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Defesa e arbitrariedade nas condenações
do Santo Ofício da Inquisição a cristãos-novos
da Bahia setecentista
Suzana Severs
universidade do Estado da Bahia
O propósito deste artigo é introduzir um estudo que desenvolvo
acerca das sentenças proferidas pelo santo Ofício português a cristãosnovos residentes na Capitania da Bahia julgados por criptojudaísmo
durante a gestão do inquisidor-geral D. Nuno da Cunha de ataíde e Melo
(1707-1759). Exercitamos a pesquisa histórica tentando mostrar possíveis
implicações entre a defesa apresentada e a conclusão de seus processos ao
examinar, comparativamente, artigos de defesa com sentenças imputadas.
Tomamos como objeto de uma investigação inicial sobre o tema, as coartadas e as contraditas elaboradas por três cristãos-novos residentes na
cidade de salvador que foram presos pelo Tribunal de Lisboa, dois em
1726 e um em 1729 acusados de observarem secretamente práticas religiosas judaicas.
após um período de relativo retraimento da persecução inquisitorial
consequente dos anos em que permaneceu inativa por ordem papal (dezembro de 1674 – agosto de 1681), a ação inquisitorial ganhou novo fôlego na regência de D. João V (1707-1750), também cognominado de rei Fidelíssimo, e na gestão do seu, já citado, inquisidor-geral D. Nuno da
Cunha de ataíde, quando se pode observar, seguindo a investigação de
Maria Luiza Braga, o aumento significativo de prisões tanto de judaizantes
como de acusados dos demais desvios da alçada inquisitorial 1.
Nossas pesquisas têm constatado que a maioria das prisões ocorridas
na Capitania da Bahia, especialmente entre 1725-1730, foi contra cristãos-novos reinóis fruto de denúncias formuladas por parentes e amigos resiMaria Luísa Braga, “a inquisição na Época de D. Nuno da Cunha de ataíde e
Melo (1707-1759)”, Cultura. História e Filosofia, vol. 1, 1982, pp. 175-260.
1
Cadernos de Estudos Sefarditas, vol. 15, 2016, pp. 85-98.
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dentes em Portugal, igualmente presos. Notamos que a atividade inquisitorial na capital da Colônia brasílica foi uma continuidade desta persecução acirrada em Portugal, pois até agora é insignificante o número de
prisões decorrentes de denúncias às autoridades inquisitoriais locais.
O santo Ofício dava oportunidade ao prisioneiro de participar de uma
mis-en-scène de legitimação dos procedimentos de condução dos processos
fazendo com que os argumentos e as acusações nunca fossem refutados
assertivamente pelos argumentos e informações do réu. Era a defesa, veiculada pelos já mencionados artigos de defesa coartadas e contraditas, instrumentos processuais pelos quais o réu, sem conhecer o nome de seus delatores, questionava a respeito do tempo e do local onde disseram que
ocorreu o crime imputado, apresentava um álibi e testemunhas abonatórias de sua fidelidade à religião católica, e tentava provar, em geral, que a
acusação partira de inimigos interessados em vingança pessoal.
a defesa propiciada pela inquisição nunca teve o resultado que os
réus esperavam, nem era esta a intenção. Não lhes trazia benefício algum,
ao contrário, arrastavam-se por mais tempo nos cárceres dos Estaus esperando que as testemunhas nomeadas fossem interrogadas nas mais longínquas vilas e lugares de Portugal ou do Brasil.
Diogo de Ávila Henriques usou de todo o seu direito de defesa. Em
várias sessões da “Prova da justiça” este mercador cristão-novo, preso
quando residia em salvador, elaborou vinte artigos de Coartadas, tentando provar sua ausência no tempo e local declarado pelas testemunhas,
e ser um bom católico. E mais 51 artigos de Contraditas, nomeando inimigos e a razão da animosidade, em uma tentativa frustrada de demonstração da má intenção de seus delatores ao irem denunciá-lo. Nomeou 61
testemunhas de defesa residentes em Portugal e na “cidade da Bahia”,
como era chamada a capital do Estado do Brasil.
Passados cinco anos no cárcere, apresentando e reapresentando artigos de defesa, os inquisidores de Lisboa, parecendo irritados com a sua
persistência, perguntaram-lhe sobre sua real pretensão: “se o que alega
nos ditos artigos de Coartadas e Contraditas se passou na verdade ou vem
com eles para embaraçar e dilatar sua causa?” 2. responde-lhes o réu: “por
Lisboa, arquivo Nacional da Torre do Tombo (aNTT), Tribunal do santo Ofício
(TsO), inquisição de Lisboa, processo n.º 2121.
2
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passar na verdade, só vem com os ditos artigos por entender que fazem a
bem de sua justiça, e não por dilatá-la ou embaraça-la.” 3
Ávila Henriques continuava sem confessar e a proceder com sua defesa. Os inquisidores concluem o seu processo considerando:
“E posto que o réu artificiosamente pretende debilitar esta exuberante
prova da Justiça com a grande quantidade de Coartadas e Contraditas com
que veio [...] devia ser entregue à justiça secular e confiscação de todos os
seus bens.”
até que ponto a defesa apresentada pelos réus interferia no julgamento dos inquisidores? É essa proposição que lançamos à discussão
mediante esse estudo propedêutico.
Julgado “herege, negativo e pertinaz”, Diogo de Ávila Henriques confessou de mãos atadas a dois dias da promulgação de sua sentença. Denunciou inicialmente seus pais, irmã, tios, seguindo um rol de pessoas
cujo grau de parentesco se distanciava. as declarações de Judaísmo, exceto uma ocorrida na Bahia, remontavam a vilas portuguesas, principalmente a azevo, sua terra natal, e recobriam as práticas comuns a todos os
processos. sua pena foi então comutada e saiu vivo do cárcere, embora
padecesse nas galés por cinco anos.
O mesmo procedimento de defesa teve Félix Nunes de Miranda, desafeto declarado de Ávila Henriques. Como ele, tentou provar que sua prisão
decorria dos falsos testemunhos proferidos por seus inimigos e que ele era
um bom católico. Com bem menos artigos de defesa que Ávila Henriques,
os inquisidores deram o processo por concluso, considerando-o réu “convicto, confesso, diminuto impenitente e relapso no crime de heresia e apostasia e que foi e ao presente é herege e apóstata de Nossa santa Fé” 4.
Mesmo confessando de mãos atadas, como fez Ávila Henriques, sua pena
não foi comutada e pereceu na fogueira após ser garroteado.
O caso de Félix Nunes de Miranda pode ser visto sob a ótica da punição capital aos relapsos, ou seja, processados pela segunda vez. Como
nor matiza do regimento do santo Ofício de 1640 aos reincidentes
no crime contra a fé, mesmo convencendo os inquisidores de seu arre3
4
Ibidem.
aNTT, TsO, inquisição de Lisboa, processo n.º 2293.
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pendimento, “[...] será relaxado, e entregue à justiça secular, e perderá
seus bens […]. 5
Entretanto, em outro artigo do mesmo regimento, ao regular que
“[...] se a presunção, que resultar da prova seja somente leve [...]”, ou seja,
caso a suspeita que recaiu sobre o prisioneiro não fora grave, “[...] terá as
penas, e penitências, que se entender, que convém à salvação de sua alma
[...]”, quer dizer então a sentença dependeria da vontade dos inquisidores
que tratavam de sua causa. Daí posso inferir preliminarmente que: examinando as sentenças ou a qualidade da condenação imputada a esses prisioneiros, é possível avaliar a medida da ação inquisitorial. Os inquisidores
dispunham de completa autonomia para deliberar as punições, apesar
delas serem estatuídas pelo regimento do santo Ofício.
a observação inicial a ser feita reporta-se à categorização dos réus.
réu apresentado qualificava o indivíduo que foi até às autoridades inquisitoriais confessar-se, alguns antes mesmo de terem denúncias formuladas; e réu preso, já denunciado, esperou ter seu mandado de prisão
executado.
Os réus apresentados eram, em geral, reconciliados, ou seja readmitidos no seio da igreja por assumirem a culpa e assim terem a aceitação de
suas confissões pelos inquisidores, especialmente quando denunciavam os
parentes próximos e, caso já fossem delatados, vaticinar contra todos que
os acusaram. saíam com vida dos cárceres 6. No grupo de cristãos-novos
pesquisado 7, não há notícias de condenação diferente desta aos réus apresentados, nem mesmo graves penas como açoites, degredo e galés; aos
réus presos, além da reconciliação que foi a maioria dos casos dos penitentes da inquisição portuguesa, havia ainda a possibilidade de serem relaxados à justiça secular, ou seja, grosso modo, condenados à pena de morte
5
Regimento do Santo Ofício da Inquisição dos Reinos de Portugal (1640), livro iii, título Vi. in
Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, ano 157, n.º 392, Jul/set. 1996, pp. 842-845.
6
Ibidem, livro iii, título i (pp. 829-832).
7
No momento atual dessa pesquisa arrolamos um grupo de 264 pessoas, sendo 170
homens e noventa mulheres, as quais foram apresentadas em minha Tese de Doutoramento defendida no ano de 2002 na universidade de são Paulo, Brasil, intitulada Além da Exclusão: a convivência entre cristãos-novos e cristãos-velhos na Bahia setecentista. No entanto, são estas
mesmas personagens que possibilitam o avanço da investigação histórica, agora focada na
análise processual.
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por se negarem judaizantes e/ou não nomearem possíveis suspeitos e
conhecidas culpas.
Havia ainda diferentes penas, como “[...] abjuração, degredo, açoite,
reclusão, cárcere, hábito penitencial, condenação pecuniária e penitencias
espirituais [...]” 8, com as quais “[...] se costuma no santo Ofício castigar
os culpados, segundo a diferença dos crimes, estado da causa, e qualidade
das culpas, e das pessoas, que as cometerão [...]”. 9 Essas diferentes propriedades de condenações, presumo, evocam a disposição pessoal do
inquisidor no julgamento. Observamos que, para além das normatizações
do regimento de 1640, um critério para atribuição das penas estaria
baseado no comportamento do réu e da sua disposição para dar confissão e responder aos interrogatórios. Confrontando-se alguns casos encontrados, depreendemos que, às vezes, as penas atribuídas a esses réus cristãos-novos foram consequência da atitude que assumiram diante do
inquisidor no correr dos inquirições.
Dentre os sessenta penitenciados moradores na Capitania da Bahia
nos primeiros trinta anos do século XViii, identificamos cinco cristãos-novos condenados a morte. Os demais foram “reconciliados”. Todavia,
apresentamos aqui apenas o processo contra Félix Nunes de Miranda, estudado comparativamente a outros réus que, como ele, começaram a responder os interrogatórios dizendo-se inocentes, apresentaram defesa ao
santo Ofício, permaneceram vários anos nos cárceres e tiveram diferentes
punições. assim, coloco-me aberta à discussão em torno da arbitrariedade
do julgamento dos inquisidores.
* * *
Os cristãos-novos reinóis moradores na cidade de salvador da Bahia,
antonio da Fonseca, Diogo de Ávila Henriques, antonio Cardoso Porto
e Félix Nunes de Miranda (todos mercadores) tiveram suas prisões executadas mais ou menos na mesma época. Cardoso Porto e Ávila Henriques
foram presos em um mesmo dia do ano de 1726. antonio da Fonseca um
ano depois e Félix Nunes de Miranda no seguinte.
ao chegarem diante dos inquisidores do Tribunal de Lisboa, negaram
8
9
Regimento do Santo Ofício (1640)..., livro iii (pp. 828-829).
Ibidem.
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prontamente ter qualquer culpa a ser julgada pelo santo Ofício. Malgrado
não ser dado conhecimento ao réu sobre a causa da prisão, a ela reportando-se vagamente, esses cristãos-novos sabiam o que estava acontecendo e o que estava por vir.
seus processos seguiram o mesmo procedimento burocrático. arrolaram os bens, disseram sobre suas genealogias, apresentaram artigos de defesas. Cardoso Porto e Fonseca foram torturados. ambos contestaram
sua origem judaica: Fonseca, a assumindo parcialmente, enfatizou ser
meio cristão-novo pelo lado materno e ter sido criado como cristão-velho;
Cardoso Porto insistia em ser cristão-velho, atribuindo-se uma filiação
falsa e, antes que os inquisidores procedessem à investigação da “qualidade de sangue”, como praxe nestes casos, ele mesmo pediu a averiguação
de sua origem 10.
Diogo de Ávila Henriques, contra quem havia 51 denúncias de práticas religiosas judaicas, disse que não tinha culpa a confessar porque sempre creu na fé católica e nunca alguém tentou desvia-lo. Félix Nunes de
Miranda alegou ser vítima de falsos testemunhos de seus inimigos e imediatamente apresentou argumentos discorrendo sobre desafetos com cristãos-novos da Bahia que poderiam denuncia-lo por má-fé. Persistiram o
tempo todo em contar suas desavenças procurando uma saída para escaparem das acusações.
Ávila Henriques, Fonseca e Cardoso Porto propuseram a investigação
do comportamento católico, sendo inquiridas várias testemunhas tanto na
Capitania da Bahia quanto em Portugal, as quais os abonaram bons católicos, ainda que um ou outro depoimento não tenha sido favorável.
antonio Cardoso Porto, confundia os inquisidores com suas afirmações contraditórias, ora dizia-se cristão-velho, ora induzia seu companheiro de cárcere a denunciá-lo como judeu professo. sua intenção era
não ser considerado cristão-novo e, como tal, apóstata da fé católica. se
judeu, não poderia ser julgado por um foro eclesiástico, não era súdito da
igreja; se cristão-velho, estava longe de ser aclamado criptojudeu. Confes10
suzaNa M. DE s. s. sEVErs, “um “heresiarca” na Bahia setecentista: judaísmo e
inquisição”, Práxis. Revista Eletrônica de História e Cultura. Disponível em http://revistas.unijorge.edu.br/praxis/2011/pdf/107_umHeresiarcaNaBahia.pdf (Consultado em 25-02-2015).
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sou não dizer a verdade no início de sua causa porque “[...] esperava ver se
por este modo podia livrar seus bens e fazendas [...]” 11 do confisco,
porém, se resolveu passar de réu negativo (isto é, negar convictamente
que tinha culpa) a confitente por não lhe haver alternativa, mesmo entendendo que depois de confessar não protegeria mais seus bens. seriam irremediavelmente confiscados.
Diogo de Ávila Henriques, como já discorrido anteriormente, levou
os inquisidores a pensar que pretendia embargar os trabalhos do santo
Ofício com suas dezenas de proposições de defesa. antónio da Fonseca
manteve sua negação de culpas por quase dois anos, quando então confessou práticas judaicas e declarou cúmplices. as testemunhas de defesa
que nomeou já haviam discorrido sobre seu bom comportamento católico e afiançado as inimizades que relatara. Meses depois dessa confissão
foi julgado.
Félix Nunes de Miranda na condição de réu reincidente confessou
episódios ocorridos na última década do século XVii, quando ainda
vivia em Castela, trinta, quarenta anos antes dessa prisão em Lisboa. Justificou aos inquisidores que havia sido réu apresentado ao Tribunal de
Llerena, Espanha, por indução de seu tio, o médico Francisco Nunes de
Miranda, ao quererem livrar-se da cadeia em que estavam presos com
outros parentes acusados de um roubo a uma igreja da cidade de Plasencia, fronteiriça com o reino luso, e temiam uma severa condenação pela
justiça comum 12.
Neste tempo, disse Félix Nunes de Miranda, mostrava a seus tios que
era judaizante por ser jovem e lhes dever obediência, embora em seu
íntimo nunca se distanciara da fé católica. Obviamente esta confissão não
foi satisfatória. Havia delações de amigos e parentes presos há dois, três
anos antes que ele, e um de seus filhos já estava preso no mesmo Tribunal
de Lisboa sem que soubesse.
interessante é o comentário dos inquisidores sobre um interrogatório
com o já sentenciado João gomes de Carvalho quando foi chamado ao
aNTT, TsO, inquisição de Lisboa, processo n.º 8887.
Michèle Escamilla-Colin trata en passant deste episódio. Cf. MiCHèLE EsCaMiLLaCOLiN, Crimes et Châtiments dans l’Espagne Inquisitoriale, vol. i, Paris, Berg international, 1992,
pp. 336-338.
11
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Palácio dos Estaus para ser reperguntado acerca da confissão, declarando
cumplicidade nas práticas criptojudaicas com Félix Nunes de Miranda, de
quem era amigo quando moravam na Bahia. Os inquisidores entenderam
por seus gestos que gomes de Carvalho lhe queria aliviar a culpa:
[...] com especial cautela, cuidou na repergunta fazer menos culpa ao réu, dizendo-lhe [se Félix Nunes de Miranda] vivia na Lei de Moisés, ele se calara,
encolhera os ombros, bem se deixa ver a malícia da testemunha e que a tal
culpa ainda que ficasse só na fautoria tende para o mesmo fim e indício para
cumulativamente fazer a mesma prova no crime do segundo lapso 13.
Este foi um mecanismo que os inquisidores se valeram para provar
que Félix Nunes de Miranda era judaizante e não confessava: um gesto.
Consideraram o gesto de seu amigo como um consentimento da culpa.
ainda que gomes de Carvalho não tivesse expressando-se verbalmente,
assim o interpretaram. Por seu sentimento em não querer piorar a causa
do amigo ou por sua malícia, foi considerado pelos inquisidores como
fautor “[...] que na repetição fica em uma fautoria in omitendo [...]” 14, ou
seja, protegendo os hereges e seus erros. ao que parece, João gomes de
Carvalho não foi processado mais uma vez pelo santo Ofício, ainda que a
fautoria fosse punida severamente, pois em 1741 teve o “hábito penitencial” (sambenito) retirado e suspensa a pena de cárcere. 15
Ávila Henriques e Nunes de Miranda convenceram-se de que a confissão de criptojudaísmo era o mais conveniente quando receberam a notícia que seriam levados à fogueira. antónio Cardoso Porto chegou a confundir os inquisidores, mas diante das torturas sofridas e do inevitável
confisco de seus bens, procurou sair do cárcere com vida e sem degredo
ou galés. antónio da Fonseca levou dois anos para perceber que o melhor
caminho era confessar mesmo o que não fez, mas confessar.
ao réu relaxado procediam ao atar-lhes as mãos dois dias antes do
auto-de-fé. Em geral, os autos-de-fé eram realizados aos domingos e
desde a sexta-feira o réu entrava no “corredor da morte”, utilizando-me
de expressão atual. Não havia escapatória a não ser prorromper a confesaNTT, TsO, inquisição de Lisboa, processo n.º 2293.
Ibidem.
15
aNTT, TsO, inquisição de Lisboa, processo n.º 8764.
13
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sar tudo e contra todos aqueles que viessem à memória com o propósito
de acertar as acusações e os acusadores. Ávila Henriques teve mais sorte
que Nunes de Miranda. sua confissão foi considerada satisfatória e sua
pena de morte foi comutada para “[...] cárcere e hábito penitencial sem
remissão com insígnias de fogo e cinco anos de galés [...]” 16, a mais grave
depois da condenação à morte. Félix Nunes de Miranda foi queimado.
Cardoso Porto não teve o peso destas condenações e foi punido com
“cárcere e hábito penitencial perpétuo” 17.
Exceto antónio da Fonseca, cujo processo ainda corria a esta época,
os demais foram expostos no auto-de-fé de 17 de junho de 1731. Presenciaram, portanto, ao falecimento daquele com quem conviveram durante
alguns anos na cidade de salvador, seja como amigo ou inimigo.
algo, porém diferenciava o processo de Félix Nunes de Miranda. O
fato de ser réu relapso não interferiria em sua dramática condenação; três
primos seus foram sentenciados por reincidência e tiveram suas vidas
poupadas, apesar das duras punições. Félix foi vítima de denúncias do
cumprimento de jejuns judaicos dentro do cárcere. Em outras palavras,
houve culpas de criptojudaísmo formadas contra ele dentro do próprio
cárcere. Denúncias suspeitas quanto a sua própria natureza. Os inquisidores mandavam Familiares do santo Ofício vigiar os réus através de pequenos orifícios na parede, eram os cárceres de vigia, estudados por Charles
amiel 18. E eles podiam dizer o que bem quisessem.
Essa era uma modalidade de espionagem e de comprometimento do
réu conhecida como “vigia de cárcere” ou cárcere de vigia. O preso
sequer suspeitava que estivesse sob observação e dificilmente confessaria
aos inquisidores que praticara, ou não, ritos considerados heréticos
durante a reclusão.
Félix Nunes de Miranda e outro réu com quem compartilhava a cela
foram espreitados durante algumas semanas por quatorze Familiares do
santo Ofício que se revezavam duas vezes por dia. através destas minúsaNTT, TsO, inquisição de Lisboa, processo n.º 2121.
aNTT, TsO, inquisição de Lisboa, processo n.º 8887.
18
CHarLEs aMiEL, “Os cárceres de Vigia da inquisição Portuguesa”, in Ibéria Judaica:
Roteiros da Memória. Org. anita Novinsky e Diane Kuperman, rio de Janeiro, são Paulo,
Expressão e Cultura, Edusp, 1996, pp. 141-150.
16
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culas aberturas na parede da cela, estes colaboradores da inquisição disseram que pôde distinguir e concluir que Félix jejuava conforme o rito
judaico e orava gesticulando segundo a tradição judaica. Foram oito dias
de vigilância, alguns deles durante três dias consecutivos, registrando o
total de oito jejuns judaicos na cela.
Bastante contundente essa posição no caso específico de Félix Nunes
de Miranda. a despeito dos inquisidores considerarem sua confissão completa, não falou dos jejuns no cárcere, talvez nem mesmo os tenha feito.
Foi qualificado como “réu convicto, diminuto, impenitente e relapso” 19,
ou seja, não apresentava suficiente arrependimento e omitiu certos erros.
a gravidade da condenação atribuída a Diogo de Ávila Henriques,
diferentemente de Félix Nunes de Miranda e antonio Cardoso Porto foi
a persistência em fazer valer sua palavra, insinuando um comportamento
não aceito pelos inquisidores. Félix tinha uma acusação de jejum no cárcere que não podia adivinhar. Cardoso Porto confirmou que passava de
negativo a confitente para tentar evitar o confisco de seus bens, já que não
havia convencido ser judeu ou cristão-velho. Ávila Henriques tinha a intenção de minar as denúncias, usando de todos os meios burocráticos de
defesa que estivessem a seu alcance. a atitude desse réu pode ser compreendida como um desafio aos inquisidores, uma vez que não se deixou conduzir pela verdade pretendida da inquisição até que não teve alternativa.
a atitude de Félix Nunes de Miranda é singular. Ele já havia vivido a
reclusão durante dois anos na Espanha e conhecia os métodos inquisitoriais. Chegou mesmo a beneficiar um primo com informações sobre seus
denunciantes 20. Como vimos, esse cristão-novo relutava em denunciar sua
esposa e seus filhos, pois uma confissão só era válida envolvendo parentes mais próximos, as pessoas em que a confiança promovia a prática secreta dos ritos e cerimônias judaicos. Mesmo assim não o fez. Mas, foi
surpreendido por esses vigias de cárcere que o denunciaram antes que ele
proferisse alguma palavra, alguma confissão. se jejuou ou não na cela, isto
não vem a ser o cerne da questão. O que importa é o fato de sua sentença
já ter sido arbitrada no dia em que os inquisidores resolveram vigia-lo, no
dia em que houve a primeira acusação de jejum judaico.
19
20
aNTT, TsO, inquisição de Lisboa, processo n.º 2293.
aNTT, TsO, inquisição de Lisboa, processo n.º 900.
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aos réus que foram presos por situações semelhantes de reincidência
tiveram diferentes condenações, nem todas tão severas como eram prescritas as punições nestes casos. avaliamos especialmente os dossiês dos
irmãos Pedro Nunes de Miranda e ana Bernal de Miranda e de seu primo
David de Miranda. Pedro Nunes de Miranda e David de Miranda tiveram
suas prisões efetuadas com diferença de um mês, outubro e novembro de
1714, respectivamente. ana Bernal foi bem mais tarde, em 1726.
ao entrarem no cárcere, depois de cumprirem os procedimentos exigidos pela burocracia do processo inquisitorial, iniciaram suas confissões
como de praxe. Falaram do ensino da Lei de Moisés, arrolaram todos os
parentes e amigos, sem sequer omitirem os mortos.
ambos haviam recebido do primo, Félix Nunes de Miranda, uma lista
contendo os nomes das pessoas que deveriam confessar cumplicidade. E
assim procederam. Os inquisidores não sabiam do uso deste estratagema
de resistência? Os encarceramentos duraram pouco mais de um ano, embora suas causas tenham sido das mais breves encontradas dentre os sessenta prisioneiros dos quais falamos.
Mesmo com toda essa mostra de arrependimento e confissões satisfatórias, David de Miranda foi levado a tormento, possivelmente porque lhe
havia escapado um nome registrado nas anotações dos inquisidores. seus
processos findaram na mesma época, sentenciados no auto-de-fé do dia
16 de fevereiro de 1716. Foi neste momento que Pedro Nunes de
Miranda, detido um mês antes de seu primo, soube que não estava sozinho no cárcere.
Não houve uniformidade nos julgamentos. Pedro Nunes de Miranda
foi punido a “cárcere e hábito a arbítrio dos inquisidores”, e David recebeu a pena de “cárcere e hábito penitencial perpétuo” 21. Na formalidade
do regimento da inquisição de 1640, Pedro não ultrapassaria nove meses
para ser dispensado do sambenito, enquanto que David permaneceria
com a túnica penitencial por cinco anos. Esta diferença mostra um julgamento que atribuía diferentes níveis de gravidade a um mesmo crime, a
um comportamento similar dos réus, a uma maior ou menor resistência a
confessar.
Por que estas diferenças de condenação? uma hipótese é o fato de
21
aNTT, TsO, inquisição de Lisboa, processos n.º 9001 e n.º 7489, respectivamente.
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David de Miranda ter sido torturado por alguma diminuição, ou seja não
citar algum suposto cúmplice registrado nas delações. Os dois primos não
apresentaram Contraditas nem Coartadas, não foram delatados por jejuns
no cárcere, não relutaram em falar da família, mencionaram todos os
amigos, quer se encontrassem no Estado do Brasil ou no reino. O que
condicionou punições com diferentes graus de severidade, além de uma
possível omissão de David a alguma culpa? David de Miranda foi torturado, embora estivesse sempre admitindo ser criptojudeu.
a segunda prisão de ambos por relapsia ocorreu com três anos de diferença uma da outra. Neste meio tempo, a irmã de Pedro Nunes de Miranda, ana Bernal de Miranda, foi levada pela primeira vez para o Tribunal de Lisboa, em novembro de 1726, David e Pedro por relapsia,
respectivamente 1728 e 1731.
ana Bernal de Miranda teve uma causa difícil. Não lhe bastou falar dos
cúmplices. Como sempre, faltava alguém. Foi posta a tormento, já quase
próximo à conclusão do processo, insistindo não haver mais nada a confessar; foi punida a cárcere e hábito penitencial perpétuo 22. Não retornou mais
à “cidade da Bahia”, ficando residindo em Lisboa por ordem do santo
Ofício, com sua irmã, Maria Bernal de Miranda, processada em 1730.
a segunda prisão de ana Bernal foi mais dramática. quatro acusações
a implicaram mais uma vez no santo Ofício, bem menos que as da primeira prisão. Doze anos antes foram 16 confissões contra ela provenientes de amigos e parentes do rio de Janeiro e, sobretudo de salvador
presos no Tribunal lisboeta. Desta vez, todos que a delataram eram moradores em Lisboa, nenhum parente, nenhum cristão-novo da Bahia. Três
de suas denunciantes eram prisioneiras no mesmo tribunal, o quarto foi
um Familiar do santo Ofício encarregado de vigiar sua casa em dias de
sábado. Procuravam uma suspeição de Shabat para implica-la. uma prisão
anunciada?
ana Bernal apresentou artigos de Contraditas, envolvendo cristãos-novos lisbonenses. Desfaleceu durante o tormento, confessou e, em 1741,
foi condenada à gravíssima pena de cárcere e hábito perpétuo sem remissão, acrescida de “degredo por seis anos para a ilha de Cabo Verde” 23.
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aNTT, TsO, inquisição de Lisboa, processo n.º 2424.
Ibidem.
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DEFEsa E arBiTrariEDaDE Nas CONDENaçõEs DO saNTO OFíCiO Da iNquisiçãO...
seus parentes, Pedro Nunes de Miranda e David de Miranda, continuaram comportando-se no segundo julgamento da mesma forma que se
comportaram no primeiro. David restringiu-se a confessar suas culpas na
mesma direção anterior: práticas judaicas e cúmplices. Pedro, talvez movido por um desespero de ter sua causa agravada na qualidade de reincidente, confessou fatos singulares no sentido de que não foram encontrados relatos semelhantes em outros processos consultados.
revelou aos inquisidores, por exemplo, a possível corrupção de seus
funcionários que, apesar do segredo jurado e punição se violado, seu
primo Félix Nunes de Miranda conseguiu e lhe entregou uma lista com
nomes dos seus possíveis delatores, episódio já mencionado. revelou
também a estratégia de prevenção ao confisco que acordou a favor de
outro cristão-novo residente na Bahia, gaspar Henriques. Esse, prevendo
que seria preso, quis salvaguardar seus bens do confisco propondo a
Pedro uma dívida fictícia para que o santo Ofício lhe restituísse o dinheiro como credor. Disse até que, ao saber da captura de gaspar Henriques,
procurou imediatamente o Fisco em salvador para entregar o crédito que
tinha em mãos, um escrito de dívida, resultando em inimizade com dois
outros cristãos-novos testemunhas do acerto com gaspar Henriques 24.
É possível que estas confissões tenham rendido a Pedro Nunes de
Miranda a mesma condenação à “cárcere e hábito penitencial a arbítrio
dos inquisidores”. David de Miranda teve agravada à primeira condenação, “cárcere e hábito penitencial perpétuo”, a qualidade “sem remissão”,
que implicava o uso do sambenito por não menos que cinco anos.
que atitude ou comportamento diferenciado tiveram esses penitenciados? ana Bernal de Miranda demorou mais tempo para confessar do
que seus parentes, assim como o fez Diogo de Ávila Henriques. ambos
procuravam desfazer as acusações daqueles que consideravam ter agido
com má-fé. ana teve um julgamento mais severo do que Diogo por ser
acusada de relapsia. Porém, Ávila Henriques, também condenado a degredo assim como ana Bernal, não era reincidente como também não o
ao santo Ofício cabia restituir os credores dos presos após descontarem de seus
bens sequestrados todo custeio do prisioneiro, desde as despesas no cárcere até as custas
do processo. Cf. Regimento do Santo Ofício (1640)..., livro i, título Viii.
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suzaNa sEVErs
era Pedro Nunes de Miranda, punido com cárcere e hábito penitencial a
arbítrio.
Para o cristão-novo não havia saída. ainda que a população “baiana”
cristã-velha mantivesse focos de relativa sociabilidade, e cristãos-novos e
cristãos-velhos pudessem conviver amigavelmente, as marcas que a persecução inquisitorial deixavam eram profundas à alma do prisioneiro e à sua
condição de vida. Essas considerações traçadas a respeito das punições
levam a pensar que algumas atitudes dos prisioneiros condicionavam o
seu destino nas mãos dos inquisidores, a qualidade da pena. quando os
réus rendiam-se aos pressupostos de suspeição de heresia e involuntariamente colaboravam para o aumento do número de inculpados, recebiam sentenças menos rigorosas.
Não podemos esquecer, contudo, que tanto no caso de “réu apresentado” como o “réu preso”, o estigma de processado acompanhavam-no e
a sua família, não se dissolvendo com o retorno ao mundo exterior, onde
encontravam dificuldades para retomar suas atividades, seus cotidianos.
Posso, portanto, inferir que eram as alternativas que os próprios cristãos-novos criavam, descobriam e punham em prática que funcionava mesmo
como defesa contra o santo Ofício, mas este é um outro estudo.
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