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O Inverno na Literatura e na Epigrafia romanas

Kairós

https://doi.org/10.14195/2184-7193_12_6 O Inverno na Literatura e na Epigrafia romanas José d’Encarnação | CEAACP - Universidade de Coimbra hiems inverno tantos invernos se passaram! mau tempo invernia 66 A palavra ‘inverno’ – hiem(ps), em língua latina – pode ser usada com três significados primordiais. O mais habitual é ser a designação da estação do ano; contudo, utilizando uma sinédoque («tantos invernos se passaram!...»), pode estar na acepção de ‘ano’; finalmente, dadas as suas características climatéricas, dá-se-lhe uma conotação de ‘mau tempo’, ‘invernia’. Todas estas acepções se encontram nos textos latinos; no caso das epígrafes, porém, hiems é, sobretudo, a legenda da imagem do Inverno nos mosaicos que representam as estações do ano; há o poema funerário identificado numa epígrafe de Mértola; e mencionar-se-á também o singular pedestal de Sétif. 67 Hiems em textos clássicos Já na Ars Amatoria (2, 235), o contexto é diferente: Refiram-se testemunhos, retirados, sem uma ordem préestabelecida, de autores clássicos. Naturalmente, quer nos livros sobre agricultura quer nos que tratam de campanhas militares, a alusão aos rigores do Inverno será frequente. Assim, por exemplo, de acordo com a investigação do Laboratoire d’Analyse Statistique des Langues Anciennes da Universidade de Liège, só nos Commentarii de Bello Gallico, de César, a palavra surge… 17 vezes! «Militiae species amor est discedite segnes non sunt haec timidis signa tuenda uiris. Nox et hiems longae que uiae saeui que dolores mollibus his castris et labor omnis inest». Vejamos, pois, outros casos. Na elegia VIII (versículos 113-114) dos seus Amores, escreveu Ovídio: «Di tibi dent nullos que Lares inopem que senectam et longas hiemes perpetuam que sitim». «Que os deuses te concedam nenhuns lares e uma velhice desgraçada e longos invernos e uma sede perpétua». Inverno, aqui, na acepção de ‘ano’, ‘vida’, ‘existência amargurada’. E a repetição da copulativa ‘e’ a reforçar o que dos deuses se pretende… 68 Acedi à tradução de José M. García de la Mora, professor da Universidade de Barcelona, falecido em 2020, que é assim: «El amor es una especie de milicia. ¡Apartaos los que seáis flojos! Estas enseñas no deben ser defendidas por gentes pusilánimes. Noches, borrascas, largos caminos, crueles dolores y toda clase de trabajos entran en este campamento del placer». O autor preferiu traduzir em sentido figurado: «borrascas» – é a terceira acepção que atrás se indicou. O Inverno como símbolo das dificuldades, dos tormentos por que o amor háde passar. Que os deuses te concedam nenhuns lares e uma velhice desgraçada e longos invernos e uma sede perpétua. El amor es una especie de milicia. ¡Apartaos los que seáis flojos! Estas enseñas no deben ser defendidas por gentes pusilánimes. Noches, borrascas, largos caminos, crueles dolores y toda clase de trabajos entran en este campamento del placer. 69 O Amor é uma espécie de milícia. Desertai, indolentes! Não cabe a homens medrosos defender tais estandartes; a noite, o inverno, longas caminhadas, dores cruéis e todo o cansaço há neste suave acampamento. Aquele dia ditou-me um destino miserável, pois começou o terrível Inverno de um amor abandonado. Existirá melhor maneira de expressar o fim da paixão do que a estação em que o frio domina e a natureza morre? Não sei se acaso a andorinha vem como mensageiro da primavera e teme que ali o inverno retorne. Entretanto, para que não te enganes, restam para ti épocas frias e o inverno afastando-se deixou grandes marcas. 70 Apetecer-nos-ia abordar esse tópico das características do Amor. Remete-se, porém, para o artigo de Trevizam, donde se recolhe uma tradução diferente: «O Amor é uma espécie de milícia. Desertai, indolentes! Não cabe a homens medrosos defender tais estandartes; a noite, o inverno, longas caminhadas, dores cruéis e todo o cansaço há neste suave acampamento» (2006, p. 148, nota 17). A palavra interpretada – como é lógico aqui – no seu sentido figurado: o Inverno como adversidade. Aliás, mantendo-nos em Ovídio, agora nas Heroides, deparamos com esta passagem (versículos 33-34): «Illa dies fatum miserae mihi dixit, ab illa pessima mutati coepit amoris hiems». Pedro Gambino Fernandes traduziu-a assim: «Aquele dia ditou-me um destino miserável, pois começou o terrível Inverno de um amor abandonado» (2018, 49). E justificou, na nota 153, a sua preferência à tradução «tempestade» proposta por outros autores: «Existirá melhor maneira de expressar o fim da paixão do que a estação em que o frio domina e a natureza morre?» \ Nos Fasti de Ovídio (2, 854), encontramos: «Fallimur an ueris praenuntia uenit hirundo nec metuit ne qua uersa recurrat hiems». «Não sei se acaso a andorinha vem como mensageiro da primavera e teme que ali o inverno retorne» – traduz Maria Leal Soares (2007, p. 70). Cita esta autora os versos 151-152 desse mesmo livro «Ne fallare tamen, restant tibi frigora, restant magnaque discedens signa reliquit hiems», que traduz assim: «Entretanto, para que não te enganes, restam para ti épocas frias e o inverno afastando-se deixou grandes marcas». Uma referência expressa, tanto numa passagem como noutra, às estações do ano e suas características. Neste caso, embora a Primavera chegue, ainda há uns resquícios de Inverno, anota Ovídio… Ainda em Ovídio (Remedia Amoris – 188), se encontra uma síntese lapidar: «Poma dat autumnus formosa est messibus aestas uer praebet flores igne leuatur hiems»: «Dá-nos maçãs o Outono; formoso é o Verão com as searas; brinda-nos a Primavera com as flores; conforta-nos o Inverno com o calor». Uma forma indirecta e elegante de sugerir o calor da lareira que as noites de Inverno ameniza… 71 Pertence às Geórgicas de Virgílio uma das passagens mais controversas (García 1991) inserida nos conselhos ao lavrador – «Nudus ara sere nudus hiems ignaua colono» (1, 299), de que cito uma tradução inglesa: «To plough strip, strip to sow; Winter's the lazy time for husbandmen»; e uma espanhola: «Ara desnudo [= en verano], siembra desnudo: el invierno es perezoso para el campesino». A frase tornou-se, todavia, muito célebre – está patente, aliás, em outros autores –, porventura pelo seu carácter quase de provérbio, de modo que não será difícil encontrá-la num vulgar dicionário de Latim com esta tradução, na parte em que ao Inverno diz respeito: «o Inverno é tempo de repouso para o lavrador». A frase na sua totalidade poder-se-á traduzir assim: «Lavra despido, semeia despido – que o Inverno é de preguiça para o agricultor». 72 Explicita García que há, aqui, referência a duas das tarefas agrícolas importantes: lavrar e semear, no Verão e no Outono, respectivamente – e ambas devem ser feitas com bom tempo. Não se trata de nudez no sentido próprio, mas sim no sentido figurado: com pouca roupa, por o tempo estar bom. E o Inverno não é, de facto, propício ao agricultor. Por conseguinte, temos nesta passagem uma alusão concreta à estação invernosa e às suas características. Há, no entanto, uma outra passagem das Geórgicas em que surge a palavra hiems: «Semper hiems semper spirantes frigora Cauri» (3, 356) – uma região onde «é sempre Inverno e sempre sopram frios os ventos de noroeste». Também, portanto, com uma conotação climatérica. Lavra despido, semeia despido – que o Inverno é de preguiça para o agricultor. é sempre Inverno e sempre sopram frios os ventos de noroeste… 73 Tendo assim falado, ele imolou sobre os altares as vítimas consagradas, um touro a Neptuno, um touro a ti, belo Apolo, uma ovelha negra à Tempestade, uma branca aos Zéfiros felizes. e o disforme Inverno devorava as gratas honras de um rico Outono… 74 Na Eneida de Virgílio temos a seguinte passagem (3, 118-120): Um passo da Apocolocyntosis de Séneca (2, 1, 4) não deixa de ser curioso: «Sic fatus meritos aris mactauit honores taurum Neptuno taurum tibi pulcher Apollo nigram Hiemi pecudem Zephyris felicibus albam». «[…] et deformis Hiemps gratos carpebat honores diuitis Autumni […]» «Tendo assim falado, ele imolou sobre os altares as vítimas consagradas, um touro a Neptuno, um touro a ti, belo Apolo, uma ovelha negra à Tempestade, uma branca aos Zéfiros felizes» – tradução de Cascais Franco (p. 50). «(...) e o disforme Inverno devorava as gratas honras de um rico Outono (...)». Graciosa forma de indicar a transição das estações, com as suas características: a suavidade outonal e a feia agressividade do Inverno... Um dos casos em que o tradutor preferiu o sentido figurado; contudo, esta passagem elucida-nos que também ao Inverno se atribuiu uma conotação divina, de divindade que presidiria às borrascas… 75 Não se resiste, por fim, a espreitar o Satíricon, de Petrónio: Numa descrição, evocando as façanhas de César na Gália: «Ut haec dixit Quartilla Ascyltos quidem paulisper obstupuit ego autem frigidior hieme Gallica factus nullum potui uerbum emittere» (19, 3). «Alpibus aeriis ubi Graio numine pulsae descendunt rupes et se patiuntur adiri est locus Herculeis aris sacer hunc niue dura claudit hiemps cano que ad sidera uertice tollit. Caelum illinc cecidisse putes non solis adulti mansuescit radiis non uerni temporis aura sed glacie concreta rigent hiemis que pruinis totum ferre potest umeris minitantibus orbem» (122). «A estas palavras de Quartila, Ascilte ficou por instantes sem voz e eu, mais gelado que um Inverno das Gálias, não consegui articular um som», na tradução de Jorge de Sampaio. E, mais adiante: «Ciconia etiam grata peregrina hospita pietaticultrix gracilipes crotalistria auis exul hiemis titulus tepidi temporis nequitiae nidum in caccabo fecit modo» (55, 6). «E tu própria, cegonha, hóspede acolhida com alegria […], ave que o Inverno exila, mensageira da estação morna […]. Mais uma imagem poética: «Quod solum formae decus est cecidere capilli uernantes que comas tristis abegit hiemps» (109). «Único ornamento da beleza, os nossos cabelos caíram; a nossa folhagem primaveril foi levada pelo sombrio vento do Inverno». 76 «Nos Alpes próximos dos céus […], há um lugar consagrado onde se erguem os altares de Hércules: no Inverno, uma neve endurecida cerca-o e ergue a cabeça branca para os astros. Dir-se-ia que para ele já não há céu; nunca se ameniza aos raios de um sol já alto nem à brisa primaveril; cobrem-no agulhas de gelo, assim como as geadas do Inverno […]». * Em suma, poderá bastar esta amostra aleatória de passagens de textos clássicos para documentar as acepções em que a palavra Inverno foi empregue, em sentido concreto e, mediante imagens literárias, em sentido figurado. A estas palavras de Quartila, Ascilte ficou por instantes sem voz e eu, mais gelado que um Inverno das Gálias, não consegui articular um som… E tu própria, cegonha, hóspede acolhida com alegria […], ave que o Inverno exila, mensageira da estação morna […]. Único ornamento da beleza, os nossos cabelos caíram; a nossa folhagem primaveril foi levada pelo sombrio vento do Inverno. Nos Alpes próximos dos céus […], há um lugar consagrado onde se erguem os altares de Hércules: no Inverno, uma neve endurecida cerca-o e ergue a cabeça branca para os astros. Dir-se-ia que para ele já não há céu; nunca se ameniza aos raios de um sol já alto nem à brisa primaveril; cobrem-no agulhas de gelo, assim como as geadas do Inverno […]. 77 Hiemps num poema epigráfico de Mértola (IRCP 98) Deverá anotar-se, desde logo, que, à excepção de legendas em mosaicos (já lá iremos!) é este – até ao presente – o terceiro testemunho epigráfico propriamente dito que se conhece da palavra hiems. O monumento – que se encontra no Museu Nacional de Arqueologia com o nº de inventário E 6404 – foi dado a conhecer, em 1929, por Leite de Vasconcellos, no artigo em que elabora o corpus das inscrições então reunidas no seu «Museu Etnológico (Belém)». Apenas indica «vinda de Mértola», sem mais especificações, acerca do contexto e das circunstâncias do seu achamento, que eventualmente se poderão encontrar na sua correspondência. Descreve-a assim: «Lápide calcária de forma de ara ou cipo, com frontão e volutas; tem na parte superior um espaço quadrangular de 0,245 m x 0,215 m, para aí pousar uma estatueta ou busto». E, depois de apresentar a sua leitura, comenta: «A inscrição consta de duas partes: dedicatória de Lúcio Júlio Gallio ao seu cliente Lúcio Júlio Apto, e um carmen, ou poesia, de dois dísticos (hexâmetro e pentâmetro)» (nº 35, p. 225). 78 Sobre a grafia da palavra hiemps afirma que se trata de «forma menos antiga que hiems». A informação de Leite de Vasconcelos será transcrita, sem comentários, em AE 1933 24. Lothar Wickert, encarregado, na altura, de proceder a uma primeira revisão do CIL II de Hübner, viu também a epígrafe e corrigiu a leitura inicial, correcções que Leite de Vasconcellos cita em 1934. Scarlat Lambrino, que, como se sabe, levou a cabo uma revisão total dos monumentos epigráficos do Museu, incluiu-a no seu corpus, com o nº 52 (1967, p. 136-137), sem, todavia, alterar a leitura anterior; classifica-a como «stèle en pierre calcaire». Em IRCP (p. 161) se dá conta das referências bibliográficas subsequentes. Valerá a pena, por uma questão de actualização, citar as posteriores a 1982, de que houve conhecimento e a que se não alude aqui expressamente: Berger 1987 264-265; Corell Vicent 1988 ( = AE 1989 366); Mayer, Miró e Velaza 1998 81; Carbonell y Pena 2009 ( = AE 2009 497); EDCS 11901276; HEpOL N.º de registo 23515. As questões abordadas prendem-se, de um modo geral, com pormenores de leitura e interpretação; com o facto de a expressão Itala me genuit poder ser um eco do epitáfio de Virgílio onde se escreveu Mantua me genuit; com as relações entre patrono e liberto e a hospitalidade. Corell, por exemplo, identifica a l. 4 com uma passagem de Marcial 10, 61, 1-2, e anota que o texto se apresenta composto de dísticos elegíacos perfeitamente regulares. Ricardo Hernández Pérez, que dá a ficha desta inscrição na p. 527 do seu livro, explica, nas páginas 231-233, que os dois últimos versos dão a entender que «el cuerpo sin vida de Apto estuvo por un tiempo, antes que su patrono le erigiera el monumento funerario que conocemos, enterrado en una sepultura sin inscripción», interpretação que vem na sequência da análise feita por Sebastian Mariner (1952, 114) ao facto de se haverem usado, em contraposição, as formas verbais iacebam (‘jazia’, no imperfeito) e dedit (‘deu’, no perfeito). Contudo, a síntese dada pelo Prof. Magueijo (1970, 116) não deixa transparecer essa hipótese: «[…] Estela de pedra calcária. O seu autor, Lúcio Júlio Apto, conta-nos que nasceu na Itália e veio para a Espanha, onde, até à data da sua morte (pouco depois de completar vinte e cinco anos), o recebeu um tal Galião, que se constituiu seu protector, lhe abriu carinhosamente as portas da sua casa, lhe deu tudo e, por fim, o túmulo». Um dado importa, desde já, clarificar, embora saia do âmbito restrito desta nota, que é relativo à tipologia do monumento. Custódio Magueijo classifica-o como «estela», seguindo Lambrino; Leite de Vasconcellos dera a entender, como se viu, que poderia ser um pedestal: «Lápide calcária de forma de ara ou cipo, com frontão e volutas; tem na parte superior um espaço quadrangular de 0,245 m x 0,215 m, para aí pousar uma estatueta ou busto». Trata-se, no entanto, de uma «ara funerária, de mármore cinzento de Trigaches, trabalhada nas quatro faces: moldura do tipo garganta encestada em cima e de garganta reversa na base. […] O capitel tem dois toros, um de cada lado, decorados com motivos vegetais, ornatos de rosetas de cinco (?) pétalas nos topos […]» (IRCP 98). O espaço quadrangular, limitado adiante e atrás por dois frontões triangulares, deverá, em meu entender, ter resultado de reutilização posterior. Estamos, pois, dentro da tipologia normal de ara funerária. Fig. 1 – Epitáfio de Lúcio Júlio Apto, de Mértola. Foto de Guilherme Cardoso. 79 É, pois, altura de se apresentar a leitura: L(ucio) Iulio Apto / Gallio patronus / Itala me genuit tellus Hispania texit / lustris quinque fui sexta peremit hiemps / ignotus cunctis hospesque hac sede iacebam / omnia qui nobis hic dedit et tumulum. Em HEpOL lê-se Ital(i)a, mas trata-se de lapso, porque Itala é o adjectivo de tellus. Também a forma hiemps está documentada, como se viu. A tradução que se apresentou (IRCP 98) é a seguinte: «A Lúcio Júlio Apto, o patrono Galião. A terra itálica me viu nascer, a Hispânia me sepultou. Vivi cinco lustros, o sexto inverno matou-me. Neste território vivia ignorado de todos e como hóspede. Aquele que tudo nos deu, aqui deu também o túmulo». Retomando os raciocínios anteriores acerca da conotação da palavra hiemps, temos aqui uma clara alusão cronológica: este sexto inverno será o primeiro após se terem completado 80 os cinco lustros; daí que o Prof. Custódio Magueijo tenha escrito «pouco depois de completar vinte e cinco anos». Note-se, todavia, um pormenor não despiciendo: põe-se na boca do defunto a expressão sexta peremit hiemps, ‘foi o sexto inverno que me matou’. Poderá considerar-se forçada a interpretação, mas… não haverá aqui, subjacente, a ideia da inclemência invernal? Não terá sido devido a maleita mortal provocada pelo frio do Inverno que ele veio a perecer? É bem possível que sim, embora se saiba que a expressão poderá ter sido colhida em Marcial (10, 61, 2), que escreveu «crimine quam fati sexta peremit hiems». Mais do que uma realidade, seria, porventura, um lugar-comum literário… A Lúcio Júlio Apto, o patrono Galião. A terra itálica me viu nascer, a Hispânia me sepultou. Vivi cinco lustros, o sexto inverno matou-me. Neste território vivia ignorado de todos e como hóspede. Aquele que tudo nos deu, aqui deu também o túmulo. 81 No âmbito epigráfico, o vocábulo hiems surge – como se disse – com mais frequência a legendar a representação do Inverno nos mosaicos das estações do ano. – EDCS-11701060: mosaico de Aguilafuente, na Hispania Citerior (HEp 1994, 596). Estão identificados os rios Tejo e o Eufrates, o vento No[tus(?)] e das estações apenas subsistem as letras EMS, reconstituíveis como identificativas do Inverno: [HI]EMS. Com o intuito de simplificar a exposição, seguir-se-á o rol de ocorrências que EDCS nos oferece quando aí consultamos essa palavra. – EDCS-05702057: na Óstia Antiga (CIL XIV 2030), persistem as legendas das quatro estações: VER / AESTAS / AVTV[MNVS] / HIEMS – EDCS-25001588: mosaico de Cartago (CIL VIII 12 588 – p. 2459), em que estão representados e identificados com legenda os meses do ano, de Setembro a Agosto, e as estações do ano: – EDCS-11701016: Datável do século III, o mosaico de Hellin, a antiga Ilunum, na actual província espanhola de Albacete, é, seguramente, o mais interessante neste domínio, dado o seu bom estado de conservação. Apresenta as figurações legendadas dos meses do ano e – como já tivemos ocasião de observar, quando tratámos das representações do Verão (Encarnação 2020) – aí temos os nomes de todas as estações: VER // AES(TAS) // AUT(VMNVS) // HIEM(S). Hiems em legendas de mosaicos Autumnus // (h)iems // vernus // [a]e(s)tas // – EDCS-10300283: mosaico de Sbeitla (a romana Sufetula), na Africa Proconsularis (ILAfr 144), que tem a particularidade de apresentar a identificação do autor: Xeno/fonta. Subsistiu apenas a representação do Verão (ESTAS) e a do Outono (AVTVM/NVS), partindo-se, pois, do princípio de que também a Primavera (VER) e o Inverno estariam representados. 82 Cumpre-me agradecer de novo, mui penhoradamente, a Felipa Díaz, do Archivo Fotográfico do Museo Arqueológico Nacional, de Madrid, a pronta solicitude com que me facultou a excelente imagem que ilustra esta mui singela nota (Fig. 2). Transcrevo, em singela homenagem ao intenso labor que o Professor José María Blázquez desenvolveu no estudo dos mosaicos romanos da Península, a descrição que, na sequência de H. Stern (1981, 442) fez desta representação e que Guadalupe López Guadalupe (estou-lhe muito grato) me proporcionou: «El invierno, HIEM(s), está representado por una dama, vestida hasta los pies y con manto sobre la cabeza. Su mano izquierda sujeta 4 hojas alargadas, símbolo de la estación. La derecha está echada por detrás de su acompañante, que es un sátiro, desnudo, com manto caído sobre las espaldas, que toca la flauta, mientras inicia un paso de danza» (1989, 50-51). Fig. 2 (página ao lado) – Inverno, no mosaico de Hellin. Foto do © Archivo Fotográfico do Museo Arqueológico Nacional, de Madrid: 38316-ID041. 83 Uma iconografia que complementa, pois, o que David Parrish logrou sintetizar, após ter observado a iconografia do Inverno nos mosaicos e nos relevos de mármore do Império Romano e da Antiguidade Tardia: os artistas realçam a fecundidade e a produtividade invernais, porque, além das azeitonas, que se apanhavam no Inverno, há a representação de dois frutos da época: a alcachofra e o limão. Observe-se que, no painel central da Casa dos Repuxos de Conimbriga, o Inverno está representado por «um busto de mulher velada, de expressão triste» (Oleiro, 1992, 117 e 121) – Fig. 3. E no notavelmente bem conservado mosaico das estações da villa romana do Rabaçal, o Inverno é um busto masculino, com «largo diadema de pedras pretas» na cabeça; ao seu lado, um cipreste ou pinheiro; do lado direito, uma alcachofra, que «evoca os xenia com os quais o anfitrião presenteia os convidados» (Pessoa 2008 57) – Fig. 4. Fig. 3 (em cima) – Inverno, no mosaico da Casa dos Repuxos de Conímbriga. Fotografia de © Delfim Ferreira [Pessoa 2005]. Fig. 4 (em baixo) – Inverno, no mosaico da villa romana do Rabaçal. Fotografia de © Delfim Ferreira [Pessoa 2005]. 85 O testemunho da Cueva Negra – EDCS-16900423: na Cueva Negra, sita junto à cidade de Fortuna, na Hispania Citerior (HEp 1997 458 = HEp 2007 477), identificaram-se inscrições rupestres. Numa delas leu-se a frase an hiems quam egeb[…] / sive lata cepit […], que integraria, segundo os descobridores, um carmen. Dado o carácter fragmentário do que se logrou decifrar, desconhece-se o significado concreto da expressão. Vale a pena, portanto, saber algo mais acerca deste monumento deveras excepcional. Foi seu descobridor A. Poulle, cuja descrição se afigura de interesse para melhor se aquilatar do valor documental desta epígrafe. Traduzo-a do original francês: «No decorrer do mês de Setembro de 1874, deparei, em torno da bacia do passeio de Orleães, com quatro bonitos cipos, com base e capitel, com cerca de dois metros de altura. Tinha gravado cada um deles o nome das quatro estações: N.º 34 N.º 35 N.º 36 HIEMS VER AESTAS TEMPO O cipo de Sétif RAFE – EDCS-24500127: Em Sétif, na Mauretania Caesariensis (CIL VIII 8513), encontrou-se um cipo prismático rectangular, encimado por capitel bem moldurado: ver Fig. 5, que se reproduz, com a devida vénia, de EDCS, sendo os direitos de © Jona Lendering, Livius. Na face anterior, em campo epigráfico moldurado, apenas a palavra HIEMS. O monumento está classificado, em EDCS, como integrante dos tituli sacri, ou seja, passível de se interpretar como atribuindo ao Inverno uma qualidade divina e este cipo teria sido erguido como ex-voto. LICIA 86 Temos, é claro, o Inverno, a Primavera, tempora felicia!, e o Verão; mas o quadro no qual estava escrito o nome do Outono está fruste. Não pude saber de que sítio tinham vindo esses monumentos; imagino que decoravam algum jardim público ou o átrio de alguma rica mansão. Esta última suposição leva-me a aproximá-los dum outro monumento da mesma forma, mas menos alto, que me parece ter a mesma proveniência e que contém este final de inscrição Nº 37 SAEDIORVM VOLVSI ET FAONIANI FIL EIVS Será que tudo isto teria sido tirado dum domínio da família dos Saedius, desconhecida até ao dia de hoje em Sétif e de que nós temos aqui os nomes de dois membros, Volusus e Faonianus?» (Poulle 1876, 422-423). Verdade seja dita que esta hipótese reúne a maior verosimilhança, afastando-se desde logo a possibilidade de se tratar duma ara votiva. Certo é, como se viu na atrás citada passagem da Eneida, que ao Inverno se poderiam fazer sacrifícios; aqui, porém, estamos perante pedestais de estátuas que, num jardim, mostrariam a erudição e o bom gosto dos proprietários, tal como acontece com os mosaicos das estações. A informação de Poulle foi integrada por Wilmanns no CIL VIII 8511 a 8513, com a indicação de que se trata de quatro altares gémeos, de 1,5 m de altura e 36 cm de largo, com letras de cerca de 5 cm; acrescenta «in hortis publicis», alusão à ideia de que se encontravam num lugar público, ou seja, sem qualquer relação com algum elemento estrutural arquitectónico. Fig. 5 – O pedestal de Sétif. EDCS, © Jona Lendering, Livius. E a muitos ocorrerá, de imediato, mais próximos de nós, a estatuária dos jardins do neoclássico Palácio Real de Queluz ou o Passeio dos Deuses da enigmática Quinta da Regaleira, em Sintra... Mui distantes no tempo, mas iguais na concepção e no propósito. 87 Conclusão Não se logrou ainda – nem decerto se logrará – saber o contexto da inscrição muito a custo lida na parede da Cueva Negra, onde a palavra Hiems está presente; nos autores clássicos, o vocábulo ocorre com grande frequência, sem preconceitos (dir-se-ia), usando-o tanto no sentido concreto de estação do ano com o seu cortejo de características, amiúde encarando-o como adversário do bem-estar do Homem e da comunidade em geral; nos mosaicos, patenteia – ao lado das três outras estações – o desejo dos proprietários de serenamente poderem saborear os dias ao longo de todo o ano e o não escondido orgulho de mostrarem a arte dos mosaicistas que contrataram para tornar mais belos os seus pavimentos principais; em Sétif, imaginamos o requinte de quatro emblemáticas esculturas a embelezar um jardim; em Mértola, finalmente, lamentamos que o «sexto Inverno» tenha ceifado a vida do jovem Apto. 88 Na sensação, afinal, de que – viagem feita – até o Inverno nola permitiu realizar! 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