia coletiva enche o ar como se vivêssemos o
clima de fim de uma festa para a qual gastamos muito mais do
que podíamos. Não é exatamente o gosto amargo de uma
ressaca, mas uma espécie de ansiedade e a vontade de criar um
futuro novo. Cresce o sentimento de que como está não pode
continuar. É preciso mudar o mundo. Estado e Mercado estão
exterminando seres e espécies de todos os tipos, incluindo
humanos. A consciência de uma hecatombe que se aproxima
provoca um profundo desespero, como mostra esta passagem
do sacerdote e sociólogo belga, François Houtart:
Quando mais de 900 milhões de humanos, em
números crescentes, vivem abaixo da linha da
pobreza …; quando, a cada 24 horas, dezenas de
milhares de pessoas morrem de fome; quando
grupos étnicos, modos de vida e culturas
desaparecem diariamente, pondo em risco o legado
da humanidade; quando a desigualdade entre
homens e mulheres aumenta no sistema econômico
formal e informal; quando o clima se deteriora, não
1
Abya-Yala, expressão do povo Kuna do Panamá, significa Terra Madura, Terra
Viva, Terra Florescente. Refere-se ao que os europeus chamaram América.
74
podemos, simplesmente, falar de crises financeiras
conjunturais (Houtart, 2014: 56).
Se são humanos os responsáveis por esses estragos, esses
mesmos humanos devem reparar os danos e refazer o mundo
de outra maneira, the world otherwise, como diz o antropólogo
colombiano Arturo Escobar (2007). Os esforços intelectuais
para romper o monólito que é o pensamento Ocidental sobre
como viver neste mundo concebem a sociedade humana de
maneira muito mais democrática, no sentido que deve ser dado
ao termo democracia (Graeber, 2007; Levitas, 2013). No
entanto, seguindo os velhos hábitos, distopias cada vez mais
virulentas circulam livremente pelo mundo. Silvia Rivera
Cusicanqui (2018: 51), antropóloga ativista boliviana, pergunta:
“Até quando vamos deixar a ideologia do progresso repetir
todas as mentiras que nos enrolam há tantos anos?”; prossegue
apresentando alguns dos males do progresso, como “a profunda
irracionalidade da bolsa de valores”, e contrasta-a com um
mundo diferente, onde poderíamos recuperar “formas
humanas, orgânicas, saudáveis de fazer coisas através e com o
mercado” (Rivera Cusicanqui, 2018: 52). Enquanto os críticos
das utopias as consideram impossíveis de alcançar, Ruth Levitas
(2013: xii) responde: “o que é realmente impossível é continuar
como estamos, com sistemas sociais e econômicos que
enriquecem uns poucos, mas destroem o meio ambiente e
depauperam a maior parte da população do mundo”. Indo mais
longe na imprudência humana, Alan Weisman, numa profecia
sinistra, imagina o planeta livre de humanos: “imagine um
mundo do qual, de repente, todos desaparecemos. Amanhã”. E
continua: “Improvável, talvez, mas digamos que não seja
impossível. Suponhamos que um vírus natural ou produto
75
diabólico da nano engenharia dirigido especificamente
ao Homo sapiens nos pegue, mas deixa tudo mais intacto”. [Citar
esta passagem, justamente, quando a pandemia da Covid-19 se
alastrava à minha volta foi, no mínimo, surreal!]. De onde o
autor tirou essa ideia, se não da observação prolongada da
maneira desastrosa com que o Homo sapiens tem tratado seu
planeta materno?
Mas, qual Homo sapiens? É justo chamar a atual voragem
que cobre a Terra pelo pomposo nome de Era do Antropoceno?
Será que foram os Yanomami ou os Cherokee ou os Inuit que
causaram o derretimento das geleiras, o buraco na camada de
ozônio, ou os incêndios infernais na Amazônia? Por sorte, nem
todos os Homo sapiens são iguais, pace os ensinamentos dos
biólogos! Alguns são mais sapiens que outros. Da maneira como
andam as coisas, em termos da quimera do desenvolvimento
(Rist, 1997), quanto mais pesada fica a tecnologia, mais escassa
se torna a sapientia.
Ainda muito saudável, reina a ilusão de que a alta
tecnologia é o remédio para os males que a própria tecnologia
engendra. Em sua crítica meticulosa e sóbria da tecnologia
baseada em combustíveis fósseis, o antropólogo sueco Alf
Hornborg (2016: 32) diz: “Depois de mais de 200 anos, ainda
tendemos a imaginar que o progresso tecnológico nada mais é
do que varinha mágica do engenho que, sem as implicações
políticas ou morais necessárias que vêm de fora, vai resolver
nossos problemas locais de sustentabilidade”. Ao pôr os pontos
nos iis do Antropoceno, Hornborg afirma que:
quanto mais os combustíveis fósseis e outros
recursos que ela [a tecnomassa] acumula e dissipa
hoje, mais dissipará amanhã. Este relato da nossa
76
entrada no Antropoceno não se refere às
propriedades biológicas da espécie Homo sapiens,
mas à forma específica da organização social que
surgiu muito recentemente na história humana,
como estratégia de um segmento da humanidade
para dominar o restante (Hornborg, 2016: 33).
Em outras palavras, não se pode atribuir o atual
desarranjo planetário a “traços inatos da nossa espécie”, mas sim
a um de seus segmentos, a “uma categoria social”. Um exemplo:
“Um americano médio emite hoje tanto dióxido de carbono
quanto 500 cidadãos médios de algumas nações da África e
Ásia” (Hornborg, 2016: 33). Então, justificadamente, Hornborg
pergunta: será que Antropoceno é a palavra certa para a
intemperança do West às custas do Rest? Ao responder, sugere
que chamemos “a era geológica inaugurada no fim do século
XVIII pelo nome de Tecnoceno” (Hornborg, 2016: 34).
Ao emular os hábitos pródigos da América do Norte,
governos latino-americanos ̶ em especial o Brasil ̶ se esmeram
em destruir, estimular a destruição ou passivamente deixar
destruir os recursos naturais na esperança fútil de concretizar a
quimera do “desenvolvimento”. Cerca de um milhão de
indígenas e outros povos tradicionais que, durante séculos, se
não milênios, vivem de modo sustentável em solo brasileiro,
têm sofrido os efeitos das políticas equivocadas, brutais e
desastradas de uma enfiada interminável de presidentes e
políticos ineptos. A rica cultura ancestral, celebrada pelos
recentes achados arqueológicos, responsável, entre outras
coisas, pela existência da espetacular floresta amazônica (Fausto
& Neves, 2018; Hornborg & Hill, 2011; Neves & Heckenberger,
77
2019), mal consegue sobreviver ao assalto sem trégua do Estado
e do Mercado que já leva séculos (Sweet, 1974).
Realidades indígenas, utopias brancas
Proponho um exercício
de confronto de opostos, uma
tentativa de pesar certas
práticas
ocidentais
contra
modos indígenas de manejo da
vida. Um dos elementos nada
secundários desse exercício é o
papel do Estado em forjar
políticas
que
afetam
diretamente a sobrevivência
dos
povos
indígenas.
Infalivelmente, elas propõem
planos globais mirabolantes
para satisfazer o Mercado, seja
no modo capitalista ou não. O
resultado é o mesmo: um
planeta em queda livre para a
Menina sanumá, aldeia de Auaris,
ruína.
1969
Neste exercício, sigo a sugestão de Ruth Levitas (2013) e
uso a noção de utopia como uma espécie de método que nos
permite estabelecer contrastes para realçar alguns traços
indígenas que são especialmente caros à minha experiência na
Amazônia. Volto a esses traços na última seção deste trabalho.
O que vou dizer agora pode parecer um exercício em
maniqueísmo — um jogo de mocinho e bandido em meio ao
78
tiroteio para destruir o planeta —, mas essa não é minha
intenção. Comparar realidades indígenas e utopias ocidentais é
o meu modo de, primeiro, ponderar sobre a exaustão e eventual
colapso do modelo estatal como organizador da vida coletiva e,
segundo, reconhecer cada vez mais os méritos dos modos
indígenas de viver. Durante muito tempo, confinei minha
vivência com os Sanumá ao nicho etnográfico da paisagem
acadêmica da antropologia. As lições que aprendi com aqueles
Yanomami do Norte provocavam-me apenas estímulos
pessoais e profissionais e um desejo de emular meus anfitriões
em contextos pós campo. Só muito recentemente, percebi o
potencial das lições indígenas para imaginarmos alternativas da
vida humana como um todo. Perturba-me ver o enorme acervo
etnográfico que a antropologia acumulou em menos de dois
séculos juntando poeira nas estantes da disciplina, com sua
exagerada especialização e crescente irrelevância. É uma
cornucópia de diversidade quase esquecida das novas gerações
e virtualmente desconhecida do grande público. Portanto, não
nos deve surpreender que os leigos comumente vejam os
indígenas como exóticos e folclóricos, arcaicos remanescentes
de eras passadas.
Quanto a nós, antropólogos, supostamente “especialistas”
em estudos indígenas, é inadmissível sermos refratários à
pletora de possibilidades advindas dos anfitriões de nossas
pesquisas de campo durante meses ou anos a fio. Foi com a
leitura cuidadosa de anarquistas contemporâneos, como James
Scott e David Graeber, que expõem a falácia do Estado
democrático e corrigem a origem convencional da democracia
(Graeber, 2007), que sacudi meus vícios acadêmicos e rasurei,
ao menos em parte, uma série de ideias recebidas de
professores míopes. A partir de então, comecei a perceber o
79
valor da etnografia como fonte de inspiração para imaginar, ou
sonhar, com uma outra maneira de conduzir a vida coletiva sem
o peso do Estado. Em suma, comecei a ver o mundo indígena
como um tipo de utopia capaz de nos mover a pensar numa
recomposição social do nosso próprio tecido sociopolítico.
No entanto, o que significa investir em tal recomposição?
Quão fundo temos que ir no coração da vida indígena para
chegar ao conhecimento necessário para conduzir povos não
indígenas (os ditos brancos em linguagem comum) a refletir
sobre seu mundo de maneira crítica e esclarecida? Por que,
afinal, os brancos estão agora nos apuros que eles mesmos
criaram? Com a astúcia habitual, diz Ailton Krenak: “Tem
quinhentos anos que os índios estão resistindo, eu estou
preocupado é com os brancos, como que vão fazer para escapar
dessa” (Krenak, 2019: 31; Danowski & Viveiros de Castro 2015).
Alguns desesperados que buscam conforto recuperando bens
comuns vandalizados em mercados mundo a fora aferram-se à
ideia em voga do bem viver. Adotam-na e adaptam-na como
querem e propõem incluí-la numa Declaração Universal do
Bem Comum da Humanidade nas Nações Unidas (Daiber &
Houtart; 2012). Chegam a usá-la como plataforma para políticas
estatais (Acosta, 2019) como panaceia para os desmandos do
Mercado (Acosta & Brand, 2018; Solón, 2019). Tudo isso seria
meritório se esses autores tomassem a noção de bem viver na sua
totalidade, no seu sentido cultural profundo, em vez de retalhála numa versão depauperada, mercantilizada, tirada de seu
contexto. No afã de livrar o capitalismo de seus piores efeitos,
apropriam-se de um conceito cuja profundidade mal parecem
perceber. A proliferação do bem viver pelas “comunidades
epistêmicas” (Cuestas-Caza, 2018: 51-52) tem levado intelectuais
indígenas a apontar alguns equívocos. Armando Muyolema,
80
professor quíchua do Equador, freia tal entusiasmo com uma
advertência pertinente. Explica que bem viver é usado como
parte inextricável do substrato cultural que lhe dá sentido e não
deve ser separado dele (cf. Cubillo-Guevara, 2016; Quick &
Spartz, 2018). Além disso, central a bem viver ‒ tradução pobre e
precipitada do conceito andino de Sumak Kawsay ‒ há um outro
termo, na verdade, um preceito: minga ou minka (traduzível por
mutirão). Forasteiros não percebem imediatamente a
profundidade desse conceito. Ao traduzi-lo simplesmente
como bem viver, perdem sua potência (Cuestas-Caza, 2018).
Muyolema critica quem usa Sumak Kawsay de maneira leviana,
pois é impossível entender bem viver sem minga. Um etnógrafo
competente deveria captar profundidades desse tipo. No
entanto, ao se tentar traduzir o conceito para uma língua
dominante, perde-se a essência de seu significado, pois uma
tradução raramente alcança o núcleo mais íntimo da cultura
que o gera. Por isso, quando for importante disseminar a
saberia indígena, nada substitui etnografias produzidas por
etnógrafos indígenas (Ramos, 2008).
Voltando a Muyolema, diz ele: “o que chama a atenção do
uso e disseminação desta categoria… é o escasso
desenvolvimento conceitual referente às suas fontes culturais e
linguísticas e à práxis social que descreve e à qual se relaciona”.
Afirma que “sumak kawsay se refere a 301 ‘estados de coisas’ ou
a um ‘projeto político’ que busca alcançar uma vida plena (um
estado de coisas harmônico e equilibrado)”. Esses princípios
estão codificados na linguagem e incluem, “por exemplo,
noções de solidariedade, de transformação social, de
reciprocidade, de pobreza e riqueza, de relação com o meio
ambiente, de relação com a experiência e o tempo, da pessoa e
do coletivo” (Muyolema, 2012: 301-302). Esses princípios
81
compõem a instituição da minga. Para entendermos melhor
quão central é a noção de minga ou minka, não apenas nos
Andes, mas por todo o mundo indígena das Américas, cito
novamente Armando Muyolema.
[Minka] designa trabalho coletivo, mas não qualquer
trabalho coletivo. É aquele feito como um ato de
solidariedade, seja para uma pessoa, uma família ou
uma
comunidade
maior.
Comunidade
e
individualidade incluem a relação com o lugar e
com outras formas de vida… Tampouco se trata de
qualquer tipo de solidariedade: a prática
da minka vai além do sentido de solidariedade
entendida como uma adesão momentânea à causa
de outrem. Pelo contrário, o ato de cuidar de algo
implica
responsabilidade
de
velar,
uma
responsabilidade que tem sentido na construção do
social, como numa relação e interação que
transcende
o
humano… Minka envolve
uma
responsabilidade normativa e continua, que advém
de se cuidar de algo ou de alguém como um modo
permanente de coexistência (Muyolema, 2012: 303).
Como um fato social total maussiano, minga “é uma
instituição que articula o social com o econômico, o ritual com
o político, o pessoal com o coletivo” (Muyolema, 2012: 305). Se
os fãs brancos do bem viver desconhecerem essa profunda
realidade indígena, conclui Muyolema, o conceito de sumak
kawsay “corre o risco de acabar domesticado e reduzido à sua
dimensão estética, submerso no simbolismo capitalista da
democracia cultural” (Muyolema, 2012: 306).
Minha própria experiência de viver junto aos Yanomami
abriu-me portas para outros modos de ser. Por exemplo, como
82
criar filhos sem castigos físicos ou como se zangar sem
extravasar a raiva para outras pessoas. Também importante é
sublinhar a profundidade semântica do conceito uli a na língua
sanumá
ou urihi em
outras
línguas
yanomami. Uli
a/Urihi significa floresta, país, lar, suporte vital. Ao tentar
transmitir essa noção numa de nossas línguas indo-europeias,
entramos em longas discussões quase filosóficas que
confundem mais do que esclarecem.
A maneira descuidada e blasé com que muitos
estrangeiros tratam a profundidade intelectual e ética de
conceitos indígenas beira o que Jack Goody (2006), muito
apropriadamente, chamou de roubo da história, ao se referir ao
hábito milenar do Ocidente de tomar como suas as invenções e
filosofias de outros povos. Ou como esses forasteiros,
pragmáticos e rudes, procuram, encontram e louvam o
conhecimento científico dos indígenas, mas descartam suas
“crenças” como meros ornamentos sem valor de mercado
(Ramos, 2006). É comum encontrá-los no submundo da
biopirataria. Portanto, é importante reforçar a posição de
Muyolema de que tão ou mais importante do que a
“transculturação de objetos, de ideias, de modos de vida… é a
capacidade de ouvir e aprender de outrem” (Muyolema, 2012:
307).
Esta discussão nos revela o valor potencial das lições
indígenas para nos alertar contra distopias e considerar modos
de vida alternativos. Exploremos brevemente trabalhos
dedicados à problemática do que significa viver fora do
domínio do Estado e o valor da autonomia.
83
Povo sem Estado
Em seu premiado livro The art of not being governed,
James Scott toma a vasta região do Sul Asiático identificado
como Zomia para ilustrar o que é a vida além do Estado. Zomia
ocupa as zonas de fronteira de seis país (Índia, China, Birmânia,
Camboja, Vietnã, Laos e Tailândia). Inspirado em Pierre
Clastres, Edmund Leach e Gonzalo Aguirre-Beltrán, entre
outros, Scott identifica uma formação sociopolítica baseada nos
princípios do associacionismo, consenso e persuasão como
mecanismos de controle social, além de parcimônia econômica
e ambiental. Os habitantes de Zomia, afirma Scott, cultivam
relações comerciais com os centros estatais circundantes, mas
mantêm uma distância segura para não serem “politicamente
capturados” (Scott, 2009: 8). O imenso conjunto de povos
móveis com muitas línguas e culturas distintas conseguiu por
muito tempo escapar do jugo do Estado.
Neste como em outros livros, o esforço analítico do
autor é demonstrar que o regime rígido e impessoal da
governança estatal gera conflitos internos, que levam à procura
de modelos alternativos. Essas alternativas são, geralmente,
mais compatíveis com a escala humana de viver em sociedade.
“Viver dentro de um Estado significava, virtualmente por
definição, impostos, recrutamento militar, trabalho servil e,
para a maioria, servidão” (Scott, 2009: 7; ver Gelderloos, 2016).
Isto me lembra o povo mura no Brasil colonial, alvo de
uma interminável caçada humana pelos militares que, ao
classificá-los de “nômades”, justificavam-se por persegui-los. A
partir daí “nomadismo” passou a ser considerado crime contra
a soberania nacional. Tidos como inconquistáveis, os
“nômades” mura estavam em todos os lugares, ou seja, em lugar
84
nenhum, portanto, desafiando o controle estatal. Tornaram-se
um sério problema que frustrava os poderes coloniais
(Amoroso 1992; Ramos 1995: 36-37). Como os habitantes de
Zomia, os Mura resistiram bravamente à incorporação do
Estado, não por defender “um lugar no mapa, mas por uma
posição vis-à-vis o poder” (Scott, 2009: 162). Poderíamos dizer
o mesmo sobre os insurgentes da Cabanagem da Amazônia no
século XIX, que lutaram contra as forças imperiais, perderam
batalhas militares, mas, se observarmos com cuidado a análise
de Mark Harris (2010), conseguiram preservar a maior parte de
seus modos de vida até hoje. Em suma, perderam vidas e
espaços, mas não sua “posição vis-à-vis o poder”, o seu modo de
vida próprio, ou seja, seu bem viver, como se diz atualmente.
Percebo a insurreição da Cabanagem como um gigantesco
movimento regional de negros, índios e mestiços para mostrar
ao Estado que seu mundo amazônico descentralizado,
associativo, veio para ficar. Seria como uma Zomia à brasileira.
Quando menciono os méri tos da descentralização, da
autonomia de povos e comunidades tradicionais, comparando
com as limitações impostas pelo Estado, vem à tona a questão
da escala. Um país de dimensões continentais como o Brasil
precisaria do controle estatal para ser governável, é o
argumento apresentado. Pergunto por quê. Sabemos muito
bem que a população brasileira está longe de ser homogênea.
Sem falar de sociedades indígenas e quilombolas ‒ a epítome da
diversidade interna do país ‒, o território nacional está
totalmente coberto por uma vasta gama de estilos de vida
diversos. Juntar toda essa diversidade humana sob o comando
de um punhado de indivíduos discrepantes que raramente
contribuem para o bem comum é tão arbitrário quanto a
divisão do país em estados e municípios com limites escolhidos
85
ao acaso, por vezes, a esmo. O Brasil Profundo (espelhado no
México Profundo de Bonfil Batalla, 1990) segue uma lógica bem
distinta da do Estado monolítico, monopolista. Com seus
partidos políticos em frangalhos e crises constantes de
governabilidade, o Estado reduz a cidadania a um refém inerte
à mercê dos caprichos do sistema eleitoral e de líderes
autoritários. Como astutamente apontou o saudoso José Murilo
de Carvalho (2001, 2002), no Brasil não haveria cidadania, mas
estadania. Em tese, nada impediria a diversidade humana do
país de seguir outros princípios organizativos, por exemplo, um
tipo de confederação coordenada por um corpo de conselheiros
legítimos, sem prerrogativas pessoais, na tomada de decisões.
No lugar da atual escala pantagruélica do Estado, tão grande que
os seres humanos praticamente desaparecem, engolidos por sua
máquina desengonçada, teríamos outro tipo de arranjo, mais
aos moldes da vida social. Sonho? Sim, talvez, mas os sonhos
são muito bons para desafiar ideias fixas. Contra a
artificialidade de um Estado unitário e centralizado, a realidade
social brasileira parece aumentar sua diversidade e dar sinais,
ainda que tímidos, de começar a privilegiar equivalências em
vez das desigualdades históricas.
O trabalho excepcional do antropólogo Alfredo Wagner
sobre cartografias sociais nos mostra claramente a dimensão da
diversidade humana no Brasil. Em especial seu projeto sobre
Nova Cartografia Social da Amazônia focaliza processos de
retomada de terras por comunidades dedicadas a reafirmar
suas identidades coletivas. Essas identidades são nomeadas por
lugares, atividades, origem étnica, tais como ribeirinhos,
seringueiros, coletores de piaçaba, pescadores artesanais,
coletores da castanha, quilombolas, indígenas, toda uma gama
de homens e mulheres organizados de formas próprias e
86
mobilizados politicamente na defesa de seus direitos e da
preservação do meio ambiente (Wagner, 2013).
Tal diversidade social não se limita à Amazônia. O próprio
Wagner organizou um volume sobre comunidades de faxinais
no Sul do país, mostrando que a instituição da minka não está
restrita aos Andes (Wagner, 2009) e que o território brasileiro
inteiro transborda de diversidade humana, infelizmente,
escondida do olhar nacional pelo desinteresse secular do
Estado-nação.
Utopias são boas para sonhar
Ella está en el horizonte… Me acerco dos pasos, ella
se aleja dos pasos. Camino diez pasos y el horizonte
se corre diez pasos más allá. Por mucho que yo
camine, nunca la alcanzaré.
¿Para qué sirve la utopía? Para eso sirve: para
caminar.
Pensamentos expostos em Palabras andantes do escritor
uruguaio Eduardo Galeano, eles resumem o exercício
aparentemente fútil de perseguir utopias. No entanto, seu
remate dá o tom do presente texto: caminhar pelas trilhas
indígenas com olhos bem abertos para sinais de sabedoria e
resiliência, como uma bisbilhotice metodológica que nos aguce
o sentido de deslocamento do mundo em que vivemos. Sigo,
pois, os passos ilusórios de Galeano pelo emaranhado dos
utopistas
euro-americanos,
cujo
sentido
agudo
de
deslocamento desencadeou uma quantidade de fantasias dignas
de menção. A longo prazo, seus sonhos se tornaram bons para
87
ousarmos pensar no World Otherwise. Com Layla Martínez,
podemos arriscar: “Sí hay futuro, y tenemos que escribirlo”.
A verdadeira avalanche de textos escritos sobre utopia
explica minha timidez ao abordar este assunto. No entanto, é
preciso mirá-los, ainda que de soslaio e com extrema brevidade,
para refletir sobre “políticas indigenistas” no sentido mais
amplo possível. Ao me referir a Realidades indígenas, Utopias
brancas, chamo a atenção para a ideia de que o que é utópico
para os brancos, aturdidos pela opressão do Estado, é rotina
para a maioria dos povos indígenas. Autores de utopias criaram
fantasias sobre lugares deliciosamente opostos aos seus. Tão
deliciosos e perfeitos eram eles que mereceram um nome
próprio: utopia, o não lugar, um espaço aporético de existência
impossível.
Thomas Morus ([1516] 1992) imagina a Ilha Utopia como
o exato oposto da Inglaterra do século XVI oprimida sob
Henrique VIII que, aliás, mandou executar o autor. William
Morris, outro inglês, caiu no sono depois de uma reunião
extenuante da Liga Socialista e acordou “numa sociedade futura
baseada na propriedade comum e no controle democrático dos
meios de produção” ([1890] 2018). O norte-americano Edward
Bellamy ([1888] 2016) compõe seu enredo de ficção científica
onde o herói, um jornalista, também cai num sono hipnótico e
acorda 113 anos depois. Enquanto dorme, no ano 2000, os
Estados Unidos se metamorfoseiam em utopia socialista! Por
sua vez, Henry David Thoreau ([1845] 2004), outro norteamericano, rebelou-se contra as armadilhas da sociedade
industrial e se refugiou na sua idealizada Walden, afastado de
toda interação humana, enterrado nas profundezas de sua
própria individualidade, cercado pela alardeada “natureza”.
Devemos-lhe a noção de desobediência civil.
88
É longa a lista de descontentes e visionários, como nos lembram
vários observadores: Ángel Cappelletti (1966), Ruth Levitas
(1990, 2013), Gregory Claeys (2013), Manuela Aguilera (2014),
dentre muitos outros. Francis Wolff (2017), que concentra o
olhar nas utopias políticas, afirma que hoje, em vez de sonhar
eternamente com o Bem, as utopias passaram a ser uma luta
indefinida contra o Mal.
Todos esses autores tentaram alcançar um regard eloigné,
um olhar distanciado, imaginando lugares e situações
diametralmente opostos àqueles em que viveram e sofreram.
Thomas Morus inventou o não lugar, talvez inspirado nas
notícias que chegavam do recém-descoberto “Novo Mundo”.
Como diz María Isabel Navarro (2016: 2), é “a existência de uma
geografia desconhecida na qual habitam comunidades
humanas recém descobertas que engendra um diagnóstico do
mundo conhecido em chave ahistórica…”.
A leitura de Jean-Jacques Rousseau sobre os Tupinambá
da costa brasileira provocou em Morus a urgência de produzir
um retrato dos anciens regimes europeus absolutamente crítico e
condenatório. Por boas razões. O próprio Rousseau, menos
sonhador, mas não mais realista, manifestou-se de maneira
surpreendentemente contemporânea.
Eu quisera escolher para mim uma pátria desviada,
por uma feliz impossibilidade, do feroz amor das
conquistas e preservada, por uma posição ainda
mais feliz, do temor de tornar-se a conquista de
outro Estado; uma cidade livre, colocada entre
muitos povos, nenhum dos quais tivesse interesse
em invadi-la e cada um dos quais tivesse interesse
em impedir que outros a invadissem; uma república,
em uma palavra, que não fosse tentada pela ambição
89
dos seus vizinhos e pudesse razoavelmente contar
com o socorro destes quando necessário. Conclui-se
daí que, em posição tão feliz, ela não teria que temer
senão a si mesma, e que, se os seus cidadãos fossem
exercitados nas armas, seria antes para entreter
entre eles o ardor guerreiro e a altivez de coragem,
que ficam tão bem à liberdade e que nutrem o gosto
dela, do que pela necessidade de assegurar a própria
defesa (Rousseau, 1753: 4-5).
Enquanto escritores utopistas inventavam ideais não
existentes por falta de realidades no seu campo de visão, nós,
etnógrafos, não precisamos criar mundos imaginários, pois
temos o privilégio de encontrá-los concretamente nas nossas
pesquisas de campo.
Na seca, o Rio Auaris é um parque de diversões
90
As utopias são fantásticas?
Já que nós, etnógrafos, temos contatos imediatos com a
alteridade e nos expomos a experiências vivas, concretas com o
que poderíamos chamar de nossa própria utopia, o que estamos
esperando? De fato, deveríamos considerar as sociedades
indígenas não como utopias, mas como topoi (‘lugares comuns’),
pois são bastante reais. Aliás, a noção de topos é um lugar
privilegiado para começarmos uma conversa sobre o assunto.
Os mundos indígenas tornam-se utópicos quando projetados
sobre situações contrastantes, quando são convertidos em
modelos improváveis, se não impossíveis de ser postos em
prática. No entanto, dispomos de uma pletora de materiais
etnográficos esperando para ser analisados com instrumentos
antropológicos e com visões de longo alcance. Com razão, Ruth
Levitas (2013) considera utopia um método para ensaiar a
reconstituição das sociedades ocidentais.
A estas alturas, já está claro que não me dirijo a utopias
políticas no sentido explorado, por exemplo, por Russell Jacoby
(1999) e a Escola de Frankfurt. Além da tremenda complexidade
dessa província intelectual que não domino, eu me afasto do seu
viés ocidental. Tampouco sigo o caminho da ficção científica,
como Ray Bradbury e Ursula Le Guin, por mais que aprecie sua
imaginação. Em vez disso, privilegio autores mais próximos,
como, por exemplo, o equatoriano Armando Muyolema (2012)
e a boliviana Silvia Rivera Cusicanqui (2018). Confio no meu
treinamento antropológico para focalizar a alteridade como um
espelho. Baseada no meu trabalho de campo entre os Sanumá,
os Yanomami mais setentrionais do Brasil, tento mapear
algumas facetas que me parecem especialmente relevantes para
contrastar modelos indígenas com modelos brancos na arte de
91
manejar o mundo. Desse rico arquivo cultural, seleciono quatro
elementos que demonstram uma sabedoria cultural que faria
muito bem ao Ocidente. É uma escolha limitada e arbitrária,
mas suficiente para o que quero demonstrar. Não sigo
nenhuma ordem em particular, mas, em geral, vai do mais
íntimo ao mais público.
Criação dos filhos. Durante os 23 meses da minha primeira estada
em aldeias sanumá, nunca vi ou ouvi crianças serem punidas
fisicamente, mas observei o efeito de uma reprimenda
cochichada de uma mãe provocar uma explosão de choro no
filho. No campo, sempre admirei a paciência dos pais em lidar
com as piores birras dos filhos (Ramos, 1995: 5).
Nesse aspecto, os Sanumá não são exceção no mundo
indígena. Eles apenas seguem uma ética muito divulgada de
como lidar com crianças, consideradas não como seres
humanos incompletos, mas como, digamos, pré adultos. Nada
de linguagem infantilizada, nada de indústria de brinquedos
que prolonga a infância até a adolescência (e muitas vezes além),
nada de contextos proibidos, nada de assuntos impróprios para
crianças. Nem mesmo a relativa novidade das escolas segregaas do resto da comunidade. A total participação na vida diária
poupa as crianças sanumá de muitos problemas sociais e
psicológicos que atormentam muitos pais brancos. Sua criação
não depende exclusivamente de pai e mãe, com suas
personalidades muitas vezes incompatíveis, uma vez que os
parentes em volta partilham normalmente dessa tarefa. As
crianças nunca ficam sozinhas na aldeia enquanto os adultos
saem para os seus afazeres. Há sempre um adulto de plantão,
nem que seja a própria etnógrafa.
92
Tal cenário é radicalmente distinto daquele descrito por
Bauman e Mazzeo sobre crianças ocidentais contemporâneas,
cujos pais estão muito ausentes de casa.
Os chamados ‘meninos da chave’ (latchkey kids, com
a chave da casa pendurada ao pescoço) vivendo num
lar geralmente vazio de adultos (um setor sempre
crescente de crianças americanas) são grandes
candidatos a desenvolver o que Hochschild chama
de ‘egos terceirizados’, como uma colcha-deretalhos com uma composição frouxa de serviços
(na maior parte compráveis) oferecidos por peritos
conselheiros especializados em, virtualmente,
qualquer aspecto da vida (Bauman & Mazzeo, 2016:
37).
Será que as crianças sanumá se tornam melhores adultos
do que as crianças brancas em suas respectivas sociedades? Se
tomarmos como medida os dados sobre problemas
psicológicos e criminalidade em ambos os tipos de sociedade, a
resposta talvez seja por demais óbvia para merecer mais
comentários.
Persuasão. De novo, o modo como os Sanumá conduzem sua
vida política não é excepcional no universo indígena. Seu
regime de persuasão difere drasticamente da política de
coerção dos brancos. Persuasão é o clássico modo indígena de
exercer poder. Sem leis impessoais que reforcem a
conformidade, o líder de aldeia precisa persuadir as pessoas a
agir (Kracke, 1978). “O poder de convencer emana da
experiência vivida transformada em autoridade para persuadir
as pessoas a tomar decisões e desempenhar ações coletivas”
93
(Ramos, 2015: 66). Não é por acaso que as sociedades indígenas
valorizam tanto as habilidades oratórias de um líder. A
persuasão é domínio da oralidade por excelência, oralidade que
faz, como diria J. L. Austin em suas famosas conferências
publicadas em 1962 como How to do things with words.
Junto à persuasão está a noção de consenso. Ao contrário
das expectativas do senso comum, o consenso não implica,
obrigatoriamente, harmonia. Em situações tensas, chegar ao
consenso pode levar a longos debates que, por sua vez, podem
provocar mais animosidade. Disputas sérias podem levar dias
inteiros antes de se chegar ao consenso. Podemos mesmo dizer
que quanto maior a disputa, mais longo será o processo
consensual (Ramos, 2015).
O consenso faz parte de um modelo político para
resolver problemas e nada tem a ver com fantasias sobre
comunismo primitivo ou harmonia da vida pristina. É uma
alternativa à controversa eleição pelo voto. Dentre outros traços
pseudodemocráticos, a exclusão do perdedor em eleições e a
impessoalidade do sigilo do voto são totalmente incompatíveis
com os sistemas indígenas de tomada de decisões. Juntos,
persuasão e consenso estão na raiz da democracia
propriamente dita. Não é um legado grego, mas o apanágio de
comunidades politicamente autônomas (Graeber, 2007),
ocupando espaços que fogem ao controle do Estado.
Novamente, a questão de escala traz um tema espinhoso.
É difícil imaginar como países grandes como o Brasil, com mais
de 200 milhões de pessoas, poderiam adotar o consenso como
uma regra política. Até que ponto poderia um Estado
centralizado observar os requisitos do consenso universal?
(Ramos, 2015). É um tema que ultrapassa muito o espaço e as
intenções deste texto, mas que merece atenção analítica.
94
Comuns. Uma das piores tragédias na história europeia foi a
implantação
de
sistema
fundiário
conhecido
como enclosures (cercamentos), que chegou ao auge no século
XIX. Por ele, as terras de uso comum passaram a ser
propriedade privada. Vigente já no século XVII, esse sistema foi
criticado por Thomas Morus em seu livro Utopia. Foi um
dispositivo calculado para produzir pobreza extrema que viesse
alimentar com mão de obra as primeiras máquinas que
deslancharam a Revolução Industrial. A vida rural nunca mais
foi a mesma. A perda de terras comuns afetou os camponeses
de maneira não muito diferente da perda de terras tradicionais
pelos povos indígenas das Américas. A motivação foi um pouco
distinta, mas o efeito foi o mesmo: enriquecer os ricos
produzindo pobres onde antes não os havia. A ideologia do
destino manifesto proclamada por povoadores, exércitos,
missionários e outros usurpadores fez tanto mal aos habitantes
de Abya Yala quanto os micróbios europeus que os
consumiram. Não é exagero! Em nome do impulso
conquistador sem princípios, os brancos roubaram o suporte
vital dos povos indígenas, deixando-os, como aos camponeses
britânicos sem terras comuns, na situação de escolher entre
morrer e vender seus corpos como força de trabalho. A noção
de propriedade privada da terra é contrária às ideias indígenas
e não poderia ser-lhes mais estranha. Simplesmente, não faz
sentido.
Com extraordinária habilidade etnográfica, Keith Basso
acompanhou seus anfitriões Apache Ocidentais numa excursão
durante a qual, em conversa normal, ele descobriu que seu
conhecimento histórico está profundamente entranhado em
topônimos ligados à fabricação de lugares. Como uma máquina
95
do tempo discursiva, nomes de lugares referem-se a “lugares
tornados memoráveis … por acontecimentos de muito tempo
atrás, quando os ancestrais distantes dessas pessoas se
assentavam no país” (Basso, 1996: 8), talvez há centenas ou
milhares de anos. Assim, os Apache retêm uma longa diacronia
de seus territórios, porque sua memória coletiva e sua terra
coletiva estão juntas.
Os povos indígenas contemporâneos da Amazônia
herdaram de seus ancestrais a perícia de preservar a floresta e
explorá-la ao mesmo tempo, sem falar que, ao assim fazerem,
eles construíram a floresta, como demonstram a etnografia
(Balée, 2013) e as novas descobertas da arqueologia (Neves,
2022, Fausto & Neves, 2018). Aldeias e roças pertencem a quem
as ocupa. Ao se mudarem, deixam a terra livre para quem quiser
tomá-la, ou melhor, tomá-la emprestada. Um engenhoso
sistema de pousio evita que o solo se exaure e ainda conserve
produtos de ciclo longo, como a palmeira pupunheira. Em
suma, os povos indígenas, velhos habitantes da Amazônia,
sabem, exatamente, como tratar a floresta tropical, aquele
“inferno verde” dos piores pesadelos do homem branco.
A terra, recurso natural estreitamente ligado à vida social
como um todo, não pode e não deve ser objeto de propriedade
individual, privada. A atitude dos não indígenas para com a
terra é uma aberração, continua a intrigar muitos povos
indígenas e começa a alarmar muitos ocidentais sob a égide do
Aquecimento Global. Emulando, direta ou indiretamente, a
sabedoria milenar indígena, o movimento contemporâneo
mundial conhecido como Commons, como tantas outras
tentativas de restaurar a sanidade do Ocidente, assume o risco
de enfrentar “encontros desagradáveis com o poder do duo
96
Mercado/Estado” (Bollier, 2014: 5). É um risco calculado em
face do assombroso prospecto de catástrofes universais.
Guerra. Chamar as escaramuças indígenas de guerra é, data
venia, um capitis diminutio e uma injustiça nada poética. É um
impropério que ofusca as diferenças radicais entre os
assassinatos autorizados das civilizações orientais e ocidentais e
as incursões em terras indígenas por povos indígenas com a sua
modesta potência para matar. A quantidade de vítimas não é o
mais importante. Guerras “civilizadas” têm por objetivo
exterminar ao máximo o inimigo e deixar os derrotados num
estado de ruína e humilhação. Nada disso se aplica às incursões
indígenas. Há rivalidade? Sim. Há mortos? Sim. Pode até haver
uma certa glorificação passageira dos vencedores. Mas
extermínio, nunca. Táticas de terra arrasada, nunca.
Lembremos dos Tupinambá, notórios por seus guerreiros na
costa brasileira do século XVI. Apesar da reputação histórica,
suas conquistas guerreiras eram bem moderadas, apesar da
fanfarra. Matar apenas um homem ou tomar apenas um cativo
era suficiente para satisfazer os requisitos de um jovem para
entrar na idade adulto e se casar (Fernandes, 1963).
Enquanto Florestan Fernandes analisava a sociedade
tupinambá com base nos cronistas do século XVI que buscavam
o significado daquela belicosidade, Napoleon Chagnon, um
antropólogo norte-americano convertido à sociobiologia
aplicada aos Yanomami, reconhecia que “a guerra yanomamö
propriamente dita é a incursão, raid” (Chagnon, 1968: 118).
Chagnon alega que os “guerreiros” yanomami se empenham
em matar inimigos em incursões cuidadosamente planejadas.
No entanto, “em menos de cinco horas, o primeiro atacante
voltava… reclamando de dor no pé” (Chagnon, 1968: 130). Ao
97
fim e ao cabo, os homens yanomami contentam-se com
bravatas verbais. Muitas vezes, a violência declarada concretizase como brincadeira de mau gosto. A isso se resume a
ferocidade yanomami tão decantada nos escritos de Chagnon.
Quando os Yanomami da aldeia de Haximu, na fronteira
entre Brasil e Venezuela, em visita a outra aldeia distante,
deixaram os velhos, algumas mulheres e criancinhas no
acampamento de verão, assim fizeram porque nunca poderiam
imaginar que seres humanos fossem capazes de atacar e matar
mulheres e crianças. Por isso, ficaram assombrados, sem
compreender por que um grupo de garimpeiros invadiu o
acampamento e massacrou dezesseis pessoas, todas indefesas
(Albert, 2001). A ética guerreira que os protegera até então
sucumbiu com aquela ação selvagem inimaginável.
Atividades guerreiras envolvem um complexo sistema
de comunicação em que as partes precisam umas das outras
para manter a sociabilidade. Num artigo curto de 1942, Claude
Lévi-Strauss apresenta uma análise sagaz, tomando guerra e
troca como duas faces da mesma moeda. Impressionado com a
facilidade com que os Nambiquara passavam da agressão à
cooperação, afirmou: “As trocas comerciais representam
guerras potenciais, pacificamente resolvidas; e as guerras são o
resultado de transações malsucedidas”. Fenômeno comum
entre povos das Américas, “a guerra e o comércio constituem
atividades
que
dificilmente
se
conseguirá
estudar
isoladamente” (Lévi-Strauss, 1942: 143).
Esses exemplos confirmam que aniquilar inimigos não é
nem prático nem desejável, pois a continuidade das relações
extra aldeias depende dessas negociações, mesmo sob a
aparência de atos destrutivos. A lacuna invencível entre as
98
atitudes indígenas e “civilizadas” com relação aos inimigos é um
lembrete sombrio da tragédia do Ocidente.
Finalmente...
Depois de passar dois anos em intenso contato com os
Sanumá e um posterior exílio voluntário, cheguei à melancólica
conclusão de que o modelo estatal não é uma solução afável
para o ser humano. Na verdade, senti um choque cultural ao
contrário. Ser exposta ao funcionamento de mundos indígenas
e confiar na força de suas tradições e conhecimento intensificou
minha aversão por viver em permanente estado de exceção,
sempre sob o risco da volta de governantes totalitários
(Agamben, 2005). Enfrentar intermináveis atos contra a
cidadania, conviver com desigualdade e injustiça endêmicas e a
eterna quebra de princípios corrói a confiança que todo cidadão
deveria ter no seu próprio país. Não tenho ilusões sobre a
invulnerabilidade das sociedades indígenas a desmandos,
mesmo porque testemunhei certos episódios em contrário. No
entanto, a abstração impessoal do que foi chamado, de maneira
imprecisa, de comunidades imaginadas, transforma ânimos e
rusgas passageiros num padrão fixo de “primitivismo”,
simplesmente, pela força do hábito. Aqui, sem escusas, faço
minhas as palavras de Rousseau (1753: 10): “Comecei alguns
raciocínios, arrisquei algumas conjecturas, menos na esperança
de resolver a questão do que na intenção de a esclarecer e de a
reduzir ao seu verdadeiro estado”. Mais próximo no tempo, no
espaço e no espírito, as sábias palavras de Gersem Baniwa
acendem meu entusiasmo pela possibilidade de transformar
utopias em realidade para todos.
99
Considero a antropologia como uma lente
multifocal, multidimensional e multicósmica que
possibilita ao indígena enxergar coisas que a própria
antropologia não consegue ou não quer enxergar,
porque este dispõe de outras formas, propósitos e
ângulos para enxergar. Neste sentido, a antropologia
pode oferecer aos indígenas um bem precioso e
complexo que é o conhecimento sobre o mundo do
branco (Baniwa, 2015: 234).
Há décadas sendo inundada de realidades indígenas,
venho absorvendo um mundo de inquestionável sabedoria,
mas relegado a uma espécie de nicho selvagem, o famoso savage
slot de Trouillot (1991). Agora, finalmente, dou-me conta de
quanto precisamos dessas realidades para a nossa própria
sobrevivência moral, se não física. Afinal, utopias são boas para
pensarmos e nos indignarmos. Como Mario Benedetti
expressou no YouTube,
Cómo voy a creer/ dijo el fulano
que el mundo se quedó sin utopías…
E como reforçou José Mujica, igualmente no YouTube,
No me quiten la utopía!
100
Por una antropología universal: vislumbrando diálogos
entre teorías nativas y académicas
[2010]
Lo que voy a decir es
más una provocación que una
demostración y resulta de una
incomodidad que he sentido
últimamente sobre los rumbos
de la etnología indígena. La
mayoría de los teóricos más
ambiciosos de la antropología
se destacó por su habilidad de
tomar los preceptos nativos
locales, alrededor del mundo,
Cesta Yanomami
como materia prima para
construir grandes esquemas descriptivos o explicativos a gran
escala. Cada teoría recogida en sociedades indígenas se
transformaba así en algo distinto a la suma de sus partes, lo cual
relegaba cada mundo nativo específico al anonimato del “dato
etnográfico”. Así ocurrió, por ejemplo, con el evolucionismo y
el estructuralismo, y la tendencia continúa como puede
percibirse en muchos de los estudios sobre la Amazonía
indígena.
Digo la mayoría de los teóricos porque siempre hay
excepciones redentoras. Pensemos, por ejemplo, en Evans-
101
Pritchard cuando, intrigado con la extensión del fenómeno de
la brujería entre los Azande, llegó a la conclusión de que se
trataba nada más ni nada menos que de una teoría del
conocimiento que tomaba la causalidad de manera mucho más
satisfactoria, socialmente hablando, de que, por ejemplo, la
teoría occidental de la probabilidad. Al contrario de esta última
que deja un residuo de indefinición sobre causas y efectos, la
teoría Zande explica los infortunios en su totalidad.
No obstante, aunque Evans-Pritchard haya abierto esa
puerta tan promisoria, ni él ni nadie más siguió ese camino
hasta las últimas consecuencias. Y, preguntémonos, ¿cuáles
serían esas consecuencias? Parece que la respuesta más
interesante sería la de tomar teorías como la de los Azande
como epistemologías intelectualmente equiparadas a las
occidentales, o sea, acogerlas como socias plenas de las teorías
académicas, en igualdad de condiciones intelectuales, evitando,
así, que las teorías nativas queden sumergidas bajo las
académicas como ha hecho la tradición antropológica.
La antropología ha ampliado mucho los horizontes de la
comprensión interétnica, pero también ha creado puntos ciegos
que nos impiden ir más allá de las ideas recibidas de la tradición
de la disciplina. Tales ideas han sido responsables por un
lamentable acomodamiento que a veces es perezoso, otras
veces insidioso, comenzando por el propio vocabulario de la
etnología corriente. Tomemos, por ejemplo, términos
como mito. Este término no tiene neutralidad semántica y hace
parte del lenguaje común compartido por antropólogos y no
antropólogos. Justamente, es por usar ese lenguaje común que
nuestros escritos pueden ser leídos por no especialistas. Pero
por ser leídos no quiere decir que sean comprendidos en el
102
sentido que los autores le quieren dar. Y ahí es donde está el
problema.
¿Y qué decir de canibalismo? ¿Y de “predación”, muy
utilizado por los adeptos del perspectivismo? Además de los
riesgos políticos que ese término acarrea para los indios, la
insistencia en el concepto de “predación” les atribuye
cualidades que no son adecuadamente demostradas por los
análisis antropológicos corrientes. Es más un artificio discursivo
que una demostración empírica.
Otro concepto problemático es cosmología. El canon que
Lévi-Strauss inauguró con el concepto de “ciencia de lo
concreto”, cuyo aparente objetivo era elevar el conocimiento
indígena al nivel de la ciencia, de hecho, termina rebajándolo a
una posición infra-científica. El resultado es que los indios
tienen ciencia de lo concreto, pensamiento mítico-místico,
cosmología etc., mientras nosotros tenemos hipótesis,
proposiciones y teorías, o sea, todo un aparato epistemológico
supuestamente tan eficaz que nos lleva a creer que somos
omniscientes, capaces de alcanzar y comprender los rincones
más íntimos de los “sistemas cosmológicos” en cualquier lugar
del mundo. Esa falta de humildad y autocrítica, aunque pueda
ser inconsciente, no es del todo inocente. Además de eso, ha
creado puntos ciegos en muchas investigaciones y limita el
potencial de la actividad antropológica. Por un lado, es muy
incómodo enfrentar indígenas que nos desafían en nuestra
capacidad interpretativa sobre sus mundos. No son pocos los
escenarios etnográficos en los que la desconfianza de los indios
sobre el trabajo de los antropólogos es patente. Por otro lado, la
arrogancia intelectual que todos reconocemos en algunos
contextos académicos contribuye para cercenar la posibilidad
de que ampliemos la capacidad de la antropología para
103
construir un verdadero ecúmeno teórico, en el sentido de
congregación igualitaria de teorías sociales distintas. Aún peor,
tal arrogancia ha contribuido para crear imágenes que, en lugar
de generar un conocimiento mejor de los pueblos indígenas,
acaba por alimentar estereotipos contra ellos.
Cuando analicé algunos términos como palabras clave de
un largo proceso de sumisión de los indios en Brasil — niño,
primitivo, nómade, salvaje… — llegué a la conclusión de que el
conjunto de esos términos y sus respectivos conceptos
constituían un verdadero orientalismo brasilero. Para mi
asombro, fue con gran facilidad que encontré escritos
antropológicos que nutrieron — y aún nutren — esos
estereotipos que persisten en disminuir la integridad intelectual
de los indígenas. Veamos, por ejemplo, lo que George Peter
Murdock escribió en 1934 sobre los supuestamente extintos
Tasmanos:
Bajo una forma simple de organización social y
política, los Tasmanos vivían una vida de cazadores
nómades. No conocían la agricultura y no poseían
animales domésticos –excepto los parásitos que
pululaban en sus cuerpos y que de vez en cuando
ellos agarraban y comían! Ni el perro, el compañero
casi universal del hombre salvaje, conocían hasta
que éste fue introducido por los blancos (Murdock,
1934: 4).
O los comentarios de Francis Huxley en 1956 sobre los
indios Urubu del Brasil oriental: “Bien parece que la vida de los
Urubus es básicamente innoble, y los indios pueden ser
descritos adecuadamente como salvajes. De hecho, aunque esta
palabra sea ruda, de nada vale negar que los Urubus son
104
salvajes”. Empero, continúa Huxley, “en realidad, los salvajes
tienen moral y su mundo, por más irracional que sea, no es
desordenado ni inútil” (Huxley, 1956: 13).
¿Y qué decir sobre primitivo? Con solo activar la memoria unos
minutos, me surgieron los siguientes títulos de grandes obras
antropológicas: Primitive Culture (Tylor), Primitive Mentality
(Levy-Bruhl), Primitive Marriage (McLennan), Primitive
Classifications (Durkheim y Mauss), Primitive Art (Boas), Primitive
Religion (Lowie, Radin), Our Primitive Contemporaries (Murdock),
Primitive Man as Philosopher (Radin), Primitive Social Organization
(Service), The Fa-ther in Primitive Psychology (Malinowski),
Primitive World and its Transformations (Redfield). Esto no es cosa
del pasado, pues el término continua vivo, como señala Neil
Whitehead (1993: 198): “En todas las narrativas estándar del
contacto a lo largo de la costa brasilera, los Amerindios son
presentados como ‘primitivos’, ‘de la edad de piedra’ o
‘nómades desnudos’”. Y, según Hsu (1964: 174), que ya se quejaba
de ese abuso verbal en 1964, “el significado más problemático
del término ‘primitivo’ es aquel relacionado a varios tonos de
inferioridad”.
En fin de cuentas, como suele ocurrir en los orientalismos,
no es solamente con armas que se aniquilan los llamados débiles
e inconvenientes. En el caso brasilero, imágenes de la nación y
del indio son derramadas copiosamente de las ficciones de
literatos, de las decisiones de los legisladores, de las piedades
misioneras, de las propuestas de los defensores de los derechos
humanos, de las columnas de los periodistas, de los análisis
antropológicos y de las quejas y reivindicaciones de los propios
indios, para no hablar de la profusión de opiniones de
“Brazilinanists” tan monológicas como las nacionales.
105
Pero volvamos a la cuestión de la desigualdad
epistemológica, lo que, según Eduardo Viveiros de Castro, es la
condición sine qua non para conjurar los análisis antropológicos.
Él dice:
La ciencia del antropólogo es de otro orden que la
ciencia del nativo, y necesita serlo: la condición de
posibilidad de la primera es la deslegitimación de las
pretensiones de la segunda, su “epistemocidio”, en el
fuerte decir de Bob Scholte (1984: 964). El
conocimiento por parte del sujeto exige el
desconocimiento por parte del objeto. … La matriz
relacional
del
discurso
antropológico
es
hileomórfica: el sentido del antropólogo es forma; el
del nativo, materia. El discurso del nativo no detenta
el sentido de su propio sentido. De hecho, como
diría Geertz, todos somos nativos; pero en derecho,
unos siempre son más nativos que otros (Viveiros de
Castro, 2002: 115).
Pero ¿por qué tiene que ser así? ¿Cuáles son las premisas
que sustentan tales afirmaciones? ¿No serán ellas un terco
reflejo de la creencia inquebrantable en la división del trabajo
etnográfico entre aquel que conoce, el sujeto cognoscente (el
etnógrafo) y aquel que se deja conocer, el objeto cognoscible (el
nativo)? ¿El movimiento reciente de auto-crítica antropológica
de los 80’s no habrá debilitado en nada a esa creencia?
En lo absoluto, no estoy en desacuerdo con el hecho de
que haya diferencias de interpretación entre antropólogos y
nativos. Mis objeciones no se refieren a contenidos, sean
empíricos o teóricos, sino a la actitud que no admite igualdad
en la diferencia. Sí, las explicaciones antropológicas son
necesariamente de naturaleza diversa de las indígenas, pero eso
106
no las hace intelectualmente superiores. Tal vez sea el
momento de decir que cuanto más profundo y extenso es
nuestro conocimiento etnográfico de un pueblo, menos
arrogantes nos volvemos y percibimos más claramente la
falacia de que algunos son más nativos que otros.
Una discusión anterior en la antropología giró en torno de
lo que sería historia, etnohistoria, consciencia histórica fuera de
los límites de la intelectualidad euro-americana. ¿Los indios
tendrían una noción de Historia, con H (hache) mayúscula al
estilo occidental, o sus eventos serían eternamente
metabolizados y fagocitados por sus estructuras? Entre otros,
John y Jean Comaroff (1992: 5), tan perturbados con ese falso
problema como muchos de nosotros, golpearon el martillo a
inicio de los años 90 con la declaración de que “la consciencia y
las representaciones históricas pueden tomar formas muy
diferentes a aquella de Occidente”. Esto también es lo
que Ilongot Headhunting, de Renato Rosaldo, nos mostró años
antes. Mensaje corto y fino, ahora me sirve para interpelar otro
campo del conocimiento: la teoría o, si preferimos, la
epistemología.
Parafraseando lo que acabo de decir, pregunto: ¿los indios
tendrían una noción de Teoría, con T (té) mayúscula al estilo
occidental, o sus conocimientos estarían eternamente
enredados y encarcelados en sus cosmologías y ciencias de lo
concreto? Stuart Kirsch, un joven antropólogo de Michigan, tan
enfadado como yo con este reduccionismo, no aborda la
cuestión al estilo Comaroff, pero abre una puerta promisoria al
postular
lo
que
denomina
como antropología
en
reverso. Habiendo trabajado con el pueblo Yonggom de Nueva
Guinea, Kirsch se dejó inundar por la riqueza interpretativa que
encontró y se dio cuenta de que ritos y narrativas de las que
107
participó nada más eran que, digamos, una “consciencia
teórica” refinada y compleja en la que él, todavía tímidamente,
identifica “formas de antropología indígena comparables al
análisis antropológico de sus mitos” (Kirsch, 2006: 153). Tomo
el término “comparables” más en el sentido de la inteligibilidad
de que de la profundidad, porque por más exhaustivo que sea
un análisis académico, difícilmente éste alcanza la densidad y
los matices de un análisis nativo. No es por azar que el
historiador George Sioui de la etnia Huron de Canadá expresa
una profunda frustración ante la dificultad de hacer que los
“blancos” comprendan lo que los indígenas intentan explicar.
La puerta que Kirsch nos abre da oportunidad a una
importante reflexión sobre simetrías y diálogos interculturales.
Si realmente es posible “revertir la antropología”, por ejemplo,
¿qué podrá ser la “antropología indígena”, en Brasil, cuando la
educación universitaria, aunque sea incipiente, pueda proveer
a los indios con los instrumentos de análisis con los cuáles
hemos construido nuestro conocimiento etnográfico? Ese
proceso ya comenzó y deberá florecer en las próximas décadas.
Pero es preciso tener cautela y no súper-estimar los beneficios
de la educación formal en detrimento de la instrucción
tradicional perpetuada por la transmisión oral, la cual exige un
aparato cognoscitivo de otro orden. Así como la escolaridad trae
nuevos horizontes, ella también tiene el gran potencial de
borrar conocimientos enaltecidos por la tradición indígena.
Fijemos un poco nuestra atención en el ejemplo que nos
da Kirsch. En el transcurso de su etnografía, como ocurre con
los buenos etnógrafos, él va montando un edificio de
significados nativos que es verdaderamente un sistema
epistemológico de conceptos encadenados con gran capacidad
explicativa sobre el mundo en el que viven los Yonggom. Esa
108
epistemología pasa a ser un instrumento de comprensión y
acción sobre las vicisitudes generadas por la invasión de su
territorio, ya sea por poderosas empresas mineras que vienen
destruyendo su base ambiental y económica, o por el feroz
régimen dictatorial que Indonesia implantó en la parte oeste de
Nueva Guinea. Uno de los fundamentos de aquel sistema es lo
que podríamos llamar episteme de la reciprocidad y su opuesto,
la “reciprocidad no retribuida”, que están en la base de la
organización social, emocional y mental de ese pueblo. En el
régimen de aguda fricción interétnica a la que fueron
sometidos, los Yonggom extraen sentido de los actos que
perciben como no humanos, o anti-humanos, de los invasores,
sometiéndolos al cálculo cultural ofrecido por su propio marco
conceptual.
Puedo citar más un ejemplo, esta vez de la Amazonía. El
pueblo Ye’kwana, al menos del lado brasilero de la frontera con
Venezuela, de acuerdo con la etnografía de Karenina Andrade
(2007), se prepara para asumir el rol hegemónico, que hoy es de
los blancos, en el próximo ciclo de vida en la Tierra. Esta
preparación implica la captura de todos los tipos de
conocimiento que están a su alcance, en especial, a través de la
escuela. Es fácil reconocer en esa profecía ye’kwana un tipo
de episteme altamente elaborado y capaz de orientar el pensar y
el hacer de ese pueblo. Se trata de un complejo sistema, al
mismo tiempo social, económico, político y metafísico (un
verdadero hecho social total). Simplemente relegarlo al nicho
ya bastante agotado de una cosmología más es perder una
óptima oportunidad de refinar la perspicacia antropológica y
explorar otras posibilidades más productivas y fieles a las
propuestas por los propios indígenas. En el caso de los
Yonggom y los Ye’kwana, ninguno de los clichés etnográficos,
109
como mito, cosmología, etc., logra explicar esas realidades que
trasbordan de las márgenes conceptuales de la antropología.
Esos ejemplos tipifican las situaciones en que casos empíricos
fuerzan los límites disciplinares, rasgan el tejido ya desgastado
de las ideas recibidas y nos inducen a “tomar a los nativos en
serio”, refrán que no siempre se cumple.
En suma, lo que propongo es traer de vuelta la inquietud
que tenía Johannes Fabian en los años 80 sobre la negación de
la contemporaneidad a los pueblos no occidentales, por parte
de los antropólogos. También vale la pena tomar en serio la
dura advertencia de Jack Goody al acusar a Occidente de robar
la Historia de chinos, musulmanes, hindúes y otros, ignorando
las invenciones de esos pueblos para enaltecer las suyas propias.
Ya tenemos una Historia Robada, no vamos a insistir también
en incurrir en una Teoría Robada.
Volvamos al comienzo porque es importante aclarar
algunos puntos. Cuando me refiero a que la práctica
antropológica de tomar las teorías nativas como materia prima
para desarrollar teorías académicas, no quiero decir que la
antropología renuncie a su posición distanciada. La falacia
del going native simplemente transforma al antropólogo en no
antropólogo. A ejemplo del francés Tocqueville (2003 [18351840]), quien “descubrió” una América que, por el hábito, era
invisible a los americanos, la mirada de fuera es tan importante
como la mirada de dentro si queremos realmente desvendar
mundos culturales. No obstante, hay que evitar dos trampas:
una es la de la arrogancia de la superioridad académica; la otra
es la pseudo humildad de trivializar la teoría antropológica y,
por un falso mimetismo, reducirla ingenuamente a una
imitación de las teorías nativas. Mi propuesta es que,
manteniendo sus características propias, cada una a su manera
110
y ambas en diálogo puedan llevar a un intercambio fructífero
con el enfrentamiento de ideas y de perspectivas. Ese ejercicio
dialógico podría inhibir la construcción de teorías
antropológicas pretenciosas e hiper-generalizantes con poca
potencia heurística. Al poner una teoría académica bajo el
examen de la crítica nativa, ciertamente, esa teoría sufrirá
reparaciones y ajustes. A mi manera de ver, este es un modo
altamente proficuo para el avance de la antropología.
Necesitamos de tiempo para domesticar estas ideas y
volverlas operacionales. Imagino que sin la participación
directa de los propios indígenas no tengamos soporte y tal vez
coraje para cortar las amarras que nos sujetan a la inercia de la
disciplina. Esta es una condición necesaria para expandir los
horizontes de la antropología y acoger otras epistemologías de
manera más igual, con la humildad de quien quiere aprender y
la ambición de quien se quiere superar. Entonces, sí, podremos
llevar a la antropología hasta sus últimas consecuencias, o sea, a
la interlocución cultural en su plenitud. Quién sabe si así
llegaremos a una verdadera antropología ecuménica, universal.
111
Renascença Indígena
[2023]
O que leva um
grupo de pessoas, uma
coletividade,
a
congregar esforços e
talentos para produzir
impactos no mundo ao
redor? Será condição
necessária
viver
as
agruras do purgatório
para
emergir
no
paraíso? Será que são os
gigantescos desarranjos
Homem Sanumá tecendo um tipiti. Auaris, ca.
1969. Foto da autora
sociais,
como
na
Europa pós-medieval, a mola propulsora sem a qual não surgirá
uma nova era? Ou, como no Sul dos Estados Unidos, é preciso
amargar uma prolongada escravidão para produzir o
extraordinário movimento cultural conhecido como Harlem
Renaissance?
Trazer essa discussão para o contexto da arte indígena
contemporânea pode parecer um tanto descabido, mas nos
ajuda a esclarecer alguns aspectos do movimento cultural a que
ora assistimos, que nos encanta, mas que mal compreendemos.
O que há — se é que há — em comum entre a Renascença
do Harlem no início do século XX e o que chamo de Renascença
112
Indígena no Brasil atual? Primeiro, temos coletividades
etnicamente diferenciadas do resto da população nacional —
negros americanos e indígenas brasileiros. Segundo, ambos os
momentos têm na mobilidade espacial o estopim para
atividades criativas. Vale a pena puxar alguns desses fios
históricos.
No admirável livro The Warmth of Other Suns, Isabel
Wilkerson (2011) acompanha a saga daqueles migrantes no que
chama de “história épica da Grande Migração da América”, o
êxodo espetacular de boa parte da população negra dos estados
do Sul para o Norte, depois da derrota dos confederados e o fim
da escravidão negra em 1865. Entre fracassos e êxitos,
sobreviventes negros do cataclisma que foi a guerra de Secessão
americana, eventualmente, estabeleceram-se na periferia de
Manhattan e criaram uma das mais impressionantes
efervescências culturais daquele país. “O fluxo de migrantes
negros logo rompeu os últimos diques raciais no Harlem”
(Wilkerson, 2011: 250) que, nos anos 1920, deram lugar à famosa
Renascença que congregou pintores, escritores, músicos e
atletas que fizeram a fama da nata cultural dos Estados Unidos
e projetaram a Negritude no resto do mundo. A Grande
Depressão de 1929 e a Segunda Guerra Mundial mutilaram esse
portentoso movimento, mas não destruíram seu legado
duradouro, como atestam nomes como Louis Armstrong,
W.E.B. Du Bois, Zora Neale Hurston, entre muitos outros.
Assim como os artistas do Harlem nasceram do
movimento de gente pelo país, também no Brasil a explosão
artística que agora assistimos protagonizada por indígenas
resulta da mobilidade de pessoas para fora das aldeias. O
movimento no espaço leva ao movimento de sensibilidades
113
estéticas, como bem expressou o saudoso artista plástico Jaider
Esbell.
Minhas andanças por tantos cantos talvez tivessem
me preparado para enxergar e sentir aquilo que a
colonização tirara dos nossos povos quando aqui
chegaram, a alma maior. Eu agora posso entender
melhor o sentido desses encontros que ocorrem
sempre, desde sempre, mas que, pela urgência da
derrocada humanitária sobre a ecologia, é preciso
que nos exibamos em simultâneo. É preciso falar,
escrever, performar, atuar, enfeitiçar, pois, em
matéria de arte para nós, povos indígenas, a obra não
basta (Esbell, 2021: 11).
Mas, ao contrário dos artistas do Harlem, o movimento
dos indígenas brasileiros para fora das aldeias não foi feito em
massa, embora a motivação não seja tão diferente. Aqui, agora,
como lá, então, há um componente de expulsão, aqui expresso
na invasão das terras ancestrais com o consequente
empobrecimento da qualidade de vida; lá, resultado da quebra
dos grilhões da escravidão, anunciando um futuro possível sob
“o calor de outros sóis”.
Não que não houvesse arte indígena antes desta
Renascença. Sem entrar pela arqueologia à busca de exemplos,
pensemos na estética indígena mundial nos últimos tempos: as
manifestações
gráficas
do Dreamtime dos
Aborígenes
australianos, as miniaturas de marfim dos Inuit, ou os totens dos
Kwakiutl e seus vizinhos canadenses. Mais perto de nós, temos
as joias que os Waurá do Alto Xingu produzem com palha,
barro e madeira, os figurinos Karajá, os tecidos Huni Kuin, a
plumária Urubu-Kaapor, Kayapó e Bororo, a pintura corporal
114
Kadiweu, os ubíquos bancos zoomorfos… Muito acertadamente,
diz o antropólogo Pedro Cesarino (2021: 29), “ao tomar para si
as técnicas introduzidas pelo invasor não indígena, artistas
diversos não apenas traduzem para o papel esquemas gráficos
e narrativos já praticados em outras mídias como também
inauguram um novo gênero capaz de subverter, pela beleza e
pelo sentido, a violência do colonizador”.
Sair de casa e espraiar-se pelo mundo expande a
consciência de que é possível ampliar as possibilidades estéticas.
No entanto, é fundamental manter os vínculos com a
comunidade de origem, pois é ela a fonte de inspiração que
propicia combinar o tradicional com o inusitado, o estranho,
aquilo que fustiga as imaginações. Nas artes plásticas, além do
inesquecível Jaider
Esbell,
filho
inspirado do povo
Macuxi de Roraima,
uma
pletora
de
artistas
bebendo
inspiração dentro e
fora
de
casa
compõem
um
acervo
estético
invejável: Carmézia
Emiliano, também
Macuxi,
Daiara
Tukano, Denilson
Baniwa,
Isabel
Maxakali,
Aislan
Pankararu,
Joseca
Pintura do artista indígena Aislan Pankararu
Yanomami,
Yaka
115
Huni Kuin, Rivaldo Tapyrapé… e a lista continua. Catálogos de
exposições dentro e fora do Brasil estão repletos de obras
indígenas que nos arrebatam os sentidos. À tradição da palha,
do barro, da madeira e das plumas esses artistas adicionaram a
tela, as tintas, o acrílico com naturalidade, assim como na escola
adotaram diretamente o computador sem percorrer os longos
e lentos passos dos nossos ancestrais que, laboriosamente,
aprenderam — e esqueceram — o que é escrever a carvão, a
pena de ganso, a caneta tinteiro, a esferográfica, a máquina de
escrever manual, depois elétrica para, por fim, chegarem à era
digital. Com a perspicácia de um aprendizado que já leva mais
de meio milênio, os indígenas cortaram todo o tortuoso
caminho dos brancos pela escrita sem perder uma vírgula de
sua integridade mental.
Enquanto os antepassados produziam arte para consumo
interno, sem fazer concessões ao mundo exterior, esses novos
artistas plásticos dirigem seus talentos ao universo artístico mais
amplo, incluindo o mercado de arte. Mostram o imaginário
indígena, mas em imagens que fazem sentido estético para o
observador forasteiro. Utilizam recursos técnicos e visuais com
grande sensibilidade e perícia, o que os equipara aos seus
congêneres não indígenas e, ao mesmo tempo, traduzem
esteticamente aspectos que, por outros meios, poderiam passar
despercebidos ou ser ininteligíveis. Com apelo ao belo, o
observador admira a obra, mesmo que não alcance o seu
significado profundo ou os temas explorados, muitas vezes,
advindos de regiões recônditas, inatingíveis de suas respectivas
culturas.
Esse aspecto de fazer arte para fora também o
encontramos em vários outros contextos da produção indígena.
Exemplifico com um parêntesis. Quando Bruce Albert e eu
116
concebemos o conteúdo do que viria a ser Pacificando o Branco,
tínhamos em mente contrabalançar nossa grande frustração
por estarmos naquele momento proibidos de entrar nas áreas
indígenas devido à recrudescência do regime militar. Era o fim
dos anos 70, início dos 80. Como recorte geográfico,
selecionamos, justamente, a região à qual não podíamos voltar:
o norte da Amazônia brasileira alvo de projetos militares, em
especial, a faixa de fronteira afetada pela construção da rodovia
Perimetral Norte. Era como se, simbolicamente, voltássemos à
área. O recorte temático foi, apropriadamente, o impacto do
contato forçado sobre os vários povos indígenas daquela
enorme faixa de fronteira. O resultado é uma série de textos que
exploram os mecanismos de defesa daqueles povos face a
agressões que só podiam combater com seus próprios recursos,
como, por exemplo, xamanismo, rituais de cura etc.
Por aquela época, organizei
um seminário na Universidade
de Brasília intitulado Do tacape ao
vídeo.
O
projeto Vídeo
nas
Aldeias de Vincent Carelli estava
a todo vapor e eram frequentes
as imagens de jovens Kayapó de
câmera em punho, filmando
dentro e fora de suas aldeias.
Minha ideia ao organizar aquele
evento
era,
precisamente,
contrabalançar
o
efeito
Pacificando. Enquanto o livro
expunha
mecanismos
e
estratégias de defesa para uso
Esteira Waurá
interno, ou seja, para neutralizar
117
os efeitos deletérios do contato e abrandar medos e iras dentro
das próprias comunidades longe da vista de forasteiros, o
seminário, ao contrário, explorava, justamente, as ações
indígenas diretamente arremessadas aos brancos, os genéricos
agressores dos índios nos embates interétnicos.
Com este parêntesis quero dizer que, como nas obras de
arte, é possível identificar, na ética e estética tradicionais,
posturas e ações que interessam apenas aos indígenas, enquanto
outras, na ética e estética contemporâneas, têm o propósito de
impactar o mundo exterior. Geralmente, não se misturam umas
com as outras, mesmo quando o produto da arte tradicional
entra no mercado, com frequência, chamado desdenhosamente
de “artesanato”.
Escritores indígenas estão igualmente em ascensão.
Séculos de déficit educacional por parte do Estado atrasaram a
chegada de intelectuais e escritores indígenas ao cenário
nacional. Por paradoxal que pareça, foi sob a influência da
rígida tutela dos Salesianos no Alto Rio Negro que os primeiros
escritores indígenas começaram a ser publicados. Alfabetizados
com rigor, os Desana publicaram uma série de volumes com
narrativas míticas sob os auspícios da União das Nações
Indígenas do Rio Tiquié (UNIRT) e da Federação das
Organizações Indígenas do Rio Negro (FOIRN). Inaugurando a
série Narradores Indígenas do Rio Negro, o livro de 1995, Antes o
Mundo não Existia, marcou época e, originalmente, foi destinado
ao uso exclusivo dos próprios indígenas. Seguiram-se vários
outros de autores Desana sobre suas crenças e narrativas,
formando um conjunto, reminiscente dos contos, lendas e sagas
nórdicos, que se tornou clássico. Com a entrada de estudantes
indígenas nos programas de pós-graduação já no século XX, o
118
número de autores e livros foi aumentando e hoje temos um
acervo que não para de crescer.
Um dos pioneiros no campo da literatura indígena, Kaká
Werá Jecupé, personifica, como todos citados aqui, uma
trajetória marcada por deslocamentos, perda e recuperação de
identidade étnica. Em Todas as vezes que dissemos adeus, Werá
relata o destino dos pais, comum a tantos povos indígenas que,
expulsos de suas terras, viram seu modo de vida tradicional
esgarçar-se pelo país e reduzi-los a párias.
A tribo dos meus pais e de meus antepassados
moravam (sic) ao norte do país, espalharam-se pelas
cidades mineiras a partir das margens do rio São
Francisco, tornando-se peões das fazendas que
brotavam nos cerrados como erva daninha, outros
foram tornando-se sitiantes, rezadores, benzedeiras,
andarilhos,
errantes,
caboclos,
pescadores,
mendicantes, sitiados, artesãos, matutos, capiaus,
caipiras (Jecupé, 2002: 15-16).
Nesse contexto esmagador, gesta-se uma carreira
literária. Werá não é o primeiro nem será o último a reverter o
infortúnio e retirar dele a energia mental e emocional para
continuar e criar. Ouso dizer que, em maior ou menor grau,
todos os indígenas artistas — e não só eles — vingam à sombra,
como diria José Saramago. Será mesmo inescapável sofrer para
criar, pois, como disse Rubem Alves, ostra feliz não faz pérola?
Para gozarmos das obras de artistas indígenas teríamos então
que louvar seus sofrimentos? Ou, ao nos rebelarmos contra a
crueza da dominação étnica, também nós, flagelados por
osmose, fazemos pérolas, mesmo que sejam apenas pérolas
barrocas?
119
Nos tempos da Nova República pós-ditadura, por
fortuna, hospedei líderes indígenas que vinham a Brasília travar
suas batalhas políticas pelos corredores do poder federal. No
fim do dia, quase sempre frustrante, quantos relatos ouvi de
Álvaro Tukano, de Marcos Terena e, principalmente, de Ailton
Krenak sobre a via crucis daqueles homens (quase nunca
mulheres) que, fazendo das tripas coração, enfrentavam o
dragão do poder estatal para voltar cabisbaixos às pocilgas onde
se hospedavam na capital federal. Corroídos de frustração,
afogavam-se em bebida e acabavam caídos por uma sarjeta
qualquer da cidade, voltando para casa com um gosto amargo
de derrota.
Pois bem, é dessa frustração que surgem belas pérolas.
Por respeito à brevidade e intimidada com a abundância de
obras e autores, menciono, me desculpando pela descortesia de
resumi-los, além de Kaká Werá, mais dois autores e três autoras,
lamentando deixar de fora todos os outros, por ora, relegados
ao silêncio.
Daniel Munduruku, escritor renomado, também nasceu
e cresceu à sombra do desencontro interétnico e nunca chegou
a viver plenamente a vida de aldeia característica do seu povo.
Escritor prolífico, é autor de uma longa lista de livros que
trazem ao mundo não indígena a leveza profunda da sabedoria
ancestral, como a aprendeu do bisavô dissidente que a manteve
sólida, mesmo longe das comunidades tradicionais. Daniel
abraçou a escrita com a clara consciência de que ela não destrói
a memória feita de oralidade. Ao contrário, reforça a
capacidade indígena de abarcar com a mesma capacidade
formatos mentais distintos. “A escrita é uma técnica”, afirma, e
reforça ser preciso dominá-la “com perfeição para poder
120
utilizá-la a favor da gente indígena” (Munduruku, 2020: 78).
Dominar essa técnica é uma “demonstração de capacidade de
transformar a memória em identidade, pois ela reafirma o Ser
na medida em que a reforça e acrescenta ao repertório tradicional
outros acontecimentos e fatos que atualizam o pensar ancestral”
(Munduruku, 2020: 79, minha ênfase). Sim, crescer à sombra da
tradição tem o potencial de enriquecê-la, pois, como afirmou o
filósofo Hans-Georg Gadamer (1975), tradição estanque é
tradição morta. É ela que orienta e impulsiona os membros de
uma cultura a ir além dos limites canônicos; “todos os esforços
bem-sucedidos de animar uma tradição exigem que ela mude
para torná-la relevante no contexto presente. Abraçar uma
tradição
é
fazê-la
sua,
alterando-a”
(Barthol,
s.d.).
Demonstrações não faltam aqui.
Um hiato de quatro décadas separa Eliane Potiguara, a
pioneira, das escritoras indígenas de hoje no Brasil. É autora de
vários livros, dentre eles, Metade Cara, Metade Máscara,
publicado em 2004, agora esgotado e altamente valorizado, e o
mais recente, O Vento Espalha Minha Voz Originária, publicado
em 2023. Eliane traz no nome sua origem étnica, neta que é de
avós migrantes Potiguara do Nordeste brasileiro. Nasceu no Rio
de Janeiro, tem vivido em meios urbanos e ela mesma explica
porque: “A minha família, já antes de eu nascer, desde 1900,
começou a emigrar, junto com outras famílias do nosso povo.
Começou um processo de migração muito grande. Foi uma
migração em massa de vários povos saindo de suas regiões”
(Potiguara, 2019: 105), migração essa que grita por ser
devidamente analisada, a exemplo da Grande Migração Negra
dos Estados Unidos.
121
Mulher cosmopolita, participante de muitos congressos
e assembleias internacionais em prol dos direitos humanos, é
considerada a primeira escritora indígena a ser publicada, criou
a Rede Grumin de Mulheres Indígenas e cravou seu lugar
destacado nos meios literários nacionais. Seguindo suas
pegadas, outras mulheres indígenas trilham caminhos
semelhantes. Julie Dorrico é uma delas.
Um dia minha mãe decidiu me criar mulher
E criou, lá na década de 1990, bem certinho.
Decidiu, porém, que minha língua não seria nem o
macuxi, como de
minha ancestral,
nem o inglês dos britânicos, mas o português.
Eu não quis não.
Então resolvi criar a minha própria.
Como não posso fugir do verbo que me formou,
Juntei mais duas línguas para contar uma história:
O inglexi e o macuxês.
Neste poema, Julie Dorrico (2019: 21) condensa a voz da
mistura, essa mistura criativa desenhada para olhos forasteiros,
ainda perplexos com os feitos indígenas no mundo dos brancos.
Nasceu em Rondônia de mãe Macuxi e pai peruano, garimpeiro
na fronteira Roraima-Guiana. Optou por ser Macuxi e, assim,
resumiu em si mesma uma indianidade que atravessa a
Amazônia de leste a oeste. É doutora em Teoria da Literatura e
privilegia a poesia como modo de expressão. São também dela
estrofes como estas:
Quando Makunaima criou a Raposa Serra do Sol,
ele convocou de sua criação gente que faria a diferença no
122
mundo.
Então ele criou os macuxis
Quando Makunaima me encontrou
eu estava no estéril asfalto da vida.
Em sonho, ele me chamou!
Quando Makunaima me encontrou, soltou um:
̶ Já era tempo!
Eu concordei
Na terra dos garimpos, o pesadelo da busca do ouro chegou a
ela na figura do pai não indígena:
Durante nove anos,
eu tive o afeto do meu pai.
Mas ele enlouqueceu,
como todo homem do ouro
que não escapa da maldição
de matar os outros envenenados aos pouquinhos.
Poderíamos atribuir tal leveza de expressão à sua feminilidade?
De onde vem essa aptidão para falar com tanta doçura do
amargor vida?
Ailton Krenak vem, consistentemente, transformando
oralidade em escrita, sem nunca perder verve nem eloquência.
Falas, entrevistas e outras apresentações têm sido transcritas e
publicadas em livros de ampla divulgação. Perspicácia,
sabedoria, tranquilidade e, acima de tudo, o inesgotável senso
de humor, atributo indígena por excelência, fazem das suas
falas e textos a alegria dos leitores. Ailton Krenak jovem, anos
80, parou o Congresso Nacional ao usar a tribuna para acusar as
123
autoridades brasileiras de omissão, sem que elas percebessem
que estavam sendo acusadas e, ainda por cima, com muita
ironia. A maior dessas ironias correu por conta da pintura preta
com que Ailton, de terno branco, cobriu todo o rosto ao som de
uma voz enganosamente meiga e tranquila.
Como todos os outros autores que menciono aqui, Ailton
Krenak é produto do confuso mundo interétnico. Mineiro do
vale do Rio Doce, desde a adolescência viveu em centros
urbanos no sul do país, formou-se jornalista e, com trinta e
poucos anos, aderiu ao movimento indígena que vivia um
período de grande ebulição às vésperas da Assembleia Nacional
Constituinte. A partir daí, tornou-se um dos atores mais
proeminentes na luta pelos direitos indígenas. Também ele é
exemplo de um insider que, depois de viver como outsider,
voltou a ser insider com energia redobrada e múltiplas
experiências acumuladas.
Capaz de absorver grande quantidade de informações
vindas da intelectualidade, da política e de outros campos,
Ailton Krenak sabe como poucos aplicar o que Gustave Flaubert
chamou de le mot juste, a palavra certa no momento certo, o que
muito contribui para o seu sucesso nos meios de comunicação.
Alguns exemplos:
Tem quinhentos anos que os índios estão resistindo,
eu estou preocupado é com os brancos, como que
vão fazer para escapar dessa (Krenak , 2019: 31).
Os brancos que me perdoem, mas eu não sei de
onde vem essa mentalidade de que o sofrimento
ensina alguma coisa. Se ensinasse, os povos da
diáspora, que passaram pela tragédia inenarrável da
124
escravidão, estariam sendo premiados no século
XXI (Krenak, 2022: 47-48).
Um outro lugar que a gente pode habitar além dessa
Terra dura: o lugar do sonho. Não o sonho
comumente referenciado de quando se está
cochilando ou que a gente banaliza “estou sonhando
com o meu próximo emprego, com o próximo
carro”, mas que é uma experiência transcendente
onde o casulo do humano implode de dentro para
fora e a experiência espiritual e transcendente abre
para outras visões da vida não limitada (Krenak,
2020: 141).
Mago da crítica indígena do mundo industrial em rota de
colisão com o planeta, Ailton Krenak, manancial de sabedoria
adquirida na voragem da “mistura”, continua a ocupar um lugar
central na Renascença Indígena.
Fecho este passeio pela sensibilidade indígena com outra
poeta do mundo interétnico. Márcia Wayna Kambeba, que leva
o nome de um povo amazônico, mas nasceu entre outro, os
Tikuna. É formada em geografia, mas mostra outros talentos no
livro Ay Kakyri Tama. Eu Moro na Cidade. Dele extraio as
seguintes estrofes do poema “Silêncio Guerreiro” (Kambeba,
2018: 29).
No território indígena
O silêncio é sabedoria milenar
Aprendemos com os mais velhos
A ouvir mais que falar
Silenciar é preciso
Pra ouvir com o coração
125
A voz da Natureza
O choro do nosso chão.
É preciso silenciar
Para pensar na solução
De frear o homem branco
E defender o nosso lar
Para nós, para a nação
Ao lado de conceitos como sonho, cuidados, sabedoria,
está o silêncio de quem ouve, de quem respeita o interlocutor
com atenção concentrada e respeitosa. É uma das mais
evidentes qualidades indígenas, especialmente, quando
comparada à estridência nacional e, de resto, ocidental,
estridência que berra, atravessando até o aparente silêncio das
redes sociais. Ter dos próprios indígenas a confirmação de
impressões plasmadas no campo, como foi para mim a cortesia
do ouvinte que, realmente ouve, dá-nos a sensação de que,
afinal, a etnografia compensa.
Coda
Aproveitando que o tema dos sonhos é recorrente nestes
escritos, acrescento-lhe mais uma camada de interesse. Puxo da
memória a lembrança de um comentário seminal, um desabafo
de Davi Kopenawa. Era o fim dos anos 80, início dos 90, quando
dezenas de milhares de garimpeiros violavam as terras e as
vidas de boa parte dos Yanomami. Davi, meu hóspede regular
quando vinha a Brasília, viu, pela primeira vez, na tela da
televisão, o gigantesco estrago dos garimpos em terras
Yanomami. Permaneceu mudo, imóvel, perplexo, olhar fixo na
126
TV, incrédulo diante das imagens soturnas de grandes crateras
lamacentas escancaradas ao céu. Depois, falou: “os brancos não
sabem sonhar e porque não sabem sonhar, estragam tudo”.
Começou então a desabafar na sua língua Yanomãe. Pedi
licença para gravar, mandei as fitas para Bruce Albert e aí nascia
a semente que germinou em A Queda do Céu. Por uma sorte do
destino, a região do Demini, morada de Davi, fora poupada do
assalto garimpeiro. Por isso, ele via o desastre pela primeira vez
em duas dimensões a milhares de quilômetros de distância. O
choque mediático reverbera nele até hoje.
Debruçar-me sobre o movimento artístico indígena dáme um prazer não de todo livre de angústias. Ao ler os
comentários de Graça Graúna, vejo o porquê.
A literatura indígena contemporânea é um lugar
utópico (de sobrevivência), uma variante do épico
tecido pela oralidade; um lugar de confluência de vozes
silenciadas e exiladas (escritas) ao longo dos mais de
500 anos de colonização. Enraizada nas origens, a
literatura indígena
contemporânea vem
se
preservando na auto-história de seus autores e
autoras e na recepção de um público-leitor
diferenciado, isto é, uma minoria que semeia outras
leituras possíveis no universo de poemas e prosas
autóctones (Graúna, 2013: 15, minha ênfase).
Escrita como exílio. Imagem contundente que diz
volumes! É destino de quem, para ser ouvido, precisa dominar
os meios de ser lido, o que não é tarefa fácil se se nasce e
amadurece mentalmente na oralidade. Mas, já que é para
dominar a escrita, que modalidades da escrita ocidental mais se
amoldam às formas de expressão verbal dos povos indígenas?
127
Numa rápida mirada pela minha estante de escritores
indígenas, ainda com frustrantes espaços vazios, é flagrante a
presença da poesia e da narrativa, o que em inglês se conhece
como storytelling, definida como a arte interativa de utilizar
palavras e ações para revelar os elementos e imagens de uma
história e, ao mesmo tempo, estimular a imaginação do
ouvinte-leitor. É, em suma, a quintessência da oralidade
tornada escrita.
Advertência. Este texto trata, exclusivamente, da produção
artística, especificamente, artes plásticas e literatura, de
indígenas brasileiros. A sua presença, sempre crescente, em
outros campos, como na academia, no direito e em outras
esferas profissionais, tem sido objeto de outros escritos e o será
dos que hão de vir.
128
Meditações indígenas e ecúmeno antropológico
[2014]
Sempre me surpreendo com as grandes dificuldades
que têm os povos de culturas nativas ao tentar
sensibilizar
forasteiros
sobre
seus
valores
tradicionais. Também me pergunto por que há tanta
falta de comunicação intercultural (…) e, sobretudo,
como se pode criar uma vontade coletiva e
individual por tal comunicação (Georges E. Sioui,
1992: xxi).
Lições indígenas
Começo com uma espécie de depoimento pessoal sobre
algumas estranhezas que sempre me acompanharam e que, só
há relativamente pouco tempo, me vieram à plena consciência
com a atenção que merecem. Tanto durante minha estada entre
os Sanumá,1 quanto em várias ocasiões, como, por exemplo,
eventos políticos em Brasília, algumas características sempre
me chamaram a atenção no estilo de comunicação indígena,
dentre elas, o uso da repetição e a extrema paciência para ouvir.
Fosse na intimidade das aldeias, na impessoalidade de fóruns
políticos ou na formalidade de encontros acadêmicos, percebi
1
Subgrupo Yanomami do Norte do Brasil com quem desenvolvi prolongada
pesquisa de campo em 1968-1970, 1973, 1974, 1990, 1991,1992 e 2005, em parte
financiada pelo CNPq, e que resultou em três livros e diversos artigos.
129
nesses traços a feição que distingue o modo indígena de se
comunicar e que passei a admirar, embora sem a competência
e a perseverança necessárias para seguir à risca. Foi preciso me
debruçar sobre questões de epistemologias transculturais e
sobre políticas da diferença para que essas impressões se
transformassem em objeto de reflexão antropológica. O valor
da repetição, o exercício incondicional da atenção solícita, os
modos de transmissão de conhecimentos e os estilos de
argumentação passaram a constituir termos de comparação
com o nosso modo acadêmico de expressar e comunicar,
decantado no que Lévi-Strauss chamou de pensamento
domesticado em contraste com um pensamento selvagem. 2 A
partir de impressões sensoriais, comecei a desenvolver uma
preocupação teórica e metodológica sobre modos de apreender
e de transmitir conhecimento. No campo, passei a apreciar e
usufruir das vantagens da imitação para sedimentar o
aprendizado da língua, por exemplo, da repetição como modo
de instilar e destilar o conhecimento, e da escuta atenta e
paciente a fim de maximizar a capacidade de apreensão de
significados. Ao comparar esses traços distintamente indígenas
com a maneira acadêmica de proceder, não pude evitar a
conclusão de que o nosso sistema de aprendizado e de
apreensão de significados é um irremediável refém de malentendidos. A intolerância à repetição, a impaciência para ouvir
e a exaltação da originalidade que menospreza a imitação
levam-nos a enfrentar um dos maiores problemas na nossa
profissão e em tantas outras, que são as interpretações parciais
2
Traduzir pensée sauvage como pensamento selvagem é fazer injustiça a LéviStrauss. Seria mais apropriado e fidedigno dizer pensamento silvestre, no
sentido de não ser cultivado em bancos escolares, não estar imbuído de ethos
científico.
130
ou errôneas, se não mesmo hostis, do que dizemos e
escrevemos. Aprendemos com a teoria da comunicação que o
que conduz informação é o dado novo, inesperado e, se a sorte
ajudar, uma gema serendipity. No entanto, se levarmos essa
proposição às últimas consequências, comunicar, no sentido da
teoria da comunicação, é não compreender, porque, seguindo a
dinâmica do nosso cérebro, é passando uma mensagem
repetidamente
pelos
neurotransmissores
que
ela
é
devidamente
registrada.
O
conhecimento,
feito
de
informações, resulta de mensagens reiteradas com insistência,
a exemplo da técnica de aprendizado linguístico conhecida
como drill (exercícios repetitivos). A repetição é, portanto, a
maneira mais eficaz de nos fazermos entender. Dizer a mesma
coisa várias vezes de diversas maneiras é proteger a nossa
intenção de lutar contra mal-entendidos. Ao contrário do modo
indígena de comunicação ‒ seja oral ou escrito ‒, o mundo
acadêmico proíbe repetir, o que gera constantes queixas de
autores cujos escritos são lidos a contrapelo de sua intenção. O
historiador estadunidense Donald L. Fixico, indígena
pertencente a múltiplas etnias, dá à repetição o nome de
método circular e define-o como uma
filosofia circular que focaliza um único ponto e usa
exemplos familiares para ilustrá-lo ou explicá-lo.
Garante que todos compreendam e que tudo seja
levado
em
conta,
aumentando,
assim,
a
possibilidade de harmonia e equilíbrio dentro da
comunidade e com tudo mais (Fixico, 2003: 15-16,
tradução minha).
Algo semelhante ocorre com o ouvir. A paciência dos
ouvintes indígenas contrasta flagrantemente com a agitação
131
que, muitas vezes, nos assalta ao ouvir uma palestra, um debate,
uma argumentação. Ouvimos na expectativa de nos
interpormos e apresentarmos a nossa versão do assunto.
Interrupções ruidosas até podem ser tomadas como medida de
sucesso do evento. Por vezes, as falas se sobrepõem e correm
como paralelas que talvez nem no infinito se encontrem.
Podemos dizer que isso é “falta de educação”, um acinte à
etiqueta, mas acontece com maior frequência do que muitos
gostaríamos. De qualquer modo, seja raro ou comum, esse tipo
de gafe não faz parte do universo indígena.
Shawn Wilson, da etnia Cree do Canadá, afirma que, por
ser relacional, a pesquisa deve ser tida como uma cerimônia
(Wilson, 2008). Eu acrescentaria que, quando observamos a
comunicação praticada por indígenas, ela também, sendo
relacional, é uma cerimônia. Ser cerimonioso não é apenas ser
formal, seguir um rito de pompa e circunstância, mas também
ser cortês, polido e respeitoso para com o interlocutor em
qualquer contexto. Talvez essa noção se aproxime de jeong, o
conceito sul-coreano que subjaz ao ethos nacional com sua
ênfase no afeto, na empatia e na lealdade. Se a
intercomunicação fosse sempre tratada como cerimônia, ela
asseguraria que uma etiqueta da interação superasse os
percalços advindos da compreensão involuntariamente
incompleta ou distorcida, da má interpretação intencional e do
desrespeito gerado pela ignorância, muitas vezes, cultivada.
Talvez a inibição de muitos indígenas para se expressar em
meios não indígenas resulte de algum receio de serem
atropelados pela nossa afobação, pelo descaso com a
quintessência da comunicação plena, que é a repetição, muito
mais compatível com os ritmos de aprendizado do cérebro
humano. Pensar que a repetição é uma necessidade da
132
comunicação oral e que, adultos e alfabetizados, já não
precisamos mais dela, é um erro, como provam as frequentes
desculpas: “Ah, eu não quis dizer isso, minha intenção não era
essa, fui mal interpretada!”
O problema da comunicação intercultural fica mais
evidente no contexto da educação indígena: são dois sistemas
de transmissão de conhecimentos que não deveriam se anular
mutuamente, mas, na prática, ainda não foram assimilados de
maneira apropriada pelos projetos de educação dita
intercultural, sejam públicos, sejam privados e, muito menos,
pela maioria dos educadores não indígenas. É o que expressa,
sem esconder uma grande frustração, o trabalho de Gersem
Luciano, da etnia Baniwa do Uapés brasileiro. Vejamos um dos
seus exemplos sobre a inadequação de aplicar os rudimentos
que têm certos atores externos sobre o mundo indígena:
muitas
iniciativas
bem
intencionadas
de
constituição de escolas de pajés, por exemplo, nunca
deram certo, porque são tentativas de escolarizar
questões que não são escolarizáveis, pois não podem
ser coletivizadas e nem deixadas sob a
responsabilidade de um professor (Luciano, 2011:
197).
Mais adiante, continua:
[A] dificuldade da escola indígena definir seu papel
e sua função social ‒ se é formar um bom cidadão
brasileiro profissionalmente ou um bom indígena ‒
tem gerado modelos administrativos e pedagógicos
que operam à beira de uma escola ou de um
processo educativo do ‘faz de conta’, com
133
metodologias e epistemologias parciais ineficientes
(Luciano, 2011: 254).
Gersem Baniwa vai mais longe em sua crítica profunda ao
modelo escolar aplicado aos povos indígenas: “A ideia de
interculturalidade é bastante confusa, pouco clara e de difícil
aplicação na prática pedagógica e consequentemente na vida
das pessoas” (Luciano, 2011: 259).
Quando passamos à comparação dos mundos indígena e
não indígena, verificamos que o primeiro nos apresenta a série
de lições citadas acima, que servem de pano de fundo para
cotejarmos as nossas próprias premissas sobre a eficácia dos
recursos da comunicação humana. E não me refiro apenas à
comunicação oral, mas também à escrita, como veremos
adiante.
Essas e outras lições indígenas têm me inspirado para
encetar uma jornada que trace os caminhos do conhecimento
indígena e antropológico e que prospectos eles abrem para
pensarmos numa antropologia abrangente, ecumênica no
sentido de se abrir a todas as vozes. Assim, este artigo debruçase sobre a problemática que venho abordando sobre o quão
desejável e necessário é acolher no seio da antropologia
acadêmica as teorias indígenas, para criarmos um novo
horizonte transcultural que possamos chamar plenamente de
antropologia ecumênica (Ramos, 2008, 2011). Para tanto, evoco
alguns ‒ dentre muitos ‒ membros da intelectualidade indígena
mundial que expõem propostas de especial relevância para esta
discussão, pois desafiam premissas arraigadas na academia
ocidental, lembrando-nos, ao mesmo tempo, que o Ocidente ‒
ou um certo Ocidente ‒ não é tão distante como se pensa,
principalmente, em algumas vertentes da filosofia e da física
134
moderna. Quero explorar equivalências e contrastes, de modo
a demonstrar que não há incompatibilidades inexoráveis entre
teorias indígenas e teorias ocidentais e quanto o campo
antropológico tem a ganhar ao abraçar, em igualdade de
condições intelectuais, aqueles pensadores que, abusivamente,
têm sido chamados de “Outros”.
Esboço de uma antropologia ecumênica
Uma detida análise de textos indígenas mostraria que a
repetição é uma característica comum. Boa parte deles foi
escrita em inglês, justamente, a língua ocidental talvez mais
refratária à repetição, principalmente, em sua forma escrita, se
a compararmos, por exemplo, com o francês, o português e o
espanhol. Uma coletânea intitulada Reinventing the enemy’s
language, contendo mais de 100 textos escritos exclusivamente
por mulheres indígenas dos Estados Unidos, Canadá e Havaí,
propõe inundar a língua inglesa com conceitos e imagens
indígenas. O meio ‒ a língua inglesa ‒ é propositalmente sujeito
a intervenções (como certos artistas plásticos e músicos criam
sobre obras pré-existentes), de modo a chamar a atenção dos
leitores para o conteúdo descrito. A intenção é deixar a
oralidade exsudar na escrita, por exemplo, com o uso da
primeira pessoa do singular, a conexão direta com os leitores e
imagística própria:
Nos
sistemas
educacionais
euro-americanos,
aprendemos estratégias literárias, gramáticas e
técnicas que diferem muito das construções tribais
que são culturalmente específicas. Então nos vêm à
135
consciência as nossas invenções literárias, mediando
entre o tempo e espaço literais e metafóricos (Harjo
& Bird, 1997: 28, tradução minha).
Aqui, diria Marshall McLuhan (1967), o meio é [parte d]a
mensagem. Impregnar uma língua avessa a repetições e
floreados como é o inglês é, em si mesmo, uma contravenção e,
consequentemente, uma asserção de liberdade. O que essas
mulheres almejam é, precisamente, utilizar os estereótipos dos
falantes ocidentais do inglês para devolver o insulto, por assim
dizer, e asseverar “uma tenacidade nativa para continuar
[apesar de tudo]” (Harjo & Bird, 1997: 30). O movimento
político indígena, que tomou proporções globais a partir dos
anos 1970 e desembocou na aprovação da Declaração das
Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas em 2007,
abriu caminho para que escritores indígenas encontrassem uma
oferta editorial que antes não lhes era franqueada. Editoras
sensibilizadas começaram a publicar trabalhos indígenas que
não tinham acesso às grandes editoras, principalmente, as
universitárias.
Vimos que formas de adquirir e transmitir conhecimento
separam os mundos indígenas e não indígenas: imitar, repetir,
ouvir, relacionar versus informar, lecionar, mostrar eficiência,
destacar-se. Vejamos então o que os aproxima.
Spirit, esprit, Geist
Um dos temas mais recorrentes nos escritos indígenas,
principalmente, na América do Norte, é a espiritualidade.
Ciente da ausência de ressonância desse conceito na academia,
136
Shawn Wilson adverte que, devido à carência desse aspecto
humano entre os não indígenas, é preciso fazer um esforço
especial para explicá-lo: “a espiritualidade não é separada, mas
parte integral e entranhada no todo que é a visão de mundo
indígena” (Wilson, 2008: 89, tradução minha). Para ele,
“espiritualidade é o sentido interior de conexão com o
universo”, e religião seria “a manifestação exterior da
espiritualidade”. Já Gregory Cajete da etnia Tewa (Pueblo) do
sudoeste norte-americano, afirma que espírito e espiritualidade
nada têm a ver com religião, mas com a busca de verdade ou
verdades: “A ciência nativa, em seus níveis mais altos de
expressão, é um sistema de caminhos para chegar a essa
verdade perpetuamente em movimento, ou ‘espírito’” (Cajete,
2000: 19). Ao descartar a ligação de espírito com religião, Cajete
insiste que, na sua língua, não há palavra nem conceito para esta
última. Em vez disso, vincula espiritualidade à fenomenologia
de Merleau-Ponty e dá a Lucien Lévy-Bruhl a credibilidade que
seus próprios pares nunca lhe deram. Por sua vez, Margaret
Kovach, da etnia Cree do Canadá, que também inclui o
componente da espiritualidade em sua análise de metodologias
indígenas, afirma que os “pesquisadores indígenas, muitas
vezes, ouvem o chamado da fenomenologia de Heidegger”
(Kovach, 2009: 30).
Num registro afim da fenomenologia, podemos citar o
hermeneuta alemão Hans-Georg Gadamer, principalmente,
quando expõe quatro conceitos humanistas que devem ser
resgatados do esquecimento racionalista. Esses conceitos
são: Bildung, “intimamente associado à ideia de cultura, designa,
principalmente, o modo propriamente humano de se
desenvolver talentos e capacidades naturais” (Gadamer, 1975:
11); senso comum, que “não significa apenas uma faculdade
137
geral de todos os homens, mas o sentido que funda a
comunidade”; juízo (ou julgamento), “que significa julgar o que
é certo e errado e uma preocupação com o ‘bem comum’” (p.
31); e gosto, noção originalmente mais ligada à moral do que à
estética. “Em sua natureza essencial, gosto não é um fenômeno
privado, mas social de primeira ordem”. Gadamer prossegue:
“Em última instância, todas as decisões morais requerem
gosto”, o que é admiravelmente ilustrado nas análises de Keith
Basso (1996) sobre os Apache Ocidentais.
Tomando esse fio condutor, apontado por Cajete,
podemos igualmente evocar autores ocidentais, como Blaise
Pascal do século XVII, que nos legou a distinção entre esprit de
géométrie e esprit de finesse. Enquanto o primeiro se refere a
princípios concretos, lógicos, racionais, distantes do senso
comum, o segundo aponta para princípios partilhados por
todos, relativos a sentimentos, ao senso de justiça, à
compreensão e expressão (jeong?). Pascal percebeu que a ciência
positiva ocidental não abarca uma importante dimensão do
conhecimento; a excluída é, justamente, o que equivale à
espiritualidade indígena.3 Foi também nesse “espírito” que
Montesquieu criou o seu Espírito das Leis e que Bachelard
discorreu sobre La formation de l’esprit scientifique. Lembremos,
além do mais, do conceito de esprit de corps, relacional por
excelência, comandando a solidariedade daquilo que Linda
3
Notemos que, no contexto acadêmico, o termo francês esprit é, muitas vezes,
traduzido para o inglês como mind. A relutância anglicana de utilizar spirit no
discurso científico revela a incapacidade ou o repúdio de contaminar esse
discurso com o que poderia ser tomado como misticismo. Encontramos na
internet referência ao “espírito do princípio da incerteza” de Heisenberg. A
cândida combinação de “espírito” com o sofisticado princípio da mecânica
quântica revela, ao menos no âmbito da popularização da ciência, uma
disposição de aliar o imponderável, imensurável, ao gênio da cientificidade
ocidental.
138
Tuhiwai Smith, intelectual Maori da Nova Zelândia, chamou de
“comunidades de interesse” (Tuhiwai Smith, 1999: 191).
Em outra tradição europeia, há a noção de Geist, como
em Zeitgeist, Volksgeist ou Geisteswissenschaften,
com
objetos
diferentes, mas conotações semelhantes. Zeitgeist, o Espírito do
Tempo, evoca uma totalidade temporal com tonalidade
sociocultural própria, composta de manifestações que vão
muito além das conquistas científicas. Volksgeist refere-se ao
espírito comum de um povo, enquanto Geisteswissenschaften,
inicialmente uma tradução do termo Ciências Morais, de John
Stuart Mill, passou a designar áreas de conhecimento mais
próximas das noções de significado e compreensão (Verstehen).
Em suma, a teoria indígena de espírito tem, em tese, uma clara
contrapartida na história intelectual da Europa. Sendo assim,
cabe indagar sobre a necessidade de Shawn Wilson de explicitar
tão estoicamente a ideia indígena de espiritualidade. A lacuna
de conhecimento é, portanto, mais imaginada do que real e
intensamente incutida pelo estilo anglo de expressão escrita.
Espírito, para Cajete, corresponde a uma verdade
mutável:
Como o nascimento de uma criança ou um raio
ligando céu e terra por uma fração de segundo, são
esses os momentos infinitos tanto do caos como da
ordem. São esses os preceitos da ciência nativa, pois
a verdade não está num ponto fixo, mas sim num
ponto de equilíbrio em constante mudança,
perpetuamente criado e perpetuamente novo
(Cajete, 2000: 19, tradução minha).
Mais uma vez, evoca-se o espírito do princípio do
imponderável, do mutável, do não controlável, em suma, da
139
teoria do caos (ou seria do wabi sabi japonês?). O papel da
metáfora é central nessas operações mentais. Na ciência nativa,
afirma Cajete (2000: 29), “a mente metafórica é o facilitador do
processo criativo; ela inventa, integra e aplica à tarefa de viver
os níveis profundos da percepção e intuição humanas”. Temos
na metáfora mais uma ponte entre o estilo indígena e o
ocidental. Mas, antes de abordar este ponto, abro um parêntese
para esclarecer um aspecto importante da questão de se
generalizar sobre isso que chamo de “estilo”.
Quando digo indígena, não me refiro a uma essência
cultural única para todos os povos não ocidentais e, quando
digo ocidental, não tenho em mente um bloco uniforme não
indígena, pois reconheço plenamente que, dentro de cada um
desses imensos e difusos continentes conceituais, há uma
variedade tão grande quanto há entre ambos. Porém, no
“mundo indígena”, que cobre tanto o Novo como o Velho
Mundo, é claramente discernível um substrato comum, ainda
que com características locais próprias, que se distingue do
universo, digamos, judaico-cristão, e que Lévi-Strauss,
limitando-se ao domínio da oralidade, esquadrinhou com a
análise estrutural dos mitos. Voltando-nos para a produção
escrita de membros desses disseminados “povos indígenas”,
encontramos igualmente esse substrato que, mesmo infiltrado
por sistemas escolares ocidentais, exibe traços comuns. Por sua
vez, o Ocidente monolítico é também uma quimera, senão por
outras razões, ao menos pela linguagem, cujo longo e complexo
processo histórico levou à geração de uma tal diversidade que
chega à ininteligibilidade mútua entre as chamadas línguas
indo-europeias. (Afinal, quem criou a imagem da Torre de
Babel?). No entanto, por baixo dessas diferenças, há um
reconhecível substrato de ocidentalidade. A influência dos
140
idiomas dos colonizadores sobre os povos autóctones não foi
pequena, mas também não foi tão grande a ponto de anuviar
modos de expressão pré-existentes, ou seja, isso que chamo de
estilo indígena.
Voltemos à questão da metáfora. George Lakoff e Mark
Johnson (2003 [1980]) empenharam-se em demonstrar a
necessidade estrutural que têm as línguas, como o inglês que
lhes serve de exemplo, de utilizar metáforas, seja no cotidiano,
seja na academia. Mais do que mero tropo, a metáfora é básica
para a comunicação, ou seja, “o sistema conceitual humano é
estruturado e definido metaforicamente” (Lakoff & Johnson,
2003: 6, tradução minha). Sustentam ainda que “a verdade é
sempre relativa a um sistema conceitual, que qualquer sistema
conceitual humano é majoritariamente de natureza metafórica
e que, portanto, não existe verdade que seja totalmente objetiva,
incondicional ou absoluta”.
Se para um norte-americano tempo é dinheiro, para um
brasileiro, a inflação come o salário e para um colombiano, estar
falido é estar na panela, para um Bororo da Amazônia brasileira,
um papagaio é um homem de certo clã (Crocker, 1977), para um
Kaluli da Nova Guiné, um determinado pássaro é um ancestral
(Feld, 1982), enquanto um Apache Ocidental caça com histórias
(Basso, 1996: 58). A capa hermética que cobre as metáforas
numa língua pouco ou nada conhecida é responsável por muita
trapalhada semântica quando se trata de traduzi-las. Metáforas
elaboradas são traduzidas literalmente e, muitas vezes, levam
ao ridículo (como traduzir literalmente to go out on a limb para o
português).
Complexidades são reduzidas a banalidades que acabam
sendo transformadas em estereótipos. A densidade intelectual
contida em metáforas impérvias à apreensão imediata passa
141
por um esmagamento de sentido e se transforma em
infantilidade, simplesmente, porque a tradução é incompetente
ou mal-intencionada. Um dos grandes problemas que os povos
indígenas enfrentam é a apropriação desinformada e leviana de
suas ideias e cerimônias por estranhos deslumbrados com a
suposta mística indígena. Seguidores do movimento New Age
têm contribuído para semear descrédito sobre sistemas de
crenças, de cura etc. Como dizem Lakoff e Johnson, as
metáforas são uma parte essencial do pensamento de um grupo
humano específico e não apenas figuras de linguagem. Há
mesmo dúvida “se as metáforas ilustram uma cognição ou se a
cognição não é talvez moldada pelas metáforas” (De Man, 1978:
14, tradução minha).
Isto quer dizer que conceitos densos relativos, por
exemplo, ao significado da vida, à mecânica celeste, à cadeia
ecológica de certa região, estão contidos em metáforas cuja
inteligibilidade imediata, superficial, opera como um trompe
l’oeil, uma ilusão de ótica, enquanto seu significado profundo
está fora do alcance dos forasteiros e, muitas vezes, até dos
antropólogos não indígenas. Exemplo dessa complexidade
comunicativa é a história educacional dos havaianos. Ao
dominar a tecnologia da escrita, a eles imposta por missionários
norte-americanos, passaram a produzir textos com múltiplas
camadas de significado em que apenas a mais banal era
destinada aos colonizadores (Silva, 2004). Neste, como em
outros sentidos, as etnografias próprias dos nativos apresentam
uma real possibilidade de chegar a traduções que façam justiça
à sua riqueza discursiva. Esta não é mais uma possibilidade
apenas teórica: “existe a nova situação de sujeitos indígenas
estudando a si mesmos como sujeitos que pensam e produzem
conhecimento” (Luciano, 2011: 105).
142
Community, comunalidad, terroir
Muito difundida nos escritos indígenas é a ideia de que o
lócus do conhecimento humano é a comunidade. Igualmente
disseminada é a afirmação de que o conhecimento indígena é
sempre relacional. Gregory Cajete, para quem a “comunidade
sempre foi o foco comum da intenção e atenção na psicologia
social de cada pessoa nativa” (Cajete, 2000: 98-99, tradução
minha), vincula o pertencer a uma comunidade ao
desenvolvimento do sentido de responsabilidade para com o
mundo, ênfase também dada por Shawn Wilson. É na imitação
e na observação dos processos na natureza que a comunidade
aprende a ser responsável em suas relações. “Foi primeiro
observando e depois fazendo que as crianças nativas
aprenderam a natureza dos recursos de alimentação,
comunidade e relações de vida” (Cajete, 2000: 101). Margaret
Kovach começa sua análise das epistemologias indígenas,
afirmando que a prática histórica surge da noção de lugar.
Etnógrafo zeloso e sensível, o saudoso Keith Basso mergulhou
na densidade do sentido de lugar entre os Apache Ocidentais,
autores de um idioma social calcado na sua paisagem: “um
único topônimo pode fazer o trabalho comunicativo de uma
saga inteira ou uma narrativa histórica” (Basso, 1996: 89,
tradução minha). O vínculo entre comunidade e lugar
manifesta-se em inúmeros contextos e temporalidades. Aqui, a
díade comunidade-lugar é indissociável e um verdadeiro fato
social total, à la Marcel Mauss.
Pelo contraste entre a sua vida na aldeia e num internato
salesiano, Gersem Baniwa põe numa cápsula a aparente
incomensurabilidade desses dois mundos:
143
A vida na aldeia havia me ensinado a evitar e
combater essas mazelas das pessoas, principalmente
por ocasião dos ritos de iniciação, dos ritos do
dabucuri e das atividades coletivas. Na aldeia quase
tudo era partilhado na família e na comunidade, ao
contrário da missão, onde a comida, o pão, embora
produzidos pelos alunos indígenas, [estes] não
podiam comer. Onde a casa dos padres construída
pelos indígenas, mas não tinham acesso, não
podendo dispor dela em caso de necessidade. Tudo
isso, desde o início, me despertou forte sensação de
injustiça, de desigualdade (Luciano, 2011: 17).
As mazelas a que Gersem Baniwa se refere são nada
menos que “a disputa, a concorrência, a injustiça, a
desigualdade, a violência, a falta de solidariedade, a falta de
hospitalidade, o individualismo e o egoísmo” (Luciano, 2011: 17).
É como se o internato fosse a vida na aldeia retratada em
negativo: o claro torna-se escuro, o escuro torna-se claro. No
entanto, esse doloroso aprendizado operou o efeito dialético de
transformar o jovem indígena num pensador crítico e
competente. Antítese da comunidade, o internato forneceu o
elemento-chave para criar a síntese do intelectual indígena
engajado nos dois mundos. Esse elemento-chave é a educação.
Não é por acaso que tantos indígenas se especializam em
Educação, como Gregory Cajete, Margaret Kovach, Linda
Tuhiwai Smith, para mencionar apenas autores citados aqui.
Esta última, em seu influente livro Decolonizing methodologies:
Research and indigenous peoples, lista 25 projetos de pesquisa que
refletem um modo próprio de conduzir uma investigação. “Os
métodos passam a ser os meios e procedimentos que orientam
os problemas centrais da pesquisa. Muitas vezes, as
metodologias indígenas misturam abordagens existentes e
144
práticas indígenas” (Tuhiwai Smith, 1999: 143, tradução minha).
É uma combinação do treinamento acadêmico dos
pesquisadores com o entendimento do senso comum das
próprias comunidades alvo da investigação. Esses projetos
ilustram as preocupações intelectuais indígenas, sempre
imersas em problemáticas que afetam diretamente as
comunidades e seus membros. Cito alguns como exemplos:
testemunhos, celebração da sobrevivência, revitalização,
educação, proteção etc.
A educação formal, muitas vezes tida como um mal
necessário, foi o que também possibilitou ao antropólogo
mexicano Floriberto Díaz transitar em dois tipos de cultura, a
materna mixe e a nacional. Seu livro, publicado
postumamente, Escrito (Díaz,
2007), tem
como
subtítulo
“comunalidad, energia viva del pensamiento mixe”.
Comunalidad tem papel central na longa jornada de Díaz pelas
435 páginas de seus escritos, que eram esparsos antes de serem
organizados num único volume. Comunalidad, a exemplo
do spirit anglo-saxão e do esprit francês, é aquilo que dá sentido
à comunidade. Em sua retórica nítida e direta, Díaz ecoa e
congrega as afirmações de seus semelhantes, tanto do Norte
como do Sul:
[N]o se entiende una comunidad indígena
solamente como un conjunto de casas con personas,
sino personas con historia, pasada, presente y futura,
que no sólo se pueden definir concretamente,
físicamente, sino también espiritualmente en
relación con la naturaleza toda. Pero lo que
podemos apreciar de la comunidad es lo más visible,
lo tangible, lo fenoménico. (…) [E]l espacio en el cual
las personas realizan acciones de recreación y de
145
transformación de la naturaleza, en tanto que la
relación primera es la de la Tierra con la gente, a
través del trabajo (Díaz, 2007: 39).
Diaz continua: “Para entender cada uno de sus
elementos hay que tener en cuenta ciertas nociones: lo
comunal, lo colectivo, la complementariedad y la integralidad”.
É lá onde “me siento y me paro, (…) la porción de la Tierra que
ocupa la comunidad a la que pertenezco para poder ser yo”.
Talvez este último enunciado seja o que mais se aplica à
noção francesa de terroir. Normalmente associado a vinhos de
qualidade, esse conceito inebria também por outras razões.
Refere-se a porções de terra de alta qualidade “sob a ação de
uma coletividade social congregada por relações familiares e
culturais e por tradições de defesa comum e de solidariedade da
exploração de seus produtos”.4 A porção de terra a que pertenço
para poder ser eu em comunidade expressa elegante e
poeticamente o “espírito” francês. Comunidades inteiras ‒
assim na França como no México ‒ mostram orgulhosas os seus
produtos em feiras pelo país a fora, identificam-se com eles,
respeitam os limites de outras comunidades, tanto em termos
territoriais como de especialização, e são respeitadas por elas. A
noção de terroir denota comunidades identificadas pela sutileza
de sons e aromas que lhes são próprios. 5 Através dela, a
exemplo do México Profundo identificado pelo antropólogo
Guillermo Bonfil Batalla (1990), poderíamos chegar a uma
França Profunda, como poderíamos também desvelar uma
4
Informação recolhida em http://pt.wikipedia.org/wiki/Terroir (acesso em
14/12/2012).
5
Agradeço à socióloga da Universidade de Brasília, Dra. Christiane Girard, por
me ter ensinado o sentido profundo de terroir.
146
América Profunda, congregando todas as suas comunidades
indígenas, com sua espiritualidade e comunalidade. Temos aqui
uma
conjugação
intercultural,
intercivilizacional
e
intertemporal de conceitos afins que parecem falar-se
mutuamente: espírito, comunalidade, lugar. Seriam como
pilares naturais sustentando uma ponte sobre as águas
turbulentas dos desencontros culturais e dos conflitos políticos.
Holismo indígena, holismo ocidental
O conjunto de considerações feitas até aqui sinaliza o
gênio holístico do pensar indígena: relações viscerais com a
coletividade, humana e não humana, com a terra, com a
espiritualidade (imanência, nos termos de Díaz, verdade,
segundo Cajete). Estas características têm sido proverbialmente
atribuídas aos povos indígenas e reconhecidas por eles
próprios. Pergunta-se, então, se elas são exclusivas do mundo
indígena. A resposta parece ser um enfático não. Tanto no
Ocidente antigo como no contemporâneo, encontramos
instigantes semelhanças com o universo cognitivo indígena. Por
exemplo, ramos não positivistas da ciência ocidental, como a
mecânica quântica e a teoria do caos, sugerem que algumas
pontes podem ser estendidas entre eles e o conhecimento
indígena. O imensurável e o imprevisível de certos
experimentos da física contemporânea têm o efeito de
conduzir os pesquisadores a perguntas e inquietações não
muito distantes das que encontramos em textos indígenas.
Em outro registro, há a grande discussão que procura
desmistificar a origem ocidental (leia-se europeia) de grandes
feitos comerciais, políticos, filosóficos e científicos (Abu-
147
Lughod, 1989; Goody, 2008, 2011). Como periferia da Ásia,
principalmente antes da era cristã, a Europa beneficiou-se de
inúmeras descobertas do, por ela chamado, Oriente (à moda
do Orientalismo, de Edward Said).6 “No entanto, essas conquistas
foram constantemente subestimadas na comparação com os
gregos, cuja posição foi sempre vista a partir da perspectiva da
posterior
dominação
europeia
do
mundo,
isto
é,
teleologicamente” (Goody, 2008: 45). Um dos exemplos mais
retumbantes desse “roubo da história” foi a apropriação do zero
inventado pelos árabes e dos algarismos arábicos (advindos da
Índia, apesar do nome). Sem eles, a ciência ocidental teria sido
uma quimera irrealizável, pois sem o zero e com os incômodos
algarismos romanos, dificilmente se comporiam equações
simples e complexas, muito menos computadores. Hoje, esses
vetustos caracteres romanos pouco mais fazem do que adornar
alguns de nossos prefácios. Nem mesmo o decantado
Capitalismo é tão ocidental como se pretende: “as origens da
modernidade e do capitalismo são mais amplas e encontram-se
não apenas no conhecimento árabe, mas também nos
influentes empréstimos da Índia e da China” (Goody, 2011: 11,
tradução minha).
A mesma soberba que nega criatividade ao resto do
mundo também menospreza outras expressões filosóficocientíficas, aplicando-lhes alcunhas como “orientais”, “précapitalistas” ou “primitivas”. No entanto, como pensava a
Europa antes de se tornar hegemônica no Velho Mundo? O
filósofo alemão Paul Feyerabend (1975) ajuda-nos a entender,
traçando uma história do pensamento ocidental que ele divide
6
Ver a discussão de Edward Said (1979) sobre a invenção do Oriente pela
Europa.
148
em Cosmologia A (“arcaica”) e Cosmologia B (“racional”). Ao
propor uma “epistemologia anarquista”, Feyerabend rejeita o
racionalismo da ciência convencional e afirma que a
proliferação de teorias é benéfica apenas para a própria ciência.
Crítico severo da racionalidade dogmática de certas vertentes
científicas, ele busca elementos em ciências humanas como a
linguística e a antropologia, em figuras como Benjamin Whorf,
Evans-Pritchard e Robin Horton, para refutar a omnisciência e
a eficácia social da academia.
Ao descrever as características da Cosmologia A vigente
na Antiguidade Clássica, Feyerabend refere-se ao que chama de
“agregado paratático”, ou seja, o conjunto de recursos para
adquirir e transmitir conhecimento que privilegia o real, o
palpável, o visível, o imediatamente apreendido pelos sentidos
e a relação entre elementos. Um exemplo é a maneira pictórica
ateniense de representar um homem vivo e um homem morto.
Sendo exatamente a mesma figura, é possível determinar o seu
estado pela relação que a figura tem com os elementos que a
rodeiam. O vivo está em posição vertical, o morto, na
horizontal. O artista arcaico, diz ele,
trata a superfície sobre a qual pinta como um
escritor trata um pedaço de papiro; é uma superfície
real, para ser vista como uma superfície real (…) e as
marcas que ele desenha são comparáveis às linhas de
um desenho ou às letras de uma palavra. São
símbolos que informam o leitor sobre a estrutura do
objeto, de suas partes, da maneira como elas se
relacionam entre si (Feyerabend, 1975: 262, ênfase
no original; tradução minha).
149
A partir dos séculos VII e V (ainda somos fiéis aos
algarismos romanos) antes de Cristo, dá-se uma transformação
drástica que afetará o futuro da ciência e da percepção
ocidentais. Surge a perspectiva na pintura e a separação entre
essência e aparência, entre sabedoria e conhecimento
verdadeiro. Diversamente do “arcaico”, o novo artista, usando a
perspectiva, “toma a superfície e as marcas que põe sobre ela
como estímulos que deflagram a ilusão de um arranjo de objetos
tridimensionais”. Feyerabend prossegue:
o conceito de objeto mudou de um conceito de
agregado
de
partes
perceptíveis
de
igual
importância para o conceito de uma essência
imperceptível subjacente a uma multiplicidade de
fenômenos enganadores (Feyerabend, 1975: 264,
tradução minha).
O mais vistoso espécime moderno dessa Cosmologia B
talvez seja Magritte, que pintou um cachimbo e,
sardonicamente, deu-lhe o famoso título: “Isto não é um
cachimbo”, ao qual Michel Foucault acrescenta: “En ninguna
parte hay pipa alguna”! (Foucault, 1981: 43). Ou seja, não há que
confundir a representação com o objeto representado.
Ao criticar os rumos da racionalidade positiva da ciência
moderna, Feyerabend emula o trabalho antropológico por sua
capacidade de revelar sistemas de conhecimento alternativos e
mais compatíveis com a compreensão do mundo, e lamenta
que a academia moderna rechace em tom azedo a possibilidade
de atribuir status de ciência às formas não ocidentais de
conhecimento, especialmente, dos povos indígenas. Ao fim e ao
cabo, diz Feyerabend, o que fica de tanta racionalização não são
métodos nem teorias, mas
150
juízos estéticos, juízos de gosto, preconceitos
metafísicos, desejos religiosos, em suma, o que fica
são nossos desejos subjetivos: a ciência em seu grau
mais geral e avançado devolve ao indivíduo uma
liberdade que ele parece perder ao entrar em suas
partes mais pedestres (Feyerabend, 1975: 285,
tradução minha).
Ou seja, a pequena ciência reprime, a alta ciência liberta.
Vozes indígenas no ecúmeno antropológico
Apontar as grandes diferenças entre os modos de
conhecer e de propagar conhecimento entre povos indígenas e
ocidentais não traz novidade, pois é a forma antropológica
privilegiada de fomentar o relativismo cultural e o respeito pelo
diverso. O que surpreende é constatar os pontos de
convergência entre eles. Na história da humanidade, discernese uma clara bifurcação de modelos de conhecimento, tendo-se
assumido que uma linha, a ocidental, produziu de maneira
linear e única uma ciência calcada na racionalidade, na
abstração, se se quiser, no positivismo, e outra, a não ocidental,
levou ao misticismo, ao holismo, à experiência imediata, se se
preferir, à pensée sauvage. No entanto, nem só de racionalismo
viveu e vive o conhecimento do Ocidente.
Ainda evocando Feyerabend, não é demais relembrar
que não haveria pensamento domesticado, ou seja, ciência, nem
alta nem baixa, se não fosse a criatividade da pensée sauvage. “Em
todos os tempos o ser humano abordou o seu meio circundante
com os sentidos bem abertos e uma inteligência fértil; em todos
151
os tempos fez descobertas incríveis; em todos os tempos
podemos aprender com suas ideias” (Feyerabend, 1975: 307).
Que ideias são essas? É uma longa lista:
Tribos primitivas têm classificações mais detalhadas
de animais e plantas do que a zoologia e a botânica
científicas contemporâneas, conhecem remédios
cuja eficácia pasma os médicos (…), resolvem
problemas difíceis de maneiras que ainda não são
bem compreendidas (construção de pirâmides,
navegação polinésia), tiveram uma astronomia
altamente
desenvolvida
e
conhecida
internacionalmente na velha Idade da Pedra,
astronomia
essa
que
era
factualmente
adequada e emocionalmente satisfatória, resolvia
problemas físicos e sociais (…), era testada por meios
simples e engenhosos (…). Houve a domesticação de
animais, a invenção da agricultura rotativa, novos
tipos de plantas foram criados e mantidos em estado
puro para evitar a cross-fertilização, temos
invenções
químicas,
temos
a
arte
mais
extraordinária comparável às melhores realizações
atuais (Feyerabend, 1975: 306-307; ênfase no
original).
Da pena de um físico contemporâneo, tais feitos
adquirem uma potência ainda maior, talvez pela própria
surpresa do autor, que já não é mais a nossa, da antropologia,
habituados que somos a nos surpreender a cada pesquisa
consumada.Ao ponderar sobre tudo isso, não é implausível
vislumbrar uma espécie de metaciência que englobasse todas as
manifestações do saber, acadêmicas ou não, ocidentais ou não,
racionais ou não, conhecidas e por conhecer. Seria algo como
uma cacofonia disciplinada ou, melhor dito, uma multiglossia
152
subjacente a toda e qualquer forma de conhecimento humano,
potencialmente compartilhada, ainda que, muitas vezes,
renegada. De fato, foi sobre essa resistência que se fundou a
ciência moderna. A ascensão do racionalismo na Grécia Antiga,
afirma Feyerabend (1987: 65), “é um exemplo fascinante da
tentativa de transcender, desvalorizar e descartar formas
complexas de pensamento e experiência”. Tais formas
compreendiam
ontologias sutilmente articuladas que incluíam
espíritos, batalhas, ideias, deuses, arco-íris, dores,
minérios, planetas, animais, festividades, justiça,
destino, doença, divórcios, o céu, a morte, o medo ‒
e assim por diante. Cada entidade se comporta de
maneira complexa e própria que, embora seguindo
um padrão, revela constantemente novos e
surpreendentes elementos e, portanto, não podem
ser capturados numa fórmula (Feyerabend, 1987:
64).
Tal é a complexidade e riqueza que o estreito
racionalismo científico abandona por não ser “científico”.
Conclui-se de tudo isto que as proverbiais diferenças
entre o pensamento indígena e o científico ocidental não são
tão grandes assim e que um acoplamento antropológico, em vez
de resultar em algum híbrido estéril, levaria a um novo patamar
de conhecimento e compreensão. Tal conclusão desautoriza a
distinção levi-straussiana entre pensamento silvestre e
pensamento domesticado, pois não há pensamento que não
seja, sempre já, produto de uma fina domesticação.
A antropologia seria sábia se seduzisse a intelectualidade
indígena a engrossar suas fileiras, de modo a empreender um
153
programa de revitalização, injetando teorias, problemáticas,
abordagens e sensibilidades novas numa disciplina que já se vê
a caminho da decrepitude. Resta saber se tal proposta de
revitalização atrai o interesse dos indígenas, se eles estão
dispostos a dar ainda mais de si, depois de passarem meio
milênio fazendo, exatamente, isso: sobrevivência e renovação,
numa infinidade de experimentos em resiliência e
domesticação da virulência invasora, em face desse flagelo
vindo do Velho Mundo que os assolou em tempos de conquista
que, por sinal, ainda não acabaram.
Levemos
essa
ideia
às
últimas
consequências.
Perguntemo-nos se o resultado dessa conjunção de saberes, ou
ecúmeno antropológico, não tornaria desnecessária a própria
antropologia como a conhecemos hoje. Uma antropologia
totalmente ecumênica não seria, afinal, uma contradição em
termos? Ou seria uma dimensão pós-antropológica de
conhecimentos entrecruzados? Construir pontes de significado
atravessando inúmeras áreas de cognição e emotividade talvez
torne dispensável manter uma disciplina que surgiu,
precisamente, por falta dessas e de outras pontes. Tendo
cumprido seu desígnio, a velha antropologia poderia ter um
desfecho digno de Missão Impossível. Ou, pondo em prática sua
densa, embora curta vida, ela ainda pode se transformar ou se
transportar para uma nova dimensão, já livre da falácia dos
sujeitos pensantes e objetos pensáveis.
Acabamento: como a antropologia pode ser escrita
Uma boa costureira termina uma peça de roupa com tal
esmero que mal se distingue o direito do avesso. É o segredo
154
da haute couture. Na escrita, ao se chegar ao fim de um texto, é
preciso arrematá-lo, como faz a costureira. É o momento das
conclusões, considerações finais, epílogo, coda, ou o que se
queira chamar. É aí que a peça recebe o acabamento, os ajustes,
os esclarecimentos e talvez o sempre almejado convencimento
dos leitores. Tarefa difícil e delicada, ela é pouco ou nada
explorada na antropologia e, muitas vezes, perde-se numa
reprodução ociosa do que já foi exposto acima.
Podemos, no entanto, buscar inspiração em outros meios
que nos falam pelo olho, no caso das artes visuais, ou pelo
ouvido, como na música. Por sua vez, o que podem fazer as
palavras? Por exemplo, qual seria o equivalente escrito da cena
final de Tempos Modernos ou de 2001? Ou dos últimos acordes da
Tocata e fuga, de Bach? Como dar à palavra o mesmo poder de
remexer no âmago do leitor? Sim, a literatura faz isso
continuamente. Mas, e a nossa antropologia, que viaja pelo
mundo, convive com sons, imagens, sabores, dores e
deslumbramentos tão diversos? Não é capaz de expressar essas
sensibilidades, usando a mesma linguagem dos literatos? Se não
é capaz, por que não é? O que a tolhe? Que formação cruel a
deixou tão entrevada, incapaz de transmitir a riqueza de outras
gentes e inebriar leitores e, ao invés de inspirar, sufoca
estudantes com etnografias feitas de argamassas indigestas de
dados?
No entanto, tivemos excelentes professores na fase talvez
mais heroica da disciplina: Malinowski, Evans-Pritchard,
Maurice Leenhardt… Parece que, ao se disciplinar, ela perdeu o
encanto
e
o
encantamento.
Departamentalizou-se,
burocratizou-se, afastou-se dos focos de criatividade, caiu, em
suma, na enfadonha vala comum da ciência normal, no dizer
de Thomas Kuhn.
155
Para regozijo de uns e desespero de outros, a antropologia,
oxalá, não será mais a mesma. Como já vimos, um dos recursos
mais promissores para se chegar a um futuro revigorado e
digno da disciplina é a adesão de antropólogos indígenas ao
cenário acadêmico, onde ela mesma foi gestada durante mais
de século. Nasce do mal-entendido – para dar o benefício da
dúvida – dos nossos antepassados e até mesmo de alguns
contemporâneos, de que os “nativos” só são bons para ser
estudados. Porém, de tanto se exporem a antropólogos
abelhudos, perceberam, apesar destes, que há mérito na
antropologia como campo de saber. Como o camelo bíblico que
é capaz de passar pelo buraco de uma agulha, os indígenas, de
objetos de pesquisa, brutos diamantes, passam a sujeitos da ação
antropológica com uma agilidade e flexibilidade invejáveis. O
que me leva a concluir que a antropologia é muito maior do que
a soma de seus praticantes e até pode sobreviver a eles.
São os indígenas antropólogos — ou antropólogos
indígenas — que permitem a esta costureira de textos dar o
acabamento às ideias de tal modo que a diferença entre o direito
e o avesso da escrita antropológica seja sumariamente
obliterada. Na crescente produção publicada por indígenas,
antropólogos ou não, o que primeiramente salta aos olhos é a
preferência por certos estilos e campos de expressão da língua
portuguesa que mais se coadunam com a sensibilidade
indígena. Vemos textos de poesia e vemos textos do que em
inglês se chama story telling, narrativas que aproximam o
escritor do leitor. No entanto, tenho plena consciência de que
um mundo de significados fica fora do nosso alcance, mesmo
quando escritos por escritores indígenas, pelo inevitável efeito
redutor da tradução, principalmente, de ideias e sensações.
Volto a Julie Dorrico, nascida Macuxi na fronteira do Brasil com
156
a Guiana, que resolveu suas dúvidas linguísticas com muito
humor:
[Minha mãe] decidiu … que minha língua não seria nem
o macuxi, como
de minha ancestral,
nem o inglês dos britânicos,
mas o português.
Eu não quis não.
Então resolvi criar a minha própria.
Como não posso fugir do verbo que me formou,
Juntei mais duas línguas para contar uma história:
O inglexi e o macuxês.
Na apresentação do livro do Dr. Justino Sarmento, o
antropólogo Luis Cayón, ferrenho tukanólogo, exalta os
méritos das autoetnografias indígenas:
Além de me transportar até muitas memórias
especiais dos meus trabalhos de campo, avanço a
leitura enquanto a pluma de Justino Sarmento
Rezende consegue fazer reverberar na minha mente
cantos em tuyuka e tukano que nunca ouvi.
Continuam explicações muito detalhadas e
profundas sobre xamanismo, ritual, vida social e
transformações atuais que nunca antes vislumbrara:
são verdadeiras revelações! Sinto que estou
entendendo algo a mais, mas não é apenas com o
intelecto. Estou comovido com os sentimentos à flor
da pele. Atordoado, me pergunto: Que poder é esse!?
(Cayón, 2023: 13).
É o direito-avesso, num todo integrado, à moda
do sentipensar de Eduardo Galeano, impregnando a consciência
157
etnográfica. É a sensibilidade indígena a serviço da
compreensão antropológica. É a antropologia que nos promete
o século XXI.
158
Pulp fictions del indigenismo
[2004]
Un orientalismo americano
Este análisis forma parte de un proyecto más amplio, cuyo
objetivo principal es comprender a la nación brasileña a través
de las representaciones que ha hecho de sus indios en los
últimos 500 años. La multiplicidad de estas representaciones y
de sus autores hace del estudio del indigenismo una empresa
muy compleja y aparentemente infinita, porque adonde
vayamos nos topamos con sus manifestaciones. Están, por
ejemplo, hechos de gran impacto como la legislación que
declara a los indios como “relativamente incapacitados” o, en
los comentarios cotidianos, simples, aparentemente sin
consecuencia, como el de un taxista urbano confesando que su
abuela indígena había sido "cazada con un lazo”. En resumen, lo
que escriben y publican los medios, lo que crean los novelistas,
lo que revelan los misioneros, lo que defienden los activistas de
derechos humanos, lo que analizan los antropólogos sobre los
indios ‒ y los indios niegan o corroboran ‒ constituye un
edificio ideológico que tiene “la cuestión de los indios' como
pilar” (Ramos, 1998: 6), Parece ser inagotable la capacidad
caleidoscópica del país para producir nuevos diseños
interétnicos sobre una estructura profunda y duradera. Entre
los componentes de ese caleidoscopio está la práctica difundida
de la esencialización, tanto por parte de la población
159
mayoritaria como de los propios indios. El concepto de cultura,
sea en sus manifestaciones locales o como un molde genérico
de indianidad (o “indigenidad”, como en Bowen, 2000: 13),
tiene una amplia circulación en los dominios del indigenismo.
Seleccioné cuatro contextos en los cuales el proceso de
naturalización de los indios y la esencialización de su “cultura”
‒ en singular ‒ son especialmente evidentes, ofreciendo un
marco adecuado para discutir las implicaciones teóricas y
políticas de estos procesos. Los ejemplos esbozados abajo están
tomados de la vida civil de Brasil, algunos cotidianos, otros más
excepcionales, donde indios y no indios se encuentran en
relaciones capilares cuyo contenido raramente se explicita.
Lo que ocurre en las grietas de la racionalidad occidental
es revelador de las formas en las que la otredad se construye y
se vive. Las farsas, los misticismos desenfrenados y los rituales
equivocados que se consideran aquí son ejemplos de
fenómenos de la tensión generada por la atracción y repulsión
de los opuestos, que se desarrollan en los márgenes de la lógica
occidental y, por esta razón, claramente revelan facetas
inesperadas de las relaciones interétnicas que las convenciones
formales intencionalmente esconden. En este sentido, la parte
“ficticia” de la interetnicidad es otro de los ladrillos que
construyen el extraordinario edificio ideológico del
indigenismo. El material escogido evoca los fenómenos
inconscientes, subterráneos, asociados con los actos fallidos
freudianos (cuando uno dice X queriendo significar Y).
Manifiestas en las colectividades más que en los individuos, esas
expresiones de lo “no dicho” nacional tienen un inmenso
potencial para revelar lo que de otra forma podría pasar como
meros faits divers, curiosidades o “infelicidades” de lo exótico
(Mason, 1998).
160
Episodio I
El material utilizado aquí fue extraído de alrededor de
veinte artículos de diarios desde 1988 a 1996, Muestran
fotografías de personas famosas en Brasil siendo “coronadas”
con atuendos de plumas por hombres y mujeres indígenas.
Entre las celebridades están los jugadores de fútbol Romario y
Ronaldo, la ex primera dama Ruth Correa Leite Cardoso, el ex
presidente Fernando Collor de Mello, Luiz Inácio Lula da Silva
(entonces candidato a presidente) y una cantidad de ministros,
gobernadores y legisladores. En las décadas de 1980 y 1990,
prácticamente cualquiera que aspirara a ser alguien en Brasil
debía ser fotografiado recibiendo o esquivando una corona
india. Tanta atención pública dispensada a un objeto indígena
debe su reputación a que se dice que la corona trae mala suerte
a sus portadores no indios. Con la corona se asocian las plumas
de papagayo, siendo el papagayo un “mal agüero en la creencia
popular”, de acuerdo con la presentadora de noticias de la
televisión (Marcia Peltier Pesquisa, Rede Manchete, 23 de
diciembre de 1997). Los medios masivos de comunicación
pueden no haber creado estas creencias, pero ciertamente las
ampliaron, particularmente en los picos de la efervescencia
política. Sin querer correr el riesgo, figuras públicas, como el ex
presidente José Sarney, admiten su miedo y nunca permitieron
que les colocarán una de esas coronas en la cabeza. Algunos
indios y simpatizantes de los indios rechazan todo esto como
superstición de “hombres blancos” ‒ “los blancos siempre
mezclan todo”, dijo el líder Shavante Mário Juruna (Correio
Braziliense, 12 de junio de 1988: 5) ‒ y respondieron a la
superstición diciendo que es el propio “blanco” el mal augurio
para los indios (Correio Braziliense, 26 de septiembre de 1988: 8).
161
El legislador pro-indio Tadeo França repudió la creencia y
agregó una posible explicación: “A lo largo de la historia los
indios se han convertido en especialistas en el arte de perder.
Quizá por esta razón, en el inconsciente de los “blancos”, la
corona de plumas representa el sufrimiento de una raza en
extinción y los blancos temen un destino similar” (Correio
Braziliense, 12 de junio de 1988: 5).
De todas maneras, esto no disuadió a muchos indios de
continuar con esa nueva tradición interétnica. Al contrario, ellos
se muestran perfectamente dispuestos, de hecho, ansiosos de
jugar el juego de la “maldición de la corona”. Abonando la
creencia, una lista de infortunios que han acosado a famosos se
cita como evidencia de los poderes ocultos del artefacto y, por
extensión, de los propios indios: Tancredo Neves, nombrado
presidente en 1985, murió de septicemia justo antes de asumir
el cargo; Fernando Collor de Mello, electo presidente en 1989,
fue depuesto dos años después de asumir; Ulysses Guimarães,
un influyente legislador, desapareció en el mar en un accidente
de helicóptero el día del aniversario del Descubrimiento de
América en 1992; Luiz Inácio Lula da Silva, en ese entonces
varias veces candidato a presidente, nunca fue electo. 1 En 1995,
una caricatura muestra a Luiz Eduardo Magalhães, entonces
presidente de la Cámara de Diputados, vistiendo un collar
indígena mientras rechaza la corona. Dice la leyenda: “Luiz
Eduardo Magalhães [...] hizo todo lo que pudo para evitar que
un grupo de indios le ponga la corona en la cabeza. Según el
folclore político, da mala suerte”. (Folha de São Paulo, 8 de abril
de 1995, sec. 1, p, 4). Político prometedor entrando en los 40
años, Magalhães murió al sufrir un ataque cardíaco tres años
1
Hasta el momento de la primera redacción de este artículo.
162
después. Incluso la estatua de la Justicia que está frente a la Corte
Suprema en Brasilia fue coronada por indios durante una
protesta por la demarcación de sus tierras en 1996 (Ramos, 1998:
262). Nada le ha ocurrido a la estatua, pero sigue tan ciega como
siempre.
La profecía autocumplida de la creencia popular en los
poderes ocultos de los indios, que recuerda los miasmas
históricos de Putumayo descriptos por Taussig (1987), no se
limita al destino de personalidades públicas, sino que se
extiende a sus trabajos también. Veamos un ejemplo de Brasilia.
Episodio 2
En la década de 1980, el Banco do Brasil proporcionó
fondos para la construcción de un edificio monumental que
serviría como Museo Nacional del Indio, localizado en Brasilia,
sede del Distrito Federal y capital de la Nación. Oscar
Niemeyer, el famoso arquitecto que construyó Brasilia y una
cantidad de edificios modernistas en todo el mundo, fue
elegido para este trabajo. Se inspiró en las casas redondas
tradicionales de muchos indígenas y, transformando la paja en
cemento, erigió el monumento en el lugar apropiado, conocido
como Eje Monumental. Pero, al contemplar su propia
realización, e incluso antes de terminarla, Niemeyer concluyó
que la construcción era demasiado grande y bella pura los
indios. Junto con el gobernador del Distrito Federal, Niemeyer
proclamó su obra maestra futura sede del Museo de Arte
Moderno. Dirigiéndose a los indios, el gobernador justificó el
cambio diciendo que “los indios no quieren ser objeto de
contemplación folclórica, sino de estudio y respeto por parte de
163
la comunidad [o sea, de la sociedad mayoritaria]” (Correio
Braziliense, 5 de junio de 1988: 39). El premio consuelo para los
indios sería la construcción de su museo en el campus de la
Universidad de Brasilia, “para el mejor conocimiento de los
estudiantes de antropología” (Cunha, 1988: 3). El momento era
sugerente, porque la nueva Constitución acababa de ser
aprobada y los indios estaban en la ciudad celebrando sus
modestas victorias. Una noticia describe la ocasión.
Las naciones indígenas interrumpieron
las
conmemoraciones de sus triunfos en la Constitución
para registrar una pérdida. El Museo de los Indios de
Brasilia, que debía ser inaugurado el 15, se
transformará en el Museo de Arte Moderno, por
sugerencia del arquitecto Oscar Niemeyer, apoyado
por el gobernador del Distrito Federal, José
Aparecido de Oliveira (Jornal do Brasil, 6 de junio de
1988).
La reacción inicial de algunos indios fue, de cierta forma,
fatalista. El mismo diario agrega:
El Chamán Prepori Kajabi, que hizo el ritual
chamánico en el Congreso Nacional para asegurarse
que los derechos indígenas fueran reconocidos en la
Constitución, repitió el ritual este fin de semana
frente al Museo del Indio inacabado y concluyó: “el
museo es algo de los hombres blancos y los indios
no deben pelear por algo que siempre fue de los
blancos” (Jornal do Brasil, 6 de junio de 1988).
164
Pero después vino la maldición indígena sobre la fantasía
de cemento de Niemeyer. Como dijo un simpatizante de los
indios consternado:
Muchos artistas juraron nunca poner un pie en el
MAM (Museo de Arte Moderno) o exhibir sus obras
en su acervo, porque la maldición lanzada sobre él
por los indios Preporé y Sapain, cuando evocaron el
Espíritu de las Aguas, es una amenaza permanente
para creyentes y no creyentes, todavía no deshecha
(Fonteles, 1989: 6).
Diez años después, ninguna obra de arte significativa, en
cantidad o calidad había sido llevada al museo, que estaba
decayendo rápidamente por las lluvias despiadadas de la
estación lluviosa de Brasilia. En las extensiones verdes de la
capital federal se veía el delirio de Niemeyer, una semi-ruina
hechizada que era al mismo tiempo un monumento que
ofendía a la vista y un testigo ocular de otro acto más de falta de
respeto oficial a los indios brasileños. Recientemente, en un
acto de deliberada distracción, el gobierno revirtió su decisión
y le dio el museo abandonado a los indios.
Hasta aquí vimos cómo la imaginería interétnica se
construye y naturaliza en los límites de un país específico. Sin
embargo, lo que ocurre en Brasil no es muy diferente de las
variantes blancas, anglosajonas y protestantes sobre el tema de
los indios o las variantes de los Apaches del Oeste sobre los
“Blancos” que Basso (1979), Stedman (1982), Strong (1996) y los
autores de la colección sugestivamente titulada Dressing in
Feathers (Vistiendo de Plumas) (Bird, 1996) describen en los
Estados Unidos. Pero el proceso de esencialización no está
confinado al Estado-nación. También hay una multitud de
165
prodigios indígenas mediáticamente atractivos, dirigidos a
públicos internacionales. Los siguientes episodios, aunque
comparten hechos y protagonistas, tienen diferentes agendas,
mensajes y resultados. Ambos ocurrieron en Brasil, pero parte
de su importancia tuvo que ver con la presencia masiva de
extranjeros. Mi asunto principal no será la importancia
institucional y las consecuencias de estos eventos, sino que me
limitaré a los aspectos directamente relevantes para la cuestión
del esencialismo.
Episodio 3
En junio de 1989, el viejo pueblo de Altamira, en el estado
norteño de Pará, tuvo sus cinco días de fama. La ocasión fue una
enorme reunión convocada por miembros de nueve
comunidades Kayapó para protestar contra los planes del
gobierno brasileño de construir una serie de centrales
hidroeléctricas a lo largo del río Xingú. El megaproyecto
amenazaba inundar las tierras de once pueblos indígenas.
Representantes de 24 grupos indígenas, funcionarios del
gobierno, 300 ambientalistas, miembros de organizaciones no
gubernamentales, la Iglesia Católica, antropólogos y otras
personas pro-indios se congregaron en la humilde Altamira. En
total, alrededor de 3000 personas asistieron a la gigantesca
asamblea en las afueras de la ciudad. A su vez, una parte de la
mayoría de la población que estaba a favor de la represa
desfilaba montada a caballo, aumentando el nerviosismo que
normalmente domina las relaciones interétnicas en la región. El
primer día, 20 de junio, había alrededor de 100 periodistas de
166
Brasil y del exterior. El último día, 24 de junio, sólo la prensa
extranjera sumaba más de 150 personas.
Paralelamente a los eventos políticos principales, que
incluían a líderes indios y a funcionarios del gobierno,
personalidades del mundo del espectáculo ‒ como el rock star
inglés Sting y el cantante brasileño Milton Nascimento ‒ le
agregaban emoción a la atmósfera ya electrizada. Intentando
mezclarse miméticamente con los hombres y mujeres
indígenas vestidos con ropas ceremoniales, grupos de mujeres
jóvenes en éxtasis hablando una variedad de lenguas europeas,
vestidas en mínimos trajes tropicales, con pintura en la cara y el
cuerpo, bailaban y sonreían a las cámaras en estado de gracia,
como si vivieran alguna energizante fantasía New Age
(O'Connor, 1993).
Algunas escenas fuertes fueron registradas en palabras e
imágenes y tuvieron amplia circulación. La que más
impresionó al público mostraba una mujer Kayapó de mediana
edad agitando un machete que tocó las mejillas del director de
la empresa de energía del Estado. Capturado desde varios
ángulos, su gesto dio la vuelta al mundo y fascinó a los
telespectadores. Insensibles a las realidades etnográficas,
algunos incluso sugirieron que fuera elegida la Mujer del Año
por su coraje al desafiar a un hombre poderoso, Eso, sin
embargo, tiene más que ver con la cultura que con el coraje:
El primer Encuentro de Naciones Indígenas de
Xingú obtuvo una dimensión dramática la mañana
del 21 cuando la india Kayapó, Tuira, emergió del
público y puso su machete en la cara del director de
Electronorte, José Antônio Muniz Lopes, quien
estaba tratando de justificar la construcción de la
represa de Kararaô. El director de Electronorte y el
167
representante del Gobierno Federal, Fernando
Cézar Mesquita, se pusieron pálidos en el momento
en que el machete cortó el aire a algunos
centímetros de la cara de Muniz Lopes. El líder
Paulinho Paiakan inmediatamente explicó que no
era un gesto de guerra, sino simplemente un gesto
ritual por medio del cual una mujer Kayapó expresa
su indignación (Centro de Documentação e
Informação-CEDI, 1991: 335).
Igualmente espectacular fue la llegada de Paiakan, el
principal promotor del evento:
Cien periodistas brasileños y extranjeros observaban
la majestuosa llegada del líder índio. Paiakan
descendió de la aeronave Bandeirante vestido de
shorts y con una corona de plumas, adornado con la
pintura ritual y exhibiendo la cicatriz de su
abdomen (de una reciente cirugía de apendicitis).
Comenzó a llorar cuando pisó el suelo. Varios de los
guerreros que lo protegían de la histeria de los
periodistas también lloraron. Protegido por líderes
de las once comunidades Kayapó que fueron a su
encuentro, el líder lentamente cruzó las barreras de
los guerreros, saludando a sus conocidos. La escena
dejó a los extranjeros hechizados (CEDI, 1991: 331).
Es
importante
mencionar,
para
esclarecimiento
etnográfico, que el llanto ritual es parte de las ceremonias de
llegada en muchas sociedades indígenas del Brasil Central
(véase, por ejemplo, Wagley, 1977).
Otro incidente importante ocurrió cuando el director de
Electronorte anunció que no más se le daría el nombre de
168
Kararaô a la represa, porque era una agresión a la cultura
Kayapó.
Paiakan escuchó atentamente su promesa de
cambiar el nombre y de no usar nombres indígenas
en sus hidroeléctricas. Después [Paiakan] les pidió a
los guerreros que le mostraran lo que significaba
Kararaô. Un grupo de guerreros se levantó y en
medio del estadio comenzó a cantar furiosamente y
a representar una danza de guerra (CEDI, 1991: 335).
La apoteótica sesión de cierre tuvo a un líder Kayapó
mostrando una copia de la Constitución Brasileña, al cantante
Milton Nascimento saludando a los indios y a Benedita da Silva,
popular miembro del Congreso, afrobrasileña, vistiendo una
corona de plumas. Los periodistas extranjeros que cubrían el
evento “parecían en trance” (CEDI, 1991: 335).
Con sus múltiples funciones, la reunión puso de relieve el
fenómeno de un mercado internacional de exotismo,
manifiesto en la interrelación entre consumidores no indígenas
y productores indígenas de recursos culturales como
mercancías. Mostró las dos caras de la misma moneda: por un
lado, un ávido público blanco, cuya proximidad con los indios
“reales” sirvió como inspiración para sus búsquedas místicas o
simplemente como emoción barata; por otro lado, los
igualmente ávidos indios “reales”, convirtiendo su capital
cultural en una fuerza política contra políticas estatales
indeseables. Ambos lados reforzaban los deseos del otro,
ostentando sus egos actuados frente a las fascinadas cámaras de
los medios.
El evento de Altamira es uno de esos fenómenos que, al
desplegar sus complejidades, hacen del análisis social un deleite
169
y un desafío. Podemos atrevernos a llamarlo hecho social total
de políticas interétnicas. Porque ahí encontramos, del lado no
indio, a Altamira exponiendo los mensajes ambiguos
recurrentes: los indios como obstáculos para el desarrollo que
deben ser combatidos o persuadidos para dar lugar al progreso,
y los indios como guardianes de la naturaleza y víctimas
virtuosas de la civilización, como culturas modelos para un
Occidente más esclarecido.
De parte de los indios, vemos la instrumentalización
intensa de sus primordialidades culturales, su aguda sagacidad
política y su tremenda capacidad de organización, Por ejemplo,
no fue por casualidad que los Kayapó eligieron el final de junio
para realizar el evento. Como explica Terence Turner (1991a),
el encuentro de Altamira estaba planeado para coincidir con la
fase final de la fiesta asociada a la cosecha de nuevo maíz, la
ceremonia más importante en la que participan las aldeas
indígenas. Los habitantes de las aldeas Kayapó, habiendo
llevado a cabo las dos primeras fases del ritual, estaban ansiosos
por encontrarse en Altamira, como hubieran hecho en sus
hogares. Esa fue la forma astuta que los organizadores
encontraron para motivar a tantos indios, la mayoría de ellos
monolingües, para ir todos juntos a una serie de eventos
políticos que de otra manera no hubieran captado su interés.
Por otro lado, la experiencia que líderes como Paiakan tenían
de sus contactos previos con agencias multilaterales, como el
Banco Mundial y las varias ONG de Brasil y del extranjero, se
convirtió en ayuda financiera para llevar a cabo el encuentro.
Personalidad bien vista entre los ambientalistas, Paiakan se hizo
conocido como conservacionista preocupado por el futuro de
la selva. Después de Altamira fue condecorado con el premio de
las Naciones Unidas Global 500, el premio de la Sociedad para
170
un Mundo Mejor y fue tema de tapa de un número de la revista
Parade en 1992, bajo el título “Un hombre que podría salvar al
mundo”. La ironía de esto es que Paiakan era uno de los Kayapó
que acumuló una fortuna sustancial con la venta de madera y
las regalías de garimpeiros de oro que estaban en su reserva. En
el último episodio veremos una reversión dramática en la
fortuna de Paiakan, Un año era un héroe, al año siguiente un
monstruo.
Episodio 4
En 1992, la Conferencia de las Naciones Unidas sobre
Medio Ambiente y Desarrollo, conocida también como la
Cumbre de Río, congregó un número significativo de
representantes indígenas de muchos países. En un campamento
improvisado junto a la Bahía de Guanabara, organizaron el
Forum Global, una serie de eventos independientes de los
debates oficiales que se llevaron a cabo en un hotel elegante de
una zona cara de Río de Janeiro. Como en el caso de Altamira,
los indios, ahora de todo el mundo, atrajeron la atención de
seguidores fascinados, multitud de periodistas y del público en
general, y le robaron el show a la contraparte oficial. Lo que me
interesa aquí, sin embargo, no es la Cumbre en sí, sino un hecho
que tuvo lugar a miles de kilómetros, en la Amazonia, y que
tuvo fuerte eco en Río de Janeiro.
El segundo día de la Cumbre, mientras esperaban a
Paiakan en el Forum Global, las noticias decían que él había
violado a una chica no india durante una parranda en su rancho
cerca de la ciudad de Redención, adyacente a la reserva Kayapó.
El caso fue rápidamente tragado por una ola sensacionalista que
171
duró meses. Acusaciones de salvajismo y canibalismo se le
imputaban a Paiakan y a su mujer, de quien se decía que le había
infligido severos daños corporales a la chica. Paiakan fue objeto
de bromas pornográficas y su nombre estuvo en la boca de
todos. Veja, una de las revistas brasileñas de más amplia
circulación, colocó en la portada una fotografía ampliada de la
cara de Paiakan, El titular decía: “El salvaje: el líder y símbolo de
la pureza ambiental tortura y viola a una estudiante blanca, y
luego huye a su tribu” (10 de junio de 1992). Veja y la mayoría
de los diarios no tuvieron escrúpulos en condenar a Paiakan
antes del juicio. Fue declarado culpable hasta que se probara su
inocencia. El caso levantó una polémica mayor relacionada a la
imputabilidad de Paiakan. Como indio, sería legalmente
juzgado como “relativamente incapacitado”, porque la ley
considera que los indígenas no están preparados social y
culturalmente para operar en la sociedad nacional como
ciudadanos normales. Por lo tanto, están oficialmente
amparados por el Estado. Mientras su esposa, que no habla
portugués, fue considerada incuestionablemente “primitiva”
(Ramos, 1988: 54-55), las opiniones sobre Paiakan se dividían.
Algunos le adjudicaban la responsabilidad plena porque estaba
de hecho emancipado de su estatus especial indígena, después
de todo, era un indio rico que tenía un rancho y un auto. Otros
mantenían que, como indio, no podía haber hecho otra cosa.
Por un lado, aunque sabía lo que estaba haciendo, estaba siendo
llevado por su “instinto salvaje”, como fue planteado por Veja;
por el otro, era un ejemplo irrecuperable de la ineptitud de los
indígenas para la vida cívica. En cualquier caso, la opinión
pública lo despojó de su humanidad. Entre los argumentos a
favor y en contra de la inimputabilidad de Paiakan, estaba la
declaración de un abogado de la Fundación Nacional del Indio
172
(FUNAD, de que sólo “un informe antropológico mostrando
que Paiakan era un indio integrado a la civilización podría
hacerlo pasible de ser procesado penalmente” (Ramos, 1998: 54).
Esto puede ser sorprendente viniendo de un abogado, pues esta
afirmación no tiene fundamento, considerando que los indios
son tan imputables como cualquier brasileño en relación a la
responsabilidad penal (Carneiro da Cunha, 1992).
Paiakan fue absuelto en 1994 por insuficiente evidencia.
Pero un nuevo juicio en 1999 lo condenó a seis años de prisión.
Después
de
este
juicio
sus
abogados
buscaron
desesperadamente a un experto antropólogo que estuviera
dispuesto a declarar la incapacidad civil de Paiakan. Desde sus
puntos de vista, no había problema en negociar su libertad por
su capacidad de agencia.
Esta cause célebre detonó un diluvio de argumentos que
fueron más allá del caso en sí. Sectores anti-indígenas
aprovecharon la injusticia que significaba el hecho de darles ese
trato especial a miembros de una minoría y así crear un doble
estatuto en la ciudadanía. La revista Veja, por ejemplo, se
quejaba porque “la dificultad (de los ambientalistas) de aceptar
el lado criminal de Paiakan viene de un hábito mental reciente
según el cual es siempre correcto relativizar el comportamiento
inconveniente de las minorías” (citado en ISA, 1996: 412). El
periodista Janer Cristaldo “demandó que Paiakan sea castigado
y cuestionó lo que él llama privilegios jurídicos de los indios
brasileños”. De acuerdo con Cristaldo, “el indio no trabaja, no
produce, simplemente devasta” (ISA, 1996; 417). El abogado
Miguel Reale Júnior afirmó que Paiakan no era más
inimputable y debía ir a juicio por estupro e intento de
asesinato. Añadió: “debemos poner un freno al mito del indio
naturalista, desde el momento que dejó su tribu y se aculturó,
173
dejó de ser un indio para ser un civilizado” (citado en ISA, 1996:
413).
Estas opiniones son atractivas para los que sostienen la
idea débil de que la democracia significa igual tratamiento a
todos, a pesar de que no todos sean iguales en una sociedad tan
desigual como Brasil. Así usado, el concepto de democracia
ingresa en el dominio de los símbolos inagotables que siempre
están abiertos a interpretaciones conflictivas (Ricoeur, 1978:
242-265), dependiendo de la posición que se esté defendiendo.
Defensores de la causa indígena estaban preocupados por el
hecho de que las repercusiones negativas del escándalo
pudieran ser usadas por intereses anti-indios para minar los
derechos indígenas. La acusación contra Paiakan podría
convertirse en un argumento conveniente para el “lobby antiambientalista” que se opone a la demarcación de las tierras
indígenas, temía Sydney Possuelo, el presidente de la
Fundación Nacional del Indio, FUNA1, de la época (ISA, 1996:
413), El Ministro de Relaciones Exteriores, Celso Lafer, afirmó
que “el gobierno brasileño estaba preocupado por la publicidad
del crimen atribuido a Paiakan y temía que el asunto pudiera
ser explotado para poner en peligro la lucha de los indios” (Folha
de São Paulo, 10 de junio de 1992, sec, 1: 14). Desde la Cumbre de
Río el legislador ambientalista Fábio Feldmann declaró: “En
este momento, cuando estamos luchando por los derechos de
los indios, la duda se ha expandido sobre toda la lucha por la
preservación de las naciones indias y del medio ambiente. Creo
que el periodismo en Brasil debería ser más responsable” (Folha
de São Paulo, 9 de junio de 1992, sec, 1: 10). Desde Londres,
Stephen Cory, director de la ONG Survival International, culpó
a Anita Rodick, la dueña de la cadena de negocios de cosméticos
Body Shop, por el escándalo de Paiakan. Según él, “ella puso
174
demasiado poder en manos de un único individuo”, cuando
eligió la comunidad de Paiakan como centro
de sus
operaciones para recolectar materia prima. Cory concluyó que
el crimen atribuido a Paiakan era un “serio retroceso” para la
protección de los derechos de los indios (Seidl, 1992, sec. I: 10).
Detrás del sentimiento común de indignación por el
tratamiento dado a los indígenas, estos testimonios, como sus
opuestos, también revelan los intereses detrás de los autores: la
FUNAI, “guardiana” de los indios, teme que su rol – demarcar
las tierras indígenas” – sea socavado, el Ministro de Relaciones
Exteriores teme publicidad negativa, el ambientalista identifica
la defensa de los indios con la defensa del medio ambiente y el
director de la ONG reprende a su antigua enemiga, la
empresaria “verde”. Así, rebosante con intensos significados, el
caso Paiakan, particularmente en asociación con el megaevento ambientalista que ocurría en la Cumbre de Rio, se
transforma en un verdadero laboratorio para observar el
nacimiento de lo que Latour (1993: 11) llamaría híbrido o cuasi
objeto, o sea, el indio como una combinación de componentes
naturales y productos humanos. Es la naturalización de los
indios en su máxima expresión.
¿Qué hay en común entre el episodio 1, en que los indios
son extensiones de la misteriosa y cruda naturaleza, el episodio
2, en que los indios son portadores de fuerzas diabólicas, el
episodio 3, en que los indios cultivan maravillas exóticas, y el
episodio 4, en que los indios son protegidos indebidamente
corno criaturas salvajes? Entre otras semejanzas, todos apuntan
a la misma dirección: la fabricación de una relación metonímica
entre los indios y la naturaleza indómita.
Las ambivalencias que despliega la sociedad brasileña
hacia los indígenas se manifiestan en un movimiento pendular
175
recurrente entre distancia y proximidad. Mientras hay voces
nacionales que proclaman que los brasileños somos
subdesarrollados porque tenemos indios en el patio trasero,
también hay quienes afirman que somos una nación especial
precisamente porque coexistimos con la sabiduría y la pureza
de los indios. Estas concepciones opuestas no significan, por
supuesto, ninguna relación con las realidades de la vida
indígena. Son fabricaciones que sirven a diferentes intereses y
se aplican solamente dentro de ciertas coyunturas. En este
sentido, el indio es un producto de la ingeniería ideológica de
los no indios. Parte naturaleza, parte artificio, los indios
proveen a la nación de un reservorio de argumentos que
justifican posiciones tan diferentes como las mencionadas.
Como los otros privilegiados de los brasileños, los indios
condensan lo que Coronil le atribuye al occidentalismo, por
sacar
a la luz su génesis de relaciones asimétricas de poder,
incluyendo el poder de oscurecer su génesis de
desigualdad, de desligar sus conexiones históricas y,
por lo tanto, presentar como atributos internos y
separados de entidades cerradas lo que en realidad
son productos históricos de pueblos conectados
(Coronil, 1997: 14).
La asociación metonímica de los indios con la naturaleza
también está motivada por otra ambivalencia, la de Brasil con
su geografía tropical. Por un lado, es la tierra bendecida donde
todo crece sin esfuerzo. Por otro, es un infierno terrestre de
pestes y enfermedades, inapropiadas para el florecimiento de
una civilización superior. El registro sociohistórico sobre el país
abunda en afirmaciones que defienden una u otra posición
176
(Leite, 1992). No es de extrañar que la relación indio-naturaleza
sea tan fuerte en las mentes brasileñas. Mientras para algunos
los indios pueden ser tan difíciles de manejar como los trópicos,
para otros son tan indispensables cuanto el “pulmón del
mundo”, un conocido epíteto que la imaginación ecológica
grosera le atribuyó a la selva amazónica.
“Lo exótico no está en casa”
Aunque esté estrechamente relacionado con el
esencialismo, el exotismo tiene una lógica propia. Como en el
caso del colesterol, es posible identificar un exotismo negativo
y uno positivo. El exotismo negativo resulta del abuso político
de la alteridad, sea esta directamente extraída de prácticas
nativas sacadas de contexto o en descripciones etnográficas
distorsionadas (un ícono de mal exotismo es la imagen del
Yanomami creada por varios autores que siguieron las huellas
de Napoleón Chagnon). Inversamente, el lado positivo del
exotismo afirma que la diversidad cultural es fundamental para
rebajar al occidente bombástico que posa como ganador, frente
al resto inútil, tomado como perdedor. Cuando promueve un
movimiento hacia la otredad constructiva, el exotismo se
despoja de su -ismo junto con la virulencia política y ética y,
como una bandera de la diferencia afirmativa, se transforma en
una herramienta legítima para contrarrestar a la afectación
hegemónica y al complejo de superioridad de las sociedades
mayoritarias.
¿Existe el exotismo en casa, o sea, involucrando minorías
nacionales, o solamente aparece cuando hay una distancia física
considerable entre el exotizador y el exotizado? Tiendo a
177
concordar con Peter Mason (1998: 148) cuando sostiene que “lo
exótico no está en casa” porque “la presentación de lo exótico
necesariamente implica desplazamiento y despegue”. Quisiera,
sin embargo, añadir mayor complejidad a este argumento. La
coexistencia histórica de sociedades nacionales con sus otros
internos tiende a erosionar el sabor exótico que los rasgos
culturales tuvieron en el pasado. El proceso de metabolización
cognitiva y afectiva de las diferencias domésticas desgasta el
sentido de separación que caracteriza la mirada exótica desde
lejos. La maldición de la corona de plumas ilustra este punto.
Diferente de la distante fascinación o la repulsión que
caracterizan la reacción de un distante observador de
diferencias, los brasileños que ora creían, ora se mofaban de los
poderes ocultos del artefacto, lo hacen involucrados de una
manera que puede llevarlos a la participación. Este proceso de
participación sea intencional o no, señalaría el pasaje del
exotismo al esencialismo.
De hecho, uno puede observar este proceso cuando una
minoría no reconocida como tal, luchando para afirmar sus
diferencias culturales, golpea la muralla de la indiferencia
nacional. Hay un momento en el que esa minoría tendrá que
crear artificialmente un desplazamiento y una distinción para
ser notada. Hay muchos ejemplos en el dominio de la así
llamada etnogénesis, en la que las minorías reviven o
reinventan
las
tradiciones
culturales,
en
busca
de
reconocimiento étnico (Hill, 1996; Oliveira, 1999). Los
indígenas del Nordeste brasileño ilustran este mecanismo. Para
resistir a la indiferencia de la Nación e incluso la negación de
una singularidad étnica, estos indios hicieron un esfuerzo
colectivo para distanciarse de la masa de la población nacional,
desplegando diacríticos asociados con la indigenidad en la
178
imaginación popular. Algunos, como los Pataxó en el estado de
Bahía, en su búsqueda de una identidad cultural, intentaron
llenar el vacío cultural dejado por la pérdida de su idioma
materno aprendiendo la lengua de los Maxacali, en el estado
vecino de Minas Gerais. ¿Cómo podrían proclamar ser
diferentes de los brasileños si el único idioma que hablaban era
el portugués? ¿Cuán bueno puede ser un idioma oficial nacional
como vehículo de distinción étnica? Aquellos que tuvieron éxito
en afirmar sus personajes étnicos exhibiendo trazos exóticos
están aptos para unirse al coro de la autenticidad, sea real o
construida. Si, como sostiene Rosaldo, demandar autenticidad
de minorías culturalmente despojadas implica un acto de
“nostalgia imperialista” (Rosaldo, 1989: 68-86), la resurrección
cultural de pueblos como los indios del Nordeste de Brasil
puede significar un alivio irónico de este malestar de la
mayoría.
Una vez que las diferencias culturales se crean y son
admitidas por la sociedad en su conjunto ‒ y aquí los medios
cumplen un rol fundamental ‒ el distanciamiento artificial no
es más necesario y el exotismo da lugar al esencialismo.
Mientras el exotismo en casa puede no durar, es precisamente
en casa que el esencialismo como práctica política prospera,
como ejemplifica la situación europea.
El boomerang esencialista
En el complejo juego de intereses, comprensiones y
malentendidos que son parte de la zona de contacto interétnico
(White, 1991, Conklin & Graham, 1995), la manipulación de las
primordialidades (a la Geertz, 1973, capítulo 10) por medio de
179
diacríticos culturales superenfatizados o el énfasis en la
separación por una lengua y rituales exclusivos, indica que los
pueblos indígenas como los Kayapó y los Shavante, entre otros,
insisten en mantener “las especificidades sin, de cualquier
manera, renunciar a los posibles beneficios que el Estadonación circunvecino les puede ofrecer. Con este fin, no dudan
en complacer expectativas estereotípicas por parte de los no
indios. Bajo la apariencia de seguir aquello que se espera de
ellos, los indios refuerzan lo que quieren que la sociedad
nacional vea en ellos, si eso les trae beneficios políticos.
Dos conceptos conocidos me vienen a la mente al tratar
de darle sentido a todo esto. Uno es el concepto de Goffman de
manejo de las impresiones: “El actor dramatúrgicamente
prudente deberá adaptar su actuación a las condiciones de
información bajo las que actuará” (1959; 222). El otro es la
sismogénesis de Bateson: “un proceso de diferenciación en las
normas de comportamiento individual que resulta de la
interacción acumulativa entre individuos” (1958: 175). Ambos
conceptos resaltan la reciprocidad de las partes involucradas en
la interacción y su constante escrutinio de las acciones y
reacciones de cada una. El concepto de Goffman enfatiza las
minucias de la interacción cara a cara, en la que los actores
deliberadamente ajustan su comportamiento de acuerdo a su
propia lectura de las reacciones de su interlocutor. En la
sismogénesis de Bateson, tenemos el factor de la experiencia
acumulada influenciando la predisposición de un actor hacia
otro.
En el caso de la corona de plumas y del Museo del Indio,
los indígenas y no indígenas actuaron sus roles respectivos de
manera hiperbólica como forma de reforzar un contexto en el
cual la otredad (de los indios respecto a los blancos y viceversa)
180
ha sido desde largo tiempo construida. También significaba una
distancia irónica entre los indios y los poderosos. En el caso del
encuentro de Altamira, para muchos de los forasteros la otredad
significó proximidad, una forma de alcanzar la autenticidad por
ósmosis, por contagio, siguiendo la suposición de que la
indianidad es parte de una naturaleza redentora. En ambos
casos, los indios se comportaron tal como se esperaba de ellos,
adornando las capas exteriores de su indianidad. Como cada
parte actuó según las expectativas del otro, los indios y no indios
compartieron la misma forma gramatical de esencialización. Su
aceptación tácita a discordar en situaciones en las que los
antagonismos debían dar lugar a la maximización de beneficios
sociales es, una vez más, una reminiscencia de la definición
operacional de Leach de ritual y mito aplicada a sus datos de
Alta Birmania, “un lenguaje de argumento, no un coro de
armonía” (Leach, 1954: 278). Bajo las fábulas extravagantes
proporcionadas por los medios, ambas partes estaban usando la
cultura como artefacto político productivo para sus propios
fines.
Debemos dejar en claro que el actuar la cultura no es
necesariamente un acto de esencialismo. No sería apropiado,
por ejemplo, llamar esencialista a la actuación de un rito de
pasaje para los propósitos internos de una sociedad dada. Pero
cuando los rasgos culturales se despliegan fuera de sus
contextos
culturales
específicos,
tenemos,
al
menos
potencialmente, un acto de instrumentalización.
¿Son los indígenas personas libres para instrumentalizar
sus culturas a voluntad? ¿Pueden aspirar a quererlo todo? Dado
el hecho de que la esencialización ocurre en un contexto de
desigualdad política en el que los indios están invariablemente
en el extremo más débil del espectro de poder, invocar
181
símbolos resonantes de alteridad puede traer efectos boomerang,
como en el caso de Paiakan, el líder Kayapó. La respuesta feroz
de los medios al alegado crimen de violación equiparóse a los
altos elogios que obtuvo como defensor genuino de la
integridad de los indios y del medio ambiente. En el juicio era
un salvaje vistiendo plumas antes que un humano masculino.
Parte de la indignación contra él tenía que ver con su éxito
económico, que ofendió a personas para las cuales los
verdaderos indios deben ser puros y pobres. El ejercicio de
Paiakan en esencialismo tropezó con las barreras levantadas por
la lógica de la política interétnica.
Reflexiones
Vestidos con plumas, remeras o trajes de ejecutivos, los
indios brasileños son una población creciente que desdice las
pseudoprofecías que nunca se cansan de anunciar su extinción.
Entre los mensajeros del día del juicio final, intelectuales de
diferentes convicciones declararon el fin de los indígenas en
Brasil en una fecha específica que al final no llega nunca. El
antropólogo Darcy Ribeiro, que había previsto su desaparición
para alrededor del año 2000, reconsideró su profecía cuando se
dio cuenta de que la población indígena no solo se estaba
recuperando de uno de sus puntos más bajos en la década de
1950, sino que la vitalidad del movimiento indio en la de 1980
anunciaba un futuro prometedor. De hecho, eran menos de
100.000 en 1950, y la población indígena es actualmente [2003]
de más de 700.000 personas, aunque sigue siendo una fracción
de la población nacional.
182
Uno estaría tentado a generalizar y afirmar que cuanto
más pequeña la población nativa, mayor su visibilidad. Sin
embargo, ejemplos contrarios importantes, como el caso de los
pueblos indígenas en los Estados Unidos y, particularmente, en
Argentina, rápidamente desmienten esa generalización. Uno
podría creer que el caso brasileño tal vez sea único en América.
El Indio ha habitado la conciencia de los no indígenas del país
desde sus días coloniales. La nacionalidad brasileña ha creado
una imaginería indígena que se ajusta a sus propias premisas de
que los indios son los herederos legítimos de la tierra, un pilar
imprescindible para su fundación como sociedad única basada
en el mito de las tres razas (india, negra y blanca) y para su
reclamo de independencia cultural frente a las influencias
europeas. Quizá la novedad del indigenismo contemporáneo
sea el rol activo que los indios tienen en la construcción de este
imaginario nacional.
Los dos primeros episodios discutidos aquí ejemplifican
la empresa colectiva de indios y no indios en la producción de
un escenario pluriétnico. Ambos episodios muestran cuán
complicado el proceso de forjar la otredad puede ser. La forma
indirecta en que algunos sectores de la sociedad urbana
brasileña crean una grieta esencial entre “civilizados” e indios
revela una ambivalencia interesante en los sistemas de
creencias. Muchos brasileños cosmopolitas son reacios a
admitir su susceptibilidad a fenómenos sobrenaturales,
particularmente cuando emanan del misterioso mundo
indígena y por eso transfieren su incomodidad metafísica al
populacho ingenuo: el papagayo es un ave de mal agüero en la
creencia popular tradicional. Raramente confiesan en público
ser creyentes, esas personas urbanas intentan abarcarlo todo:
jugar el juego folclórico y mantener su yo racional distanciado
183
de los indios “pre-lógicos”. Su ignorancia de las formas de vida
indígena, a menudo tácitamente alimentada, es una prueba
convincente de esta distancia.
Una vez que la gran división indios/no indios es
establecida con firmeza, se abre un abanico de posibilidades
simbólicas: los diacríticos indígenas se disponibilizan para
cuantas significaciones y resignificaciones sean necesarias para
dar cuenta de las fisuras no racionales en el alegado mundo
racional de los asuntos cívicos. Plumas coloridas y sesiones
esotéricas de chamanismo son algunos de los ítems más
adecuados a este propósito por su atractivo visual y por
reafirmar la confianza en que, gracias a la ignorancia
etnográfica protectora, la distancia social cómodamente se
preserva. Así son los caminos de esencialización.
La opresión casi nunca es tan completa como para no
dejar alternativas al oprimido. En las décadas recientes,
particularmente desde la promulgación de la Constitución
Federal de 1988, los indios brasileños han aumentado el número
de opciones interétnicas para incluir vías de acción política más
allá de la satisfacción de los gustos esencialistas de la sociedad
mayoritaria. Mientras que “jugar a los indios” ha sido una forma
muy efectiva de afirmar sus derechos y sus reclamos, los líderes
indígenas cada vez más están favoreciendo otras tácticas de
ganar poder, sea rechazando por completo el llamado a la
esencialización o invocando primordialidades culturales no
como bastiones de la otredad inconmensurable, sino como
afirmación de igualdad dentro de un régimen de diferencias
legítimas. En el largo y sinuoso camino de cuasi-objetos a
sujetos plenos, los indios brasileños, como muchos nativos en
todo el mundo, han aprendido a valorar el concepto de cultura
y, con una notable sagacidad, le han enseñado al mundo no
184
indígena, incluyendo a los antropólogos, cómo absorber
críticamente y reformular las ideas recibidas. Actuando muchas
veces en contradicción con el sentido común, mujeres y
hombres indígenas han mostrado una sabiduría política
extraordinaria detrás de lo que parecía a muchos no indios pura
ingenuidad. Mucho más avanzados que la capacidad crítica de
sus observadores, los líderes indios han sorprendido muchas
veces a los antropólogos con sus tácticas novedosas y talentos
estratégicos (Albert, 2001; Ramos, 1998).
Frente a todo esto, podemos preguntarnos; ¿hasta dónde
la teoría social nos ayuda a comprender la originalidad de la
imaginación política indígena? Para limitarnos al asunto aquí
analizado, cuando los teóricos dicen que el esencialismo es una
mala política, lo que hacen es crear un punto ciego. En tanto
este punto ciego persista, siempre correremos el riesgo de
chocar con la realidad.
185
Sonho de uma tarde de inverno: a utopia de uma
antropologia cosmopolita
[2012]
Prelúdio
O tema do universo antropológico dividido em zonas
diferenciadas de poder parece se agigantar quando visto do
centro desse poder. A dicotomia Centro versus Periferia assume
berrantes cores primárias quando observada contra o pano de
fundo da paisagem branca de neve e, ao que parece, inabalável
da Metrópole. O que se segue é um breve exercício de fantasiar
o que seria dessa paisagem se o jogo de poder fosse outro.1 Criar
uma ficção de democracia acadêmica como recurso retórico, a
exemplo da caricatura, ajuda a ressaltar os traços mais salientes
da problemática em questão.
Utopias são boas para sonhar. Seu horizonte, ainda que
inalcançável ‒ e talvez por isso mesmo ‒ traz um dinamismo e,
principalmente, dúvidas sobre os topoi e cânones acadêmicos
que nos são impostos mais por inércia política do que por
convencimento intelectual. É desnecessário dizer que a
hegemonia antropológica que nos perturba, pelo menos a nós,
1
O formato deste pequeno ensaio, como se fosse uma fábula, uma narrativa
mítica ou, mais sobriamente falando, uma utopia, veio–me de assalto num dia
azul e gélido de fevereiro no Meio-Oeste dos Estados Unidos durante minha
estada na Universidade de Wisconsin, Madison, no primeiro semestre de 2005.
Talvez por isso ele pareça um tanto etéreo, irreal, ou mesmo fantasmagórico
sem, no entanto, trair seu compromisso com o empenho analítico e a seriedade
intelectual.
186
que estamos fora da Metrópole, não é um produto autônomo,
mas sim reflexo de um estado de coisas muito mais abrangente,
ou seja, a divisão mundial de trabalho e as decorrentes trocas
desiguais entre povos e nações. Por que então não sonhar com
o que poderia ser em outra dimensão histórico-política? Por
que não emular o que nos ensina a sabedoria etnográfica sobre
diversidade e como conviver com ela? Por que, por uma vez,
não nos deixamos guiar pela experiência indígena, já que os
nossos
próprios
recursos
explanatórios
se
mostram
insuficientes na conjuntura atual, em que sentimentos
agonísticos impregnam nossos discursos profissionais e
parecem nos conduzir a um beco sem saída?
Utopia
Era uma vez uma utopia chamada Cosmantrópolis2,
alcunha talvez tão inusitada quanto o seu conteúdo, o que não é
de surpreender. Para fundar a utopia, os pais fundadores da
Cosmantrópolis inspiraram-se nos sábios poliglotas do rio
Uaupés, no noroeste amazônico, onde a regra de exogamia
linguística pode reunir sob o mesmo teto falantes de muitas
línguas, mesmo que uma delas, a do líder da casa comunal, seja
predominante. Construíram, então, uma comunidade de
múltiplas vozes, numa espécie de Babel organizada e solidária
no sentido durkheimiano de solidariedade, neste caso, orgânica.
2
Inspiro-me no importante trabalho em que Gustavo Lins Ribeiro (2005), em
seu louvável esforço de renovação, advoga a necessidade de se criar um espaço
cosmopolítico, que contemple uma antropologia verdadeiramente mundial,
em que antropologias nacionais tenham oportunidades iguais de expressão e
influência.
187
Todos partilhavam idiomas, ideias, soluções e propostas, sem
que cada um dos parceiros perdesse sua identidade e cor local,
preservadas como capital simbólico a serviço da coletividade.
Cosmantrópolis prosperou e tornou-se a comunidade pensante
mais criativa e vivaz na paisagem das ciências sociais.
Publicações proliferavam com um público escritor e leitor sem
fronteiras. Seminários, longe de imitar toscamente a alienante
linha de montagem industrial, duravam o tempo necessário
para que todos os participantes, guardando respeito pela vez do
próximo, pudessem expressar por extenso suas ideias e as ter
plenamente discutidas. Assim corria o fluxo de conceitos, juízos
e opiniões sem as conhecidas travas de tempo e de espaço.
Recursos para pesquisa não se limitavam a reforçar ideias
dominantes e agraciavam em especial a ousadia da
experimentação intelectual de onde quer que ela viesse,
principalmente se fosse capaz de derrubar pseudoverdades
teóricas e receitas metodológicas cristalizadas, muitas vezes, em
modismos passageiros. Os editores de textos tinham como
norma multar quem fizesse de conta que suas ideias eram
originais e quem omitisse dar o devido e justo crédito a colegas
dos países onde desenvolveram suas pesquisas de campo.
A exemplo dos sábios nativos do Uaupés e alhures, os
fundadores de Cosmantrópolis viam com maus olhos o culto à
personalidade, pois desconfiavam que, por trás do hiperbólico
e súbito sucesso individual, haveria sempre algo cheirando a
ocultos passes de mágica que enaltecem o indivíduo, mas
denigrem o coletivo. Por isso, não encorajavam a tendência à
proliferação daqueles híbridos intelectuais vulgarmente
188
conhecidos como “étnicos chiques 3”. Esses ilustres profissionais
‒ embora trouxessem grandes contribuições para a geração e
manutenção de polêmicas que, muitas vezes, vinham a calhar
para interromper uma sonolenta rotina acadêmica típica da
ciência normal kuhniana ‒ pouco faziam para ter reconhecida a
tradição que originalmente os inspirou 4.
Enfim, Cosmantrópolis seguia seu curso de pequenas
transgressões em meio a uma vigiada tranquilidade social e
justiça intelectual, quando forças maiores começaram a agir.
Mais uma vez, a etnografia indígena nos traz inspiração.
Um dia, o demiurgo reuniu o povo escolhido e
apresentou-lhe o dilema da escolha. Dispôs uma série de
objetos à sua frente e convidou-o a escolher o que quisesse.
Havia todo o equipamento tradicional já conhecido e também
um grande número de novidades ininteligíveis. O povo
escolhido selecionou o que quis e rejeitou o resto. Ficaram
então com arcos, flechas, canoas, panelas de barro, redes de
dormir e todos os objetos que faziam sentido no seu universo.
3
Alguns pensadores, como Ahmad (1992), não escondem seu profundo
desconforto com o fenômeno do (ou da) intelectual que migra para a Metrópole
e assume a posição de porta-voz de seu país, estrangulando, assim, a voz dos
que ficaram para viver a realidade que o (a) migrante deixou para trás.
4
Publicar em inglês pode trazer reconhecimento ao autor, mas quase nunca à
antropologia nacional de sua origem. Como um gato preto em campo de neve
(na vívida imagem do novelista gaúcho Erico Verissimo), tenho me visto tomar
dimensões inesperadas que não são tanto o resultado aleatório de um esforço
solitário, individual, quanto parte integrante da minha tradição antropológica
nacional que, por sua vez, e como a minha produção, é um amálgama de
influências internas e externas, embora com um sabor próprio. Os estudantes
da Metrópole que leem textos meus, ou de outros em situação semelhante, e se
impressionam com certas descrições e posições não têm como alcançar o
mundo invisível que me sustenta e me dá coerência. No entanto, não é por não
o verem que ele não existe, a exemplo da fábula dos “povos sem história” que
só não a exibem porque os estudiosos ocidentais não têm os meios necessários
para alcançá-la. O que passa por ausência de uns é, lamentavelmente, produto
da ignorância de outros.
189
Um tanto surpreso, o demiurgo avisou que aquilo que fora
rejeitado seria oferecido aos forasteiros, os homens brancos que
ainda não faziam parte do mundo do povo escolhido, mas que,
um dia, despontariam no horizonte. Motores, aviões, rádios,
espingardas, roupas e toda sorte de objetos não identificados
acabaram nas mãos dos desconhecidos.
Passa-se o tempo e, inexoravelmente, as novas gerações
são assaltadas por forasteiros como que caídos do céu em
máquinas voadoras soltando fumaça, envoltos em peles
artificiais, carregando canos que cospem fogo e, sem pedir
licença nem dar satisfações, fazem exigências, apropriam-se da
terra e de tudo mais que lhes interessa, assim transformando o
povo escolhido em povo, se não vencido, sem dúvida,
oprimido. Como se isso não bastasse, juntando insulto a dano,
vieram os missionários e impuseram o humilhante império de
uma das línguas locais, além, naturalmente, da sua própria, em
detrimento de todas as outras.
Em retrospecto, essas novas gerações lamentam que seus
ancestrais tenham feito tão má escolha perante o demiurgo,
mas uma coisa é certa e fonte de orgulho: o atual poderio dos
brancos nada mais é do que o resultado do exercício da
agencialidade dos índios. Foi porque eles fizeram a escolha
errada que os brancos chegaram a ser o que são hoje, ou seja, o
produto de um erro fatal. Os índios perderam bens preciosos,
como vidas, terra e, quase sempre, autonomia, mas
conservaram a convicção e o orgulho de quem já teve e,
portanto, poderá voltar a ter, o destino nas próprias mãos.
E assim também Cosmantrópolis se viu subitamente
colonizada por uma enxurrada de hábeis tecnologias e
empreendimentos do saber que desestabilizaram o sistema
horizontal de igualdade na diferença e instalaram a
190
verticalidade do poder de produção, distribuição e consumo de
bens antropológicos. Impôs-se a todos o humilhante império de
uma das línguas em detrimento de todas as outras, uma simples
língua franca. Perderam-se as referências nacionais que davam
o sabor orgânico e cosmopolita à profissão 5. Tamanha foi a
concentração de riqueza que tornou obsoletos os mecanismos
de controle da desigualdade. Reconhecer plenamente a
legitimidade e utilidade de outros saberes deixou de ter
importância estrutural. Pasteurizando complexas ideias vindas
do que hoje se chama Sul Global para afofar o próprio ninho, as
antropologias do que hoje se chama Norte Global fincaram
bandeiras em solo conquistado à moda de astronautas na Lua.
Cosmantrópolis entrou em colapso, dando lugar à crescente
hegemonia da Metrópole, enquanto o resto, fragmentado e
impotente no que passou a ser chamado de Periferia, entregouse à autocomiseração, lamentando a injustiça da história.
Moral da história
Quais seriam então as questões centrais que impedem o
florescimento
de
uma
antropologia
genuinamente
cosmopolita? Vimos algumas: a forte hegemonia linguística, a
desigualdade do mercado editorial, a intransitividade de ideias
da Periferia para a Metrópole e até um certo cultivo da
ignorância estudada por parte desta última sobre o que se
5
Quem minimamente educado deixaria de perceber o Brasil na literatura de
Machado de Assis, ou a Argentina na obra de Borges (ambos universalistas)? Por
que isso não acontece na antropologia? Será uma questão de se ser ou não
minimamente educado? E por que é permitido não se ser minimamente
educado?
191
produz fora dela, o que muito contribui para a invisibilidade do
que não é metropolitano. Vejamos alguns exemplos.
Na década de 1990, antropólogos metropolitanos deramse conta daquilo que muitas antropologias latino-americanas há
muito já sabiam, ou seja, a necessidade de trazer a problemática
indígena para o contexto político mais amplo. Alguns (por
exemplo, Thomas 1991) promoveram um ato de contrição pela
ingenuidade ou culpa de terem criado um Outro culturalmente
exótico e politicamente isolado. Não lhes ocorreu olhar para
além de seu umbigo profissional, buscar alternativas
antropológicas e descobrir se sua sensação de mal-estar vem da
antropologia como disciplina universal, ou do seu modo
específico de praticá-la. Isso nada mais é do que uma visão
etnocêntrica ou míope da antropologia que, afinal de contas,
enquanto campo de conhecimento, é muito mais do que a mera
soma de seus profissionais, independentemente de onde eles
operam. Além disso, abandonar o apelo da diversidade, com o
argumento de que cultivá-la é contribuir para a dominação dos
fracos, é perder o sentido político da diferença, quando é,
exatamente, esse sentido que pode atuar como antídoto contra
a certeza que tem a Metrópole do seu próprio poder e da
suposta impotência do Outro. Pois é essa mesma diversidade
que é capaz de desestabilizar a imperturbável autossatisfação da
Metrópole e deveria ser ela o estímulo para os metropolitanos
se dedicarem a fazer a etnografia de sua própria casa. Mas, ao
exercitar o que chamam de repatriação da antropologia, eles
esbarram na falta daquele savoir político que marca os
pesquisadores latino–americanos, para quem a antropologia
em casa é, praticamente, tão antiga quanto a sua própria
profissão. Ao descobrirem que a antropologia não vive apenas
do estudo dos “primitivos”, os metropolitanos propõem dar-
192
lhes as costas para se dedicar ao estudo do próprio Centro e da
gigantesca teia de poder que enreda os povos periféricos. Isso
parece provocar uma reação quase matricida com relação à
disciplina. Acusada, por exemplo, de transformar o conceito de
cultura num instrumento de dominação (Abu-Lughod 1991), a
antropologia passa a ser também responsável por reforçar o
desequilíbrio de poder mundial que esses pesquisadores
parecem ter acabado de descobrir. Depois de passar décadas
pesquisando fora de casa, dão-se conta de que o poder, mais do
que nada, clama pela atenção dos antropólogos. É o que
poderíamos chamar de nostalgia do Centro.
Assim, continuar a estudar “primitivos” assume um
caráter politicamente incorreto se não for feito no contexto de
opressão e injustiça histórica. Ou seja, o trabalho antropológico
aos olhos desses adventistas só é legítimo se investigar os
caminhos da dominação ocidental sobre povos marginalizados.
Em si mesmos esses povos não seriam mais capazes de gerar
outro interesse que não o do exotismo. É como se dependessem
dos antropólogos para tornar as suas “agonias de opressão”
(Herzfeld, 1997: 23) politicamente visíveis e relevantes.
Se tais antropólogos se dispusessem a sair por um instante
da Metrópole e examinassem as feições que a antropologia
assume na Periferia, veriam que o problema de contextualizar
o local numa perspectiva política mais abrangente é o pão com
manteiga das antropologias mexicana, argentina, colombiana
ou brasileira, para nos limitarmos ao circuito latino–americano.
Se há aí um cânone facilmente reconhecível, ele é baseado em
relações interétnicas e não no estudo monográfico unitário.
Portanto, para quem cresceu profissionalmente com a noção de
que fazer antropologia é um ato político (Ramos, 1999/2000)
que, por definição, privilegia a contextualização das transações
193
sociais intra e interpovos, essas questões que, ultimamente, vêm
perturbando nossos colegas metropolitanos soam um pouco
como descobrir a pólvora. Supor que a supressão do cânone
etnográfico por si só eliminaria os efeitos perniciosos do
exotismo é deslocar o eixo do problema, pois o trabalho
antropológico nunca acontece no vácuo, seja no campo, seja no
escritório, e nem o antropólogo tem pleno controle do seu
produto, que passa a integrar o vasto mercado de trocas
simbólicas com suas regras e consequências próprias.
Dependendo do contexto sociopolítico, o público leitor ‒
elemento fundamental da produção antropológica ‒ pode, em
última instância, neutralizar uma ideia potencialmente
fecunda. Esperemos, algum dia, poder perfurar a couraça da
Metrópole e inseminá–la com o vírus da autodúvida. É verdade
que toda sociedade tem seus mecanismos de defesa contra
potenciais ataques aos seus limites, mas é raro encontrar uma
manifestação tão forte quanto a extraordinária capacidade que
tem a Metrópole de fagocitar o estranho, o diferente,
transformando tudo numa polpa de fácil digestão mental.
Se, por um lado, é evidente o apetite voraz que têm os
centros de disseminação por bens culturais, também é certo
que, subjacente à história processual, há sempre um
movimento dialético que se desenrola em silêncio, quase
sempre imperceptivelmente, mas que tem o poder de
transformar o curso dos acontecimentos. É bem possível que a
atual onda de globalização já tenha em seu bojo o esboço de seus
próprios limites, trazendo para o horizonte uma nova era.
Mesmo levando em conta o limitado poder que tem o discurso
antropológico para mudar corações e mentes neste vasto
mundo, nem tudo está perdido na nebulosidade da
globalização. Afinal, os atuais meios instantâneos de
194
comunicação criam condições de possibilidade para a
cooperação entre membros da Metrópole e da Periferia que,
por sua vez, não chegam a ser blocos monolíticos totalmente
refratários à dissidência. Nos espaços liminares de transgressão
criados pelo fluxo de ideias que, embora tímido, já existe, reside
o potencial de se reconfigurar os cânones impostos pela
Metrópole e de se revisitar a utopia da Cosmantrópolis.
Fechando o círculo, voltemos a ela. Desponta no
horizonte uma luz que, embora ainda tênue, tem o potencial de
transformar o panorama político da antropologia mundial. As
Antropologias Mundiais ou Antropologias Alternativas são o
começo de “um movimento coletivo de pluralizar as visões
prevalecentes da antropologia num contexto em que persiste a
hegemonia dos discursos anglo-saxões sobre a diferença”
(Ribeiro 2005). Envolvendo profissionais de vários países,
a maioria do Sul Global, mas não só, da periferia antropológica
‒ ver, por exemplo, o Fórum da Wenner-Gren Foundation
Pathways to Anthropological Futures de 12 de outubro de 2022 ‒,
esse movimento lança um olhar crítico sobre a disseminação
internacional da antropologia, ampliando sua paisagem plural
e engajando antropólogos de várias regiões em conversações
produtivas que conduzam a uma antropologia crítica de si
mesma e à construção de um cânone antropológico
policêntrico (Ribeiro 2005) ou, melhor ainda, de cânones
diversos, mas acadêmica e politicamente equivalentes. Há,
pois, que cuidar com muito carinho dessa delicada planta
no nascedouro para que possa dar os frutos promissores.
Isso nos mostra que o cosmopolitismo não reside, afinal,
na Metropóle que, com honrosas exceções, tende a se satisfazer
com o tedioso exercício de autorreferência. A cosmopolítica
antropológica está lá onde se lê em várias línguas, onde se
195
acolhem ideias de fora sem gerar fidelidades acríticas e estéreis.
Lá onde se reconhece que a agencialidade de incautos ancestrais
pode gerar a força e o impulso necessários para superar o status
quo. Lá onde, como disse o politicamente incorreto, mas
perspicaz, Domingo Faustino Sarmiento, “las cosas hay que
hacerlas. Bien o mal, hay que hacerlas”!
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Sobre os textos
Os textos reunidos nesta coletânea foram publicados, em sua
maioria, na série “Autorais” no Blog da BVPS. Originalmente
podem ser encontrados em:
•
O sonho da paz interétnica: viagem à terra de Macunaíma:
versão ampliada de “O sonho da paz interétnica”, publicado
em 2003 no site do Conselho Indígena de Roraima.
•
A “viagem” dos índios: maldição ou benção?: publicado
originalmente na revista Humanidades, 1986.
•
A tragédia Yanomami: publicado no Informativo da
Associação Brasileira de Antropologia (ABA), n. 9/2022.
•
Nações dentro da nação: um desencontro de ideologias:
publicado na coletânea organizada por George Zarur, Etnia
e nação na América Latina (1996).
•
O antropólogo no papel de testemunha: laudos antropológicos e
responsabilidade social: versão ampliada de texto apresentado
em 1990 no Simpósio “Laudo Periciais Antropológicos”,
durante a XVII Reunião Brasileira de Antropologia.
•
Sonhando com ABYA-YALA: texto baseado na conferência
proferida no “Painel Especial sobre Políticas Indigenistas”,
na XIII Reunião de Antropologia do Mercosul (RAM), em
2019, com o título “Realidade Indígenas, Utopias Brancas”.
215
•
Por uma antropologia universal: vislumbrando diálogos entre
teorias nativas y académicas: texto baseado em uma
conferência proferida na Universidad de los Andes, na
Colômbia, em 2010.
•
Renascença Indígena: publicado na Coluna “Autorais” do
Blog da BVPS, em 05/12/2023. blogbvps.com
•
Meditações indígenas e ecúmeno antropológico: versão revista e
traduzida do espanhol de “Mentes indígenas y ecúmene
antropológico”, publicada na coletânea organizada por
Débora Betrisey e Silviana Merenson, Antropologías
contemporâneas: Saberes, ejercicios y reflexiones (2014).
•
Pulp fictions del indigenismo: o texto é uma versão reduzida
do que foi publicado no livro La antropologia brasileña
contemporânea (2004), organizado por Alejandro Grimson,
Gustavo Lins Ribeiro e Pablo Semán. O original em inglês,
“Pulp fictions of indigenism”, foi publicado em Race,
Nature, and the Polities of Difference (2003), organizado por
Donald Moore, Jake Kosek e Anand Pandian.
•
Sonho de uma tarde de inverno: a utopia de uma antropologia
cosmopolita: versão revista de texto publicado na revista
Teoria & Sociedade, 2014.
As imagens reproduzidas nessa brochura foram publicadas
originalmente nos respectivos posts do Blog da BVPS, sempre
com a devida autorização dos autores, quando necessárias.
216
Expediente da BVPS
O Blog da BVPS é um espaço de formação de editores/as, autores/as e
leitores/as de comunicação pública das ciências sociais, literaturas e artes, e
aposta sempre na conversa entre diferentes gerações.
Corpo Editorial
Editor responsável
Maurício Hoelz | professor do Departamento de Ciências Sociais e do
Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da Universidade Federal
Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ).
Editora-executiva
Caroline Tresoldi | doutoranda em Sociologia no Programa de Pós-Graduação
em Sociologia e Antropologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro
(UFRJ).
Assistentes editoriais
João Mello | doutorando em Sociologia no Programa de Pós-graduação em
Sociologia e Antropologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
Miguel Cunha | doutorando em Ciências Sociais no Programa de Pósgraduação em Ciências Sociais da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro
(UFRRJ).
Onildo Araújo Correa | doutorando em Sociologia no Programa de Pósgraduação em Sociologia e Antropologia da Universidade Federal do Rio de
Janeiro (UFRJ).
217
Assistentes de mídias
Maria Gabriella de Faria | mestranda em Ciências Sociais no Programa de Pósgraduação em Ciências Sociais da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro
(UFRRJ).
Rennan de Medeiros Pimentel | mestre em Sociologia no Programa de PósGraduação em Sociologia e Antropologia da Universidade Federal do Rio de
Janeiro (UFRJ) e doutorando em Ciência Política no Instituto de Estudos Sociais
e Políticos da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ).
Conselho editorial
Andre Bittencourt | professor do Departamento de Sociologia e do Programa
de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia da Universidade Federal do
Rio de Janeiro (UFRJ).
Antonio Brasil Jr. | professor do Departamento de Sociologia e do Programa de
Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia da Universidade Federal do Rio
de Janeiro (UFRJ).
Denilson Lopes | professor titular da Escola de Comunicação e do Programa de
Pós-Graduação em Comunicação e Cultura da Universidade Federal do Rio de
Janeiro (UFRJ).
Diana Klinger | professora de Teoria Literária da Universidade Federal
Fluminense (UFF).
Eduardo Coelho | professor do Departamento de Letras Vernáculas e do
Programa de Pós-Graduação em Letras (Ciência da Literatura) da Universidade
Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
Eliane Robert Moraes | professora do Departamento de Letras Clássicas e
Vernáculas e do Programa de Pós-Graduação em Literatura Brasileira da
Universidade de São Paulo (USP).
218
Elide Rugai Bastos | professora titular de Sociologia da Universidade Estadual
de Campinas (Unicamp).
Lucas Carvalho | professor do Departamento de Sociologia e Metodologia das
Ciências Sociais e do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da
Universidade Federal Fluminense (UFF).
Mariana Chaguri | professora do Departamento de Sociologia e do Programa
de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Estadual de Campinas
(Unicamp).
Mário Augusto Medeiros da Silva | professor do Departamento de Sociologia
e do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Estadual de
Campinas (Unicamp).
Nísia Trindade Lima | pesquisadora titular da Casa de Oswaldo Cruz/Fundação
Oswaldo Cruz e professora de Pós-Graduação do Programa de História das
Ciências e da Saúde da mesma instituição.
Simone Meucci | professora do Departamento de Ciências Sociais e do
Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal do Paraná
(UFPR).
Wander Melo Miranda | professor emérito da Faculdade de Letras da
Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e membro da Academia Mineira
de Letras (AML).
Coordenação da Biblioteca Virtual do Pensamento Social (BVPS)
André Botelho | professor do Departamento de Sociologia e do Programa de
Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia da Universidade Federal do Rio
de Janeiro (UFRJ).
Autor corporativo
Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ)
Largo de São Francisco, 1, 20051-070 – Rio de Janeiro, RJ.
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