REP’s - Revista Even. Pedagóg.
Número Regular: Estudos Decoloniais
Sinop, v. 13, n. 3 (34. ed.), p. 803-814, ago./dez. 2022
ISSN 2236-3165
https://periodicos.unemat.br/index.php/reps
DOI: 10.30681/2236-3165
COMPREENDENDO A DECOLONIALIDADE NO ÂMBITO DE PAULO FREIRE
UNDERSTANDING DECOLONIALITY IN THE FRAMEWORK OF PAULO FREIRE
WITHIN THE SCOPE
Racquel Valério Martinsi
RESUMO
Este artigo foi elaborado a partir de uma apresentação para a 40ª. Reuniao da
ANPED, em conjunto com o Programa de Pós-graduação em Educação da UECE e
logo na mesma linha foi feita uma exposição no II Congreso Iberoamericano
Educación, Sociedad y Cultura da Universidade de Manizales na Colombia e outra
durante uma reunião do Grupo de Pesquisa de Estudos Decoloniais – GPED da
Universidade Federal de Mato Grosso do Sul - UFMS. Todos eles foram trabalhos,
nos quais buscamos compreender a decolonialidade, com a tentativa de relacionar
esta experiência transformadora reafirmando a importância do pensamento freireano
para a educação, a partir de um diálogo envolvendo as idéias de Mota Neto (2015) e
Catherine Walsh (2017). Para tanto, a partir de uma revisão bibliográfica e
interpretativa, explicamos o que seria a decolonialidade, retomamos alguns pontos de
convergência entre a obra de Paulo Freire “Pedagogia do Oprimido” (1968) y a
perspectiva decolonial, pois a referida obra de Freire converge com algumas das
principais matrizes críticas de pensamento latinoamericano das últimas décadas. Não
é demasiado insistir nessa temática muitas vezes mais… porque os momentos
políticos são, cada vez mais complexos e embora as mudanças propostas nos
discursos se distanciam do neoliberalismo, acabam por fortalecer o neoextrativismo e
a criminalização dos protestos por exemplo. No entanto, apesar de toda ameaça, não
cessam os movimentos indígenas e afrodescendentes como verdadeiras lutas de
decolonização, das quais temos muito a aprender, desaprender, reaprender para
então atuar.
Palavras-chave:
Conscientização.
Paulo
Freire.
Decolonialidade.
Pedagogia.
Diálogo.
ABSTRACT
This article was elaborated from a presentation for the 40th. Reuniao da
ANPED, together with the Post-graduation Program in Education of the UECE and
logo on the same line was an exhibition at the II Ibero-American Congress on
Education, Society and Culture of the University of Manizales in Colombia and another
during a meeting of the Group of Decolonial Studies Research – GPED of the Federal
University of Mato Grosso do Sul - UFMS. All of the work forums, we seek to
understand decoloniality, with an attempt to relate this transformative experience
reaffirming the importance of Freirean thought for education, from a dialogue involving
the ideas of Mota Neto (2015) and Catherine Walsh (2017). Therefore, from a
Este artigo está licenciado sob forma de uma licença Creative Commons Atribuição 3.0 Não Adaptada,
que permite o compartilhamento do trabalho com reconhecimento da autoria e publicação inicial nesta
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bibliographical review, we explain what would be a decoloniality, we return to some
points of convergence between the work of Paulo Freire "Pedagogia do Oprimido"
(1968) and a decolonial perspective, because the referred work of Freire converges
with some of the Main critical matrices of Latin American thought in recent decades. It
is not too much to insist on this theme many times more… because the political
moments are more and more complex and the changing proposals make our
discourses distance from neoliberalism, we end up strengthening neo-extractivism and
criminalizing two protests, for example. However, despite all the threats, we have not
stopped the indigenous and Afro-descendant movements as true struggles for
decolonization, since we have a lot to learn, unlearn, relearn in order to act.
Keywords: Freire. Decoloniality. Pedagogy. Dialogue. Awareness.
1
INTRODUÇÃO
O grande chamamento à decolonialidade está centrado na elaboração de uma
consciência crítica dos problemas existenciais, o que culmina em uma atuação
solidária na tentativa de (re) construir o mundo. Se faz necessário que reflexionemos
sobre as raízes coloniais do contexto hegemônico de imposição socioeconômicocultural, bem como as desigualdades presentes e tão naturalizadas em América
Latina, sendo reforçadas por práticas educacionais que reproduzem padrões de
opressão e submissão dos diversos povos. Ou seja, é fato que a colonialidade se
mantém através de uma série de sistemas, estruturas, hierarquias, pedagogias e
metodologias, assim que o desafio é decolonizar, estando conscientes de que esta é
a maneira de potencializar, valorizar e reconhecer os saberes e conhecimentos das
distintas culturas e povos.
Vale ressaltar que o conceito de conscientização é muito importante na
pedagogia de Paulo Freire, o qual foi inicialmente concebido como superação de uma
consciência ingênua, herdada do período colonial. A alfabetização no Brasil, baseada
em procedimentos e métodos mecânicos e desvinculados de qualquer atitude crítica,
adquire significado a partir da conscientização proposta por Freire. A partir da década
de 1970, a conscientização passou a ser vista não apenas como consciência crítica
da realidade nacional, mas principalmente como instrumento de luta das classes
populares pela transformação da sociedade.
O termo conscientização está incluído em todas obras do educador Paulo
Freire, assim, fazendo a reflexão proposta no âmbito do referido autor, nos remeterá
a esperançar outros mundos onde possamos vivenciar na prática a decolonialidade,
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pois é considerado um educador vigente sobretudo no aporte e pertinência da
metodologia de ensino, baseada no diálogo (conversatórios, exercer a comunicação),
sendo esta uma das experiências humanas fundamentais, baseada também na
horizontalidade e no reconhecimento e respeito às diferenças e aos saberes populares
dos sujeitos, dos povos e das comunidades.
Na obra “Pedagogia do Oprimido” Freire, apesar de não desconsiderar uma
revolução como objetivo, centra-se em aspectos cognitivos de transformação da
realidade. Podemos dizer que o projeto pedagógico de Freire visa à formação de uma
percepção crítica da realidade opressora pelos educandos e a problematização de
temas antes não questionados e de situações e condições antes assimiladas como
naturais, o que de acordo com Freire (2005), possibilita aos indivíduos uma nova
postura, também crítica, frente às situações limites.
Consideramos, portanto, que o pensamento filosófico de Paulo Freire segue
atual e poderá contribuir com a consciência crítica, libertando e protagonizando as
pessoas para o desenvolvimento sustentável. O legado de Paulo Freire, do diálogo,
da educação e conscientização, nos remete a uma visão dessa temática que nos
possibilitará discutir o passado, presente e futuro da educação.
Como podemos perceber, a cultura se tornou elemento estratégico na
sociedade contemporânea e devemos acreditar, como acreditou Paulo Freire, no
potencial da cultura como instrumento de libertação, como prática e não a evidenciar
por razões econômicas e políticas, mas considerando a interseção destas áreas.
Com este pensamento, o que queremos através desse artigo, é dizer o
imprescindível que é superar o que está ainda intrínseco que é ver o colonizador, ou
melhor dizendo o opressor de Freire, como um modelo a imitar. Frantz Fanon apud
Raúl Zibechi (2014) também nos advertiu que não devemos render tributos a Europa,
ao Norte, ao mundo colonial. E sim o que devemos é superar a imagem desses como
o desejo dos colonizados ou oprimidos, dos pobres, tudo ao contrário, devemos
exaltar a estes que as vezes são chamados de “condenados da terra”, quem mesmo
acorrentados, são os que se mostram mais interessados em transformar o mundo. De
acordo com os dois autores, acreditamos ser esse o caminho para a verdadeira
decolonização. Para percorrer tal caminho necessitamos relacionar processos,
estratégias e práticas insurgentes de resistir, (re) existir e (re) viver pedagogias, como
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defende Catherine Walsh (2017), o que para Paulo Freire (2003:56) são com certeza
“razões de esperança na desesperança”.
2
DESENVOLVIMENTO
2.1
COMPREENDENDO A DECOLONIALIDADE NA PERSPECTIVA DE PAULO
FREIRE
O tema da Decolonialidade e outros temas transversais, aparecem na obra de
Paulo Freire todos concatenados e apresentados com uma perspectiva de
conscientização e transformação para este século.
A decolonialidade se apresenta como ferramenta política e conceitual, a qual
ajuda a vislumbrar a problemática em sua complexidade, esclarecendo conforme
Walsh (2009), o rumo teórico, prático e vivencial da luta, na qual a autoridade é
reprovada, possibilitando a intervenção. É um processo que inicia com a criticidade
daquilo que está dado, o que pode ser observado nas convivências que visam (re)
construir e experimentar formas decoloniais de organização social e política, como é
o caso das populações indígenas e/ou afrodescendentes, onde não existe espaço
para discursos e práticas homogeneizantes ou que hierarquizem culturas.
Como podemos perceber há um longo caminho a percorrer porque a
emancipação política não significou a decolonialidade dos povos, especialmente
quanto às questões educativas. As culturas indígenas e africanas, que foram
dominadas pela cultura européia e ainda permanecem sob influência das
consequências dessa imposição, tiveram suas identidades surgidas com a
colonialidade do poder e se reproduzem por meio da exploração lógica da dominação
institucionalizada por todo tipo de socialização, ressaltando que as instituições de
ensino podem construir diálogos decoloniais com o desenvolvimento de currículos que
apontem para a emancipação e superação da dominação hegemônica.
De acordo com Mota Neto (2015), Freire apresenta em suas obras pontos que
caracterizam o núcleo fundamental de sua concepção decolonial, criticando a
inexperiência democrática da sociedade brasileira; a desumanização do ser humano;
a relação antidialógica da opressão; a invasão cultural; a dependência entre Primeiro
e Terceiro Mundo; e os sistemas de ensino coloniais. Ao criticar a falta de experiência
democrática da sociedade brasileira, Freire aponta que o fim do período de exploração
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colonial no Brasil não significou o término da colonialidade: permaneceu a herança de
valores, comportamentos, normas e, inclusive, ideias educacionais.
Podemos dizer que a educação tradicional brasileira permaneceu autoritária,
acrítica e vertical, reforçando a desigualdade na sociedade. O referido autor evidencia
que Freire critica a educação tradicional, a qual chama também de educação bancária,
e afirma que o sistema de ensino colonial dissemina a ideia de inferioridade e
incapacidade do povo. A imposição da língua do colonizador, por exemplo, permanece
após a independência política, já que a escola do colonizador nega a cultura do povo
colonizado (MOTA NETO, 2015).
Para superar as relações de dominação e exploração, a educação assume um
papel fundamental. Freire destaca que a educação deve possibilitar que o sujeito
desenvolva sua vocação para ser-mais, refletindo sobre sua realidade e buscando
superar a mentalidade colonial para promover a transformação da sociedade.
Em toda sua obra, Freire critica a desumanização, massificação, alienação e
coisificação do ser humano, relacionando-as ao processo de colonização. Com a
importação de modelos exteriores, o silêncio do povo e o autoritarismo das elites, há
o que Freire denomina como colonialidade do ser, já que o sujeito é desumanizado e
transformado em coisa, tornando-se alienado de sua cultura e de sua realidade
(MOTA NETO, 2015). Freire defende, pelo contrário, a tolerância para conviver com o
diferente sem considerá-lo inferior. Gostaríamos apenas abrir um parêntesis, o que
temos feito nas aulas que é substituir a palavra tolerância por respeito às diferenças,
porque não é uma questão de desculpar defeitos ou falhas, de ser condescendente,
mas de considerar o importante e respeitável que somos todos e cada um.
Sua proposta política decolonial estimula a colaboração e o protagonismo. O
educador, nesse contexto, deve lutar contra todo tipo de exploração e discriminação,
mantendo sempre o dever de protestar e lutar contra a opressão para que o aluno
possa ensaiar suas próprias formas de libertação da colonialidade, o que exige um
testemunho ético por parte do professor.
Freire retoma Hegel e então explica a relação entre o opressor e o oprimido,
fazendo uma analogia do senhor e do escravo para demonstrar como a classe
opressora e a classe oprimida se constituem mutuamente, e numa permanente
relação de dependência: “ao fazer-se opressora, a realidade implica a existência dos
que oprimem e dos que são oprimidos” (FREIRE, 2005, p.41-42).
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As referidas classes se apresentam como polos opostos e dependentes em
uma relação de contradição, na medida em que o oprimido espelha-se no opressor
que, vai internalizando suas características ao longo do processo de educação e
socialização no contexto da estrutura opressora. Freire (2005) descreve o que para
ele se apresenta como uma invasão cultural pela mitologia da estrutura opressora.
Os mitos são passados às classes oprimidas por meio de uma forma de
educação na qual os temas são transmitidos como verdades absolutas e legitimados
pela autoridade do educador contraposta à suposta ignorância do educando.
Vale ressaltar que quando Freire utiliza o termo oprimido, está se referindo
àquele indivíduo que foi privado de “ser mais”, de forma geral. Ou seja, passa mais
pela impossibilidade de libertar-se para poder “ser mais”, do que por características
como etnia ou origem. Assim a “classe oprimida”, para Freire, está mais próximo da
experiência da pobreza do que propriamente da discriminação, pela referência geral
da classe oprimida mais explícita na obra a de operários urbanos e a de camponeses,
o que no caso do Brasil acaba que a pobreza se apresenta como um grande reflexo
de comunidades, indígenas, tradicionais e negras distribuídas por todo o país no
perímetro urbano ou rural.
Na prática, a perspectiva de Freire acaba resumindo-se num conjunto de ideias
(as ideias força), um universo teórico que se pensado como processo, o resultado será
sempre numa dimensão de pós-etnicidade que é exatamente o assumir que se pode
viver em vários círculos simultaneamente, e assim assumir voluntariamente múltiplas
identidades, ou seja, possam fazer suas escolhas por afinidade. É poder ouvir com
prazer ecoar gritos que historicamente foram silenciados.
2.2
Legado do Diálogo. Paulo Freire em Mota Neto (2015) e Caterine Walsh
(2009)
Paulo Freire propõe uma educação problematizadora e democrática, que
possibilite relações dialógicas e estimule o desenvolvimento crítico dos sujeitos. Vale
ressaltar que o diálogo é seu grande legado. E é verdade que quando este é
interrompido entra em cena a violência, assim que manter o diálogo, ainda que
ameaçado pelas violências estatais, econômicas, midiáticas, epistemológicas e de
suas instituições nas quais se fala muito, mas não se conversa, é uma tarefa primordial
da opção decolonial.
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João Colares da Mota Neto (2015) em sua tese de doutorado, intitulada
“Educação popular e pensamento decolonial latino-americano em Paulo Freire e
Orlando Fals Borda”, nos conduz a observar as contribuições de Paulo Freire à
educação latinoamericana, especialmente quanto à denúncia do legado colonial e à
necessidade de anunciar uma proposta político-pedagógica decolonizadora.
Corroboramos com o destaque dado pelo autor à importância de Freire para o
pensamento decolonial por sua capacidade de pensar a pedagogia a partir da
dominação e do lugar em que se encontram os oprimidos. Freire fala diretamente com
o oprimido, não para ele, mantendo sempre uma postura de diálogo e respeito às
diferentes culturas. Em sua obra e em sua vida, Freire esteve preocupado em superar
os traços coloniais impregnados na educação. Suas ideias foram elaboradas a partir
do diálogo com as camadas populares do nordeste brasileiro – e posteriormente
também em contato com as classes oprimidas de outros países.
Com a prática de Paulo Freire destacada por Mota Neto, o que se pode deduzir
é que temos muito a aprender com o diálogo, especialmente com os alunos. Seguir
com um modelo em que somente o professor fala e o aluno por sua vez só escuta é
um grande erro. Freire já nos advertia da importância de transformação da educação,
a partir do conhecimento do contexto dos educandos, esses que necessariamente
devem ser orientados à criticidade, o que os leva ao reconhecimento de sua condição
de excluídos.
Catherine Walsh (2009), decidiu pelo termo decolonial em vez de descolonial,
assim que corroboramos com sua ideia de que o uso do ‘des’ pode ser entendido
como um simples desfazer ou reverter do colonial, ou seja, a possibilidade de se
passar de um momento colonial para um não colonial, como se pudéssemos
considerar que seus padrões e marcas deixem de existir. De acordo com a autora, é
a partir do entendimento de que o pensamento decolonial traz uma forte crítica ao
eurocentrismo e suas formas de conhecimento que tentam sempre impor uma
superioridade epistêmica e metodológica em relação a todas as demais, e que
coincide com as propostas de Freire quando se propõe um diálogo com saberes e
conhecimentos outros, com vistas a compreender o mundo na sua complexidade, que
passa a defender a construção de um contínuo caminho de lutas, onde se possa
identificar, visibilizar e estimular “lugares” de exterioridade e construções alternativas.
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A proposta é, portanto, romper com as pedagogias tradicionais, reconhecendo
principalmente que a pedagogia não se limita às instituições de ensino, ocupando os
movimentos sociais um importante papel na obtenção e construção de pedagogias
que intencionalmente levam adiante práticas críticas que sejam libertadoras e
decoloniais.
Essa complexidade leva a que trabalhemos unindo o pedagógico com o
decolonial, sendo para tanto, fundamental o papel do professor, que nos ensinará
especialmente através da memória coletiva, sendo esta a reafirmação de que a
tradição e os ancestrais nos ensinam. O pedagógico aqui pensado a partir de Paulo
Freire que nos ensina que a pedagogia deve ser entendida como metodologia
imprescindível dentro das e para as lutas sociais, políticas, ontológicas e epistêmicas
de libertação.
Destacamos
transformações
necessárias,
como
é
a
questão
da
conscientização de que muitos são os preconceitos, e isso converge com o que Freire
(2005) chama de mitologia da estrutura opressora, a qual é responsável pela
“autodesvalia”, característica dos oprimidos que nada mais é que a introjeção pelos
oprimidos da visão negativa que deles tem o opressor: a de seres ignorantes,
inferiores, incapazes, etc., que para mudar é necessário o processo de invasão
cultural descrito por Freire (2005), que tem como condição básica ao êxito o
conhecimento por parte dos invadidos de sua inferioridade intrínseca.
Paulo Freire nos trouxe pedagogias que traçam caminhos para criticamente
fazer a leitura do mundo e intervir na reinvenção da sociedade, portanto, pedagogias
que não são externas às realidades, subjetividades e histórias vividas dos povos, mas
parte integral de seus combates e persistências, de suas lutas de conscientização,
afirmação e desalienação, e de suas disputas de ser e se fazer humano.
Não é demais recordar a todos de que foi através da leitura de seu mundo, que
Paulo Freire apontou a dimensão cultural como o principal método de alfabetização.
Diz ele: “É essa brasilidade nordestina que me possibilita (…)”. E podemos dizer que
foi sua experiência do exílio (os olhares de longe, a famosa “visão de mundo”) o que
estimulou seu interesse pela diversidade cultural e que, sem dúvida contribuíram,
contribuem e contribuirão a uma prática educativa efetiva na qual se preserve as
essências de suas diferenças e sobretudo interatuem naquilo que se assemelham.
Consideramos ainda que sua obra, assim como a proposta da perspectiva decolonial,
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tem um valor pedagógico na medida em que questiona os referenciais eurocêntricos
que seguem sendo reproduzidos.
2.3
A crise atual e os reflexos na educação brasileira
Sobre a educação brasileira, que tem sofrido um verdadeiro ataque com o atual
governo passando inclusive quase um ano, ou seja, grandes períodos sem ministro
da educação, o que podemos dizer é que, não só agora, mas desde sempre nunca foi
encarada como política de Estado, como um projeto de desenvolvimento para o país,
para uma verdadeira independência, mas se olhamos na direção contrária é distinto,
ou seja, a política nunca ignorou a educação, pois propositalmente não a priorizava
ou a prioriza, preferindo apostar na especulação financeira, no populismo barato e no
autoritarismo, perpetuando um círculo vicioso de miséria, desigualdade e injustiças.
Considerando apenas o último lustro, verificamos que desde o golpe de 2016,
quando houve o impedimento que Dilma Rousseff permanecesse no cargo de
presidente, para o qual havia sido eleita democraticamente, e este seguido da
pandemia que acabou situando o Brasil entre os piores países em número de mortes,
e com o aumento da situação de vulnerabilidade de uma grande parcela de sua
população, somos chamados a pensar nos percursos históricos coloniais construídos
com ações antidialógicas, as quais acabam por dar continuidade às mazelas e
violências na atualidade, perpetuando as desigualdades sociais.
A polarização política em nosso país vem manipulando as pessoas, e nesse
contexto a educação se apresenta como uma mera conveniência política que vem
condenando gerações inteiras aos problemas relacionados com a falta dela
(subempregos, violência, desigualdade social…). Nossa responsabilidade é muito
grande para transformar tudo isso, até porque todos os momentos políticos, sem
dúvida, são, cada vez mais enganchados e complexos com as crises do capitalismo,
assim como da colonialidade do poder, como adverte Quijano (2002). O termo crise
se apresenta como uma caracterização de toda América Latina e passam na América
do Sul também.
Afirma Quijano (2002) que temos diferentes maneiras de participar do poder,
desde que sirvamos a objetivos que vão mais além de nossos interesses pessoais.
Se assim participamos, acabamos por perceber e confirmar o que dizia Paulo Freire
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sobre não haver uma crise da educação. “Há uma crise do sistema. Há uma crise dos
sistemas. Não é a educação em si que entra em crise. Ela reflete uma crise”. E temse refletido, especialmente no Brasil, uma crise de anti-humanidade com a vida que
levamos e a sociedade em que vivemos.
A educação sempre foi política e este é um princípio considerado por Paulo
Freire como fundamento para falar de educação e transformação. Paulo Freire fala do
compromisso… O compromisso, portanto, no sentido de “doar-se ou entregar-se” à
causa, comprometer-se. Para isso é necessário o envolvimento no domínio político,
num constante refazer das estruturas sociais, econômicas, nas quais se dão as
relações de poder. Para Paulo Freire, a pedagogia se entende como metodologia
imprescindível dentro de e para as lutas sociais, políticas, ontológicas e epistêmicas
de libertação. As pedagogias, nesse sentido, são as práticas, estratégias e
metodologias que nos encaminham a um outro modo de viver, com a preocupação do
coletivo que os povos indígenas e os afrodescendentes vêm significando ao longo dos
tempos, e com elas, coletivamente nos construímos tanto na resistência e na
oposição, como na insurgência, na afirmação, enfim, na (re) humanização.
As recentes constituições de Equador e Bolívia, por exemplo, as quais apontam
para a construção de sociedades, Estados e modos de conviver radicalmente
distintos, conforme Catherine Walsh (2009) é esta ressurgência e insurgência postas
nas articulações atuais não só destes dois países senão também a nível continental,
que provocam e inspiram novas reflexões e considerações pedagógicas e, ao mesmo
tempo, novas releituras em torno da problemática histórica da (des) humanização e
(des) colonização.
Assim como tem sido para movimentos, comunidades e intelectuais indígenas,
e afrodescendentes, em toda América Latina, necessitamos atuar, mas, sobretudo
aprender como lidar com os momentos de avanços e retrocessos como têm sido as
lutas de descolonização, lutas que requerem de nós aprendizagem, (des)
aprendizagem e reaprendizagem, ação, criação e intervenção. Não podemos
esquecer que a transformação do mundo depende de cada um de nós, pois “a gente
muda o mundo com a mudança da mente”, e nas palavras de Paulo Freire: “A
educação não transforma o mundo, a educação transforma as pessoas e as pessoas
é que transformam o mundo”.
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3
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Em um ano tão simbólico como o que vivemos, seja pelo bicentenário da
independência, ou por ser um ano de eleições presidenciais, em que está sendo difícil
esperançar, tal atitude se apresenta cada vez mais necessária porque não sendo
suficiente, quiçá tenhamos que convertê-la em um movimento de luta e resistência.
Assim que se consideramos também as muitas notícias de ataques às populações
indígenas e quilombolas, como é a forma que o governo tem lidado com a questão da
pandemia e necropolítica em curso, que afetam ainda mais e principalmente aquelas
populações que já se encontravam em uma situação de maior vulnerabilidade, a
necessidade de esperançar cresce, mais que nunca é preciso idealizar um mundo
melhor e pôr em prática, ações para a realização desse sonho.
É importante que a obra de Paulo Freire seja continuamente reinventada e
discutida, seja em práticas pedagógicas ou como referencial teórico em pesquisas
acadêmicas de todos os níveis. Seu pensamento decolonial e o anúncio de uma
prática pedagógica libertadora são importantes para refletir sobre a pedagogia latinoamericana e a educação como forma de emancipação. Seu legado permanece vivo e
alimentando a luta por mudanças sociais, econômicas, políticas e educacionais – no
Brasil, na América Latina e em todo o mundo. Concatenados… Juntos, somos mais
fortes.
REFERÊNCIAS
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Recebido em: 30 de julho de 2022.
Aprovado em: 21 de novembro de 2022.
Link/DOI: https://periodicos.unemat.br/index.php/reps/article/view/6440/7338
iPós
doutora em Educação e Direitos Humanos pela Universidade Portucalense Infante Don Henrique
– O Porto; Doutora em Educação pela Universidad de Salamanca – Espanha; Mestre em Antropología
de Iberoamérica pela Universidad de Salamanca – Espanha; Investigadora colaboradora do Instituto
de Iberoamerica de la USAL; Membro do Grupo de Pesquisas em Formação Docente, História e Política
Educacional (GPFOHPE/UFC), do Grupo de Pesquisa em Antropologia e Turismo (ANTUR/UFS) e do
Grupo de Pesquisa de Estudos Decolonias (GPED/UFMS); Presidente da Asociación de Alumnos
Brasileños de la Universidad de Salamanca (ABS-USAL).
Curriculum Lattes: http://lattes.cnpq.br/4488883803891813
ORCID: https://orcid.org/0000-0001-6865-7592
E-mail:
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Página 814 – Racquel Valério Martins