ISSN: 2178-602X
Artigo Seção Temática
Volume 18, Número 2, mai-ago de 2024
Submetido em: 18/04/2024
Aprovado em: 22/05/2024
Inteligência Artificial e Transparência no Jornalismo
Artificial Intelligence and Transparency in Journalism
Inteligencia Artificial y Transparencia en el Periodismo
João CANAVILHAS1
Bárbara BIOLCHI2
Resumo
A crise que afeta o jornalismo desde o início do século levou ao despedimento de
milhares de jornalistas em todo o mundo. Para solucionar a falta de recursos humanos,
muitos jornais recorreram à inteligência artificial (IA), mas a introdução de sistemas
não humanos e pouco escrutináveis levantou novas questões relacionadas com a
transparência do processo jornalístico, afetando a já frágil credibilidade dos media.
Não havendo legislação relacionada com o uso da IA no jornalismo, os meios de
comunicação têm publicado recomendações que orientem os seus profissionais. Neste
trabalho analisamos dois documentos pioneiros, um do Estadão (Brasil) e outro da
BBC (Reino Unido), que mostram a forma como estes media procuram ganhar a
confiança dos consumidores, explicando de que forma usam a IA nas redações.
Palavras-chave: Jornalismo; Inteligência Artificial; Transparência; Credibilidade.
Abstract
The crisis that has affected journalism since the beginning of the century has led to the
dismissal of thousands of journalists worldwide. To address the lack of human
resources, many newspapers have turned to artificial intelligence (AI), but the
introduction of non-human and poorly scrutinized systems has raised new questions
related to the transparency of the journalistic process, affecting the already fragile
credibility of the media. In the absence of legislation related to the use of AI in
journalism, the media have been publishing recommendations to guide professionals.
In this work, we analyze two pioneering documents, one from Estadão (Brazil) and
another from the BBC (UK), which show how these media seek to gain consumer trust
by explaining how they use artificial intelligence in newsrooms.
Doutor em Comunicação, Cultura e Educação – Prof. Associado na Universidade da Beira Interior
(Portugal) –
[email protected] – ORCID 0000-0002-2394-5264
2 Graduada em Jornalismo - Mestranda em Jornalismo na Universidade da Beira Interior (Portugal) –
[email protected] – ORCID 0009-0008-3852-2775
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Keywords: Journalism; Artificial Intelligence; Transparency; Credibility.
Resumen
La crisis que afecta al periodismo desde principios de siglo ha provocado el despido de
miles de periodistas en todo el mundo. Para hacer frente a la falta de recursos
humanos, muchos periódicos han recurrido a la inteligencia artificial (IA). Sin
embargo, la introducción de sistemas no humanos ha planteado nuevas cuestiones
relacionadas con la transparencia del proceso periodístico, afectando a la ya frágil
credibilidad de los medios de comunicación. A falta de legislación específica, los
medios han ido publicando recomendaciones para orientar a los profesionales. En este
trabajo, analizamos dos documentos pioneros, uno de Estadão (Brasil) y otro de la BBC
(Reino Unido), que muestran cómo estos medios tratan de ganarse la confianza de los
consumidores explicando cómo utilizan la inteligencia artificial en las redacciones.
Palabras clave: Periodismo; Inteligencia Artificial; Transparencia; Credibilidad.
Introdução
O dia 30 de novembro de 2022 ficou marcado pelo lançamento público do
ChatGPT (OpenAI). Num primeiro momento, o assunto foi objeto de discussão em
grupos relativamente restritos, mas rapidamente os meios de comunicação pegaram
no tema, colocando-o no centro da discussão pública. Talvez por isso, o ChatGPT
conseguiu atingir 100 milhões de utilizadores em apenas dois meses, algo que o
TikTok, a rede social que mais rapidamente cresceu, apenas alcançou em 9 meses.
Foi também o ChatGPT a dar grande visibilidade ao conceito de inteligência
artificial, um tema que até aí surgia associado à ficção científica, remetendo para livros
e filmes. A partir do início de 2023, o assunto tornou-se habitual no espaço mediático,
com a IA a surgir ligada a grandes progressos científicos, mas também ao fim de
algumas profissões, nomeadamente devido ao potencial da IA generativa. Neste campo
emergiram igualmente preocupações relacionadas com a privacidade, a desinformação
e a reprodução de preconceitos, pelo que, num determinado momento, o tom
totalmente positivo usado nas notícias relacionadas com IA passou a incluir
igualmente perspectivas mais desfavoráveis.
As reações surgiram agrupadas em dois polos: por um lado, movimentos que
pediam uma desaceleração na velocidade da investigação, como é o caso da petição
"Pause Giant AI Experiments: An Open Letter", assinada por milhares de empresários
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e cientistas de renome; por outro, grupos que exigiam legislação de enquadramento
para a nova realidade tecnológica, tendo sido a União Europeia a primeira área
geográfica a legislar neste domínio através do “AI Act”, aprovado por unanimidade em
2 de fevereiro de 2024.
Este trabalho inscreve-se na linha deste segundo grupo mais preocupado com a
contextualização legal do fenómeno. O estudo não analisa legislação exclusivamente
dedicada ao uso da IA no jornalismo, uma vez que ainda não existe, incidindo sobre
dois exemplos pioneiros de recomendações para o uso da IA no jornalismo.
1. IA e Jornalismo
Apesar do recente interesse, o conceito de inteligência artificial tem mais de 50
anos e por isso existe um vasto rol de definições que foi evoluindo ao longo dos anos
de acordo com a forma como a IA é percecionada pelos investigadores.
Enquanto Bellman (1978) considera que a IA é a automação de atividades
associadas ao pensamento humano, como aprender, tomar decisões ou resolver
problemas, Winston (1992) afasta-se do paradigma humano, colocando a IA como um
campo das ciências da computação que procura perceber os problemas e resolvê-los.
Na atualidade, esta é a abordagem predominante nas Ciências da Computação,
onde a IA é interpretada como um agente racional centrado na resolução de problemas,
sem ter como referência o elemento humano. Porém, prevalecem as abordagens
humano-centradas que definem a IA como o conjunto de “sistemas ou máquinas que
mimetizam a inteligência humana para executar tarefas e que podem auto-melhorar
interactivamente com base nas informações que recolhem” (MARTINHO, 2023, p.15)
ou “um conjunto de ideias, tecnologias e técnicas relacionadas com a capacidade de um
computador realizar tarefas que normalmente requerem inteligência humana”
(BECKETT; YASEEN, 2023, p. 10).
No campo específico do jornalismo, a IA é usada em todas as fases do processo
jornalístico (BECKETT; YASEEN, 2023), desde a recolha de informação, à distribuição
personalizada e à monetização, passando pela produção de conteúdos, que é o foco
deste trabalho.
Quando falamos de IA generativa referimo-nos a algoritmos que transformam
em textos ou imagens as instruções recebidas através de uma linguagem natural para
os seres humanos. Ou seja, as notícias são produzidas “como processos algorítmicos
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que convertem dados em textos noticiosos narrativos com pouca ou nenhuma
intervenção humana, para além da programação inicial”3 (CARLSON, 2015, p. 417).
Atualmente, a produção automática de texto (LOKOT; DIAKOPOULOS, 2016)
é uma das potencialidades mais usadas pelos jornais impressos e online. Os primeiros
relatos remontam a 2007, ano em que a empresa Automated Insights desenvolveu um
algoritmo que produzia automaticamente notícias sobre o desempenho económico de
empresas com base nos relatórios de contas apresentados publicamente (DÖRR,
2016). Após algumas experiências iniciais de pequeno impacto, a partir de 2010 a
tecnologia iniciou um trajeto de crescente utilização que, de acordo com Canavilhas
(2023), se desenvolveu em três fases: 2010-2013 (Um admirável mundo novo), 20142017 (Diversificação temática) e 2018-2022 (Consolidação).
Na primeira fase, a produção automática centrava-se na economia e no desporto
por serem áreas onde existem muitos dados de livre acesso, mas rapidamente
começaram a surgir outras experiências, como o Homicide Report, do Los Angeles
Times, que usava dados disponibilizados pela polícia (YOUNG; HERMIDA, 2015), ou
os rankings de escolas publicados pela Propublica (KLEIN, 2013).
Na segunda fase, a partir de 2014, os jornais alargaram as temáticas em que
usavam algoritmos para a produção automática. Um bom exemplo foi o jornal francês
Le Monde, uma referência no campo do jornalismo, que começou a produzir notícias
sobre as eleições locais.
Por fim, na terceira fase, para além da diversificação temática e da expansão a
todos os continentes, foram acrescentadas novas possibilidades, como o envolvimento
dos leitores na produção. Aconteceu com o jornal alemão Stuttgarter Zeitung, que
começou a produzir notícias sobre a qualidade do ar usando dados recolhidos por
sensores distribuídos aos seus leitores.
Naturalmente, o crescente uso desta tecnologia despertou o interesse da
investigação para o fenómeno, começando a surgir problemas relacionados com o uso
da IA na produção noticiosa. Num primeiro momento, as preocupações estavam mais
ligadas às chamadas “fake news” uma vez que a tecnologia veio facilitar a tarefa a quem
se dedica à produção deste tipo de informação e a difunde através das redes sociais ou
de sites criados para o efeito. O assunto ganhou redobrada visibilidade quando
Todas as traduções foram efetuadas pelos autores. Original: “as algorithmic processes that convert
data into narrative news texts with limited to no human intervention beyond the initial programming”
3
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surgiram casos em que a IA foi usada para produzir notícias falsas na imprensa, como
aconteceu no caso da revista alemã Die Aktuelle que, em abril de 2023 publicou uma
entrevista fictícia com o ex-campeão do mundo de F1, Michael Schumacher. A revista
defendeu-se dizendo que no final texto esclareceu tratar-se de um trabalho criado com
IA, mas fê-lo de uma forma quase impercetível e, não se justificava dar destaque de
capa a uma entrevista fictícia.
A divulgação de conteúdos falsos em meios de comunicação conceituados não é
uma novidade trazida pela IA, pois a história do jornalismo está cheia de situações
destas. Foi o caso de Claas Relotius, demitido pela conhecida revista alemã Der Spiegel
quando se descobriu que usou informação inventada em vários trabalhos, incluindo
alguns premiados. O próprio Prémio Pulitzer, a maior distinção atribuída a um
jornalista, foi retirado a Janet Cooke, jornalista do Washington Post, quando se
descobriu que o trabalho premiado - O mundo de Jimmy – era, afinal, baseado numa
história inventada.
Para além da produção de informação falsa com IA, a investigação académica
começou a identificar outros problemas na produção automática de notícias,
emergindo duas áreas em particular: as questões éticas relacionadas com o
enviesamento da informação e o plágio (VENTURA-POCIÑO, 2021), mas também
questões relacionadas com a autoria das notícias produzidas com IA (ALI; HASSOUN,
2019).
Este tipo de problemas associados ao jornalismo algorítmico (VAN DALEN,
2012) ou jornalismo robô (LATAR, 2018), levou os investigadores, os media e os
próprios reguladores a identificar a necessidade de legislar o uso da IA no jornalismo,
tal como já tinha acontecido noutras áreas.
Numa atividade em que a imparcialidade e a transparência são valores
fundamentais, o uso de “caixas negras” tornou-se num problema, uma vez que a origem
dos dados usados na produção, a privacidade das pessoas envolvidas e a autoria dos
textos deixaram de ser processos escortináveis. Como refere Diakopoulos (2015), “a
opacidade dos algoritmos tecnicamente complexos que funcionam em escala torna-os
difíceis de escrutinar, levando a uma falta de clareza para o público, em termos da
forma como exercem o seu poder e influência”4 (p. 398).
Original: “the opacity of technically complex algorithms operating at scale make them difficult to
scrutinize, leading to a lack of clarity for the public in terms of how they exercise their power and
influence”
4
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Apesar destes riscos, alguns investigadores (BECKETT; YASSEN, 2023)
consideram que “não é claro onde se situa a fronteira entre um processo de produção
assistido por IA que exige divulgação e um que não exige”5 (p. 41), mas outros avançam
com a necessidade de tornar os processos mais transparentes, explicando como
funcionam os algoritmos, nomeadamente os parâmetros em que se baseiam as
decisões, que tipos de erros são expectáveis, as condições em que os algoritmos foram
treinados e
os critérios editoriais de inclusão e exclusão usados, entre outros
(DIAKOPOULOS, 2014).
Quanto maior for a influência dos algoritmos no jornalismo, maior será a
necessidade de ter sistemas escrutináveis porque a transparência é um valor
fundamental nesta atividade. O problema é a tecnologia ser tão recente que ainda não
há padrões relativos à forma de explicar o funcionamento dos algoritmos
(DIAKOPOULOS; KOLISKA, 2016). Por isso, nesta fase têm sido os próprios meios a
definir regras para a sua utilização.
2. Transparência e Jornalismo
A transparência é um conceito crucial nas democracias porque a possibilidade
de cada cidadão monitorizar a ação dos dirigentes contribui para um aumento da
confiança nas instituições e legitima a ação dos próprios ocupantes de cargos (BAUHR;
GRIMES, 2013).
No caso particular do jornalismo, o assunto tem especial relevância, uma vez
que sendo considerado um “quarto poder”, a atividade deve ser exemplar no campo da
transparência. No atual cenário de crise económica e de credibilidade, que se arrasta
desde o início do século (BECKER, 2022), a necessidade de o jornalismo recuperar a
reputação passa por tornar públicas algumas informações importantes sobre cada
meio de comunicação. Divulgar quem são os proprietários dos media, os
procedimentos seguidos pelos jornalistas para obter informações ou os nomes dos
autores dos conteúdos, por exemplo, reduzem a opacidade da atividade jornalística.
Uns por autorregulação, outros por imposição legal dos respetivos países, os
media foram implementando processos para tornar a atividade jornalística mais
Original: “it is not clear where the line is drawn between an AI-assisted production process that
requires disclosure and one that does not”
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transparente, procurando recuperar a credibilidade perdida e distinguir-se claramente
das novas fontes informativas online, como os blogues e as redes sociais.
Quando não existe legislação específica, como é o caso do Brasil, os media optam
pela chamada autotransparência (MEIER, 2009), ou seja, orientam a sua atividade de
acordo com padrões que permitem aos consumidores perceberem a prática
profissional naquele meio de comunicação. Foi a resposta encontrada para responder
à desinformação e à perda de credibilidade junto do público (KARLSSON, 2020;
KOLISKA, 2022), pois a transparência é fundamental no combate à perda de confiança
pública (CHADHA; KOLISKA, 2015).
Como referem Kovach e Rosenstiel (2001), a transparência é uma forma de
mostrar respeito pelo público, mas também de sublinhar o interesse dos conteúdos
publicados. Por isso, sugerem que informações importantes sobre as fontes do
jornalista (quem são, que interesses têm em relação ao assunto, etc) devem ser
clarificadas nos trabalhos.
Koliska (2022) considera que existem dois tipos de transparência no jornalismo:
a que está relacionada com a produção e a que está ligada ao produtor. Na primeira
tipologia, inclui-se tudo o que está relacionado com o processo jornalístico,
nomeadamente a escolha das fontes, os critérios de hierarquização da informação e a
contextualização, usando links para antecedentes da notícia, por exemplo.
Já a
segunda tipologia refere-se à informação sobre os autores das notícias e sobre o próprio
media.
O caso português ilustra bem este segundo caso: a Lei nº 78/2015 obriga todos
os meios de comunicação a informarem a Entidade Reguladora para a Comunicação
Social (ERC) e o público sobre alguns aspetos, nomeadamente quem são os detentores
das empresas e qual a sua participação social, qual a proveniência dos maiores fluxos
financeiros, etc. É ainda obrigatório disponibilizar o nome do diretor, dos editores e
dos jornalistas, o endereço da redação, a tiragem e o estatuto editorial.
No caso do Brasil, a Lei nº 5.250, de 1967, também refere a obrigatoriedade de
todos os media serem registados em cartório, incluindo informação sobre o título ou
designação, o endereço da sede, e os nomes dos proprietários, do diretor e do redatorchefe. Mas, contrariamente ao que ocorre em Portugal, essa informação não precisa de
ser tornada pública.
Apesar do aparente interesse da transparência no jornalismo, nem todos os
envolvidos manifestam igual entusiasmo. Se para alguns a transparência é intrínseca à
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própria atividade, outros consideram que ela é sobrevalorizada e pode ser
contraproducente porque sobrecarrega o público com mais informação e limita o
trabalho dos jornalistas (VOZ; CRAFT, 2016).
De uma forma ou de outra, os consumidores esperam e valorizam a
transparência (KOLISCA, 2022), mas ela só tem um efeito positivo se as informações
forem disponibilizadas de forma clara e os recetores entenderem a sua importância
(HEALD, 2006).
2.1 Transparência e Novas Tecnologias
Como foi visto anteriormente, uma das facetas ligadas à transparência está
relacionada com as questões editoriais, ou seja, com a produção de notícias. Neste caso,
o processo é fortemente influenciado pelas tecnologias, que têm vindo a ganhar uma
crescente importância em todo o processo.
Num determinado momento da história, o lugar da evolução tecnológica ocorria
sobretudo na composição e na impressão, estando o jornalista isolado numa parte do
processo em que as ferramentas se reduziam ao papel, à caneta e ao uso esporádico do
telefone para recolher informações. Posteriormente surgiram as máquinas de escrever,
mais tarde os computadores, os telemóveis e, depois disso, a Internet, com os seus
vários serviços e plataformas. É verdade que o processo de impressão sofreu uma
evolução notável, mas no lado da produção, onde trabalha o jornalista, ocorreu uma
verdadeira revolução. A viagem desde a época do papel e caneta aos tempos do
computador apoiado pela inteligência artificial foi rápida, turbulenta e continua a
evoluir a uma velocidade que a própria atividade jornalística não consegue
acompanhar.
O peso das tecnologias no jornalismo é, hoje, muito maior do que foi no passado.
Por isso, a transparência de processos, que até determinado momento esteve ligada aos
procedimentos do elemento humano, passou e contemplar também a componente nãohumana.
Da mesma forma que a transparência nas sondagens ou inquéritos implica
tornar públicos o número e distribuição dos participantes, por exemplo, a
transparência no jornalismo com uma forte componente tecnológica deve obrigar a
esclarecer como funcionam essas tecnologias e em que dados se baseiam. No caso
particular da IA generativa, a qualidade dos dados e a sequência de procedimentos do
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algoritmo são dois elementos fundamentais para se conseguir contextualizar o
resultado.
Graefe (2016) refere que “sabe-se pouco sobre a vontade ou a necessidade dos
consumidores de notícias compreenderem o funcionamento dos algoritmos ou sobre
as informações que utilizam para gerar conteúdos”6 (p. 41), mas isso só acontece
enquanto a participação dos algoritmos não tem um peso significativo na produção
total. A partir do momento que esse peso aumenta, e começam a surgir casos de
discriminação motivados pelo uso de IA (CACHAT-ROSSET; KLARSFELD, 2023),
torna-se necessário encontrar formas de escrutinar estes sistemas.
Os leitores habituaram-se a saber quem são os autores das notícias através da
sua assinatura nos trabalhos, algo que decorre das leis, dos códigos deontológicos ou
das regras internas de cada meio de comunicação. Esta forma de transparência deverá
ser replicada nos casos em que é usada inteligência artificial, pois o uso destas
tecnologias tende a tornar os sistemas mais opacos, influenciando os princípios éticos
associados à transparência (MCBRIDE; ROSENSTIEL, 2014). Por isso, quando a
produção é total ou parcialmente gerada por IA, os leitores têm o direito de o saber
pois isso condiciona o seu entendimento dos factos relatados. Questões como a origem
dos dados, a orientação editorial seguida pelo algoritmo ou a percentagem de
intervenção humana, por exemplo, são determinantes para se contextualizar o
resultado.
3. Estudo Empírico
Sendo um fenómeno relativamente recente, a IA generativa ainda não aparece
na legislação especificamente relacionada com o jornalismo. Apesar das várias
referências existentes em leis gerais, até ao momento não existem mais do que
recomendações e, ainda assim, os exemplos são escassos. Um levantamento feito por
Cools e Diakopoulos (2023), até julho de 2023, identificou 21 organizações ligadas ao
jornalismo – jornais, rádios, agências de notícias, entidades representativas, entre
outras – que já tinham divulgado orientações sobre o uso de IA. De acordo com esse
mapeamento, a maioria das iniciativas concentra-se nos Estados Unidos da América e
na Europa, mas também há registos de meios de comunicação na América Latina e na
Ásia. Este trabalho escolheu dois meios de comunicação - Estadão e a BBC - que têm
Original: “little is known about whether news consumers (need or want to) understand how algorithms
work, or about which information they use to generate content”
6
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características muito diferentes, mas partilham uma forte presença online e são
pioneiros nesta matéria.
3.1 Objetos de Estudo
O jornal O Estado de S. Paulo, popularmente conhecido como Estadão, é um
jornal de referência brasileiro que faz parte do Grupo Estado. Foi fundado em 1875, na
cidade de São Paulo, com o nome de A província de São Paulo. É um jornal de
circulação diária e, de acordo com dados do Instituto Verificador de Comunicação
(IVC) relativos a 2022, a circulação impressa do Estadão foi de 60,4 mil exemplares
por dia. No meio digital, também no ano de 2022, registou uma circulação diária de
mais de 150 mil exemplares pagos. Atualmente, o Estadão produz e disponibiliza
conteúdos multiplataforma e, para além do site, está presente nas redes sociais, na
rádio, em aplicativos e em podcasts.
Em outubro de 2023, lançou a Leia, uma ferramenta baseada em IA que tem a
função de servir como assistente de leitura e guia de informações. De acordo com o
jornal, a Leia foi desenvolvida com a mesma tecnologia do ChatGPT e foi treinada
apenas com conteúdos produzidos pelo jornal, sem ser alimentada por outros textos
disponíveis na Internet. Contrariamente ao que ocorre no caso do ChatGPT, esta
ferramenta é capaz de indicar as fontes da informação. Um mês após o lançamento da
ferramenta, o Estadão tornou-se o primeiro jornal de referência do Brasil a publicar
diretrizes referentes ao uso de sistemas de IA.
Por sua vez, a British Broadcasting Corporation (BBC) foi fundada no ano de
1922, em Londres, tendo sido a primeira emissora pública do Reino Unido. Distribui
conteúdos informativos por meio de canais de TV, rádio, site e podcasts, além das redes
sociais. A BBC tem presença em diversos pontos do mundo, sobretudo nos países da
Commonwealth, e, desde 1938, está estabelecida no Brasil. A produção jornalística da
BBC Brasil é publicada no site, nas rádios CBN, na Globo e na TV Band. É importante
destacar que a equipa de profissionais da BBC Brasil segue os valores jornalísticos e
política editorial da casa mãe.
A BBC foi pioneira na elaboração de orientações sobre o IA, tendo publicado,
em maio de 2021, um conjunto de seis princípios norteadores para o desenvolvimento
de tecnologias baseadas em aprendizagem de máquina e um guia destinado à equipa
interna de engenheiros, cientistas de dados e gestores de produtos. Antes disso, ainda
no ano de 2017, assumiu um compromisso público para explicar o funcionamento da
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IA e, desde o ano de 2020, desenvolve um projeto que tem como objetivo tornar a IA
compreensível para o grande público7.
3.2 Metodologia
Em termos metodológicos, este estudo tem um caráter qualitativo e utiliza a
análise de conteúdo para examinar as diretrizes para o uso de IA, procurando
“desvendar e quantificar a ocorrência de palavras/frases/temas considerados “chave”
que possibilitem uma comparação posterior” (COUTINHO, 2011, p.193).
No caso deste trabalho, a análise procurou verificar que momentos do processo
jornalístico são tornados transparentes e de que forma estes media os publicitam. A
partir da revisão bibliográfica, procurou-se informação relacionada com a
transparência no uso da IA na geração de conteúdos, mas também na origem dos dados
e na responsabilidade editorial.
Para isso, nos meses de fevereiro e março 2024 foram analisados dois
documentos disponibilizados online pelos media que fazem parte da amostra: “Política
de uso de ferramentas de inteligência artificial pelos colaboradores do Grupo Estado”
(Estadão) e Guidance: The use of Artificial Intelligence (BBC).
4. Análise e Discussão
O interesse em analisar as duas recomendações assenta num princípio
fundamental: as políticas editoriais são um elemento de transparência da atividade
jornalística (CHRISTOFOLETTI et al., 2022)
O documento do Estadão foi tornado público em novembro de 2023, e está
estruturado em quatro pontos: 1) apresentação; 2) diretrizes gerais; 3) diretrizes
específicas (dividido nos subpontos “criação de conteúdos”, “criação de conteúdo
audiovisual”, “edição de textos”, “transcrição de áudio”, “tradução de textos”,
“elaboração de títulos e chamadas”, “como ferramenta de busca e pesquisa”,
“aprimoramento de materiais escritos em língua inglesa”, “extração e compilação de
dados de origem pública”; e 4) do comitê – dividido nos subpontos “da composição do
comitê” e “das atribuições”.
Já as orientações da BBC foram divulgadas em outubro de 2023 e atualizadas
em fevereiro de 2024. O guia tem nove tópicos: 1) introdução; 2) o que é inteligência
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Disponível em https://www.bbc.co.uk/rd/projects/making-ai-more-understandable
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artificial; 3) questões editoriais no uso de IA; 4) viés algorítmico e dados de treino; 5)
alucinações; 6) plágio e mimetismo; 7) questões não editoriais no uso de IA; 8)
procurando orientações; 9) casos de uso – dividido nos subcampos “usando IA
generativa para criar conteúdo”, “usando IA para auxiliar produção editorial ou
pesquisa”, “usando IA para distribuição ou curadoria de conteúdo” e “uso de IA por
terceiros, incluindo produtores independentes”.
Devido às diferenças entre documentos, a discussão foi agrupada nos três
tópicos anteriormente referidos na revisão bibliográfica: a) Posicionamento em relação
à IA e transparência na geração automática de conteúdos; b) Transparência sobre
origem dos dados, dos algoritmos e do seu uso; c) transparência sobre
responsabilidade editorial.
4.1. Posicionamento em Relação à IA e à Transparência na Geração de
Conteúdos
O primeiro critério procura verificar se os documentos identificam as vantagens
e riscos de utilização da IA nas redações e se explicitam como deve ser usada pelos
jornalistas. São ainda identificadas regras específicas para informar o público sobre o
uso de IA na geração, parcial ou total, de conteúdo.
4.1.1 Estadão
O documento do Estadão começa com uma apresentação na qual o jornal
reconhece que o contexto das tecnologias baseadas em IA se alterou nos últimos anos,
admitindo, ainda, o seu potencial para o jornalismo. O Estadão considera que os
sistemas de IA são sinónimo de eficiência e melhoria do processo editorial, mas
reconhece a existência de riscos associados ao uso indiscriminado de ferramentas,
principalmente na geração de informações incorretas, violação de direitos de autor e
utilização indevida de dados.
Ao longo do documento, o jornal especifica quais são os usos permitidos e
proibidos de IA para os seus jornalistas. O Estadão permite a utilização de inteligência
artificial na criação parcial ou integral de conteúdos, notícias, produtos e serviços;
transcrição de áudios e tradução, desde que o responsável pelo conteúdo domine o
idioma original; elaboração de títulos, metatítulos e chamadas; melhoramento de
textos escritos em língua inglesa; extração e compilação de dados procedentes de
fontes públicas.
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Em contrapartida, proíbe o uso de IA para a criação de fotos, vídeos, ilustrações
ou áudios. Também é vetada a inserção de conteúdos de propriedade intelectual do
Grupo Estado em larga escala em sistemas de IA. É ainda proibida a inserção de bases
de dados de propriedade do Grupo Estado, de dados pessoais de clientes,
colaboradores e fornecedores, e de dados empresariais, segredos de negócios e
exclusivos jornalísticos do grupo. Ainda que não proíba, o documento desaconselha o
uso de IA como ferramenta para a procura de informação e para a elaboração de
perguntas destinadas a entrevistas.
No primeiro parágrafo do item 3.1 das diretrizes, o Estadão refere que as
ferramentas de IA podem ser utilizadas nos processos de criação de conteúdo desde
que tenham supervisão e revisão humana. No entanto, o parágrafo seguinte admite que
podem existir casos em que conteúdos gerados por meio de IA sejam publicados
automaticamente, sem passar por um humano. Não é especificado o tipo de conteúdos
que pode ser publicado automaticamente, mas é enfatizado que publicações
automáticas só podem acontecer com autorização prévia do Comité de IA.
Especificando na produção automática, o jornal determina que nos casos em
que forem usadas ferramentas de IA para criar ou editar conteúdo - total ou
parcialmente - deverá ser incluído um aviso ao público: a) conteúdos submetidos a
revisão humana: “Este conteúdo foi produzido com o auxílio de ferramentas de
Inteligência Artificial e revisado por nossa equipe editorial. Saiba mais em nossa
Política de IA (link para página)”; b) conteúdos publicados automaticamente, ainda
que previamente autorizados pelo comité responsável: “Este conteúdo foi gerado e
publicado automaticamente com o uso de Inteligência Artificial. Saiba mais em nossa
Política de IA (link para página)”.
4.1.2 BBC
As orientações da BBC reconhecem que o uso da IA representa uma
oportunidade para a criatividade, a inovação e para melhorar a produtividade. Apesar
disso, a BBC reconhece igualmente que IA pode representar riscos significativos e, por
isso, qualquer uso para criar, apresentar ou distribuir está condicionado às suas
diretrizes e valores editoriais.
A BBC entende que a divulgação das orientações é uma forma de descrever como
a IA pode ser usada pelos seus jornalistas e por todos os que lhe fornecem conteúdos,
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além de ser um guia para ajudar os seus colaboradores a saberem onde, como e quando
devem procurar mais orientações sobre o uso de IA.
Na introdução do documento são listados os três princípios que orientam o uso
de IA: nunca deve prejudicar a confiança do público; deve ser transparente,
responsável e com supervisão humana; e deve ser utilizada respeitando os valores da
precisão, imparcialidade, justiça e privacidade.
O item dois do documento define IA e IA generativa e, seguidamente, identifica
os riscos associados ao uso dos algoritmos. São explicadas questões relacionadas com
o viés algorítmico e dados de treino, alucinações, plágio e mimetismo, violação de
direitos legais e proteção de dados. Para abordar a questão do viés algorítmico, por
exemplo, cita o caso de utilização de um software de reconhecimento facial para a
renovação de passaportes no Reino Unido, que por ter limitações em reconhecer
determinados tons de pele inviabilizou a renovação online dos passaportes. Face a
estes riscos, a BBC indica que qualquer utilização de IA deve ter em consideração os
preconceitos inerentes aos sistemas, a possibilidade de os resultados serem uma
invenção do algoritmo, os direitos e propriedade criativa de artistas. Alerta ainda para
os riscos associados ao uso de informações confidenciais ou comerciais em sistemas de
IA porque poderão ser usadas para o treino de algoritmos ou ser partilhadas com
terceiros.
No que concerne aos usos permitidos e proibidos, a BBC veta a utilização de IA
para criar diretamente conteúdos informativos noticiosos, exceto se o tema for a
própria IA e a utilização servir de forma ilustrativa. A exceção é a criação de gráficos,
desde que o processo seja previamente testado. É permitido utilizar sistemas de IA para
a criação de voz sintética e uso de alteração de imagens visando garantir o anonimato
de uma fonte. É ainda permitido o uso de IA para auxiliar na procura de informações e
na realização de análises, assim como para auxiliar na conceção de produtos e
storyboards. É permitido – e já acontece – o uso de IA para personalização e
recomendação de conteúdos.
Em todos os pontos do documento é destacado que o recurso a sistemas de IA
deve ser previamente proposto e discutido com um editor para avaliar a necessidade
do seu uso, sublinhando-se, ainda, que o processo passa sempre por uma revisão e
supervisão humana.
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A BBC indica que qualquer uso de IA para criação, apresentação ou distribuição de
conteúdo deve ser transparente e claro para o público, no entanto não define um
formato padrão para este tipo de informação.
Da comparação entre os dois documentos é possível concluir que ambos informam
sobre o que é permitido e o que é proibido, destacando que o público deverá ser
informado sempre que um conteúdo publicado tenha origem - parcial ou total – em
sistemas de IA. O Estadão vai mais longe, e indica qual o aviso que o público vai receber
nestes casos. A BBC não tem um aviso padronizado, mas refere que o público deverá
ser informado sempre que aceda a um conteúdo produzido com apoio de IA,
recomendando aos seus jornalistas que informem ainda os leitores como e por que
razão usaram a inteligência artificial.
Esta preocupação com a identificação dos conteúdos gerados por IA não é exclusiva
do jornalismo. Por isso, várias empresas têm vindo a apresentar soluções tecnológicas
para “rotular” a origem dos conteúdos, tal como recomenda o Estadão. É o caso da
Credtent8 que, entre outros serviços, oferece um sistema de rotulagem para conteúdos,
variando entre “conteúdo criado com IA”, “Conteúdo assistido por IA” ou “Conteúdo
criado por humanos”.
As orientações da BBC possuem um caráter mais explicativo do que as do Estadão,
principalmente em relação aos riscos associados à IA, existindo tópicos específicos
sobre o que é um viés algorítmico e como se pode manifestar, de que forma pode ter
impacto na privacidade e nos direitos de autor. Enumera, ainda, as razões pelas quais
é necessário estar vigilante em relação ao plágio.
4.2
Transparência sobre Origem dos Dados, dos Algoritmos e do seu Uso
Neste campo procuraram-se referências à identificação das bases de dados usadas
pelos meios de comunicação e se é disponibilizada alguma forma de acesso a esses
dados. Procurava-se ainda perceber se os meios de comunicação informam os leitores
sobre os sistemas de IA usados, quem são as empresas que os produzem, se os
jornalistas devem explicar como foram treinados os algoritmos, quais os
procedimentos seguidos na sua utilização e que instruções receberam para gerar
conteúdos.
8
https://www.credtent.org/
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4.2.1 Estadão
O Estadão não especifica quais são as bases de dados usadas pelos seus
algoritmos e, por isso, não disponibiliza qualquer forma de acesso. No entanto, no item
3.9 (extração e compilação de dados de origem pública), identifica que as bases de
dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), da Fundação Getúlio
Vargas (FGV), do Banco Central e do Tesouro Nacional podem ser utilizados pelos seus
jornalistas.
Não há informação sobre sistemas de IA usados nem sobre fornecedores,
porém, o Estadão informa que a contratação ou uso de ferramentas deve ter sido
previamente validada pelo Comité de IA. Também não foi possível identificar nenhuma
orientação no sentido de incentivar explicações sobre o funcionamento dos algoritmos,
nem sobre os usos de IA por parte dos jornalistas.
4.2.1 BBC
Não há nenhuma menção às bases de dados utilizadas pelos algoritmos, jornalistas
e colaboradores da BBC. Também não é disponibilizada informação sobre os sistemas
de IA usados nem sobre fornecedores. Ainda assim, o documento indica que, tanto para
a utilização de ferramentas de IA desenvolvidas por terceiros como para a utilização de
ferramentas desenvolvidas internamente, o Grupo de Risco de IA deve ser consultado.
Sublinha ainda que o uso de qualquer ferramenta externa de IA só pode ocorrer após
ser autorizado de acordo com as autorizações de software ou de aquisição da BBC.
O documento não orienta explicitamente para a obrigatoriedade de documentar os
processos em que é utilizada a IA, mas prevê que o seu uso deve ser ativamente
monitorizado e os resultados avaliados, o que pressupõe a necessidade de um registo.
Em relação à explicação sobre o recurso a ferramentas de IA, o documento não define
um modelo padrão, mas orienta os jornalistas e colaboradores no sentido de
informarem o público de forma clara e contextualizada, não apenas que a IA foi
utilizada, mas também como o fizeram e por que razão recorreram a esta tecnologia.
Na comparação entre os dois documentos percebe-se que nenhum contribui de
forma significativa para uma maior transparência em relação aos sistemas de IA
usados nem à qualidade dos dados. O Estadão refere algumas bases de dados públicas
que os seus jornalistas estão autorizados a utilizar, mas não existem referências a
outras fontes de dados para as suas ferramentas de IA. As tecnologias usadas não são
descritas e nenhum dos meios de comunicação refere quem são os fornecedores das
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tecnologias ou se foram desenvolvidas internamente. A ausência de informações desse
tipo pode ser inserida num contexto de opacidade sobre algoritmos e IA.
4.3
Transparência sobre a Responsabilidade Editorial
Neste critério procurava-se analisar se as diretrizes identificam quais são os setores
ou profissionais responsáveis pelas tomadas de decisão em relação ao uso de IA, e se
existe algum canal que permita aos leitores contactarem o meio de comunicação para
tratar de questões relacionadas com o uso de inteligência artificial (ex: solicitar
correções ou fornecer feedback sobre experiência).
4.3.1 Estadão
No caso do grupo brasileiro, é responsabilidade dos jornalistas e dos editores
verificar e confirmar a confiabilidade dos conteúdos gerados parcial ou totalmente por
IA. Além disso, o documento indica que a responsabilidade sobre a avaliação das
ferramentas, atualização das diretrizes, gestão de riscos, homologação de processos e
treino sobre o tema é do Comité de IA. Este grupo é formado por representantes das
áreas de tecnologia, redação, produto, jurídico e auditoria do Grupo Estado. Não faz
nenhuma menção à possibilidade de feedback do público, nem disponibiliza meios de
contato com o comité de IA para pessoas externas à redação.
4.3.2 BBC
O grupo mediático inglês define que em todos os casos de uso de IA deve haver
um editor sénior a supervisionar o processo. Estabelece, ainda, que acima do editor
sénior está o grupo consultivo de IA, sendo formado por especialistas em questões
jurídicas, proteção de dados, assuntos comerciais, segurança da informação e política
editorial. A função deste grupo é avaliar os riscos do uso de IA e garantir que estejam
de acordo com os princípios defendidos pela BBC. Não é feita nenhuma referência à
possibilidade de feedback do público, nem são disponibilizados contactos do grupo
consultivo.
É no campo da responsabilidade editorial que os dois grupos são mais
transparentes em relação ao uso de IA. É destacado que são os jornalistas e editores a
responder pelas decisões e por eventuais erros decorrentes. Ambos mencionam as
áreas de origem dos membros das comissões de IA, permitindo verificar que há
respaldo jurídico, editorial e tecnológico para as discussões sobre o assunto. Não
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avançam, no entanto, contactos que permitam identificar um canal de diálogo com o
público, limitando, assim, as possibilidades de feedback externo.
5. Conclusões
A confiança nas notícias tem vindo a cair ao longos dos anos. O Digital News
Report de 2022 (NEWMAN et al., 2022) destaca que em metade dos 46 países
incluídos no estudo se registou uma quebra, havendo apenas sete em que a confiança
aumentou. Os dois países envolvidos neste estudo exemplificam as quebras no período
de 2015 a 2022: no Brasil caiu de 62% para 48%, enquanto no Reino Unido desceu de
51% para 34%. O mesmo estudo avança ainda o número de consumidores que evita as
notícias, verificando-se um crescimento: tanto no Brasil (54%) como no Reino Unido
(46%), o número duplicou nos últimos cinco anos.
Esta perda de credibilidade (KARLSSON, 2020) obrigou os meios de
comunicação a repensar as suas políticas, procurando na transparência uma forma de
recuperar a confiança junto do público (CHADHA; KOLISKA, 2015).
Neste contexto, o crescente recurso à inteligência artificial por parte do
jornalismo representa uma nova ameaça à transparência e, consequentemente, à
credibilidade. Desde logo, porque o uso destas tecnologias tem sido associado à
produção de informação falsa, mas também porque os algoritmos são sistemas opacos
que transformam dados em notícias sem que se perceba a origem/qualidade dos dados,
nem a forma como a informação é recolhida, tratada e hierarquizada.
Na ausência de legislação de enquadramento para o uso da IA no jornalismo,
alguns media procuraram elaborar recomendações que têm como objetivo guiar os
seus jornalistas e, simultaneamente, tornar mais transparente para o público a forma
como ela é usada, procurando distinguir-se de outras fontes noticiosas sem
credibilidade.
Neste trabalho foram analisadas as diretrizes publicadas por dois grupos
mediáticos de referência - Estadão e BBC – por serem pioneiros nesta matéria.
Os resultados permitem concluir que ambos os meios de comunicação
demonstram preocupação em definir o seu posicionamento sobre a IA, admitindo que
é uma tecnologia já integrada nas rotinas jornalísticas. Estadão e BBC destacam que
todas as decisões relativas ao uso da IA são determinadas pelos profissionais, com
revisão, monitorização e atualização permanentes asseguradas por comissões
especializadas. Este é um aspeto relevante, pois assegura que todo o conteúdo é
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produzido de forma responsável e seguindo os parâmetros éticos e deontológicos do
jornalismo, o que reforça a sua credibilidade.
A divulgação das diretrizes cumpre um papel relevante no sentido da
transparência sobre a incorporação de novas tecnologias nas rotinas jornalísticas.
Ainda que sejam abordagens generalistas, permitem perceber qual é o posicionamento
dos meios de comunicação, quais são as fronteiras éticas e deontológicas que
delimitam o processo e quais são as ações tomadas até ao momento. Ainda assim, a
transparência não avança para questões sensíveis, como a origem dos dados – o
Estadão menciona alguns exemplos, mas não clarifica se usa apenas aqueles –, a
autoria, a forma como funcionam ou os sistemas de treino e escrutínio.
Na era da Inteligência Artificial, a informação sobre a origem dos conteúdos é
crucial. No caso específico do jornalismo, uma atividade umbilicalmente ligada aos
conceitos de transparência e credibilidade, a importância é ainda maior. Saber quem
produziu um conteúdo, como o produziu e em que dados se baseou sempre foi
importante, mas agora tornou-se decisivo para a sobrevivência do jornalismo.
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Este é um ARTIGO publicado em acesso aberto (Open Access) sob a licença Creative
Commons Attribution, que permite uso, distribuição e reprodução em qualquer meio,
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