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SEMIÓTICA DA MAGIA

1996, Revista USP

M agia é um processo semiótico. O sig- no mágico é um signo humano usa- do com a intenção e a promessa de obter uma influência imediata sobre o mundo dos objetos. Enquanto na nossa vida cotidiana o signo atua como um mediador entre os mundos mentais e o mundo dos objetos, o mago pretende que os seus signos tenham o poder de causar transformações e efeitos imediatos no mundo não-humano. O racionalismo da modernidade quis desmascarar a magia como uma falácia semiótica 30 R E V I S T A U S P , S Ã O P A U L O ( 31 ) : 3 0 - 4 1 , S E T E M B R O / N O V E M B R O 1 9 9 6 WINFRIED NÖTH SEMIÓTICA DA MAGIA WINFRIED NÖTH é professor de Semiótica e Lingüística e diretor do Departamento de Línguas Modernas da Universidade de Kassel, Alemanha. É também professor convidado permanente do Programa de Pós-graduação em Comunicação e Semiótica da PUC-SP. Entre os seus vários livros e inúmeros artigos destacam-se Handbook of Semotics (trad. bras. em preparação pela Edusp), Origins of Semiosis e Semiotics of the Media. Publicou no Brasil Panorama da Semiótica e A Semiótica no Século XX (AnnaBlume). A criação do mundo segundo xamãs mexicanos R E V I S T A U S P , S Ã O P A U L O ( 31 ) : 3 0 - 4 1 , S E T E M B R O / N O V E M B R O 1 9 9 6 Este trabalho desenvolve umas idéias previamente publicadas em Nöth (1977a, 1977b, 1986, 1990a, pp. 18891, e 1990b). O autor agradece a Gerson Tenório dos Santos e Luci Mendes de Melo Bonini pelas traduções dos artigos de 1986, 1990a e 1990b, que foram em parte incorporadas neste trabalho. Lucia Santaella fez milagres para melhorar o português deste texto. 31 ou até como um grande erro da civilização, mas o pensamento mágico conseguiu resistir à sua desconstrução analítica e até encontrou um novo reconhecimento na era pós-moderna. Examinaremos, a seguir, as raízes semióticas da magia, os mecanismos da semiose mágica e umas manifestações do pensamento mágico desde os tempos arcaicos até a vida cotidiana da civilização pósmoderna (1). BREVE HISTÓRIA SEMIÓTICA DA MAGIA AS ORIGENS DA SEMIÓTICA NA MAGIA As origens da semiótica estão intimamente relacionadas com a prática dos magos préhistóricos (2). Evidência dessa conexão arcaica entre a semiótica e a magia aparece na etimologia de várias palavras designando conceitos semióticos básicos. A palavra inglesa spell ainda hoje significa tanto “soletrar” quanto “fórmula de encantamento”. A velha palavra germânica runa não designava somente as letras do alfabeto rúnico, mas também “feitiço” ou “encantamento mágico”. O domínio das letras foi aparentemente associado ao domínio da magia. A palavra inglesa glamour, que significava antigamente “bruxaria” e “palavra mágica”, era uma corrupção popular da palavra grammar (gramática): para o povo, o conhecimento da gramática era evidentemente um saber mágico. Não só os sábios dos signos lingüísticos, mas também os produtores dos signos visuais eram considerados aliados da magia. Evidência dessa conexão arcaica entre a pintura e a magia (3) existe na etimologia da palavra alemã Bild (“imagem”), cujo étimo germânico *bil- significa “signo miraculoso”. 1 Sobre outros aspectos da semiótica da magia, ver também Lange-Seidl (org.) (1988). 2 Thorndike (1958) e Hansen (1986) desenvolveram a tese de que a magia é o precursor cultural das ciências naturais. 3 Sobre as origens culturais das artes visuais no contexto da magia, ver, por exemplo, Kris (1952, pp. 47-56) ou Koch (1984). 32 A MAGIA ARCAICA E MEDIEVAL A história semiótica da magia começa com a magia pura das culturas arcaicas, que sobreviveu até hoje nas culturas que os antropólogos eurocentristas do século XIX chamavam de “primitivas”. Exemplos europeus dessa magia pura se encontram, entre outros, na coleção dos antigos encantamentos ingleses (Old English Charms) do século IX (Storms, 1948; Grattan e Singer, 1952). A magia pura é caracterizada pela confiança imperturbável da comunidade, que pratica a magia, na eficiência real do ato mágico no mundo. A Igreja medieval quis romper com a tradição dessa magia pura com proibições, estigmatizando-a como pagã. As doutrinas judaico-cristãs, porém, não estão livres de elementos mágicos, ou, ao menos, das possibilidades de uma interpretação mágica. Se Deus, conforme o livro da Gênese 1, criou o mundo com palavras, este ato criativo foi certamente um ato mágico. Na tradição cristã, a magia não se encontra só nos milagres dos santos, mas também na doutrina da transubstanciação eucarística. Se as palavras do padre, Hoc est corpus, têm o poder de realmente transformar o pão em corpo de Cristo, não é de admirar que o povo medieval via aí um ato mágico e que a fórmula sagrada Hoc est corpus foi ironicamente corrompida pela palavra nova hocuspocus, que significa nada menos do que “charlatanice”. O FIM DA MAGIA NO RACIONALISMO MODERNO O fim da magia pura veio com a era moderna, que, no sentido amplo, começa com as descobertas científicas da Renascença. O pensamento mágico foi então considerado incompatível com o espírito científico. Max Weber caracterizou o advento da idade moderna como um processo de “desencantamento (Entzauberung) do mundo”: o mundo desencantado é o mundo que perdeu a confiança no poder do mago. Na teologia, o último capítulo dessa história do desencantamento do mundo foi escrito por Rudolf Bultmann com a sua teoria da exegese metafórica da Bíblia. Na antropologia cultural, o crítico mais severo da magia nas sociedades chamadas de “primitivas” foi Frazer. No seu julgamento, a magia é um “sistema errôneo” ou mesmo uma “falácia grande e desastrosa” (Frazer, 1922, p. 26): “O homem confundiu a ordem de suas idéias com a ordem da natureza e, portanto, imaginou que o controle que ele tem, ou pare- R E V I S T A U S P , S Ã O P A U L O ( 31 ) : 3 0 - 4 1 , S E T E M B R O / N O V E M B R O 1 9 9 6 ce ter, sobre seus pensamentos permitiu-lhe exercitar um correspondente controle sobre as coisas” (citado por Freud, 1913, p. 83). Nesse ambiente racionalista do mundo “civilizado”, a magia pura não podia sobreviver senão em várias formas transformadas ou degeneradas: o primeiro domínio de sobrevivência restringe-se ao ambiente subcultural das práticas mânticas (cf. Guiraud, 1971, pp. 59-65), tal como na adivinhação do futuro pela leitura do depósito de café, pela observação da terra (geomancia; cf. Jaulin, 1970), pelas cartas (cartomancia; cf. Aphek e Tobin, 1986) ou pelas linhas da mão (quiromancia). Enquanto na magia pura o poder sobrenatural provém de um signo emitido pelo mago, o signo mântico é emitido pelo acaso da natureza, que o médio mântico pretende somente interpretar. O segundo domínio da sobrevivência da magia é a magia supersticiosa. A prática dessa forma de magia no mundo civilizado é ambígua com respeito às suas condições pragmáticas de sinceridade: ninguém tem que admitir realmente acreditar que, por exemplo, “deixar o guarda-chuva aberto dentro de casa traz desgraças”, mas as pessoas, de qualquer modo, o fecham, sem ter que admitir que o fazem por superstição. Quando seguimos as regras do código supersticioso, sem crer nelas, a prática supersticiosa no mundo civilizado se torna uma forma de semiose lúdica. Pretendemos segui-las somente “por brincadeira”. O terceiro domínio em que o mundo moderno permite a sobrevivência da magia é na ficção do conto popular, por exemplo, no conto de “Ali Babá e os Quarenta Ladrões”: o leitor desse exemplo de magia fictícia é confrontado com um mundo imaginário no qual não tem que acreditar na realidade dos acontecimentos. O quarto e último domínio da magia no mundo civilizado é a magia metafórica tal como é encontrada, por exemplo, nas promessas da publicidade nas mídias que descrevem os produtos com epítetos tais como “mágico” ou “sobrenatural”. Tais figuras retóricas não exigem nenhuma crença literal em efeitos realmente mágicos e não pressupõem uma mentalidade arcaica do lado do público, mas o alvo dessa retórica hiperbólica não se distingue muito da prática dos magos. Ambos querem o máximo de influência sobre o público. DO PENSAMENTO “PRIMITIVO” AO PAN-MÁGICO A história do estudo da magia mostra uma expansão progressiva do campo dos fenômenos considerados mágicos. Os primeiros estudos feitos por antropólogos referiram-se somente à magia em contextos culturais ou rituais. Os antigos encantamentos ingleses são exemplos desse setor do campo da magia. Uma primeira extensão significante na área da magia foi proposta no fundamento da epistemologia genética de Piaget (1927). Para ele, o pensamento mágico é uma primeira fase do desenvolvimento da criança na qual realidade e pensamento estão ainda insuficientemente diferenciados. A extensão mais radical no domínio dos fenômenos da magia foi proposta numa tradição iniciada por Ogden e Richards (1923), no capítulo sobre “O Poder das Palavras” de seu livro O Significado do Significado (ver também Ogden, 1934). Essa tradição continuou com a crítica da linguagem dos semanticistas gerais (Korzybski, 1933) e suas advertências contra a “tirania das palavras” (Chase, 1938) na língua cotidiana. Finalmente, essa tradição culminou na assim chamada teoria conotativa da palavra mágica (Izutsu, 1956; Tambiah, 1968, p. 17) que se baseia na hipótese de que a linguagem e o pensamento estão totalmente permeados pela magia. Apesar dessa teoria pan-mágica do pensamento sofrer de exageros e reducionismos, ela chama a nossa atenção para o campo do uso cotidiano do pensamento lógico e da comunicação de massa. A REABILITAÇÃO DA MAGIA NA ERA PÓS-MODERNA Na era pós-moderna encontramos uma reabilitação cultural da magia. Magia pura não só se torna novamente respeitada em ambientes subculturais, tal como no movimento New Age, mas, sobretudo, a crítica positivista da magia arcaica tem sido abandonada por uma nova avaliação que reconhece R E V I S T A U S P , S Ã O P A U L O ( 31 ) : 3 0 - 4 1 , S E T E M B R O / N O V E M B R O 1 9 9 6 33 o potencial psicoterapêutico do signo mágico. Magia, desse ponto de vista, já não é uma falácia semiótica, mas um potencial semiótico para influenciar a mente de um participante na semiose mágica. Um dos primeiros a dar uma nova interpretação positiva à comunicação mágica foi Malinowski. Para ele, a ação mágica é uma atividade semiótica com a função de preencher lacunas na realização das atividades práticas da vida (Malinowski, 1925, pp. 79, 90). A magia, portanto, começa com o fim do conhecimento prático e teórico do mundo. Essa visão da magia como uma válvula de escape e uma alternativa para os impasses práticos da vida cotidiana corresponde às interpretações psicoterapêuticas do fenômeno (cf. Schmidtbauer, 1975; Hsu, 1983). Também nessa perspectiva, o signo tem um efeito imediato, mas exerce uma influência mediata no mundo, passando primeiro pelo inconsciente do destinatário, antes de desenvolver os seus efeitos no mundo dos objetos, principalmente no próprio corpo do destinatário da palavra mágica. Além da magia pura, a magia fictícia desenvolve novas dimensões nos gêneros subliterários contemporâneos, onde a encontramos à maneira da science fiction à la Stephen King num mundo futurista onde tudo se torna possível por meio de tecnologias semióticas que transformam o mundo das maneiras mais incríveis. Até a magia metafórica na linguagem publicitária contemporânea parece transformar-se de mera figura retórica em sugestão de magia pura. Pelo menos é surpreendente que a publicidade para produtos das novas tecnologias, que sempre pareceram estar o mais longe possível da magia, tenha descoberto uma forte preferência pelo discurso mágico: “Por que comprar uma câmera de vídeo que apenas grava?”, pergunta, por exemplo, um anúncio da Newsweek e continua: “Panasonic apresenta Omni Movie. Ela produz os seus movimentos mágicos”. E de acordo com Sports Illustrated, o novo autorádio estéreo Clarion não foi apenas “feito para a Magia da Música”, mas é ele próprio mágico devido às suas características técnicas fora do comum: “O rádio 7513 inclui a nova seção I. F. Com esta unidade, você con- 34 segue tanto seletividade quanto sensitividade, porque Clarion tem tudo isso. Isto é magia!”. Enquanto esses exemplos fazem referências explícitas à magia, a AT&T anuncia seus sistemas de teleconferências aos leitores de Business Week com slogans que implicitamente pressupõem um fundamento mágico do pensamento ao perguntar: “Como se fazer notar sem estar presente lá?”. Será que esses exemplos significam que a magia está de volta com as novas tecnologias? A MAGIA, O SOBRENATURAL E O MIRACULOSO O que é magia? Afinal, a propaganda faz muitas promessas com pouca ou nenhuma credibilidade. Assim, no fim das contas, pode não haver qualquer magia envolvida em nossos exemplos. Vamos, portanto, começar nossa análise com um exemplo de magia fictícia representando o protótipo do uso de palavras mágicas. O CASO DE ALI BABÁ Na noite de número 852 de suas 1.001 noites, Sherazade nos conta como Ali Babá, escondido em uma árvore, observava os quarenta ladrões: “Os quarenta ladrões carregaram suas cargas até o pé de uma grande rocha que ficava na base de uma pequena colina. Então depositaram os sacos, e o chefe gritou em direção à pedra: ‘Abre-te, Sésamo!’. Imediatamente a superfície da rocha abriu-se. O líder esperou até que todos os seus seguidores tivessem passado com suas cargas através da passagem e então adentrou com o seu saco. ‘Fechate, Sésamo!’, gritou, quando estava dentro, e a face da rocha fechou diante dele. Ali Babá ficou surpreso com este acontecimento e disse: ‘Alá permita que os poderes deles não me encontrem nesta árvore!’ [...] Tão logo desceu ao chão, caminhou na ponta dos pés, segurando a respiração, em direção à misteriosa rocha [...]. Viu que a superfície da pedra era inteiramente lisa e não tinha a menor ranhura, nem mesmo suficiente para se introduzir a ponta de uma agulha. ‘Mas eu R E V I S T A U S P , S Ã O P A U L O ( 31 ) : 3 0 - 4 1 , S E T E M B R O / N O V E M B R O 1 9 9 6 R E V I S T A U S P , S Ã O P A U L O ( 31 ) : 3 0 - 4 1 , S E T E M B R O / N O V E M B R O 1 9 9 6 35 vi os quarenta ladrões entrarem’, pensou. ‘Certamente o lugar deve estar guardado por estranhas palavras mágicas. Apesar de eu não saber nada de palavras mágicas, com certeza me lembro das palavras para abrir e fechar. Não seria melhor tentar dizê-las para ver se têm em minha boca os mesmos poderes que têm nos lábios daquele terrível homem?’ Ainda prisioneiro do destino e desprovido de seu costumeiro destemor, Ali Babá virou-se para a pedra e disse: ‘Abre-te, Sésamo!’. Apesar de ter pronunciado estas duas palavras de maneira fraca e sem segurança, a pedra abriu-se”. A aventura de Ali Babá ilustra duas características principais da magia: um processo de uso mágico do signo com a fórmula “Abre-te, Sésamo” e o efeito sobrenatural resultante desta semiose. Vamos primeiro considerar o último aspecto da magia e perguntar se a magia em todas as suas formas pressupõe um efeito sobrenatural. O EFEITO SOBRENATURAL A pedra que se abre é a causa da surpresa de Ali Babá. O evento se apresenta definitivamente contra as leis da natureza. Não acreditando, ele testa a superfície da pedra e conclui que testemunhou um evento sobrenatural. Muitos estudiosos consideram a ocorrência de um efeito sobrenatural como uma característica distintiva da magia (por exemplo, Storms, 1948, p. 36). Nessa perspectiva da magia não admira que Morris tenha concluído que a ineficiência factual é uma característica específica da magia: “O que é freqüentemente chamado de ‘magia’”, escreve ele, “é a persistência de técnicas, quando há evidência de que as práticas, de fato, não influenciam a realização do objetivo, especialmente quando essas práticas são simbólicas por natureza” (Morris, 1946, p. 221). No entanto, quando passamos de Ali Babá para a magia enquanto um fenômeno cultural, esse critério torna-se difícil, senão impossível, de aplicar. Por razões a serem ainda consideradas, o antigo encantamento inglês, a seguir, contra tumores e outras doenças é 36 um exemplo de magia médica (Grattan e Singer, 1952, p. 162): “Contra tumores: Nove eram as irmãs do nódulo; então a nona tornou-se oitava; a oitava, sétima; a sétima, sexta; a sexta, quinta; a quinta, quarta; a quarta, terceira; a terceira, segunda; a segunda, primeira e a primeira, nenhuma. Isto será para vós um remédio para tumor, para escrófula, para verminose e para todos os males. Cante ‘Benedicte’ nove vezes”. Supondo-se que o pronunciamento desse encantamento seja seguido de uma cura dos tumores, então o observador esclarecido moderno poderia concluir que esse efeito é sobrenatural, uma vez que a ciência natural da medicina somática não reconhece essa cura. Se o encantamento não tem sucesso na cura da doença, o critério poderia ainda ser mantido com uma modificação. Poderíamos então falar da pretensão de um efeito sobrenatural e assim definir magia independentemente das conseqüências observadas. De acordo com o critério do efeito mágico pretendido, os folcloristas distinguem entre magia negra e magia branca. A magia negra objetiva efeitos negativos ou deseja evitar aqueles que são positivos. Na magia branca, o agente pede um evento positivo ou quer prevenir um negativo. Duas variedades da magia branca que sobreviveram até hoje são o tabu lingüístico e o eufemismo (cf. Bruneau, 1952; Todorov, 1973). Tabu é o evitar de certas palavras devido ao medo de seus efeitos ao serem usadas, enquanto o eufemismo é a substituição de uma palavra-tabu por uma não-tabu. AS EXPLICAÇÕES “NATURAIS” DO SOBRENATURAL Contudo, em contraposição a Ali Babá e à mente esclarecida moderna, nosso paciente medieval pode não ver absolutamente nada de sobrenatural na cura descrita. Ele pode não ver a diferença entre seu encantamento mágico e um remédio herbal que poderia ser classificado como fisiologicamente eficiente de acordo com os padrões médicos modernos. Para os participantes das práticas R E V I S T A U S P , S Ã O P A U L O ( 31 ) : 3 0 - 4 1 , S E T E M B R O / N O V E M B R O 1 9 9 6 mágicas, os efeitos naturais e sobrenaturais podem pertencer à mesma ordem objetiva de um universo coerente (cf. Lévi-Strauss, 1962, p. 221). De acordo com Tylor, o mago “tenta descobrir, predizer e causar eventos” (1871, vol. 1, p. 104). Na magia genuína, esses efeitos não devem ser o resultado do ato prático nem ser causados por um evento natural, que poderia ocorrer independentemente da ação do mago. Esse pré-requisito levou muitos antropólogos a postular uma oposição fundamental entre ciência e magia. A magia, portanto, depende da crença de que o efeito pretendido não pode ser obtido pela natureza e pela ciência. Mesmo se reconhecermos que o sobrenatural é apenas uma categoria da mente moderna, esse critério é de determinação problemática. A fronteira entre o natural e o sobrenatural depende dos limites do cientificamente possível, como destacou Todorov (1973, p. 41). Com a expansão de nosso conhecimento científico, o sobrenatural pode se tornar natural. A magia, se definida em termos do sobrenatural, pode se tornar ciência. As descobertas da psicologia e da psicoterapia têm mostrado que um encantamento, como o que foi discutido, pode ter um efeito curativo somático. Além disso, as práticas mágicas que acompanham as atividades diárias, como caçar e trabalhar, podem ter uma influência psicológica positiva sobre elas. Dessa forma, o sobrenatural torna-se natural. A magia, se definida como categoria do sobrenatural, pode vir a ser ciência. A MAGIA E O MIRACULOSO Finalmente, deve ser ressaltado que, mesmo não havendo dúvida a respeito do caráter sobrenatural de um certo evento, o inexplicável sozinho não pode definir a magia. Deve ser traçada uma linha entre a magia e o miraculoso. Sem o signo mágico, o evento sobrenatural e inexplicável é um milagre, e não um acontecimento mágico. No entanto, na linguagem diária, a palavra “magia” é comumente usada nesse sentido de “milagre”. Quando nosso anunciante descreve as características tecnológicas fora do comum de seu auto-rádio estéreo como “mágicas”, ele quer descrever seu desempenho hiperbolicamente como sendo “sobrenatural”. Não há nenhum signo usado como meio de obter esse efeito sonoro sobrenatural. A palavra “magia” é então usada no sentido de “miraculoso”. Uma metáfora menos ousada nesse contexto poderia ser a palavra “incrível”, preferida em muitos slogans propagandísticos. Nesse sentido do “miraculoso” e, portanto, como uma metáfora de “o incrível”, a palavra “mágica” também comparece no seguinte anúncio da cidade de Las Vegas na revista norte-americana Money (4): “Las Vegas é mágica! Desde a vibrante Downtown até a sensacional Strip, ela pulsa com excitação. [...] Uma das razões para a popularidade universal da cidade é a maneira mágica como ela estica os dólares de suas férias. [...] Nenhuma cidade faz melhor pelo seu dinheiro do que Las Vegas”. PRAGMÁTICA DA SEMIOSE MÁGICA Do “miraculoso” voltamos à magia genuína, que – como mostrou o exemplo de Ali Babá – pressupõe uma forma particular de uso dos signos. Este aspecto da semiose mágica é melhor ilustrado pela fórmula “Abrete, Sésamo!”. O próprio Ali Babá surpreende-se com o poder de suas palavras. Na semiose normal, os signos são usados diferentemente e a comunicação constitui-se de um processo diferente. Há duas características principais que distinguem a magia da semiose normal. SEMIOSE COM EFEITOS PRÁTICOS IMEDIATOS A primeira característica pragmática da magia é a de que os signos são usados tendo em vista um efeito prático imediato no mundo dos objetos. No mundo fictício de Ali Babá, esse efeito podia ser observado e testado. Na magia cultural, assim como no antigo encantamento inglês ou na dança da chuva mágica, esse efeito pode apenas ser admitido com graus variáveis de crença em sua realização. R E V I S T A U S P , S Ã O P A U L O ( 31 ) : 3 0 - 4 1 , S E T E M B R O / N O V E M B R O 1 9 9 6 4 Sobre o miraculoso na propaganda e no consumo cotidiano, cf. também Baudrillard (1970, p. 25). 37 Na semiose normal, os signos nunca têm um efeito imediato no mundo dos objetos. Tal efeito é sempre mediato: o “mediador” entre os signos e os efeitos é um destinatário. Em uma definição de Morris (1938, p. 4), a semiose mágica é descrita como um “levar em consideração mediado”. Isso quer dizer que um emissor deve primeiro dirigir uma mensagem a um receptor e somente após este ato comunicativo ter obtido sucesso é que pode seguir-se, como segundo passo, uma ação prática e, com ela, um efeito imediato no mundo. Enquanto na semiose normal, somente um efeito prático mediato sobre o mundo é possível, na comunicação mágica, espera-se obter um efeito prático imediato sobre o mundo dos objetos. O signo mágico, diz Maritain (1957, p. 96), “não apenas faz os homens conhecerem, ele faz as coisas serem; é uma causa eficiente em si mesma” (5). O DESTINATÁRIO MÁGICO 5 Sobre as semelhanças e diferenças entre a magia e as ações práticas cotidianas, ver também a discussão que Leach (1976, p. 32) faz da “tecnomagia no lar”. 38 A segunda característica da semiose mágica refere-se aos comunicadores. Enquanto a comunicação normal acontece tendo como base um código que deve ser conhecido pelo emissor e receptor, o mago direciona sua mensagem para estranhos receptores. Na aventura de Ali Babá, o destinatário é um objeto físico: a pedra. A forma da mensagem é um imperativo e o conteúdo, um pedido. Na semiose normal, as condições pragmáticas da solicitação (cf. Searle, 1970, pp. 57, 66) requerem um locutor que tenha autoridade sobre o destinatário, e um ouvinte que possa executar a ação solicitada. Trivialmente, o destinatário deve ser capaz de ouvir ou ver a mensagem. Todas essas condições não podem ser preenchidas por um objeto físico como uma pedra. No antigo encantamento inglês já discutido, a forma precisa de endereçamento não nos foi passada no manuscrito, mas deve ter sido similar àquela reportada por outro encantamento para o qual dá-se a seguinte prescrição: “E deixe-se que se cante na boca do homem, e em ambas as orelhas e dentro do ferimento que enfeitiça...”. O destinatário mágico nesse encantamen- to não é evidentemente o paciente como uma pessoa, mas seu corpo e a doença que há nele. Não somente as orelhas, mas também a boca do homem e o ferimento aparecem como receptores nessa cadeia comunicativa mágica. SEMÂNTICA DA MAGIA No sentido mais estreito, a dimensão semântica da semiótica estuda a relação entre o signo e seu objeto. Na dimensão semântica da magia, a relação entre os signos que expressam um conteúdo mágico e o efeito prático que supostamente resulta da semiose mágica têm que ser analisados. São de particular interesse as formas de motivação através das quais o signo é determinado por seu pretendido efeito mágico. Frazer (1922, p. 16) já fez uma distinção entre magia motivada pela similaridade (magia homeopática) e magia motivada por “contato” ou contigüidade (magia simpática). Em termos semióticos, essa é a distinção entre signos icônicos e indiciais. Mas a magia também pode se basear em signos arbitrários, e, algumas vezes, mesmo em signos especialmente codificados. Estes signos mágicos são símbolos em sua relação com o objeto. MAGIA ICÔNICA O antigo encantamento inglês das nove irmãs, que gradualmente está desaparecendo, forma um ícone que se relaciona por similaridade com o pretendido desaparecimento da doença. Assim como as irmãs desaparecem, também desaparecem os sintomas da doença, promete o mago. Um exemplo de magia icônica praticada pelas crianças na Inglaterra é o costume de confirmar uma aposta. De acordo com esse costume (Opie e Opie, 1959, p. 149), a aposta só valerá “se dois garotos lamberem seus polegares e os colocarem juntos”. O nãoverbalmente legalizado “colar dos polegares” é iconicamente motivado pela idéia de uma similaridade com a durabilidade desejada da aposta. Finalmente, um exemplo publicitário para um signo mágico motivado iconi- R E V I S T A U S P , S Ã O P A U L O ( 31 ) : 3 0 - 4 1 , S E T E M B R O / N O V E M B R O 1 9 9 6 camente é o nome de um produto chamado de “Herb Magic” (“Erva Mágica”). O anunciante na revista Health explica: “Herb Magic não é óleo. Só sabor [...]. Se você já tentou fazer um molho de salada sem óleo, sabe o quanto é difícil criar um que seja verdadeiramente delicioso. Herb Magic o fez!”. A afirmação implícita nessa marca é: “Você pode usar não-óleo no lugar de óleo. Porém, Herb Magic é mais do que um simples substituto do óleo. Usá-lo em vez de óleo e ainda obter o mesmo resultado significa usar um signo mágico de óleo através do qual o efeito sobrenatural de um gosto oleoso será obtido”. Nessa propaganda, o nome comercial “Herb Magic” implica em um signo icônico se sua motivação, admitidamente vaga, é tomada como referindo-se ao ingrediente sem óleo, que pode ser usado no lugar do óleo com um efeito parecido culinariamente com óleo. MAGIA INDICIAL Um antigo encantamento inglês “contra dor de cabeça”, que prescreve “queimar uma cabeça de cachorro até virar cinzas, separar o pó, e aplicá-lo sobre a cabeça”, é tanto icônico quanto indicial em sua motivação. O ícone é a queima da cabeça do cachorro: assim como a cabeça do cachorro queima até virar cinzas, supõe-se que a dor de cabeça desapareça. A colocação do remédio remete-se ao signo mágico em contigüidade com a cabeça do paciente. É, portanto, um índice. Um exemplo de magia indicial no folclore infantil é o seguinte encantamento autoprotetor, dito por crianças na Inglaterra ao avistarem uma ambulância passando na rua (Opie e Opie, 1959, p. 231): “Segure sua gola/ Nunca engula/ Nunca morra de febre” (“Hold you collar/ Never swallow/ Never die of fever”). O primeiro elemento indicial nesse encantamento já está presente no pressuposto medo de encontrar uma ambulância: a ambulância é um índice da doença da pessoa que ela carrega. O mero ato de ver esse índice é avaliado como um perigo pela criança. Presume-se que esse índice tenha uma influência potencial no mundo, principalmente no corpo da pessoa que observa. Um segundo elemento indicial está no ato de “segurar a gola”. A gola está em contigüidade com a garganta, que é a passagem do mundo exterior para o interior, sendo, portanto, seu índice. No mundo dos objetos uma gola dá proteção para a garganta e, portanto, para a saúde da pessoa. No ato mágico, pensa-se que o signo indicial de tocar a gola cause proteção contra a ameaçadora infecção proveniente da pessoa doente na ambulância. Esse índice mágico é acompanhado por um segundo ato mágico: a inibição da ação de engolir. Esse ato não-verbal é um ícone para se evitar a ingestão de uma doença. MAGIA SIMBÓLICA Os símbolos são signos arbitrários e convencionais. As fórmulas “Abre-te, Sésamo” e “Fecha-te, Sésamo” de Ali Babá consistem de símbolos retirados do código da língua natural. Algumas vezes os símbolos são inventados para propósitos mágicos. Por exemplo, um antigo encantamento inglês que recomenda que se pronuncie a fórmula pseudolatina a seguir contra “erupções em cavalo e homem”: “In domo mamosin inchorna meoti”. Um exemplo de publicidade mágicosimbólica é uma propaganda para o licor francês de nome Demi-Tasse em Time, que proclama que “algo maravilhoso acontece quando traduzimos licor de café para o francês. Surge Demi-Tasse. O licor de café importado com verdadeiro creme e refinado espírito francês”. A afirmação é que um efeito prático imediato resultou de um processo de semiose simbólica. O evento semiótico é o ato de traduzir a palavra (signo simbólico) de “licor de café” do inglês para o francês. O fato de o resultado dessa tradução ter sido a marca registrada Demi-Tasse já é certamente alguma coisa miraculosa. De acordo com os códigos das línguas inglesa e francesa, poderíamos esperar traduções equivalentes muito diferentes. Todavia, a tradução sozinha não pode ainda constituir magia, pois essa só aparece na declaração do anúncio de que o ato da tradução resultou não ape- R E V I S T A U S P , S Ã O P A U L O ( 31 ) : 3 0 - 4 1 , S E T E M B R O / N O V E M B R O 1 9 9 6 39 nas na palavra francesa Demi-Tasse, mas teve também o resultado imediato prático de gerar uma bebida. O resultado da tradução é um “acontecimento”, um evento cuja conseqüência é supostamente “licor de café creme e refinado espírito francês”. CAUSALIDADE E SEMIOSE Ícone, índice e símbolo são tipos de signos de tal generalidade que podem ser encontrados em qualquer lugar no reino dos signos. Em contraposição à dimensão pragmática, a análise da dimensão semântica não tem mostrado até o presente nenhuma característica distintiva da magia. Porém, é precisamente na dimensão semântica que muitas teorias da magia têm localizado a característica particular desse modo arcaico de pensamento. Essas teorias sustentam que na magia a relação entre signo e objeto é tomada erroneamente como uma relação entre causa e efeito. Semiose é confundida com causalidade. Nas palavras de Frazer (1922, p. 26), “o homem confundiu a ordem de suas idéias com a ordem da natureza, e assim imaginou que o controle que tem, ou parece ter, sobre seus pensamentos permitiulhe exercitar um controle correspondente sobre as coisas”. De acordo com essa concepção, a magia baseia-se numa falácia semântica (cf. também Maritain, 1957). Essa confusão entre causalidade e motivação semiótica pode ser descrita em termos das falácias que a antiga lógica distinguia. Se o signo mágico for um índice, temos as falácias do post hoc, ergo propter hoc (após isto, portanto, devido a isto), juxta hoc, ergo propter hoc (ao lado disto, portanto, devido a isto) ou pars pro toto. No caso da motivação icônica, a falácia pode ser resumida através do antigo sofisma similia similibus evocantur: a hipótese de que “o semelhante produz o semelhante, ou um efeito assemelha-se a sua causa” (Frazer, 1922, p. 14). CONCLUSÃO Gostaria de resumir os argumentos, enfatizando que a semiose mágica com efeitos imediatos no mundo dos objetos não pode 40 existir em nossa assim chamada realidade. O encontro de Ali Babá com a magia ocorreu somente em um mundo fictício. Na propaganda, a magia desse tipo pode somente ser entendida como uma metáfora. Na magia cultural primitiva e parcialmente, também, na superstição folclórica, a magia existe apenas como um modo de pensamento, como uma pretensão ou uma crença em um efeito prático imediato. No entanto, como sabemos hoje, essa crença, embora se baseie em uma falácia semiótica, pode assim mesmo resultar no desejado efeito prático. O encantamento dos mágicos pode ser tão eficiente quanto os esforços de um psicoterapeuta moderno. Vistas desse ponto de vista pragmático, as falácias semióticas delineadas neste trabalho não são necessariamente as principais características distintivas da magia. O que permanece é a comunicação com um destinatário humano, com objetivo pragmático de influenciar o mundo. Nesse sentido bem geral, uma nova afinidade entre a magia e as estratégias persuasivas da propaganda e da comunicação de massa é evidente. Como a magia, a propaganda também objetiva não somente influenciar as mentes dos consumidores, mas também alcançar efeitos práticos, principalmente o efeito de compra e consumo de mercadorias. Enquanto nesse sentido geral a magia, a propaganda e a retórica da persuasão são semelhantes, uma afinidade adicional, mais particular, entre magia e propaganda repousa no efeito sobrenatural que é freqüentemente, apesar de não necessariamente, prometido pelos anunciantes assim como pelos mágicos. Na propaganda, encontramos essa característica da magia tanto nos rituais de compra quanto nos de consumo. No primeiro, encontramos o mito dos incríveis preços baixos e a fantástica oportunidade de uma compra única. No último, temos o mito da mercadoria que garante qualidade ilimitada e inacreditável, bem como um prazer infindável de consumir. Com esse retorno às realidades, ou melhor, irrealidades, econômicas da moderna comunicação de massa e do consumo, gostaria de concluir estas reflexões sobre a semiótica da magia. R E V I S T A U S P , S Ã O P A U L O ( 31 ) : 3 0 - 4 1 , S E T E M B R O / N O V E M B R O 1 9 9 6 BIBLIOGRAFIA APHEK, Edna & TOBIN, Yishai. “The Semiology of Cartomancy”, in American Journal of Semiotics, 4.1-2, 1986, pp. 73-98. BAUDRILLARD, Jean. Le Système des Objects. Paris, Gallimard, 1968. BRUNEAU, Charles. “Euphémie et euphémisme”, in Festgabe Ernst Gamillscheg. Tübingen, Niemeyer, 1952, pp. 11-23. CHASE, Stuart. The Tyranny of Words. New York, Harcourt & Brace, 1966 (1938). FRAZER, James George. The Golden Bough. London, Macmillan, 1967 (1922). FREUD, Sigmund. Totem and Taboo. New York, Norton, 1962 (1913). GRATTAN, J. H. G. & SINGER, Charles. 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