DOI: https://doi.org/10.26512/rfmc.v10i2.44174
Kant entre Franceses, Ingleses e Alemães: Diretrizes
Histórico-Filosóficas da Gênese da Antropologia Kantiana
(Parte 2)*
[Kant among French, English and German: Historical-Philosophical Guidelines of
the Genesis of Kantian Anthropology (2nd Part)]
Gabriel Martins Ferreira**
Resumo: Dando continuidade a tarefa proposta na primeira parte, o presente artigo
pretende apresentar um diálogo entre Kant e Rousseau no que concerne a relação
entre ética e antropologia. Nesta segunda parte, o presente artigo pretende explorar
a leitura crítica e original que Kant faz da teoria antropológico-perfectibilista de
Rousseau. A obra de Rousseau – ou mais precisamente, sua proposta de uma teoria
do ser humano – é decisiva para a gênese da antropologia kantiana por representar um
ponto de viragem, segundo nossa hipótese interpretativa, nas considerações de Kant
acerca não somente da moral, mas fundamentalmente da história e da antropologia.
Palavras-chave: Kant. Rousseau. Antropologia. Perfectibilidade. História da
Filosofia.
Abstract: Continuing the task proposed in the first part, this paper intends to present
a dialogue between Kant and Rousseau regarding the relationship between ethics and
anthropology. In this second part, the present article intends to explore Kant’s critical
and original reading of Rousseau’s anthropological-perfectibilist theory. Rousseau’s
work - or more precisely, his proposal for a theory of the human being - is decisive for
the genesis of Kantian anthropology because it represents a turning point, according
to our interpretative hypothesis, in Kant’s considerations not only about morality, but
fundamentally about history and anthropology.
Keywords: Kant. Rousseau. Anthropology. Perfectibility. History of Philosophy.
* Este artigo representa (com modificações) o capítulo primeiro da dissertação de mestrado do autor, intitulada O Projeto
Moderno de uma Teoria do Ser Humano Segundo Kant: Sobre Autonomia e Perfectibilidade, defendida em janeiro de 2021 na
Universidade de Brasília (UnB).
** Mestre em filosofia pela Universidade de Brasília (UnB). Atualmente realiza doutorado em filosofia na mesma instituição.
E-mail:
[email protected]. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-3922-8358.
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1.1 – Introdução
Na primeira parte deste artigo publicado no número anterior desta revista procurei apresentar o modo como foi se constituindo no interior do pensamento
de Kant o interesse por questões de cunho ético e antropológico. A hipótese
desenvolvida na primeira parte deste artigo partiu daquilo, que salvo engano,
é o mais antigo registro de uma preocupação antropológica por parte de Kant,
a saber, o apêndice da História geral da natureza e teoria do céu onde Kant
a partir da posição dos planetas no sistema solar procura estabelecer a constituição física e moral dos habitantes destes planetas. A partir da investigação
realizada no artigo anterior pudemos constatar que devido a posição ocupada
pelo gênero humano na geografia cosmológica, a autorrealização moral do ser
humano não poderia ser totalmente alcançada pelos indivíduos, de modo que a
única solução possível seria uma esperança no futuro no qual a espécie lograria
êxito na concreção deste objetivo.
A incursão de Kant na obra de 1755 abriu caminho, por assim dizer, para
a entrada do filósofo naquilo que se tornaria o tópico central da ética na modernidade, a saber, como é possível pensar a liberdade humana dentro de um
universo determinado segundo leis físicas? E consorte a tal questão, como seria
possível e qual a natureza da liberdade pensada segundo estes parâmetros? Este
fio condutor marcou a incursão do artigo por outras duas obras kantianas, quais
sejam, o Ensaio para introduzir grandezas negativas em filosofia de 1763 e a
Investigação sobre a evidência dos princípios da teologia natural e da moral
de 1764 onde foi apresentada a posição de Kant frente à moral intelecutalista
de Wolff e a moral baseada no sentimento proposta por Hutcheson e tentativa
de Kant de apresentar uma teoria moral capaz de combinar princípios formais
de determinação da vontade (Wolff) com princípios materias (Hutcheson).
Ao se perguntar pelo modo como se estabelece relações entre princípios materiais e formais no âmbito da moralidade, Kant se viu em face do seguinte
pensamento: seria preciso construir racionalmente um objeto de apetição que
possa ser universalmente desejado. O modo como Kant viabilizaria tal possibilidade marcou a incursão da primeira parte do artigo por uma outra obra de
Kant mais ou menos da mesma época, as Observações do sentimento do belo e
do sublime. Este ensaio de Kant de 1764 marca decisivamente as considerações
de Kant sobre o problema da moral: a influência da obra de Rousseau.1 A par1
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CUNHA, 2017, pp. 90-91.
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GÊNESE DA ANTROPOLOGIA KANTIANA (PARTE 2)
tir de uma leitura crítica e original de Kant e dos textos de Rousseau, surgem
novas e fecundas reflexões que marcarão em definifiivo as reflexões posteriores de Kant tais como (I) a natureza essencial e irredutível do ser humano em
consideração ao seu lugar na ordem natural; (II) a perfeição humana e sua felicidade em relação ao estado de natureza e civilização; (III) o tema da essência
da vontade como princípio do bem e da obrigação, assim como (IV) o papel do
sentimento moral.2
Nesta segunda parte, o presente artigo pretende explorar o diálogo crítico que
Kant estabelece com a teoria antropológico-perfectibilista de Rousseau. Para
a concreção desta tarefa recorrer-se-á ao Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens de Rousseau tendo por fio condutor a
ideia de perfectibilidade como faculdade natural inerente ao ser humano, cujo
desenvolvimento depende apenas da ação humana, de modo que a antropologia
de Rousseau possibilita que a pergunta pelo gênero tenha por referência apenas
o que o ser humano faz de si mesmo através de seus atos. No que concerne à
apreciação crítica que Kant faz da obra de Rousseau recorrer-se-á às Preleções
sobre antropologia3 nas quais Kant aponta um déficit metodológico na compreensão rousseauista da perfectibilidade, e por isso será decisivo o resgate, no
contexto do debate sobre a perfectibilidade, do antigo conceito de teleologia
condensado por Kant na noção de Bestimmung des Menschen (destinação do
ser humano).
1.2 – Linhas diretrizes da teoria antropológico-perfectibilista de Rousseau
Cabe aqui uma breve, porém indispensável, explicação sobre o pensamento de
Rousseau, a fim de contextualizar o leitor e a leitora no que é central para nosso
argumento. O Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens de 1754 (doravante, segundo Discurso) fora escrito a propósito
de um concurso promovido pela Academia de Dijon, tendo por tema agora a
seguinte questão: qual é a origem da desigualdade entre os homens, e é ela autorizada pela lei natural?
2
CUNHA, 2017, p. 114 apud. SCHMUCKER, 1961, p. 180.
A relação das obras kantianas, indicada abaixo, tem por objetivo orientar a conferência (cotejamento) dos trechos citados
ao longo do presente trabalho. As referências seguem a paginação original dos escritos de Kant conforme à edição da Preussische Akademie der Wissenschaften. Muitos dos trechos citados basearam-se em traduções para o português, quando havia
traduções disponíveis. As traduções utilizadas podem ser consultadas na bibliografia. Eventuais traduções e/ou modificações
nas traduções utilizadas de nossa autoria serão devidamente indicadas. As abreviações seguem o padrão estabelecido pela
Kant-Studien.
3
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Ao descrever o gênero humano no estado de natureza, Rousseau adverte o
leitor de que não se deve confundir o atual estado do gênero humano (o estado
civil) com o estado de natureza,4 por isso também não se trata de uma simples
descrição empírica de um estado de coisas como uma leitura desatenta poderia
levar a pensar. Por outro lado, não se deve confundir a caracterização de Rousseau do estado de natureza como mera tentativa de promover um “retorno” do
gênero humano a um estado idílico. Para escapar a estas duas “armadilhas”, por
assim dizer, Rousseau estabelece como fio condutor de sua análise do gênero
humano uma caracterização dupla: ele busca caracterizar o gênero humano em
sua constituição fundamental, num primeiro momento, de um ponto de vista físico e, em seguida, de um ponto de vista metafísico ou moral, como ele mesmo
diz.5
É precisamente no segundo Discurso que encontramos as bases que caracterizam uma perspectiva antropológico-perfectibilista rousseuaniana, pois em
sua caracterização do ser humano em seu aspecto metafísico/moral o filósofo
de Genebra apresenta três aspectos fundamentais por meio dos quais ele procura distinguir o gênero humano dos demais seres da natureza, especificando
assim o lugar próprio do ser humano dentro da ordem natural: (I) o ser humano
é um animal e, portanto, faz o que a natureza ordena, mas é ao mesmo tempo
um ser que transcende os mandamentos da natureza, isto é, é um ser dotado de
liberdade;6 (II) o ser humano é um ser que age livremente, isso significa que
ele não é apenas um ser dotado desta faculdade, mas faz uso dela, em outras palavras, o ser humano não somente é livre, mas é consciente de sua liberdade;7
(III) com base nas duas características anteriores, o ser humano é capaz de se
aperfeiçoar.8
De acordo com o segundo Discurso, pode-se inferir que Rousseau não aceita
4
Cf. ROUSSEAU, 1999, p. 62.
ROUSSEAU, 1999, p. 64.
6
“Em cada animal vejo somente uma máquina engenhosa a que natureza conferiu sentidos para recompor-se por si mesma
e para defender-se, até certo ponto, de tudo quanto tende a destruí-la ou estraga-la. Percebo as mesmas coisas na máquina
humana, com a diferença de tudo fazer sozinha a natureza nas operações do animal, enquanto o ser humano executa as suas
como agente livre. Um escolhe ou rejeita por instinto, e o outro, por um ato de liberdade [...]”. ROUSSEAU, 1999, p. 64.
7
“A natureza manda em todos os animais, e a besta obedece. O ser humano sofre a mesma influência, mas considera-se
livre para concordar ou resistir, e é sobretudo na consciência dessa liberdade que se mostra a espiritualidade de sua alma [...]”.
ROUSSEAU, 1999, p. 64.
8
“Mas, ainda quanto as dificuldades que cercam todas essas questões deixassem por um instante de causar discussão sobre
a diferença entre o ser humano e o animal, haveria uma outra qualidade muito específica que os distinguiria e a respeito da
qual não pode haver contestação – é a faculdade de aperfeiçoar-se, faculdade que, com o auxílio das circunstâncias, desenvolve
sucessivamente todas as outras e se encontra, entre nós, tanto na espécie quanto no individuo [...]”. ROUSSEAU, 1999, pp.
64-65.
5
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GÊNESE DA ANTROPOLOGIA KANTIANA (PARTE 2)
a ideia de acordo com a qual o ser humano poderia ser reduzido ao “status”
de um mero animal, tampouco que o ser humano fosse reduzido somente à sua
condição empírica, pois, na verdade, a consciência de sua liberdade “mostra a
espiritualidade de sua alma”, ele diz. No texto de Rousseau, encontram-se semelhanças profundas com teses de Kant, mas uma nos interessa sobremaneira:
Kant também se refere às capacidades do gênero humano como a condição de
possibilidade dele próprio se autodeterminar, independentemente do curso da
natureza. É digno de nota também que o modo como Rousseau tece suas considerações acerca do gênero humano, considerando-o sob um duplo de vista
(físico ou metafisico/moral), o que guarda flagrante semelhança com a fórmula
de Kant (sensível ou inteligível).
Todavia as semelhanças parecem se encerrar aqui, já que a capacidade que
o gênero humano tem de transcender a mera condição natural, sua perfectibilidade, é aquilo que Rousseau aponta como a causa e “a fonte de todos os males
do ser humano” (ROUSSEAU, 1999, p.65). Do fato de sermos possuidores de
uma faculdade que nos habilita a nos tornarmos melhor (aperfeiçoamento), a
transcender a mera condição animal, sensível, não se segue em absoluto que
o uso que fazemos desta faculdade será sempre o melhor e que, pelo fato de
a possuirmos, forçosamente, “caminhamos para o melhor”. Justamente para
tornar claro por que a perfectibilidade é a causa dos males do gênero humano
é que Rousseau “convida” seus leitores(as) a segui-lo em sua investigação, depurando do gênero humano tudo aquilo que lhe é alheio, artificial e pernicioso,
com vistas a tornar claro o “percurso” feito pelo gênero humano desde o estado de natureza até o atual estado social corrupto, de modo que pretendemos
apresentar aqui as linhas gerais que nos permitam ter claro em que medida o
segundo Discurso é pautado por um pessimismo histórico e ao mesmo tempo
por um otimismo antropológico, e o que nos autoriza a encarar a argumentação
de Rousseau na mencionada obra desta maneira é o caráter ambíguo que a perfectibilidade assume no contexto do segundo Discurso.
Ao procurar descrever o processo de cultivo e moralidade do gênero humano,
Rousseau sustenta:
O ser humano selvagem e o ser humano policiado diferem de tal modo,
tanto no fundo do coração quanto nas suas inclinações... O cidadão
[...], sempre ativo, cansa-se, agita-se, atormenta-se sem cessar para encontrar ocupações ainda mais trabalhosas; trabalha até a morte, corre
no seu encalço para colocar-se em situação de viver ou renunciar à vida
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para adquirir a imortalidade; corteja os grandes, que odeia, e os ricos,
que despreza; nada poupa para obter a honra de servi-los; jacta-se orgulhosamente de sua própria baixeza e da proteção deles, e, orgulhoso
de sua escravidão, refere-se com desprezo àqueles que não gozam a
honra de partilhá-la [...]; o ser humano selvagem vive em si mesmo;
o ser humano sociável, sempre fora de si, só sabe viver baseando-se
na opinião dos demais e chega ao sentimento de sua própria existência
quase que somente pelo julgamento destes [...] o estado original do ser
humano e que unicamente o espírito da sociedade e a desigualdade,
que ela engendra, é que mudam e alteram, desse modo todas as nossas
inclinações naturais. (ROUSSEAU, 1999, pp. 114-15)
A ideia principal que está sendo discutida na passagem acima é que a história do ser humano se revela como uma separação entre o que o ser humano
é e aquilo que ele aparenta ser, afinal, durante sua corte aos ricos, aos quais
em realidade odeia, ele mostra-se gentil, servil e orgulhoso de sua posição de
escravo. Na visão rousseauniana, a sociedade especializou-se em trabalhar este
aspecto corrupto do ser humano, a saber, a escravidão moral.9 É neste cenário que se insere a discussão de Rousseau apresentada pelo segundo Discurso,
uma vez que, nesta obra, Rousseau se põe a examinar a desigualdade entre os
homens, e não qualquer desigualdade10 , mas sim a desigualdade originada na,
e promovida pela, sociedade civil11 , ou como Rousseau a designa, a desigualdade moral ou política.
Segundo Rousseau, se se pudesse marcar historicamente o momento em que
a desigualdade entre os homens se instaurou, então esse momento seria quando
alguém disse: “isto é meu”, o que quer dizer: no momento em que a propriedade privada foi instaurada, com ela começam também a escravidão e a miséria
do ser humano. No fundo, é a instauração da propriedade que corrompe o ser
humano, criatura naturalmente com boas disposições para com os demais, pois,
uma vez que em uma sociedade estabelecida pelo valor da propriedade privada,
o ser humano passa “a alongar suas vistas até o futuro e tendo todos a noção de
9
Cf. MENEZES, E. Moral e vida civilizada: notas sobre a avaliação moderna de seus nexos. In.: Kant, I. Começo
conjectural da história humana. Trad. Edimilson Menezes. Editora Unesp. p. 90.
10
Segundo Rousseau há dois tipos de desigualdade: “uma física ou natural, por ser estabelecida pela natureza; e outra que
se pode denominar moral ou política, porque depende de uma espécie de convenção e que é estabelecida ou, pelo menos,
autorizada pelo consentimento dos homens”. (ROUSSEAU, 1999, p.51)
11
Ao final do segundo Discurso consta “Conclui-se desta exposição que, sendo quase nula a desigualdade no estado de
natureza, deve sua força e seu desenvolvimento a nossas faculdades e aos progressos do espírito humano, tornando-se, afinal,
estável e legítima graças ao estabelecimento da propriedade e das leis”. (ROUSSEAU, 1999, p. 118)
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possuírem algum bem passível de perda, nenhum deixou de temer a represália
dos danos que poderia causar a outrem” (ROUSSEAU, 1999, pp. 95-96).
Por outro lado, sustenta que o ser humano considerado de um ponto de vista
natural é um tipo diametralmente oposto ao ser humano civil, ele é um ser
compassivo e piedoso que não deseja o mal, nem tampouco busca prejudicar
outrem. O ser humano natural vive em um equilíbrio perfeito no qual ainda não
há uma oposição entre ele a natureza (por intermédio do trabalho), tampouco
entre ele e seus semelhantes (por intermédio da reflexão). O ser humano natural
vive encerrado em si mesmo, no momento presente, isto é, a sua existência é
uma existência imediata, não há nada que obstaculize seus desejos e inclinações, não existe uma mediação entre o ser humano natural e o mundo que o
circunda de tal maneira que o ser humano natural quase não é capaz de se diferenciar do mundo que o cerca. O ser humano natural se encontra em um estado
tal que vive além da distinção entre verdadeiro e falso, de modo que Rousseau
chega a conceder ao ser humano natural a posse imediata da verdade.12
Todavia, o ser humano natural vai paulatinamente perdendo sua condição.
Nesse processo, Rousseau atribui um papel central à luta contra os obstáculos
naturais, pois as demais modificações somente aparecerão após o desenvolvimento e o aprendizado do uso de ferramentas. Nesse sentido, o fazer instrumental antecede cronologicamente o juízo e a reflexão. Assim sustenta Rousseau:
Essa foi a condição do ser humano nascente; essa foi a vida de um animal limitado inicialmente às sensações puras que, tão-só se aproveitando dos dons que a natureza lhe oferecia, longe estava de pensar em
arrancar-lhes alguma coisa. Mas logo surgiram dificuldades e impôsse aprender a vencê-las; a altura das árvores, que o impedia de alcançar
os frutos, a concorrência dos animais que procuravam nutrir-se deles, a
ferocidade daqueles que lhe ameaçavam a própria vida, tudo o obrigou
a entregar-se aos exercícios do corpo; foi preciso tornar-se ágil, rápido
na carreira, vigoroso no combate. As armas naturais, que são os galhos de árvore e as pedras, logo se encontram em sua mão. Aprendeu a
dominar os obstáculos da natureza, a combater, quando necessário, os
outros animais, a disputar sua subsistência com os próprios homens ou
a compensar-se daquilo que era preciso ceder ao mais forte. (ROUS-
12
Cf. Emílio, livro II.
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SEAU, 1999, p.88)
Com o advento de novos obstáculos, o ser humano se via impelido cada vez
mais a deixar de lado os galhos e as pedras que tinha à sua volta, e com isso
foi se criando cada vez mais e em maior extensão a distância entre o ser humano e a natureza por meio da criação de artifícios desenvolvidos pelo gênero
humano para o domínio do meio em que vivia.13 A partir deste processo de artificialização ao qual o gênero humano foi submetido, começou-se a desenhar
os contornos da oposição entre natureza e cultura (ou civilização, sociedade,
etc.). Rousseau, ao longo do segundo Discurso, vai encadeando uma série de
momentos que “narram” a história do gênero humano desde seus primórdios
até seu presente momento. E esta história foi marcada em dois grandes momentos, quais sejam, (I) a oposição entre o obstáculo natural e o trabalho, o que
ocasiona (II) o nascimento da reflexão, que, por sua vez, produz o primeiro movimento do orgulho. Em linhas gerais, poder-se-ia afirmar que com a reflexão
termina o estado natural e começa o estado social.
Este processo de artificialização que culminou na instauração da propriedade privada é a verdadeira causa da degeneração moral do gênero humano
e o grande responsável por perverter o ser humano em sua bondade naturaloriginária. Aqui, se torna mais evidente o duplo ponto de vista por meio do
qual Rousseau considera o ser humano: o ponto de vista físico e o ponto de
vista moral/metafísico. Graças a seu aspecto moral, o ser humano pode transpor os limites de sua existência singular e pode integrar a humanidade em sua
totalidade.14 Segue-se desse contexto outra distinção sobre nossas ações sugerida por Rousseau naquela obra e que deve ser levada em consideração, a
saber, a distinção entre amor-próprio e amor de si mesmo.15 Assim, o amor de
13
ROUSSEAU, 1999, p. 88: “A diferença das terras, dos climas, das estações pôde força-los a inclui-la na sua própria
maneira de viver. Anos estéreis, invernos longos e rudes, verões escaldantes, que tudo consomem, exigiram deles uma nova
indústria, À margem do mar e do rio, inventaram a linha e o anzol, e se tornaram pescadores e ictiófagos. Nas florestas,
construíram arcos e flechas, e se tornaram caçadores e guerreiros. Nas regiões frias, cobriam-se com as peles dos animais que
tinham matado. O trovão, um vulcão ou qualquer acaso feliz fez com que conhecessem o fogo, novo recurso contra os rigores
do inverno; aprenderam a conservar este elemento, depois a reproduzi-lo e, por fim, a preparar as carnes que antes devoravam
cruas”.
14
KRYGER, 1979, pp. 49-50: “La méchanceté naturelle ne consiste donc en rien d’autre qu’en l’égoïsme, dans le désir de
vivre ou de survivre. Or, pour Rousseau, l’homme naturel est bon justement en raison de son sain égoïsme et de sa volonté
d’être ! Tous deux posent au départ l’égoïsme parfait de l’homme, avec la différence que l’un croit l’homme, obligé de faire la
guerre à tous pour être à même de satisfaire ses propres besoins, tandis que l’autre déborde d’optimisme en ce qui concerne la
nature. Il y a cependant une autre différence encore et dont le rôle deviendra important avec l’évolution : Rousseau distingue
en l’homme un être physique et un être moral ; grâce à la notion d’être moral, il réussit à faire sortir l’homme des limites
étroites de son existence singulière et à l’intégrer dans l’humanité comme dans sa totalité”.
15
Diz Rousseau: “O amor de si mesmo é um sentimento natural que leva todo animal a velar pela sua própria conservação
e que, no ser humano dirigido pela razão e modificado pela piedade, produz a humanidade e a virtude. O amor-próprio não
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GÊNESE DA ANTROPOLOGIA KANTIANA (PARTE 2)
si é uma expressão do instinto de autoconservação que um indivíduo possui,
e, analogamente, a piedade caracteriza este mesmo instinto de autoconservação, porém com relação à espécie.16 Ambos os sentimentos – o amor de si e
a piedade – são sentimentos naturais de que é dotado o ser humano selvagem,
sentimentos estes que são desconhecidos pelo ser humano civil, pois segundo
Rousseau o aperfeiçoamento das faculdades humanas (a causa da passagem do
estado de natureza à sociedade civil) foi conduzido ao longo da história humana pela futilidade e hipocrisia dos costumes.17 De certa maneira, pode-se
afirmar que é contra esta futilidade e hipocrisia que se levanta a filosofia moral
de Rousseau já a partir do Discurso sobre as ciências e as artes, e é nessa chave
de leitura que podemos entender a apologia rousseauniana à natureza, uma vez
que a imagem do ser humano natural permite à antropologia de Rousseau realizar um “diagnóstico de tempo” acerca do atual estado do ser humano, pois por
meio da imagem do ser humano natural é possível mostrar aquilo que o gênero
humano “perdeu” na passagem do estado de natureza para o estado civil, o que
constitui a “narrativa histórica” de Rousseau. Ao mesmo tempo, a imagem do
ser humano natural permite a Rousseau lançar mão de uma visão antropológica
que reivindique as condições futuras da realização do gênero humano, pois se
o atual estado do ser humano é contingente já que no estado civil o ser humano
perdera aquilo que lhe caracterizava no estado de natureza, é possível ao gênero humano “recuperar a si mesmo” em uma nova ordem social que mantenha
aquela igualdade do estado de natureza dentro de uma nova forma de organização da sociedade.
Este “retrato” do ser humano natural que Rousseau se esforça em construir
funciona na arquitetura de sua antropologia como um modelo teórico, por assim dizer, uma vez que este ser humano natural “não existe, talvez nunca tenha
existido, que provavelmente jamais existirá”.18 E aqui aparece a ideia da estátua de Glauco como a imagem teórica que oferece o contraste entre ser humano
natural e ser humano civil, pois, tal como a estátua se mostra desfigurada, a
alma humana no estado civil se mostra corrompida e desfigurada, que nem de
passa de um sentimento relativo, fictício e nascido na sociedade que leva cada indivíduo a fazer mais caso de si mesmo do
qualquer outro, que inspira aos homens todos os males que mutuamente se causam e que constitui a verdadeira fonte da honra”.
(ROUSSEAU, 1999, pp. 146-147)
16
KRYGER, 1979, p. 51 : “Aussi bien, la pitié ne relève-t-elle pas de l’égoïsme étroit, mais d’un sentiment de communauté
avec autrui qui est mon semblable. Si l’amour de soi est l’expression de l’instinct de conservation propre à l’individu, la pitié
est la forme de l’instinct de conservation relatif à l’espèce”.
17
Aqui ecoa o Discurso sobre as ciências e as artes onde consta: “Onde não existe nenhum efeito não há nenhuma causa a
procurar; neste ponto, porém, o efeito é certo, a depravação é real, e nossas almas se corrompem à medida que nossas ciências
e nossas artes avançaram no sentido da perfeição... Viu-se a virtude fugir à medida que sua luz se elevava no nosso horizonte...”
18
Segundo Discurso, prefácio. (ROUSSEAU, 1999, p. 44).
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longe aparenta pertencer a um ser que age sempre “por princípios certos e invariáveis”, como a estátua de Glauco aparenta um animal feroz e não um Deus.
Ao recorrer à imagem da estátua de Glauco, o segundo Discurso nos permite
vislumbrar uma saída para o problema da desigualdade do ser humano no estado social, uma vez que o atual estado de corrupção do ser humano também
representa a possibilidade de sua “salvação”, pois da mesma maneira que a estátua de Glauco está irreconhecível, o ser humano em sociedade também, mas
do mesmo modo que a estátua ainda preserva aquilo que lhe é próprio, autêntico, o mesmo se dá com o ser humano.19
Justamente pelo fato de a sociedade civil ser o domínio das aparências, portanto, daquilo que é alheio ao ser humano, mais ainda, daquilo que aliena o ser
humano de sua identidade fundamental, é que ela se mostra como um predicado
contingente do gênero humano (pois aquilo que é próprio ao gênero humano
são as características do ser humano natural). E é justo nessa contingência que
vigora no retrato do ser humano na sociedade civil que está a possibilidade de
salvação do gênero humano, pois Rousseau não pretende que os homens abandonem a sociedade e regressem ao estado natural, conforme já argumentamos
no início desta seção; sua preocupação é antes a de estabelecer as condições
para que o ser humano civilizado recupere a liberdade que lhe é posse originária e natural. Aqui se aclara a tese paradoxal segundo a qual a perfectibilidade
é a responsável tanto pelo estabelecimento da desgraça que é a vida social, mas
é também o único caminho para a salvação do gênero humano.20 Na visão de
Rousseau a perfectibilidade diz respeito, antes de tudo, da possibilidade que
19
STAROBIINSKI, 2011, pp. 27-28 argumenta: “Rousseau hesita entre duas respostas contraditórias. Em dado momento,
o mito bifurca em duas versões. A primeira afirma que a alma humana degenerou, que se desfigurou, que sofreu uma alteração
quase total, para jamais reencontrar sua beleza primeira. A segunda versão, em lugar de uma deformação, evoca uma espécie
de encobrimento: a natureza primitiva persiste, mas oculta, cercada de véus superpostos, sepultada sob os artifícios e, no
entanto, sempre intacta”. Optamos pela segunda possibilidade levantada por Starobinski, devido à reflexão de Rousseau acerca
da perfectibilidade humana conforme se explicitará a seguir.
20
Embora aqui não concordemos in toto com a argumentação de CASSIRER, 1999, p.101, julgamos que ele tem muita
razão ao sustentar: “Não podemos resistir ao progresso, mas, por outro lado, não podemos nos entregar a ele sem mais. Tratase de guiá-lo e determinar autonomamente o seu objetivo. Em sua marcha evolutiva até o presente momento a perfectibilidade
enredou o ser humano em todos os males da sociedade e levou-o à desigualdade e à servidão. Mas ela, e apenas ela é capaz de
tornar-se para ele um guia no labirinto no qual ele se perdeu. Ela pode e deve abrir-lhe novamente o caminho para a liberdade.
Pois, a liberdade não é um presente que a bondosa natureza deu ao ser humano desde o berço. Ela só existe na medida em
que ele próprio a conquistar, e a posse dela torna-se inseparável desta conquista constante. Por isso, o que Rousseau exige da
comunidade humana e o que ele espera de sua estruturação futura não é que ela aumente a felicidade do ser humano, o seu
bem-estar e os seus prazeres, mas assegure-lhe a liberdade devolvendo-o assim à sua verdadeira destinação”. Minha resistência
em concordar in toto com Cassirer se deve ao fato de ele parecer pressupor um certo caráter teleológico da perfectibilidade
humana quando diz “trata-se de guiá-lo e determinar autonomamente o seu objetivo”, não me parece que Rousseau tenha
uma concepção teleológica aliada a sua interpretação do aperfeiçoamento moral do gênero humano, uma vez que a própria
ambivalência aventada por Cassirer parece contradizer a presença de uma teleologia, pois esta figura como um princípio lógico
que ordena a nossa reflexão acerca do tempo, e não parece que Rousseau tenha em mente tal paradigma de reflexão. Me parece
que Cassirer aqui se deixa influenciar por Kant e projeta elementos da reflexão kantiana sobre o pensamento de Rousseau.
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o ser humano possui para adquirir um novo aspecto no decorrer do tempo.21
Ainda que o ele constate o atual estado de degradação do ser humano, Rousseau não estaciona, por assim dizer, em um simples pessimismo histórico, pois
ainda que o processo de artificialização e corrupção do ser humano não possa
ser revertido, é possível lançar as bases para uma condição futura onde tais imperfeições sejam corrigidas. É mediante a própria perfectibilidade que o ser
humano pode construir através de suas próprias forças as condições vindouras
de sua emancipação política e de sua autorrealização moral. Ao buscar apresentar a história acerca da origem da desigualdade entre os homens, Rousseau ao
mesmo tempo que detecta na perfectibilidade a causa do estado de corrupção
do ser humano, parece tentar estabelecer o modo pelo qual através da perfectibilidade o ser humano poderia progredir com vistas a sua autorrealização em
uma ordem civil justa e legitima.
O otimismo antropológico de Rousseau, leva-o a considerar a perfectibilidade segundo o quadro de um projeto ambicioso, a saber, a formação do cidadão. A perfectibilidade enquanto faculdade distintiva do ser humano em relação
aos demais animais foi o que levou ao estado de degradação atual do gênero humano, porém esta mesma faculdade é condição por meio da qual o ser humano
pode estabelecer as condições para a superação de seu estado de degradação,
daí o porquê de Rousseau (re)considerar o conceito de perfectibilidade à luz de
seus interesses político-filosóficos. Nesse sentido, a perfectibilidade atua como
o conceito que permite a Rousseau realizar uma investigação acerca do passado
para fustigar o presente, ao mesmo tempo em que habilita o filósofo no estabelecimento de novas diretrizes para o futuro. Ao fixar na perfectibilidade a causa
do trânsito do ser humano do estado de natureza para o estado civil, Rousseau
fixa no ser humano o ponto de referência no qual se deve se buscar as causas e
as soluções de seu infortúnio, isto é, o ser humano é o responsável pelo seu atual
21
“Mas, ainda quando as dificuldades que cercam todas estas questões deixassem por um instante de causar discussão sobre
diferença entre ser humano e animal, haveria uma outra qualidade muito específica que os distinguiria e a respeito da qual
não pode haver contestação – é a faculdade de aperfeiçoar-se, faculdade que, com o auxílio das circunstâncias, desenvolve
sucessivamente todas as outras e se encontra, entre nós, tanto na espécie quanto no indivíduo; o animal, pelo contrário, ao fim
de alguns meses, é o que será por toda a vida, e sua espécie, no fim de milhares de anos, o que era no primeiro ano desses
milhares. Por que só o ser humano é suscetível de tornar-se imbecil? Não será porque volta, assim, ao seu estado primitivo
e – enquanto a besta, que nada adquiriu e também nada tem de bom a perder, fica sempre com seu instinto – o ser humano,
tornando a perder, pela velhice ou por outros acidentes, tudo o que sua perfectibilidade lhe fizera adquirir, volta a cair, desse
modo, mais baixo do que a própria besta? Seria triste, para nós, vermo-nos forçados a convir que seja essa faculdade, distintiva
e quase ilimitada, a fonte de todos os males do ser humano; que seja ela que, com o tempo, o tira dessa condição original
na qual passaria dias tranquilos e inocentes; que seja ela que, fazendo com que através dos séculos desabrochem suas luzes e
erros, seus vícios e virtudes, o torna com o tempo o tirano de si mesmo e da natureza. Seria horrível ter de louvar como um
ser benfeitor o primeiro a sugerir aos habitantes das margens do Orinoco o uso dessas tabuazinhas que aplicam nas têmporas
de seus filhos e que, pelo menos, lhes asseguram uma parte de sua imbecilidade e de sua felicidade original.” (ROUSSEAU,
1999, pp. 64-65)
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estado de degradação, ao mesmo tempo em que é no ser humano que se deve
buscar as condições de superação de seu estado presente. A dimensão temporal
na qual é considerado o “problema-humano” é evidente. Ao historicizar o ser
humano, Rousseau pretende investigar o desenvolvimento das condições físicas e metafísicas (conforme ele diz no segundo Discurso) que possibilitaram a
passagem do estado de natureza pata o estado civil. Todavia, a investigação histórica levada a cabo pelo genebrino no segundo Discurso não pretende se apoiar
na simples historiografia, isto é, no estudo de documentos e registros históricos
de um determinado povo, tampouco procura apoio na narrativa bíblica, pois a
história construída por Rousseau é de natureza hipotética. Deixando de lado
as interpretações teológicas, Rousseau estabelece como o ponto hipotético da
origem da humanidade o primeiro encontro coletivo dos homens isolados e, a
partir daí, se descortina um longo processo histórico no qual o gênero humano
desenvolve e aperfeiçoa progressivamente suas faculdades virtuais, nomeadamente a perfectibilidade. Longe da influência de perspectivas teológicas e metafísicas, a perfectibilidade se converte em uma faculdade natural inerente ao
ser humano, cujo desenvolvimento depende apenas da ação humana e, nesse
sentido, a perfectibilidade se mostra como uma categoria neutra que não possui
um direcionamento teleológico determinado. A teoria perfectibilista (de claro
viés antropológico) de Rousseau assume como seu núcleo duro, por assim dizer, a pergunta sobre o que o gênero humano faz de si mesmo através de uma
série de atos, alguns deles inconscientes, mas que ainda sim são seus atos. Com
esta perspectiva, Rousseau promove um rompimento com uma longa tradição
metafísica que sempre concebeu o gênero humano e seus atributos como possuindo uma natureza a-histórica, os atributos pertencentes ao gênero humano
seriam sempre os mesmos desde o início dos tempos.22 Em oposição a essa
tradição – nomeadamente a tradição aristotélico-tomista –, que considerava a
vida social do ser humano como uma continuação e um desdobramento da vida
natural do ser humano, Rousseau sustenta que a vida social e política é um produto artificial, que é “adicionado” à natureza do ser humano.
A inexistência de uma orientação teleológica inerente à noção de perfectibi-
22
Aristóteles na Política sustenta: “A comunidade perfeita de muitos povoados é uma cidade, já que tem, por assim dizer,
uma ampla capacidade de autossuficiência, que nasceu por causa da vida, e existe por causa do bem viver. Por isso, toda
cidade existe por natureza, se é verdade que são primeiras comunidades. Pois a cidade é o fim daquelas, e a natureza é um
fim; por exemplo, o que cada coisa é, após ter sido desenvolvida desde a sua origem, afirmamos que essa é a natureza de cada
uma delas, tal como a de um ser humano, de um cavalo, de uma família. E ainda por causa disso, também o fim é o melhor;
mas a autossuficiência é o fim e o melhor. Portanto, a partir desses elementos, é evidente que a cidade existe por natureza,
também que o ser humano é por natureza um animal político, e o ser humano sem cidade por natureza, não por acaso, ou é
insignificante, ou está acima do ser humano.” (Política I, 2, 1252b 27-1253a 5).
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lidade impossibilita Rousseau de compreender o agir humano na história como
inscrito em um horizonte amplo e aberto no qual existe um objetivo a ser alcançado, o que implica na não existência de um fundamento que garanta que
o gênero humano estará melhor no futuro, uma vez que na concepção rousseauísta de perfectibilidade não está inscrita a noção de perfeição, Rousseau não
compreende o ser humano como uma unidade cujo núcleo interno (ou as disposições originárias, para falar em termos kantianos) deve se desenvolver até
alcançar sua perfeição. Nesse sentido, a perfectibilidade na visão de Rousseau
não garante a priori que o agir humano, quer do ponto de vista político, quer do
ponto de vista moral, alcance a sua autorrealização, portanto, a sua perfeição.
Perfectibilizar-se é uma faculdade que pode tomar as mais diversas direções,
dependendo de uma multiplicidade de fatores, de modo tal que não obedece a
nenhum plano estabelecido de antemão. A perfectibilidade é o que introduz
a ideia de uma história da humanidade, representa a marca distintiva do ser
humano em relação aos demais animais, pois permite ao ser humano adquirir
garantir que suas transformações ao longo de sua história sejam mediadas pela
razão, tendendo sempre a um desenvolvimento moral adequado, e isso, contrariamente aos demais animais, que permanecem encerrados em uma identidade
fixa.
1.3 – A virada roussaeuísta de Kant contra Rousseau: as novas diretrizes
metodológicas da antropologia
O fascínio de Kant pelas obras de Rousseau era tamanho que se conta a famosa
anedota de que o filósofo, conhecido por sua personalidade metódica, somente
modificou sua rotina diária em duas ocasiões: quando chegou a notícia de que
a Bastilha havia sido tomada e quando recebeu um exemplar do Emílio. Uma
importante passagem que consta nas anotações feitas por Kant a GSE demonstra este fascínio:
A primeira impressão que um leitor sincero, que lê não apenas por
vaidade e passatempo, recebe dos escritos de J-J. Rousseau é que se
encontra diante de uma rara penetração de espírito, um nobre impulso
de gênio e uma alma plena de sensibilidade em tão alto grau que jamais nenhum escritor em qualquer época ou nação pode ter possuído
sequer sonhou ter possuído. (HN AA:20, p.43)
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Porém, junto com o fascínio estava uma profunda disciplina intelectual e a
exigência de um escrutínio rigoroso das ideias de Rousseau. Nas mesmas anotações, algumas linhas antes, Kant adverte:
Eu devo ler Rousseau até que a beleza de [sua] expressão não mais me
incomode e só assim então posso examiná-lo com razão. (HN AA:20,
p.43)
O fio condutor que Kant elege e que parece conferir unidade sistemática à
obra de Rousseau é a sua busca pelo reestabelecimento da dignidade moral do
ser humano, ou para dizer como Kant, “os direitos da humanidade”.23 Nesse
sentido, Rousseau é tido por Kant como causa de uma mudança seminal em
seus pontos de vista sobre a moral, a história e a antropologia. Há uma longa
passagem das Reflexões datadas entre 1764-1768 que nos dá mostra disso e que
carece ser citada no todo:
A ordem da consideração sobre o ser humano é como se segue:
1. A indestinação natural no modo e na proporção de suas faculdades
e de suas inclinações, e sua natureza suscetível de adotar toda classe
de formas.
2. A destinação do ser humano. O estado essencial do ser humano:
se ele encontrar-se-ia na simplicidade ou no máximo cultivo de suas
capacidades e na suprema satisfação de seus desejos. Se de um grau
de habilidade elucida-se a finalidade: é o que há de se investigar.
3. O ser humano da natureza considerado unicamente em suas qualidades pessoais, independentemente de sua situação. Esta é justamente
a questão: o que é natural e o que depende de causas externas e acidentais? O estado de natureza é um ideal das relações externas do ser
humano puramente natural, isto é, do ser humano selvagem. O estado
social pode se constituir também de pessoas de qualidades puramente
naturais.
4. Emílio ou o ser humano moral. A arte ou o cultivo das forças e inclinações que se ajustam melhor à natureza. Mediante elas, se melhora
23
“Eu sou por inclinação um pesquisador. Eu sinto uma ardente sede por conhecimento e a inquietação por avançar nele,
bem como a satisfação em cada passo dado adiante. Houve um tempo em que acreditava que unicamente isso poderia constituir
a honra da humanidade e desprezava a população por nada saber. Rousseau corrigiu-me. Esse cego preconceito desapareceu; eu
aprendi a honrar os homens e me reputaria mais inútil do que um trabalhador comum caso não acreditasse que essa consideração
pode conferir valor a todas as demais: estabelecer os direitos da humanidade”. (HN AA: 20, p. 44)
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a perfeição natural.
5. Da condição externa. O contrato social (comunidade independente)
ou ideal do Estado de Direito (segundo a regra da igualdade) considerado in abstracto, sem levar em conta a natureza particular do ser
humano.
6. Leviatã: a condição social que é conforme à natureza do ser humano. Segundo a regra da segurança. Eu posso estar ou em uma situação de igualdade e ter liberdade para ser injusto comigo mesmo e por
isso sofrer, ou em uma situação de sujeição sem esta liberdade.
7. Liga das nações: o ideal do direito dos povos como completude das
sociedades do ponto de vista das relações exteriores.
8. O contrato social ou o direito público como fundamento da força
suprema. Leviatã ou a força suprema como fundamento do direito público. (HN AA:19, pp.98-9. Tradução de minha autoria).
A passagem demonstra que Kant já se interessava por questões concernentes à antropologia e história ao menos desde a década de 1760, e na passagem
supramencionada parece querer combinar as filosofias de Rousseau e Hobbes.
A teoria de Rousseau representaria o ideal do Estado de direito segundo a regra da igualdade (e da autonomia), portanto, a teoria de Rousseau representaria
a natureza inteligível do gênero humano, enquanto a teoria de Hobbes refletiria a natureza sensível do gênero humano segundo o princípio da segurança e
da conservação.24 Possivelmente, Kant, nesse momento de sua reflexão, estivesse profundamente influenciado pela teoria do Estado de Hobbes, que havia
se tornado popular na Alemanha graças aos interesses de seus jurisconsultos.
A teoria de Rousseau do contrato social, com sua ênfase nas características
legitimistas do poder estatal, parece ter sido a responsável por provocar uma
correção de rota, por assim dizer, não somente nas concepções jurídico-política
24
No cap. X do Leviatã de Hobbes se lê: “Isto é mais do que consentimento ou concórdia; é uma unidade real de todos eles
em uma única e mesma pessoa, feita por acordo de cada um dos homens com os demais, como se cada ser humano dissesse
aos demais: autorizo e transmito a este ser humano ou a esta assembleia meu direito de autogovernar-me, sob condição que
vós também transmitais vosso direito e autorizeis todas as suas ações da mesma maneira. Isto feito, a multidão, desse modo
unificada em uma pessoa é chamada de ESTADO, em latim CIVITAS. [...] Nisso consiste a essência do Estado, cuja definição
é: uma pessoa de cujos atos uma grande multidão, por meio de pactos recíprocos entre seus integrantes, se faz ela própria
autora, pela vontade de cada um de seus membros, com a finalidade de autorizar-lhe o uso da força e dos recursos de todos,
como julgar eficaz, para garantir-lhes a paz e a defesa comum. [...] Obtém-se tal poder soberano de dois modos. Um, pela
força bruta, quando, por exemplo, um ser humano constrange seus filhos e os filhos destes a submeterem-se a seu mando,
pelo fato de ser capaz de destruí-los se recusarem, ou então, pela guerra, dobra os inimigos à sua vontade, poupando-lhes a
vida com essa condição. O outro ocorre quando os homens convencionam entre si submeter-se a algum outro ser humano, ou
assembleia, voluntariamente, confiantes na proteção contra todos os outros. Esta última modalidade pode ser chamada Estado
por instituição; a primeira chama-se Estado por aquisição”. (HOBBES, Thomas. Leviatã. Trad. Ruy Ribeiro Franca. Belo
Horizonte: Tessitura, 2011, pág. 257).
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bem como nas concepções antropológico-morais de Kant. Assim, parece fora
de dúvida que Kant se propõe a reelaborar a filosofia do genebrino segundo os
interesses de sua própria filosofia, uma vez que, na visão de Kant, parece faltar
a Rousseau uma visão sistêmica, que só pode ser apresentada segundo um método racionalmente orientado.
Kant, como se sabe, era um profundo entusiasta das conquistas alcançadas
pela física newtoniana e por isso estava absolutamente convencido de que todos os eventos naturais obedeciam a leis. E, nesse sentido, chama atenção o
conteúdo de uma das reflexões privadas de Kant, datada de 1764-65, pois encontramos ali uma afirmação bastante emblemática feita por Kant acerca de
Rousseau:
Newton viu pela primeira vez ordem e regularidade ligadas à grande
simplicidade onde antes dele eram encontradas desordem e diversidade
de forma inarticulada, e desde então cometas movem-se em trilhas geométricas. Rousseau descobriu pela primeira vez, sob a diversidade
das formas assumidas pelo ser humano, sua natureza profundamente
escondida e a lei oculta de acordo com a qual a providência é justificada através de suas observações. Antes disso, a objeção de Alphonso
e Mannes ainda era válida. Após Newton e Rousseau, Deus está justificado e agora o teorema de Pope é verdadeiro (HN AA:20, p.68).
A comparação entre Newton e Rousseau é digna de nota, seja pela enorme
admiração e entusiasmo que Kant nutria por Newton, seja pelo enorme prestígio e reconhecimento devotados a Newton em toda a Europa. Rousseau é
o responsável também por despertar em Kant o interesse em questões ligadas
aos problemas da desigualdade e da injustiça social. Kant também é devedor
da concepção de Rousseau segundo a qual a liberdade, pensada enquanto autonomia, é a expressão da dignidade humana e, por conseguinte, da igualdade
radical de todos os homens. Em uma passagem do Nachlass, Kant sustenta que
a autonomia pessoal é a condição fundamental de toda e qualquer ação moral, extrapolando tal exigência inclusive para a legislação externa.25 A visão
25
Diz Kant numa passagem de suas Reflexões: „Der Grad der potestatis legislatoriae setzet die Ungleichheit voraus u. macht
daß ein Mensch gegen den andern einen Grad Freyheit verliert. Dieses kann nur geschehen wenn er seinen Willen selber eines
andern seinem aufopfert wenn er dieses in ansehung aller seiner Handlungen thut so macht er sich zum Sclaven. Ein Wille der
eines andern seinem unterworfen ist ist unvollkommen u. wiedersprechend denn der Mensch hat spontaneitatem, ist er dem
Willen eines Menschen unterworfen (wenn er gleich selbst schon wählen kan) so ist er häßlich u. verächtlich allein ist er dem
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antropológico-perfectibilista do ser humano em Rousseau, tal como exposta
especialmente no segundo Discurso, marca uma nova e decisiva etapa no desenvolvimento da teoria antropológica de Kant, especialmente no que tange ao
intuito de apresentar o modo como uma teoria moral baseada na autonomia se
articularia com uma reflexão sobre o processo de transformação histórica do
ser humano, o que traduz claramente, conforme já dissemos, a relação entre
autonomia e perfectibilidade.
Em uma outra reflexão, datada também entre 1764-65, encontra-se uma outra afirmação emblemática:
Eu sou por inclinação um pesquisador. Eu sinto uma ardente sede
por conhecimento e a ávida inquietação por avançar nele, bem como
a satisfação em cada passo dado adiante. Houve um tempo em que
acreditava que unicamente isso poderia constituir a honra da humanidade e desprezava a população por nada saber. Rousseau corrigiu-me.
Esse cego preconceito desapareceu; eu aprendi a honrar os homens e
me reputaria mais inútil do que um trabalhador comum caso não acreditasse que essa consideração pode conferir valor a todas as demais:
estabelecer os direitos da humanidade. (HN AA:20, p. 44)
As reflexões supracitadas deixam entrever como e até onde Rousseau foi o
responsável por ter indicado a Kant o caminho correto não somente naquilo
que concerne à autolegislação da vontade, mas também na forma apropriada de
colocar a pergunta sobre o que é o ser humano. A virada rousseauísta de Kant
pode ser percebida de modo inequívoco ao compararmos como ambos definem
a natureza específica do ser humano.
Todavia, conforme consta das reflexões privadas da década de 1760, a atitude de Kant para com Rousseau não foi de aceitação completa. A atitude de
Kant frente a Rousseau segue aquele princípio que ele adotara na interpretação da obra de Platão, a saber, a de compreender um filósofo melhor do que
ele mesmo.26 Kant pretende fustigar a teoria do ser humano de Rousseau,
Willen Gottes unterworfen so ist er bey der Natur. Man muß nicht Handlungen aus Gehorsam gegen einen Menschen thun
die man aus innern Bewegungsgründen thun könnte u. der Gehorsam fodert wo innere Bewegungsgründe würden alles gethan
haben macht Sclaven“. (HN AA: 20, p.65-6)
26
Diz Kant: “Platão se servia da expressão ideia de tal modo que se percebe facilmente que ele entendia por ela algo que
não apenas jamais é emprestado dos sentidos, mas ultrapassa em muito os conceitos do entendimento de que se ocuparia
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apontando-lhe um déficit metodológico, e por isso será decisivo o resgate, no
contexto do debate sobre a perfectibilidade, do antigo conceito de teleologia.
Neste sentido, a partir do pressuposto de que o progresso da espécie humana
possa ser concebido teleologicamente, todos os males e vícios que seriam notados nos indivíduos não significariam que o gênero não estivesse em progresso.
Nesse sentido, a presente seção (e seus corolários) almeja apresentar as linhas
gerais da interpretação dada aos tópicos centrais da antropologia perfectibilista
de Rousseau por Kant em seus cursos de antropologia na universidade de Königsberg, em quatro ocasiões distintas: 1775/76; 1777/78; 1781/82 e 1784/85,
pois nestas mencionadas ocasiões aquela admiração registrada nas passagens
do Nachlass da década de 1760 cede lugar para um confronto de Kant com
a obra de Rousseau e permite com que se tenha a real dimensão de como
a antropologia kantiana foi gestando interesse pela história e pela educação.
Concentrar-me-ei na seção introduzida a partir do programa de 1775/76 designada por Kant de “Do caráter da humanidade em geral” (Vom Charakter der
Menschheit überhaupt), e que se repete nas outras edições dos cursos com os
nomes de “caráter da espécie humana” (Charackter der Menschengattung) no
curso de 1777/78; “do caráter do todo da espécie humana” (Vom Charackter
der ganzen Menschengattung) no curso de 1781/82; e “do caráter da espécie
humana” (Vom Charackter der Menschengattung) no curso de 1784/85.
É imperioso recorrer a estas passagens de obras não publicadas, pois se nos
fiarmos pelas referências explícitas a Rousseau e sua obra, nos trabalhos publicados por Kant em vida, a importância que o diálogo crítico de Kant com a
antropologia rousseauísta não deixa perceber com facilidade, todavia esta dificuldade se dissipa quando nos fiamos ao registro feito por alunos dos cursos de
antropologia ministrados por Kant entre 1775-1785. Ao nos depararmos com
as notas tomadas pelos estudantes que frequentaram estes cursos, vemos de
maneira inequívoca o modo como Kant interpreta e problematiza as teses que o
controverso Rousseau expôs em suas obras. Estas notas dos estudantes vieram
à luz a partir de 1997, sob o título de Preleções sobre antropologia27 (Vorlesun-
Aristóteles, já que nunca se encontrará na experiência algo congruente com ela. As ideias são para ele arquétipos das próprias
coisas, e não, como as categorias, meras chaves para experiências possíveis. Em sua opinião, elas brotavam da mais elevada
razão e daí eram transmitidas à razão humana, mas esta já não se encontraria em seu estado original, precisando antes, por meio
da rememoração (que se denomina filosofia), recordar com esforço as agora muito obscuras ideias. Não pretendo envolverme aqui com uma investigação literária para estabelecer o sentido que o sublime filósofo ligava à sua expressão. Observo
apenas que não é de todo incomum, seja na conversação comum seja nos escritos, por meio da comparação dos pensamentos
que um autor expressa sobre seu objeto, compreendê-lo melhor do que ele mesmo o compreendia, na medida em que não
determinava de maneira suficiente o seu conceito e, assim, vez por outra falava, ou mesmo pensava, contrariamente a seus
próprios propósitos”. (KrV B370)
27
As citações relativas às Preleções sobre antropologia serão de minha responsabilidade.
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gen über Anthropologie), figurando como volume XXV das obras completas de
Kant, em dois volumosos tomos compilados a partir do criterioso e importante
trabalho de Reinhard Brandt e Werner Stark. Estas preleções representam uma
fonte importante e decisiva para uma compreensão mais adequada do processo
de formação da filosofia kantiana como um todo, mas fundamentalmente da temática ligada à antropologia e a história.28
Embora Kant tenha iniciado seu curso de antropologia em 1772/73, a opção
aqui feita por buscar amparo nos cursos de antropologia a partir de 1775/76 se
justifica por três razões de suma importância para este estudo: 1) É no curso
de 1775/76 que tem início a inscrição da temática relativa ao “caráter da humanidade/espécie humana” (Charakter der Menschheit/Menschengattung) e da
destinação do ser humano (Bestimmung des Menschen) no programa da antropologia kantiana, temática que será replicada, com diferentes graus de desenvolvimento e extensão, nas demais edições do curso, acabando também por
reverberar na obra Antropologia de um ponto de vista pragmático em 1798; 2)
Em 1784, é publicado o primeiro opúsculo no qual Kant se propõe a expor suas
reflexões sobre filosofia da história e destinação humana, a Ideia da história
universal com um propósito cosmopolita. As reflexões apresentadas por Kant
neste opúsculo já são em boa medida antecipadas e discutidas pelos cursos de
antropologia na seção relativa ao caráter da humanidade, o que denota que a temática e os referenciais metodológicos apresentados por Kant no texto de 1784
são frutos de pelo menos uma década de gestação; 3) Rousseau e sua teoria do
ser humano são presença constantes nestes cursos, de modo que o tratamento
despendido por Kant à filosofia de Rousseau ecoa em seus opúsculos de filosofia da história publicados durante a década de 1780, e isso aparece de modo
explícito no opúsculo publicado em janeiro de 1786 no Berlinische Monatschrift intitulado Começo conjectural da história humana. Neste opúsculo, Kant
apresenta uma nota (Anmerkung) de três páginas na qual oferece uma interpretação instigante da filosofia de Rousseau, ao mesmo tempo em que apresenta
um forte tom de desaprovação ao modo como Rousseau conduzira a discussão
acerca do problema entre natureza e cultura.29
28
As preleções constituem um material com enorme potencial de pesquisa da filosofia kantiana, de modo que o presente
trabalho não tem a pretensão de esgotar a riqueza conceitual contida nestas preleções, mas apenas apresentar o modo como
Kant se posiciona frente a obra de Rousseau.
29
Kant assim argumenta: “Um terceiro exemplo pode ser a desigualdade entre os homens, e, de fato, não aquela dos dons
naturais ou dos bens de fortuna, mas a do direito universal do ser humano: uma desigualdade sobre a qual Rousseau reclama
com muita razão – mas que não pode ser separada da cultura enquanto ela avançar como que sem plano (o que é, em todo caso,
inevitável por um longo tempo) – e para a qual a natureza não destinou o ser humano, já que lhe dotou de liberdade e razão
para não limitar esta liberdade senão por sua própria legalidade universal e, para ser preciso, exterior, a qual se chama direito
civil. O ser humano teve de trabalhar por si mesmo para libertar-se da rudeza de suas disposições naturais e, ao mesmo tempo
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É bastante significativo, também, que do tratamento do caráter da humanidade já conste a necessidade de atrelar a perfeição do gênero humano a uma
concepção teleológica que se traduz na expressão Bestimmung des Menschen,
marcando o caráter antirrousseauísta de sua reflexão antropológica. É justamente nos cursos de antropologia que se descortina a importante questão que
serve de fio condutor da antropologia de Kant: ao examinar o caráter do gênero
humano Kant constata a condição peculiar do ser humano dentro do systema
naturae, uma vez que a natureza do ser humano é tal que se exige dele a saída
de seu estado de rudeza e animalidade e passe a se guiar por sua própria razão,
fazendo uso de sua liberdade. Dito de outro modo, o ser humano deve abandonar os ditames da natureza e paulatinamente, a partir de seu esforço, realizar
uma natureza que não é física, mas moral, que ele extrai de si mesmo e a partir de si mesmo. Somente a partir deste processo de destinação moral é que
o gênero humano é capaz de encontrar a sua verdadeira natureza, isto é, sua
perfeição moral.
1.3.1 – O curso de 1775/75
O interesse de Kant por questões relativas à natureza humana e temas ligados
à cultura e à história data, como vimos, de meados da década de 1760, contexto de forte influência da obra de Rousseau exerceu sobre Kant. Foi aventado
neste artigo que, além de Rousseau, os moralistas britânicos representaram outra fonte importante para o (re)direcionamento de Kant nas questões atinentes
ao gênero humano, e Kant assim o confessa no curso de 1775/76.30 Mais importante do que a evidência confessada por Kant das fontes que o influenciaram,
o curso de 1775/76 marca uma importante diretriz nas considerações antropológicas de Kant:
O conhecimento da humanidade (Die Kenntnis der Menschheit) é simultaneamente meu conhecimento. Assim tem que existir como fundamento um conhecimento natural (Zum Grunde muß also eine natürliche Kenntnis liegen), segundo o qual podemos avaliar o que está
em que se elevava sobre si, manter o cuidado de não contrariá-las; uma habilidade que ele só pode esperar obter tardiamente
e depois de muitas tentativas frustradas. Nesse ínterim a humanidade geme sob os males que, por inexperiência, causa a si
mesma.” (MAM AA:08, p.118)
30
Cf. V-Anth/Fried AA:25, p. 472.
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GÊNESE DA ANTROPOLOGIA KANTIANA (PARTE 2)
no fundamento de cada ser humano (was bey iedem Menschen zum
Grunde liegt); desta forma temos certos princípios segundo os quais
podemos proceder. Portanto, devemos estudar a nós mesmos, e se quisermos aplicar isto aos outros, devemos estudar a humanidade, não psicológica ou especulativamente, mas pragmaticamente, porque todos
os ensinamentos pragmáticos são ensinamentos de prudência, onde temos os meios para fazer uso adequado de todas as nossas habilidades,
porque estudamos o ser humano para nos tornarmos mais prudentes, e
que prudência se torna ciência (welche Klugheit zur Wißenschaft wird).
Portanto, não devemos viajar para estudar o ser humano, mas podemos estudar sua natureza em todos os lugares. Mas o ser humano, o
sujeito, deve ser estudado para ver se ele também pode apresentar o
que se exige, aquilo que ele deve fazer: a razão pela qual a moralidade e os sermões, que estão prenhes de admoestação da qual nunca
nos cansamos, têm menos efeito (weniger Effect haben), é a falta de
conhecimento do ser humano. A moralidade deve ser combinada com
o conhecimento da humanidade. (V-Anth/Fried AA:25, pp. 471-72.
Grifo meu)
Pensada por este prisma, a antropologia deve procurar conhecer aquilo que
há de permanente na natureza do ser humano, com vistas a mitigar a enorme
diversidade de formas que a humanidade assume, o que inviabilizaria um conhecimento seguro do ser humano. O reconhecimento da unidade da espécie
humana, a partir das características que são permanentes, Kant pensa poder estabelecer um ponto de contato entre a antropologia e a ética, pois a partir destas
duas diretrizes poder-se-ia estabelecer aquilo que pode ser exigido do gênero
humano, porque constitui sua natureza própria, e sobre aquilo que o gênero
humano pode realizar, porque característico de sua perfeição.31 Em ambos os
casos, o que comanda a reflexão kantiana acerca da relação entre antropologia
e ética é a estabilidade do conceito de natureza humana. A constatação deste
vínculo entre ética e antropologia não é um acontecimento fortuito na obra kantiana, em realidade esta exposição feita pelo professor Kant em seu curso de
antropologia de 1775/76 segue o argumento que fora apresentado por Kant em
sua Dissertação de 1770, na qual a filosofia moral, mesmo apresentada como
um ramo da filosofia pura, não denotava a desconsideração de elementos antropológicos para sua efetivação. A filosofia moral como aquela que “fornece
31
SANTOS, 2016, p. 52.
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os primeiros princípios de julgamento” não é indiferente à investigação acerca
da natureza humana, ao contrário, a filosofia moral deve de antemão pressupor que a natureza humana já é conhecida e perfeitamente discernível, a fim de
que seus princípios possam ser adequadamente aplicados ao ser humano.32 É
justamente o desconhecimento antropológico que leva Kant a condenar novamente o “Ilmo. Wolff” na Dissertação por causa de sua distinção meramente
lógica entre o sensível e o inteligível, o que teria culminado numa condução
dos conceitos da moral à catatonia, quer dizer, à redução dos critérios morais
ao sentimento de prazer de desprazer, à moda de Epicuro, seguido por Shaftsbury e Hutcheson na modernidade.33 Ainda que em seus trabalhos maduros
acerca de filosofia moral Kant tenha optado pela ideia um mando categórico da
razão sobre as ações do ser humano, a sua posição a partir de 1785 não incorre
no descrédito de seus investigações antropológicas, pois, mesmo quando for
garantida a validade objetiva da lei moral na Crítica da razão prática através
da controversa doutrina do fato da razão, Kant não abriu mão da investigação e
mapeamento das condições antropológicas sob as quais a lei moral atua.
Porém o que me interessa salientar no curso de 1775/76 é o fato de que nele
é apresentada pela primeira vez a necessidade de a investigação antropológica
recorrer à ideia de que, no conhecimento da diversidade da espécie humana,
subjaz um conhecimento geral daquilo que é inerente ao ser humano – não é por
acaso que o curso de 1775/76 introduz pela primeira vez a discussão acerca “do
caráter da humanidade em geral” (Vom Charakter der Menschheit überhaupt).
A partir das discussões mobilizadas por Kant acerca do tópico do caráter da
humanidade é que surgem as temáticas que determinaram em boa medida as
teses apresentadas por Kant publicamente (especialmente) em seus opúsculos
da década 1780 concernentes ao tema da história.
Na seção introduzida no curso de 1775/76 há uma adoção visível de Kant
por uma linguagem advinda da história natural para compreender o processo
de desenvolvimento da espécie humana ao longo de sua história, todavia, Kant
emprega a linguagem advinda da história natural não para realizar uma descrição da espécie humana, mas sim uma história da do ser humano na qual se
coloca a necessidade de compreensão do problema antropológico pensado sob
a alcunha da destinação do ser humano. Kant assim anuncia na abertura do
tópico:
32
33
288
SANTOS, 2016, pp. 52-53.
Cf. MSI AA:02, pp. 395-396.
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Este é um importante item sobre o qual muitos autores já se aventuraram a escrever, dentre os quais Rousseau é o mais destacado. O
que deve ser afirmado da humanidade em geral (Was soll man von der
Menschheit überhaupt urtheilen)? Entre os animais, e entre todos os
seres, que tipo de caráter ela [i.e a humanidade] possui? Quanto de
bem e quanto de mal está nela? Ele contém a fonte para o mal, ou para
ou bem, em si mesmo? (V-Anth/Fried AA: 25, p. 675)
Na caracterização do ser humano enquanto espécie animal, Kant mobiliza
diversos autores (Lineu, Moscati e Dampier), porém a questão fulcral do tópico
é marcada pelo diálogo estabelecido pelo professor de Königsberg e o filósofo
de Genebra, especialmente pela oposição que Rousseau estabelece entre o estado de natureza (ser humano natural) e o estado civil (ser humano social) no
segundo Discurso. Kant se prontifica a deixar claro quais questões lhe servirão
de fio condutor na exposição do tópico: “o que deve ser afirmado o gênero humano?”; “que espécie de caráter ela [a espécie humana] possui entre os animais
e entre todos os seres?”, entre outras. Porém, o principal tema explorado por
Kant, em diálogo com Rousseau, é a passagem do estado de natureza para o
estado civil, o que exige o confronto entre o ser humano natural e o ser humano civil, com o objetivo de responder à “importante questão de Rousseau”,
a saber, se o estado de natureza ou o estado civil corresponde verdadeiramente
ao que é o gênero humano, de modo que nesta temática, na visão de Kant, está
contemplado todo o conjunto das ideias expostas por Rousseau em suas obras.34
Ao constatar que nenhum povo transitou do estado civil para o estado de natureza, Kant sustenta que o trânsito é o da passagem do estado de natureza para
o estado civil e, mais uma vez indicando o modo como dever-se-ia interpretar a
obra do genebrino, sustenta:
Se tomarmos isto em sua totalidade, repetimos a pergunta: o estado
natural ou o estado civil é mais apropriado para o fim do ser humano
(dem Zweck des Menschen)? Devemos, a fim de nos aproximarmos do
fim da humanidade (um dem Zweck der Menschheit näher zu kommen),
dirigir-nos para a floresta ou permanecer no estado civil? Nenhum
34
Cf. V-Anth/Fried AA: 25, p. 684.
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povo passou do estado civilizado para o estado selvagem e, portanto,
este não é um progresso em direção à perfeição da humanidade, assim
isto não é um avanço para a perfeição da humanidade, mas, ao contrário, o avanço é da selvageria para a constituição civil, e a perfeição
do estado dos seres humanos está, portanto, colocada na perfeição da
constituição civil [...]. Rousseau também não quis dizer que a destinação dos seres humanos está no estado de selvageria, mas que o ser
humano não deveria buscar sua perfeição em um estado tal que sacrifique todas as vantagens da natureza, ao perseguir as vantagens civis.
Este estado serve apenas para o plano de educação e governo, através
do qual um tal estado perfeito poderia ser alcançado. (V-Anth/Fried
AA: 25, p.689)
Em seguida, Kant expõe a tese da dupla destinação do gênero humano, como
animal (homo phaenomenon) e como humanidade (homo noumenon), e isso é
postulado pela seguinte razão: Kant sustenta que o ser humano “enquanto animal está destinado às florestas, mas enquanto humano está destinado à sociedade”.35 Contrariando a perspectiva de Rousseau no segundo Discurso, Kant
concebe que, ainda que a entrada do gênero humano no estado civil acarrete algumas perdas, traz consigo ganhos que somente poderão ser alcançados paulatinamente pelo esforço dos indivíduos através das instituições civis e da própria
dinâmica social.36
1.3.2 – O curso de 1777/78
No curso de 1777/78, a questão rousseauísta sobre se a forma autêntica do
gênero humano se realizaria no estado de natureza ou no estado civil é retomada por Kant de modo mais suscinto e direto que no curso de 1775/76. Sob
o título de “Pensamentos de Rousseau”, Kant prossegue sua interpretação da
proposta de Rousseau buscando sempre extrair o potencial reflexivo de sua teria do ser humano, sem perder de vista a unilateralidade e exagero contidos em
35
V-Anth/Fried AA: 25, p. 689.
“O estado civil tem a vantagem de poder fazer o ser humano positivamente feliz e positivamente virtuoso, porque no
estado selvagem ele só era negativamente feliz e bom. Embora o ser humano no estado civil sacrifique muitas das vantagens
da natureza, ele tem muitos meios à sua disposição para substituí-las. O fim da natureza (Der Zweck der Natur) era, portanto,
a sociedade civil, e o ser humano está destinado a fazer-se perfeitamente feliz e bom como membro da sociedade em geral (der
gantzen Gesellschaft). Mas o ser humano ainda não se encontra na perfeição da sociedade civil”. (V-Anth/Fried AA: 25, p.
690.)
36
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GÊNESE DA ANTROPOLOGIA KANTIANA (PARTE 2)
sua posição. Buscando também tornar explícita a unidade subjacente à obra
de Rousseau, Kant retoma justamente o problema da destinação do gênero humano como fim da natureza:
Rousseau mostra como uma constituição civil deve ser para alcançar
o inteiro fim do ser humano (den gantzen Zweck’ der Menschen). Ele
mostra como a juventude deve ser educada para atingir este fim: satisfazer plenamente a natureza. Ele mostra dentro de qual constituição
vários povos devem entrar para que aquelas guerras bárbaras deem lugar a disputas amigáveis. Ele mostra que os germes da educação para
nossa destinação estão dentro de nós (daß in uns die Keime der Ausbildung zu unserer Bestimmung liegen) e que, portanto, precisamos de
uma constituição civil para cumprir os fins da natureza (um die Zwecke
der Natur zu erfüllen). Mas se pararmos na constituição civil agora é
melhor voltarmos ao estado de selvageria. O ser humano claramente
não foi feito para vagar na floresta, mas para viver em sociedade. A
sociedade, além da cultura, tem um sistema disciplinar, e com isso inibimos os males que podem retardar nosso progresso rumo à perfeição
(unsere Fortschritte zur Vollkommenheit). (V-Anth/Pillau AA:25, p.
847)
O curso de 1777/78 acaba por estabelecer também as linhas diretrizes do
programa de investigação antropológica de Kant e que revelar-se-iam na obra
publicada em 1798, quais sejam: (I) uma didática antropológica, isto é, a tentativa de mapear as faculdades do ânimo humano que representam os meios pelos
quais o ser humano pode alcançar as suas múltiplas realizações morais; (II) uma
característica antropológica, que busca apreender aquilo que é próprio da espécie humana com vistas a orientar e (dentro do possível) prever as realizações
futuras da humanidade37 . Aliás, esta segunda linha diretriz da antropologia
kantiana, isto é, a característica antropológica é o que serve de subsídio teórico,
por assim dizer, para a estruturação dos opúsculos kantianos, especialmente os
que se dedicam ao tema da história/progresso humano.
O curso de 1777/78 também apresenta de modo claro a base conceitual que
alicerça as linhas de investigação da antropologia kantiana. Novamente a presença de Rousseau é um traço fundamental, pois se apoiando em Rousseau, em
37
Cf. V-Anth/Pillau AA:25, p. 733.
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uma meditação que cumpria já uma década e meia, Kant defende a existência
de um fim da natureza que seria o responsável pela destinação do ser humano,
e uma vez postulado este fim poder-se-ia realizar uma abordagem diferente do
estado de degradação atual do gênero humano como uma etapa na história do
desenvolvimento da espécie rumo à sua autorrealização.
Ao recorrer ao diagnóstico de Rousseau sobre o estado atual do ser humano,
Kant está dirigindo suas atenções ao aspecto histórico da experiência humana,
pois em vista da realização da destinação do ser humano é que a constituição
civil poderia ser avaliada como imperfeita, isto é, como não realizando o fim
inerente à natureza humana como tal. É precisamente em face da constatação
de que o gênero humano é dotado de uma historicidade, isto é, que a espécie
humana possui um grau de aperfeiçoamento, já que há “um progresso rumo à
perfeição”, que no interior das preleções de antropologia de Kant surge o interesse pela história.38 A concepção de história, nascente no curso de 1777/78,
não é a de uma historiografia pautada pela concatenação de datas e eventos que
ocorreram em tais ou tais períodos, pois para Kant esta historiografia, ainda
que fosse reforçada por um conjunto formidável de documentos e evidências
empíricas, seria de pouca ajuda sem um conhecimento adequado da natureza
humana. A história que está sendo gestada no interior das preleções de antropologia é uma resposta de Kant ao postulado da unidade da natureza, esta
concepção de história advinda do curso de 1777/78 visa a dar, portanto, alguma
unidade ao conjunto das ações humanas, que consideradas isoladamente parecem confusas e desordenadas.
A antropologia kantiana busca intervir precisamente neste ponto, ao investigar as disposições inerentes à natureza humana e o fim para o qual elas se destinam. Nesse sentido, Kant busca apresentar o modo pelo qual o ser humano
(individualmente) pode cultivar estas disposições e como, a partir de uma instrução adequada sobre a sua destinação, pode-se interpretar o papel que cada
indivíduo possui no cumprimento da destinação que a natureza reserva ao gênero. O curso de 1777/78 atribui um papel fundamental para a educação e a formação dos indivíduos (mais um traço rousseauísta da antropologia de Kant), o
que já antecipa em boa medida a temática do esclarecimento enquanto processo
de autoformação do ser humano a partir de si mesmo, que será apresentada no
famoso opúsculo Resposta à pergunta: O que é esclarecimento? de 1784.
38
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1.3.3 – O Curso de 1781/82
Ainda que não traga o nome de Rousseau, o curso de 1781/82 é importante
para a temática desenvolvida neste artigo na medida em que avança na ideia
segundo a qual uma simples historiografia não seria suficiente para estabelecer
um conhecimento seguro acerca da natureza humana, já que seria a antropologia que fornece ao ser humano o conhecimento necessário para estabelecer
seus deveres e seu fim como espécie racional e livre, fornece, portanto, ao gênero humano as ferramentas necessárias para pensar o seu agir moral e político:
Toda moralidade exige o conhecimento do ser humano, de modo que
não tagarelamos exortações vazias para as pessoas, mas que saibamos
orientá-las de tal forma que comecem a valorizar muito as leis morais e a fazer delas seus princípios. Eu devo conhecer quais acessos às
disposições humanas (menschlichen Gesinnungen) eu posso ter com
vistas a produzir resoluções; para este fim o conhecimento do ser humano pode nos dar a oportunidade de que o educador e o pregador não
produzam meros soluços e lágrimas, mas que estejam em condição de
produzir verdadeiras resoluções. Em política, é igualmente indispensável, pois para governar os homens é preciso conhecer os homens
[...]. (V-Anth/Mensch AA 25, p. 858)
A investigação antropológica deve ser metodologicamente orientada, sob
pena de permanecer um conhecimento fragmentário, condenando o gênero humano a permanecer em um estado perpétuo de ignorância acerca de seu atual
estágio e das possibilidades de seu futuro. O curso de 1781/82 também avança
na ideia de que a antropologia carece de um método, pois ainda que “exercício e experiência são para nós a melhor escola para conhecer os homens, mas
eles não bastam por si só para aperfeiçoar os nossos conhecimentos e torná-los
práticos"39 . Esta insuficiência se demonstra por exemplo com a simples historiografia, pois deixado à própria sorte o ser humano consegue desenvolver
suas disposições naturais até um certo limite e o conhecimento que ele adquire
acerca de si mesmo é um conhecimento fragmentário, de modo que para escapar a este estado de ignorância advindo de um conhecimento fragmentário
(um tatear às cegas, para falar nos termos da primeira Crítica) é preciso que se
estabeleça um conhecimento seguro capaz de instruir adequadamente o gênero
39
V-Anth/Mensch AA:25, p. 854.
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humano acerca daquilo que ele propriamente é. Diz Kant:
Ao conhecimento do ser humano (Zur Erkenntniß des Menschen) pertence, portanto, um ensino completo dos múltiplos e característicos
traços do ser humano. O ensino do que é diverso e das características
do ser humano. Ambos são de grande importância e devem sempre
preceder o conhecimento do ser humano e por isso a experiência deve
ser ampliada. Equipado com estes ensinamentos, pode-se em pouco
tempo aprender mais que que qualquer outro possa aprender em sua
vida inteira. (V-Anth/Mensch AA 25, pp. 854-855)
A exigência de um método que oriente o conhecimento do ser humano, isto
é, a antropologia, acaba por conduzir Kant a buscar uma justificativa para uma
filosofia da história a partir do horizonte de sua teoria antropológica e, nesse
sentido, o curso de 1781/82 segue o caminho aberto pelos cursos de 1775/76
e 1777/78, e demonstra que no debate travado por Kant com o pensamento de
Rousseau foi desvelando aos poucos os núcleos essenciais que comporiam a
antropologia e a filosofia da história apresentada por Kant em suas obras publicadas, especialmente, a partir de 1784 com a publicação da Ideia universal da
história com um propósito cosmopolita.
Sobre as ideias apresentadas por Kant no opúsculo de 1784, pode-se dizer
aqui preliminarmente que elas guardam semelhança e devem sua origem em
boa medida às discussões empreendidas pelo professor Kant em seus cursos de
antropologia, de modo que o tema do opúsculo de 1784 e mesmo o título são
praticamente anunciados por Kant no curso de 1781-82:
Agora, a fim de estimular a ânsia dos príncipes de aspirar a tais fins
elevados (erhabenen Zwecken) e de trabalhar pelo bem de toda a raça
humana, uma história, que escrita exclusivamente com um propósito
cosmopolita (eine Geschichte, die blos aus cosmopolitischer Absicht),
seria de considerável benefício. Tal história só teria que assumir o
melhor-mundo como seu ponto de vista (Weltbeste zu ihrem Standpuncte nehmen), e tornar dignos apenas aqueles atos da memória dos
descendentes que dizem respeito ao bem-estar de toda a raça humana
(die Wohlfahrt des ganzen menschlichen Geschlechts). (V-Anth/Mensch
AA 25, p. 1203. Grifo meu)
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GÊNESE DA ANTROPOLOGIA KANTIANA (PARTE 2)
Para o leitor/leitora familiarizado com o opúsculo de 1784, a semelhança
entre esta passagem do curso de 1781/82 e a nona proposição do opúsculo de
1784 é indiscutível tanto no que tange à ideia da necessidade e utilidade de uma
história acerca do futuro do gênero humano quanto à ideia da existência de um
plano no qual o agir moral e político do ser humano se inscreve com vistas a
concretizar o “propósito cosmopolita” no qual está colocado a questão da destinação do gênero humano. As antecipações temáticas não param por aí, pois no
curso de 1781/82 é trazida à baila a mesma ideia que se encontra no opúsculo
publicado de 1784, falo da possibilidade de alcançar a perfeição que é restrita
ao gênero espécie:
Nas espécies animais cada indivíduo alcança sua destinação, mas na
raça humana um ser humano isolado nunca pode alcança-lo, tão somente a totalidade do gênero humano pode alcançar sua destinação
total (die ganze Menschengattung ihre Bestimmung erreichen), apesar
do fato de que o ser humano ser constituído pela natureza como um
animal (der Mensch von Natur wie ein Thier ausgerüstet ist). No gênero humano é inapropriado [dizer] que nunca o indivíduo, mas tão
somente o gênero, alcance sua destinação (die Species ihre Bestimmung erreicht). Isto é uma causa adicional rumo à sociedade, pelo que
o ser humano é expressamente criado. Todos trabalham para um, e um
trabalha para todos, pois então cada animal pode por si mesmo buscar
por sua nutrição sem a ajuda dos outros. (V-Anth/Mensch AA 25, p.
1196.)
A passagem do curso de 1781/82 aponta para a tensão entre o indivíduo e espécie no que concerne a atingir a perfeição das disposições inerentes ao ser humano, de tal forma que, conforme a passagem acima o demonstra, a destinação
final do ser humano é produto do aperfeiçoamento contínuo da espécie, cujos
membros transmitem o legado adquirido à geração seguinte e assim sucessivamente, o que possibilita a esperança de que o gênero como um todo possa levar
a cabo a destinação plena. Ainda que o processo de concreção desta destinação possa se encontrar em um desvio com relação à destinação, os indivíduos
têm o poder de corrigir estes desvios e introduzir repetidas correções no curso
histórico do desenvolvimento da espécie, bem como colocá-la, por assim dizer,
nos trilhos para a realização de sua destinação.
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GABRIEL MARTINS FERREIRA
1.3.4 – O curso de 1784/85
A temática da destinação do gênero humano a partir do confronto estabelecido
por Rousseau entre estado natural e estado civil é retomada por Kant no curso
de 1784 sob o título de “os três paradoxos de Rousseau” (die 3 Paradoxa Rousseaus).:
O ser humano é livre por natureza e todos os homens são iguais por
natureza. Neste sentido, o ser humano também se difere da natureza
animal, pois o ser humano é um animal que precisa de um senhor e não
pode existir sem tal. E aqui uma dificuldade surge da cultura, como se
vê a desigualdade entre os seres humanos surge através dela [i.e da cultura], o que por seu turno resulta opressão dos menos cultivados. Esta
é a base dos três paradoxos de Rousseau: 1) dos danos aos seres humanos causados pela cultura ou pelas ciências (Vom Schaden der Cultur
oder der Wißenschaften unter den Menschen); 2) dos danos causados
pela civilização ou pela desigualdade na constituição civil (Vom Schaden der Civilisirung unter den Menschen oder der Ungleichheit in der
bürgerlichen Verfaßung), mas não se pode conceber uma constituição
civil sem desigualdade, [o que é equivalente a dizer] do dano causado
pela constituição civil aos seres humanos; 3) do dano dos métodos artificiais de moralização (Vom Schaden der künstlichen Methoden beim
Moralisiren). [...] Em suma, Rousseau apenas examinou um lado da
questão em seus paradoxos Ele se ocupou apenas com os danos que
a saída do estado de natureza parece ter causado, mas não se ocupou
com as vantagens que surgiram a partir da cultura do ser humano; esta
oposição entre a natureza animal e espiritual no ser humano (thierischen und geistigen Natur des Menschen) é em si mesma a derradeira
contribuição para a produção da destinação final dele (Endbestimmung
des Menschen). (V-Anth/Mron AA:25, pp. 1419-1420.)
No curso de 1784, assim como nas edições de 1775/76 e 1777/78, Kant procura sempre oferecer uma interpretação que saliente as virtudes, por assim dizer, da obra de Rousseau; todavia Kant também censura Rousseau pelo caráter
unilateral e misantrópico de sua reflexão, e também a tendência de Rousseau
em glorificar o estado natural e vituperar o estado social.40 Kant não compar40
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tilha com Rousseau a visão idílica do estado natural como o locus amoenus no
qual o ser humano era perfeito, bom e feliz; tampouco compartilha com Rousseau a ideia de uma oposição estática entre o estado de natureza e o estado civil,
Kant vê antes um conflito dinâmico e altamente instrutivo entre as diferentes
disposições do gênero humano (o conflito entre o aspecto físico e o aspecto
moral do ser humano), e atribui ao ser humano o dever de extrair deste conflito
as condições por meio das quais realizar-se-á a destinação da natureza no que
tange à espécie, a autorrealização moral do gênero humano. Do conflito entre
esta dupla destinação do gênero humano, enquanto animal e enquanto ser racional, origina-se a condição particular do gênero humano e através dela também é
explicado o porquê de a condição do gênero humano ser a mais difícil de todas
as condições, quer em relação aos animais quer em relação a eventuais seres
puramente racionais, o que exige do ser humano que se liberte dos ditames da
natureza (liberdade) e forje a si mesmo a partir do desenvolvimento das disposições racionais que são inerentes ao gênero humano enquanto espécie racional
e livre.
No curso de 1784 vem à baila novamente a ideia de que todas as criaturas
através de suas disposições originárias tendem à perfeição:
O estado intermediário entre estes dois é o tempo do luxo (des Luxus),
do refinamento do gosto (der Verfeinerung des Geschmaks) e da cortesia (der Geselligkeit) A este respeito, Rousseau tem razão quando
prefere o estado natural a este estado. Mas isto não se aplica ao estado
civilizado (gesitteten Zustand), a saber, que o ser humano deve alcançar este estado civilizado através de muitos inconvenientes, guerras e
má consequências destas, ocorridas em nosso globo porque a dor deve
se tornar um espinho para o ser humano. Uma única criatura finalmente alcança sua destinação (seine Bestimmung), ou seja, chega ao
momento em que todas as suas disposições naturais são desenvolvidas
(alle seine Naturanlagen entwickelt werden) e à maturidade. A única
diferença entre humanos e animais é que nos humanos a espécie inteira
só chega à sua destinação através de diferentes gerações (die ganze
species durch verschiedene Generationen ihre Bestimmung erreicht).
É difícil que outros se sintam intimidados pelos frutos de nossos esforços ácidos; mas só a experiência, os anais da história humana, nos
provam isso sem qualquer possibilidade de objeção. (V-Anth/Mron
AA:25, pp. 1417-1418)
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GABRIEL MARTINS FERREIRA
Mantendo-se fiel, por assim dizer, à sua virada rousseauísta, a reflexão antropológica de Kant ao problematizar tanto o ser humano em sua constituição
física, ou moral; quanto o processo de transformação histórica do gênero humano, entende o ser humano em um quadro de referências alheio a qualquer
autoridade teológica. Nesse sentido, Kant busca compreender o processo de
transformação histórica do gênero humano em seus aspectos morais, políticos
e culturais como um processo temporal aberto em uma marcha contínua em
direção ao seu fim, mesmo que esta marcha seja infinita e indeterminada em
relação ao tempo para sua concreção. A tarefa com a qual Kant se defronta é a
necessidade de apresentar como processo de desenvolvimento (no tempo) das
disposições racionais inerentes ao gênero humano poderia ser racionalmente
orientado, e concomitantemente, a apresentação das condições políticas e morais que levariam à concreção do desenvolvimento das disposições inerentes ao
gênero humano.
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Recebido: 15/07/2022
Aprovado: 10/08/2022
Publicado: 31/08/2022
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