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Kant entre Franceses, Ingleses e Alemães

2022, Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea

Resumo: Dando continuidade a tarefa proposta na primeira parte, o presente artigo pretende apresentar um diálogo entre Kant e Rousseau no que concerne a relação entre ética e antropologia. Nesta segunda parte, o presente artigo pretende explorar a leitura crítica e original que Kant faz da teoria antropológico-perfectibilista de Rousseau. A obra de Rousseau-ou mais precisamente, sua proposta de uma teoria do ser humano-é decisiva para a gênese da antropologia kantiana por representar um ponto de viragem, segundo nossa hipótese interpretativa, nas considerações de Kant acerca não somente da moral, mas fundamentalmente da história e da antropologia.

DOI: https://doi.org/10.26512/rfmc.v10i2.44174 Kant entre Franceses, Ingleses e Alemães: Diretrizes Histórico-Filosóficas da Gênese da Antropologia Kantiana (Parte 2)* [Kant among French, English and German: Historical-Philosophical Guidelines of the Genesis of Kantian Anthropology (2nd Part)] Gabriel Martins Ferreira** Resumo: Dando continuidade a tarefa proposta na primeira parte, o presente artigo pretende apresentar um diálogo entre Kant e Rousseau no que concerne a relação entre ética e antropologia. Nesta segunda parte, o presente artigo pretende explorar a leitura crítica e original que Kant faz da teoria antropológico-perfectibilista de Rousseau. A obra de Rousseau – ou mais precisamente, sua proposta de uma teoria do ser humano – é decisiva para a gênese da antropologia kantiana por representar um ponto de viragem, segundo nossa hipótese interpretativa, nas considerações de Kant acerca não somente da moral, mas fundamentalmente da história e da antropologia. Palavras-chave: Kant. Rousseau. Antropologia. Perfectibilidade. História da Filosofia. Abstract: Continuing the task proposed in the first part, this paper intends to present a dialogue between Kant and Rousseau regarding the relationship between ethics and anthropology. In this second part, the present article intends to explore Kant’s critical and original reading of Rousseau’s anthropological-perfectibilist theory. Rousseau’s work - or more precisely, his proposal for a theory of the human being - is decisive for the genesis of Kantian anthropology because it represents a turning point, according to our interpretative hypothesis, in Kant’s considerations not only about morality, but fundamentally about history and anthropology. Keywords: Kant. Rousseau. Anthropology. Perfectibility. History of Philosophy. * Este artigo representa (com modificações) o capítulo primeiro da dissertação de mestrado do autor, intitulada O Projeto Moderno de uma Teoria do Ser Humano Segundo Kant: Sobre Autonomia e Perfectibilidade, defendida em janeiro de 2021 na Universidade de Brasília (UnB). ** Mestre em filosofia pela Universidade de Brasília (UnB). Atualmente realiza doutorado em filosofia na mesma instituição. E-mail: [email protected]. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-3922-8358. Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.10, n.2, ago. 2022, p. 267-298 ISSN: 2317-9570 267 GABRIEL MARTINS FERREIRA 1.1 – Introdução Na primeira parte deste artigo publicado no número anterior desta revista procurei apresentar o modo como foi se constituindo no interior do pensamento de Kant o interesse por questões de cunho ético e antropológico. A hipótese desenvolvida na primeira parte deste artigo partiu daquilo, que salvo engano, é o mais antigo registro de uma preocupação antropológica por parte de Kant, a saber, o apêndice da História geral da natureza e teoria do céu onde Kant a partir da posição dos planetas no sistema solar procura estabelecer a constituição física e moral dos habitantes destes planetas. A partir da investigação realizada no artigo anterior pudemos constatar que devido a posição ocupada pelo gênero humano na geografia cosmológica, a autorrealização moral do ser humano não poderia ser totalmente alcançada pelos indivíduos, de modo que a única solução possível seria uma esperança no futuro no qual a espécie lograria êxito na concreção deste objetivo. A incursão de Kant na obra de 1755 abriu caminho, por assim dizer, para a entrada do filósofo naquilo que se tornaria o tópico central da ética na modernidade, a saber, como é possível pensar a liberdade humana dentro de um universo determinado segundo leis físicas? E consorte a tal questão, como seria possível e qual a natureza da liberdade pensada segundo estes parâmetros? Este fio condutor marcou a incursão do artigo por outras duas obras kantianas, quais sejam, o Ensaio para introduzir grandezas negativas em filosofia de 1763 e a Investigação sobre a evidência dos princípios da teologia natural e da moral de 1764 onde foi apresentada a posição de Kant frente à moral intelecutalista de Wolff e a moral baseada no sentimento proposta por Hutcheson e tentativa de Kant de apresentar uma teoria moral capaz de combinar princípios formais de determinação da vontade (Wolff) com princípios materias (Hutcheson). Ao se perguntar pelo modo como se estabelece relações entre princípios materiais e formais no âmbito da moralidade, Kant se viu em face do seguinte pensamento: seria preciso construir racionalmente um objeto de apetição que possa ser universalmente desejado. O modo como Kant viabilizaria tal possibilidade marcou a incursão da primeira parte do artigo por uma outra obra de Kant mais ou menos da mesma época, as Observações do sentimento do belo e do sublime. Este ensaio de Kant de 1764 marca decisivamente as considerações de Kant sobre o problema da moral: a influência da obra de Rousseau.1 A par1 268 CUNHA, 2017, pp. 90-91. Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.10, n.2, ago. 2022, p. 267-298 ISSN: 2317-9570 KANT ENTRE FRANCESES, INGLESES E ALEMÃES: DIRETRIZES HISTÓRICO-FILOSÓFICAS DA GÊNESE DA ANTROPOLOGIA KANTIANA (PARTE 2) tir de uma leitura crítica e original de Kant e dos textos de Rousseau, surgem novas e fecundas reflexões que marcarão em definifiivo as reflexões posteriores de Kant tais como (I) a natureza essencial e irredutível do ser humano em consideração ao seu lugar na ordem natural; (II) a perfeição humana e sua felicidade em relação ao estado de natureza e civilização; (III) o tema da essência da vontade como princípio do bem e da obrigação, assim como (IV) o papel do sentimento moral.2 Nesta segunda parte, o presente artigo pretende explorar o diálogo crítico que Kant estabelece com a teoria antropológico-perfectibilista de Rousseau. Para a concreção desta tarefa recorrer-se-á ao Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens de Rousseau tendo por fio condutor a ideia de perfectibilidade como faculdade natural inerente ao ser humano, cujo desenvolvimento depende apenas da ação humana, de modo que a antropologia de Rousseau possibilita que a pergunta pelo gênero tenha por referência apenas o que o ser humano faz de si mesmo através de seus atos. No que concerne à apreciação crítica que Kant faz da obra de Rousseau recorrer-se-á às Preleções sobre antropologia3 nas quais Kant aponta um déficit metodológico na compreensão rousseauista da perfectibilidade, e por isso será decisivo o resgate, no contexto do debate sobre a perfectibilidade, do antigo conceito de teleologia condensado por Kant na noção de Bestimmung des Menschen (destinação do ser humano). 1.2 – Linhas diretrizes da teoria antropológico-perfectibilista de Rousseau Cabe aqui uma breve, porém indispensável, explicação sobre o pensamento de Rousseau, a fim de contextualizar o leitor e a leitora no que é central para nosso argumento. O Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens de 1754 (doravante, segundo Discurso) fora escrito a propósito de um concurso promovido pela Academia de Dijon, tendo por tema agora a seguinte questão: qual é a origem da desigualdade entre os homens, e é ela autorizada pela lei natural? 2 CUNHA, 2017, p. 114 apud. SCHMUCKER, 1961, p. 180. A relação das obras kantianas, indicada abaixo, tem por objetivo orientar a conferência (cotejamento) dos trechos citados ao longo do presente trabalho. As referências seguem a paginação original dos escritos de Kant conforme à edição da Preussische Akademie der Wissenschaften. Muitos dos trechos citados basearam-se em traduções para o português, quando havia traduções disponíveis. As traduções utilizadas podem ser consultadas na bibliografia. Eventuais traduções e/ou modificações nas traduções utilizadas de nossa autoria serão devidamente indicadas. As abreviações seguem o padrão estabelecido pela Kant-Studien. 3 Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.10, n.2, ago. 2022, p. 267-298 ISSN: 2317-9570 269 GABRIEL MARTINS FERREIRA Ao descrever o gênero humano no estado de natureza, Rousseau adverte o leitor de que não se deve confundir o atual estado do gênero humano (o estado civil) com o estado de natureza,4 por isso também não se trata de uma simples descrição empírica de um estado de coisas como uma leitura desatenta poderia levar a pensar. Por outro lado, não se deve confundir a caracterização de Rousseau do estado de natureza como mera tentativa de promover um “retorno” do gênero humano a um estado idílico. Para escapar a estas duas “armadilhas”, por assim dizer, Rousseau estabelece como fio condutor de sua análise do gênero humano uma caracterização dupla: ele busca caracterizar o gênero humano em sua constituição fundamental, num primeiro momento, de um ponto de vista físico e, em seguida, de um ponto de vista metafísico ou moral, como ele mesmo diz.5 É precisamente no segundo Discurso que encontramos as bases que caracterizam uma perspectiva antropológico-perfectibilista rousseuaniana, pois em sua caracterização do ser humano em seu aspecto metafísico/moral o filósofo de Genebra apresenta três aspectos fundamentais por meio dos quais ele procura distinguir o gênero humano dos demais seres da natureza, especificando assim o lugar próprio do ser humano dentro da ordem natural: (I) o ser humano é um animal e, portanto, faz o que a natureza ordena, mas é ao mesmo tempo um ser que transcende os mandamentos da natureza, isto é, é um ser dotado de liberdade;6 (II) o ser humano é um ser que age livremente, isso significa que ele não é apenas um ser dotado desta faculdade, mas faz uso dela, em outras palavras, o ser humano não somente é livre, mas é consciente de sua liberdade;7 (III) com base nas duas características anteriores, o ser humano é capaz de se aperfeiçoar.8 De acordo com o segundo Discurso, pode-se inferir que Rousseau não aceita 4 Cf. ROUSSEAU, 1999, p. 62. ROUSSEAU, 1999, p. 64. 6 “Em cada animal vejo somente uma máquina engenhosa a que natureza conferiu sentidos para recompor-se por si mesma e para defender-se, até certo ponto, de tudo quanto tende a destruí-la ou estraga-la. Percebo as mesmas coisas na máquina humana, com a diferença de tudo fazer sozinha a natureza nas operações do animal, enquanto o ser humano executa as suas como agente livre. Um escolhe ou rejeita por instinto, e o outro, por um ato de liberdade [...]”. ROUSSEAU, 1999, p. 64. 7 “A natureza manda em todos os animais, e a besta obedece. O ser humano sofre a mesma influência, mas considera-se livre para concordar ou resistir, e é sobretudo na consciência dessa liberdade que se mostra a espiritualidade de sua alma [...]”. ROUSSEAU, 1999, p. 64. 8 “Mas, ainda quanto as dificuldades que cercam todas essas questões deixassem por um instante de causar discussão sobre a diferença entre o ser humano e o animal, haveria uma outra qualidade muito específica que os distinguiria e a respeito da qual não pode haver contestação – é a faculdade de aperfeiçoar-se, faculdade que, com o auxílio das circunstâncias, desenvolve sucessivamente todas as outras e se encontra, entre nós, tanto na espécie quanto no individuo [...]”. ROUSSEAU, 1999, pp. 64-65. 5 270 Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.10, n.2, ago. 2022, p. 267-298 ISSN: 2317-9570 KANT ENTRE FRANCESES, INGLESES E ALEMÃES: DIRETRIZES HISTÓRICO-FILOSÓFICAS DA GÊNESE DA ANTROPOLOGIA KANTIANA (PARTE 2) a ideia de acordo com a qual o ser humano poderia ser reduzido ao “status” de um mero animal, tampouco que o ser humano fosse reduzido somente à sua condição empírica, pois, na verdade, a consciência de sua liberdade “mostra a espiritualidade de sua alma”, ele diz. No texto de Rousseau, encontram-se semelhanças profundas com teses de Kant, mas uma nos interessa sobremaneira: Kant também se refere às capacidades do gênero humano como a condição de possibilidade dele próprio se autodeterminar, independentemente do curso da natureza. É digno de nota também que o modo como Rousseau tece suas considerações acerca do gênero humano, considerando-o sob um duplo de vista (físico ou metafisico/moral), o que guarda flagrante semelhança com a fórmula de Kant (sensível ou inteligível). Todavia as semelhanças parecem se encerrar aqui, já que a capacidade que o gênero humano tem de transcender a mera condição natural, sua perfectibilidade, é aquilo que Rousseau aponta como a causa e “a fonte de todos os males do ser humano” (ROUSSEAU, 1999, p.65). Do fato de sermos possuidores de uma faculdade que nos habilita a nos tornarmos melhor (aperfeiçoamento), a transcender a mera condição animal, sensível, não se segue em absoluto que o uso que fazemos desta faculdade será sempre o melhor e que, pelo fato de a possuirmos, forçosamente, “caminhamos para o melhor”. Justamente para tornar claro por que a perfectibilidade é a causa dos males do gênero humano é que Rousseau “convida” seus leitores(as) a segui-lo em sua investigação, depurando do gênero humano tudo aquilo que lhe é alheio, artificial e pernicioso, com vistas a tornar claro o “percurso” feito pelo gênero humano desde o estado de natureza até o atual estado social corrupto, de modo que pretendemos apresentar aqui as linhas gerais que nos permitam ter claro em que medida o segundo Discurso é pautado por um pessimismo histórico e ao mesmo tempo por um otimismo antropológico, e o que nos autoriza a encarar a argumentação de Rousseau na mencionada obra desta maneira é o caráter ambíguo que a perfectibilidade assume no contexto do segundo Discurso. Ao procurar descrever o processo de cultivo e moralidade do gênero humano, Rousseau sustenta: O ser humano selvagem e o ser humano policiado diferem de tal modo, tanto no fundo do coração quanto nas suas inclinações... O cidadão [...], sempre ativo, cansa-se, agita-se, atormenta-se sem cessar para encontrar ocupações ainda mais trabalhosas; trabalha até a morte, corre no seu encalço para colocar-se em situação de viver ou renunciar à vida Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.10, n.2, ago. 2022, p. 267-298 ISSN: 2317-9570 271 GABRIEL MARTINS FERREIRA para adquirir a imortalidade; corteja os grandes, que odeia, e os ricos, que despreza; nada poupa para obter a honra de servi-los; jacta-se orgulhosamente de sua própria baixeza e da proteção deles, e, orgulhoso de sua escravidão, refere-se com desprezo àqueles que não gozam a honra de partilhá-la [...]; o ser humano selvagem vive em si mesmo; o ser humano sociável, sempre fora de si, só sabe viver baseando-se na opinião dos demais e chega ao sentimento de sua própria existência quase que somente pelo julgamento destes [...] o estado original do ser humano e que unicamente o espírito da sociedade e a desigualdade, que ela engendra, é que mudam e alteram, desse modo todas as nossas inclinações naturais. (ROUSSEAU, 1999, pp. 114-15) A ideia principal que está sendo discutida na passagem acima é que a história do ser humano se revela como uma separação entre o que o ser humano é e aquilo que ele aparenta ser, afinal, durante sua corte aos ricos, aos quais em realidade odeia, ele mostra-se gentil, servil e orgulhoso de sua posição de escravo. Na visão rousseauniana, a sociedade especializou-se em trabalhar este aspecto corrupto do ser humano, a saber, a escravidão moral.9 É neste cenário que se insere a discussão de Rousseau apresentada pelo segundo Discurso, uma vez que, nesta obra, Rousseau se põe a examinar a desigualdade entre os homens, e não qualquer desigualdade10 , mas sim a desigualdade originada na, e promovida pela, sociedade civil11 , ou como Rousseau a designa, a desigualdade moral ou política. Segundo Rousseau, se se pudesse marcar historicamente o momento em que a desigualdade entre os homens se instaurou, então esse momento seria quando alguém disse: “isto é meu”, o que quer dizer: no momento em que a propriedade privada foi instaurada, com ela começam também a escravidão e a miséria do ser humano. No fundo, é a instauração da propriedade que corrompe o ser humano, criatura naturalmente com boas disposições para com os demais, pois, uma vez que em uma sociedade estabelecida pelo valor da propriedade privada, o ser humano passa “a alongar suas vistas até o futuro e tendo todos a noção de 9 Cf. MENEZES, E. Moral e vida civilizada: notas sobre a avaliação moderna de seus nexos. In.: Kant, I. Começo conjectural da história humana. Trad. Edimilson Menezes. Editora Unesp. p. 90. 10 Segundo Rousseau há dois tipos de desigualdade: “uma física ou natural, por ser estabelecida pela natureza; e outra que se pode denominar moral ou política, porque depende de uma espécie de convenção e que é estabelecida ou, pelo menos, autorizada pelo consentimento dos homens”. (ROUSSEAU, 1999, p.51) 11 Ao final do segundo Discurso consta “Conclui-se desta exposição que, sendo quase nula a desigualdade no estado de natureza, deve sua força e seu desenvolvimento a nossas faculdades e aos progressos do espírito humano, tornando-se, afinal, estável e legítima graças ao estabelecimento da propriedade e das leis”. (ROUSSEAU, 1999, p. 118) 272 Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.10, n.2, ago. 2022, p. 267-298 ISSN: 2317-9570 KANT ENTRE FRANCESES, INGLESES E ALEMÃES: DIRETRIZES HISTÓRICO-FILOSÓFICAS DA GÊNESE DA ANTROPOLOGIA KANTIANA (PARTE 2) possuírem algum bem passível de perda, nenhum deixou de temer a represália dos danos que poderia causar a outrem” (ROUSSEAU, 1999, pp. 95-96). Por outro lado, sustenta que o ser humano considerado de um ponto de vista natural é um tipo diametralmente oposto ao ser humano civil, ele é um ser compassivo e piedoso que não deseja o mal, nem tampouco busca prejudicar outrem. O ser humano natural vive em um equilíbrio perfeito no qual ainda não há uma oposição entre ele a natureza (por intermédio do trabalho), tampouco entre ele e seus semelhantes (por intermédio da reflexão). O ser humano natural vive encerrado em si mesmo, no momento presente, isto é, a sua existência é uma existência imediata, não há nada que obstaculize seus desejos e inclinações, não existe uma mediação entre o ser humano natural e o mundo que o circunda de tal maneira que o ser humano natural quase não é capaz de se diferenciar do mundo que o cerca. O ser humano natural se encontra em um estado tal que vive além da distinção entre verdadeiro e falso, de modo que Rousseau chega a conceder ao ser humano natural a posse imediata da verdade.12 Todavia, o ser humano natural vai paulatinamente perdendo sua condição. Nesse processo, Rousseau atribui um papel central à luta contra os obstáculos naturais, pois as demais modificações somente aparecerão após o desenvolvimento e o aprendizado do uso de ferramentas. Nesse sentido, o fazer instrumental antecede cronologicamente o juízo e a reflexão. Assim sustenta Rousseau: Essa foi a condição do ser humano nascente; essa foi a vida de um animal limitado inicialmente às sensações puras que, tão-só se aproveitando dos dons que a natureza lhe oferecia, longe estava de pensar em arrancar-lhes alguma coisa. Mas logo surgiram dificuldades e impôsse aprender a vencê-las; a altura das árvores, que o impedia de alcançar os frutos, a concorrência dos animais que procuravam nutrir-se deles, a ferocidade daqueles que lhe ameaçavam a própria vida, tudo o obrigou a entregar-se aos exercícios do corpo; foi preciso tornar-se ágil, rápido na carreira, vigoroso no combate. As armas naturais, que são os galhos de árvore e as pedras, logo se encontram em sua mão. Aprendeu a dominar os obstáculos da natureza, a combater, quando necessário, os outros animais, a disputar sua subsistência com os próprios homens ou a compensar-se daquilo que era preciso ceder ao mais forte. (ROUS- 12 Cf. Emílio, livro II. Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.10, n.2, ago. 2022, p. 267-298 ISSN: 2317-9570 273 GABRIEL MARTINS FERREIRA SEAU, 1999, p.88) Com o advento de novos obstáculos, o ser humano se via impelido cada vez mais a deixar de lado os galhos e as pedras que tinha à sua volta, e com isso foi se criando cada vez mais e em maior extensão a distância entre o ser humano e a natureza por meio da criação de artifícios desenvolvidos pelo gênero humano para o domínio do meio em que vivia.13 A partir deste processo de artificialização ao qual o gênero humano foi submetido, começou-se a desenhar os contornos da oposição entre natureza e cultura (ou civilização, sociedade, etc.). Rousseau, ao longo do segundo Discurso, vai encadeando uma série de momentos que “narram” a história do gênero humano desde seus primórdios até seu presente momento. E esta história foi marcada em dois grandes momentos, quais sejam, (I) a oposição entre o obstáculo natural e o trabalho, o que ocasiona (II) o nascimento da reflexão, que, por sua vez, produz o primeiro movimento do orgulho. Em linhas gerais, poder-se-ia afirmar que com a reflexão termina o estado natural e começa o estado social. Este processo de artificialização que culminou na instauração da propriedade privada é a verdadeira causa da degeneração moral do gênero humano e o grande responsável por perverter o ser humano em sua bondade naturaloriginária. Aqui, se torna mais evidente o duplo ponto de vista por meio do qual Rousseau considera o ser humano: o ponto de vista físico e o ponto de vista moral/metafísico. Graças a seu aspecto moral, o ser humano pode transpor os limites de sua existência singular e pode integrar a humanidade em sua totalidade.14 Segue-se desse contexto outra distinção sobre nossas ações sugerida por Rousseau naquela obra e que deve ser levada em consideração, a saber, a distinção entre amor-próprio e amor de si mesmo.15 Assim, o amor de 13 ROUSSEAU, 1999, p. 88: “A diferença das terras, dos climas, das estações pôde força-los a inclui-la na sua própria maneira de viver. Anos estéreis, invernos longos e rudes, verões escaldantes, que tudo consomem, exigiram deles uma nova indústria, À margem do mar e do rio, inventaram a linha e o anzol, e se tornaram pescadores e ictiófagos. Nas florestas, construíram arcos e flechas, e se tornaram caçadores e guerreiros. Nas regiões frias, cobriam-se com as peles dos animais que tinham matado. O trovão, um vulcão ou qualquer acaso feliz fez com que conhecessem o fogo, novo recurso contra os rigores do inverno; aprenderam a conservar este elemento, depois a reproduzi-lo e, por fim, a preparar as carnes que antes devoravam cruas”. 14 KRYGER, 1979, pp. 49-50: “La méchanceté naturelle ne consiste donc en rien d’autre qu’en l’égoïsme, dans le désir de vivre ou de survivre. Or, pour Rousseau, l’homme naturel est bon justement en raison de son sain égoïsme et de sa volonté d’être ! Tous deux posent au départ l’égoïsme parfait de l’homme, avec la différence que l’un croit l’homme, obligé de faire la guerre à tous pour être à même de satisfaire ses propres besoins, tandis que l’autre déborde d’optimisme en ce qui concerne la nature. Il y a cependant une autre différence encore et dont le rôle deviendra important avec l’évolution : Rousseau distingue en l’homme un être physique et un être moral ; grâce à la notion d’être moral, il réussit à faire sortir l’homme des limites étroites de son existence singulière et à l’intégrer dans l’humanité comme dans sa totalité”. 15 Diz Rousseau: “O amor de si mesmo é um sentimento natural que leva todo animal a velar pela sua própria conservação e que, no ser humano dirigido pela razão e modificado pela piedade, produz a humanidade e a virtude. O amor-próprio não 274 Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.10, n.2, ago. 2022, p. 267-298 ISSN: 2317-9570 KANT ENTRE FRANCESES, INGLESES E ALEMÃES: DIRETRIZES HISTÓRICO-FILOSÓFICAS DA GÊNESE DA ANTROPOLOGIA KANTIANA (PARTE 2) si é uma expressão do instinto de autoconservação que um indivíduo possui, e, analogamente, a piedade caracteriza este mesmo instinto de autoconservação, porém com relação à espécie.16 Ambos os sentimentos – o amor de si e a piedade – são sentimentos naturais de que é dotado o ser humano selvagem, sentimentos estes que são desconhecidos pelo ser humano civil, pois segundo Rousseau o aperfeiçoamento das faculdades humanas (a causa da passagem do estado de natureza à sociedade civil) foi conduzido ao longo da história humana pela futilidade e hipocrisia dos costumes.17 De certa maneira, pode-se afirmar que é contra esta futilidade e hipocrisia que se levanta a filosofia moral de Rousseau já a partir do Discurso sobre as ciências e as artes, e é nessa chave de leitura que podemos entender a apologia rousseauniana à natureza, uma vez que a imagem do ser humano natural permite à antropologia de Rousseau realizar um “diagnóstico de tempo” acerca do atual estado do ser humano, pois por meio da imagem do ser humano natural é possível mostrar aquilo que o gênero humano “perdeu” na passagem do estado de natureza para o estado civil, o que constitui a “narrativa histórica” de Rousseau. Ao mesmo tempo, a imagem do ser humano natural permite a Rousseau lançar mão de uma visão antropológica que reivindique as condições futuras da realização do gênero humano, pois se o atual estado do ser humano é contingente já que no estado civil o ser humano perdera aquilo que lhe caracterizava no estado de natureza, é possível ao gênero humano “recuperar a si mesmo” em uma nova ordem social que mantenha aquela igualdade do estado de natureza dentro de uma nova forma de organização da sociedade. Este “retrato” do ser humano natural que Rousseau se esforça em construir funciona na arquitetura de sua antropologia como um modelo teórico, por assim dizer, uma vez que este ser humano natural “não existe, talvez nunca tenha existido, que provavelmente jamais existirá”.18 E aqui aparece a ideia da estátua de Glauco como a imagem teórica que oferece o contraste entre ser humano natural e ser humano civil, pois, tal como a estátua se mostra desfigurada, a alma humana no estado civil se mostra corrompida e desfigurada, que nem de passa de um sentimento relativo, fictício e nascido na sociedade que leva cada indivíduo a fazer mais caso de si mesmo do qualquer outro, que inspira aos homens todos os males que mutuamente se causam e que constitui a verdadeira fonte da honra”. (ROUSSEAU, 1999, pp. 146-147) 16 KRYGER, 1979, p. 51 : “Aussi bien, la pitié ne relève-t-elle pas de l’égoïsme étroit, mais d’un sentiment de communauté avec autrui qui est mon semblable. Si l’amour de soi est l’expression de l’instinct de conservation propre à l’individu, la pitié est la forme de l’instinct de conservation relatif à l’espèce”. 17 Aqui ecoa o Discurso sobre as ciências e as artes onde consta: “Onde não existe nenhum efeito não há nenhuma causa a procurar; neste ponto, porém, o efeito é certo, a depravação é real, e nossas almas se corrompem à medida que nossas ciências e nossas artes avançaram no sentido da perfeição... Viu-se a virtude fugir à medida que sua luz se elevava no nosso horizonte...” 18 Segundo Discurso, prefácio. (ROUSSEAU, 1999, p. 44). Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.10, n.2, ago. 2022, p. 267-298 ISSN: 2317-9570 275 GABRIEL MARTINS FERREIRA longe aparenta pertencer a um ser que age sempre “por princípios certos e invariáveis”, como a estátua de Glauco aparenta um animal feroz e não um Deus. Ao recorrer à imagem da estátua de Glauco, o segundo Discurso nos permite vislumbrar uma saída para o problema da desigualdade do ser humano no estado social, uma vez que o atual estado de corrupção do ser humano também representa a possibilidade de sua “salvação”, pois da mesma maneira que a estátua de Glauco está irreconhecível, o ser humano em sociedade também, mas do mesmo modo que a estátua ainda preserva aquilo que lhe é próprio, autêntico, o mesmo se dá com o ser humano.19 Justamente pelo fato de a sociedade civil ser o domínio das aparências, portanto, daquilo que é alheio ao ser humano, mais ainda, daquilo que aliena o ser humano de sua identidade fundamental, é que ela se mostra como um predicado contingente do gênero humano (pois aquilo que é próprio ao gênero humano são as características do ser humano natural). E é justo nessa contingência que vigora no retrato do ser humano na sociedade civil que está a possibilidade de salvação do gênero humano, pois Rousseau não pretende que os homens abandonem a sociedade e regressem ao estado natural, conforme já argumentamos no início desta seção; sua preocupação é antes a de estabelecer as condições para que o ser humano civilizado recupere a liberdade que lhe é posse originária e natural. Aqui se aclara a tese paradoxal segundo a qual a perfectibilidade é a responsável tanto pelo estabelecimento da desgraça que é a vida social, mas é também o único caminho para a salvação do gênero humano.20 Na visão de Rousseau a perfectibilidade diz respeito, antes de tudo, da possibilidade que 19 STAROBIINSKI, 2011, pp. 27-28 argumenta: “Rousseau hesita entre duas respostas contraditórias. Em dado momento, o mito bifurca em duas versões. A primeira afirma que a alma humana degenerou, que se desfigurou, que sofreu uma alteração quase total, para jamais reencontrar sua beleza primeira. A segunda versão, em lugar de uma deformação, evoca uma espécie de encobrimento: a natureza primitiva persiste, mas oculta, cercada de véus superpostos, sepultada sob os artifícios e, no entanto, sempre intacta”. Optamos pela segunda possibilidade levantada por Starobinski, devido à reflexão de Rousseau acerca da perfectibilidade humana conforme se explicitará a seguir. 20 Embora aqui não concordemos in toto com a argumentação de CASSIRER, 1999, p.101, julgamos que ele tem muita razão ao sustentar: “Não podemos resistir ao progresso, mas, por outro lado, não podemos nos entregar a ele sem mais. Tratase de guiá-lo e determinar autonomamente o seu objetivo. Em sua marcha evolutiva até o presente momento a perfectibilidade enredou o ser humano em todos os males da sociedade e levou-o à desigualdade e à servidão. Mas ela, e apenas ela é capaz de tornar-se para ele um guia no labirinto no qual ele se perdeu. Ela pode e deve abrir-lhe novamente o caminho para a liberdade. Pois, a liberdade não é um presente que a bondosa natureza deu ao ser humano desde o berço. Ela só existe na medida em que ele próprio a conquistar, e a posse dela torna-se inseparável desta conquista constante. Por isso, o que Rousseau exige da comunidade humana e o que ele espera de sua estruturação futura não é que ela aumente a felicidade do ser humano, o seu bem-estar e os seus prazeres, mas assegure-lhe a liberdade devolvendo-o assim à sua verdadeira destinação”. Minha resistência em concordar in toto com Cassirer se deve ao fato de ele parecer pressupor um certo caráter teleológico da perfectibilidade humana quando diz “trata-se de guiá-lo e determinar autonomamente o seu objetivo”, não me parece que Rousseau tenha uma concepção teleológica aliada a sua interpretação do aperfeiçoamento moral do gênero humano, uma vez que a própria ambivalência aventada por Cassirer parece contradizer a presença de uma teleologia, pois esta figura como um princípio lógico que ordena a nossa reflexão acerca do tempo, e não parece que Rousseau tenha em mente tal paradigma de reflexão. Me parece que Cassirer aqui se deixa influenciar por Kant e projeta elementos da reflexão kantiana sobre o pensamento de Rousseau. 276 Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.10, n.2, ago. 2022, p. 267-298 ISSN: 2317-9570 KANT ENTRE FRANCESES, INGLESES E ALEMÃES: DIRETRIZES HISTÓRICO-FILOSÓFICAS DA GÊNESE DA ANTROPOLOGIA KANTIANA (PARTE 2) o ser humano possui para adquirir um novo aspecto no decorrer do tempo.21 Ainda que o ele constate o atual estado de degradação do ser humano, Rousseau não estaciona, por assim dizer, em um simples pessimismo histórico, pois ainda que o processo de artificialização e corrupção do ser humano não possa ser revertido, é possível lançar as bases para uma condição futura onde tais imperfeições sejam corrigidas. É mediante a própria perfectibilidade que o ser humano pode construir através de suas próprias forças as condições vindouras de sua emancipação política e de sua autorrealização moral. Ao buscar apresentar a história acerca da origem da desigualdade entre os homens, Rousseau ao mesmo tempo que detecta na perfectibilidade a causa do estado de corrupção do ser humano, parece tentar estabelecer o modo pelo qual através da perfectibilidade o ser humano poderia progredir com vistas a sua autorrealização em uma ordem civil justa e legitima. O otimismo antropológico de Rousseau, leva-o a considerar a perfectibilidade segundo o quadro de um projeto ambicioso, a saber, a formação do cidadão. A perfectibilidade enquanto faculdade distintiva do ser humano em relação aos demais animais foi o que levou ao estado de degradação atual do gênero humano, porém esta mesma faculdade é condição por meio da qual o ser humano pode estabelecer as condições para a superação de seu estado de degradação, daí o porquê de Rousseau (re)considerar o conceito de perfectibilidade à luz de seus interesses político-filosóficos. Nesse sentido, a perfectibilidade atua como o conceito que permite a Rousseau realizar uma investigação acerca do passado para fustigar o presente, ao mesmo tempo em que habilita o filósofo no estabelecimento de novas diretrizes para o futuro. Ao fixar na perfectibilidade a causa do trânsito do ser humano do estado de natureza para o estado civil, Rousseau fixa no ser humano o ponto de referência no qual se deve se buscar as causas e as soluções de seu infortúnio, isto é, o ser humano é o responsável pelo seu atual 21 “Mas, ainda quando as dificuldades que cercam todas estas questões deixassem por um instante de causar discussão sobre diferença entre ser humano e animal, haveria uma outra qualidade muito específica que os distinguiria e a respeito da qual não pode haver contestação – é a faculdade de aperfeiçoar-se, faculdade que, com o auxílio das circunstâncias, desenvolve sucessivamente todas as outras e se encontra, entre nós, tanto na espécie quanto no indivíduo; o animal, pelo contrário, ao fim de alguns meses, é o que será por toda a vida, e sua espécie, no fim de milhares de anos, o que era no primeiro ano desses milhares. Por que só o ser humano é suscetível de tornar-se imbecil? Não será porque volta, assim, ao seu estado primitivo e – enquanto a besta, que nada adquiriu e também nada tem de bom a perder, fica sempre com seu instinto – o ser humano, tornando a perder, pela velhice ou por outros acidentes, tudo o que sua perfectibilidade lhe fizera adquirir, volta a cair, desse modo, mais baixo do que a própria besta? Seria triste, para nós, vermo-nos forçados a convir que seja essa faculdade, distintiva e quase ilimitada, a fonte de todos os males do ser humano; que seja ela que, com o tempo, o tira dessa condição original na qual passaria dias tranquilos e inocentes; que seja ela que, fazendo com que através dos séculos desabrochem suas luzes e erros, seus vícios e virtudes, o torna com o tempo o tirano de si mesmo e da natureza. Seria horrível ter de louvar como um ser benfeitor o primeiro a sugerir aos habitantes das margens do Orinoco o uso dessas tabuazinhas que aplicam nas têmporas de seus filhos e que, pelo menos, lhes asseguram uma parte de sua imbecilidade e de sua felicidade original.” (ROUSSEAU, 1999, pp. 64-65) Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.10, n.2, ago. 2022, p. 267-298 ISSN: 2317-9570 277 GABRIEL MARTINS FERREIRA estado de degradação, ao mesmo tempo em que é no ser humano que se deve buscar as condições de superação de seu estado presente. A dimensão temporal na qual é considerado o “problema-humano” é evidente. Ao historicizar o ser humano, Rousseau pretende investigar o desenvolvimento das condições físicas e metafísicas (conforme ele diz no segundo Discurso) que possibilitaram a passagem do estado de natureza pata o estado civil. Todavia, a investigação histórica levada a cabo pelo genebrino no segundo Discurso não pretende se apoiar na simples historiografia, isto é, no estudo de documentos e registros históricos de um determinado povo, tampouco procura apoio na narrativa bíblica, pois a história construída por Rousseau é de natureza hipotética. Deixando de lado as interpretações teológicas, Rousseau estabelece como o ponto hipotético da origem da humanidade o primeiro encontro coletivo dos homens isolados e, a partir daí, se descortina um longo processo histórico no qual o gênero humano desenvolve e aperfeiçoa progressivamente suas faculdades virtuais, nomeadamente a perfectibilidade. Longe da influência de perspectivas teológicas e metafísicas, a perfectibilidade se converte em uma faculdade natural inerente ao ser humano, cujo desenvolvimento depende apenas da ação humana e, nesse sentido, a perfectibilidade se mostra como uma categoria neutra que não possui um direcionamento teleológico determinado. A teoria perfectibilista (de claro viés antropológico) de Rousseau assume como seu núcleo duro, por assim dizer, a pergunta sobre o que o gênero humano faz de si mesmo através de uma série de atos, alguns deles inconscientes, mas que ainda sim são seus atos. Com esta perspectiva, Rousseau promove um rompimento com uma longa tradição metafísica que sempre concebeu o gênero humano e seus atributos como possuindo uma natureza a-histórica, os atributos pertencentes ao gênero humano seriam sempre os mesmos desde o início dos tempos.22 Em oposição a essa tradição – nomeadamente a tradição aristotélico-tomista –, que considerava a vida social do ser humano como uma continuação e um desdobramento da vida natural do ser humano, Rousseau sustenta que a vida social e política é um produto artificial, que é “adicionado” à natureza do ser humano. A inexistência de uma orientação teleológica inerente à noção de perfectibi- 22 Aristóteles na Política sustenta: “A comunidade perfeita de muitos povoados é uma cidade, já que tem, por assim dizer, uma ampla capacidade de autossuficiência, que nasceu por causa da vida, e existe por causa do bem viver. Por isso, toda cidade existe por natureza, se é verdade que são primeiras comunidades. Pois a cidade é o fim daquelas, e a natureza é um fim; por exemplo, o que cada coisa é, após ter sido desenvolvida desde a sua origem, afirmamos que essa é a natureza de cada uma delas, tal como a de um ser humano, de um cavalo, de uma família. E ainda por causa disso, também o fim é o melhor; mas a autossuficiência é o fim e o melhor. Portanto, a partir desses elementos, é evidente que a cidade existe por natureza, também que o ser humano é por natureza um animal político, e o ser humano sem cidade por natureza, não por acaso, ou é insignificante, ou está acima do ser humano.” (Política I, 2, 1252b 27-1253a 5). 278 Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.10, n.2, ago. 2022, p. 267-298 ISSN: 2317-9570 KANT ENTRE FRANCESES, INGLESES E ALEMÃES: DIRETRIZES HISTÓRICO-FILOSÓFICAS DA GÊNESE DA ANTROPOLOGIA KANTIANA (PARTE 2) lidade impossibilita Rousseau de compreender o agir humano na história como inscrito em um horizonte amplo e aberto no qual existe um objetivo a ser alcançado, o que implica na não existência de um fundamento que garanta que o gênero humano estará melhor no futuro, uma vez que na concepção rousseauísta de perfectibilidade não está inscrita a noção de perfeição, Rousseau não compreende o ser humano como uma unidade cujo núcleo interno (ou as disposições originárias, para falar em termos kantianos) deve se desenvolver até alcançar sua perfeição. Nesse sentido, a perfectibilidade na visão de Rousseau não garante a priori que o agir humano, quer do ponto de vista político, quer do ponto de vista moral, alcance a sua autorrealização, portanto, a sua perfeição. Perfectibilizar-se é uma faculdade que pode tomar as mais diversas direções, dependendo de uma multiplicidade de fatores, de modo tal que não obedece a nenhum plano estabelecido de antemão. A perfectibilidade é o que introduz a ideia de uma história da humanidade, representa a marca distintiva do ser humano em relação aos demais animais, pois permite ao ser humano adquirir garantir que suas transformações ao longo de sua história sejam mediadas pela razão, tendendo sempre a um desenvolvimento moral adequado, e isso, contrariamente aos demais animais, que permanecem encerrados em uma identidade fixa. 1.3 – A virada roussaeuísta de Kant contra Rousseau: as novas diretrizes metodológicas da antropologia O fascínio de Kant pelas obras de Rousseau era tamanho que se conta a famosa anedota de que o filósofo, conhecido por sua personalidade metódica, somente modificou sua rotina diária em duas ocasiões: quando chegou a notícia de que a Bastilha havia sido tomada e quando recebeu um exemplar do Emílio. Uma importante passagem que consta nas anotações feitas por Kant a GSE demonstra este fascínio: A primeira impressão que um leitor sincero, que lê não apenas por vaidade e passatempo, recebe dos escritos de J-J. Rousseau é que se encontra diante de uma rara penetração de espírito, um nobre impulso de gênio e uma alma plena de sensibilidade em tão alto grau que jamais nenhum escritor em qualquer época ou nação pode ter possuído sequer sonhou ter possuído. (HN AA:20, p.43) Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.10, n.2, ago. 2022, p. 267-298 ISSN: 2317-9570 279 GABRIEL MARTINS FERREIRA Porém, junto com o fascínio estava uma profunda disciplina intelectual e a exigência de um escrutínio rigoroso das ideias de Rousseau. Nas mesmas anotações, algumas linhas antes, Kant adverte: Eu devo ler Rousseau até que a beleza de [sua] expressão não mais me incomode e só assim então posso examiná-lo com razão. (HN AA:20, p.43) O fio condutor que Kant elege e que parece conferir unidade sistemática à obra de Rousseau é a sua busca pelo reestabelecimento da dignidade moral do ser humano, ou para dizer como Kant, “os direitos da humanidade”.23 Nesse sentido, Rousseau é tido por Kant como causa de uma mudança seminal em seus pontos de vista sobre a moral, a história e a antropologia. Há uma longa passagem das Reflexões datadas entre 1764-1768 que nos dá mostra disso e que carece ser citada no todo: A ordem da consideração sobre o ser humano é como se segue: 1. A indestinação natural no modo e na proporção de suas faculdades e de suas inclinações, e sua natureza suscetível de adotar toda classe de formas. 2. A destinação do ser humano. O estado essencial do ser humano: se ele encontrar-se-ia na simplicidade ou no máximo cultivo de suas capacidades e na suprema satisfação de seus desejos. Se de um grau de habilidade elucida-se a finalidade: é o que há de se investigar. 3. O ser humano da natureza considerado unicamente em suas qualidades pessoais, independentemente de sua situação. Esta é justamente a questão: o que é natural e o que depende de causas externas e acidentais? O estado de natureza é um ideal das relações externas do ser humano puramente natural, isto é, do ser humano selvagem. O estado social pode se constituir também de pessoas de qualidades puramente naturais. 4. Emílio ou o ser humano moral. A arte ou o cultivo das forças e inclinações que se ajustam melhor à natureza. Mediante elas, se melhora 23 “Eu sou por inclinação um pesquisador. Eu sinto uma ardente sede por conhecimento e a inquietação por avançar nele, bem como a satisfação em cada passo dado adiante. Houve um tempo em que acreditava que unicamente isso poderia constituir a honra da humanidade e desprezava a população por nada saber. Rousseau corrigiu-me. Esse cego preconceito desapareceu; eu aprendi a honrar os homens e me reputaria mais inútil do que um trabalhador comum caso não acreditasse que essa consideração pode conferir valor a todas as demais: estabelecer os direitos da humanidade”. (HN AA: 20, p. 44) 280 Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.10, n.2, ago. 2022, p. 267-298 ISSN: 2317-9570 KANT ENTRE FRANCESES, INGLESES E ALEMÃES: DIRETRIZES HISTÓRICO-FILOSÓFICAS DA GÊNESE DA ANTROPOLOGIA KANTIANA (PARTE 2) a perfeição natural. 5. Da condição externa. O contrato social (comunidade independente) ou ideal do Estado de Direito (segundo a regra da igualdade) considerado in abstracto, sem levar em conta a natureza particular do ser humano. 6. Leviatã: a condição social que é conforme à natureza do ser humano. Segundo a regra da segurança. Eu posso estar ou em uma situação de igualdade e ter liberdade para ser injusto comigo mesmo e por isso sofrer, ou em uma situação de sujeição sem esta liberdade. 7. Liga das nações: o ideal do direito dos povos como completude das sociedades do ponto de vista das relações exteriores. 8. O contrato social ou o direito público como fundamento da força suprema. Leviatã ou a força suprema como fundamento do direito público. (HN AA:19, pp.98-9. Tradução de minha autoria). A passagem demonstra que Kant já se interessava por questões concernentes à antropologia e história ao menos desde a década de 1760, e na passagem supramencionada parece querer combinar as filosofias de Rousseau e Hobbes. A teoria de Rousseau representaria o ideal do Estado de direito segundo a regra da igualdade (e da autonomia), portanto, a teoria de Rousseau representaria a natureza inteligível do gênero humano, enquanto a teoria de Hobbes refletiria a natureza sensível do gênero humano segundo o princípio da segurança e da conservação.24 Possivelmente, Kant, nesse momento de sua reflexão, estivesse profundamente influenciado pela teoria do Estado de Hobbes, que havia se tornado popular na Alemanha graças aos interesses de seus jurisconsultos. A teoria de Rousseau do contrato social, com sua ênfase nas características legitimistas do poder estatal, parece ter sido a responsável por provocar uma correção de rota, por assim dizer, não somente nas concepções jurídico-política 24 No cap. X do Leviatã de Hobbes se lê: “Isto é mais do que consentimento ou concórdia; é uma unidade real de todos eles em uma única e mesma pessoa, feita por acordo de cada um dos homens com os demais, como se cada ser humano dissesse aos demais: autorizo e transmito a este ser humano ou a esta assembleia meu direito de autogovernar-me, sob condição que vós também transmitais vosso direito e autorizeis todas as suas ações da mesma maneira. Isto feito, a multidão, desse modo unificada em uma pessoa é chamada de ESTADO, em latim CIVITAS. [...] Nisso consiste a essência do Estado, cuja definição é: uma pessoa de cujos atos uma grande multidão, por meio de pactos recíprocos entre seus integrantes, se faz ela própria autora, pela vontade de cada um de seus membros, com a finalidade de autorizar-lhe o uso da força e dos recursos de todos, como julgar eficaz, para garantir-lhes a paz e a defesa comum. [...] Obtém-se tal poder soberano de dois modos. Um, pela força bruta, quando, por exemplo, um ser humano constrange seus filhos e os filhos destes a submeterem-se a seu mando, pelo fato de ser capaz de destruí-los se recusarem, ou então, pela guerra, dobra os inimigos à sua vontade, poupando-lhes a vida com essa condição. O outro ocorre quando os homens convencionam entre si submeter-se a algum outro ser humano, ou assembleia, voluntariamente, confiantes na proteção contra todos os outros. Esta última modalidade pode ser chamada Estado por instituição; a primeira chama-se Estado por aquisição”. (HOBBES, Thomas. Leviatã. Trad. Ruy Ribeiro Franca. Belo Horizonte: Tessitura, 2011, pág. 257). Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.10, n.2, ago. 2022, p. 267-298 ISSN: 2317-9570 281 GABRIEL MARTINS FERREIRA bem como nas concepções antropológico-morais de Kant. Assim, parece fora de dúvida que Kant se propõe a reelaborar a filosofia do genebrino segundo os interesses de sua própria filosofia, uma vez que, na visão de Kant, parece faltar a Rousseau uma visão sistêmica, que só pode ser apresentada segundo um método racionalmente orientado. Kant, como se sabe, era um profundo entusiasta das conquistas alcançadas pela física newtoniana e por isso estava absolutamente convencido de que todos os eventos naturais obedeciam a leis. E, nesse sentido, chama atenção o conteúdo de uma das reflexões privadas de Kant, datada de 1764-65, pois encontramos ali uma afirmação bastante emblemática feita por Kant acerca de Rousseau: Newton viu pela primeira vez ordem e regularidade ligadas à grande simplicidade onde antes dele eram encontradas desordem e diversidade de forma inarticulada, e desde então cometas movem-se em trilhas geométricas. Rousseau descobriu pela primeira vez, sob a diversidade das formas assumidas pelo ser humano, sua natureza profundamente escondida e a lei oculta de acordo com a qual a providência é justificada através de suas observações. Antes disso, a objeção de Alphonso e Mannes ainda era válida. Após Newton e Rousseau, Deus está justificado e agora o teorema de Pope é verdadeiro (HN AA:20, p.68). A comparação entre Newton e Rousseau é digna de nota, seja pela enorme admiração e entusiasmo que Kant nutria por Newton, seja pelo enorme prestígio e reconhecimento devotados a Newton em toda a Europa. Rousseau é o responsável também por despertar em Kant o interesse em questões ligadas aos problemas da desigualdade e da injustiça social. Kant também é devedor da concepção de Rousseau segundo a qual a liberdade, pensada enquanto autonomia, é a expressão da dignidade humana e, por conseguinte, da igualdade radical de todos os homens. Em uma passagem do Nachlass, Kant sustenta que a autonomia pessoal é a condição fundamental de toda e qualquer ação moral, extrapolando tal exigência inclusive para a legislação externa.25 A visão 25 Diz Kant numa passagem de suas Reflexões: „Der Grad der potestatis legislatoriae setzet die Ungleichheit voraus u. macht daß ein Mensch gegen den andern einen Grad Freyheit verliert. Dieses kann nur geschehen wenn er seinen Willen selber eines andern seinem aufopfert wenn er dieses in ansehung aller seiner Handlungen thut so macht er sich zum Sclaven. Ein Wille der eines andern seinem unterworfen ist ist unvollkommen u. wiedersprechend denn der Mensch hat spontaneitatem, ist er dem Willen eines Menschen unterworfen (wenn er gleich selbst schon wählen kan) so ist er häßlich u. verächtlich allein ist er dem 282 Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.10, n.2, ago. 2022, p. 267-298 ISSN: 2317-9570 KANT ENTRE FRANCESES, INGLESES E ALEMÃES: DIRETRIZES HISTÓRICO-FILOSÓFICAS DA GÊNESE DA ANTROPOLOGIA KANTIANA (PARTE 2) antropológico-perfectibilista do ser humano em Rousseau, tal como exposta especialmente no segundo Discurso, marca uma nova e decisiva etapa no desenvolvimento da teoria antropológica de Kant, especialmente no que tange ao intuito de apresentar o modo como uma teoria moral baseada na autonomia se articularia com uma reflexão sobre o processo de transformação histórica do ser humano, o que traduz claramente, conforme já dissemos, a relação entre autonomia e perfectibilidade. Em uma outra reflexão, datada também entre 1764-65, encontra-se uma outra afirmação emblemática: Eu sou por inclinação um pesquisador. Eu sinto uma ardente sede por conhecimento e a ávida inquietação por avançar nele, bem como a satisfação em cada passo dado adiante. Houve um tempo em que acreditava que unicamente isso poderia constituir a honra da humanidade e desprezava a população por nada saber. Rousseau corrigiu-me. Esse cego preconceito desapareceu; eu aprendi a honrar os homens e me reputaria mais inútil do que um trabalhador comum caso não acreditasse que essa consideração pode conferir valor a todas as demais: estabelecer os direitos da humanidade. (HN AA:20, p. 44) As reflexões supracitadas deixam entrever como e até onde Rousseau foi o responsável por ter indicado a Kant o caminho correto não somente naquilo que concerne à autolegislação da vontade, mas também na forma apropriada de colocar a pergunta sobre o que é o ser humano. A virada rousseauísta de Kant pode ser percebida de modo inequívoco ao compararmos como ambos definem a natureza específica do ser humano. Todavia, conforme consta das reflexões privadas da década de 1760, a atitude de Kant para com Rousseau não foi de aceitação completa. A atitude de Kant frente a Rousseau segue aquele princípio que ele adotara na interpretação da obra de Platão, a saber, a de compreender um filósofo melhor do que ele mesmo.26 Kant pretende fustigar a teoria do ser humano de Rousseau, Willen Gottes unterworfen so ist er bey der Natur. Man muß nicht Handlungen aus Gehorsam gegen einen Menschen thun die man aus innern Bewegungsgründen thun könnte u. der Gehorsam fodert wo innere Bewegungsgründe würden alles gethan haben macht Sclaven“. (HN AA: 20, p.65-6) 26 Diz Kant: “Platão se servia da expressão ideia de tal modo que se percebe facilmente que ele entendia por ela algo que não apenas jamais é emprestado dos sentidos, mas ultrapassa em muito os conceitos do entendimento de que se ocuparia Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.10, n.2, ago. 2022, p. 267-298 ISSN: 2317-9570 283 GABRIEL MARTINS FERREIRA apontando-lhe um déficit metodológico, e por isso será decisivo o resgate, no contexto do debate sobre a perfectibilidade, do antigo conceito de teleologia. Neste sentido, a partir do pressuposto de que o progresso da espécie humana possa ser concebido teleologicamente, todos os males e vícios que seriam notados nos indivíduos não significariam que o gênero não estivesse em progresso. Nesse sentido, a presente seção (e seus corolários) almeja apresentar as linhas gerais da interpretação dada aos tópicos centrais da antropologia perfectibilista de Rousseau por Kant em seus cursos de antropologia na universidade de Königsberg, em quatro ocasiões distintas: 1775/76; 1777/78; 1781/82 e 1784/85, pois nestas mencionadas ocasiões aquela admiração registrada nas passagens do Nachlass da década de 1760 cede lugar para um confronto de Kant com a obra de Rousseau e permite com que se tenha a real dimensão de como a antropologia kantiana foi gestando interesse pela história e pela educação. Concentrar-me-ei na seção introduzida a partir do programa de 1775/76 designada por Kant de “Do caráter da humanidade em geral” (Vom Charakter der Menschheit überhaupt), e que se repete nas outras edições dos cursos com os nomes de “caráter da espécie humana” (Charackter der Menschengattung) no curso de 1777/78; “do caráter do todo da espécie humana” (Vom Charackter der ganzen Menschengattung) no curso de 1781/82; e “do caráter da espécie humana” (Vom Charackter der Menschengattung) no curso de 1784/85. É imperioso recorrer a estas passagens de obras não publicadas, pois se nos fiarmos pelas referências explícitas a Rousseau e sua obra, nos trabalhos publicados por Kant em vida, a importância que o diálogo crítico de Kant com a antropologia rousseauísta não deixa perceber com facilidade, todavia esta dificuldade se dissipa quando nos fiamos ao registro feito por alunos dos cursos de antropologia ministrados por Kant entre 1775-1785. Ao nos depararmos com as notas tomadas pelos estudantes que frequentaram estes cursos, vemos de maneira inequívoca o modo como Kant interpreta e problematiza as teses que o controverso Rousseau expôs em suas obras. Estas notas dos estudantes vieram à luz a partir de 1997, sob o título de Preleções sobre antropologia27 (Vorlesun- Aristóteles, já que nunca se encontrará na experiência algo congruente com ela. As ideias são para ele arquétipos das próprias coisas, e não, como as categorias, meras chaves para experiências possíveis. Em sua opinião, elas brotavam da mais elevada razão e daí eram transmitidas à razão humana, mas esta já não se encontraria em seu estado original, precisando antes, por meio da rememoração (que se denomina filosofia), recordar com esforço as agora muito obscuras ideias. Não pretendo envolverme aqui com uma investigação literária para estabelecer o sentido que o sublime filósofo ligava à sua expressão. Observo apenas que não é de todo incomum, seja na conversação comum seja nos escritos, por meio da comparação dos pensamentos que um autor expressa sobre seu objeto, compreendê-lo melhor do que ele mesmo o compreendia, na medida em que não determinava de maneira suficiente o seu conceito e, assim, vez por outra falava, ou mesmo pensava, contrariamente a seus próprios propósitos”. (KrV B370) 27 As citações relativas às Preleções sobre antropologia serão de minha responsabilidade. 284 Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.10, n.2, ago. 2022, p. 267-298 ISSN: 2317-9570 KANT ENTRE FRANCESES, INGLESES E ALEMÃES: DIRETRIZES HISTÓRICO-FILOSÓFICAS DA GÊNESE DA ANTROPOLOGIA KANTIANA (PARTE 2) gen über Anthropologie), figurando como volume XXV das obras completas de Kant, em dois volumosos tomos compilados a partir do criterioso e importante trabalho de Reinhard Brandt e Werner Stark. Estas preleções representam uma fonte importante e decisiva para uma compreensão mais adequada do processo de formação da filosofia kantiana como um todo, mas fundamentalmente da temática ligada à antropologia e a história.28 Embora Kant tenha iniciado seu curso de antropologia em 1772/73, a opção aqui feita por buscar amparo nos cursos de antropologia a partir de 1775/76 se justifica por três razões de suma importância para este estudo: 1) É no curso de 1775/76 que tem início a inscrição da temática relativa ao “caráter da humanidade/espécie humana” (Charakter der Menschheit/Menschengattung) e da destinação do ser humano (Bestimmung des Menschen) no programa da antropologia kantiana, temática que será replicada, com diferentes graus de desenvolvimento e extensão, nas demais edições do curso, acabando também por reverberar na obra Antropologia de um ponto de vista pragmático em 1798; 2) Em 1784, é publicado o primeiro opúsculo no qual Kant se propõe a expor suas reflexões sobre filosofia da história e destinação humana, a Ideia da história universal com um propósito cosmopolita. As reflexões apresentadas por Kant neste opúsculo já são em boa medida antecipadas e discutidas pelos cursos de antropologia na seção relativa ao caráter da humanidade, o que denota que a temática e os referenciais metodológicos apresentados por Kant no texto de 1784 são frutos de pelo menos uma década de gestação; 3) Rousseau e sua teoria do ser humano são presença constantes nestes cursos, de modo que o tratamento despendido por Kant à filosofia de Rousseau ecoa em seus opúsculos de filosofia da história publicados durante a década de 1780, e isso aparece de modo explícito no opúsculo publicado em janeiro de 1786 no Berlinische Monatschrift intitulado Começo conjectural da história humana. Neste opúsculo, Kant apresenta uma nota (Anmerkung) de três páginas na qual oferece uma interpretação instigante da filosofia de Rousseau, ao mesmo tempo em que apresenta um forte tom de desaprovação ao modo como Rousseau conduzira a discussão acerca do problema entre natureza e cultura.29 28 As preleções constituem um material com enorme potencial de pesquisa da filosofia kantiana, de modo que o presente trabalho não tem a pretensão de esgotar a riqueza conceitual contida nestas preleções, mas apenas apresentar o modo como Kant se posiciona frente a obra de Rousseau. 29 Kant assim argumenta: “Um terceiro exemplo pode ser a desigualdade entre os homens, e, de fato, não aquela dos dons naturais ou dos bens de fortuna, mas a do direito universal do ser humano: uma desigualdade sobre a qual Rousseau reclama com muita razão – mas que não pode ser separada da cultura enquanto ela avançar como que sem plano (o que é, em todo caso, inevitável por um longo tempo) – e para a qual a natureza não destinou o ser humano, já que lhe dotou de liberdade e razão para não limitar esta liberdade senão por sua própria legalidade universal e, para ser preciso, exterior, a qual se chama direito civil. O ser humano teve de trabalhar por si mesmo para libertar-se da rudeza de suas disposições naturais e, ao mesmo tempo Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.10, n.2, ago. 2022, p. 267-298 ISSN: 2317-9570 285 GABRIEL MARTINS FERREIRA É bastante significativo, também, que do tratamento do caráter da humanidade já conste a necessidade de atrelar a perfeição do gênero humano a uma concepção teleológica que se traduz na expressão Bestimmung des Menschen, marcando o caráter antirrousseauísta de sua reflexão antropológica. É justamente nos cursos de antropologia que se descortina a importante questão que serve de fio condutor da antropologia de Kant: ao examinar o caráter do gênero humano Kant constata a condição peculiar do ser humano dentro do systema naturae, uma vez que a natureza do ser humano é tal que se exige dele a saída de seu estado de rudeza e animalidade e passe a se guiar por sua própria razão, fazendo uso de sua liberdade. Dito de outro modo, o ser humano deve abandonar os ditames da natureza e paulatinamente, a partir de seu esforço, realizar uma natureza que não é física, mas moral, que ele extrai de si mesmo e a partir de si mesmo. Somente a partir deste processo de destinação moral é que o gênero humano é capaz de encontrar a sua verdadeira natureza, isto é, sua perfeição moral. 1.3.1 – O curso de 1775/75 O interesse de Kant por questões relativas à natureza humana e temas ligados à cultura e à história data, como vimos, de meados da década de 1760, contexto de forte influência da obra de Rousseau exerceu sobre Kant. Foi aventado neste artigo que, além de Rousseau, os moralistas britânicos representaram outra fonte importante para o (re)direcionamento de Kant nas questões atinentes ao gênero humano, e Kant assim o confessa no curso de 1775/76.30 Mais importante do que a evidência confessada por Kant das fontes que o influenciaram, o curso de 1775/76 marca uma importante diretriz nas considerações antropológicas de Kant: O conhecimento da humanidade (Die Kenntnis der Menschheit) é simultaneamente meu conhecimento. Assim tem que existir como fundamento um conhecimento natural (Zum Grunde muß also eine natürliche Kenntnis liegen), segundo o qual podemos avaliar o que está em que se elevava sobre si, manter o cuidado de não contrariá-las; uma habilidade que ele só pode esperar obter tardiamente e depois de muitas tentativas frustradas. Nesse ínterim a humanidade geme sob os males que, por inexperiência, causa a si mesma.” (MAM AA:08, p.118) 30 Cf. V-Anth/Fried AA:25, p. 472. 286 Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.10, n.2, ago. 2022, p. 267-298 ISSN: 2317-9570 KANT ENTRE FRANCESES, INGLESES E ALEMÃES: DIRETRIZES HISTÓRICO-FILOSÓFICAS DA GÊNESE DA ANTROPOLOGIA KANTIANA (PARTE 2) no fundamento de cada ser humano (was bey iedem Menschen zum Grunde liegt); desta forma temos certos princípios segundo os quais podemos proceder. Portanto, devemos estudar a nós mesmos, e se quisermos aplicar isto aos outros, devemos estudar a humanidade, não psicológica ou especulativamente, mas pragmaticamente, porque todos os ensinamentos pragmáticos são ensinamentos de prudência, onde temos os meios para fazer uso adequado de todas as nossas habilidades, porque estudamos o ser humano para nos tornarmos mais prudentes, e que prudência se torna ciência (welche Klugheit zur Wißenschaft wird). Portanto, não devemos viajar para estudar o ser humano, mas podemos estudar sua natureza em todos os lugares. Mas o ser humano, o sujeito, deve ser estudado para ver se ele também pode apresentar o que se exige, aquilo que ele deve fazer: a razão pela qual a moralidade e os sermões, que estão prenhes de admoestação da qual nunca nos cansamos, têm menos efeito (weniger Effect haben), é a falta de conhecimento do ser humano. A moralidade deve ser combinada com o conhecimento da humanidade. (V-Anth/Fried AA:25, pp. 471-72. Grifo meu) Pensada por este prisma, a antropologia deve procurar conhecer aquilo que há de permanente na natureza do ser humano, com vistas a mitigar a enorme diversidade de formas que a humanidade assume, o que inviabilizaria um conhecimento seguro do ser humano. O reconhecimento da unidade da espécie humana, a partir das características que são permanentes, Kant pensa poder estabelecer um ponto de contato entre a antropologia e a ética, pois a partir destas duas diretrizes poder-se-ia estabelecer aquilo que pode ser exigido do gênero humano, porque constitui sua natureza própria, e sobre aquilo que o gênero humano pode realizar, porque característico de sua perfeição.31 Em ambos os casos, o que comanda a reflexão kantiana acerca da relação entre antropologia e ética é a estabilidade do conceito de natureza humana. A constatação deste vínculo entre ética e antropologia não é um acontecimento fortuito na obra kantiana, em realidade esta exposição feita pelo professor Kant em seu curso de antropologia de 1775/76 segue o argumento que fora apresentado por Kant em sua Dissertação de 1770, na qual a filosofia moral, mesmo apresentada como um ramo da filosofia pura, não denotava a desconsideração de elementos antropológicos para sua efetivação. A filosofia moral como aquela que “fornece 31 SANTOS, 2016, p. 52. Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.10, n.2, ago. 2022, p. 267-298 ISSN: 2317-9570 287 GABRIEL MARTINS FERREIRA os primeiros princípios de julgamento” não é indiferente à investigação acerca da natureza humana, ao contrário, a filosofia moral deve de antemão pressupor que a natureza humana já é conhecida e perfeitamente discernível, a fim de que seus princípios possam ser adequadamente aplicados ao ser humano.32 É justamente o desconhecimento antropológico que leva Kant a condenar novamente o “Ilmo. Wolff” na Dissertação por causa de sua distinção meramente lógica entre o sensível e o inteligível, o que teria culminado numa condução dos conceitos da moral à catatonia, quer dizer, à redução dos critérios morais ao sentimento de prazer de desprazer, à moda de Epicuro, seguido por Shaftsbury e Hutcheson na modernidade.33 Ainda que em seus trabalhos maduros acerca de filosofia moral Kant tenha optado pela ideia um mando categórico da razão sobre as ações do ser humano, a sua posição a partir de 1785 não incorre no descrédito de seus investigações antropológicas, pois, mesmo quando for garantida a validade objetiva da lei moral na Crítica da razão prática através da controversa doutrina do fato da razão, Kant não abriu mão da investigação e mapeamento das condições antropológicas sob as quais a lei moral atua. Porém o que me interessa salientar no curso de 1775/76 é o fato de que nele é apresentada pela primeira vez a necessidade de a investigação antropológica recorrer à ideia de que, no conhecimento da diversidade da espécie humana, subjaz um conhecimento geral daquilo que é inerente ao ser humano – não é por acaso que o curso de 1775/76 introduz pela primeira vez a discussão acerca “do caráter da humanidade em geral” (Vom Charakter der Menschheit überhaupt). A partir das discussões mobilizadas por Kant acerca do tópico do caráter da humanidade é que surgem as temáticas que determinaram em boa medida as teses apresentadas por Kant publicamente (especialmente) em seus opúsculos da década 1780 concernentes ao tema da história. Na seção introduzida no curso de 1775/76 há uma adoção visível de Kant por uma linguagem advinda da história natural para compreender o processo de desenvolvimento da espécie humana ao longo de sua história, todavia, Kant emprega a linguagem advinda da história natural não para realizar uma descrição da espécie humana, mas sim uma história da do ser humano na qual se coloca a necessidade de compreensão do problema antropológico pensado sob a alcunha da destinação do ser humano. Kant assim anuncia na abertura do tópico: 32 33 288 SANTOS, 2016, pp. 52-53. Cf. MSI AA:02, pp. 395-396. Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.10, n.2, ago. 2022, p. 267-298 ISSN: 2317-9570 KANT ENTRE FRANCESES, INGLESES E ALEMÃES: DIRETRIZES HISTÓRICO-FILOSÓFICAS DA GÊNESE DA ANTROPOLOGIA KANTIANA (PARTE 2) Este é um importante item sobre o qual muitos autores já se aventuraram a escrever, dentre os quais Rousseau é o mais destacado. O que deve ser afirmado da humanidade em geral (Was soll man von der Menschheit überhaupt urtheilen)? Entre os animais, e entre todos os seres, que tipo de caráter ela [i.e a humanidade] possui? Quanto de bem e quanto de mal está nela? Ele contém a fonte para o mal, ou para ou bem, em si mesmo? (V-Anth/Fried AA: 25, p. 675) Na caracterização do ser humano enquanto espécie animal, Kant mobiliza diversos autores (Lineu, Moscati e Dampier), porém a questão fulcral do tópico é marcada pelo diálogo estabelecido pelo professor de Königsberg e o filósofo de Genebra, especialmente pela oposição que Rousseau estabelece entre o estado de natureza (ser humano natural) e o estado civil (ser humano social) no segundo Discurso. Kant se prontifica a deixar claro quais questões lhe servirão de fio condutor na exposição do tópico: “o que deve ser afirmado o gênero humano?”; “que espécie de caráter ela [a espécie humana] possui entre os animais e entre todos os seres?”, entre outras. Porém, o principal tema explorado por Kant, em diálogo com Rousseau, é a passagem do estado de natureza para o estado civil, o que exige o confronto entre o ser humano natural e o ser humano civil, com o objetivo de responder à “importante questão de Rousseau”, a saber, se o estado de natureza ou o estado civil corresponde verdadeiramente ao que é o gênero humano, de modo que nesta temática, na visão de Kant, está contemplado todo o conjunto das ideias expostas por Rousseau em suas obras.34 Ao constatar que nenhum povo transitou do estado civil para o estado de natureza, Kant sustenta que o trânsito é o da passagem do estado de natureza para o estado civil e, mais uma vez indicando o modo como dever-se-ia interpretar a obra do genebrino, sustenta: Se tomarmos isto em sua totalidade, repetimos a pergunta: o estado natural ou o estado civil é mais apropriado para o fim do ser humano (dem Zweck des Menschen)? Devemos, a fim de nos aproximarmos do fim da humanidade (um dem Zweck der Menschheit näher zu kommen), dirigir-nos para a floresta ou permanecer no estado civil? Nenhum 34 Cf. V-Anth/Fried AA: 25, p. 684. Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.10, n.2, ago. 2022, p. 267-298 ISSN: 2317-9570 289 GABRIEL MARTINS FERREIRA povo passou do estado civilizado para o estado selvagem e, portanto, este não é um progresso em direção à perfeição da humanidade, assim isto não é um avanço para a perfeição da humanidade, mas, ao contrário, o avanço é da selvageria para a constituição civil, e a perfeição do estado dos seres humanos está, portanto, colocada na perfeição da constituição civil [...]. Rousseau também não quis dizer que a destinação dos seres humanos está no estado de selvageria, mas que o ser humano não deveria buscar sua perfeição em um estado tal que sacrifique todas as vantagens da natureza, ao perseguir as vantagens civis. Este estado serve apenas para o plano de educação e governo, através do qual um tal estado perfeito poderia ser alcançado. (V-Anth/Fried AA: 25, p.689) Em seguida, Kant expõe a tese da dupla destinação do gênero humano, como animal (homo phaenomenon) e como humanidade (homo noumenon), e isso é postulado pela seguinte razão: Kant sustenta que o ser humano “enquanto animal está destinado às florestas, mas enquanto humano está destinado à sociedade”.35 Contrariando a perspectiva de Rousseau no segundo Discurso, Kant concebe que, ainda que a entrada do gênero humano no estado civil acarrete algumas perdas, traz consigo ganhos que somente poderão ser alcançados paulatinamente pelo esforço dos indivíduos através das instituições civis e da própria dinâmica social.36 1.3.2 – O curso de 1777/78 No curso de 1777/78, a questão rousseauísta sobre se a forma autêntica do gênero humano se realizaria no estado de natureza ou no estado civil é retomada por Kant de modo mais suscinto e direto que no curso de 1775/76. Sob o título de “Pensamentos de Rousseau”, Kant prossegue sua interpretação da proposta de Rousseau buscando sempre extrair o potencial reflexivo de sua teria do ser humano, sem perder de vista a unilateralidade e exagero contidos em 35 V-Anth/Fried AA: 25, p. 689. “O estado civil tem a vantagem de poder fazer o ser humano positivamente feliz e positivamente virtuoso, porque no estado selvagem ele só era negativamente feliz e bom. Embora o ser humano no estado civil sacrifique muitas das vantagens da natureza, ele tem muitos meios à sua disposição para substituí-las. O fim da natureza (Der Zweck der Natur) era, portanto, a sociedade civil, e o ser humano está destinado a fazer-se perfeitamente feliz e bom como membro da sociedade em geral (der gantzen Gesellschaft). Mas o ser humano ainda não se encontra na perfeição da sociedade civil”. (V-Anth/Fried AA: 25, p. 690.) 36 290 Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.10, n.2, ago. 2022, p. 267-298 ISSN: 2317-9570 KANT ENTRE FRANCESES, INGLESES E ALEMÃES: DIRETRIZES HISTÓRICO-FILOSÓFICAS DA GÊNESE DA ANTROPOLOGIA KANTIANA (PARTE 2) sua posição. Buscando também tornar explícita a unidade subjacente à obra de Rousseau, Kant retoma justamente o problema da destinação do gênero humano como fim da natureza: Rousseau mostra como uma constituição civil deve ser para alcançar o inteiro fim do ser humano (den gantzen Zweck’ der Menschen). Ele mostra como a juventude deve ser educada para atingir este fim: satisfazer plenamente a natureza. Ele mostra dentro de qual constituição vários povos devem entrar para que aquelas guerras bárbaras deem lugar a disputas amigáveis. Ele mostra que os germes da educação para nossa destinação estão dentro de nós (daß in uns die Keime der Ausbildung zu unserer Bestimmung liegen) e que, portanto, precisamos de uma constituição civil para cumprir os fins da natureza (um die Zwecke der Natur zu erfüllen). Mas se pararmos na constituição civil agora é melhor voltarmos ao estado de selvageria. O ser humano claramente não foi feito para vagar na floresta, mas para viver em sociedade. A sociedade, além da cultura, tem um sistema disciplinar, e com isso inibimos os males que podem retardar nosso progresso rumo à perfeição (unsere Fortschritte zur Vollkommenheit). (V-Anth/Pillau AA:25, p. 847) O curso de 1777/78 acaba por estabelecer também as linhas diretrizes do programa de investigação antropológica de Kant e que revelar-se-iam na obra publicada em 1798, quais sejam: (I) uma didática antropológica, isto é, a tentativa de mapear as faculdades do ânimo humano que representam os meios pelos quais o ser humano pode alcançar as suas múltiplas realizações morais; (II) uma característica antropológica, que busca apreender aquilo que é próprio da espécie humana com vistas a orientar e (dentro do possível) prever as realizações futuras da humanidade37 . Aliás, esta segunda linha diretriz da antropologia kantiana, isto é, a característica antropológica é o que serve de subsídio teórico, por assim dizer, para a estruturação dos opúsculos kantianos, especialmente os que se dedicam ao tema da história/progresso humano. O curso de 1777/78 também apresenta de modo claro a base conceitual que alicerça as linhas de investigação da antropologia kantiana. Novamente a presença de Rousseau é um traço fundamental, pois se apoiando em Rousseau, em 37 Cf. V-Anth/Pillau AA:25, p. 733. Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.10, n.2, ago. 2022, p. 267-298 ISSN: 2317-9570 291 GABRIEL MARTINS FERREIRA uma meditação que cumpria já uma década e meia, Kant defende a existência de um fim da natureza que seria o responsável pela destinação do ser humano, e uma vez postulado este fim poder-se-ia realizar uma abordagem diferente do estado de degradação atual do gênero humano como uma etapa na história do desenvolvimento da espécie rumo à sua autorrealização. Ao recorrer ao diagnóstico de Rousseau sobre o estado atual do ser humano, Kant está dirigindo suas atenções ao aspecto histórico da experiência humana, pois em vista da realização da destinação do ser humano é que a constituição civil poderia ser avaliada como imperfeita, isto é, como não realizando o fim inerente à natureza humana como tal. É precisamente em face da constatação de que o gênero humano é dotado de uma historicidade, isto é, que a espécie humana possui um grau de aperfeiçoamento, já que há “um progresso rumo à perfeição”, que no interior das preleções de antropologia de Kant surge o interesse pela história.38 A concepção de história, nascente no curso de 1777/78, não é a de uma historiografia pautada pela concatenação de datas e eventos que ocorreram em tais ou tais períodos, pois para Kant esta historiografia, ainda que fosse reforçada por um conjunto formidável de documentos e evidências empíricas, seria de pouca ajuda sem um conhecimento adequado da natureza humana. A história que está sendo gestada no interior das preleções de antropologia é uma resposta de Kant ao postulado da unidade da natureza, esta concepção de história advinda do curso de 1777/78 visa a dar, portanto, alguma unidade ao conjunto das ações humanas, que consideradas isoladamente parecem confusas e desordenadas. A antropologia kantiana busca intervir precisamente neste ponto, ao investigar as disposições inerentes à natureza humana e o fim para o qual elas se destinam. Nesse sentido, Kant busca apresentar o modo pelo qual o ser humano (individualmente) pode cultivar estas disposições e como, a partir de uma instrução adequada sobre a sua destinação, pode-se interpretar o papel que cada indivíduo possui no cumprimento da destinação que a natureza reserva ao gênero. O curso de 1777/78 atribui um papel fundamental para a educação e a formação dos indivíduos (mais um traço rousseauísta da antropologia de Kant), o que já antecipa em boa medida a temática do esclarecimento enquanto processo de autoformação do ser humano a partir de si mesmo, que será apresentada no famoso opúsculo Resposta à pergunta: O que é esclarecimento? de 1784. 38 292 SANTOS, 2016, p. 55. Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.10, n.2, ago. 2022, p. 267-298 ISSN: 2317-9570 KANT ENTRE FRANCESES, INGLESES E ALEMÃES: DIRETRIZES HISTÓRICO-FILOSÓFICAS DA GÊNESE DA ANTROPOLOGIA KANTIANA (PARTE 2) 1.3.3 – O Curso de 1781/82 Ainda que não traga o nome de Rousseau, o curso de 1781/82 é importante para a temática desenvolvida neste artigo na medida em que avança na ideia segundo a qual uma simples historiografia não seria suficiente para estabelecer um conhecimento seguro acerca da natureza humana, já que seria a antropologia que fornece ao ser humano o conhecimento necessário para estabelecer seus deveres e seu fim como espécie racional e livre, fornece, portanto, ao gênero humano as ferramentas necessárias para pensar o seu agir moral e político: Toda moralidade exige o conhecimento do ser humano, de modo que não tagarelamos exortações vazias para as pessoas, mas que saibamos orientá-las de tal forma que comecem a valorizar muito as leis morais e a fazer delas seus princípios. Eu devo conhecer quais acessos às disposições humanas (menschlichen Gesinnungen) eu posso ter com vistas a produzir resoluções; para este fim o conhecimento do ser humano pode nos dar a oportunidade de que o educador e o pregador não produzam meros soluços e lágrimas, mas que estejam em condição de produzir verdadeiras resoluções. Em política, é igualmente indispensável, pois para governar os homens é preciso conhecer os homens [...]. (V-Anth/Mensch AA 25, p. 858) A investigação antropológica deve ser metodologicamente orientada, sob pena de permanecer um conhecimento fragmentário, condenando o gênero humano a permanecer em um estado perpétuo de ignorância acerca de seu atual estágio e das possibilidades de seu futuro. O curso de 1781/82 também avança na ideia de que a antropologia carece de um método, pois ainda que “exercício e experiência são para nós a melhor escola para conhecer os homens, mas eles não bastam por si só para aperfeiçoar os nossos conhecimentos e torná-los práticos"39 . Esta insuficiência se demonstra por exemplo com a simples historiografia, pois deixado à própria sorte o ser humano consegue desenvolver suas disposições naturais até um certo limite e o conhecimento que ele adquire acerca de si mesmo é um conhecimento fragmentário, de modo que para escapar a este estado de ignorância advindo de um conhecimento fragmentário (um tatear às cegas, para falar nos termos da primeira Crítica) é preciso que se estabeleça um conhecimento seguro capaz de instruir adequadamente o gênero 39 V-Anth/Mensch AA:25, p. 854. Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.10, n.2, ago. 2022, p. 267-298 ISSN: 2317-9570 293 GABRIEL MARTINS FERREIRA humano acerca daquilo que ele propriamente é. Diz Kant: Ao conhecimento do ser humano (Zur Erkenntniß des Menschen) pertence, portanto, um ensino completo dos múltiplos e característicos traços do ser humano. O ensino do que é diverso e das características do ser humano. Ambos são de grande importância e devem sempre preceder o conhecimento do ser humano e por isso a experiência deve ser ampliada. Equipado com estes ensinamentos, pode-se em pouco tempo aprender mais que que qualquer outro possa aprender em sua vida inteira. (V-Anth/Mensch AA 25, pp. 854-855) A exigência de um método que oriente o conhecimento do ser humano, isto é, a antropologia, acaba por conduzir Kant a buscar uma justificativa para uma filosofia da história a partir do horizonte de sua teoria antropológica e, nesse sentido, o curso de 1781/82 segue o caminho aberto pelos cursos de 1775/76 e 1777/78, e demonstra que no debate travado por Kant com o pensamento de Rousseau foi desvelando aos poucos os núcleos essenciais que comporiam a antropologia e a filosofia da história apresentada por Kant em suas obras publicadas, especialmente, a partir de 1784 com a publicação da Ideia universal da história com um propósito cosmopolita. Sobre as ideias apresentadas por Kant no opúsculo de 1784, pode-se dizer aqui preliminarmente que elas guardam semelhança e devem sua origem em boa medida às discussões empreendidas pelo professor Kant em seus cursos de antropologia, de modo que o tema do opúsculo de 1784 e mesmo o título são praticamente anunciados por Kant no curso de 1781-82: Agora, a fim de estimular a ânsia dos príncipes de aspirar a tais fins elevados (erhabenen Zwecken) e de trabalhar pelo bem de toda a raça humana, uma história, que escrita exclusivamente com um propósito cosmopolita (eine Geschichte, die blos aus cosmopolitischer Absicht), seria de considerável benefício. Tal história só teria que assumir o melhor-mundo como seu ponto de vista (Weltbeste zu ihrem Standpuncte nehmen), e tornar dignos apenas aqueles atos da memória dos descendentes que dizem respeito ao bem-estar de toda a raça humana (die Wohlfahrt des ganzen menschlichen Geschlechts). (V-Anth/Mensch AA 25, p. 1203. Grifo meu) 294 Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.10, n.2, ago. 2022, p. 267-298 ISSN: 2317-9570 KANT ENTRE FRANCESES, INGLESES E ALEMÃES: DIRETRIZES HISTÓRICO-FILOSÓFICAS DA GÊNESE DA ANTROPOLOGIA KANTIANA (PARTE 2) Para o leitor/leitora familiarizado com o opúsculo de 1784, a semelhança entre esta passagem do curso de 1781/82 e a nona proposição do opúsculo de 1784 é indiscutível tanto no que tange à ideia da necessidade e utilidade de uma história acerca do futuro do gênero humano quanto à ideia da existência de um plano no qual o agir moral e político do ser humano se inscreve com vistas a concretizar o “propósito cosmopolita” no qual está colocado a questão da destinação do gênero humano. As antecipações temáticas não param por aí, pois no curso de 1781/82 é trazida à baila a mesma ideia que se encontra no opúsculo publicado de 1784, falo da possibilidade de alcançar a perfeição que é restrita ao gênero espécie: Nas espécies animais cada indivíduo alcança sua destinação, mas na raça humana um ser humano isolado nunca pode alcança-lo, tão somente a totalidade do gênero humano pode alcançar sua destinação total (die ganze Menschengattung ihre Bestimmung erreichen), apesar do fato de que o ser humano ser constituído pela natureza como um animal (der Mensch von Natur wie ein Thier ausgerüstet ist). No gênero humano é inapropriado [dizer] que nunca o indivíduo, mas tão somente o gênero, alcance sua destinação (die Species ihre Bestimmung erreicht). Isto é uma causa adicional rumo à sociedade, pelo que o ser humano é expressamente criado. Todos trabalham para um, e um trabalha para todos, pois então cada animal pode por si mesmo buscar por sua nutrição sem a ajuda dos outros. (V-Anth/Mensch AA 25, p. 1196.) A passagem do curso de 1781/82 aponta para a tensão entre o indivíduo e espécie no que concerne a atingir a perfeição das disposições inerentes ao ser humano, de tal forma que, conforme a passagem acima o demonstra, a destinação final do ser humano é produto do aperfeiçoamento contínuo da espécie, cujos membros transmitem o legado adquirido à geração seguinte e assim sucessivamente, o que possibilita a esperança de que o gênero como um todo possa levar a cabo a destinação plena. Ainda que o processo de concreção desta destinação possa se encontrar em um desvio com relação à destinação, os indivíduos têm o poder de corrigir estes desvios e introduzir repetidas correções no curso histórico do desenvolvimento da espécie, bem como colocá-la, por assim dizer, nos trilhos para a realização de sua destinação. Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.10, n.2, ago. 2022, p. 267-298 ISSN: 2317-9570 295 GABRIEL MARTINS FERREIRA 1.3.4 – O curso de 1784/85 A temática da destinação do gênero humano a partir do confronto estabelecido por Rousseau entre estado natural e estado civil é retomada por Kant no curso de 1784 sob o título de “os três paradoxos de Rousseau” (die 3 Paradoxa Rousseaus).: O ser humano é livre por natureza e todos os homens são iguais por natureza. Neste sentido, o ser humano também se difere da natureza animal, pois o ser humano é um animal que precisa de um senhor e não pode existir sem tal. E aqui uma dificuldade surge da cultura, como se vê a desigualdade entre os seres humanos surge através dela [i.e da cultura], o que por seu turno resulta opressão dos menos cultivados. Esta é a base dos três paradoxos de Rousseau: 1) dos danos aos seres humanos causados pela cultura ou pelas ciências (Vom Schaden der Cultur oder der Wißenschaften unter den Menschen); 2) dos danos causados pela civilização ou pela desigualdade na constituição civil (Vom Schaden der Civilisirung unter den Menschen oder der Ungleichheit in der bürgerlichen Verfaßung), mas não se pode conceber uma constituição civil sem desigualdade, [o que é equivalente a dizer] do dano causado pela constituição civil aos seres humanos; 3) do dano dos métodos artificiais de moralização (Vom Schaden der künstlichen Methoden beim Moralisiren). [...] Em suma, Rousseau apenas examinou um lado da questão em seus paradoxos Ele se ocupou apenas com os danos que a saída do estado de natureza parece ter causado, mas não se ocupou com as vantagens que surgiram a partir da cultura do ser humano; esta oposição entre a natureza animal e espiritual no ser humano (thierischen und geistigen Natur des Menschen) é em si mesma a derradeira contribuição para a produção da destinação final dele (Endbestimmung des Menschen). (V-Anth/Mron AA:25, pp. 1419-1420.) No curso de 1784, assim como nas edições de 1775/76 e 1777/78, Kant procura sempre oferecer uma interpretação que saliente as virtudes, por assim dizer, da obra de Rousseau; todavia Kant também censura Rousseau pelo caráter unilateral e misantrópico de sua reflexão, e também a tendência de Rousseau em glorificar o estado natural e vituperar o estado social.40 Kant não compar40 296 SANTOS, 2015, p. 39. Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.10, n.2, ago. 2022, p. 267-298 ISSN: 2317-9570 KANT ENTRE FRANCESES, INGLESES E ALEMÃES: DIRETRIZES HISTÓRICO-FILOSÓFICAS DA GÊNESE DA ANTROPOLOGIA KANTIANA (PARTE 2) tilha com Rousseau a visão idílica do estado natural como o locus amoenus no qual o ser humano era perfeito, bom e feliz; tampouco compartilha com Rousseau a ideia de uma oposição estática entre o estado de natureza e o estado civil, Kant vê antes um conflito dinâmico e altamente instrutivo entre as diferentes disposições do gênero humano (o conflito entre o aspecto físico e o aspecto moral do ser humano), e atribui ao ser humano o dever de extrair deste conflito as condições por meio das quais realizar-se-á a destinação da natureza no que tange à espécie, a autorrealização moral do gênero humano. Do conflito entre esta dupla destinação do gênero humano, enquanto animal e enquanto ser racional, origina-se a condição particular do gênero humano e através dela também é explicado o porquê de a condição do gênero humano ser a mais difícil de todas as condições, quer em relação aos animais quer em relação a eventuais seres puramente racionais, o que exige do ser humano que se liberte dos ditames da natureza (liberdade) e forje a si mesmo a partir do desenvolvimento das disposições racionais que são inerentes ao gênero humano enquanto espécie racional e livre. No curso de 1784 vem à baila novamente a ideia de que todas as criaturas através de suas disposições originárias tendem à perfeição: O estado intermediário entre estes dois é o tempo do luxo (des Luxus), do refinamento do gosto (der Verfeinerung des Geschmaks) e da cortesia (der Geselligkeit) A este respeito, Rousseau tem razão quando prefere o estado natural a este estado. Mas isto não se aplica ao estado civilizado (gesitteten Zustand), a saber, que o ser humano deve alcançar este estado civilizado através de muitos inconvenientes, guerras e má consequências destas, ocorridas em nosso globo porque a dor deve se tornar um espinho para o ser humano. Uma única criatura finalmente alcança sua destinação (seine Bestimmung), ou seja, chega ao momento em que todas as suas disposições naturais são desenvolvidas (alle seine Naturanlagen entwickelt werden) e à maturidade. A única diferença entre humanos e animais é que nos humanos a espécie inteira só chega à sua destinação através de diferentes gerações (die ganze species durch verschiedene Generationen ihre Bestimmung erreicht). É difícil que outros se sintam intimidados pelos frutos de nossos esforços ácidos; mas só a experiência, os anais da história humana, nos provam isso sem qualquer possibilidade de objeção. (V-Anth/Mron AA:25, pp. 1417-1418) Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.10, n.2, ago. 2022, p. 267-298 ISSN: 2317-9570 297 GABRIEL MARTINS FERREIRA Mantendo-se fiel, por assim dizer, à sua virada rousseauísta, a reflexão antropológica de Kant ao problematizar tanto o ser humano em sua constituição física, ou moral; quanto o processo de transformação histórica do gênero humano, entende o ser humano em um quadro de referências alheio a qualquer autoridade teológica. Nesse sentido, Kant busca compreender o processo de transformação histórica do gênero humano em seus aspectos morais, políticos e culturais como um processo temporal aberto em uma marcha contínua em direção ao seu fim, mesmo que esta marcha seja infinita e indeterminada em relação ao tempo para sua concreção. A tarefa com a qual Kant se defronta é a necessidade de apresentar como processo de desenvolvimento (no tempo) das disposições racionais inerentes ao gênero humano poderia ser racionalmente orientado, e concomitantemente, a apresentação das condições políticas e morais que levariam à concreção do desenvolvimento das disposições inerentes ao gênero humano. Referências ARISTÓTELES. Política. Trad. e notas de Maria Aparecida de Oliveira Silva. São Paulo: Edipro, 2019. CASSIRER, Ernest. A questão Jean-Jacques Rousseau. Trad. Erlon José Paschoal et alli. São Paulo: Editora UNESP, 1999. CUNHA, B. L. As Anotações nas "Observações sobre o sentimento do belo e do sublime” (seleção de notas e tradução). Kant E-Prints, 11(2), 51-79. Disponível em [https://www.cle.unicamp.br/eprints/index.php/kante-prints/article/view/673]: acessado em 26/02/2022. HOBBES, Thomas. Leviatã. Trad. Ruy Ribeiro Franca. Belo Horizonte: Tessitura, 2011. KANT, Immanuel. Gesammelte Schriften. 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