DESIGNCENTER Marinha Grande
Comunicação para o Colóquio Design e Tecnologia do Vidro
ESAD.cr / IPL, Escola Superior de Artes e Design das Caldas da Rainha
6 de Outubro de 2014
OS DESENHOS DO VIDRO
Intencionalidade e representação pelo desenho no trabalho do vidro
Philip Cabau
Sinopse
O vidro é um material absolutamente singular. As suas qualidades físicas, químicas – e
mesmo alquímicas – fazem dele um caso excecional na história da cultura material. Ele atravessa
distintas épocas e culturas, testemunhando nessa continuidade uma invulgar resiliência às
alterações técnicas e às mudanças de paradigma. O vidro convoca uma grande multiplicidade de
pontos de vista sobre o fazer: o saber prático do artesão, o conhecimento tecnológico do
engenheiro, a perspetiva integradora do designer ou a perceção subjetiva do artista. Mas, nesse
processo de trabalho e reinvenção do vidro (e sobre o vidro), será que todos eles vêm realmente o
mesmo? Qual a representação – ou representações – que dele fazem e qual o acesso que cada
um deles tem ao vidro?
Esta comunicação pretendeu explorar o lugar que neste processo ocupa a questão da
intencionalidade (na configuração desse acesso), bem como o papel do desenho na fixação dessas
representações – tal como são concebidas e desenvolvidas no interior das áreas profissionais que
dependem diretamente dos materiais e, em particular, o caso do vidro.
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OS DESENHOS DO VIDRO
Intencionalidade e representação pelo desenho no trabalho do vidro
1. A fratura nas perceções do vidro:
Pilar do Templo Jodo-ji, no Japão, séc-XII, Fotografia e desenho com esquema construtivo
Se estivéssemos aqui a falar da madeira e não do vidro, seria mais fácil para mim discorrer
e exemplificar sobre os lugares e as funções do desenho na conceção e nos processos de
construção de objetos. Não apenas porque se trataria de um material que conheço melhor – uma
vez que o meu conhecimento do vidro assenta sobre a consciência que tenho da minha ignorância
dele) –, mas sobretudo porque os procedimentos de transformação da madeira convocam e
definem de forma muito clara o modo e os tipos de desenho necessários a cada fase de fabrico. E,
sobretudo, porque da madeira todos conhecemos um pouco. Das variedades arbóreas e dos tipos
de madeira que dela resultam, da escolha e abate das árvores e do aproveitamento do seu corte,
da secagem e tratamento do material, da sua seleção conforme os destinos das peças, dos
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desperdícios e seus derivados. E, em maior ou menor medida, todos sabemos algo das aplicações
do material, da madeira intacta e dos aglomerados e folheados, dos encaixes e montagem, dos
acabamentos, da carpintaria e marcenaria, do mobiliário e outros objetos em madeira. Em suma,
partilhamos uma perceção do território que caracteriza essa vida do material que vai da planta ao
uso dos objetos e à reciclagem e aos produtos derivados da madeira, como o papel. É, em suma
possível desenvolver, sobre esse terreno comum, taxinomias e narrativas sobre os modos como o
desenho vai incidir nesta ou naquela fase do processo e sobre o modo como ele se manifesta e
apoia cada um dos ofícios e profissões associadas a este material, sobre as suas associação a
ferramentas projetuais indispensáveis de apoio às transformações que a matéria vai sofrendo.
Formas de rutura de um frasco de vidro
Para um adulto, o vidro é sobretudo um contentor (hoje uma alternativa algo arcaica ao
plástico) algo que existe fixado numa forma, definitiva, que se parte e cuja alteração corresponde
ao colapso mesmo do próprio sentido do objeto. É que ao contrário de outros materiais, o vidro não
admite o incompleto, a erosão, o envelhecimento. Um objeto de vidro não suporta qualquer desvio,
como acontece com outros materiais. Não é portanto de estranhar que a maior parte das pessoas
tenda a identificar o vidro com as formas dos objetos que são produzidos com este material. O
objeto é aqui o material de que é feito: vidro é o frasco, a garrafa, o copo ou, como o nome o indica,
a superfície translúcida ou transparente contida no interior de um caixilho de uma janela. É uma
entidade desprovida de uma história acessível ou inteligível. O vidro, independentemente da sua
espessura, da sua resistência, ou conhecemo-lo intacto ou então está partido, quebrado,
estilhaçado. Não conhece, para o seu utilizador corrente, o seu consumidor, outro estado físico. Ou
seja, um objeto de vidro ou está bom (como novo) ou está destruído. O objeto de vidro, ao revelar
uma anomalia, deixa de existir – até porque a sua reparação não é fácil nem evidente, como
acontece com outros materiais (como por exemplo, a madeira). Esta sua condição investe-o de
uma estranha rigidez. Portanto, enquanto objeto material ele existe num estado de figuração única
que tende a fazer coincidir o material com o objeto que esse material assume numa determinada
fase da sua existência.
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Objetos de vidro
Boca de forno vidreiro
Há consequentemente uma fratura nas perceções do vidro – e na representação que se faz
dos seus objetos. Por outras palavras, falar do vidro corresponde a uma separação da perceções:
de um lado estão aqueles que trabalham com o processo de fabrico do vidro e do outro aqueles
que apenas conhecem objetos em vidro, intactos ou aos pedaços. O facto de os objetos em vidro
resultarem do arrefecimento de uma matéria compósita liquefeita por ação do calor pertence
certamente ao senso comum. Mas isso não impede que tendamos a conceber o vidro como o
material mais inflexível e sobretudo o menos dúctil de entre todos os que conhecemos. Apenas
aqueles que possuem uma ligação direta com o material, aqueles que numa caracterização mais
alargada chamamos de especialistas, possuem outra perspetiva. Estes possuem como que uma
chave de acesso ao fluxo que define a vida do vidro. Mas nem todos acedem a essa realidade na
mesma medida. Nem com a mesma nitidez. Estas comunidades tendem a representar o vidro
segundo paradigmas distintos, como veremos adiante. As funções do desenho na representação
do vidro são díspares e dependem diretamente do papel que o desenho cumpre no espaço de cada
uma dessas profissões.
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2. O trabalho com o material: os vários desenhos
No complexo painel de práticas e profissões que lidam diretamente os materiais e as suas
transformações, são bem evidentes as diferenças e mesmo as clivagens que separam as diversas
perspetivas sobre esse mesmo material. Aquilo que o material é e as representações que o
material exige – para ser compreendido, trabalhado – diferem de prática para prática. Conhecemos
bem algumas dessas clivagens: arte de um lado, engenharia de outro; ciência e tecnologia de um
lado e prática artesanal de outro, etc. Contudo, estas distâncias revelam, em última instância, as
representações que temos sobre o material e o nosso lugar perante o mesmo; e do que o material
nos solicita ao longo das suas várias transformações.
Numa primeira leitura, dir-se-ia que cada zona profissional de trabalho do material (e de
conhecimento sobre esse material) ocupa o seu lugar numa rede mais ou menos intrincada
definindo, através do seu trabalho os limites desse mesmo espaço. As várias profissões
trabalhariam assim num mesmo plano, partilhando complementaridades. No entanto, numa análise
mais alargada que tente contextualizar o que essas diferenças significam, verificamos que esta
pluralidade tende a organizar-se em dois grandes grupos. Com efeito, os pontos de vista sobre os
materiais organizam, na prática como nos estudos teóricos sobre o assunto, dois grandes grupos,
dois paradigmas. No primeiro o material é concebido como uma entidade matérica, a qual é
passível de ser sujeita a uma ação da vontade. Assim, a matéria, por via de uma ação precisa cuja
imagem se encontra na mente do agente, adquire forma, torna-se material, objeto. O
acontecimento pode ser circunscrito com considerável precisão e os seus limites ajudam a
identificar o problema presente nessa ação sobre a matéria, permitindo um trabalho relativamente
isolado dos restantes.
Para criar algo, dizia já Aristóteles, é preciso juntar forma (morphe) e matéria (hyle). Esta
formulação sobre o processo criativo veio, com a modernidade e a consolidação dos métodos
cartesianos, enraizar-se no nosso pensamento dos materiais. Mas este modelo tornou-se
progressivamente mais e mais desequilibrado e a forma passou a ser considerada como a
imposição determinada por um agente sobre a matéria que, por sua vez, passou a ser considerada
como uma entidade passiva e inerte – sujeita a esta ação externa. A esta perspetiva chamou-lhe o
filósofo Georges Simondon, de Hilemórfica. Já o segundo paradigma propões uma outra
aproximação totalmente distinta à matéria, completamente distinta do primeiro. Para esta conceção
dos materiais, eles só existem enquanto fluxo ininterrupto da matéria em transformação (não
conhecendo esta outra condição). Trabalhar um material é, consequentemente, acompanhar,
durante uma parte do seu percurso, o fluxo da sua transformação. Denominaremos esta perspetiva,
para adotar a denominação avançada pelo Antropólogo Tim Ingold, de Ecologia dos Materiais.
Estas duas formulações são, nas práticas como na teoria, antagónicas; e como opostos
tendem a neutralizar-se. Não me parece todavia que a categórica recusa de uma perspetiva pela
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outra consiga configurar o quadro real no qual os materiais existem e são trabalhados. Na nossa
opinião, a questão do desenho no trabalho dos materiais pode ajudar a clarificar o espaço de
convivência de ambos os pontos de vista sobre o assunto. Assim, e para resumir as questões
numa pergunta operativa, podemo-nos perguntar: “Como se pensa o desenho dos (e nos)
materiais?” Ou, alternativamente: “Quais as funções do desenho no trabalho dos materiais?”
No trabalho e transformação dos materiais, considerado aqui como instanciação da matéria
e não (o que ocorre frequentemente) como estado prévio de um objeto em devir – o desenho
cumpre funções distintas, possui uma determinada utilidade ou relevância conforme a natureza da
ação do trabalho que sobre ele – e com ele – é exercido.
O diagrama apresentado acima é um mero esboço concebido para auxílio da compreensão
do que pode o desenho na relação de trabalho que um profissional mantém com um determinado
material. Como o nome indica trata-se aqui de tentar identificar as zonas de incidência do desenho
– no trabalho dos materiais. As duas áreas coloridas correspondem àquilo que podemos identificar
como os dois grandes paradigmas usados para o entendimento do material – tal como referimos
atrás. Assim, o retângulo superior, a azul, concebe o trabalho do material como um sistema
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estruturalmente hilemórfico, no qual os objetos resultam de uma ação sobre uma matéria. Esta
ação produtora de forma é, no essencial, o momento da confluência das projeções de uma imagem
– preexistente na mente do ator – sobre o material.
O segundo retângulo, posicionado abaixo, a amarelo, configura um olhar distinto que é, até
certo ponto, complementar do primeiro – e fundamental para entender a própria noção de material
e seu “ciclo vital” às nossas mãos: nele o material é concebido como fluxo. Ou seja, um espaço no
qual não é possível antecipar o devir da matéria fora da presença do material em transformação.
Finalmente, da zona de sobreposição dos dois retângulos resulta um espaço singular, que
podemos caracterizar como contendo projeções instáveis. Este é, para o designer, o centro do seu
espaço natural no uso do desenho no seu trabalho.
As colunas, à direita, tentam caracterizar, em traços largos, as zonas de incidência do
desenho em função de quatro grandes grupos de ‘praticantes’ sobre o material (na sua relação com
o material ‘em fluxo’, repito, não com o objeto composto pelo material): as ciências e engenharias;
as diversas áreas do design, o espaço das praticas artesanais – quer falemos do tradicional
artesão isolado no seu trabalho oficinal transformador, quer se trate de um trabalho com uma forte
componente artesanal inserido numa cadeia produtiva industrial e tecnológica; e, finalmente, o
espaço heterodoxo das artes, nomeadamente das artes plásticas.
Note-se que as fronteiras entre os diversos usos do desenho são elásticas. Elas definem
esferas de procedimentos que podem, até certo ponto e conforme a natureza de cada um dos
agentes profissionais e da sua formação, mover-se para um ou outro lados. Pensamos todavia que
a sua ordem – e a relação que cada uma das áreas profissionais com elas possui – não são
comprometidas por esta resiliência das fronteiras.
Passo adiante a explicitar brevemente o que se entende por cada uma das funções do
desenho no acompanhamento do material.
O desenho como exploração diagramática:
Entendemos aqui diagrama como anotação esquemática que apesar da sua rapidez de
execução e do seu carácter fragmentário assume já elementos gráficos indicativos que indiciam o
contacto com a matéria. Não são ainda, todavia, inscrições que revelam contacto com os materiais,
nem antecipam as formas do porvir do material propriamente ditas. Este tipo de desenho ou
anotação encontra-se numa fase muito inicial do processo e é, por assim dizer, ainda incorpóreo.
Daí tratar-se de um registo que é impensável para um artesão (que não concebe uma
representação fora do contacto com o material), do designer (cuja experiência de projetação ocorre
sobre a representação do real – e , de certo modo, em lugar do real) ou do engenheiro (uma vez
que este tipo de inscrição ainda não trata de um problema tecnológica ou cientificamente
identificável).
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Dan Graham, esboços para esculturas
O desenho como acompanhamento gráfico do material (em transformação):
Este tipo de desenho não existe fora do material. Ou, mais exatamente, ele passa-se com e
à volta do material. Na produção das coisas, utensílios e objetos considera-se que o artesão não
desenha. O desenho é considerada uma ferramenta do designer, do arquiteto – ou mesmo, noutros
moldes, do artista plástico. O artesão trabalha diretamente com e sobre o material, não recorre a
representações mediadas sobre o mesmo. Quem, no entanto, acompanhou um artesão no seu
trabalho, independentemente das áreas e materiais nas quais o seu trabalho incide, sabe quenão é
exatamente assim. Não apenas o artesão muitas vezes desenha, mesmo que sempre sobre ou ao
lado do material, um desenho de marcação ou de explicitação (de um problema concreto, de uma
geometria, de um problema de medida...), como ele sustenta o seu trabalho sobre dispositivos e
utensílios que, por sua vez, implicaram um pensamento pelo desenho. Neste sentido é possível – e
desejável – falar de desenho no caso do trabalho artesanal. Mesmo que se trate de um uso muito
particular do desenho. Os gestos do artesão acompanhando o trabalho do material são, eles
mesmos, suscetíveis de serem traduzidos em linguagem gráfica. É nesta categoria que se
inscrevem os diagramas ilustracionais que acompanham, por exemplo, a montagem dos modelos,
ou os manuais associados aos ofícios. Contudo, tal como sucede com uma receita de culinária,
apenas uma parte do saber envolvido no trabalho do artesão (do cozinheiro, para o exemplo do
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livro de receitas) consegue ser fixado em descrições exteriores à vastíssima soma de gestos e de
opções que determinam cada sequência. Seria, para retomar a ilustração que abre esta leitura,
como isolar da sequência de imagens apenas duas ou três delas para explicar o que, em termos
anatómicos e dinâmicos acontece no salto ao eixo. Tudo o que esse desenho pode ser é uma
pobre transcrição da experiência do que sucede no trabalho artesanal do material. O desenho
reside quase integralmente no corpo do fazedor.
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O desenho como antecipação:
Num certo sentido todo o desenho é antecipação, pois independentemente do momento em
que o desenho incide sobre a transformação do material, ele substituí-o parcialmente – e , até certo
ponto, substitui o próprio objeto, precipitando-o. Existe contudo um determinado tipo de desenho
que antecipando as formas que o material poderá assumir, não é ainda uma projeção no papel das
figurações em formação na mente do desenhador. É um desenho que se encontra ainda
estreitamente ligado às condições que caracterizam o material em fluxo. Ele é distinto da fase
seguinte pois suporta ainda um considerável espaço de abertura, de provisoriedade, enquanto que
o desenho como projeção do objeto tenta já fixar os dados precisos da (en)formação dos objetos,
como dados quantificáveis, qualidades e aparência, gerindo e articulando a informação no contexto
geral da complexidade da produção e dos seus agentes.
Siza Vieira, pia batismal
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O desenho como projeção do objeto:
Quando se fala de desenho do projeto é geralmente desta fase de uso e ação do desenho
que se refere. Nas práticas do design e da arquitetura são agrupados sob esse nome diversas das
fases que aqui classificámos no âmbito das funções do desenho no acompanhamento do trabalho
dos materiais. Consideramos todavia aqui um certo tipo de desenho, cujos contornos são definidos
exatamente como mostra o diagrama. Ou seja, é aquele tipo de desenho que pertence à esfera do
material em transformação propriamente dita, isto é, o espaço no qual não é possível conceber o
objeto-desenho sem um contacto com o material concreto... mas que é já uma projeção mental
independente da presença (e imanências) do material. É um espaço híbrido e transitório por
definição e corresponde simultaneamente a uma atração e uma repulsão entre os dois paradigmas
de conceção do material, aquele caracterizado por hilemórfico e o outro, do material em fluxo de
transformação. Curiosamente – e apesar de este desenho ser caracterizado por se encontrar sob o
chapéu de ambas as perspetivas sobre o trabalho dos materiais, ele é o tipo de desenho mais
sujeito a equívocos por parte dos seus utilizadores. É que abaixo dele o desenho não pode
prescindir do material porque ele é, também, o próprio material, está como que no seu interior. E
acima dele, o desenho é transitivo, remete sempre para os dados inerentes ao material. Apenas
nesta condição de projeção o desenho pode, face ao material, sofrer a ilusão de poder prescindir
dele. E nesta pseudo-autonomia reside muita da fragilidade no uso do desenho por parte de muitos
designers.
Alvar Aalto, Candeiro
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O desenho como comunicação:
São várias as funções do desenho enquanto ferramenta de comunicação. Este tipo de
desenho, que só pode ocorrer quando a diversidade das opções que caracteriza a fase anterior, do
desenho de projeto, confluem numa solução a prosseguir, surge para comunicar, a uma rede
profissional mais ou menos alargada e/ou complexa, as decisões sobre o rumo do material. Neste
sentido a natureza deste tipo de desenho depende da escala e complexidade dessa rede técnica
que doravante acompanhará a produção do objeto. Já não nos encontramos aqui, definitivamente,
do lado do material em transformação. Na verdade, este tipo de desenho entra precisamente no
momento em que é possível isolar, das restantes, uma imagem singular do fluxo (do material em
transformação – um pouco como um fotograma de um filme. Ou, noutros termos, quando foram
fixadas as variantes fundamentais do processo.
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O desenho como representação técnica:
O arquiteto Peter Zumthor chama a este desenho de “partitura da obra”, numa evidente
analogia com a anotação musical. O desenho técnico, com efeito, cumpre muitas das funções
associadas à informação técnica sobre o acontecimento-objecto em fase de produção e sua
caracterização. Este tipo de desenho difere todavia na partitura musical no sentido em que, na sua
relação com o material em formação e ao contrário desta, ele ocupa apenas uma – por vezes
pequena – fração de tudo o que há a informar sobre essa produção. Ou seja, a representação
técnica só parcialmente é constituída por desenhos. Basta, para tal, pensarmos naquilo que
constituí efetivamente o desenho técnico: quantificações. De medida, de quantidade. Este tipo de
desenho existe efetivamente não porque nenhum outro meio o pode substituir, mas porque a sua
natureza permite uma economia muito singular e eficaz, permitindo a acumulação, nessa imagem
(ou mais frequentemente, conjuntos de imagens), uma inúmera quantidade de dados sobre o objeto
em produção. Na verdade, a representação técnica à volta da produção de um objeto pode, em
determinados casos, no trabalho dos materiais, prescindir integralmente do próprio desenho.
O desenho como arquivo:
Tal como referimos atrás, as classificações aqui propostas servem um propósito analítico
sobre as funções do desenho no acompanhamento do trabalho dos materiais. As fronteiras entre
categorias vizinhas são, por isso, elásticas ou, pelo menos, oscilantes – como acontece com as
barreiras flutuantes que separam as pistas de natação numa piscina. Quando falamos do desenho
como ferramenta de arquivo incidimos aqui na sua vertente tendencialmente comercial. Ou seja, na
dimensão da memória que está associada à noção de arquivo. Essa informação será depois
tratada graficamente em função do perfil do seu destino: publicidade, divulgação, projetos de
continuidade, etc. Contudo, é de notar que nos ateliers o conjunto de documentos que constituem
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esse arquivo, que é frequentemente denominado “arquivo morto”, e é esse desenho técnico da fase
final do processo de produção que constituí a peça principal desses mesmos arquivos. Tal como
acontece com todas as coleções, as representações de uma coleção dependem em grande parte
dos intuitos do colecionador.
Philip Cabau, Outubro de 2014
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