WINFRIED NÕTH
~-
__f?ANOBM~
,
DA SEMIOIICA
DE PLATÃO A PEIRCE
4ª Edição
Winfried Nõth é professor de lingüística inglesa e semiótica na Universidade de Kassel,
Alemanha.
Publicou Strukturen
des Happenings (1972),
Semiotik: eine
Einführung mit Beispielen
für Rek!ame-analysen
(1975), Dynamik
Semiotischer Systeme (19TT)
e Uteratursemiotische
Analysen - zu Lewis
Carro/Is Büchern
(1980).
É também autor do
Handbook of Semiotics
(edição alemã de 1985
e edição em inglês de
1990) e editor do Origins
of Semiotics (1994),
além de números artigos
nas áreas de comunicação, lingüística, literatura
e mídias.
PANORAMA DA SEMIÓTICA
DE PLATÃO A PEIRCE
WINFRIED
NõTH
PANORAMA DA
SEMIÓTICA
DE PLATÃO A PEIRCE
4ª EDIÇÃO
Catalogação na Fonte do Departamento Nacional do Livro
Nõth, Winfried
Panorama da semiótica : de Platão a Peirce /
Winfried Nõth - 4ª edição . São Paulo
Annablume , 2003 - (Coleção E - 3)
ISBN 85-85596-36-8
Bibliografia.
1. Peirce , Charles Sanders, 1839-194
2. Semióiica 3. Semiótica - História 4. Signos e símbolos
1. Título li . Série
CDD-410
95-2890
Índices para catálogo sistemático:
410
1. Semiótica : Lingüística
PANORAMA DA SEMIÓTICA
de Platão a Peirce
Coordenação de produção:
Ivan Antunes
Projeto gráfico: Aida Cassiano
Revisão:
Finalização:
Mara Guasco
Vinicius Viana
CONSELHO EDITORIAL
Eduardo Peiiuela Caiiizal
Nerval Baitello Junior
Maria Odila Le~
da Silva Dias
Celia Maria Marinho de Azevedo4
Gustavo Bernardo Krause
Maria de Lourdes Sekeff {ln memoriam)
Cecilia de Almeida Salles
Pedro Roberto Jacobi
Lucrécia D'Alessio Ferrara
1• edição: julho de 1995
2ª edição, revisada: julho de 1998
3' edição: outubro de 2003
4• edição: abril de 2005
Reimpressão: abril de 2009
2ª reimpressão: outubro de 2009
© Winfried Nõth
ANNABLUME EDITORA . COMUNICAÇÃO
Rua Martins, 300 . Butantã
05511-000 . São Paulo . SP . Brasil
Tel. e Fax. (011) 3812-6764- Televendas 3031-1754
www.annablurre.com.br
SUMÁRIO
APRESENTAÇÃO
7
PREFÁCIO
13
TERMO, ORIGENS E PRECURSORES
DA SEMIÓTICA
O que é semiótica
Precursores da semiótica geral
História terminológica da semiótica
Semiótica versus semiologia
15
17
19
21
23
li HISTÓRIA DA SEMIÓTICA
Período greco-romano antigo
Da Idade Média ao Renascimento
Racionalismo, Empirismo e Iluminismo
Semiótica no século XIX
Ili A SEMIÓTICA UNIVERSAL DE PEIRCE
Visão pansemiótica do mundo
As três categorias universais
25
27
34
40
55
59
61
63
Signo, semiose e semiótica
A classificação peirceana dos signos
65
76
IV A SEMIÓTICA APLICADA DE EXTRAÇÃO
PEIRCEANA
Formas de iconicidade na linguagem
As aventuras de Alice no país da semiose
93
96
104
V PEIRCE E AS BASES SEMIÓTICAS DO
PARADIGMA COGNITIVO
O giro cognitivo e a história da filosofia da mente
Cognição na semiose
Cognição, conceitualização e iconicidade
Modelos de cognição como modelos de semioses
123
126
128
130
133
CONCLUSÃO
141
BIBLIOGRAFIA
143
APRESENTAÇÃO
Entre outros livros e um grande número de artigos nas áreas
de lingüística, comunicação e semiótica teórica e aplicada às artes,
literatura e mídia, publicados na Alemanha e fora dela, Winfried
Nõth, professor de lingüística e semiótica na Universidade de Kassel,
é nada menos do que o autor do Handbook of semiotics (Manual
de semiótica, Indiana University Press, 1990). O artigo definido o
- Omanual de semiótica - faz perteita justiça a esse livro ou compêndio que, de fato, continua sendo, até hoje, único no gênero. E
provavelmente continuará a ser único por muito tempo. Já apareceram e poderão ou deverão aparecer, sem dúvida, outros manuais,
dicionários ou enciclopédias de semiótica escritos por vários autores.
Além de suas inúmeras e indiscutíveis qualidades, excepcional no
livro de Nõth, entretanto, que o torna incomum e único, é o fato de
ter sido escrito por uma só pessoa. São 576 páginas com 64 artigos,
agrupados em oito seções: 1. história da semiótica e suas teorias
básicas; 2. signo e significado; 3. semiose, código e o campo semiótico, incluindo a zoosemiótica, etologia e as relações entre comunicação e semiose; 4. a língua e os códigos baseados na língua;
5. do estruturalismo à semiótica textual, apresentando suas escolas
8
P.Al',l()fWMDASEMÓTICA
e figuras maiores; 6. o campo da semiótica textual; 7. acomunicação
não-verbal; e 8. estética e comunicação visual, que inclui música,
arquitetura, imagem, fotografia, filme e publicidade, entre outros.
Tudo isso é seguido de um impressionante e incomparável referencial
bibliográfico de 2.945 títulos, além de um longo índice remissivo
de assuntos etermos no qual os leitores podem encontrar respostas
para suas interrogações terminológicas.
Publicado originalmente em alemão, em 1985, ao ser
traduzido para o inglês, em 1990, o manual foi revisado e ampliado
para se aproximar ainda mais do ousado ideal proposto pelo autor:
o de fornecer, a partir de um miradouro pluralista, uma topografia
das principais áreas teóricas e aplicadas da semiótica. Como não
poderia deixar de ser, desde o original em alemão até sua versão
em inglês, a recepção crítica não poupou elogios à obra: "uma das
melhores introduções à semiótica que já encontrei( ... ) um grande
passo na produção de livros de referência na semiótica" (Eugen
Baer, 1987); "uma forma que demonstra coerência enquanto faz
justiça à diversidade do campo( ... ) a área de semiótica como um
todo deveria dar boas vindas a este projeto ambicioso pela síntese
impressionante por ele atingida" (Patricia J. Eberle, 1986); "a soberba
compreensão global que o autor tem do campo da semiótica( ...)
a objetividade profissional superlativa de Nõth e sua ausência de
tendenciosidade( ...) num livro magnífico" (lrmengard Rauch, 1994);
"uma corajosa performance solo de um jovem acadêmico alemão
que sintetizou uma vasta massa de informação sobre a semiótica
contemporânea no compasso de um manual de um volume" {Thomas
Sebeok, 1986).
Como fruto do conhecimento profundo e constelar,
internacionalmente reconhecido, de Winfried Nõth no campo da
semiótica, contando com o auxílio do DAAD, FAPESP e CNPq, o
programa de pós-graduação em Comunicação e Semiótica da
Universidade Católica de São Paulo e a ECA da Universidade de
São Paulo convidaram-no para, entre outras atividades de orientação
de pesquisas, ministrar, em agosto de 1994, um curso intensivo
9
sobre as diversas correntes da semiótica e suas contribuições para
os estudos da comunicação. Como também não poderia deixar de
ser, o curso recobriu-se do mais completo sucesso. Contando com
o privilégio de seu perfeito domínio de nossa língua, enquanto foi
dando o curso em português, Nõth foi também redigindo-o na forma
de um livro. O resultado está neste panorama breve, mas
amplamente diversificado, cuidadosamente documentado e
admiravelmente bem informado dos conceitos e teorias semióticas,
num arco-íris histórico de quase dois mil e quinhentos anos, que
se estende de Platão até Peirce.
O panorama se apresenta em cinco capítulos muito
claramente delimitados. O primeiro deles édedicado aos precursores
e à bem lembrada e necessária história terminológica da semiótica.
Esta inclui uma muito propositada excursão pela oposição entre
semiótica e semiologia, desde sua origem até sua pretendida
extinção, em 1969, quando a Associação Internacional de Semiótica,
por iniciativa de Roman Jakobson, decidiu pela unificação do termo
em torno da designação de semiótica.
Osegundo capítulo éo mais nitidamente histórico. Tendo iniciado o livro com adistinção entre uma semiótica avant la lettre e uma
semiótica propriamente dita, a primeira é caracterizada como as doutrinas dos signos que, mesmo sem terem recebido explicitamente o
nome de semiótica,foram brotando, ao longo dos séculos, mais particularmente nas obras dos filósofos. A segunda, tendo seu aparecimento originalmente no campo da medicina, refere-se às teorias
dos signos que, desde John Locke, em 1690, foram batizadas pelo
nome de Semeiotiké evariantes. Assim sendo, dos gregos aos romanos, da Idade Média ao Renascimento , o percurso do segundo capítulo atenciosamente se estende também pelo racionalismo, empirismo e iluminismo até chegar à semiótica do século XIX. O esmero
emeticulosidade da pesquisa documental, aliados a uma excepcional
capacidade de síntese para capturar, numa vastíssima massa de informações, exatamente aquelas que são relevantes e pertinentes, fazem
desta parte do livro uma peça cristalina em precisão eobjetividade.
10
PN\OR.AMADASEMÓOCA
O terceiro capítulo, ainda no século XIX, é inteiramente
dedicado à explanação dos conceitos semióticos de Charles Sanders
Peirce, muito propriamente apresentado como "o mais importante
dos fundadores da moderna semiótica geral", o que justifica o fato
de ser esse o capítulo central e mais longo de todo o livro.
São bastante notórias a complexidade, a extrema abstração
e a interconectividade dos conceitos criados por Peirce. Não étarefa
nada fácil apresentar e discutir esses conceitos com fidelidade às
fontes, economia de meios e clareza comunicacional. Winfried Nõth
realiza a proeza de integrar esses três difíceis requisitos em explanações primorosas. Embora sucinto, o capítulo fica longe das
simplificações grosseiras e lacunares. A rede conceituai peirceana
é assim apresentada em detalhes nítidos, quase cirúrgicos na sua
precisão. Mais uma vez, a lucidez do autor para a condensação
informativa é exposta com a naturalidade de quem a pratica por
talento congênito.
Diferentemente de muitos autores que se limitam à
discussão dos conceitos de Peirce, sem se preocuparem com o
teste de sua validade aplicativa, Nõth dedica o quarto capítulo a
uma amostragem da aplicabilidade da teoria peirceana dos signos
na investigação da semiose da língua, de um lado, e ao estudo de
signos transformados no mundo fictício da literatura, de outro. Na
primeira, o autor leva adiante, com originalidade própria, as célebres
análises que Jakobson (1971) realizara em sua "Procura da Essência
da Linguagem". No segundo, a escolha feliz das Alices, no país
das maravilhas e no país dos espelhos, nos oferece, com inigualável
propriedade, um teste para o valor heurístico das categorias
peirceanas.
Esse capítulo de aplicação se constitui, sem dúvida, no
momento de coroamento do livro. Superando as tendências,
infelizmente comuns, de aplicação estática e estéril dos signos
peirceanos, Nõth sabe como ninguém fazer uso daquilo que chama
de "perspectivismo das classificações de Peirce". A esse respeito
ele afirma que "é preciso sublinhar que a tipologia peirceana dos
11
signos não é uma classificação aristotélica, no sentido de que cada
signo pertence a uma só classe dessa tipologia. O que Peirce descreve não são classes aristotélicas de signos, mas aspectos de
signos. Por isso, um mesmo signo pode ser considerado sob vários
aspectos e submetido a diversas classificações". Assim sendo, num
jogo minucioso e personalíssimo, criado pelo autor, de variações
prismáticas das tipologias peirceanas, a potencialidade dos conceitos, para a aplicação em processos sígnicos atualizados, é explorada no limite do seu rendimento, em análises fecundas,
sugestivas, instigantes, certeiras e certamente criativas. Vale a pena
conferir.
Ocapítulo final não poderia ser mais bem lembrado. Diante
da notável presença da ciência cognitiva no cenário da contemporaneidade, Nõth põe em discussão as possíveis afinidades entre
a ciência cognitiva e a semiótica. Embora esta não possa ser reduzida
àquela, não parece haver dúvida quanto às bases semióticas do
paradigma cognitivista. O papel fundamental desempenhado pela
semiótica peirceana para esse diálogo emergente é posto em relevo,
especialmente nas relações que se tecem entre representações
mentais e iconicidade, na importância da mediação sígnica para
a superação de modelos diádicos de cognição e nas implicações
semióticas das teorias dos esquemas. Enquanto o quarto capítulo
demonstra, de modo magistral, o aproveitamento aplicativo das
tipologias peirceanas, o quinto capítulo coloca em evidência quão
fértil pode ser o diálogo entre a semiótica peirceana e as questões
que o cognitivismo tem trazido à tona. Isso tudo é discutido em
argumentos sóbrios, despidos de qualquer retórica supérflua e sem
tendencialidades ou partidarismos.
Numa visão global, fiel ao seu título, o livro, no seu todo,
funciona como uma apresentação panorâmica não apenas do
desenvolvimento histórico da semiótica, mas também das questões
mais fundamentais que esse campo de estudo permite detectar.
Ao mesmo tempo, o livro acaba por funcionar como uma espécie
de caleidoscópio das diferenciadas facetas intelectuais do seu autor.
12
P.ANOR.AMADASEMÓTICA
Se o primeiro capítulo faz emergir sua vocação filológica, no segundo,
ésua habilidade incomum para a investigação documental que aflora.
Enquanto oterceiro capítulo traz as marcas de uma lucidez conceituai
também rara, o quarto põe em evidência um intelecto criativo e
pragmaticamente orientado. Só faltava a capacidade avaliativa para
o balanço crítico das teorias. Éjustamente isso que o quinto capítulo
nos apresenta.
Enfim, trata-se de uma obra que, de modo abreviado, traz
todas as características que a crítica aplaudiu no Handbook of
semiotics: a manutenção da unidade e fluência da linguagem não
obstante a diversidade dos tópicos trabalhados, a elegância, clareza
e condensação do estilo intimamente fundido à precisão e instigação
das idéias. A palavra filigrana se refere a uma obra de ourivesaria,
formada de fios de ouro ou de prata, delicadamente entrelaçados
e soldados. Não há imagem melhor para caracterizar este pequeno
livro que Nõth entrega ao público brasileiro do que a da filigrana.
De fato, cada um dos capítulos assemelha-se a uma obra de
ourivesaria, o conjunto deles compondo uma pequena constelação
de filigranas finissimamente tecidas com os fios da erudição e da
lucidez.
Diante de uma obra tão bem realizada etão relevante para
atender às necessidades de todos aqueles que têm curiosidade e
interesse em compreender a multiplicidade de aspectos que o mundo
dos signos é capaz de exibir, resta-nos torcer para que o prometido
segundo volume desta obra, que foi reservado para as correntes
semióticas do século XX, possa vir à luz muito brevemente.
Lucia Santael/a
PREFÁCIO
Panorama da Semiótica é o título de um curso intensivo
que ministrei para os doutorandos do Programa de Pós-Graduação
em Comunicação e Semiótica da Pontifícia Universidade Católica
de São Paulo, durante o mês de agosto de 1994. As páginas
seguintes constituem apontamentos que elaborei para o curso,
durante minha permanência no Brasil.
O objetivo original deste panorama foi o de oferecer um
curso sobre "as diversas correntes da semiótica e suas contribuições
para os estudos da comunicação". Os deuses, porém, sabem que
toda pretensão deve ser punida. As correntes da semiótica são tão
diversas e amplas que um simples curso, mesmo intensivo, que
informasse sobre as mais significativas tendências desta área de
estudo, teria de ser superficial demais para estudantes de pós- ·
graduação.
Resolvi, portanto, fazer uma análise mais profunda das
correntes da semiótica desde Platão e encerrar o panorama com
a teoria do signo de Charles Sanders Peirce e suas perspectivas
para o futuro da semiótica. Prometo, porém, continuar este panorama
em um curso futuro sobre as correntes da semiótica no século XX,
14
PANORAMA DA SEMIÓTICA
para o qual o reitor da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo
teve a amabilidade de me convidar.
Uma exposição sumária sobre uma área de investigação
tão ampla como a semiótica tem necessariamente de permanecer
incompleta. Para uma orientação mais extensiva sobre o campo
semiótica, tenho que remeter o leitor ao meu manual de semiótica
e A semiótica no século XX, 1 nos quais há capítulos e informações
mais específicos sobre a maioria dos assuntos aqui tratados .
Agradeço à professora Lucia Santaella pela iniciativa de
me convidar para este curso em São Paulo. A ela, ao professor
Norval Baitello Jr., aos colegas, às colegas do Programa e aos
estudantes do Curso, agradeço a hospitalidade que me dispensaram
durante todo o tempo de minha permanência na capital semiótica
do Brasil. Lucia Santaella, Norval Baitello Jr., Tarcísio J. Loro, Ana
Cecília Koblitz Hübscher, Gerson Tenório dos Santos e Luiz Carlos
lasbeck tiveram a amabilidade de melhorar o português do
manuscrito, sendo que este último e Guida lpsen ainda o transpuseram para uma forma mais legível. Defeitos que sobrevierem são
só de minha própria responsabilidade.
Dedico este pequeno livro a quatro pessoas que me ensinaram a língua portuguesa com hospitalidade, paciência e amizade
nos anos sessenta, na Universidade de Münster e em Lisboa: Luís
de Souza Costa e Alzira Alexandre Pires (in memoriam), Henrique
Braz e Margarida Braz Cunha da Silveira.
Winfried Nõth
1. Winfried Nõth, Handbook of semiotics, Bloomington, Indiana
Univ. Press, 1990, e A semiótica no século XX, São Paulo,
Annablume, 1996.
TERMOS, ORIGENS E
PRECURSORES DA
SEMIÓTICA
Ü QUE É SEMIÓTI CA
Oque é Semiótica é o título de um pequeno livro publicado
por Lucia Santaella em 1983.2
Diante do desenvolvimento de uma área de investigações
que se estende da semiótica da arquitetura, da biossemiótica ou da
cartossemiótica até a zoossemiótica, uma resposta possível e pluralista
à questão é: a semiótica é a ciência dos signos e dos processos
significativos (semiose) na natureza e na cultura.
Essa definição não é, porém, aceita por todos os estudiosos
da área. Várias escolas da semiótica preferem definições mais
específicas e restritivas; muitas exigem que a semiótica se ocupe
apenas da comunicação humana ea escola de Greimas até se recusa
adefinir semiótica como uma teoria dos signos, postulando, ao contrário,
defini-la apenas como uma teoria da significação.
Equal é a origem dessa ciência dos signos? Na história das
ciências, épreciso distinguir entre odesenvolvimento de uma semiótica
propriamente dita e as tendências de uma semiótica avant la lettre,
que também era uma doutrina dos signos.
2. São Paulo, Editora Brasiliense (Coleção Primeiros Passos
103).
18
PANORAMADASEMIÓTICA
Asemiótica propriamente dita tem seu início com filósofos
como John Locke (1632-1704) que, no seu Essay on human
understanding, de 1690, postulou uma "doutrina dos signos" com o
nome de Semeiotiké, ou com Johann Heinrich Lambert (1728-1777)
que, em 1764, foi um dos primeiros filósofos a escrever um tratado
específico intitulado Semiotik.
Adoutrina do signo, que pode ser considerada oomo semiótica
avant la lettre, compreende todas as investigações sobre a natureza
dos signos, da significação eda comunicação na história das ciências.
E a origem dessas investigações coincide com a origem da filosofia:
Platão e Aristóteles eram teóricos do signo e, portanto, semioticistas
avant la lettre.
PRECURSORES DA SEMIÓTICA GERAL
A semiótica propriamente dita encontra seu ancestral mais
antigo na história da medicina, aí entendida como o primeiro estudo
diagnóstico dos signos das doenças.Omédico grego Galeno de Pérgamo
(139-199), por exemplo, referiu-se à diagnóstica como sendo "a parte
semiótica" (semeiotikón méros) da medicina.
No século XVIII a l~eratu
médica também começou aempregar
o termo sem( e)iologia como alternativa de semiótica, às vezes, com
algumas variações de sentido. Naquela altura, a semiótica médica foi
ampliada para incluir três ramos de investigação: aanamnéstica, estudo
da história médica do paciente; a diagnóstica, estudo dos sintomas
atuais das doenças; eaprognóstica,que trata das predições eprojeções
do desenvolvimento futuro das doenças.
A partir da tradição médica, o termo semiótica também
começou aadquirir sentidos mais amplos no contexto de uma semeiótica
mora/is. 3 Num tratado com esse título, Scipio Claramonti, em 1625,
postulou uma disciplina que investigaria "oconhecimento dos homens".
20
PANOfWMDASEMIÓTICA
Entre os filósofos que seguiram essa tradição, está Christian Woltt
(1679-1754), semioticista, discípulo de Leibniz.
Na medicina de hoje, otermo semiótica ou foi abandonado
ou confinado ao sentido de sintomatologia. O Novo Dicionário Aurélio
ainda especifica tal sentido como uma das definições possíveis para
o verbete semiótica,4 assim como para semiologia. Dentro da semiótica moderna, porém, estabeleceu-se uma nova semiótica médica
que estuda aspectos da medicina, da microbiologia e até da psicanálise, sob o ponto de vista de uma semiótica geral.
Entre os precursores da semiótica propriamente dita encontramos também uma curiosidade terminológica: John Wilkins (16141672), um dos pioneiros do desenvolvimento das idéias de criptografia,
estenografia e de língua universal no século XVII, introduziu, no seu
livro Mercury: or lhe secret and swift messenger, de 1641 , o termo
semaeologia para designar uma linguagem secreta por senhas ou
gestos (Wilkins, 1641 : 8).
3. Al ém das fontes citadas no meu Handbook incluo aqui
refe rências ao artigo "Semiotik" de S. Meier-Oeser,
1997, vol. 9 do Historisches Wórterbuch der Phi/osophie,
ed . J. Ritter & K. Gründer, Basel, Schwabe .
4. Uma curiosidade terminológica que está ainda para ser
explorada nesse contexto é o fato de o Novo Dicionário
Aurélio definir o termo semiótica também como "a arte
de comandar manobras militares por meio de sinais, e
não da voz".
HISTÓRIA TERMINOLÓGIC.A DA SEMIÓTICA
A semióticá como teoria geral dos signos teve várias
denominações no decorrer da história da filosofia. A etimologia do
termo nos remete ao grego semeion, que significa "signo", e sêma,
que pode ser traduzido por "sinal" ou também "signo".
Semio-, uma transliteração latinizada da forma grega semeio' eos radicais parentes, sema(t)- e seman-, têm sido a base morfológica
para várias derivações de vocábulos que dão nome às ciências
semióticas . Além das formas semeiotica e semeio/agia, já
mencionadas, houve precursores e rivais terminológicos da semiótica,
tais como semiologia, semântica, sematologia, semasiologia, semologia,
além dos termos usados por Lady Welby: sensifics e significs.
Semântica esemasiologia são termos que hoje só se referem
ao estudo das significações na lingüística. Nos séculos XVII e XVIII,
a semântica apresenta ainda sentidos semióticos mais gerais. John
Spencer (A discourse concerning prodigies, 1665), por exemplo,
referiu-se à"semantick philosophy'' como sendo o estudo das previsões
do futuro por senhas.
Outros termos rivais de semiótica - como sematologia e
semologia -ficaram circunscritos aalguns autores isolados na história
22
PMIQRAMADAS8v11ÓTICA
da semiótica. Sematology é o título de um tratado semiótico que
Benjamim Humphrey Smart publicou em 1831 . Kar1 Bühler,osemioticista
que influenciou aobra de Roman Jakobson,também empregou otermo
sematologia, em 1934, para referir-se à teoria geral dos signos. Porém,
o primeiro a usar esse termo parece ter sido George Dalgarno que, na
sua obra AIS signorum, de 1661 , definiu sematologia como a doutrina
dos signos artificiais.
Semiotics, na forma plural em inglês, é de origem
relativamente recente. Charles Sanders Peirce (1839-1914) nunca a
usou, preferindo semeioticou, menos freqüentemente, semeiotics,
semiotic ou semeotic. Charles Morris (1901-1979) também só usou
aforma singular semiotic. O plural semioticsfoi adotado em analogia
com as demais formas plurais que, em inglês, denominam ciências,
como linguistics, semantics, mathematics ou physics. Um dos
primeiros usos dessa forma aparece em 1964 como título de uma
obra organizada por T. A. Sebeok et ai., Approaches to semiotics.
SEMIÓTICA VERSUS SEMIOLOGIA
O maior rival terminológico de semiótica tem sido semiologia.
Para designar uma teoria geral dos signos o termo já havia surgido
alguns decênios antes que Locke, em 1690, postulasse uma doutrina
dos signos com o nome de Semeiotiké. Já em 1659, o filósofo alemão
Johannes Schulteus falou de uma doutrina geral do signo edo significado,
sob o título Semeio/agia Metaphysiké.
No nosso século, otermo semiologia ficou ligado à tradição
semiótica fundada no quadro da lingüística de Ferdinand de Saussure
econtinuada por semioticistas como Louis Hjelmslev ou Roland Barthes.
Sob essas influências, semiologia permaneceu durante muito tempo
como o termo preferido nos países românicos, enquanto autores
anglófonos ealemães preferiram otermo semiótica Alguns semioticistas,
porém, começaram a elaborar distinções conceituais entre semiologia
e semiótica: semiótica, designando uma ciência mais geral dos signos,
incluindo os signos animais eda natureza, enquanto semiologia passou
a referir-se unicamente à teoria dos signos humanos, culturais e,
especialmente, textuais.
Uma distinção muito interessante entre semiótica e semiologia
foi introduzida por Hjelmslev e adotada por Greimas. Para ambos,
24
P.AJ\IORAMADASEMIÓTICA
semiótica é um sistema de signos com estruturas hierárquicas análogas
à linguagem-tal como uma língua, um código de trânsito, arte, música
ou literatura -ao passo que semiologia é ateoria geral, a metalíngua,
ou melhor, a metassemiótica desses sistemas, que trata dos aspectos
semióticos comuns a todos os sistemas semióticos.
Arivalidade entre esses dois termos foi oficialmente encerrada
pela Associação Internacional de Semiótica que, em 1969, por iniciativa
de Roman Jakobson, decidiu adotar semiótica como termo geral do
território de investigações nas tradições da semiologia e da semiótica
geral.
11
HISTÓRIA DA
SEMIÓTICA
PERÍODO GRECO-ROMANO ANTIGO
Passemos, agora, da história etimológica e institucional da
semiótica à história implícita e explícita da doutrina dos signos.
A primeira parte dessa história pertence à semiótica avant
la /ettre; são capítulos da filosofia greco-romana que tratam da teoria
dos signos verbais e não-verbais.
Platão (427-347)
Platão tratou de vários aspectos da teoria dos signos; definiu
signo verbal, significação e contribuiu com idéias críticas para ateoria
da escritura.
Omodelo platônico do signo tem uma estrutura triádica, na
qual é possível distinguir os três componentes do signo:
• o nome (ónoma, nómos)
• a noção ou idéia (eidos, lógos, dianóema)
• a coisa (prágma, ousfa) à qual o signo se refere
28
P.AJ\IORAMADASEMIÓTICA
Idéias, para Platão, são entidades objetivas que não só existem
na nossa mente,como também possuem realidade numa esfera espiritual
além do indivíduo.
No diálogo Crátilo (Sobre a justeza dos nomes), Platão
investigou a relação entre o nome, as idéias e as coisas. Uma das
questões levantadas é se a relação entre nome, idéia e coisa é natural
ou depende das convenções sociais, sendo, portanto, arbitrária. As
respostas platônicas são:
1) signos verbais, naturais, assim como convencionais são só
representações incompletas da verdadeira natureza das coisas;
2) o estudo das palavras não revela nada sobre a verdadeira natureza
das coisas porque a esfera das idéias é independente das
representações na forma de palavras; e
3) cognições concebidas por meio de signos são apreensões indiretas
e, por este motivo, inferiores às cognições diretas.
Desse modo, para Platão, a verdade que se exprime e se
transmite por palavras, mesmo que as palavras possuam semelhanças excelentes com as coisas às quais se referem, é sempre inferior
ao conhecimento direto, não-intermediado, das coisas. A natureza
indireta da escritura em relação à língua falada é, também, a base da
crítica que Platão faz à escritura no diálogo de Fédon.
G. Manetti,5 discutindo a origem dessas concepções céticas
da função comunicativa na Antiguidade clássica, faz uma retrospectiva
que vai até os tratados de maneia mesopotâmica. Aí, os signos foram
descritos como omina, ou presságios capazes de serem interpretados
por oráculos. Nessa tradição, o signo (seme/on) continuou para os
gregos aser uma percepção que indica qualquer coisa escondida (áde/os)
da cognição. Por isso, Platão usou o verbo "significar" (semaínein)
como sinônimo de "revelar" (delóun).
5. Theories of the sign in c/assical antiquity, Bloomington, Indiana
Univ. Press, 1993.
HISTÓRIA DA SEMIÓTICA
29
Aristóteles (384-322)
Aristóteles começou a traçar uma distinção entre o signo
incerto (semeion) e o signo certo {tekmérion) e discutiu a teoria
dos signos no âmbito da lógica eda retórica. Em geral, definiu o signo
como uma relação de implicação: se (q) implica (p), (q) atua como
signo de (p). Na Primeira Analítica (li, 70a, 7-9), explica tal definição:
Pois aquilo que procede ou segue o ser ou o
desenvolvimento duma coisa é um signo do
ser ou do desenvolvimento dessa coisa.
Além disso, Aristóteles descreveu o signo como uma premissa
que conduz a uma conclusão:
O signo[. .. ] quer ser uma proposição bem certa
ou necessária ou também corresponde a uma
opinião.
Chamou o signo lingüístico de "símbolo" (symbolon) e o
definiu como um signo convencional das "afecções (pathémata) da
alma". Descreveu essas afecções como "retratos" das coisas
(prágmata).
O modelo do signo aristotélico é, portanto, triádico.
Estóicos (ca. 300 a.e. -200 d.C.)
Um modelo triádico do signo étambém a base da teoria do
signo dos estóicos. Para eles, o signo consiste em três componentes
básicos, a saber:
1) semaínon, que é o significante, a entidade percebida como sígno;
2) semainómenon, ou lékton, que corresponde à significação ou
significado; e
30
P.ANOR.AMADASEMIÓTICA
3) tygchánon, o evento ou o objeto ao qual o signo se refere.
Enquanto significante e objeto são entidades materiais, o
significado é uma entidade ideal, não-corporal.
Ateoria estóica do signo está igualmente ligada à lógica. Os
estóicos interpretavam a cognição de um signo como um processo
silogístico de indução. O signo estóico, segundo Sextus Empiricus
(Adv. math.11, 245), é a proposição antecedente numa válida premissa
maior que serve para revelar o conseqüente.
Além disso, os signos são classificados em comemorativos,
quando se referem a observações associadas anteriormente ao signo,
e indicativos, quando indicam fatos não evidentes.
Epicuristas (ca. 300)
Contra os estóicos, os epicuristas pretendiam desenvolver
um modelo diádico do signo, onde só entram em composição osignificante
(semaínon) e o objeto referido (tygchánon) . O significado imaterial
do signo (lékton) não é reconhecido como componente semiótica do
signo.
Na base do modelo epicurista há uma epistemologia materialista,
na qual o objeto físico é considerado como a origem das imagens
(eídola) que emanam de sua superfície, na forma de verdadeiros
átomos. Na cognição do receptor, esses átomos icônicos reaparecem
como uma nova imagem chamada fantasia. A imagem emitida do
objeto e a imagem captada pelo observador descrevem, portanto, os
dois componentes do signo.
Por outro lado, os estóicos consideravam que a cognição
não é só um processo inteiramente mecânico; o reconhecimento de
um signo, para eles, presumia a capacidade de antecipação (prolépsis)
por parte do receptor. Uma tal antecipação, porém, só é possível se
na mente do receptor já existem previamente imagens mentais ou
conceitos capazes de antecipar a imagem.
HISTÓRIA DA SEMIÓTICA
31
Considerando esse aspecto do processo semiótico, o modelo
estóico do signo contém, em verdade, uma terceira dimensão semelhante
aos modelos triádicos do signo. Essa idéia de uma imagem mental
antecipando uma cognição atual, aliás, está bem de acordo com as
teorias modernas da ciência cognitiva, ao passo que a base materialista
da teoria epicurista parece hoje uma mera curiosidade da história da
epistemologia.
Os epicuristas também atacaram um outro aspecto da
semiótica estóica: ateoria da natureza inferencial do processo semiótico.
Semiosis, para os epicuristas, não pressupõe combinações lógicas,
porque mesmo um cão que segue a pista de um outro animal está
apenas interpretando signos, sem conhecer as regras de indução.
Tais reflexões zoossemióticas, em conjunto com especulações sobre
a origem gesticular da língua, constituem a parte mais interessante
da contribuição dos epicuristas à história da semiótica. O epicurista
romano Lucrécio, por exemplo, no seu poema De Rerum Natura, foi
um dos primeiros adar uma explicação evolutiva dos sistemas semióticos
humanos: ele afirma que aorigem da língua humana,dos gestos infantis
e do comportamento animal não se fundamenta em convenções
intelectuais, mas tem suas bases na natureza e na utilidade (utilitas) .
Aurélio Agostinho (354-430)
Ahistória da semiótica antiga atinge seu apogeu com aobra
de Aurélio Agostinho. E. Coseriu oconsiderava "o maior semioticista
da Antiguidade e o verdadeiro fundador da semiótica". Os tratados
nos quais Agostinho desenvolveu suas idéias semióticas são: De
Magistro (389), De Doctrina Christiana (397) e Principia Dialecticae
(ca. 384).
Agostinho concordou com a teoria epicurista que definiu o
signo como um fato perceptivo que representa alguma coisa atualmente
não perceptível. Na sua definição do signo, porém, Agostinho seguiu
32
PANORAMADASEMIÓTICA
mais os estóicos eacentuou o papel da interferência mental no processo
de semiose:s
O signo é, portanto, uma coisa que, além da
impressão que produz nos sentidos, faz com
que outra coisa venha à mente como
conseqüência de si mesmo " (De Doctrina
Christiana, li , 1, 1).
Agostinho continuou, também, a distinguir os signos naturais
dos signos convencionais. Para ele, os signos naturais são aqueles
produzidos sem a intenção de uso como signo, mas nem por isso
conduzem à cognição de outra coisa. A fumaça como índice de fogo
é um dos exemplos daquilo que entendia por signo natural. Os signos
convencionais, por outro lado, são aqueles que '1odos os seres vivos
trocam mutuamente para demonstrar sentimentos da mente" (ibid.
li, 1, 3).
Outra idéia interessante na semiótica agostiniana éa distinção
entre signos ecoisas. Em Doutrína cristã 1, 2, 2Agostinho deu respostas
à seguinte questão: "O que é uma coisa e o que é um signo?":
Uso a palavra "coisa" num sentido estrito para
referir-me ao que nunca foi usado como signo
de outra coisa, como madeira, pedra, gado ou
outras tantas coisas desse gênero.
Mas Agostinho também sabia que signos não são uma classe de objetos ontologicamente diferente das coisas, econtinua (ibid.):
6. Infelizmente, a tradução portuguesa da Doutrina cristã (São
Paulo, Edições Paulinas, 1971 , p. 93) traduz o latim signum
por "sinal".
HISTÓRIA DA SEMIÓTICA
33
Todo signo é, ao mesmo tempo, alguma coisa,
visto que se não fosse alguma coisa não existiria.
Porém, não são todas as coisas signos ao
mesmo tempo .
Apesar dessa separação fenomenológica entre coisas que
são signos e coisas que não são signos, Agostinho via as duas esferas
do mundo ligadas pelo processo de semiose. Por isso, concluiu que
"as coisas são conhecidas por meio dos signos" (1, 2, 2).
Uma dimensão inovadora na semiótica de Agostinho foi o
fato de ter estendido os estudos semióticos dos signos verbais aos
signos não-verbais. Eco, Lambertini, Marmo e Tabarroni (1986: 65)
resumiram esse aspecto da doutrina agostiniana dos signos do seguinte
modo:
Com Agostinho, esta "doutrina" ou "ciência" do
signo toma uma forma na qual os sintomas,
as palavras da língua, os gestos miméticos de
atores junto ao som de clarins militares e as
estridulações das cigarras, tudo isso se torna
objeto de estudo. No ensaio de uma tal doutrina,
Agostinho previu linhas de desenvolvimento de
um interesse histórico enorme.
Last, but not least, a dimensão teológica da semiótica
agostiniana merece ser mencionada. Na interpretação de Agostinho,
todas as coisas percebidas como signo são, ultimamente, signos naturais
que revelam a vontade de Deus na criação terrestre. Tais idéias
continuaram a ser desenvolvidas na semiótica exegética medieval,
no quadro da teoria dos sentidos múltiplos do mundo e dos textos.
DA IDADE MÉDIA AO RENASCIMENTO
Asemiótica medieval desenvolveu-se no âmbito da teologia
e do trívio das artes liberais: gramática, retórica e dialética (lógica).
Filosofia eteologia medievais, como foram ensinadas em muitas escolas
universitárias,são também conhecidas pela denominação de escolástica
ou escolasticismo.
Temas dominantes
Ateoria geral dos signos foi tema para muitos escolásticos.
Roger Bacon (1215·1294), por exemplo, escreveu um tratado sob o
título De Signis. Atradição escolástica de estudos do signo continuou
até a Renascença, quando chegou ao apogeu na obra monumental do
português João de São Tomás, também conhecido como Jean Poinsot
(1589-1644). Oseu Tractatus de Signis, escrito em 1632, foi publicado
em uma nova edição crítica por John Deely, em 1984.
Entre os temas predominantes da semiótica escolástica estão
as doutrinas do realismo edo nominalismo, as doutrinas das suposições
edos modos de significação. Adistinção entre denotação e conotação
HISTÓRIA DA SEMIÓTICA
35
provém da semiótica desenvolvida nesse período, quando também
uma teoria da representação começou a estudar as funções semióticas
de signos, símbolos e imagens.
Além de Roger Bacon, John Duns Scot (1270-1308) eWilliam
de Ockham (1290-1349) foram semioticistas escolásticos de grande
importância. Peirce foi leitor assíduo das obras desses teóricos do
signo, e Umberto Eco fez com que alguns deles reaparecessem no
seu romance O nome da rosa.
Semiótica como lógica
Em vez de introduzir pormenores adicionais sobre os temas
centrais da semiótica medieval, parece mais relevante esboçar o lugar
da teoria do signo no âmbito das demais ciências oficialmente
reconhecidas pelos escolásticos.7
Fundamentados na filosofia estóica, os escolásticos
distinguiram três ciências: a phi/osophia natura/is, a phi/osophia
mora/is e, em terceiro lugar, a scientia de signis. Esta última foi
também chamada scientia rationalis e equivalia à lógica. Um autor
desse período, Leonino de Pádua, por exemplo, escreveu: "Logica
est doctrina principaliter de signis".a
Essa divisão triádica das ciências, aliás, reapareceu em 1690
no famoso Essay de Locke, no qual ele descreveu a ciência dos
signos como lógica, no quadro de uma tríade científica, ao lado da
física (ou '1ilosofia natural") e da ética -à qual Locke se referia com
o termo grego praktiké.
7. A seguir, incluo resultado de pesquisas de S. Meier-Oeser,
já mencionado.
8. Em F. Bottin , "La polemica contra i Moderni Loyci [.. .] nella
Oecas Loycadi Leonino da Padova", em Medioevo4 (1978),
p. 108.
36
PANORM1ADASEMIÓTICA
O signo como instrumento cognitivo
João de São Tomás também foi um dos filósofos aconsiderar
o estudo do signo no campo da lógica. A definição de signo dada por
ele em sua Ars logica9 interessa tanto sob o ponto de vista do passado
quanto do futuro da semiótica:
Omnia instrumenta, quibus ad cognoscendum et
/oquendum utimur, signa sunt. ("Todos os instrumentos dos quais
nos servimos para a cognição e para falar são signos.")
Tal definição contém dois elementos de grande interesse para
ateoria dos signos. Oprimeiro éadefinição do signo como instrumento
e, portanto,como um meio, constttuindo um esboço da idéia de semiose
como mediação, desenvolvida mais tarde por Peirce. Outro semioticista
a acentuar a instrumentalidade dos signos foi Karl Bühler, autor do
modelo órganon10 da lí~gua,
que é a base da teoria das funções de
linguagem de Jakobson.
Osegundo elemento importante da definição de João de São
Tomás éa afirmação de que os signos não são apenas instrumentos
de comunicação, mas também de cognição. Repare-se que essa
interpretação contraria oque Platão havia postulado quando distinguia
entre acesso direto às coisas por cognição direta - sem uso de signos
- ecognição indireta por intermediação sígnica. Na presente definição,
ao contrário, o uso dos signos verbais, assim como os processos da
cognição do mundo, são definidos como processos de semiose. Essa
visão semiótica da cognição é bem peirceana e de grande interesse
no contexto do diálogo entre a semiótica e o paradigma das ciências
cognitivas. 11
9. Ed. B. Reiser (Roma, 1948), p. 9a.
1O. Órganon significa precisamente "instrumento" e o modelo
órganon é o modelo da instrumentalidade da comunicação.
11 . Ver capítulo 5.
HISTÓRIA DA SEMIÓTICA
37
Digressão sobre a semiótica do mundo natural
Na cultura da Idade Média até a Renascença, havia modelos
semióticos não só para a interpretação daqueles signos humanos,
animais ou naturais, que asemiótica moderna ainda estuda, mas também
modelos ainda mais ambiciosos, criados para servir de chave semiótica
para a interpretação de todo o mundo natural. Os mais importantes
desses modelos pansemióticos do mundo são o modelo dos quatro
sentidos exegéticos na Idade Média eo modelo das assinaturas das
coisas, na Renascença.
Os quatro sentidos do mundo medieval
Omodelo dos quatro sentidos exegéticos no mundo medieval
provém de um outro modelo desenvolvido para a interpretação de
uma mera parte desse mundo, os textos bíblicos. A hermenêutica
cristã medieval postulava que a interpretação da Bíblia tinha de ser
ferta sobre quatro níveis capazes de revelar quatro sentidos diferentes
do mesmo texto.
No primeiro nível, os textos tinham um sentido literal ou
histórico, que explicava o sentido das personagens, localidades e
eventos, tais como apareciam na superfície do texto. No segundo,
aparecia osentido tropológico ou moral, que era achave para arevelação
do sentido que um texto bíblico devia ter para a vida individual dos
homens neste mundo. No terceiro nível, vinha o sentido alegórico,
que se referia diretamente a Cristo e à Igreja. O quarto sentido era o
sentido anagógico e referia-se aos mistérios celestes que teriam lugar
no futuro dos fiéis cristãos.
Importante para o nosso contexto é ressaltar que esse modelo
dos quatro sentidos foi, mais tarde, usado também como um modelo
de leitura do mundo natural. O mundo foi, portanto, interpretado da
mesma maneira que o livro dos livros, o que nos mostra um caso
interessante de metagênese, uma inversão cronológica do processo
38
PAl'JORAMADASEMIÓTICA
da evolução: em vez de explicar os textos em termos da semiose no
mundo, omundo éinterpretado em termos de sentidos de textos escritos,
depois de sua evolução.12
Um exemplo de leitura do mundo natural nas categorias dos
quatro sentidos escriturais pode ser encontrado numa passagem em
que Dante(// Convivia li, 1, 2-15) descreve o sentido da cidade de
Jerusalém: no âmbito histórico ou literal, Jerusalém é a "cidade dos
judeus"; no sentido tropológico,éa"alma do homem"; no sentido aleg)rico,
simplesmente a "Igreja de Cristo"; e no sentido anagógico, a "cidade
de deus no céu".
A doutrina das assinaturas
Avisão pansemiótica do mundo chegou ao apogeu na doutrina
das assinaturas da Renascença,quando foi estudada na obra do médico
e sábio suíço Paracelsus (1493-1541).13
Aí encontramos um sistema elaborado de códigos para a
interpretação de signos naturais, onde não só deus aparece como
autor das mensagens do mundo, mas éacompanhado de três outros
emitentes (assinantes) de signos naturais (De Nat. Rer., 1591 ): primeiro,
o homem, em segundo, um princípio interior do desenvolvimento
chamado archaeus e, em terceiro lugar, as estrelas ou planetas (astra) .
Os signos naturais, que tais emitentes deixaram como traços
indexicais no mundo, eram chamados assinaturas e podiam ser
descobertos em várias zonas do mundo. Na face humana, os signos
eram codificados pela fisiognomia. As regras para descobrir o sentido
das assinaturas nas linhas do corpo humano, assim como nas linhas
visíveis da superfície das plantas, foram ensinadas na quiromancia;
12. Cf. Winfried Nõth (ed.), Origins ofsemiosis, Berlin, Mouton
de Gruyter, 1994, p. 5.
13. CI. Winfried Nõth, A semiótica no século XX, São Paulo,
Annablume, 1996, p. 270.
HISTÓRIA DAS8v11ÓT/CA
39
os segredos semióticos das assinaturas da terra, do fogo, da água e
dos astros foram descobertos pelos códigos da geomancia, da
piromancia, hidromancia e da astrologia, respectivamente.
Conforme a doutrina das assinaturas, os signos do mundo
natural mantêm entre eles relação de iconicidade porque existem
semelhanças, analogias, afinidades ou correspondências 14 escondidas
que os ligam numa relação pansemiótica.
14. Cf. Michel Foucault, Les mots et les choses, Paris, Gallimard,
1966.
RACIONALISMO, EMPIRISMO E ILUMIN ISMO
A semiótica dos séculos XVII e XVIII se desenvolveu no
ambiente de três grandes correntes filosóficas: o racionalismo, sobretudo
na França; o empirismo britânico eoiluminismo, aidade da luz, sobretudo
na Alemanha.
O Racionalismo de Port-Royal
No século XVII muitas idéias de interesse para o futuro da
semiótica se desenvolveram sob o racionalismo francês.
Idéias inatas
René Descartes (1596-1650), na sua teoria das idéias inatas,
postulou a prioridade do intelecto sobre a experiência. Do ponto de
vista semiótico, a conseqüência maior dessa teoria foi o fato de ela
ter alijado da teoria dos signos o aspecto referencial. Sem verdadeiro
elo de contato com o mundo aparente, o processo semiótico foi descrrto
em categorias mentais.
HISTÓRIADASEMIÓTICA
41
O modelo do signo diádico
Ao invés da tríade, o racionalismo optou por um modelo diádioo
de signo, cuja definição mais famosa. na época. se encontrava na
gramática geral e na lógica da escola semiótica de Port-Royal. Uma
formulação dessa definição na Lógica de Arnauld e Nicole (1683:
cap. 4) é:
O signo compreende duas idéias - uma é a
idéia da coisa que representa, e outra, a idéia
da coisa representada - e a natureza do signo
consiste em excitar a segunda pela primeira.
A"idéia da coisa representada" corresponde ao significado
do signo; "a coisa que representa" se refere ao significante, às
características acústicas ou visuais do signo. Em contrapartida à
tradição estóica, que tinha postulado a materialidade desse aspecto
do signo, a contribuição revolucionária da semiótica de Port-Royal
está na descrição do significante como imaterial, como idéia de uma
tal coisa. Nesse caso. o signo verbal - o significante - não seria a
expressão acústica da palavra pronunciada, mas a representação ou
o modelo mental daquele som e daquela articulação no momento da
recepção. Como esse significante mental "excita" um significado que
éigualmente mental,oprocesso semiótioo fica completamente confinado
à mente, desde a recepção até a compreensão final do signo.
O futuro do mentalismo semiótico (comentário)
Omodelo racionalista de signo concebido em Port-Royal foi
importante para ofuturo da semiótica porque antecipou precisamente
um modelo diádico que exerceu grande ascendência na semiótica do
nosso século, o modelo de Saussure. Para este, o significante de um
signo verbal qualquer não étambém um som ou uma marca de lápis
42
PAJ\OR.AMA.DASEMIÓTICA
sobre um papel branco; é uma "imagem acústica" ou visual da palavra
falada ou escrita.
É importante registrar, neste contexto, que o mentalismo
semiótico de Port-Royal antecipou uma das correntes das ciências
cognitivas - hoje conhecida pelo nome de "construtivismo radical" que descreve o processo da comunicação como autopoiético, ou seja,
um processo que égerado por si mesmo. Teóricos desse construtivismo
-como os biólogos H. R. Maturana e F. J. Varela (1972)-postulam
que os signos percebidos por um observador nunca podem vir de fora
da sua própria mente. Assim, todo o processo semiótico se dá num
sistema fechado e exclusivamente mental; os signos não circulam
entre fonte erecepção, limitando-se, assim, auma auto-referencialidade.
Port-Royal estava longe de um construtivismo tão radical,
mas é oportuno ressaltar que sua concepção de signo também não
estabelece vínculos com uma mente exterior, limitando-se auma conexão
entre duas idéias numa mesma mente.
Entre Racionalismo e Empirismo
Antes de passar a Locke eo empirismo britânico, énecessário
ao menos mencionar mais um tema e alguns filósofos semióticos
desse período que, apesar de importantes na história da semiótica,
não podem ser discutidos em detalhes neste rápido panorama da
semiótica. Tais filósofos são G. W. Leibniz (1646-1716) e Francis
Bacon (1561-1626) e otema é a procura de uma língua universal por
George Dalgarno e John Wilkins, entre outros.
Leibniz não só estudou uma grande variedade de signos e
assuntos semióticos, mas sobretudo as regras para combiná-los tendo
em vista um sistema racional de signos. Bacon, um cético semiótico,
estudou os meios lingüísticos de 'falsificar" as coisas no seu tratado
/dois of the marketplace (Novum organum 1, 43). Também foi ele
quem descobriu, em 1605, a possibilidade de codificar economicamente
oaHabeto, substituindo-o por um código binário, no qual dois elementos
HISTÓRIADASEMIÓTICA
43
(a e b) são usados para substituir as 25 letras do alfabeto com
combinações do tipo A= aaaaa, B= aaaab, C= aaaba, D= aaabb (De
Augm. Scient. Vl.1 ). De certo modo, essa idéia está nas origens da
teoria da informação.
Locke e o Empirismo britânico
No quadro do empirismo britânico dos séculos XVII e XVIII ,
encontramos idéias semióticas nas obras de Hobbes, Locke, Berkeley
e David Hume.
Hobbes (1588-1679)
Thomas Hobbes (1655: 2.5) elaborou uma definição diádica
e materialista do signo verbal ao escrever que "os nomes são signos
das nossas concepções e não das coisas mesmas". Se os signos
não podem se referir ao mundo, mas apenas a outros conceitos dele
derivados, o processo de semiose irá se desenvolver numa rede de
tramas mentais,que Peirce, mais tarde, denominaria "semiose ilimitada".
Hobbes evidenciou ainda um modelo associacionista bastante
unilinear de semiose ao salientar que, na associação dum acontecimento
antecedente com um evento conseqüente, um é signo do outro.
Berkeley (1685-1753)
George Berkeley radicalizou ateoria diádica do signo no quadro
do seu nominalismo e idealismo ontológico. Amatéria do mundo, para
ele, não participa do processo de semiose; as nossas sensações do
mundo são "idéias impressas nos sentidos" e não existem a não ser
na mente de quem as percebe. O"ser" delas éo ser percebido: Esse
est percipi (Berkeley, 171 O: §3).
44
PANCJR.AM\DASEMIÓTICA
Uma das conseqüências dessa visão tão radical do mundo
está no fato de que todos os processos que se desenvolvem no mundo
são interpretados como processos de semiose. Em vez de promover
relações entre causas e efeitos, Berkeley vê apenas relações entre
"signos" e"coisas significadas". Assim, o barulho que ouvimos não é
causado pelo movimento dos carros na rua mas étão-somente um
signo deles. Dessa forma, todo o mundo natural aparece permeado
de signos, tal como diria Peirce mais tarde.
Locke (1632-1704)
John Locke é a principal figura da história da semiótica de
sua época. Já nos referimos a ele no contexto da história terminológica
da semiótica (p. 21) e no contexto da relação entre a semiótica e as
demais ciências (p. 34). Porém, apesar da enorme importância de
suas idéias, o aspecto inovador de sua obra não étão grande quanto
poderia parecer.
Locke (1690: § 4.21.4) descreveu os signos como "grandes
instrumentos de conhecimento" e distingue duas classes de signos:
as idéias e as palavras. As idéias são os signos que representam as
coisas na mente do contemplador; as palavras não representam nada
"senão as idéias na mente da pessoa que as utiliza". Palavras, portanto,
são os signos das idéias do emissor.
Porém, se as palavras fossem apenas signos de idéias e as
idéias fossem apenas signos de coisas, a comunicação humana não
seria realmente possível. Locke (1690: §3.2.4), entretanto, nãoadm~iu
que as palavras são também signos "das idéias na mente das outras
pessoas com as quais nos comunicamos". Como idéias são signos e palavras são signos de idéias-, palavras, na definição de Locke,
são signos de signos, ou, como diríamos hoje, meta-signos.
Aseparação categórica entre dois níveis semióticos- idéias
e palavras - implica problemas sérios do ponto de vista da semiótica
geral. Hoje sabemos que as idéias- ou significados ligados às palavras
HISTÓRIA DA SEMIÓTICA
45
- em muitos aspectos não são independentes das palavras que as
designam. Asignificação das palavras não vem (ou não vem apenas)
da percepção das coisas, como Locke sugeriu, mas também do sistema
da linguagem que gera as diferenças entre as palavras.·Esta idéia é
central para a semiótica lingüística desde Saussure.15
A imagem que Saussure {1916: 131) usou para descrever a
relação entre palavra e idéia foi a imagem da relação indissociável
entre o anverso e o verso de uma folha de papel; no anverso temos
o significante de Saussure ou a palavra de Locke, no verso temos o
'significado ou a idéia. Não se pode separar o anverso do verso de
uma folha sem que se perca oconjunto. Uma metáfora que corresponderia
ao modelo de Locke seria o símile de um sanduíche: a fatia de baixo
é a idéia, que permanece mesmo se a fatia de cima - a palavra- for
retirada.
Iluminismo
Da semiótica no século das luzes, este panorama pode só
escolher alguns capítulos do iluminismo francês, poucos apontamentos
sobre o iluminismo alemão e uma digressão curta sobre Vico.
Temas e ciências vizinhas
Os grandes temas semióticos do século XVIII foram discutidos
nas áreas da epistemologia, da hermenêutica ede uma nova ciência
que, junto com asemiótica,começou apenas nesse século aestabelecerse explicitamente, a estética.
15. Winfried Nõth . A semiótica no século XX. São Paulo ,
Annablume, 1996, p. 35.
46
PAl\QRMDSEIÓ~C
O tema principal da epistemologia semiótica foi o papel dos
signos nos processos da percepção e a gênese dos signos. A
hermenêutica - arte geral da interpretação - enfatizou o papel dos
signos no processo de compreensão dos textos. Aestética teve como
temática principal o papel dos signos naturais e artificiais ou arbitrários
na percepção do belo.
Aestética foi primeiramente estabelecida por Alexander Gottlieb
Baumgarten num livro de 1750. O termo grego aísthesis, do qual
estética é derivado, significa "percepção dos sentidos". De acordo
com esse sentido, Baumgarten definiu a estética como a ciência da
cognição perceptiva (scientia cognitionis sensitivae), em contraposição
à lógica, definida como "ciência do conhecimento racionar·. Éinteressante
ver que a especialização da ciência geral da percepção inaugurada
por Baumgarten ligava-se diretamente a um ramo da lógica que ele
denominava "semiótica". Em sua definição, essa semiótica devia tratar
de signis pulchrae cogitatorum et dispositorum: dos signos belos
na cognição e na disposição.
Vico (1668-1774)
Antes de começarmos a tratar dos protagonistas da filosofia
semiótica da Idade das Luzes, é necessário introduzir brevemente
algumas informações sobre um pensador do século XVIII, cuja obra
constituiu uma significativa contribuição para o passado e o futuro da
semiótica, embora suas idéias não mantivessem aessência do programa
principal dos iluministas: a confiança no progresso ena razão, desafiando
a autoridade e a tradição.
O que o napolrtano Giambattista Vico, em sua obra Nuova
Scienza,de 1725, tem em comum com os iluministas da segunda metade
desse século éa base evolucionista enão-cartesiana de suas idéias. As
diferenças residem não apenas nos métodos extremamente especulativos,
mas também na sua simpatia pelos ritos e mrtos arcaicos, assunto que
só viria a despertar interesses maiores nos séculos XIX e XX.
HISTÓRIA DA SEMIÓTICA
47
Os temas de maior relevo semiótica na Nuova Scienza são
a poesia, o mito, a metáfora, a língua e a evolução dos signos da
humanidade. Vico acreditava em uma "história ideal e eterna", na qual
a humanidade teria passado por três fases de desenvolvimento: era
divina, era heróica e era humana. Essas três fases ocorrem em ciclos
que podem resultar em fases de retrocesso a estágios anteriores do
desenvolvimento.
Para Vico, durante a era divina, os homens acreditavam que
tudo fosse deus ou criado por um deus. Seria, pois, a época da semiose
ritual , marcada por "atos religiosos mudos ou cerimônias divinas".
Antes de desenvolver a linguagem articulada, os homens se
comunicavam por meio de hieróglifos divinos, ou expressavam-se
por meio de gestos ou objetos físicos que tivessem relações naturais
com as idéias. A linguagem falada ter-se-ia se desenvolvido, então,
a partir da onomatopéia e das interjeições; era "uma linguagem com
significações naturais".
Durante a época heróica, o modo dominante de comunicação deu-se por meio de emblemas visuais, brasões, insígnias eoutros
signos de posse material. Idéias abstratas foram expressas na forma
antropomórfica de heróis míticos. Osignificado de herói, por exemplo,
era expresso pelo herói mítico Aquiles.
Ambas as eras foram períodos de sabedoria poética e as
pessoas que nelas viveram foram autênticos poetas. Para Vico, portanto,
poesia, metáfora e mito são formas arcaicas de pensamento.
A terceira era - a era dos homens - foi também a idade da
razão eda civilização. Os signos, agora arbitrários, literais eabstratos,
fazem com que entrem em declínio a poesia e a imaginação. Porém,
seria errôneo pensar que somente essa era teve acesso à verdade.
Vico postulou que as mitologias antigas não são meras ficções ou
mesmo distorções da realidade, mas expressões poéticas precoces
das sabedoria humana. A conseqüência (Vico, 1725: §51) é que
a primeira ciência a ser aprendida deveria ser
a mitologia ou a interpretação das fábulas, pois
48
P.AJ\IORAMADASEMIÓTICA
[. ..] todas as histórias dos gentis tiveram seu
começo em fábulas .
Condillac e o sensualismo francês
Na Idade das Luzes os filósofos franceses desenvolveram
uma outra forma de empirismo conhecido pelo nome de sensualismo.
Um novo elemento, na semiótica dessa época, foi atentativa
de interpretação genética do processo da semiose. Osensualista Etienne
Bonnot de Condillac (1715-1780), por exemplo, foi o autor de Essai
sur L'origine des connaissances humaines, obra em que descreve
a semiose como um processo genético que começa em níveis primitivos
e chega até níveis mais complexos. O mais primitivo deles, o ponto
de partida para o conhecimento, é a sensação, a experiência sensual
imediata; os níveis seguintes, pela ordem, são percepção, consciência,
atenção, reminiscência, imaginação, interpretação, memória e reflexão.
Ofundamento básico dessa interpretação psicogenética da
cognição está na convicção de que "o uso dos signos é o princípio
que revela a fonte de todas as nossas idéias" (Condillac, 1746: introd.).
Condillac distinguiu também três categorias de signos:
a) signos causais, que estabelecem conexões entre objetos e algumas de nossas idéias por meio de circunstâncias particulares;
b) signos naturais, signos que "a natureza estabeleceu" para expressarmos sentimentos como o medo, a alegria, a dor etc.; e
c) signos por instituição, aqueles "que escolhemos e que só têm uma
relação arbitrária com as nossas idéias".
Na gênese da cognição, considerando a escala que vai das
sensações às reflexões, o signo só aparece ao nível da reminiscência.
É apenas nesse estágio que começam a surgir os signos casuais (ou
acidentais) e naturais. Antes de se chegar à reminiscência, a cognição
se processa pré-semioticamente. Tal divisão é uma das primeiras
HISTÓRIA DA SEMIÓTICA
49
tentativas de se estabelecer, na história da semiótica, o limiar dos
signos, como reconhecerá U. Eco, mais tarde, no âmbito das pesquisas
de uma semiótica genética.
A divisão entre signos naturais e institucionais constituirá,
também, o limiar entre a semiótica animal ea semiose humana. Além
dessas questões, a semiótica sensualista discutiu, sobretudo, a origem
da língua e as fases do seu desenvolvimento.
Diderot: a comunicação não-verbal e estética
Nos estudos genéticos da semiose humana surgiram também
idéias sobre a diferença entre a comunicação verbal e não-verbal. O
enciclopedista Diderot (1713-1784) tratou desse assunto nas suas
obras Lettres sur /es aveug/es (1749) e Lettre sur /es sourds et
muets (1751).
As idéias que desenvolveu foram revolucionárias se comparadas
com aquelas desenvolvidas pelo racionalismo cartesiano. Diderot afirmou
que a linguagem dos gestos não é só mais expressiva como também
mais lógica que a linguagem verbal. A razão desse argumento
surpreendente prende-se à linearidade temporal dos fonemas na
expressão verbal, que acarreta uma estrutura unidimensional. Já a
linguagem dos gestos é tridimensional, como a realidade do mundo.
Diderot conduiu que arepresentação tridimensional corresponde
necessariamente mais à realidade do que as demais representações
unidimensionais, como a linguagem. Portanto, podemos concluir que,
para Diderot, a linguagem provoca uma distorção da realidade.
O argumento da superioridade da comunicação não-verbal
insere-se numa teoria semiótica mais geral desenvolvida no âmbito
da estética do século XVIII: a teoria da mimese, da representação
por signos icônicos, mais próximos ao mundo representado .
Argumentava-se, nessa época, que os signos icônicos e os signos
naturais são meios de representação semiótica e esteticamente
50
PAf\ORAMADASEMIÓTICA
superiores aos signos arbitrários. Assim, o mais icônico e natural dos
signos étambém o mais belo.
Oteórico semiótica da estética G. E. Lessing (1729-1781 ),
por exemplo, concluiu , a partir desse argumento, que o teatro é a
forma mais estética de todas as artes por ser mais icónico que a
poesia e a pintura.
A semiótica genética dos ideólogos
Outras idéias semióticas do século das luzes vieram de um
grupo de filósofos da época da Revolução Francesa chamado os
ideólogos. Oprograma desses filósofos, porém, não foi nada ideológico,
no sentido que hoje atribuímos a esse termo. Ideologia, para eles, era
"o estudo das origens das idéias", constituindo uma ciência sem
preconceitos metafísicos e religiosos.
Em 1795,o Instituto Nacional da França promoveu um concurso
entre os intelectuais da época sobre o tema A influência dos signos
na faculdade de pensar. Oideólogo Marie-Josef Degérando (17721842) foi premiado com o seu tratado Des signes et de l'art de
penser. Nessa obra, Degérando desenvolveu asemiótica sensualista
propondo um modelo semiogenético que distingue dois limiares
semi óticos entre três níveis no processo da semiose. No nível mais
baixo aparecem apenas as sensações, que ainda não são reconhecidas
como signos mas como condição prévia à existência das representações.
O limiar entre as sensações, que ainda não são signos eaquelas que
pertencem ao primeiro nível dos signos, corresponde a um estado de
conexão da sensação com a idéia. Um signo é, portanto, "qualquer
sensação que acarreta uma idéia em nós, por causa da associação
que existe entre elas" (Degérando, 1800: 1, 63).
Há signos em dois níveis de semiose: signos prelingüísticos
esignos lingüísticos. Na passagem do primeiro para o segundo, estão
os signos indicativos e naturais. Assim, o cheiro de uma rosa (pura
sensação) evoca a idéia de sua cor ede sua forma. Degérando afirmava
HISTÓFllA DA SEMIÓTICA
51
que os signos nesse nível ainda não são capazes de comunicar e usa
a metáfora dos "signos mudos" para deixar claro que tais signos são
causados por fatores externos.
A diferença entre os níveis está no fato de que os signos
prelingüísticos e naturais chamam nossa atenção para eles mesmos
quando evocam idéias, ao passo que os signos lingüísticos desviam
nossa atenção para as idéias que evocam. Tal referência à atenção
para osigno contém os rudimentos de uma distinção mais profundamente
elaborada pela teoria fenomenológica dos signos de Husserl que,
posteriormente, influenciaria Jakobson easemiótica de Praga no século
XX.
Semiótica do Iluminismo alemão
A semiótica do iluminismo alemão começou com a teoria
dos signos de Christian Wolff (1679-1754), elaborada num capítulo
denominado De Signo, parte de sua obra Philosophia prima, de 1720.
Sua definição e tipologia do signo, entretanto, têm mais ligação com
o passado do que com o futuro da semiótica.
Na obra de Johann Hein rich Lambert (1728-1777), au1or do
primeiro tratado da teoria geral do signo intitulado Semiótica (1746),
encontramos também um esclarecimento sobre as fronteiras entre o
pré-semiótico e o semiótico: abaixo desse limiar há sensações que
não podem ser repetidas voluntariamente; acima, há produção de signos
com cognição simbólica, único estágio que permite a reiteração das
sensações necessárias para atingir clareza na cognição.Sem a reiteração,
as sensações ficam irremediavelmente obscuras e indistintas. Esse
é um tema típico da semiótica do iluminismo: o papel dos signos na
clarificação das idéias obscuras. Para resolver a questão, Lambert
indicou a cognição simbólica como "instrumento indispensável do
pensamento".
Na sua investigação semiótica, Lambert distinguia quatro tipos
de signos: naturais, arbitrários, meras imitações e representações.
52
P/\l\QRAMADASEMIÓTICA
"Representações", para ele, são signos que representam por variados
graus de similitude ou, como diríamos hoje, "iconicidade". Nas várias
línguas,signos arbitrários enaturais fundem-se com mais uma categoria
semiótica, que Lambert denominou "signos necessários".
Lambert explorou nada menos do que 19 sistemas sígnicos:
de notas musicais, gestos, hieróglifos até signos químicos, astrológicos, heráldicos, sociais e naturais. Os critérios de investigação
usados por ele são a arbitrariedade, a motivação, a necessidade, a
sistematicidade e a autenticidade dos signos. Sob essas diretrizes,
os sistemas sígnicos alcançam graus diferenciados de aproximação
à realidade. O grau mais alto coincide com os signos científicos, que
não só representam conceitos, mas também indicam relações de
tamanha afinidade a ponto de assegurar que "ateoria das coisas e a
teoria dos signos são permutáveis".
Com base nessa idéia otimista de homologia entre signos
científicos e coisas está o ideal perseguido por Leibniz e outros
pensadores desde oséculo precedente:apossibilidade de uma linguagem
científica e universal, pela representação isomórfica das coisas do
mundo. No desenvolvimento desse ideal, Lambert postulou que os
signos científicos deveriam estar fundamentados numa teoria semiótica
sem signos arbitrários, pois os signos são mais perfeitos na medida
em que contêm sinais de seu próprio sentido. Aarbitrariedade deveria,
pois, ser banida de uma linguagem científica universal ou os signos
arbitrários deveriam ser aproximados aos naturais e necessários.
Ciência e arte
Nesse ponto, a época iluminista da semiótica nos leva a uma
constatação surpreendente: a iconicidade- a correspondência entre
signo e mundo- era o critério semiótica principal para duas formas de
expressão cultural tantas vezes consideradas contrárias, a ciência e
a arte. Em ambos os setores os iluministas viram a possibilidade de
se atingirem níveis mais altos de perfeição por meio de signos que
HISTÓRIA DA SEMIÓTICA
53
representem coisas por aproximação icônica. Esse ponto de vista
aproxima arte e ciência como irmãs gêmeas.
Para concluir a apresentação da semiótica iluminista, não
se pode deixar de fazer uma referência ao filósofo alemão Gottfried
Herder (17 44-1803), que explicitamente enfatizou as afinidades entre
poesia e linguagem científica ideal. Numa passagem de 1768, Herder
esboçou uma visão do futuro da semiótica que faz pressentir o período
romântico eque é, em si mesma, um exemplo da aplicação da linguagem
poética ao discurso científico, sem demandar mais comentários:
Existe um simbolismo comum para toda a humanidade - um grande tesouro no qual o conhecimento que pertence a toda a humanidade
está guardado. A maneira autêntica de falar,
da qual ainda não tenho conhecimento, é a
chave para esse tesouro escondido. Quando
a chave for conhecida, vai abrir o tesouro e trazer
luzes para dentro dele, mostrando-nos, assim,
os seus valores . Isto seria a semiótica que,
agora, só podemos entender nos registros de
nossas enciclopédias filosóficas: o deciframento
da alma humana através da linguagem (Herder,
1768: 13).
SEMIÓTICA NO SÉCULO
XIX
Os poucos apontamentos de que dispomos sobre asemiótica
do século XIX começam com a idade do romantismo (ca. 1790-1830).
Símbolo e imagem são as noções centrais da semiótica desse período.
Na área do idealismo filosófico, J. G. Fichte (1762-1814), por exemplo,
revelou a importância das imagens na cognição e defendeu a tese
neoplatônica de que "o sistema de conhecimentos é necessariamente
um sistema de meras imagens sem nenhuma realidade, significação
e finalidade" (cf. Oehler, 1981: 78).
Outro retomo ao passado da semiótica pode ser encontrado
na visão de mundo do poeta Novalis (1 n2-1801 ). Novalis,que descreveu
a teoria dos signos como "assunto central de uma filosofia autêntica",
faz lembrar a doutrina renascentista das "assinaturas das coisas"
quando afirma que "ouniverso fala" que 'todas as coisas são mutuamente
sintomasumasdasoutras"(cf. Haller, 1959: 136).
Dentre os grandes filósofos do século XIX, G. W. F. Hegel
(1n0-1831) foi um dos que definiram as fronteiras semióticas introduzindo
distinções entre signos e símbolos: por baixo do limiar hegeliano do
signo temos meras percepções, "a matéria dos quais é imediatamente
56
PANORAMA DA SEMIÓTICA
presente (como a cor do cocar)" (1830: § 458). Hegel acreditava que,
como uso de signos, a percepção não é "avaliada positivamente e por
si mesma, mas como a representação de outra coisa". O signo é,
portanto, "uma percepção imediata que representa um conteúdo bem
diferente daquele que tem em si mesmo" (ibidem) .
Hegel (1830: § 458) distinguiu símbolos de (outros) signos
segundo o critério da arbitrariedade: o símbolo é"uma percepção que,
pela sua natureza própria, é mais ou menos o conteúdo que manifesta".
Nos demais signos, pelo contrário, o conteúdo perceptivo e o conteúdo
do significado não têm nenhuma relação. Em contraposição à semiótica
iluminista, Hegel considerava os signos arbitrários como mais idôneos
à comunicação. Com tais signos, diferentemente dos símbolos, diz
Hegel, a inteligência é mais leve e tem melhor controle no uso e na
percepção.
Dos demais protagonistas da semiótica do século XIX,
mencionaremos brevemente Humboldt, Bolzano e Lady Welby.
Wilhelm von Humboldt (1767-1835) é figura central para a
semiótica da linguagem. O princípio da relatividade lingüística - mais
tarde radicalizado por B. L. Whorf- que mostra a influência das diferenças
estruturais entre as várias línguas do mundo sobre a cognição humana
é uma das idéias que provém de Humboldt. Outras são a diferença
entre substância eforma e a diferença entre o sistema e os processos
dinâmicos do uso (érgon e enérgeía) da linguagem.
Bernard Bolzano (1781-1848) continuou atradição da semiótica
propriamente dita num grande tratado sobre a doutrina dos signos,
obra de 1837. Nela encontramos, por exemplo, uma investigação sobre
o"aperfeiçoamento ou a utilidade dos signos" na qual são relacionadas
nove vantagens do uso dos signos na descoberta da verdade e 13
regras para o uso e a invenção de signos. Entre as idéias semióticas
de Bolzano, que nos parecem arcaicas do ponto de vista da semiótica
moderna, destacam-se duas teses: 1) é possível pensar sem signos;
e 2) existem signos em si mesmos, independentemente de sua
atualização.
HISTÓRIADASEMIÓTJCA
57
Lady Victoria Welby {1837-1912) é conhecida pela sua
correspondência com Charles S. Peirce e pelos livros What is meaning
(1903) e Significs and /anguage (1911 ). A ciência do significado e
da comunicação-que ela denominou significs-deixou certa influência
no famoso livro The Meaning of Meaning {1923), de C. K. Ogden
e 1. A. Richards, e continuou a exercer grande influência até meados
do século XX num movimento semiótica dos Países Baixos que se
chamou Significs. Charles S. Peirce, porém, o correspondente de Lady
Welby e maior figura da semiótica dessa época, merece ser estudado
em capítulo à parte neste panorama da semiótica.
111
A SEMIÓTICA
UNIVERSAL
DE PEIRCE
Charles Sanders Peirce (1839-1914)-cujo nome se pronuncia
como a palavra inglesa purse e não como pierce - é, sem dúvida, o
mais importante dos fundadores da moderna semiótica geral. De sua
imensa obra -que percorre todas as áreas da filosofia e, além disso,
quase todas as ciências do seu tempo- trataremos, nesse panorama
histórico, apenas de introduzir três assuntos de interesse especial
para o estudo da semiótica geral e aplicada: a sua visão semiótica
universal do mundo, sua definição e sua classificação dos signos.
VISÃO PANSEMIÓTICA DO MUNDO
Oponto de partida da teoria peirceana dos signos éo axioma
de que as cognições, as idéias e até o homem são essencialmente
entidades semióticas. Como um signo, uma idéia também se refere
aoutras idéias eobjetos do mundo. Assim, tudo sobre oque refletimos
tem um passado (Peirce, Collected Papers, 5.253). 16
Mas Peirce foi mais longe ao concluir que "ofato de que toda
idéia é um signo junto ao fato de que a vida é uma série de idéias
prova que ohomem éum signo'' (CP, 5.314). Essa interpretação semiótica
do homem e da cognição tem uma dimensão presente, passada e
futura:
O homem denota qualquer objeto de sua
atenção num momento dado . Conota o que
conhece ou sente sobre o objeto e é também
a encarnação desta forma ou espécie inteligível;
16. Os números, nas citações extraídas do Co/lected Papers
- CP, referem-se, respectivamente, aos volumes e aos
parágrafos.
62
PANORAMA DA SEMIÓTICA
o seu interpretante é a memória futura dessa
cognição, o seu "eu" futuro ou uma outra pessoa
à qual se dirige, ou uma frase que escreve, ou
um filho que tem (CP, 7.591).
Peirce tem, portanto, uma visão pansemiótica do universo.
Na sua interpretação, signos não são uma classe de fenômenos ao
lado de outros objetos não-semióticos. Ao contrário, "o mundo inteiro
está permeado de signos, se é que ele não se componha exclusivamente
de signos" (CP, 5.448). A semiótica derivada de tal visão do signo se
reveste de um caráter universal que Peirce (1977: 85), numa
correspondência famosa com Lady Welby (23.12.1908), assim
descreveu:
Nunca esteve em meus poderes estudar
qualquer coisa - matemática, ética, metafísica,
gravitação, astronomia, psicologia, fonética,
economia, a história da ciência, jogo de cartas,
homens e mulheres, vinho, metrologia - exceto
como um estudo de semiótica.
As
TRÊS CATEGORIAS UNIVERSAIS
Filósofos desde Aristóteles têm perseguido o projeto ambicioso
de encontrar um número limttado de categorias que servisse de modelo
capaz de conter a multiplicidade dos fenômenos do mundo. Espaço e
tempo, por exemplo, são dois tipos de fenômenos que foram
considerados como categorias por serem irredutíveis aoutros fenômenos
na nossa experiência. Aristóteles conseguiu classificar dez categorias;
Kant elaborou 12, todas com base no seu sistema filosófico. Numa
redução radical das listas categóricas do passado, Peirce desenvolveu
uma fenomenologia de apenas três categorias universais que chamou
de Fírstness, Secondness e Thirdness, traduzidas por primeiridade,
secundidade eterceiridade.
Primeiridade é a categoria do sentimento imediato e presente das coisas, sem nenhuma relação com outros fenômenos do mundo.
Na definição de Peirce, "primeiridade é o modo de ser daquilo que é
tal como é, positivamente e sem referência a outra coisa qualquer''
(CP, 8.328).
É a categoria do sentimento sem reflexão, da mera
possibilidade, da liberdade, do imediato, da qualidade ainda não
distinguida e da independência (CP, 1.302-303, 1.328, 1.531 ).
64
PANORAMA DA SEMIÓTICA
Secundidade começa quando um fenômeno primeiro é
relacionado a um segundo fenômeno qualquer (CP, 1.356-359). Éa
categoria da comparação, da ação, do fato,da realidade eda experiência
no tempo e no espaço: "Ela nos aparece em fatos tais como o outro,
a relação, compulsão, efeito, dependência, independência, negação,
ocorrência, realidade, resultado".
Terceiridade é acategoria que relaciona um fenômeno segundo
a um terceiro (CP, 1.337/ss): "É a categoria da mediação, do hábito,
da memória, da continuidade, da síntese, da comunicação, da
representação, da semiose e dos signos".
A base do signo é, portanto, uma relação triádica entre três
elementos, dos quais um deve ser ofenômeno da primeiridade, outro
de secundidade e o último de terceiridade. Quais são esses três
constituintes no signo e na semiose?
SIGNO, SEMIOSE E SEMIÓTICA
Peirce aplicava terminologia idiossincrática nos seus estudos
do signo. Numa fase pré-terminológica, referiu-se aos três constituintes
do signo simplesmente como signo, coisa significada e cognição
produzida na mente (CP, 1.372). Na terminologia que adotou mais
tarde, o representamen é o primeiro que se relaciona a um segundo, ·
denominado objeto, capaz de determinar um terceiro, chamado
interpretante:
Um signo ou representamen, é tudo aquilo que,
sob um certo aspecto ou medida, está para
alguém em lugar de algo. Dirige-se a alguém,
isto é, cria na mente dessa pessoa um signo
equivalente ou talvez um signo mais desenvolvido.
Chamo este signo que ele cria o interpretante
do primeiro signo. O signo está no lugar de algo,
seu objeto. Está no lugar desse objeto, porém,
não em todos os seus aspectos, mas apenas
com referência a uma espécie de idéia (CP, 2.228).
66
PANORAMA DA SEMIÓTICA
O relacionamento do signo com os seus três componentes
é assunto de relevância central nessa definição. O signo não é uma
classe de objetos, mas afunção de um objeto no processo da semiose.
O signo, portanto, tem sua existência na mente do receptor e não no
mundo exterior: "Nada ésigno se não é interpretado como signo" (CP,
2.308).
Ainterpretação de um signo é, assim, um processo dinâmico
na mente do receptor. Peirce (CP, 5.472) introduziu otermo semiose
para caracterizar tal processo, referido como "aação do signo". Também
conceituou semiose como "o processo no qual o signo tem um efeito
cognitivo sobre o intérprete" (CP, 5.484).
Por isso, para definir a semiótica peirceana é preciso dizer
que não é bem o signo, mas é a semiose que é seu objeto de estudo.
Numa de suas definições, Peirce diz que "semiótica é a doutrina da
natureza essencial e variedades fundamentais de semiose possível"
(CP, 5.488).
Otermo semiose foi por ele adaptado de um tratado do filósofo
epicurista Filodemo. Em outra definição, onde usou a palavra grega,
ele dizia: "semeiosis significa a ação de quase qualquer signo, e a
minha definição dá o nome de signo a qualquer coisa que assim age"
(CP, 5.484).
O representamen do signo
Representamen éo nome peirceano do "objeto perceptível"
(CP, 2.230) que serve como signo para o receptor. Outros semioticistas têm-se referido a esse correlato do signo com termos distintos,
tais como símbolo (Ogden & Richards), veículo do signo (Morris),
significante (Saussure) ou expressão (Hjelmslev). Para os estóicos
era o semaínon do signo.
Notamos, porém, que na terminologia semiótica há uma grande
confusão entre esse correlato como um dos componentes do signo e
o signo mesmo na sua totalidade, seja triádica ou diádica. A distinção
A SEMIÓTICA UNIVERSAL DE PEIRCE
67
terminológica entre essas duas perspectivas parciais ou totais do
signo é muitas vezes descuidada, a ponto de alguns autores usarem
otenno signo no sentido do representamen peirceano e, outras vezes,
no sentido do signo na sua totalidade. Peirce mesmo não foi sempre
conseqüente ao observar essa diferença. Na definição citada mais
acima ele se refere ao "signo ou representamen" sem distingui-los.
Voltemos , porém, à definição deste "objeto perceptível"
chamado representamen. Ele é, segundo Peirce afirmava, "o veículo
que traz para a mente algo de tora''. É, assim, o signo considerado do
ponto de vista "da sua própria natureza material" ou "como é em si
mesmo".
O objeto
Segundo correlato do signo, o objeto corresponde ao referente, à coisa (prágma) ou ao denotatum em outros modelos do
signo, numa correspondência que é só aproximativa.
Objetos reais e mentais
Conforme Peirce, o objeto pode ser "uma coisa material do
mundo", do qual temos um "conhecimento perceptivo" (CP, 2.230),
mas também pode ser uma entidade meramente mental ou imaginária
"da natureza de um signo ou pensamento" (CP, 1.538). Peirce até
distingue uma terceira possibilidade do "ser' do objeto,além do perceptível
e do imaginável: algo que é "inimaginável num certo sentido". Uma
ilustração desse terceiro modo de ser do objeto é a seguinte:
A palavra "estrela '', que é um signo, não é
imaginável, dado que não é esta palavra em
si mesma que pode ser transposta para o papel
ou pronunciada, mas apenas um de seus
68
PANORAMA DA SEMIÓTICA
aspectos, e sendo a mesma palavra quando
escrita e quando pronunciada, no entanto é
uma palavra específica quando significa "astro
com luz própria ", outra totalmente distinta
quando significa "artista célebre" e uma terceira
quando se refere à "sorte" (CP, 2.230).
Oobjeto pode ser "uma coisa singular existente" (CP, 2.232)
ou uma classe de coisas:
O signo pode apenas representar o objeto e
falar sobre ele; não pode proporcionar
familiaridade ou reconhecimento desse objeto
[... ] O objeto do signo pressupõe uma
familiaridade a fim de veicular alguma
informação ulterior sobre ele (CP, 2.331).
Objeto imediato e objeto dinâmico
Peirce reconheceu duas espécies de objeto: o objeto imediato
e o objeto mediato, real ou dinâmico.
Oobjeto imediato é o"objeto dentro do signo", o objeto "como
o signo mesmo o representa e cujo ser depende, portanto, da
representação dele no signo" (CP, 4.536). É, dessa forma, uma
representação mental de um objeto, quer exista ou não o objeto.
Oobjeto mediato, real ou dinâmico é "o objeto fora do signo";
é"a realidade que, de uma certa maneira, realiza a atribuição do signo
à sua representação" (CP, 4.536). Esse segmento da realidade,também
chamado objeto real, é mediato e dinâmico porque só pode ser indicado
no processo da semiose. O objeto dinâmico é, portanto, "aquilo que,
pela natureza das coisas, o signo não pode exprimir e só pode indicar,
deixando para o intérprete descobri-lo por experiência colateral" (CP,
8.314). Tal definição parece estar baseada num realismo ontológico,
A SEMIÓTICA UNIVERSAL DE PEIRCE
69
mas, de fato, a filosofia semiótica de Peirce ultrapassou a dicotomia
entre o realismo e o idealismo. Num outro contexto, Peirce exprimia
dúvidas sobre a realidade ontológica do objeto dinâmico, que também
chamava objeto real, dizendo: ''Talvez oobjeto seja inteiramente fictício"
(CP, 8.314).
Objeto e auto-referência
Como o objeto é algo "que o signo representa", deveria ser,
pois, uma entidade diferente daquela que o representa, ou seja, o
representamen. Existe, porém, o caso excepcional de um signo que
se refere a si mesmo (CP, 2.230). Hoje a semiótica discute tais signos
sob o nome de signos auto-referenciais. Em tais signos,o representamen
e o objeto são a mesma entidade. O caso contrário caracteriza os
signos que se referem aum objeto diferente do representamen - também
denominados signos alo-referenciais. Peirce fornece dois exemplos,
um sobre a representação teatral e outro sobre a cartografia:
Assim, nada impede que um ator que
represente uma personagem num drama
histórico ostente relíquias que deveriam ser
apenas representadas, tais como o crucifixo
que Richelieu ergue com tal efeito em sua
rebeldia. Num mapa de uma ilha colocado sobre
o chão dessa mesma ilha deve haver, em
condições normais, alguma posição, algum
ponto assinalado ou não que representa idêntica
posição no mapa, o mesmíssimo ponto qua
posição na ilha (CP, 2.230).
Os exemplos peirceanos de auto-referência parecem bem
excepcionais. Mas é na Semiótica da Cultura que o princípio de autoreferencialidade tem mais relevo geral do que parece. No teatro do
70
PANORAMA DA SEMIÓTICA
modernismo, as revoluções estéticas do Living Theater e Happening 17
nos anos 60 e70 - com a sua mistura programática da representação
teatral ou ficcional , com uma nova forma de "presentação" imediata,
espontânea e"rear', para quebrar os códigos da tradição representacional
- demonstra um aumento de auto-referencial idade num contexto de
alo-referencialidade.
Ébom lembrar que a idéia do signo auto-referencial está no
centro de uma tradição da estética que, desde Santo Agostinho e
Kant, reclamava o signo estético como referente de si mesmo.
No que concerne à cartografia, é interessante notar que a
idéia da auto-referencialidade nos signos cartográficos foi desenvolvida
de uma maneira de um lado mais radical e, do outro, menos sériapor um contemporâneo de Peirce e docente de lógica em Oxford,
Charles Dodgson, autor do famoso Alice in wonderland, escrito sob
o pseudônimo de Lewis Carrol!. No capítulo 11 do seu romance Sylvie
and Bruno Concluded, Carroll retratou um professor alemão de
geografia que tinha a idéia de desenvolver um mapa de uma ilha que
deveria ser uma representação ponto aponto do território. Adesvantagem
de um tal mapa completamente auto-referencial foi logo percebida
pelos lavradores, pois o mapa ideal cobriria todas as suas terras e
assim impossibilitaria que a luz chegasse às plantas, matando-as.
Revoltados, os lavradores resolveram usar a terra mesma como um
mapa de si mesma. Em vez da auto-referencialidade num só ponto como no mapa de Peirce - os mapas de Carroll exemplificariam a
auto-referencial idade levada ao extremo, em todos os pontos.
Depois de Peirce e Carroll, o tema da auto-referencialidade
cartográfica foi também resumido no quadro da semântica geral de A.
Korzybski, autor de Science and sanity (1933). Num dos seus
princípios semânticos-que chamava oprincípio de auto-referencial idade
(se/f reflexivity) - disse: "O mapa ideal contém o mapa do mapa
17. Cf. Winfried Nõth, Strukturen des Happenings, Hildesheim,
New York, Olms, 1972.
A SEMIÓTICA UNIVERSAL DE PEIRCE
71
etc.". Korzybski afirmou este princípio para demonstrar a necessidade
de distinção entre sistemas semióticos e metassemióticos.
Para concluir esta digressão sobre signos que têm seus objetos
em si mesmos, vale lembrar a discussão prévia sobre o construtivismo
radical (p. 40) e seu princípio da auto-poiesis, que também implica
uma forma de auto-referencialidade. Otema poderia ser, inclusive,
estendido à crítica da sociedade consumista do pós-estruturalismo à
Baudrillard (p. ex, 1976), onde também encontramos a idéia de autoreferencialidade incrustada na sociedade pós-industrial do Primeiro
Mundo, cujos valores não possuem justificativas fora de si, mas
reproduzem-se e criam-se permanentemente segundo as estruturas
do sistema cultural que os gera.
O interpretante e a semiose limitada
O terceiro correlato do signo, que Peirce denominou
interpretante, éasignificação do signo. Algumas vezes Peirce também
fala de significance (CP, 8.179) , significado, ou interpretação (CP,
8.184) do signo.
Definição do interpretante
Peirce deu uma definição pragmática da significação quando
definiu o interpretante como o "próprio resultado significante", ou seja,
"efeito do signo" (CP, 5.474-475), podendo também ser "algo criado
na mente do intérprete" (CP, 8.179). Em conformidade com sua teoria
de que as idéias são signos e com a sua visão da interpretação como
processo de semiose, também definiu o interpretante como signo:
Um signo dirige-se a alguém, isto é, cria na
mente dessa pessoa um signo equivalente, ou
talvez um signo mais desenvolvido. Chamo o
72
PANORAMA DA SEMIÓTICA
signo assim criado o interpretante do primeiro
signo(CP, 2.228).
Semiose ilimitada
Como cada signo cria um interpretante que, por sua vez, é
representamen de um novo signo, a semiose resulta numa "série de
interpretantes sucessivos", ad infinitum (CP, 2.303, 2.92). Não há
nenhum "primeiro" nem um "último" signo neste processo de semiose
ilimitada. Nem por isso, entretanto, a idéia de semiose infinita implica
um círculo vicioso. Ao contrário, refere-se à idéia muito moderna de
que "pensar sempre procede na forma de um diálogo- um diálogo
entre várias fases do ego-de maneira que, sendo dialógico, se compõe
essencialmente de signos" (CP, 4.6). Como "cada pensamento tem
de dirigir-se a um outro" (CP, 5.253), o processo contínuo de semiose
(ou pensamento) só pode ser "interrompido, mas nunca realmente
finalizado" (CP, 5.284).
Na vida cotidiana, devido às exigências práticas, as séries
de idéias não continuam, de fato, ad infinitum, mas tecnicamente a
seqüência da semiose é sempre possível.
Digressão: a idéia da circularidade hermenêutica
Aidéia da semiose ilimitada que ocorre na fonna de um diálogo
pennanente assemelha-se, sob certos aspectos, a uma circularidade
hermenêutica no processo dialógico entre o eu e o outro: o eu se
torna outro e o novo outro, por sua vez, se torna eu novamente, e
assim por diante. Além disso, o nosso repertório de signos - ao menos
ao nível do vocabulário-é limitado e, por isso, temos que, no processo
da semiose verbal, recorrer a signos anterionnente empregados.
Na hermenêutica - ateoria da interpretação de textos-, a
idéia de uma circularidade semiótica foi desenvolvida no âmbito do
modelo clássico do círculo hennenêulico por Wilhelm Dilthey, em 1900.
A SEMIÓTICA UNIVERSAL DE PEIRCE
73
A tese central de Dilthey dizia que, no processo da leitura de um
texto, o sentido global nunca se desenvolve simplesmente a partir da
compreensão seqüencial de elementos que já tenham um sentido
precedente ao texto ou que existam independentemente dele. Em
verdade, as palavras-os elementos do texto-formam os seus sentidos
antes da leitura de certas idéias, às vezes com base em preconceitos
que já temos acerca do sentido global do texto.
O efeito desse processo na inferência do global sobre o
elementar pode ser depreendido da relação entre um texto e o seu
título: com atroca do título, a interpretação das palavras pode mudar
de forma surpreendente. Na arte e na poesia de vanguarda do século
XX, tal efeito tem sido usado para criar a estética de estranhamento.
Numa antologia de poesias dos anos 60 intitulada Found poems,1
por exemplo, o autor inclui uma receita culinária, em cuja leitura, num
novo contexto, o leitor e amante de poesia descobre estruturas muito
diferentes daquelas que o cozinheiro encontra. Desaparece, pois, o
sentido instrutivo e aparecem versos, ritmos, rimas e paralelismos
(cf. Nõth, 1986).
Mais recentemente, Stanley Fish (1980), no seu artigo Is
there a text in this ctass, ilustrou de outra forma esse processo.
Num fragmento de um texto acadêmico apresentado aos seus alunos
de poética, sem mais referências ao contexto original, só foi possível
descobrir estruturas poéticas. Os alunos consideraram o texto como
um poema bem feito.
Oprocesso de interpretação textual não é, portanto, um processo que começa com signos autônomos e sentidos independentes
ª
para seguir até o mais alto nível do sentido global. Osentido elementar
já contém traços do sentido global. Porém aí aparece a circularidade,
uma vez que o sentido global também não pode existir sem os sentidos
elementares.
18. Bem Porter, Found poems, New York, Something Else Press,
1972.
74
PANORAMA DA SEM IÓTICA
Qual é, então, a relação entre a idéia peirceana de semiose
ilimitada eo círculo hermenêutico? Acircularidade hermenêutica entre
o global eo elementar é um caso especial do processo dialógico que
Peirce descreveu. A categoria peirceana também se refere a munas
outras formas de conexões entre idéias estabelecidas durante o processo
da semiose. Mais perto da circularidade hermenêutica está outra teoria
desenvolvida por Peirce: ateoria da abdução, o método de interpretar
dados elementares por meio de hipóteses preliminares sobre leis que
possam determiná-los.
Os três interpretantes
De acordo com o eferto do signo sobre a mente do intérprete
e em conformidade com o seu sistema triádico, Peirce chegou a três
classes maiores de interpretantes.
A primeira categoria - o interpretante imediato - corresponde à "qualidade da impressão que um signo é capaz de produzir, sem
uma reação atual" (CP, 8.315). Conforme sua definição de primeiridade, Peirce apresentou esse interpretante imediato como uma
potencialidade do signo:
É o efeito inanalisado total que se calcula que
um signo produzirá ou naturalmente poderia
se esperar que produzisse, o efeito que o signo
produz primeiro ou pode produzir sobre uma
mente, sem nenhuma reflexão sobre ele
mesmo.
O interpretante imediato é, desse modo, a "interpretabilidade
peculiar" do signo "antes que ele chegue a um intérprete".
Asegunda categoria - o interpretante dinâmico - corresponde ao "eferto direto realmente produzido por um signo sobre um intérprete,
aquilo que é experimentado em cada ato de interpretação t:l édiferente,
em cada ato, do efeito que qualquer outro poderia produzir".
A SEMI ÓT ICA UNIVERSAL DE PEIRCE
75
A terceira categoria- o interpretante final - está ligada à
categoria do hábito e da lei:
É aquilo que seria finalmente decidido se a
interpretação verdadeira e se a consideração
do assunto fosse continuada até que uma
opinião definitiva resultasse[. .. ] aquele resultado
interpretativo ao qual cada intérprete está
destinado a chegar se o signo for
suficientemente considerado (CP, 8.184).
O estudo das significações dos lexicógrafos seria, pois, o
estudo de interpretantes finais.
A CLASSIFICAÇÃO
PEIRCEANA DOS SIGNOS
Peirce desenvolveu uma tipologia elaborada de signos com
base em uma classificação do representamen, objeto e interpretante,
cada uma em três classes denominadas tricotomias. Considerando
as possibilidades de combinar primeiridade, secundidade eterceiridade,
chegou a um sistema de dez classes principais de signos.
Primeira tricotomia
Do ponto de vista do representamen, Peirce dividiu os signos
com base nas três categorias fundamentais, segundo as quais "o
signo em si mesmo será uma mera qualidade, um existente concreto
ou uma lei geral" (CP, 2.243).
Na categoria da primeiridade, temos o quali-signo:
O quali-signo é uma qualidade que é um signo.
Não pode, em verdade, atuar como um signo,
enquanto não se corporificar (CP, 2.244).
A SEMIÓTICA UNIVERSAL DE PEIRCE
77
Tão logo um signo se corporifica, passa a pertencer à classe
da secundidade, do "existente concreto". Os signos desta classe são
denominados sin-signos, por serem "signos singulares". Outro nome
para os signos desta categoria é token. Orepresentamen de um sinsigno é"uma coisa ou evento que existe atualmente" como um "signo
singular" (CP, 2.245).
Na terceira classe dos signos considerados do ponto de vista
do representamen e fundamentados nas leis gerais, temos os legisignos:
Um legi-signo é uma lei que é um signo [... ]
Todo signo convencional é um legi-signo. Não
é um objeto singular, mas um tipo geral sobre
o qual há uma concordância de que seja
significante (CP, 2.246).
Assim, cada palavra de uma língua é um legi-signo, mas,
quando articulada numa frase particular, pode também aparecer como
sin-signo. Peirce entende tais sin-signos, que são ocorrências de legisignos, como "réplicas":
Todo legi-signo significa através de um caso
de sua aplicação, que pode ser denominado
réplica do legi-signo. Assim, a palavra "o",
normalmente, aparecerá de quinze a vinte cinco
vezes numa página. Em todas essas
ocorrências, uma e a mesma palavra é o
mesmo legi-signo; cada uma das suas
ocorrências singulares é uma réplica. A réplica
é um sin-signo (CP, 2.246).
Na lingüística, sobretudo na lingüística estatística, a distinção
entre legi-signo e réplica tem sido geralmente adotada, mas os termos
comuns nessa área são type (em vez de legi-signo) e token (no
lugar de réplica).
78
PANORAMA DA SEMIÓTICA
Segunda tricotomia
Baseada na categoria fundamental da secundidade, a segunda
tricotomia descreve os signos sob o ponto de vista das relações entre
representamen e objeto. Peirce considera esta tricotomia como "a
divisão mais importante dos signos" (CP, 2.275). Os três elementos
que a compõem são determinados conforme as três categorias
fundamentais. São eles, o ícone, o índice e o símbolo.
O ícone
O ícone participa da primeiridade por ser "um signo cuja
qualidade significante provém meramente da sua qualidade" (CP, 2.92).
Conforme tal definição, o ícone é, ao mesmo tempo, um quali-signo.
Porém um quali-signo icônico - também denominado ícone puro (CP,
2.276, 2.92)- que participa apenas da categoria da primeiridade é só
uma possibilidade hipotética da existência de um signo, pois o signo
genuíno participa necessariamente das categorias da secundidade
(qua objeto) e da terceiridade (qua interpretante).
Um ícone puro seria, portanto, um signo não comunicável ,
porque "o ícone puro é independente de qualquer finalidade, seNe sã
e simplesmente como signo pelo fato de ter a qualidade que o faz
significar". Assim entendido, o ícone puro não pode verdadeiramente
existir; pode, no máximo, constituir "um fragmento de um signo mais
completo''. Um pequeno exemplo dado por Peirce fornece elementos
para que possamos entender melhor como se dá, num fenômeno
semiótica, a aproximação ao ícone puro:
Ao contemplar uma pintura, há um momento
em que perdemos a consciência do fato de
que ela não é a coisa. A distinção do real e da
cópia desaparece e por alguns momentos é
puro sonho; não é qualquer existência particular
A SEMIÓTICA UNIVERSAL DE PEIRCE
79
e ainda não é existência geral. Nesse
momento, estamos contemplando um ícone
(CP, 3.362).
Como tais fenômenos de iconicidade reduzida à primeiridade
não ocorrem na realidade semiótica cotidiana -onde os signos genuínos
participam sempre da primeiridade- Peirce também define a idéia de
um ícone puro como sendo um caso de "degeneração semiótica". Um
ícone puro seria, pois, um signo degenerado - não no sentido de uma
avaliação pejorativa - mas no sentido de estar restrrto a participar de
apenas um constituinte do signo.
Após esses comentários sobre a impossibilidade de uma
iconicidade pura, temos de chegar à realidade cotidiana dos ícones
que são signos genuínos. Em contraposição ao ícone puro, Peirce
também se referiu aos ícones que participam na secundidade e na
terceiridade, denominando-os hipo-ícones (CP, 2.276). Um hipo-ícone
é ou um sin-signo icônico ou um legi-signo icônico.
O critério para defini-los é o da similaridade entre representamen e objeto. Peirce fala de um signo que é "semelhante" ao seu
objeto (CP, 3.362), mas também se refere a um signo que participa
"do caráter do objeto" (CP, 4.531) e, ainda, de um signo "cujas qualidades
são semelhantes às do objeto e excitam sensações análogas na mente
para a qual é uma semelhança". Os seus exemplos são de retratos,
pinturas (CP, 2.92), fotografias (CP, 2.280), metáforas, diagramas,
gráficos lógicos (CP, 4.418-420) e até fórmulas algébricas.
Muitos desses signos não são semelhantes aos seus objetos,
no sentido ordinário da palavra. Por que, por exemplo, as fórmulas
algébricas e os diagramas seriam ícones? A chave da iconicidade
desses signos reside na noção das correspondências relacionais. Peirce
explica: "muitos diagramas não se assemelham de modo algum aos
seus objetos quanto à aparência; a semelhança entre eles consiste
apenas da relação entre suas partes" (CP, 2.282).
80
PANORAMA DA SEMIÓTICA
Prós e contras a iconicidade
!conicidade, como vimos, inclui "similaridade" entre relações
abstratas e homologias estruturais. Mufos ícones participam, também,
de outros modos de semiose: um signo ideográfico, por exemplo, não
é só um signo por semelhança, mas também signo por arbitrariedade
e convenção- portanto, signo simbólico, para Peirce.
Com essa interpretação mais ampla do signo icônico, chegamos
a um momento em que é preciso considerar, ainda que brevemente,
os argumentos dos críticos do conceito desse tipo de signo. Entre
eles, Nelson Goodman e Umberto Eco.
Eco (1976: 191-217) considera "ingênua" ateoria dos signos
baseados na semelhança com oobjeto. Na interpretação dele, oiconicismo tem sua base nas convenções culturais e"similaridade não diz
respeito à relação entre imagem e objeto, mas entre imagem e um
conteúdo previamente compactuado pela cultura" (Eco, 1976: 204).
Nelson Goodman (1972), no seu ensaio Seven strictures on simi/arity,
mantém posição ainda mais radical: na sua interpretação relativista,
quase qualquer imagem pode significar qualquer outra coisa.
Peirce mesmo antecipou tais argumentos iconoclastas quando
explicou que iconicidade não é uma relação de qualquer realidade
ontológica entre dois fenômenos do mundo, mas, ao contrário, resulta
de uma relação estabelecida no ponto de vista do intérprete do signo
icônico:
Quaisquer dois objetos na natureza se assemelham e, de fato, neles mesmos, tanto quanto
quaisquer outros dois objetos. É só com respeito
aos nossos sentidos e necessidades que uma
semelhança conta mais que a outra .
Semelhança é uma identidade de caracteres.
E isto é o mesmo que dizer que a mente reúne
as idéias semelhantes numa só noção (CP ,
1.365).
A SEMIÓTI CA UNIVERSAL DE PEIRCE
81
Imagens, diagramas e metáforas
Na análise das formas de iconicidade dos signos, Peirce aplicou
novamente as três categorias fundamentais para distinguir três modos
de primeiridade com base nos ícones (CP, 2.277). Na primeiridade
dos ícones, isto é, na consideração do representamen deles, pode
haver, mais uma vez, primeiridade, secundidade eterceiridade.
No primeiro caso, o representamen do ícone ésigno por mera
qualidade e tem o nome de imagem. Um exemplo é o valor de
apresentação da cor em uma pintura. Aarte minimalista deste século
inventou as pinturas monocromáticas, um caso típico de ícones do
tipo imagem.
No segundo caso, o representamen é ícone devido às relações
diádicas existentes entre suas próprias partes, como acontece num
diagrama.Acategoria, porém, não inclui só os diagramas dos engenheiros,
mas qualquer ícone cuja semelhança seja evidenciada nas relações.
Há diagramas até mesmo na estrutura interna das frases; uma receita
culinária é também um diagrama, na medida em que a seqüência de
frases instruindo o cozinheiro corresponde à seqüência das ações a
serem executadas.
No terceiro caso, o representamen é signo porque mantém
relação triádica na forma de paralelismo entre dois elementos
constitutivos, paralelismo que se resolve com uma terceira relação.
Um ícone dessa categoria éa metáfora. Consideremos, como exemplo,
a metáfora "olho do céu", com a qual Shakespeare se refere ao sol.
Os três elementos de sua composição são, respectivamente, o sentido
literal do órgão da percepção, o sentido metafórico do "sol" eo tertium
comparatíonis, o sentido comum à relação dos dois primeiros. Nesse
caso, poderíamos ainda relacioná-los com outros atributos, tais como
o "redondo" e o "brilhante".
Os três tipos de ícone representam três graus de iconicidade
decrescente e, também, de degeneração semiótica. Imagens são
imediatamente icónicas, mas uma vez que significam sem passar
pela secundidade eterceiridade são signos degenerados. Metáforas
82
PANORAMA DA SEMIÓTICA
são signos genuínos, mas por se referirem indiretamente ao objeto
possuem menor grau de iconicidade.
Índices
O índice participa da categoria de secundidade porque é um
signo que estabelece relações diádicas entre representamen eobjeto.
Tais relações têm, principalmente, o caráter de causalidade,
espacialidade etemporalidade.
Quanto à causalidade, Peirce escreveu que '1oda força física
atua entre um par de partículas, de forma que qualquer uma delas
pode servir de índice da outra" (CP, 2.300). Por isso, "o índice está
fisicamente conectado com seu objeto; fonnam, ambos, um par orgânico.
Porém, a mente interpretativa não tem nada a ver com essa conexão,
exceto o fato de registrá-la, depois de estabelecida" (CP, 2.299).
Entre os exemplos peirceános de índice estão o cata-vento,
uma fita métrica, uma fotografia, o ato de bater à porta, um dedo
indicador apontando numa direção e um grito de socorro.
Índices também existem na linguagem. Nomes próprios e
pronomes pessoais são índices porque se referem a indivíduos
particulares. Outros pronomes, artigos e preposições são índices verbais
porque estabelecem relações entre palavras dentro de um texto.
As características do índice ficam mais patentes quando
comparamos esses signos aos signos icônicos eaos símbolos. Peirce
fez tal comparação:
Os índices podem distinguir-se de outros signos
ou representações por três traços característicos:
primeiro, não têm nenhuma semelhança significante com seus objetos; segundo, referemse a individuais, unidades singulares, coleções
singulares de unidades ou a contfnuos
singulares; terceiro, dirigem a atenção para os
A SEMIÓTICA UNIVERSAL DE PEIRCE
83
seus objetos através de uma compulsão cega
[ ... ] Psicologicamente, a ação dos índices
depende de uma associação por contigüidade
e não de uma associação por semelhança ou
por operações intelectuais (CP, 2.306).
Símbolos
O símbolo é o signo da segunda tricotomia que participa da
categoria de terceiridade. A relação entre representamen e objeto é
arbitrária edepende de convenções sociais. São, portanto, categorias
da terceiridade - como o hábito, a regra, a lei e a memória - que se
sttuam na relação entre representamen eobjeto. Na definição peirceana,
"um símbolo é um signo que se refere ao objeto que denota, em virtude
de uma lei, normalmente uma associação de idéias gerais" (CP, 2.449).
Cada símbolo é, portanto e ao mesmo tempo, um legi-signo: "Todas
as palavras, frases, livros eoutros signos convencionais são símbolos"
(CP, 2.292).
Outros exemplos de símbolos são o estandarte, uma insígnia,
uma senha, um credo religioso, uma entrada de teatro ou um bilhete
ou talão qualquer (CP, 2.297).
O perspectivismo da classificação peirceana
Neste ponto é preciso sublinhar que a tipologia peirceana
dos signos não é uma classificação aristotélica, no sentido de que
cada signo pertence a uma só classe dessa tipologia. O que Peirce
descreve não são classes aristotélicas de signos, mas aspectos de
signos. Por isso, um mesmo signo pode ser considerado sob vários
aspectos e submetido a diversas classificações . Essa visão
perspectivista dos signos é especialmente importante para descrever
os signos verbais: cada palavra é, em primeiro lugar, símbolo, pelos
84
PANORAMA DA SEMIÓTICA
aspectos da arbitrariedade e do convencionalismo. Atradução para
outras línguas nos dá provas disso. Entretanto, algumas palavras
são, ao mesmo tempo, índices, uma vez que estabelecem relações
diádicas, como no caso, já referido, dos pronomes. Outras palavras,
como é o caso das onomatopéias, são símbolos e ícones ao mesmo
tempo, por representarem, na pronúncia, o som natural das coisas
(p. ex., "murmúrio", "ping-pong" etc.).
Os fundamentos indexicais dos símbolos
Além dos casos de cruzamento entre signos icônicos,
indexicais esimbólicos, nos quais oaspecto icônioo ou indiciai predomina
em signos de base simbólica, Pei rce ainda reconheceu outra forma
de participação mais substancial dos símbolos nos outros dois tipos
da segunda tricotomia. Sua tese éa de que o uso dos signos simbólicos
no processo da comunicação também implica sempre o uso indiciai e
icônico desses símbolos.
Consideremos primeiramente o aspecto indiciai dos símbolos
usados na semiose humana. Peirce enfatizou que:
Um símbolo [... ] não pode indicar uma coisa
particular qualquer; ele denota um tipo de coisa.
Não apenas isso, mas ele próprio é um tipo e
não uma coisa singular. Podemos escrever a
palavra estrela, mas isso não faz de quem a
escreve o criador da palavra, assim como, se
apagarmos a palavra, não a destruímos. A
palavra vive na mente daqueles que a
empregam. Mesmo que estejam dormindo, ela
existe em suas memórias. Assim, não podemos
admitir, se houver razão para assim proceder,
que os universais são meramente palavras, isto
é, sem dizer, como Ocam supunha, que na
verdade são individuais (CP, 2.230).
A SEMIÓTICA UNIVERSAL DE PEIRCE
85
Aidéia do símbolo é, portanto, uma pura abstração. Em termos
lingüísticos, diríamos que é uma categoria da langue, ou seja, do
sistema lingüístico, enão da parole, da língua falada. No uso pragmático
da língua falada ou escrita, em situações concretas, os símbolos
logo adquirem ancoragem indiciai. Éessa ancoragem que liga o signo
aos objetos e situações tatuais do mundo.
Os fundamentos icônicos dos símbolos
O uso de símbolos icônicos tem também um fundamento
icônico. Peirce afirmou que:
[... ]a única maneira de comunicar diretamente
uma idéia é através de um ícone; e todo método
de comunicação indireta de uma idéia deve
depender, para ser estabelecido, do uso de
um ícone. Daí segue que toda asserção deve
conter um ícone ou conjunto de ícones, ou
então deve conter signos cujos significados só
sejam explicáveis por ícones (CP, 2.278).
No discurso verbal, a iconicidade consiste em metáforas,
paráfrases explicativas e, sobretudo, na estrutura diagramática das
proposições gramaticais, que Peirce também denominou ícones lógicos.
Conforme sua idéia da evolução da língua humana, houve originalmente
signos icônicos que foram, gradativamente, sendo substituídos por
símbolos. Nesses símbolos, permanece, contudo, a base icônica:
Em todas as escrituras primitivas, como nos
hieroglifos egípcios, há ícones de um tipo nãológico, os ideógrafos. Nas primeiras formas de
fala houve, provavelmente, grande quantidade
de elementos de mimetismo. Contudo, em todas
86
PANORAMA DA SEMIÓTICA
as línguas conhecidas, tais representações
foram substituídas pelos signos auditivos
convencionais. Estes, no entanto, são de tal
natureza que só podem ser explicados através
de ícones . Mas na sintaxe de toda língua
existem ícones lógicos do tipo dos que são
auxiliados por regras convencionais (CP, 2.280).
Além dessas considerações sobre aiconicidade na filogênese
da língua, Peirce também examinou outro aspecto desse fator na
evolução lingüística: a criatividade e a inovação no desenvolvimento
da língua. Num trecho muito citado sobre o assunto, Peirce escreveu:
Os símbolos crescem. Retiram seu ser do desenvolvimento de outros signos, especialmente dos
ícones ou de signos misturados que
compartilham da natureza dos ícones e
símbolos[. .. ] Se alguém cria um novo símbolo,
ele o faz por meio de pensamentos que
envolvem conceitos. Assim, é apenas a partir de
outros símbolos que um novo símbolo pode
surgir. Omne symbolum de symbolo. Um símbolo,
uma vez existindo, espalha-se entre as pessoas.
No uso e na prática, seu significado cresce[... ]
O símbolo pode, como a esfinge de Emerson,
dizer ao homem: De teu olhar, sou a olhadela
(CP, 2.231).19
À primeira vista, esta conclusão peirceana sobre o papel do
íoone na evolução das significações produz uma impressão enigmática.
Acitação do verso do poeta Emerson, através da qual Peirce se referiu
ao papel da iconicidade no desenvolvimento dialógico da semiose ilimitada,
19. O contexto desta citação no poema The sphinx de Ralph
Waldo Emerson é o seguinte:
A SEMIÓTICA UNIVERSAL DE PEIRCE
87
parece antecipar a idéia lacaniana da fase do espelho, como momento
decisivo na evolução do indivíduo. Qualquer que seja o papel da
iconicidade na forma de metáforas e do princípio da analogia durante
a evolução das palavras, este é um fato que a lingüística histórica
tem estudado desde o início e continua a ser de interesse central em
nossa época, no âmbito da lingüística cognitiva (cf. cap. IV).
Terceira tricotomia
De acordo com a terceira tricotomia -que considera o signo
do ponto de vista da relação entre representamen e interpretanteum signo pode ser rema, dicente - também chamado dicissigno - ou
argumento.
Essa divisão triádica "corresponde à antiga divisão (da lógica)
entre termo, proposição e argumento, modificada para ser aplicável
aos signos em geral" (CP, 8.337).
Rema
Um termo, na lógica, é "simplesmente um nome de classe
ou um nome próprio". No sentido mais geral da semiótica, um rema é,
1hear a poet answer, / [... ]li "Dull Sphinx, Jove keep thy
five wits; / Thy sight is growing blear; I Rue, myrrh and
cummin for lhe Sphinx, / Her muddy eyes to clear!" I The
old Sphinx bit her thick lip, - / Said, "Who taught thee me
to name? / 1am thy spirit, yoke-fellow; / OI thine eye 1am
eyebeam." li "Thou art lhe unanswered question; / Couldst
see thy proper eye, / Alway it asketh, asketh; / And each
answer is alie. / [... ]" li Through a thousand voices I Spoke
lhe universal dame; / "Who telleth one of my meanings /
Is master of ali 1am."
88
PANORAMA DA SEM IÓTI CA
portanto, "qualquer signo que não é verdadeiro nem falso, como quase
cada uma palavra por si, exceto sim e não" (CP, 8.337).
Rema vem do grego rhéma, que significa simplesmente
"palavra". As palavras enunciadas isoladamente são incapazes de
serem certificadas. Como ainda não participa de afirmações, o rema
é "um signo de possibilidade qualitativa, ou seja, é entendido como
representando esta e aquela espécie de objeto possível" (CP, 2.250).
Dicente
A segunda categoria de signo- considerado do ponto de vista
do interpretante e correspondente à categoria lógica da proposição éo dicente (ou dicissigno). Na lógica, a proposição éa unidade mínima
para exprimir idéias que podem ser ou verdadeiras ou falsas. Consiste
de uma combinação de ao menos um argumento (sujeito) eum predicado,
por exemplo, do tipo "A é B".
Seguindo esse modelo lógico, Peirce definiu o signo dicente
como "um signo de existência real" (CP, 2.251) ou um "signo que
veicula informação" (CP, 2.309). "A prova característica mais à mão
que mostra se um signo é um dicissigno ou não é que o dicissigno é
ou verdadeiro ou falso, mas não fornece as razões de ser desta ou
daquela maneira" (CP, 2.310).
Argumento
Logo que o signo supera o quadro proposicional e passa a
participar de um discurso racional mais estendido, chega à categoria
da terceira tricotomia. Um argumento é, portanto, "o signo de uma lei"
(CP, 2.252), "a saber, a lei segundo aqual a passagem das premissas
para as conclusões tende a ser a verdadeira" (CP, 2.263). O caso
prototípico de um signo que participa num discurso argumental é o
silogismo, a dedução formal de uma conclusão de, ao menos, duas
premissas do tipo "A é B, B é C, logo A é C".
A SEMIÓTICA UNIVERSAL DE PEIRCE
89
A dimensão pragmática do signo
Na sua introdução à semiótica peirceana, Teixeira Coelho
Neto (1980: 61) descreve atricotomia do rema, dicente e argumento
como pertencendo à dimensão pragmática do signo.
Essa avaliação é provavelmente motivada pela idéia de que
a tricotomia do interpretante deve ser aquela que estuda a relação
entre o signo eo seu intérprete, mais do que outras dimensões. Porém,
as definições peirceanas, nesta tricotomia, provam que suas categorias
têm pouca relevância para a pragmática, que é o estudo do efeito do
signo sobre os intérpretes em situações de comunicação. Atricotomia
muito mais importante para a pragmática é a segunda tricotomia, que
trata das relações entre signo e objeto e caracteriza o ícone, o índice
e o símbolo. É aí que estudamos as relações entre o intérprete e o
seu ambiente semiótica, principalmente na forma dos signos indexicais.
Aterceira tricotomia, pelo contrário, pertence às duas outras dimensões
da semiótica, a semântica e a sintática. Pertence à semântica porque
estuda o potencial dos signos para dizer a verdade ou não; pertence
à dimensão sintática porque determina as condições combinatórias
favoráveis para que os remas participem de proposições (dicentes) e
no discurso racional (argumentos).
As dez classes principais de signos
Resumimos, aqui, os critérios que Peirce desenvolveu nas
suas análises triádicas do signo. Aplicando as três categorias de
primeiridade, secundidade e terceiridade na perspectiva do
representamen,do objeto edo interpretante,chegamos anove categorias
distribuídas pelas três tricotomias seguintes:
PAN ORAMA DA SEMIÓTICA
90
Tricotomias
1
li
111 ·
Relação ao
Relação ao
REPRESENT/>NEN
CB.ETO
INlm:-RETfiNTE
em si
Categorias
PRIMEIRIDADE
QJAl.J..SIOO
ÍOH
REMA.
SEGUNDIDADE
SIN-SKN)
ÍNDICE
DICENTE
TEFUJRtDADE
LEOO<ID
SÍMnO
A'OJ.JENTO
Como cada signo tem que ser determinado pelos seus três
consfüuintes (representamen, objeto e interpretante), e como há três
modos categóricos nos quais cada um desses constituintes pode
aparecer, chegamos a uma possibilidade combinatória de 27 classes
de signos (3 x 3 x 3 = 27). Algumas dessas combinações teóricas,
porém, são semioticamente impossíveis: um quali-signo, por exemplo,
é sempre um signo icônico e remático, mas não pode ser nem índice,
nem dicente; um sin-signo não pode ser um símbolo e um índice não
pode ser um argumento.
Tais restrições reduzem o número de combinações válidas
a dez classes principais. Na lista seguinte, enumeramos as classes
principais de signos. Os parênteses indicam categorias descritivas
que são redundantes por estarem pressupostas em outras categorias
indicadas (CP, 2.254-263, 8.341).
11 . O quali-signo (remático e icônico) é uma qualidade que é um
signo, tal como a sensação de "vermelho" ou de uma pintura
monocromática.
112. O sin-signo icônico (e remático) é um objeto particular e real
que, pelas suas próprias qualidades, evoca a idéia de um outro
objeto, tal como o diagrama dos circuitos eletrônicos numa
máquina particular.
113. Osin-signo indiciai remático dirige aatenção aum objeto determinado
pela sua própria presença, tal como um grito espontâneo é um
signo de dor.
A SEMIÓTICA UNIVERSAL DE PEIRCE
91
li 4. O sin-signo (indiciai) dicente é também um signo afetado
diretamente por seu objeto, mas além disso é capaz de dar
informações sobre esse objeto, assim como um cata-vento.
1115. O legi-signo icônico (remático) é um ícone interpretado como
lei, tal como um diagrama - à parte sua individualidade fáticanum manual de engenharia eletrônica.
1116. O legi-signo indiciai remático é uma lei geral "que requer que
cada um de seus casos seja realmente afetado por seu objeto,
de tal modo que simplesmente atraia aatenção para esse objeto"
(CP, 2.259), como um pronome demonstrativo.
1117. Olegi-signo indiciai dicente é uma lei geral afetada por um objeto
real, de tal modo que forneça informação definida a respeito
desse objeto, tal como um pregão de um mascate, uma placa
de trânsito ou uma ordem.
1118. O (legi-signo) símbolo remático é um signo convencional que
ainda não tem ocaráter de uma proposição, tal como um dicionário.
1119. O (legi-signo) símbolo dicente combina símbolos remáticos em
uma proposição, sendo, portanto, qualquer proposição completa.
1111 O. O(legi-signo simbólico) argumento éo signo do discurso racional,
tal como a forma prototípica de um silogismo.
IV
A SEMIÓTICA APLICADA
DE EXTRAÇÃO PEIRCEANA
Asemiótica peirceana não é apenas uma semiótica teórica
efilosófica, mas tem um amplo potencial de aplicação na área dos
estudos da comunicação.
Neste capítulo, trabalharemos com alguns exemplos de
aplicação dessa teoria na área dos estudos lingüísticos e literários.
Nosso objetivo principal éaprofundar o conhecimento das categorias
peirceanas através de exemplos analíticos sobre os processos da
semiose verbal. Para tanto, os dois temas escolhidos são:
1) o papel da iconicidade na linguagem falada e escrita; e
2) a transformação dos signos no mundo imaginário da Alice, de
Carrol!, no país das maravilhas.20
20. As fontes desses dois capítulos da semiótica aplicada são:
Winfried Nõth, "The semiotic potential for iconicity in spoken
and written language", in: Kodikas/Code 13 (1990), p. 191209, e Winfried Nõth, "Alice's adventures in semiosis", in:
R. Fordyce & C. Marello (eds.), Semiotics and linguistics
in Alice's worlds, Berlin, de Grutyer, 1994, p. 11-25.
FORMAS DE \C ONI CI DADE NA LI NGUAGEM
Soni rerum índices, "os sons são os índices das coisas'',
foi a fórmula com a qual o gramático John Wallis, em sua Grammatica
Linguae Anglicae, de 1653, resumiu sua tese de uma iconicidade
básica na linguagem. Aordem das palavras, para ele, reflete a ordem
do mundo. Na idade do iluminismo encontramos uma idéia afim
e, aí, ao menos o ideal das linguagens literárias e científicas foi
considerado como sistema icônico da realidade (p. 54-55).
Hoje, ambas as teorias pertencem ao passado da semiótica.
Sabemos que as línguas não são nem modelos icônicos fiéis do
mundo, nem sistemas sem correspondências com aquilo a que se
referem.
Arbitrariedade versus iconicidade
"O signo lingüístico é arbitrário" foi uma das teses centrais
do fundador da lingüística moderna, Ferdinand de Saussure (18571913). A comprovação saussureana dessa tese apoiou-se no fato
de existirem diferentes línguas no mundo para expressão de idéias
ASEMIÓTICAAPLJCADADEEXTRf\ÇÃOPEIRCE4NA
97
elementares. A idéia da "planta arbórea", por exemplo, se exprime
em português por árvore, em inglês por tree e em alemão por Baum.
Não há nada na forma desses vocábulos que esteja ligado à natureza
da planta à qual eles se referem (cf. Saussure, 1986: 81 ).
O princípio saussureano da arbitrariedade lingüística tem
sido observado como dogma pela lingüística estruturalista do nosso
século. As exceções a esse princípio - como as palavras
onomatopéicas - foram consideradas casos marginais no estudo
das línguas.
A partir dos anos 80, com o advento da lingüística cognitiva,
as descobertas sobre a relação entre estruturas da linguagem e o
mundo das cognições não-verbais alargaram o conhecimento sobre
várias formas de motivação não-arbitrária do signo lingüístico. No
quadro desses estudos, o papel da iconicidade na língua vem sendo
mais e mais sublinhado e as categorias peirceanas da iconicidade
têm sido um modelo fundamental.
O ícone verbal e o seu objeto
Quais são os objetos aos quais um ícone verbal pode se
referir? À primeira vista, a língua falada - com sua estrutura linear
e acústica - parece pouco idônea para representar o mundo
multidimensional e multimedial. De fato, a iconicidade da língua é
relativamente baixa, se considerarmos apenas o seu potencial de
representar o mundo por meio de imagens, no sentido peirceano
do termo.
Na categoria de ícones que participam das qualidades
simples dos objetos , temos , em substância, só as palavras
onomatopéicas: murmúrios, sussurro, chiado ou bum são exemplos
de palavras que participam das qualidades acústicas dos seus
objetos.
Na língua escrita há, além disso, um certo potencial icônico
para a representação de estruturas visuais. Ícones da categoria
98
PMORAMADASEMIÓTICA
imagem, derivados da escritura alfabética, são, por exemplo, as
expressões decote em U, decote em V, ou curva em S. Porém,
um maior potencial para criar imagens existe no território das artes
gráficas. Aí temos múltiplas possibilidades de utilizar letras e palavras
de calibres, cores e disposições diferentes, de forma a criar constelações de correspondências com os objetos do mundo. A poesia
concreta tem explorado, de forma mais sistemática, esse potencial
da língua.
Os exemplos de iconicidade verbal mencionados até agora
constituem casos em que o representamen lingüístico possui, a
princípio, um correlato no mundo não-lingüístico, seja acústico, seja
visual. Esse modo de referência da língua ao mundo é caracterizado,
na lingüística, como referência exotérica. Do ponto de vista da
semiótica geral, trata-se de uma relação alo-referencial (p. 69).
Porém, uma fonte maior de iconicidade lingüística está nas estruturas
que não se referem ao mundo externo, mas ao mundo do próprio
discurso. As referências aos segmentos precedentes ou conseqüentes no próprio discurso são denominadas referências endofóricas
ou auto-referenciais.
!conicidade do tipo endofórico é, desse modo, referência icônica aoutros lugares de um mesmo texto. Tal referência é a base do
princípio da recorrência da linguagem. Repetições, paralelismos,
rimas, aliterações e outras formas de reiteração de unidades equivalentes num mesmo texto são formas de iconicidade endofórica.
Abase semiótica da poeticidade, que Jakobson localiza no princípio
de recorrência, é, portanto, uma relação de iconicidade endofórica.
Digressão: iconicidade versus autonomia literária
A interpretação do princípio da recorrência como forma
de iconicidade permite, em parte, reconciliar duas teorias da literatura
que tradicionalmente foram consideradas opostas: os princípios
da iconicidade e da autonomia literária.
ASEMIÓTICAAPIJCADA DE EXTRAÇÃO PEIRCEANA
99
A teoria clássica da iconicidade literária postulava uma
relação de iconicidade exofórica entre os signos do texto literário
e o mundo representado nele. Platão usava o símile do espelho;
Horácio, o símile da pintura (ut pictura poiesis, "a poesia devia ser
como uma pintura") para ilustrar suas teses de iconicidade literária.21
A semiótica do iluminismo (Lessing) seguiu esse mesmo modelo
na sua estética literária (p. 50).
Um dos mais recentes proponentes de uma teoria icônica
da literatura foi Jurij Lotman.22 Na sua interpretação, literatura é
um "sistema secundário de modelização" que efetua atransformação
de estruturas do signo em estruturas do conteúdo. As estruturas
sonoras da arte verbal são, portanto, interpretadas como um ícone
diagramático de conotações (conteúdos secundários) que o texto
revela para além dos conteúdos do seu nível primário de significação.
Em contraponto à teoria da mimese literária, desenvolveuse a teoria da autonomia semiótica da arte verbal , cujos representantes mais eminentes foram Jakobson e Mukarovsky. Em vez de
semantização, essa teoria considera a auto-referencialidade como
o princípio constituinte da literariedade. Na interpretação da poética
tradicional, a arte verbal - tal como a vêem os autonomistas - não
é um espelho que reflete o mundo, mas uma lâmpada que produz
luz por si mesma.23 Roland Barthes, outro proponente ilustre da
tese autonomista, utilizou símile mais moderno: para ele, a literatura
é um sistema semiótica no qual "a matéria-prima do autor tem
finalidade em si mesma", de maneira que "a literatura é, no fundo,
uma atividade tautológica, à maneira daquelas máquinas cibernéticas construídas por si mesmas".24
21 . Platão, República X, 596; Horácio, Ars Poetica, 361 .
22. Jurij Lotman, The structure of the artistic text, Ann Arbor,
Michigan Slavic Contributions, 1977, p. 21, 55 , 119.
23. CI. M. H. Abrams, The mirrar and lhe lamp, Oxford, Univ.
Press, 1953 .
24. Roland Barthes, Criticai essays, Evanston, North Western
Univ. Press, 1972 , p. 144.
100
PANORAMA DASEMIÓTlCA
Auto-referência - pelo princípio estético de recorrência
verbal - é, como vimos, uma forma de iconicidade endofórica. Apesar
das diferenças entre os autonomistas e os iconicistas na teoria da
literatura, vemos que as duas teorias têm em comum o princípio
da iconicidade, na forma exotérica (para os iconicistas) e na forma
endofórica (para os autonomistas).
Formas da iconicidade diagramática na linguagem
Anteriormente havíamos concluído que o potencial da
linguagem para representar por meio de imagens - no sentido
peirceano - é mais ou menos restrito. As áreas mais importantes
da iconicidade lingüística são as representações diagramáticas e
metafóricas. Como o estudo das metáforas tem se desenvolvido
no centro dos estudos literários e lingüísticos da atualidade, podemos
restringir o tema das estruturas diagramáticas a três subáreas, a
saber: os símbolos em estruturas diagramáticas, diagramas
sintagmáticos e diagramas paradigmáticos.
Símbolos em estruturas diagramáticas
Diagramas verbais são ícones fundamentados em
elementos simbólicos. A natureza de tais estruturas foi explicada
por Peirce com o exemplo da seguinte fórmula algébrica:
a1x+ b1y= n1,
82X + b 2y = n 2.
Peirce dizia que esta fórmula é um ícone diagramático
porque 'faz parecerem semelhantes quantidades que mantêm
relações análogas para com o problema. Em verdade, toda equação
algébrica é um ícone, na medida em que mostra, por meio de signos
ASEMIÓTICA APLICADA DE EXTRAÇÃO PEIRCEANA
1O1
algébricos (que em si mesmo não são ícones) , as relações das
quantidades em causa" (CP, 2.282).
Tais ícones também existem em contex1os não matemáticos
na língua escrita. A estrutura tipográfica de qualquer livro com sua
subdivisão em capítulos e parágrafos e até em frases e outros
segmentos indicados pela pontuação e pelo espaçamento constitui
um diagrama das relações estruturais do texto.
Enquanto a língua escrita pode utilizar-se do espaço
bidimensional do papel para representar relações diagramáticas,
o potencial diagramático do discurso falado fica restrito a relações
lineares. A linearidade da linguagem é, porém, apenas uma de suas
dimensões estruturais; a outra é a estrutura paradigmática, que
se refere às relações dentro do sistema da linguagem. Consideremos, pois, algumas formas de diagramaticidade nessas duas
dimensões do sistema lingüístico.
Diagramas sintagmáticos
As estruturas diagramáticas que se desenvolvem na
linearidade da língua referem-se principalmente às relações temporais, espaciais econceituais. O protótipo de um diagrama temporal
é a narrativa clássica: se a ordem das proposições tex1uais corresponde à "ordem natural" dos eventos representados pelo tex1o, o
resultado éum ícone diagramático. Um exemplo de diagrama espacial
é adescrição de um caminho. Aordem de enunciação dos locais, no
discurso, corresponde à ordem em que esses mesmos lugares estão
relacionados ao ponto de partida. Já os diagramas conceituais
refletem ordens de causalidade, de seqüencial idade ou de hierarquia
no mundo conceituai. Há ordem diagramática no discurso quando
a representação da causa precede a do efeito ou quando a idéia
importante é mencionada antes da idéia menos importante.
As representações diagramáticas de estruturas temporais,
espaciais e conceituais são formas de iconicidade exofóricas. Para
102
PMOFWMDASEMIÓTICA
completar esse breve panorama da iconicidade de diagramas sintagm áticos, incluímos ainda dois exemplos de diagramas
endofóricos:
Beauty is truth, truth beauty. (Keats, "Ode to a
Grecian Um")
Love 's fire heats water, water coais not /ove
(Shakespeare, Soneto 154).
Na estrutura do quiasma poético ABBA, de Keats, é a
relação AB que é representada diagramaticamente na forma inversa
de BA, ícone relacional do AB precedente. A estrutura da linha de
Shakespeare contém um quiasma mais desenvolvido, também
chamado antimetábole. Consiste na inversão da relação ABC na
ordem inversa CB'A, com mais uma relação de oposição entre os
antônimos paralelizados - heats (B) e coais (B').
Diagramas paradigmáticos
A função dos diagramas paradigmáticos pode ser ou endo
ou exofórica. É endofórica quando a estrutura paradigmática se
refere a todas as outras formas da mesma língua que pertencem
ao mesmo paradigma. Oeferto semiótica dessa forma de iconicidade
endofórica se nota, por exemplo, no caso das transformações históricas da língua por analogias. Por exemplo, na palavra inglesa
could, a presença ortográfica da consoante nunca pronunciada
-1- apenas se explica pela analogia gramática e semântica com
tais como should, would etc. que contêm um - 1 - antigamente
pronunciado.
A função dos diagramas é exofórica quando reflete
estruturas cognitivas. O paradigma das palavras terminadas com
o-s do plural, por oposição ao paradigma das formas singulares,
é um diagrama icônico da categoria cognitiva da pluralidade. Os
ASEMIÓTICA APLICADA DE EXTRAÇÃO PEIRCEANA
103
paradigmas morfológicos do tipo alto, mais alto e altíssimo são um
diagrama exofórico. Como Jakobson observou, a relação do aumento
quantitativo do número das sílabas no paradigma lingüístico
corresponde a um aumento quantitativo no âmbito cognitivo.
As AVENTURAS DE ALI CE NO PAÍS DA SEMIOSE
Após a nossa investigação em torno da semiose na língua,
o tema central da discussão seguinte será o valor heurístico das
categorias peirceanas para o estudo de signos transformados no
mundo fictício da literatura, signos esses que, aparentemente, podem
parecer anomalias, mas que, no entanto, pelo princípio do desvio,
evidenciam as estruturas dos signos normais na semiose cotidiana.
Signos na semiose normal e no país das maravilhas
Tanto Aventuras de Alice no país das maravilhas (AM)
quanto Através do espelho e o que Alice encontrou lá (AE) nos
mostram regiões nas quais as leis do espaço, do tempo, da
linguagem e da lógica ficam parcialmente abolidas. As curiosidades
que lá acontecem envolvendo Alice fazem-na procurar constantemente por signos capazes de auxiliá-la a encontrar seu caminho
no País das Maravilhas. Algumas vezes, Alice é, de fato, bem-sucedida nesse empreendimento, orientando-se através de tais signos;
em outras, no País das Maravilhas, o processo de interpretação
ASEMIÓTICAAPl.JCADADEEXTRAÇÃO PEIRCEANA
105
sígnica é freqüentemente desorientador, incompreensível e até
mesmo enganador.
Signos na semiose cotidiana
Agarrafa "beba-me" (AM, IV) é um signo orientador no País
das Maravilhas. Alice verifica o rótulo da garrafa para certificar-se
de que ela não caracteriza o conteúdo como "veneno" ou outro
qualquer, uma vez que conhece o código estabelecido pelos
farmacêuticos e usuários de drogas químicas.
Notamos aí a presença de dois signos: o rótulo "veneno"
e a sua ausência, que é um signo zero. Alice não se engana ao
aplicar as regras desse código e interpreta o signo zero como
referência a um líquido bebível. Experimenta-o, acha-o "muito bom"
e não se envenena. Tais signos de orientação são interpretados
com sucesso com base em um código válido, e o resultado dessa
semiose está de acordo com as expectativas do intérprete.
A natureza do signo, em tais processos de semiose bemsucedida, pode ser especificada em termos da semiótica peirceana.
Conforme já dito, Peirce baseou sua semiose na tríade por ele
denominada "conexão tripla do signo, coisa significada e cognição
produzida na mente" (CP, 1.372).
Somente na semiose que serve para a orientação normal,
Alice encontra signos que se constituem em tríades completamente
desenvolvidas. Considere-se o signo zero da garrafa "beba-me":
o rótulo ausente é o representamen; o objeto do signo é a qualidade
química do líquido que Alice eventualmente bebe e seu interpretante,
ou seja, a cognição produzida na mente de Alice é o conhecimento
que ela detém sobre líquidos ingeríveis. Tal interpretante é, por si
mesmo, um signo mental mais desenvolvido, uma vez que, entre
outras coisas, a idéia de "não-venenoso" pertence à rede semântica
que contém a oposição entre líquidos bebíveis e não-bebíveis.
106
PAt()FWMDASEMIÓTICA
Signos na semiose do país das maravilhas
No País das Maravilhas, Alice não encontra apenas signos
de orientação. A presença constante de signos de desorientação
e as conseqüentes surpresas diante de acontecimentos estranhos
são atribuídas aos desvios da semiose normal na vida cotidiana.
Gostaria de discutir esses eventos semióticos sob o nome
de "semiose incompleta e transformada". Na semiose incompleta,
o intérprete desorienta-se porque um dos correlatos do signo não
pode ser identificado. As transformações dos signos no País das
Maravilhas são ou enganosas ou criativas: na semiose enganosa,
o signo cria expectativas semióticas que não se realizam; na semiose
criativa, os signos são usados quer na exploração de potencialidades
inesperadas de um código já existente, quer com base em um novo
código.
Tais anomalias na semiose do País das Maravilhas dirigem
a atenção do leitor para eventos da vida cotidiana. Ao transformar
os constituintes da tríade semiótica e outros elementos do processo
da semiose, Carrol! conseguiu dirigir a atenção do leitor para a
estrutura do signo em geral. Gostaria, pois, de investigar esses
processos metassemióticos, focalizando, um a um, os três correlatos
do signo.
O representamen
No País das Maravilhas, tomamos consciência do papel
do representamen na semiose quando ele está ausente ou é
transformado criativamente.
O representamen ausente
A ilustração mais evidente que Carrol! nos ofereceu do
questionamento do representamen por sua ausência está no "bosque
ASEMIÓTICAAPUCADADE EXTRAÇÃO PEIRCEANA
107
onde as coisas não têm nomes" (AE, Ili). Aí, Alice é incapaz de
designar lingüisticamente o bosque, o cervo e a si mesma. Mas
embora os representamens estejam ausentes, Alice não chega a
ficar totalmente desorientada. Ela sabe que está debaixo das árvores
("'debaixo disso aqui, ora!', disse, colocando a mão no tronco da
árvore.") e é capaz de encontrar seu caminho através do bosque.
Ela não perdeu, pois, a familiaridade com o objeto do signo, de
cujo nome ela não se lembra. Esse objeto chega a produzir uma
cognição subseqüente na sua mente que é seu interpretante, "um
signo equivalente ou talvez um signo mais desenvolvido", como
Peirce o define (p. 71 ). Esse novo signo mental mais desenvolvido,
que se reporta ao seu objeto, é a memória de que o bosque consiste
de árvores e de que nesse lugar o esquecimento dos nomes "então
terminou acontecendo" (AE, Ili).
As aventuras de Alice no bosque onde as coisas não têm
nome não prova que a semiose seja possível com signos sem
representamen. De fato, a ilustração que Carrol! nos forneceu dessa
situação não chega a ser radical ou suficiente como demonstração
de um caso extremo de semiose incompleta. O diálogo de Alice
com o cervo e sua caminhada através do bosque mostram que a
heroína ainda dispõe de muitos representamens para substituir os
nomes esquecidos. Essas substituições constituem processos de
semiose que ilustram muito bem o princípio peirceano da semiose
como "uma série de sucessivos interpretantes ad infinitum" (Peirce,
CP, 2.303, 2.92).
O representamen transformado
Considerado em si mesmo, o representamen que ora
discutimos é um quali-signo, um sin-signo ou um legi-signo. As
transformações criativas do representamen aparecem em todas
essas três conformações.
108
P.AJ\OFWv1ADASEMIÓTICA
O quali-signo transformado
A transformação não-usual de um quali-signo é tentada
pelos jardineiros da Rainha de Copas (AM, VIII). Depois de plantar
roseiras brancas em vez de vermelhas, os jardineiros esperam
reparar o que consideram um erro pintando as rosas brancas de
vermelho. Ora, a qualidade natural da brancura é um quali-signo
pelo qual a Rainha poderia detectar o erro; pintá-las seria uma
tentativa enganosa de manipular um quali-signo.
Uma transformação natural da qualidade visual dos signos
aparece no primeiro encontro de Alice com o poema "Jaguadarte"
na escrita especular (AE, 1). Pela simples inversão ótica das letras
impressas, o poema torna-se, à primeira vista, enigmático; e aí a
possibilidade de compreensão se dá apenas ao nível do quali-signo.
Com a reversão da imagem refletida num espelho, o quali-signo é
transformado em legi-signo, ou seja, em letras e palavras que formam
o poema.
Legi-signos transformados em sin-signos e quali-signos
Os signos da linguagem na semiose cotidiana funcionam
largamente por convenção. Na medida em que uma palavra está
regularmente associada a um dado significado, ela passa a funcionar
como um legi-signo. Em Alice no país das maravilhas encontramos,
entretanto, estranhas transformações de legi-signos lingüísticos
em sin-signos, no caso da distinção feita pelo Rei de Copas entre
os antônimos importante e desimportante (AM, XII):
"Isso é extremamente importante" disse o Rei,
voltando-se para o júri [. ..], quando o Coelho
Branco interrompeu: "Desimportante, é o que
Vossa Majestade quer dizer, é claro."
[. .. ]
AS8v11ÓTICAAPLICADA DE EXTAAÇÃO PEIRCEANA
109
"Oesimportante, é claro, foi o que quis dizer"
apressou-se o Rei a corrigir-se. E prosseguiu
falando para si mesmo, a meia voz: "Importante
- desimportante - desimportante - importante ... "
como se procurasse ver qual das palavras soava
melhor.
No princípio, o Rei está incerto quanto a usar o legi-signo
importante ou desimportante. Mais tarde, perde completamente a
pista da regra lingüística que distingue as duas palavras como
antônimas. Finalmente, ele se preocupa apenas com a mera
impressão sonora dessas palavras. Os legi-signos lingüísticos
degeneram-se, portanto, em meros quali-signos fonéticos .
O objeto
Conforme já foi visto (p. 67), o objeto do signo, na semiótica
de Peirce, é aquilo com que o signo "pressupõe uma familiaridade
a fim de veicular alguma informação ulterior sobre ele" (Peirce, CP,
2.231 ). Quando ele está 'fora do signo", sendo a realidade "que o
signo só pode indicar'', ele é chamado objeto real ou dinâmico.
Quando ele é uma cognição produzida na mente do intérprete como
representação mental de tal objeto, ele é chamado de objeto
imediato.
Carrol\ ilustra o papel do objeto na semiose de dois modos:
ou sugerindo sua ausência ou transformando as relações que
normalmente existem entre o representamen e seu objeto na
semiose cotidiana.
O objeto ausente
No País das Maravilhas, a desorientação semiótica em
razão do correlato do objeto é particularmente freqüente com os
110
P.AN:>RAMADASEMIÓTJCA
signos indexicais. O rótulo Marmelada Laranja, por exemplo, num
pote vazio no buraco do coelho (AM, 1) é um representamen cujo
objeto imediato é uma cognição que dirige Alice a esperar marmelada
como objeto real dentro da jarra. Porém, uma vez que o pote está
vazio, o objeto real está ausente.
A semiose sem um objeto dinâmico ou real não é uma
anomalia em si mesma. Peirce sabia que o "objeto fora do signo"
poderia estar ausente, poderia até mesmo não existir ou ser
"totalmente fictício". Alice, porém, na sua mentalidade semiótica
infantil, defende o realismo e insiste na existência da realidade
manifestada em objetos dinâmicos. Ela fica, por isso, "grandemente
desapontada" ao descobrir que não havia marmelada como objeto
real do signo indiciai (o rótulo) no pote. Em outro lugar, Alice até
mesmo exprime o seu realismo explicitamente: quando Tweedledum
sugere que Alice poderia ser tão-somente um objeto-sonho fictício,
ela protesta gritando: "Eu sou real sim!" (AE, IV).
Além desse tópico de realismo semiótico, há uma outra
forma típica de questionar o objeto na semiose do País das
Maravilhas: a ausência do objeto dinâmico na semiose indiciai. O
signo-marmelada foi o primeiro exemplo; o outro é o signo "RAINHA
ALICE", em letras maiúsculas na porta (AE, IX), o que a desapontara
porque, de fato, a entrada havia sido recusada pela Rã-Serva. Surge
a dúvida: será que não é realmente seu o palácio que o signo na
porta indicara? Assim também os indicadores "PARA A CASA DE
TWEEDLEDUM" e "À CASA DE TWEEDLEDEE" (AE, Ili) são
questionáveis quanto à sua confiabilidade em relação ao objeto
dinâmico para o qual apontam, encontrando os dois Tweedles
meramente "de pé sob uma árvore" (AE , IV).
A questão que se levanta a partir dessas e outras situações
de semiose indiciai desorientadora é se o objeto dinâmico- a casa
- está simplesmente ausente na situação significada ou se ele está,
antes de tudo, em absoluta falta. Na possibilidade dessa última
ocorrência, o índice adquire feições de um signo enganador, um
signo que não aponta para nenhum objeto, sendo, portanto, causa
ASEMIÓTICAAAJCADADEEXTRAÇÃOPEIRCEANA
111
de desorientação, como no poema Prova (AM, XII) e no poema
Quatro Estações de Humpty Dumpty (AE, VI) . Aí, os índices
desorientadores são as palavras dêiticas, cujos objetos de referência
situacional (exofórico) e contextual (endofórico) estão vazios. No
início de Prova (AM, XII: "Disseram-me que foste perto dela, I Dando
a ele o meu nome, sem pensar.") todos os pronomes pessoais estão
exoforicamente vazios. Não sabemos para quem essa carta se dirige
e quais seriam as outras pessoas referidas. Enquanto o Rei deseja
tirar proveito do vazio exofórico que se forma, declarando arbitrariamente o acusado (Valete) como objeto dinâmico do pronome
você, Alice revela ser inadmissível tal interpretação ao exclamar:
"Se algum deles é capaz de explicar os versos[ ...] eu lhe darei
seis pence. Quanto a mim, acho que não há neles a menor partícula
de sentido".
No poema "Quatro Estações", de Humpty Dumpty, o vazio
referencial é extensivo à referência endofórica. Nas linhas (AE, VI),
Eu mandei um recado aos peixes:
Disse-lhes: - Este é o meu desejo.
E eis que os peixinhos lá do mar,
Me responderam sem tardar.
A resposta dos peixes foi
- Impossível, meu caro, pois...
o conteúdo da mensagem ea resposta permanecem ocultos, embora
sejam referidos endoforicamente pelos pronomes indexicais "eu"
e"este". Mesmo a conjunção "pois" funciona como índice lingüístico
vazio. A razão pela qual ela promete indicar não é expressa.
112
PANOFWAADASEMIÓTlCA
Símbolos e índices de desorientação e icones
transformados
Considerando a relação entre representamen e objeto na
tricotomia ícone-índice-símbolo, aparecem várias novas formas de
desorientação ou surpresa no País das Maravilhas.
Símbolos desorientadores
Num país estrangeiro, tal como o País das Maravilhas, em
primeiro lugar é o código dos símbolos que permanece enigmático
ao visitante. Humpty Dumpty, ao explicar o poema "Jaguadarte",
chega a sugerir que existem linguagens incompletas, sistemas de
símbolos arbitrários que o visitante tem, necessariamente, de aprender. Também não há símbolos não-lingüísticos que Alice tenha
aprendido a decodificar.
O código dos uniformes e brasões militares - nos quais
os dois Tweedles estão armados- é um desses códigos simbólicos:
Tweedledum está usando aquilo que "ele chamava de elmo, embora
parecesse muito mais com uma caçarola" (AE, IV). A função do
elmo-caçarola no código militar de Tweedle não é naturalmente
aparente. Assim, Alice tem de aprender que aquela peça do vestuário
é um elemento desse código. A arbitrariedade de se conferir uma
função marcial a esse objeto, de outro modo pacífico, é que dá ao
signo o caráter simbólico.
Entretanto, a experiência semiótica no País das Maravilhas
nem sempre pode depender do ensino. Alice consegue mesmo
decodificar símbolos utilizando ícones ou índices contextuais, típicos
signos naturais que não precisam ser ensinados.
A orientação icônica na desorientação simbólica
Que os ícones são importantes para a orientação de uma
criança no mundo simbólico é uma das primeiras idéias expressas
ASEMIÓTICAAPUCADADEEXTRA.ÇÃOPEIRCEANA
113
por Alice (AM, 1): "De que serve um livro", ela se pergunta, "sem
figuras nem diálogos?"
Mais tarde, quando Alice quer saber o significado de uma
"corrida de comitê", descobrimos que os ícones podem até mesmo
servir como meio para o ensino de códigos simbólicos convencionais:
O método para explicar o significado de "corrida de comitê" proposto
pelo Dodó é executar essa corrida, portanto, produzir um ícone do
signo simbólico "corrida de comitê". O Dodó diz: "A melhor maneira
de explicar isso é fazê-lo" (AM, Ili).
A orientação indiciai na desorientação simbólica
A importância especial dos signos indexicais em situações
nas quais a comunicação simbólica se rompe é particularmente
evidente no bosque onde as coisas não têm nomes (p. 107). No
bosque, onde representamens simbólicos não estão disponíveis,
os signos indexicais continuam a fornecer, pelo menos, uma
orientação mínima para Alice. Ela designa a árvore por meio da
palavra indiciai "isso" e por meio do gesto indiciai que aponta para
o seu tronco. Tal substituição gestual dos símbolos arbitrários por
meios indiciais, mais diretos e naturais, bem ilustra uma regressão
a estágios anteriores da evolução humana onde os modos de
semiose ainda eram precários.
Índices enganadores na desorientação simbólica
O melhor exemplo de índices desorientadores está no
poema "Jaguadarte" (AE, 1): "Era briluz. As lesmolisas louvas I
Roldavam e relviam nos gramilvos". Uma vez que Alice não pode
decodificar os símbolos desse poema, a saber, raízes lexicais como
bril-, lesmolis- etouv-, ela considera o poema "um pouquinho difícil
de entender". No entanto, reconhece alguns morfemas gramaticais
e derivacionais que funcionam como índices lingüísticos, tal como
114
PANORAMA DA SEMIÓTICA
era, as, -as, -avam, - iam ou nos. Por isso, o poema, "de algum
modo, parece encher a sua cabeça de idéias". 25 Porém, os índices
que deveriam indicar relações estruturais entre os símbolos
lingüísticos são, na verdade, signos enganadores, uma vez que
nenhuma relação pode ser indicada com precisão se os conectivos
essenciais para tanto estão ausentes.
Índices de desorientação
Na nossa investigação do objeto ausente já vimos que os
índices no País das Maravilhas sempre estão contribuindo para
desorientar Alice. Mas índices também ocorrem na linguagem das
demais criaturas no País das Maravilhas. Éo que veremos a seguir.
Desorientação proporcionada por um índice
Os índices na linguagem aparecem tanto nos modos de
referência exotéricos ou situacionais quanto nos modos endofóricos
ou tex1uais.
Na referência endofórica, o índice lingüístico aponta para
trás e para frente do discurso, sendo, respectivamente, uma anáfora
ou uma catáfora. Ambas as direções da indicialidade endofórica
são confundidas pelo Pato quando ele interrompe o Rato na sua
história árida sobre a conquista normanda (AM, Ili):
"[. .. ] e até Stigand, o patriótico arcebispo de
Cantuária, achando isso conveniente ... "
25. Na edição portuguesa de AE, p. 148, linha 4, falta a tradução
da passagem seguinte: "Somehow it seems to fill my head
with ideas - only 1don't exactly know what they are! However,
somebody killed something: that's clear, at any rate-".
ASEMIÓTICAAPLICADADEEXTRAÇÃOPEIRCEANA
115
"Achando o quê?" perguntou o Pato.
"Achando isso," replicou o Rato,já meio aborrecido.
"Naturalmente você sabe o que 'isso ' quer dizer."
"Sei muito bem o que 'isso' quer dizer quando sou
eu que acho alguma coisa" explicou o Pato. "Em
geral, uma rã ou um verme. Mas a questão é: o
que foi que o arcebispo achou?"
O Rato não tomou conhecimento da pergunta e
prosseguiu às pressas: "achando isso conveniente,
foi com Edgar Atheling ao encontro de Guilherme
e ofereceu-lhe a coroa".
O Rato usa o pronome isso numa construção chamada
extraposição. O isso extraposto antecipa cataforicamente o objeto
!rasai adiado ("foi com Edgar A."). Assim, o pronome torna-se um
índice sintático que só pode ser interpretado em referência ao objeto
!rasai subseqüente, que ele antecipa. OPato, no entanto, interrompe
imediatamente sua fala após o isso extraposto, porque essa palavra
é interpretada ou como um pronome anafórico ou como pronome
exofórico, índices que deveriam ser precedidos ou acompanhados
situacionalmente por seus referentes, nesse caso ausentes.
Toda essa confusão encontra paralelo no equívoco do uso
do verbo "achar". Nas construções extrapostas que o rato tem em
mente, o uso do verbo "achar" é, com certeza, um encontro figurativo
de idéias. A compreensão do pato, no entanto, se restringe à
interpretação literal de "encontrar" um objeto físico. Nesse sentido,
o verbo achar não ocorre em construções extrapostas, na língua
portuguesa.
116
PANORIWADASEMIÓTICA
Desorientação pelo uso abusivo de índices como símbolos
Em contraste com um símbolo tal como a palavra "dia" que o interpretante pode relacionar com o seu objeto sem conhecer
quando e onde tal representamen foi produzido -, um índice
temporal, tal como a palavra "hoje", só pode ser relacionado ao
seu objeto num certo dia, num certo mês e ano, quando o intérprete
sabe o momento da enunciação.
Os índices são, assim, representamens com coordenadas
espaço-temporais fixas. Enquanto um índice muda, enquanto seu
objeto referencial e as coordenadas do seu representamen se
alteram, o símbolo basicamente continua a se referir ao mesmo
objeto, não importando se o tempo e o espaço da produção do signo
variam . A característica da indicialidade é seriamente negligenciada
pela Rainha Branca quando ela oferece a Alice os seguintes
pagamentos para um emprego como camareira (AE, V) :
"Dois pence por semana e doce todos os outros
dias[... ] A regra é: doce amanhã e doce ontem e nunca doce hoje. n
"Algumas vezes tem de ser 'doce hoje' " objetou
Alice.
"Não, não pode" disse a Rainha. "Tem de ser
sempre doce todos os outros dias: ora, o dia de
hoje não é outro dia qualquer, como você sabe."
"Não estou entendendo nada" disse Alice. "É
horrivelmente confuso."
Por definição, uma regra é essencialmente um legi-signo
simbólico. Ela é válida independentemente do tempo e do lugar
de sua enunciação. "Doce todos os outros dias" seria uma regra
ASEMIÓTICAAPLICADA DE EXTRAÇÃO PEIRCEANA
117
aceitável mesmo que seu objeto de referência fosse vazio, visto
que o tempo dos eventos referidos pode ser ou o conjunto dos dias
pares ou dos dias ímpares do mês. A Rainha, no entanto, abusa
dessa regra ao interpretar seus símbolos temporais como índices
cujos objetos referenciais mudam com o tempo da enunciação. Sua
interpretação ("doce amanhã e doce ontem"), sendo dependente
do seu tempo de enunciação específico, não é, de fato, uma
paráfrase válida da regra, mas apenas uma aplicação dela ao
momento de sua enunciação. Porém, a Rainha quer elevar essa
sentença, duplamente indiciai, à categoria de legi-signo simbólico.
Ela quer que sua pseudo-regra indiciai - "doce amanhã e doce
ontem" - seja considerada válida em qualquer momento dessa
enunciação, como uma regra verdadeiramente simbólica. Com a
mudança diária do tempo de enunciação, haveria também uma
mudança diária do seu objeto - o tempo do evento - o que resultaria
num adiamento indefinido do dia de pagamento de Alice.
!conicidade transformada
No País das Maravilhas, signos icônicos são, às vezes,
auxiliares semióticos em meio à desorientação, mas outras vezes
funcionam também como surpresa, revelando um potencial até então
desconhecido de criatividade. Essa criatividade é explorada com
ícones da categoria imagem e da categoria dos diagramas.
Opotencial criativo por meio de imagens aparece com muita
evidência nas experiências de Carroll com o efeito especular e com
o potencial icônico da tipografia.
À primeira vista, o mundo por detrás dos espelhos parece
um ícone otimizado do mundo original refletido. Mas Alice sabe
que é um mundo inverso: "A sala que a gente vê do outro lado do
espelho - é igualzinha à nossa sala de visitas, só que está tudo
ao contrário" (AE, 1). A inversão pelo espelho continuará a ser
tematizada em todo o livro, chegando ao apogeu com o poema
"Jaguadarte", todo escrito em forma invertida.
118
PAl\ORMfiADAS8v11ÓTlCA
O potencial icônico da tipografia é sobretudo explorado
em dois lugares dos livros de Alice: no poema figurativo em forma
de rabo de rato (AM, Ili) e no uso de uma letra pequena para
representar a "vozinha muito baixa" do inseto (AE, Ili), pormenor
infelizmente perdido na tradução portuguesa (p. 162). Nesse último
caso, temos exemplo de duplo ícone: de um lado, a forma curvilínea
da disposição do texto e, de outro, o representamen "tail" ("rabo"),
imagem fonética do homófono '1ale" ("história"), proporciona um
jogo entre forma e conteúdo no conjunto total.
Um outro grupo de ícones transformados são os diagramas.
Oprincípio predileto de transformação que Carroll aplica é a inversão
da ordem seqüencial. Acontece tal situação quando Alice se encontra
com Humpty Dumpty (AE, VI) e soluciona o problema algébrico
da subtração de 1 em 365, utilizando um ícone diagramático para
chegar mais facilmente à solução (364). Porém Humpty Dumpty
tem dificuldades em entender o diagrama, uma vez que ele o lê
invertido, alterando a operação matemática da subtração para a
da adição (AE, VI).
Outro exemplo memorável de inversão diagramática ocorre
no tribunal do Rei de Copas (AM, XI 1). O Rei estabelece que a regra
mais antiga de seu caderno de anotações era o "Artigo Quarenta e
Dois: Todas as pessoas com mais de um quilômetro e meio de altura
devem abandonar o recinto do tribunal." Alice, porém, revela que o
número dessa regra indicava um caso de diagramaticidade desnaturada. Se fosse a regra mais velha no caderno, ela observa, "nesse
caso, devia ser o Número Um". Logo depois, a Rainha segue o Rei
numa outra tentativa de inverter a iconicidade diagramática na ordem
das coisas, quando exige, "Primeiro a sentença, o veredito depois".
O interpretante
Anomalias relativas ao interpretante aparecem no caso de
ausência ou da determinação arbitrária do signo "criado na mente
do intérprete" (Peirce, CP, 8.179).
ASEMIÓTICAAPUCADADE EXTRAÇÃO PEIRCEANA
119
O interpretante ausente
No País das Maravilhas o interpretante se torna problemático todas as vezes em que Alice encontra signos cujos
significados não pode saber sem a ajuda de outras pessoas. Ouvindo
o poema "Jaguadarte" (AE VI), Alice pergunta ao Humpty Dumpty:
"E o que quer dizer 'grilvos '?"
"Penso que deve ser uma mistura de gritos com
silvos bem agudos, com algo parecido com o chilro
dos grilos. Aliás, você ouvirá esse som em breve,
talvez lá na floresta. E ao ouvi-lo, ficará muito
satisfeita, creio."
"Grilvos" é um representamen que não tem interpretante
no código da língua de Alice. Humpty assegura que há um interpretante para ela e o define por meio de uma paráfrase. A sua definição tem todas as características peirceanas de um interpretante
(p. 71): é um signo "mais desenvolvido", o qual Humpty diz que
equivale ao significado de "grilvos". Mas para Alice, não só o
interpretante, mas também o som ao qual Humpty se refere como
objeto do signo, são problemas semióticos. Alice nunca ouviu tal
som e nunca o ouvirá durante as suas aventuras. Portanto, neste
processo de explicação semiótica, o critério peirceano que diz que
a "cognição do interpretante supõe conhecimento do objeto enquanto
lhe confere um conhecimento ulterior sobre este objeto" (Peirce,
CP, 2.231) não pode ser cumprido.
O desconhecimento dos interpretantes é também a causa
pela qual o Aguioto não compreenderá o Dodó (AM, Ili), mas, dessa
vez, as palavras do Dodó pertencem certamente ao código da língua
inglesa. Só o conhecimento deste código seria suficiente para o
Aguioto entender o sentido das palavras eruditas do Dodó, que são:
"Proponho que o conclave seja suspenso, para a imediata adoção
de medidas mais operacionais[ ... ]".
120
PAl\ORAMADASEMIÓTICA
Interpretante privado
Humpty Dumpty é quem propõe uma língua privada, um
sistema em que os interpretantes dos signos são determinados por
ele próprio, porque o seu mote é "Quando uso uma palavra[ ... ]
ela significa exatamente aquilo que eu quero que signifique[ ...] nem
mais nem menos" (AE, VI) . A impossibilidade da comunicação sob
essa base é bem conhecida.
Uma outra idéia idiossincrática que Humpty tem sobre o
significado das palavras é que os nomes próprios "devem significar
alguma coisa" (AE, VI) . O interpretante que ele declara pertencer
ao seu próprio nome parece, à primeira vista, mais um exemplo
da sua semântica privada: "O meu nome significa a forma que tenho".
Nomes - como Alice adivinhou ao perguntar "deve um nome
significar alguma coisa?" - são signos indexicais com a função de
identificar uma pessoa e distingui-la de outra. Nomes também são
símbolos, signos que têm algum sentido por outra convenção, além
da identificadora. Porém, no seu caso particular, Humpty tem razão
em descobrir mais do que isso no seu nome que é, de fato, um
nome onomatopéico. O nome Humpty Dumpty contém duas vezes
o fragmento morfemático "-ump-" que também ocorre nas palavras
inglesas "hump" ("corcova") e "lump" ("montão"), indicando algo
compacto e pesado. Este conteúdo é bem idôneo para servir como
interpretante de Humpty Dumpty, cuja forma é "exatamente como
a de um ovo", conforme Alice observa.
O interpretante final ausente
Uma obra literária como a de Lewis Carrol! é uma obra
aberta a leituras de diversos níveis. Nossa leitura permaneceu
apenas num nível particular; há outros aspectos a estudar sem que
o esforço interpretativo comum dos estudantes dessa obra possa
um dia chegar a uma conclusão definitiva sobre seu significado.
ASEMIÓTICAAPLJCADADEEXTRAÇÃOPBRCEANA
121
Aobra literária é, portanto, um signo sem interpretante final,
no sentido que Peirce dá a essa expressão. A obra sempre
continuará aberta a interpretações imprevistas, até mesmo por parte
de seu autor. Carrol! parece ter adivinhado a característica evolutiva
dos seus textos quando escreveu o seguinte a uma amiga: 26
Sti/I, you know, words mean more than we mean
to express when we use them; so a who/e book
ought to mean a great dea/ more than the writer
means. So whatever good meanings are in the
book, J am glad to accept as the meaning of the
book.
Assim, podemos concluir que, mesmo se Carrol! nãotiv !SSe
previsto como interpretante dinâmico todas as implicai ões
interpretativas da nossa leitura peirceana, ele deveria, ao me os,
aceitá-la como interpretante imediato, quer dizer, como um dos
sentidos possíveis de sua obra.
26. Em C. J. Wollen, "Lewis Carroll philosopher", Hibbert Jouma/
46 (1947), p. 63.
V
PEIRCE E AS BASES
SEMIÓTICAS DO
PARADIGMA COGNITIVO
Depois de nossa digressão pela semiótica aplicada, gostaria
de voltar, neste último capítulo, a algumas questões da semiótica
geral. O assunto é interdisciplinar - a relação entre a semiótica e o
paradigma das ciências cognitivas, como esse paradigma tem se
desenvolvido e assumido caráter dominante nas ciências humanase de grande interesse para o futuro da semiótica.27
Ciências rivais ou irmãs?
Tanto a semiótica quanto as ciências cognitivas têm sido
desenvolvidas como ciências transdisciplinares. Será que ocrescimento
recente das ciências cognitivas não é um índice de substituição iminente
da semiótica pelo novo paradigma? Enquanto alguns autores já evocaram
o espectro do fim da semiótica na era do cognitivismo, outros têm
previsto uma revolução cognitivista no próprio quadro da semiótica.
Por outro lado, um autor como T. A. Sebeok (1991: 2) declarou que a
semiótica é uma ciência cognitiva avant la /ettre e que as ciências
cognitivas são, em si mesmas, variantes da semiótica.
Diante desse panorama, quais são as direções das ciências
que começam a ser vislumbradas?
27 . Este artigo resume idéias previamente publicadas em
Semiosis (Stuttgart) 73 (1994), p. 5-16.
Ü GIRO COGNITIVO E A HISTÓRIA DA FILOSOFIA
DA MENTE
Conforme a historiografia normal das ciências cognitivas, o
paradigma cognitivo não é de maneira nenhuma oposto à semiótica,
mas surgiu das cinzas do behaviorismo. Na área da psicologia, a
história dessa ciência no nosso século tem até sido considerada como
seqüência de só duas eras: a do behaviorismo e a do cognitivismo
(cf. Knapp, 1986: 13).
Porém, a partir da perspectiva mais geral da história das
ciências humanas, o giro cognitivo não tem sido só uma substituição
de um paradigma por um outro, mas também uma restrição do escopo
das ciências da mente. Defato, apsicologia, nas suas origens, começou
com uma divisão do estudo da mente em três partes: cognição, afeição
e conação (ou: conhecimento, sentimento e volição).28 Essa tríade
pode ser encontrada já nas obras de Christian Wolff (1679-1754) e
Alexander Baumgarten (1714-1762), que distinguem uma facultas
cognoscitiva, uma facultas sensitiva e uma facultas appetiva. A
28. Cf. E. R. Hilgard, "Thetrilogyofmind", Journalofthe History
of lhe Behavioral Sciences 16 (1980). p. 107-17.
PEIRCE E AS BASES SEMIÓTICAS ..
127
tríade étambém aparente na obra de lmannuel Kant (1724-1804),
com suas três críticas: da razão pura (cognição), do julgamento
(sentimento de prazer e dor) e da razão prática (volição e ação).
Nessa ampla tradição, o paradigma cognitivo já começa a
ser cr~iado
pelo seu descuido para com a dimensão afetiva da mente.
Essa crítica advém também de considerações sobre a estrutura de
funcionamento do cérebro humano, no qual a diferenciação evolutiva
entre neocortex (que coordena a cognição) edo sistema límbico (que
coordena os afetos) fornece evidência para pensarmos a autonomia
modular dos afetos e das cognições (cf. Maclean, 1972).
COGNIÇÃO NA SEMIOSE
Na filosofia de Peirce,atríade tradicional da mente corresponde
às suas três categorias de primeiridade, secundidade eterceiridade.
O sentimento pertence à primeiridade, a categoria do imediato e das
qualidades ainda não diferenciadas. Avolição pertence à secundidade,
categoria da interação diádica entre o eu e o outro (um primeiro e um
segundo). Acognição pertence à terceiridade, categoria da comunicação,
da representação "entre um segundo e um primeiro" (CP, 5.66).
Embora cada categoria seja irredutível em si mesma, as mais
elevadas pressupõem as mais baixas. Nesse sentido, o sentimento
não é secundário à cognição mas está contido nela e faz a mediação
entre o sentimento e a volição. Conforme Merrell indica, sentimento,
volição e cognição também correspondem aos três constituintes do
signo, de acordo com Peirce. O representamen, percebido na sua
imediaticidade, pertence ao sentimento: "Aquilo no lugar do qual ele
está, o objeto, é um outro diferente do eu e sujeito à volição. E a idéia
que o representamen origina éoseu interpretante, que também resulta
numa atividade cognitiva" (Merrell, 1971 : 27).
Acognição é, portanto, um elemento constitutivo no processo
do signo triádico ou semiose, tal como Peirce (CP, 5.484) define o
processo em que o signo tem um efeito cognitivo no seu intérprete.
PEIRCE E AS BASES SEMIÓTICAS...
129
Mas a semiose não pode ser reduzida à cognição. Ela pressupõe a
percepção, um processo triádico29 gerado na consciência do observador
a partir de um nível de sentimento imediato ainda indiferenciado, no
qual ele é "meramente a qualidade de um signo mental" (Peirce, CP,
5.291).
Além de estar enraizada na tríade que forma junto ao sentimento
eà volição, nesta moldura semiótica, acognição é parte de uma cadeia
infinita de semiose ilimitada, de acordo com a qual ela "é determinada
por uma cognição prévia" na mente do intérprete. As cognições são,
conseqüentemente, nós na rede semiótica ilimitada que tem suas
fundações no princípio de que '1odo pensamento é um signo" que
"deve se dirigir a um outro, deve determinar algum outro, visto que
essa é a essência de um signo" (Peirce, CP, 5.253).
29. Cf. Lucia Santaella, "A triadie theory oi perception", in: R.
J. Jorna, 8. van Heusden, R. Posner (eds.), Signs, search
and communications, Berlin, de Gruyter, 1993, p. 39-47.
C OGNI ÇÃO, CO NCEI TU ALIZAÇÃO E ICO NI CIDADE
Oparadigma cognitivo não é de modo algum homogêneo nas
suas suposições básicas. Além disso, há também incompatibilidades
entre correntes cognitivas diversas no seu estudo da mente. Lakoff
(1987: xii-xv), por exemplo, opõe sua visão "experimentalista'' da cognição
às vertentes "objetivistas" do estudo da mente. A semiótica, por outro
lado, não é menos diversificada nas suas correntes de estudo dos
sistemas sígnicos e, nesse contexto, é importante notar que nem
todos os paradigmas da tradição semiótica são igualmente compatíveis
com as visões mantidas pelos cognitivistas .
A semiótica, na tradição saussureana do modelo diádico do
signo, é um paradigma essencialmente incompatível com as suposições
básicas da ciência cognitiva. Uma delas é a hipótese cognitivista da
motivação do pensamento e da linguagem pela experiência corporal,
a conformação biológica e raízes evolucionistas dos seres humanos.
De acordo com avisão que Lakoff (1987: xiv) tem da motivação
cognitiva da linguagem, "o coração dos nossos sistemas conceituais
está diretamente fundado na percepção, no movimento corporal e na
experiência de caráter físico e social". Tal visão não seria endossada
pelos semioticistas da tradição diádica do signo que vai de Saussure,
PEIRCE E AS BASES SEMIÓTICAS. ..
131
via Hjemslev, até Greimas. Conforme o dogma saussureano da
arbitrariedade, aestrutura dos conceitos lingüísticos é essencialmente
imotivada por fenômenos não-lingüísticos. O pensamento antes da
linguagem seria apenas uma massa amorfa eindistinta, uma nebulosa
vaga não delimitada. Para essa tradição, "as idéias não existem antes
da linguagem; nada é distinto e inteligível antes do aparecimento da
linguagem". 30
Asemiótica na tradição do signo triádico peirceano, ao contrário,
não é apenas compatível com a hipótese de a linguagem ser
cognitivamente motivada, como também é capaz de fornecer moldura
teórica apropriada para esse princípio cognitivista através da categoria
do signo icônico, cujas "qualidades assemelham-se àquelas do seu
objeto" (Peirce, CP, 2.299). Na medida em que um signo lingüístico
ou padrão sintático é motivado cognitivamente pela estrutura da
experiência corpórea, ele é um signo icônico. Note-se que a teoria
semiótica da iconicidade não adota o realismo ingênuo que Lakoff
(1987: 13) imputa à visão objetivista da cognição, a visão de que
"uma vez que a mente humana faz uso de representações internas
da realidade externa, a mente é um espelho da natureza e a razão
correta espelha a lógica do mundo externo".
Na moldura da semiótica peirceana, o objeto do signo verbal
icônico não éde modo algum qualquer parte da realidade. Particularmente,
um signo motivado por uma experiência corporal prévia é icônico das
formas da cognição humana e seu objeto, a cognição motivadora, é
assim, ela mesma, de uma natureza semiótica. 31
A referência icônica não relaciona o signo com um referente
externo, mas ocorre dentro do processo da semiose. Conforme Peirce
colocou em 1902, "o objeto do signo, aquilo a que ele virtualmente,
30. Ferdinand de Saussure, Curso de lingüística geral, São
Paulo, Cultrix, (1916) 1969, p. 130 e Winfried Nõth, 1996,
p. 33.
31 . Cf. Lucia Santaella, op. cit., "Charles S. Peirce's object (oi
lhe sign)", ín: Versus 49 (1988), p. 53-8.
132
PANORAMA DA SEMIÓTICA
pelo menos, professa ser aplicável, só pode ser ele mesmo um signo"
(Pearce, 1967, manuscrito 599).
A explicação da motivação cognitiva na linguagem como
semiose icônica étambém compatível com o postulado cognrtivo de
Lakoff (1987: xiv) de que "o pensamento é imaginativo, na medida em
que aqueles concertos que não estão diretamente fundados na experiência
empregam metáfora, metonímia e imagens mentais, todas elas indo
além do espelhamento literal ou representação da realidade externa".
A natureza imaginativa da cognição, à qual Lakoff se refere nesse
postulado, reporta-se às variedades da semiose icônica que Peirce
distingue corno aimagética, adiagramática eametafórica, hoje, fundação
da semiótica lingüística.
MODELOS DE COGNI ÇÃO COMO MODELOS DE
SEMIOSES
Holenstein (1990: 106) apontou para o fato de que o giro do
behaviorismo para o paradigma cognitivista se fez acompanhar por
um giro da metalinguagem fisicalista para a semiótica. Em lugar de
categorias físicas,tais como energia,tensão,descarga, impulso, atração,
repulsão ou reforço, o novo paradigma usa categorias que se referem
a signos e processos sígnicos. Representação, imagem, informação
ou código, programa e computação são os termos do novo paradigma
Este giro de metalinguagem fisicalista para asemiótica caminha
paralelamente com a mudança de uma lógica das relações diádicas,
que são básicas na física clássica (tais como causa-efeito, estímuloresposta), para relações triádicas,que estão subjacentes aos processos
semióticos.32 Examinemos, no que se segue, alguns termos-chave
da ciência cognitiva, para que se possa investigar em mais detalhes
sua natureza semiótica.
32. Cf. John Deely, lntroducing semiotic, Bloomington, Indiana
Univ. Press , 1982 , p. 95 . Ver também Dan Nesher,
"Understanding sign semiosis as cognition", in: Semiotica
79 (1990), p. 4.
134
PANORAMA DA SEMIÓTICA
Cognição como interpretante e signo equivalente
Já comentamos brevemente sobre a natureza semiótica da
cognição, o termo do qual a ciência cognitiva buscou seu nome. A
tríade semiótica do signo veículo (representamen), objeto e interpretante
(p. 65, 128) constitui o signo como "um representamen do qual algum
interpretante éacognição de uma mente" (Peirce, CP, 2.242). Acognição
funciona então em primeiro lugar como o interpretante de um signo,
que Peirce (CP, 8.179) também define como o pensamento ou idéia
"criada na mente do intérprete" de um signo. No entanto, uma vez
que o pensamento, e, portanto, a cognição, de acordo com Peirce
(CP, 5.283), é somente possível através de signos, o interpretante
de um signo também funciona ele mesmo como um signo. Na cadeia
infinita de semioses, a cognição é, portanto, um "signo-pensamento
[... )traduzido ou interpretado por um subseqüente" (CP, 5.284).
Givón (1989:21, 71) adota anoção peirceana de interpretante
como uma base de sua gramática cognrtiva,usando-a como um sinônimo
do "contexto percebido"dos signos da linguagem. Uma vez que "contexto"
comum ente se refere à dimensão sintagmática dos signos da linguagem,
essa interpretação pode ser enganadora. Arelação entre orepresentamen
eseu interpretante é mais uma relação paradigmática, uma vez que
ambos os signos estão em uma relação de equivalência semiótica ao
referir-se ao mesmo objeto. Como assinala Peirce (CP, 2.228), osigno
criado na mentede um intérprete é"um signo equivalente,ou talvez um
signo mais desenvolvido".
A relação de equivalência é também central para o paradigma
cognitivo. Ela caracteriza, por um lado, a relação lógica entre o domínio
do representante e do representado de uma representação cognitiva
(p. 135) e é, por outro lado, importante para o processo mental de
assimilação de novas cognições. Neste último sentido, Minsky (1986:
57)'33 define acompreensão como um processo em que representamos
33. Ver também: Thomas A. Sebeok, Semiotics in lhe United
States, Bloomington, Indiana Univ. Press, 1992, p. 4.
PEIRCE E AS BASES SEMIÓTICAS ...
135
tudo o que énovo como se essa coisa nova se assemelhasse a algo
que já conhecemos. Sempre que o funcionamento interno de uma
nova coisa é bastante estranho ou complicado de se lidar diretamente,
representamos quaisquer que sejam suas partes em termos de signos
mais familiares. Desta forma, fazemos com que cada novidade pareça
similar a algo mais comum .
Representações mentais, modelos e iconicidade
Aciência cognitiva investiga significados como representações
mentais e descreve a compreensão como um processo de construção
de modelos mentais.34 Anatureza semiótica destes processos éóbvia
para cognitivistas e semioticistas.
Johnson-Laird (1988a: 28) enumera "percepções, idéias,
imagens,crenças, hipóteses, pensamentos ememórias" como exemplos
de representações mentais e especifica que ·~odas
estas entidades
[... ]são símbolos de um ou de outro tipo". Em termos de semiótica
peirceana, o argumento é que "cada pensamento, ou representação
cognitiva, é da natureza, do signo. "Representação" e "signo" são
sinônimos" (Peirce, CP, 8. 191 ).
Tendo como base a ciência cognitiva, Palmer (1978: 262)
define o conceito de representação da seguinte maneira:
Uma representação é, primeiro e antes de mais
nada, algo que está no lugar de outra coisa.
Em outras palavras, é algum tipo de modelo
da coisa (ou coisas) que ela representa. Esta
descrição implica a existência de dois mundos
34. Cf. Philip N. Johnson-Laird, "How is meaning mentally
represented?", in: U. Eco, M. Santambrogio & P. Violi (eds.),
Meaning and mental represenfafions, Bloomington, Indiana
Univ. Press, 1988b, p. 99, 110.
136
PANORAMA DA SEMIÓTICA
relacionados mas funcionalmente separados:
o mundo representado e o mundo
representante . A função do mundo
representante é refletir alguns aspectos do
mundo representado de alguma maneira. Nem
todos os aspectos do mundo representado precisam ser modelados, nem todos os aspectos
do mundo representante precisam modelar um
aspecto do mundo representado. No entanto,
deverá haver alguns aspectos correspondentes
se um mundo representar o outro.
A base semiótica dessa concepção cognitiva de representação é, por um lado, o ingênuo modelo diádico, não odo tipo saussureano,
mas aquele baseado na hipótese realista de uma simples oposição
signo/objeto ou mente/mundo. Por outro lado, Palmer defende a visão
de iconicidade na representação mental. De maneira similar, Jorna
(1990: 31 , 35) define representação como o mapeamento de estruturas
de um domínio representado referindo-se àquelas de um domínio
representante, onde a relação entre os dois domínios éde equivalência
ou semelhança (portanto iconicidade). Como Joma (1990: 37) assinala,
os conceitos fundamentais da ciência cognitiva, tais como modelo,
analogia, metáfora, simulação e representação, "são baseados na
noção de representação pictórica, ou seja, no retrato do(s) (aspectos
do) domínio A no/sobre o domínio B".
A ciência cognitiva distingue muitos subtipos de representações mentais relacionadas a diferentes atividades da mente. Entre
eles estão as representações perceptuais, pictoriais, proposicionais,
episódicas e semânticas (cf. Joma, 1990: 20). Estas podem ser incluídas na categoria de iconicidade ou elas não evidenciam a presença de signos icônicos esimbólicos na representação mental? Aresposta
para esta questão pode ser dada se levarmos em consideração os
três tipos de iconicidade peirceana: iconicidade imagética, diagramática
e metafórica. Na representação pictórica há, sem dúvida, a
PEIRCE E AS BASES SEMIÓTICAS ..
137
predominância da iconicidade imagética. As representações semânticas
e proposicionais envolvem o processamento de signos simbólicos
(arbitrários), mas, na medida em que concernem a seus padrões
sintagmáticos, tais representações também evidenciam iconicidade
diagramática (p. 135).
Cognição e mediação semiótica
Contrariamente ao modelo diádico ingênuo (mundo/mente)
de cognição, as teorias triádicas da cognição semioticamente mais
adequadas são aquelas que reconhecem o papel da mediação na
cognição. Do ponto de vista da ciência cognitiva, Molitor, Ballstaedt
e Mandl (1989: 1O) descrevem afunção mediata dos modelos mentais
da seguinte forma:
Modelos mentais parecem oferecer um meio
de mediação entre as diferentes formas de conhecimento . Um modelo mental é a
representação de uma área limitada da
realidade num formato que permite a simulação
interna de processos externos de tal forma que
permita tirar conclusões e fazer predições.
Novamente, temos uma descrição cognitivista do papel do
interpretante- também modelo mental - no processo de interpretação. Afunção de mediação neste processo é mais especificamente
clara na teoria dos modelos mentais na compreensão da linguagem
proposta por Johnson-Laird (1988b: 11 O):
De acordo com esta teoria, a representação
mental inicial de um enunciado que está
próximo de sua forma /ingüfstica é usada para
construir um modelo do estado de coisas que
138
PANORAMA DA SEMIÓTICA
é descrito [. .. ]. O processo é guiado por um
conhecimento da contribuição para as condições
de verdade produzidas pelas palavras no
enunciado, por um conhecimento de como
combinar significados de acordo com a sintaxe
[. ..] por um conhecimento do contexto [.. .] e
pelo conhecimento geral do domínio das
convenções do discurso.
Esta descrição da cognição verbal corresponde em sua base
à concepção triádica peirceana de semiose. Ela começa com uma
especificação da fala como um representamen, que já é um signo,
uma vez que evoca uma representação inicial mental. Os "estados
de coisas" são os objetos deste signo. Os modelos mentais fazem a
mediação entre esses dois correlatos do signo como seu interpretante.
Fazem surgir um "signo mais desenvolvido" (p. 134) esão auxiliados
neste processo pelos vários modos de conhecimento disponível. A
concepção de Johnson-Laird da compreensão do texto pode assim
servir como uma exemplificação da definição de Peirce do interpretante
como uma "representação mediata" (CP, 1.554) e de representação
como um "meio entre um segundo e seu primeiro" (CP, 5.66). Peirce
deve ter antecipado o papel central que sua idéia de mediação um dia
teria na teoria cognitivista dos modelos mentais quando exclamou
em 1906 (MS, 339):35 "Todas as minhas noções são muito estreitas.
Ao invés de 'Signo', não deveria dizer 'Meio'?"
Esquemas, hábitos e interpretante final
Ateoria dos esquemas éuma abordagem adicional da cognição
cujos fundamentos podem ser elucidados tendo-se como referência
35. Em Richard J. Parmentier, "Sign's place in medias res",
in: E. Mertz & R.J. Parmentier (eds.), Semiotic mediation,
Orlando, FL, Academic Press, 1985, p. 23.
PEIRCE E AS BASES SEMIÓTICAS ...
139
a teoria da semiose. No contexto da cognição, o termo esquema foi
primeiramente proposto por Kant edepois adotado como um termochave na psicologia da memória de Bartlett ena epistemologia genética
de Piaget. Tendo como fundamento a ciência cognitiva, Rumelhart
(1980: 33-34) define esquema como os '1ijolos da cognição" que
representam e organizam o uso do conhecimento:
Um esquema, portanto, é uma estrutura de
informação para representar os conceitos gerais
guardados na memória [ ... ]. Um esquema
contém, como parte de sua especificação, a
rede de intercorre/ações que se acredita estar
normalmente entre os constituintes do conceito
em questão.
Há três implicações semióticas nesta consideração do papel
dos esquemas no processo de cognição. Oprimeiro é que a descrição
de esquemas como "redes de inter-relações" refere-se ao princípio
semiótica de semiose ilimitada (p. 128), de acordo com a qual o
interpretante do signo está sempre presente em uma rede de cognições
prévias (e futuras) ou elementos do conhecimento. Asegunda implicação
tem a ver com a natureza essencialmente inferencial da semiose que
se reporta ao princípio peirceano de que toda cognição édeterminada
logicamente pelas cognições prévias.36 Uma vez que os esquemas
são formados como resultado de cognições previamente memorizadas,
estes servem da mesma maneira como dados dos quais derivam-se
inferências na interpretação de novas cognições. Aterceira implicação
refere-se ao fato de os esquemas serem um conjunto de relações
que o intérprete "acredita estar normalmente entre os constituintes
de um concerto". As categorias semióticas que estão mais proximamente
36. Cf. G. Gentry, "Peirce's early and !ater theory of cognition
and meaning", in: Philosophical Review 55 (1946), p. 636-37.
140
PANORAMA DA SEMIÓTICA
associadas a este aspecto dos esquemas são as do hábito37 e da
generalização. Ambas as categorias são centrais para a semiose como
processo cognitivo,38 pois hábitos e regras gerais são o resultado do
uso do signo e o pré-requisito das inferências necessárias na interpretação do signo. Neste contexto, Peirce (CP, 8.332) argumenta:
"Parece-me que a função essencial de um signo é[ ... ] estabelecer
um hábito ou uma regra geral de acordo com a qual eles agirão numa
dada ocasião". Mais especificamente em sua teoria do significado, a
categoria do hábito é constitutiva daquilo que Peirce define como o
interpretante lógico "finaf', "nonnal'' ou "último".39 Este tipo de interpretante
refere-se à fase final no processo de interpretação semiótica, na qual
a cognição formada na mente do intérprete torna-se um hábito, "uma
tendência [.. .] certa de comportar-se de maneira similar sob
circunstâncias similares no futuro" (Peirce, CP, 5.487). Neste estágio,
o signo preenche a mesma função de um esquema da cognição. Ele
aponta tanto para opassado (qua memória) quanto para ofuturo (qua
interpretação habrtual) no processo de semiose. Como Peirce afirmou
em 1902:40 "A natureza de um signo écomo a da memória, que recebe
as transmissões da memória passada e transfere parte dela para a
memória futura."
37. Cf. M. Arbib & M. Hesse, The construction of reality,
Cambridge Univ. Press, 1986, p. 43 .
38. Cf. Dan Nesher , "Understanding sign semiosis as
cognition", in: Semiotica 79 (1990) , p. 10.
39. Cf. G. Gentry, "Habit and the logical interpretant", in :
P. P. Wiener & F. H. Young (eds.), Studies in the philosophy
of Charles Sanders Peirce, Cambridge, MA, Harvard Univ.
Press, 1952, p. 75-90.
40. MS, 599, citado em J. Dines Johansen, Dialogic semiosis,
Bloomington , Indiana Univ. Press, 1993, p. 169.
C ONCLUSÃO
A semiótica está longe de ser um paradigma ameaçado
pelo advento da ciência cognitiva, mas há um desafio duplo para
as ciências do signo e da cognição. Enquanto a ciência cognitiva
representa um desafio para a semiótica na medida em que
semioticistas são requisitados para contribuir nas fundações dos
estudos cognitivos, a semiótica é também um desafio para a ciência
cognitiva na medida em que o novo paradigma no estudo da mente
não pode atingir um conhecimento satisfatório da cognição sem
levar em consideração o conhecimento com que a semiótica tem
contribuído para o estudo da cognição desde quando John Locke
primeiramente postulou uma Sémeiotiké como uma Doutrina dos
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Tel.(11 ) 3111-2117
~NSAIO
~SBOÇ
~STUDO
"A palavra filigrana se refere a uma obra de
ourivesaria, formada de fios de ouro ou de prata, delicadamente entrelaçados e soldados. Não há imagem
melhor para caracterizar este Panorama da Semiótica
que Winfried Nõth entrega ao público brasileiro do que
a filigrana. De fato, cada um dos capítulos assemelhase a uma obra de ourivesaria, o conjunto deles compondo uma pequena constelação de filigranas finissimamente tecidas com os fios da erudição e da lucidez.
Numa visão global, fiel ao seu título, o livro, no
seu todo, funciona como uma apresentação panorâmica não apenas do desenvolvimento histórico da semiótica, mas também das questões mais fundamentais
que este campo de estudo permite detectar."
... -~·
(Trecho da apresentação de Lucia Santaella)
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