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A tragédia de Yu Xuanji: Perseguida por ser uma mulher livre

2023, Oriente 23: Estudos chineses. 1ª Ed. Rio de Janeiro: Proj. Orientalismo/ UERJ, 2023. 87 p.

Capítulo publicado no e-book "Oriente 23: Estudos chineses", associado ao 7º Simpósio Eletrônico Internacional de Estudos Orientais. Projeto Orientalismo. 2023. SBN 978-65-00-74871-0. No texto, é discutido sobre como a reputação da poeta chinesa Yu Xuanji afetou a apreciação e o estudo crítico dos seus poemas de cunho autobiográficos, por conta de poetas contemporâneos que a desclassificava enquanto poeta por conta da sua vida pessoal, enquanto cortesã e posteriormente sacerdotisa taoísta.

ESTUDOS CHINESES André Bueno [org.] Reitor Mario Sérgio Alves Carneiro Chefe de Gabinete Bruno Redondo Direção Pró-reitora de Extensão e Cultura Cláudia Gonçalves de Lima Produção Obra produzida e vinculada pelo Projeto Orientalismo, Proj. Extens. UERJ Reg. 6078, coordenado pelo Prof. André Bueno [Dept. História]. Rede www.orientalismo.net Rede https://aladaainternacional.com/aladaa-brasil/ Ficha Catalográfica Bueno, André [org.] Oriente 23: Estudos Chineses. 1ª Ed. Rio de Janeiro: Proj. Orientalismo/ UERJ, 2023. 87 p. ISBN: 978-65-00-74871-0 História da Ásia; Orientalismo; China; Diálogos Interculturais. 2 Apresentação Oriente 23 é uma coleção de livros dedicada aos estudos orientais no Brasil. Construída a partir dos debates realizados no 7º Simpósio internacional de Estudos Orientais, organizado pelo Projeto Orientalismo da UERJ, Oriente 23 é formada de maneira interdisciplinar e transversal, conjugando as mais diversas experiências no campo dos estudos das civilizações do oriente próximo e do extremo oriente. Fazendo uma abordagem multitemporal e intercultural, a coleção emprega estratégias decoloniais no estudo do orientalismo, das civilizações asiáticas e dos trânsitos culturais entre os muitos orientes possíveis, procurando compreender suas características originais e sua recepção no imaginário e na intelectualidade ocidental. Nesse sentido, a coleção Oriente 23 é formada por uma série de volumes que compreendem cada uma dessas dimensões espaçogeográficas e culturais, buscando transmitir ao público uma nova perspectiva de conhecimento, capaz de ampliar os horizontes intelectuais, acadêmicos e educacionais do contexto cultural brasileiro. Estão aqui presentes estudos dos mais diversos campos, que tentam apreender a variedade das expressões das culturas asiáticas, de moda torná-las inteligíveis ao público brasileiro. Seja bem-vindo a nossa coleção! Volumes de Oriente 23:         Orientalismos e Literatura Orientalismos: Mídias e Arte Visões do Orientalismo Estudos sobre Oriente Médio Estudos Chineses Estudos Japoneses Estudos Coreanos Estudos Asioindianos 3 4 Sumário UMA NOVA EPISTEMOLOGIA PARA AS NARRATIVAS DA HISTÓRIA CHINESA, por André Bueno .. 7 A RECONSTRUÇÃO DA CHINA E A AMIZADE SINO-SOVIÉTICA ATRAVÉS DAS PÁGINAS DA REVISTA CHINA RECONSTRUCTS NOS ANOS 1950, por Anna Maria L. Neves ............................. 10 O DECLÍNIO DO IMPÉRIO HAN (206 A.C – 220 D.C), por Gabriel Requia Gabbardo.................... 18 O CENTENÁRIO DE PUBLICAÇÃO D’O GRITO” (1923), DE LU XUN: MARCO HISTÓRICO NA TRADIÇÃO LITERÁRIA CHINESA MODERNA, por Luiz Gabriel Ribeiro Locks ................................ 26 A TRAGÉDIA DE YU XUANJI: PERSEGUIDA POR SER UMA MULHER LIVRE, por Marcela Langer e Otávio Luiz Vieira Pinto................................................................................................................ 33 A POLÍTICA CHINESA SOBRE A EMIGRAÇÃO COM CONTRATO (1845-1859): AS PRIMEIRAS DECISÕES DAS AUTORIDADES DO GUANGDONG E OS PARECERES DO IMPERADOR, por Maria Teresa Lopes da Silva ................................................................................................................... 40 CHINA T’ANG: COSMOPOLITA E ETNOCÊNTRICA, por Matheus Mazurkievicz Sekikawa ........... 49 O NATURALISMO EPISTEMOLÓGICO DO FILÓSOFO XUN, por Matheus Oliva da Costa ............. 57 O PAPEL DAS CONCUBINAS NA DINASTIA SONG, por Renata Ary .............................................. 66 PEROZ E OS ÚLTIMOS SASSÂNIDAS NA CORTE TANG: UMA ANÁLISE DAS RELAÇÕES SINOSASSÂNIDAS AO LONGO DA HISTÓRIA, porSamantha Alves de Oliveira..................................... 73 5 6 UMA NOVA EPISTEMOLOGIA PARA AS NARRATIVAS DA HISTÓRIA CHINESA, por André Bueno ‘Assim, a tarefa do historiador é falar sobre todos os aspectos de uma Dinastia [contexto histórico], abordar tudo que acontece entre os quatro Mares. Sobre seus ombros cai a responsabilidade de decidir o que é falso e verdadeiro. Nenhuma outra tarefa é tão laboriosa quanto a dos que manejam o pincel’. [Liuxie] A compreensão da história da China não passa tão somente pelo conhecimento superficial de sua imensa trajetória histórica. Decorar o nome de autores e livros é um começo, mas mergulhar a fundo na historiografia chinesa significa topar com conceitos e teorias distintas daquelas encontradas no Ocidente. Há uma atitude problemática, e ainda reincidente, relativa à ideia de racionalidade e colonialidade que impomos muito naturalmente ao pensamento chinês. Quando este se apresenta segundo critérios científicos que nos são próprios, o aprovamos – como se a racionalidade fosse uma propriedade eminentemente Ocidental. Considerar essa mesma ideia de racionalidade, contudo, já é em si um ponto delimitador, supondo que ‘razão’ não possua qualquer significado ou variante que torna o conceito polissêmico. Assim sendo, somente aquilo que se ‘parece’, de forma análoga, com o que produzimos, faria ‘sentido’, excluindo de uma perspectiva de diversidade o que não é acessível pela ‘nossa’ racionalidade. Mesmo o mais bem intencionado dos intelectuais pode cair nessa armadilha, que não o permite escapar da gaiola logocêntrica criada por Hegel e defendida ardorosamente por autores como Deleuze e Derrida. O segundo problema, porém, é que disposto a estudar melhor a China – num sensação indescritível de concessão, incômodo ou curiosidade – o estudioso usualmente escorrega na falácia orientalista que ainda campeia a área da Sinologia. A crítica Saidiana [1998] mostrou que construímos orientes imaginários, hierarquizados e subjugados; Irwin [2008] nos mostrou, porém, que sem eles não chegaríamos a qualquer Oriente; Gong [2020] revelou que a Sinologia cumpre esse papel dúbio, de investigar a distorcer a China; mas Vukovich [2019] voltou ao ponto de origem, mostrando que ainda somos colonizados e orientalistas ao falar da China. Estamos de tal maneira contaminados pela hierarquia imaginária denunciada por Said que, quando analisamos qualquer problema histórico relativo à China, temos por hábito assumir que aquilo que os chineses nos dizem só está ‘correto’ se concordar com nossas aspirações e impressões. Quando algum autor chinês nos informa de algo que não concordamos, ou não gostaríamos de ouvir, refutamos a ideia como se fosse irracional ou equivocada, uma impressão incorreta sobre si mesmo. Vukovich analisa muito bem esse 7 fenômeno no episódio da Praça Tiananmen, em 1989; qualquer leitura que divirja da ideia de que os ‘chineses lutavam pela democracia e pelo fim do regime comunista’, tão enfaticamente propalada pela mídia norteamericana, é automaticamente refutada, e interpretada como manipulação. É como se no país mais populoso do planeta ninguém soubesse ou pudesse pensar de forma livre e autônoma; e qualquer conquista no âmbito da ordem pública, da economia, da política, ou seja de qual campo for, é sempre interpretado de forma pejorativa, como resultado de um ‘sistema opressor’ – que somente é assim, por que não funciona do mesmo modo que o Ocidente entende que ele deveria ser [Ninio, 2014]. Portanto, acessar ao mundo da historiografia chinesa, com suas formas de pensar história, a persistência da tradição e as mudanças contemporâneas é uma tarefa complexa e de fôlego. Há uma persistente dificuldade em compreender – e precisar – os limites e inter-relações entre os campos de saber na tradição chinesa. Isso implica, diretamente, naquilo que conhecemos como Epistemologia, ou seja, de como se constrói conhecimento. Por conta da visão de estagnação e imobilismo que se aplicou á China – efeito direto do orientalismo, e filtrada erroneamente pelo conceito de longa- duração Braudeliano [mas não sem certa colaboração do próprio] – o pensamento chinês tem sido traduzido a partir de comparações epistêmicas que o situam no passado. A ciência chinesa, com certeza, teve sua gênese no chamado ‘mundo antigo’ [se aceitarmos, igualmente, a periodização ocidental]; mas ela não parou por lá de forma alguma. Sua sequência brilhante de grandes invenções para a Humanidade [Temple, 2006] mostra que os chineses estiveram longe do imobilismo; mesmo assim, a ‘episteme’ chinesa, quando analisada, é alocada num sentido de ‘tradicional’ que, sinonimicamente, acaba sendo entendido como ‘primitiva’ ou ‘antiga’. E, novamente, seus sucessos são lidos através de uma grade racionalista que nos é própria. Tomemos um exemplo: Lawrence Sklar [1992], falando do surgimento da filosofia e da ciência no Ocidente, afirmou que: “A demarcação das ciências naturais em relação à filosofia foi um processo longo e gradual no pensamento ocidental. Inicialmente, a investigação da natureza das coisas consistia numa mistura entre o que hoje seria visto como filosofia [considerações gerais das mais vastas sobre a natureza do ser e a natureza do nosso acesso cognitivo a ele] e o que hoje seria considerado como próprio das ciências particulares [a acumulação de fatos da observação e a formulação de hipóteses teóricas gerais para os explicar]. Se olharmos para os fragmentos que nos restam das obras dos filósofos pré- socráticos, encontraremos não só tentativas importantes e engenhosas para aplicar a razão a questões metafísicas e epistemológicas vastas, mas também as primeiras teorias físicas, simples mas extraordinariamente imaginativas, sobre a natureza da matéria e os seus aspectos mutáveis”. 8 O que Sklar deixa claro é que, no início do mundo grego, a Filosofia significava Ciência, e o afastamento dos campos ainda embrionava. Ignorando qualquer raiz ancestral do Egito ou do Oriente próximo, e considerando a separação como evolução, o autor demarca o surgimento da ciência racional ali. Milênios depois, buscamos superar esse abismo, por meio da interdisciplinaridade e da transversalidade. O conceito, este ainda está em debate. Nesse sentido, o historiador das ciências Colin Ronan [1996], falando sobre a gênese da ciência chinesa, afirmava que: “Nem sempre é fácil determinar a quantidade de conhecimento científico que foi transmitida do Ocidente para a China, e vice- versa, pois linhas de pesquisa e invenções independentes mas paralelas poderiam aparecer e apareceram, em ambas as partes do mundo. Por exemplo, parece que a ideia de uma "escada de almas", que se encontraria em Aristóteles e Xuanzi [Hsuan Tzu], nasceu independentemente na Grécia e na China, pois, embora as ideias tenham aparecido com cem anos de diferença uma da outra, ocorreram em uma época em que as condições de viagem entre leste e oeste não eram propícias. Além disso, parece que todo o conceito - que constitui realmente uma expressão da complexidade das coisas vivas poderia ocorrer muita naturalmente a uma pessoa preocupada em explicar e classificar o mundo da natureza. De qualquer maneira, a comunicação entre a China e o Ocidente não era tão rara quanto se poderia imaginar”. Donde se depreende que, aquilo que há de racional na China antiga, o seria pelo seu contato com a ‘razão’ grega. Contrapondo esses dois trechos, poderíamos até pensar que as construções epistemológicas chinesas e ocidentais andaram em paralelo, seguindo um mesmo esquema de interpretação da natureza calcado em um sistema baseado na razão. Todavia, é justamente a ‘divergência das razões’ que criou o afastamento, lançando a China no ‘atraso’[o que não foi de forma alguma real exceto por um breve hiato de tempo entre os séculos 19 e 20]. Boaventura de Sousa Santos [2009] nos mostrou que visão de uma única via epistemológica possível pode se transformar em um grande problema interpretativo. As civilizações humanas, em suas multifacetadas expressões, são capazes de construir sistemas epistemológicos cujas bases e fatores variam de forma ampla. Como Boaventura propõe: “Toda a experiência social produz e reproduz conhecimento e, ao fazê-lo, pressupõe uma ou várias epistemologias. Epistemologia é toda a noção ou ideia, refletida ou não, sobre as condições do que conta como conhecimento válido. É por via do conhecimento válido que uma dada experiência social se torna intencional e inteligível. Não há, pois, conhecimento sem práticas e atores sociais. E como umas e outros não existem senão no interior de relações sociais, diferentes tipos de relações sociais podem dar origem a diferentes epistemologias. As diferenças podem ser mínimas e, mesmo se grandes, podem não ser objeto de discussão, mas, em qualquer caso, estão muitas vezes na origem das tensões ou contradições presentes 1 nas experiências sociais sobretudo quando, como é normalmente o caso, estas são constituídas por diferentes tipos de relações sociais. No seu sentido mais amplo, as relações sociais são sempre culturais [intraculturais ou interculturais] e políticas [representam distribuições desiguais de poder]. Assim sendo, qualquer conhecimento válido é sempre contextual, tanto em termos de diferença cultural como em termos de diferença política. Para além de certos patamares de diferença cultural e política, as experiências sociais são constituídas por vários conhecimentos, cada um com os seus critérios de validade, ou seja, são constituídas por conhecimentos rivais. Em face desta reflexão levantam-se três perguntas. Por que razão, nos dois últimos séculos, dominou uma epistemologia que eliminou da reflexão epistemológica o contexto cultural e político da produção e reprodução do conhecimento? Quais foram as consequências de uma tal descontextualização? Haverá epistemologias alternativas? [Santos, 2009] Tomamos como válida, aqui, uma interpretação de um intelectual europeu, mas não eurocentrado. Se a concepção de episteme é um ponto de partida, ela não é nem uma estrada única, nem da mesma forma, e nem chega necessariamente aos mesmos lugares. Por outro lado, ela compreende pontos de interseção que fazem dialogar os saberes em direção a resultados efetivos sobre o real. Aceitamos esse ponto de vista para compreender a necessidade de estudar, de forma renovada, uma epistemologia das narrativas históricas chinesas contemporâneas. Em ‘Outras Lentes para a China’, o sinólogo francês François Jullien salientou a necessidade de modificarmos nossos critérios epistemológicos e filosóficos ao entendimento da mentalidade chinesa – que ainda está, de certo modo, sendo paulatinamente ‘redescoberta’. Até agora, essa civilização foi visitada segundo nossos critérios de entendimento; e se essa é uma condição necessária, posto que somos ocidentais, por outro lado, isso não nos permitiu vislumbrar, com clareza, o cerne da uma ‘mentalidade chinesa’, se for igualmente possível sintetizar seus milênios de experiência em uma concepção de ‘essencialidade sínica’. Por outro lado, da convivência com esses ‘saberes ocidentais’, a China desenvolve a sua própria estratégia epistêmica, como aludido por Boaventura, no nível político, social e cultural: “Com frequência, objeta-se que os chineses administrariam tudo como nós, já que eles planificam como nós, modelizam como nós etc. O que eu reconheço de bom grado. Mas isso não nos deve deixar esquecer que, ao mesmo tempo em que utilizam totalmente os recursos que lhes oferecem nossas coerências, os chineses se reservam a possibilidade de também voltar àquelas que eles teceram há milênios. Graças a isso, agora eles possuem esta vantagem considerável — e que utilizam estrategicamente — que é a de poder cruzar esses recursos” [Jullien, 2006]. Com essa ideia em mente, podemos então compreender que uma nova abordagem sobre as narrativas históricas chinesas requisitam uma 2 perspectiva epistemológica diferenciada e mais aberta do que a usual. Introduzindo a questão histórica No século XII, o filósofo chinês Zhuxi comparava a análise dos textos históricos, calcada no uso da razão, como: “[encontrar] a fonte de um enunciado, que significa identificar a base que o sustenta. É exatamente como construir um edifício; temos que construir bases sólidas, e só depois podemos erguê-lo. Se os alicerces não forem sólidos, toda a madeira empregada na construção será inútil, e somente servirá para edificar um prédio tão frágil quanto suas bases”. [Trad. Bueno, 2010] Zhuxi falava do princípio central que rege não só o entendimento do pensamento, mas a sobrevivência da cultura chinesa, a ideia de Li 理 [princípio, fundamento, estrutura]. Para os chineses, a continuidade de seu mundo dependia da manutenção e reprodução das ideias concebedoras de sua existência, mas baseadas, inequivocamente, na observação, na experiência e na efetividade de meios e métodos. Ricardo Joppert, [1998] destacado sinólogo brasileiro, resumiu de forma brilhante esse aspecto: “A constatação dessa supremacia da experiência prática sobre a imaginação teórica, tão essencial para a evolução humana, na Idade da Pedra, jamais abandonou o verdadeiro espírito chinês e iria marcar, definitivamente, a civilização do país de um pragmatismo de base: é da periferia do visível que se parte para o cerne, nem sempre evidente, mas que pode ser atingido se seguir o rumo da realidade, o ritmo das linhas diretrizes que desfazem a trama dos emaranhados... E isso, a todos os níveis da vida. Assim, dessa necessidade prática do homem primitivo evoluiu-se para o pensamento abstrato, mas permanece constante, na China, a ideia de que se parte da realidade, lato sensu, vista e comprovada, para a elaboração teórica, que, num estágio mais maduro vai efetivamente permitir à mente os voos do espírito, sempre, porém, em cordão umbilical com a realidade reveladora.” Essa ‘realidade reveladora’ seria o cerne tanto da reflexão filosófica quanto da busca de eficácia – que nunca se desvincularam em demasia. A China, portanto, testemunhou uma longa experiência histórica na qual, em sucessivos tentames e experimentos, construiu um modo de olhar o mundo, com suas próprias regras e conceitos fundamentais. Sua efetividade ficou provada pela contínua expansão de sua população, de sua cultura, e da destacada resistência de suas tradições. Nesse sentido, as descobertas científicas chinesas revolucionaram a qualidade de vida dessa sociedade. Desde os períodos mais remotos da história, os chineses alcançaram grandes avanços nos mais diversos setores. Cobrindo campos distintos como metalurgia, mecânica, química, agricultura, matemática ou física, os conhecimentos produzidos por seus pensadores conseguiram prover as necessidades dessa civilização. 3 No campo do pensamento, essas raízes são igualmente antigas, porém, dinâmicas. Em torno do século -6, a cultura chinesa estruturava-se em torno de um corpo literário bem definido, que respondia a diversas demandas intelectuais: o Shujing contava a história; o Shijing trazia as poesias, que ilustravam a vida cotidiana; o Yuejing preservava as músicas e cânticos sagrados e profanos; o Liji trazia os rituais, costumes e regras sociológicas; e o Yijing era o manual de ciências [e também fazia o papel de oráculo], compondo assim o quadro que ilustrava uma pessoa ‘Educada’ - o Junzi de que Confúcio falava. Depois, o mesmo Confúcio iria inserir o Chunqiu, as crônicas históricas de sua terra natal, entre esses livros clássicos. O século 6 traria uma reviravolta nesse quadro; premida por uma profunda instabilidade política, a China seria lançada num longo e doloroso processo de conflito interno, que se arrastaria por quase três séculos. Diferente dos filósofos gregos, que reimaginaram seu mundo no melhor momento da história de sua civilização, a virada ética no pensamento chinês se dá diante da iminência de uma crise devastadora. Os pensadores se puseram a pensar em como resgatar a harmonia social e política, em como superar a crise e trazer a razão para iluminar os caminhos [o Dao]. As escolas de pensamento chinesa que hoje conhecemos surgiram nesse período, e desenvolveram-se ao longo da história, disseminando-se, se entrecruzando, criando sínteses criativas. Um modelo como esse não tem paralelo direto no Ocidente, exceto pelas religiosidades; e por isso, nossos referenciais de comparação precisam ser readaptados. O choque moderno A China não foi infensa a influências externas [como no caso do Budismo], mas as absorveu e transformou em formas chinesas, dando-lhes um caráter novo. O impacto das teorias ocidentais, após o século 19, não foi diferente – embora a presença colonial tenha sido muito mais agressiva e exigente do que a gradual entrada de ideias ao longo do período imperial chinês. O despertar para o mundo contemporâneo foi lido por reformadores como Kang Youwei ou Liang Qichao, que buscaram preservar o Estado tradicional. O advento da república – um modelo político importado – disseminou a presença das teorias estrangeiras entre os intelectuais, e uma sequencia de episódios desastrosos, que culminaram com a vitória do marxismo em 1949, lançaram novas bases sobre o pensamento chinês e a escrita da história. Mesmo assim, esse processo foi permeado pela força das tradições adaptativas, que incluíram a maneira como os chineses sinizaram as teorias socialistas. Arif Dirlik [1985] mostrou como a historiografia chinesa modificou substancialmente as ideias marxistas, de tal forma que muitas delas são interpretações praticamente inovadoras e bastante diferentes sobre os conceitos originais. Desde a década de 1980, as transformações políticas e econômicas na China se refletiram diretamente na produção historiográfica, modificando linhas e tendências [Bueno, 2016]. Todavia, é ascensão do país no plano globalizado do século 21 que trouxe reinterpretações substanciais em sua escrita histórica, congregando elementos diversos que pedem um esforço 4 interpretativo de nossa parte – implicando na busca da alternativa epistêmica. Para concluirmos, queremos citar três autores recentes, de relevo no cenário intelectual chinês, que podem exemplificar o que afirmamos ao longo de nosso texto: Wang Hui, Gao Mobo e Jiang Qing. Wang Hui e Gao Mobo fazem parte de uma chamada ‘nova esquerda’, que tem buscado reinterpretar o passado recente chinês à luz de discursos originais e pluriteóricos. Nesse sentido, suas abordagens são bem distintas. Wang Hui defende que a efetiva modernização da China começou após o governo de Deng Xiaoping, recolocando o país em um novo contexto mundial. Em sua visão, as adaptações das teorias marxistas ao novo contexto contemporâneo, a flexibilidade em relação às dinâmicas globais e o abandono das posturas radicais da época da Revolução Cultural permitiram ao país superar suas dificuldades internas, o atraso tecnológico e econômico [Wang, 2010]. Nesse sentido, Hui propõe uma abordagem que dialoga com as teorias e ideias ocidentais de mercado, liberdade e governança, mas defende uma originalidade do pensamento chinês frente à esses valores. A flexibilidade do comunismo chinês garantiu-lhe sua sobrevivência e características próprias. O desafio seria descolonizar o pensamento chinês sem oscilar do eurocentrismo a um asiocentrismo: ‘A crítica ao eurocentrismo não deveria tentar confirmar o asiacentrismo, mas eliminar a lógica egocêntrica, exclusiva e expansionista da dominação. [...] Por isso, as novas representações da Ásia devem ultrapassar os objetivos e os projetos dos movimentos socialistas e de libertação nacional do século 20. Nas circunstâncias históricas atuais, elas devem refletir sobre os projetos históricos não realizados desses movimentos’ [Wang, 2005]. Gao Mobo vai em sentido inverso, afirmando que uma característica essencialista da civilização chinesa permitiu a ela continuamente desenvolver-se após as crises do século 20. Gao defende que o período Maoísta, bem como a revolução cultural, foram necessários a renovação do plano político chinês, estruturando um sistema produtivo e intelectual autosustentável e independente [Gao, 2008]. Nessa visão, períodos da história recente da China como a grande fome ou as perseguições a intelectuais precisam ser redimensionadas, como partes integrantes de um longo processo histórico que aperfeiçoou as características políticas de uma nova China: “Os primeiros e segundos 30 anos da RPC são geralmente caracterizados por historiadores, comentaristas e mídia dentro e fora da China através de uma dicotomia entre uma China fechada e uma China aberta, entre uma economia planejada e uma de mercado, entre uma pobreza extrema e a melhoria substancial do padrão de vida, entre políticas ditatoriais e um autoritarismo brando ou duro. Em minha opinião, essa dicotomia reflete uma pobreza de recursos discursivos que não leva em conta a variedade histórica e espacial e a vitalidade da China, e também ignora o papel que o povo chinês desempenhou na formação da história diante de nossos olhos. [...] Esse desenvolvimento econômico é uma jornada consequente e um 5 resultado lógico das bases lançadas justamente na época de Mao, que incluem uma capacidade industrial orgânica graças à qual a China é capaz de produzir qualquer coisa [...] Mas a importância das bases estabelecidas na época de Mao, tanto em termos de hardware industrial e agrícola quanto da perspectiva de software, nunca pode ser enfatizada o suficiente: o progresso humano” [Gao, 2019]. Ademais, ele pressupõe que uma mudança mundial, baseada no papel do Estado, não foi totalmente abandonada – a China estaria cumprindo a etapa de formar um quadro burguês e concorrencial que, no futuro, seria abandonado novamente em prol de uma versão finalmente completa de Comunismo estatal e proletarizado. Jiang Qing vai em outra direção, propondo uma reação tradicionalista. Em sua proposta, um novo modelo de Confucionismo irá substituir o Comunismo, construindo uma nova forma de república constitucional confucionista [2003]. Esse novo arranjo ideal baseia-se no resgate dos elementos das tradições culturais chinesas, que dão a sustentação histórica da civilização chinesa. Segundo ele, o marxismo cumpriu uma função histórica episódica na trajetória do país, mas sua sobrevivência depende das transformações e adaptações feitas pelos próprios chineses – e nesse sentido, o alicerce cultural da civilização, que determina esses processos, é essencialmente a atitude racionalizante do Confucionismo. Consequentemente, a retomada dessa doutrina na estrutura política do país seria um processo natural, repetido e constatado ao longo das eras históricas chinesas: “Porém, além de pensar em questões "chinesas e ocidentais", estou pensando mais em questões "antigas e modernas". O pensamento sobre as questões "chinesas e ocidentais" resolve o "caráter chinês" do modelo de desenvolvimento político da China, enquanto o pensamento de questões "Antigas e Modernas" resolve a "universalidade" do modelo que liga o desenvolvimento político da China; em outras palavras, pensar as questões "chinesas e ocidentais" é fazer com que o modelo de desenvolvimento político da China retorne à sua civilização única. O pensamento sobre questões "antigas e modernas" faz com que o modelo de desenvolvimento político da China reflita um valor absoluto universal e eterno. Se você usar termos filosóficos ocidentais, o pensamento de questões "chinesas e ocidentais" pertence ao particularismo, e o pensamento de questões "antigas e modernas" pertence ao universalismo. O primeiro resolve a "singularidade" do modelo de desenvolvimento político da China na autoidentidade da civilização, enquanto o último resolve a "universalidade" do modelo de desenvolvimento político da China no valor universal da civilização. Esses dois problemas são os maiores problemas enfrentados pelo desenvolvimento político da China no século passado, e os maiores problemas aos quais os intelectuais chineses devem responder no século futuro. Claro, são os maiores problemas que o confucionismo chinês deve resolver no século futuro. Portanto, minha proposta de "Confucionismo 6 Político" é justamente resolver esses dois grandes problemas, isto é, resolver os problemas "chineses e ocidentais" e os problemas "antigos e modernos" [Jiang, 2017]. Como podemos observar, nesses três casos, o uso das teorias políticas e intelectuais importadas são utilizada – e lidas – de acordo com o resgate de um discurso ‘essencialista’ da cultura chinesa. Hui entende que a modernidade ajudou a mudar a China, mas a sociedade mantém uma leitura própria dessas transformações; Gao acredita que o substrato de todas essas mudanças é uma sinidade autêntica, que transformou o marxismo e o renovou para o país e o seu futuro; por fim, Jiang retoma claramente o passado para a construção de um novo projeto de futuro, prevendo uma renovação das tradições [numa postura classificada como ‘conservadora’; mas o que ele quereria conservar com essas mudanças?]. Nos três casos, a autenticidade da mentalidade chinesa é a chave para a flexibilização, adaptação, mudança e sucesso; e todas elas recorrem, igualmente, a uma releitura da história para embasarem suas propostas. Contra as previsões teóricas da racionalidade ocidental, a eficácia do pensamento sínico reside, justamente, no emprego dos elementos de sua cultura em alternativa ao pensamento dominante eurocentrado. A ‘biculturalidade’ chinesa, como Jullien bem apontou, deixa claro que uma renovada consciência sobre o papel da cultura tradicional tem sido o caminho para a reestruturação do país, de sua cultura e história. Para isso, por fim, é necessário então buscar compreender os elementos conceituais que nos desviam de nossa episteme, para embarcar no mundo das mentalidades chinesas – e esse desvio, crucial, pode nos levar a uma nova concepção de escrita histórica e reinterpretação do passado. O movimento de criação e evolução da historiografia chinesa deve ser entendido, pois, como algo que atravessa esses milênios de história e continuidade, e que continua a se reinventar, dentro de um dinamismo próprio que lhe dá autonomia e originalidade. Algo que, por si só, merece um olhar cuidadoso. Referências André Bueno é Professor de História Oriental da UERJ e diretor do Projeto Orientalismo, atuando na área da Sinologia, pensamento clássico chinês e Confucionismo. 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Wang, Hui. ‘A reinvenção da Ásia’ in Le Monde Diplomatique, 1 de fevereiro de 2005. 8 Wang, Hui. 亞洲視野:中國歷史的敘述. Oxford: Oup, 2010a. Wang, Hui. The End of Revolution: China and the Limits of Modernity. London: Verso, 2010b. 9 A RECONSTRUÇÃO DA CHINA E A AMIZADE SINOSOVIÉTICA ATRAVÉS DAS PÁGINAS DA REVISTA CHINA RECONSTRUCTS NOS ANOS 1950, por Anna Maria L. Neves Introdução Esse artigo é uma breve análise da revista bimestral China Reconstructs durante os anos 1950, que aqui é utilizada como uma fonte para compreender os primeiros anos da República Popular da China [RPC], evidenciando também quem estava por trás de suas páginas e como a valorização da amizade SinoSoviética é retratada a partir de um periódico de alcance internacional. A China Reconstructs foi uma revista que nasceu em um período específico do pós revolução, período esse no qual o país precisava se reinventar para sobreviver. Suas páginas foram uma porta para que as pessoas de outros países conhecessem a China através das imagens e das histórias dos trabalhadores chineses, que eram os principais protagonistas dos artigos escritos por pessoas importantes no Partido. A Revolução Comunista Chinesa de 1949 foi um dos eventos mais importantes do século XX, transformando completamente, a longo prazo, o panorama socioeconômico da China. O país saiu completamente arrasado da Segunda Guerra Mundial, esfacelado politicamente, uma vez que vivia uma guerra civil interna desde 1927 entre as forças comunistas e nacionalistas, e repleto de desafios a nível internacional. A revolução simbolizou definitivamente, para os chineses, o fim do "Século da Humilhação" [百年国耻], iniciado com as Guerras do Ópio em 1840, e a construção de uma 'Nova China' a partir de uma base sobretudo camponesa. Autores como Jean Chesneaux, Jonathan Spence, John K. Fairbank, dentre outros, são importantes referências teóricas para compreendermos de que forma uma revolução desse porte foi possível. Após a revolução, no entanto, poucos países reconheceram o novo governo internacionalmente, uma vez que a República Popular da China sequer conseguiu um assento na ONU até os anos 1970. Isso dificultou qualquer tipo de ajuda econômica dos Estados Unidos, um país que saiu fortalecido da guerra e estava focado principalmente na reconstrução dos países europeus ocidentais e do Japão. Chen Jian [JIAN, 2001] destaca que o suporte contínuo dos Estados Unidos ao Guomindang de Chiang Kaishek [Jiang Jieshi], tanto durante a guerra quanto após a fuga dos nacionalistas para Taiwan, somado ao receio de uma nova invasão imperialista que poderia ameaçar a soberania do povo chinês, contribuiu para o alinhamento dos comunistas chineses com a União Soviética. Esse movimento foi batizado por Mao Zedong de "lean-to-one-side" [一边倒]. 10 Dessa forma, qualquer possibilidade de aproximação imediata com os Estados Unidos não avançou, ao menos até os anos 1970. Com a Guerra da Coreia, inclusive, as hostilidades entre os EUA e a RPC progressivamente se acirraram, e o discurso anti-imperialista chinês frequentemente tinha os Estados Unidos como um dos alvos. Após a deterioração das relações com a URSS, em meados dos anos 1960, esse discurso passou a incluir a própria União Soviética como uma potência "revisionista" e "imperialista". No entanto, esse cisma, bem como suas causas e consequências, não serão analisados neste estudo, uma vez que nosso foco é no período anterior. Os chineses contaram, inicialmente, apenas com a ajuda da URSS para se reerguer durante os anos 1950. Rana Mitter destaca que, após o fim da guerra e da ocupação japonesa, havia um saldo de "[...] 14 a 20 milhões de mortos, e 80 a 100 milhões de refugiados" [MITTER, 2013, p. 387, tradução da autora]. Somaram-se a isso todos os problemas e perdas decorrentes de um longo período de guerra civil interna, o que levou a China a depender, durante alguns anos, da ajuda externa dos soviéticos, não apenas do ponto de vista econômico, mas também em perspectiva de auxílio técnico para o desenvolvimento da agricultura e da indústria. Além disso, foi vultoso o auxílio militar, com marcante presença de especialistas e conselheiros não apenas dentro do partido, mas também nos órgãos de defesa durante os anos 1950 [SHEN, 2020]. Nesse período de reconstrução, a imprensa teve um papel fundamental, não apenas na mobilização da população para participar ativamente desse processo, como também na divulgação a nível internacional dos progressos obtidos pelo governo do Partido Comunista Chinês [PCCh] nas mais diversas áreas, como educação, indústria, saúde, agricultura, dentre outros. Sendo assim, algumas das fontes historiográficas que temos acesso no Ocidente sobre esse período são jornais e periódicos, alguns deles publicados em inglês. Tania Regina de Luca ressalta que o trabalho com periódicos exige do historiador o cuidado com a leitura da intencionalidade por trás de um coletivo de indivíduos, uma vez que “[...] jornais e revistas não são, no mais das vezes, obras solitárias, mas empreendimentos que reúnem um conjunto de indivíduos, o que os torna projetos coletivos, por agregarem pessoas em torno de ideias, crenças e valores que se pretende difundir a partir da palavra escrita”. [LUCA, 2008, p.140]. Dessa forma, nossa análise se fundamenta na compreensão dessas intencionalidades e desses discursos materializados por meio de imagens e artigos da China Reconstructs. A construção da “nova china” e a presença soviética nas páginas da China Reconstructs. Dentre as revistas de apelo internacional chinesas, se destacam a Beijing Review [1958-] e a China Reconstructs [1952-], que desde os anos 1990 passou a se chamar China Today. Em ambos os casos, tratam-se de revistas periódicas traduzidas em mais de uma língua, sobretudo com o intuito de alcançar o público de vários países. A China Reconstructs foi fundada por 11 Soong Ching Ling, personagem importante tanto na história anterior à revolução quanto depois dela. Soong Ching Ling foi casada com Sun Yatsen, motivo pelo qual ficou conhecida como “Mme. Sun Yatsen”, e defendeu, dentro até mesmo do Guomindang, as ideias do falecido esposo e a causa revolucionária como solução para os problemas que assolavam a China. Ching Ling era uma mulher culta e, apesar de ser cunhada de Chiang Kaishek, não apenas apoiou a revolução, como se tornou uma das fiéis divulgadoras dos progressos obtidos desde a chegada dos comunistas ao poder. Isso lhe custou o afastamento dos seus dois irmãos [T.V. Soong e Song Meiling, também conhecida como “Mme. Chiang Kaishek”]. Segundo Christine Dabat: “A independência de espírito de Song Qingling, sua coragem na defesa dos princípios defendidos junto com seu finado marido a levaram a enfrentar as forças reacionárias que reivindicavam a mesma herança política de Sun Yatsen. Chiang Kaishek [seu cunhado] empregou, em vão, contra ela todos os meios: sedução, intimidação, calúnia, isolamento [fazendo desaparecer colaboradores e amigos].” [DABAT, 2017, p. 40] Soong começou a publicar a China Reconstructs em 1952, por meio da China Welfare Institute (CWI), uma Organização não-governamental filantrópica fundada por ela mesma em 1938 com o nome de China Defense League [CDL]. O objetivo inicial da ONG era ajudar os refugiados e as pessoas em geral que sofriam com a guerra civil e a invasão japonesa. Ela também foi uma voz ativa na defesa dos direitos humanos e na condenação pública e divulgação dos horrores cometidos pelos nacionalistas e pelos japoneses. Após a fundação da República Popular da China, a CWI se dedicou a arrecadar fundos voltados, sobretudo, para a proteção das mulheres e crianças, mas também para a divulgação, a nível internacional, da China pelos olhos dos chineses. Com a ajuda de Israel Epstein, um amigo próximo e jornalista que documentou sua vida posteriormente em uma biografia póstuma, e com seu amplo conhecimento acerca de outras línguas, países e culturas, Soong Ching Ling reunia bimestralmente artigos de várias pessoas importantes dentro do Partido. Muito do seu ponto de vista pode ser percebido na forma como ela organizou os artigos, que abordavam temas que variam desde a queda nos índices de mortalidade infantil até os avanços na indústria e na coletivização da agricultura. Em termos de imagens, predominam fotografias do povo chinês como protagonistas dessa reestruturação, com variadas fotos de trabalhadores rurais e urbanos em cada artigo. Essas fotos, apesar de serem em preto e branco, dão vida à ideia de que os homens e as mulheres da China trabalhavam coletivamente pela reconstrução gradual do país, como exemplificado abaixo 12 Imagem de uma cooperativa agrícola na província de Zhejiang, mostrando camponesas em trabalho coletivo Fonte: [CHINA RECONSTRUCTS, 1954, p.09] Trabalhadores da Indústria Têxtil. A legenda original ressalta que os têxteis agora eram mais bem pagos que em qualquer época. Fonte: [CHINA RECONSTRUCTS, 1952, p.22] Apesar do foco dedicado sobretudo ao que os chineses conseguiram realizar com seus próprios esforços e competência, é possível perceber que os artigos eventualmente mencionam o peso da ajuda soviética. Nesse ponto, para além do fato histórico de que há um consenso acerca da importância da cooperação mútua entre os dois países durante os primeiros anos da RPC, é importante destacar a relação pessoal que Soong Ching Ling tinha com os soviéticos. 13 Relação essa que, aliás, data de anos anteriores à concretização da revolução, quando ela fugiu secretamente para a URSS em 1927, por ocasião do início da guerra civil entre comunistas e nacionalistas decorrente do Massacre de Xangai [1927]. Soong Ching Ling foi uma grande entusiasta das relações da China com a URSS, sendo considerada por Epstein como “[...] a cabeça no corpo da amizade Sino-soviética em toda China” e uma voz constante na defesa dessa parceria [EPSTEIN, 1995, p. 483, tradução da autora]. No discurso de inauguração da “Associação da Amizade Sino-Soviética”, em 1949, ela definiu a parceria como a realização de um sonho de mais de 24 anos [sonho este que teria sido iniciado com Sun Yatsen], desejando a construção de um novo mundo baseado na cooperação entre os povos dos dois países em benefício mútuo das nações mais fracas, tecendo críticas à OTAN e ao Plano Marshall. [SOONG, 1953, p. 195-196] É importante ressaltarmos que o contexto da maior parte dos artigos escritos na China Reconstructs dos anos 1950 são da época do Primeiro Plano Quinquenal [1953-1957], onde a China escolheu o modelo soviético como via para o desenvolvimento, baseado sobretudo no controle estatal com foco no desenvolvimento industrial, sendo este último o motor que alçaria à China ao status de grande potência. A técnica de desenvolvimento rápido da URSS tinha como chave 5 elementos: “uma ênfase na necessidade de rápido crescimento durante todo o período do plano, um foco na indústria pesada como índice de crescimento significativo, insistência em altas taxas de poupança e investimento para tornar esse crescimento possível, transformações institucionais na agricultura e uma tendência para métodos intensivos em capital.” [SPENCE, 1990, 544, tradução da autora] Stuart Schram destaca que Mao tinha o grande desafio de adaptar as ideias marxistas-leninistas à realidade chinesa, criando condições para o desenvolvimento industrial a partir de uma economia agrária: “Tendo tomado o poder tanto nas cidades quanto no interior, o Partido Comunista Chinês estava efetivamente em posição de desenvolver uma indústria moderna, e então criar sua suposta classe base de “vanguarda do proletariado”, abrindo a via de convergência com os países mais avançados sob domínio comunista.” [SCRHAM, 1989, p.95, tradução da autora] Nesse ínterim, havia um clima compreensível de expectativas altas com a recuperação econômica e social. Para além da simples recuperação, estava implícito também o desejo de transformar a China em uma potência independente, bem como o foco na indústria de base e na agricultura coletivizada. Na edição China in Transition, que reuniu artigos selecionados de todas as edições até 1957, a ajuda soviética ao primeiro plano quinquenal aparecia em destaque em vários artigos, conforme exemplo abaixo: “Em 1953, o Primeiro Plano de Industrialização Socialista foi lançado. Com ajuda técnica generosa da União Soviética e de seus co-membros do mundo socialista, a China iniciou a construção de centenas de empreendimentos na 14 esfera da indústria básica, a única base sólida para a independência nacional e progresso contínuo no bem-estar do povo. Na agricultura: dezenas de milhões de pequenos camponeses, livres das extorsões de latifundiários e cobradores de impostos, entraram em equipes de ajuda mútua, o primeiro passo em direção às cooperativas agrícolas.” [CHINA IN TRANSITION, 1957, p.04, tradução da autora] Em outra reportagem, sobre o aumento expressivo da produção de aço na indústria siderúrgica de Anshan, a revista traz a imagem de um especialista soviético auxiliando operários chineses, demonstrando visualmente a importância dessa colaboração: Imagem de um especialistas soviético inspecionando os primeiros lotes de aço produzidos em uma siderúrgica de Anshan. Fonte: [CHINA RECONSTRUCTS, 1954, p.09] Apesar do destaque dado à ajuda soviética, não podemos perder de vista que o foco das matérias estava muito mais nos milagres que o povo chinês conseguia fazer com tal ajuda, do que na simples ajuda em si. Isso tornava a revista um meio eficiente de divulgação da capacidade de cada trabalhador de construir uma “nova china”, seja no campo ou nos centros industriais. Dentro desse contexto, o modelo soviético pareceu o ideal para alçar um país pobre, que havia acabado de sair do “século da humilhação”, ao patamar de uma nação industrializada, assim como a URSS, que funcionava como um espelho a ser seguido. É importante atentarmos ao fato de que, na visão dos chineses, o desenvolvimento também era uma forma de se proteger da ameaça dos países ditos “imperialistas”, na medida em que a China teria a oportunidade de se impor não apenas do ponto de vista econômico, mas também militar. No entanto, a questão militar não tinha tanto destaque na China Reconstructs nos seus primeiros anos, na medida em que o discurso dos autores estava muito 15 mais voltado para a resolução de problemas internos do que nas questões externas. Considerações finais A República Popular da China, de início, se viu imersa em dificuldades sociais e econômicas, com pouca possibilidade de ajuda internacional. Enquanto os EUA voltaram seus olhos para o Japão e a Europa Ocidental, a RPC sequer teve reconhecimento internacional, mesmo tendo participado do esforço de guerra dos aliados. O pós Segunda Guerra Mundial deixou a China arrasada, tendo a URSS como único parceiro nesse processo de reconstrução. Dessa forma, foi necessário um esforço coletivo para reerguer o país. Os veículos de imprensa, como a China Reconstructs, foram muito importantes na mobilização do povo chinês para essa difícil tarefa e na divulgação internacional dos avanços obtidos na RPC desde a chegada dos comunistas ao poder. Sua autora, Soong Ching Ling, não mediu esforços em reunir artigos positivos sobre o período do Primeiro Plano Quinquenal, bem como sobre a importância da ajuda soviética na concretização dele. Apesar da história ter, posteriormente, revelado os erros, e também os acertos, cometidos nos primeiros anos da implantação de um modelo soviético na China, a China Reconstructs é a tradução, em forma de revista, dos sonhos do povo chinês e das expectativas criadas em torno do sucesso da revolução. Sendo assim, o periódico é uma fonte historiográfica importante e acessível para entendermos o ponto de vista do povo chinês nos primeiros anos da revolução, bem como o protagonismo dos trabalhadores nessa conjuntura. Referências Anna Maria Litwak Neves é Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Pernambuco e curadora auxiliar da Curadoria de História da Coordenadoria de Estudos da Ásia da UFPE. E-mail: [email protected] DABAT, C. Rufino. Mulheres de ferro: revolucionárias feministas na China do século XX. In REVISTA HISTÓRIA & LUTA DE CLASSES, v. 24, 2017, p. 2944. EPSTEIN, Israel. Woman In World History: Life and Times of Soong Ching Ling [Mme. Sun Yatsen]. Beijing: New World Press, 1995. JIAN, Cheng. Mao 's China and the Cold War. North Carolina: The University of North Carolina Press, 2001. LUCA, Tania Regina de. “História dos, nos e por meio dos periódicos.” in PINSKY, Carla Bassanezi [Org]. Fontes Históricas. 2.ed. São Paulo: Contexto, 2008. p.111-153. 16 MITTER, Rana. China's War With Japan 1937-1945: the struggle for survival. London: Penguin Books, 2013. SCHRAM, Stuart R. The thought of Mao Tse-Tung. Cambridge: Cambridge University Press, 1989. SHEN, Zhihua [Org]. A Short History of Sino-Soviet Relations, 1917–1991. Singapore: Palgrave Macmillan, 2020. SOONG, Ching Ling. Struggle for New China. Peking: Foreign Languages Press, 1953. SPENCE, Jonathan D. The Search for Modern China. New York: Norton & Company, 1990. Referências das imagens CHENG, Han-Seng. New Rise Of Industry. In CHINA RECONSTRUCTS, v. 1, n.1, Jan-Fev, 1952, p. 21-23 CHENG, Han-Seng. The Path of China’s Economy. In CHINA RECONSTRUCTS, v. 3, n.1, Jan-Fev, 1954, p. 05-10 CHOU, Hung-Shih. Three New Giants of Ansham. In CHINA RECONSTRUCTS, v. 3, n.2, Mar-Apr, 1954, p. 07-09 China Reconstructs Writers. China in Transition: Selected Articles 1952-1956. Peking: China Reconstructs, 1957. 17 O DECLÍNIO DO IMPÉRIO HAN (206 A.C – 220 D.C), por Gabriel Requia Gabbardo Pretendo aqui discorrer brevemente sobre o declínio do Império Han (206 a.C – 220 d.C) sob uma perspectiva comparativa com a crise enfrentada pelo Império Romano desde o reinado de Marco Aurélio (161-180 d.C). Assumo, da leitora, algum conhecimento sobre a crise do século III em Roma: o tempo é breve, e a China urge. Assumo, ainda, que a leitora concordará que houve uma crise no século III em Roma: o que quer que se pense dos impérios romanos de Marco Aurélio de um lado e de Diocleciano, do outro, há de se convir que ocorreram importantes mutações nesse interregno. Assumirei, também, um completo desconhecimento da história do Império Han; peço da leitora que conheça um pouco desta história um mínimo de tolerância. Após considerações comparativas iniciais entre as crises que os impérios romano e Han sofreram no final do séc. II D.C, passarei a relatar as razões estruturais que percebi como decisivas para o colapso final do último em 220 d.C. No período de 235 a 284, cerca de oitenta indivíduos pretenderam assumir o trono imperial de Roma: qualquer general mais ambicioso nas fronteiras do Império era um usurpador em potencial. A esta crise interna somaram-se diversas crises externas: um Império Persa Sassânida belicoso nas fronteiras mesopotâmicas, os godos nas margens do Reno e do Danúbio: o imperador Décio morreria lutando contra os godos no Danúbio em 251, e Valeriano seria capturado pelos sassânidas em 260, morrendo no cativeiro. Como se isso fosse pouco, a ordem do Principado, uma polida ficção de que o imperador era apenas o princeps do Senado, ruía a olhos vistos. Em dado momento, partes importantes do Império se tornaram independentes, se não de jure pelo menos de facto (o império Gálico de Póstumo, o império de Zenóbia). Contudo, o Império Romano sobreviveu, e se adaptou, bastante bem face a estes desafios. Os soldados-imperadores do Danúbio, como Diocleciano e o próprio Constantino, restauraram a unidade do Império: mesmo a “evanescente” restauração do Império Romano do Ocidente durou mais ou menos 150 anos. O contraste com o seu império coevo, o Império Han na atual China, não pode ser mais marcante. Como fazer esse contraste? Uma pequena moda historiográfica vem aparecendo nos últimos anos, no qual esse texto faz parte: a de estudar, simultaneamente, a Antiguidade Clássica e algum império chinês coevo. Os resultados, contudo, de um empreendimento comparativo mal concebido por parte de estudiosos sem familiaridade alguma com uma das sociedades comparadas podem ser, simplesmente, ruins (um exemplo destas camas de Procusto é ENGELS, 2021). As sociedades clássicas e a chinesa antiga são demasiado diferentes para formular paralelismos; uma história comparativa 18 entre o Império Romano e o Império Han deve destacar as diferenças para então realçar – e, idealmente, iluminar – as particularidades de cada sociedade. Não tenho espaço, aqui, para fazer uma grande exposição cronológica da Dinastia Han (Como introdução ao período, ao primeiro volume da Cambridge History of China – TWITCHETT, D., e LOEWE, M., eds, 1986 – podem ser acrescidos a obra introdutória de Mark Edward Lewis - LEWIS, 2010 – e, em francês, o volume de Bujard e Pirazzoli-T’serstevens – BUJARD e PIRAZZOLIT’SERSTEVENS, 2017. CRESPIGNY, 2016, é uma obra tão erudita quanto, por vezes, irritantemente retrógrada em sua metodologia). Estabelecida em 206 a.C., é dividida em dois grandes períodos: a Han Ocidental (até 9 d.C) e a Han Oriental (de 25 até 220 d.C – o espaço é preenchido pela dinastia Xin, um período de profundo conflito civil que não nos interessa aqui). “Ocidental” e “Oriental” são denominações derivadas da localização relativa da capital das respectivas dinastias, Chang’an e Luoyang. Se, como se vê, o Império Han era mais antigo que o Império Romano em c. 160 d.C., enfrentaria, de maneira parecida, uma grande crise na segunda metade do séc. II; em marcante contraste com o Império Romano, não sobreviveria a essa grande crise. Por quê? Os fatores que pretendo apresentar aqui não são “as” respostas, mas acredito que sejam pontos importantes para essa divergência. O primeiro: o papel social diverso do Exército nos dois impérios. Estes impérios foram constituídos por processos semelhantes de expansionismo belicista. Contudo, se durante a República Romana o exército se profissionalizou, se institucionalizou, a imensa máquina militar da Dinastia Qin e do início da Dinastia Han foi, em larga medida, dissolvida – exceto nas fronteiras setentrionais, onde um exército profissional chinês ainda existia, sendo direcionado contra os povos nômades dos atuais Xinjiang e Mongólia. O cuidado com a estabilidade interna, em Roma, era feito por tropas profissionais pagas; salvo em situações de extrema necessidade, sob os Han essa tarefa era destinada a recrutas (forçados ou não). À diminuição do recrutamento militar sob os Han seguiu-se um aumento do que historiadores ocidentais chamam de “corveia”, trabalho obrigatório em grandes obras públicas. O segundo: o papel divergente que a figura do imperador tinha nos dois impérios. Em Roma, o imperador escondia seu verdadeiro poder; a ficção de que o imperator era tão somente o princeps disfarçava seu poder autocrática. O imperador Han tinha uma presença muito mais incisiva; era o Filho do Céu, o Augusto Tearca (huangdi), e ocupava uma posição semelhante à do Céu e da Terra no cosmos. Contudo, o acaso interviu sob os Han orientais. De 25 a 189 d.C., doze homens ocuparam o trono imperial chinês; por absoluto acaso do destino, apenas os dois primeiros chegaram aos 35 anos. Se o imperador romano era uma presença constante na vida aristocrática romana, como se vê em Tácito, as constantes disputas pela regência de imperadores infantes fizeram com que mesmo na capital imperial as famílias aristocráticas chinesas tivessem ampla liberdade de ação. Essa liberdade foi utilizada no arrendamento de suas propriedades para camponeses; se, em 200 a.C., 19 apenas 5% do campesinato era arrendatário, em 180 d.C. essa percentagem estava entre 30 e 70%. O terceiro: a construção de um espaço de colonização ao sul do Rio Yangzi. Se, no séc. II a.C., o território ao redor da atual Nanquim era um espaço fronteiriço, comparativamente “subdesenvolvido”, no séc. II d.C. ele já era quase autônomo: uma tendência demográfica que percorreu todo o império Han foi a migração de habitantes das fronteiras setentrionais para as meridionais. O quarto: o estabelecimento de uma ortodoxia imperial “confuciana”. Se a China antes do império Han se destacava por uma pluralidade de escolas filosóficas, o espaço concedido a outras maneiras de pensar se tornava cada vez mais circunscrito. Sima Qian (145-c. 90 a.C) ainda podia preferir o taoísmo ao confucionismo; justamente por essa preferência, se tornaria execrado já no séc. I a.C. Quem definia a ortodoxia era justamente o poder imperial; em marcado contraste tanto com o império romano pagão quanto com o cristão (uma vez que não havia um referencial paralelo ao imperial – no caso, o das Igrejas – que delimitava a ortodoxia). As elites foram as mais afetadas, inicialmente, por este desenvolvimento; contudo, as crenças populares de vastos setores camponeses se tornavam proscritas, ou pelo menos heterodoxas, com profundas consequências para a crise final da dinastia, da qual trataremos a seguir. A crise final foi detonada durante a década de 180. De um auge cerca de 100 d.C., o Império Han vinha perdendo, lentamente, terreno nas suas fronteiras setentrionais; os filhos e netos do exército imperial daquela época tinham ou migrado para o sul, ou abandonado as fileiras para se juntar aos nômades da região, ou perdido lentamente sua lealdade para com o distante imperador Han. A situação no campesinato também não era alvissareira. Fosse por causa da “corveia”, fosse por causa de sua dependência para com os grandes latifundiários, vastas populações rurais passaram a se interessar cada vez mais por sistemas de crença “heterodoxas”. Uma fagulha bastaria para causar crises nessa situação, e o Império Han se viu frente a frente com o incêndio da peste. A partir da década de 170, o Império foi atingido por sucessivas levas de doenças contagiosas; embora (por razões que não nos interessam aqui) a historiografia imperial chinesa pouco dava valor à descrição de doenças, a data torna quase que obrigatória a identificação dessa onda com a praga antonina (sobre esta, ver o fundamental estudo de HARPER, 2017). Ideias religiosas novas, podemos até dizer esquisitas, permeavam os dois impérios durante o século II. A estranha seita judaica que se espalhava pelo Mediterrâneo podia horrorizar grande parte da elite romana; mas os cristãos não apresentavam um desafio político direto à ordem estabelecida. Muito diferente era o que chamo, com muitas e justificadas aspas, de “taoísmo 20 popular” de movimentos como os Bandanas Amarelas e do Caminho dos Mestres Celestiais. Um movimento milenarista, o dos Bandanas Amarelas, sob a liderança carismática de um certo Zhang Jiao, proclamava que o fim do mundo atual se aproximava, e que a um céu azul (do imperador Han) se seguiria um céu amarelo (de Zhang Jiao). A rebelião foi detonada em 184 d.C.; chegou a tomar capitais provinciais importantes, como Wan, na província de Nanyang. Esse movimento de massas rurais foi esmagado pelas tropas “imperiais”: um dos generais Han, Huangfu Song, chegou a erguer um monte com os cadáveres de suas vítimas – mas cenas de repressão semelhantes só surgiram após os senhores de terra mobilizarem seus arrendatários como soldados. Em marcante contraste com os milenaristas seguidores de Zhang Jiao, reprimidos com fúria genocida, os Mestres Celestiais, talvez mais sóbrios e pragmáticos, conseguiram se apoderar da província de Hanzhong. Todo o sistema fronteiriço setentrional Han colapsou com essa rebelião. Partes importantes do império foram perdidas imediatamente, como a província de Liang; os generais que comandavam a fronteira se ressentiam, algo justificadamente, do abandono que sofriam por parte do governo central. O golpe de morte foi dado quando o imperador Ling faleceu, em 189 d.C. O genro do falecido imperador teve a ideia de chamar um desses generais fronteiriços, Dong Zhuo, para a capital, de maneira a reforçar a sua posição. Esse genro foi morto por seus rivais, mas mesmo assim Dong Zhuo veio. Seguiu-se mais um massacre palaciano, com um imperador mirim agindo sob as ordens de Dong. Revoltados com a situação, diversos governantes de província, grandes donos de terra e membros da burocracia imperial denunciaram Dong Zhuo como traidor, e passaram a organizar um exército próprio de maneira a tomar a capital Luoyang. Temendo por sua situação, e carente de recursos, Dong Zhuo queimou a capital, deportou a população para a antiga capital Han, Chang’an, e saqueou as tumbas imperiais em busca de ouro e bronze. A coalizão montada contra ele logo se dissolveu em rivalidades fratricidas, e o próprio Dong Zhuo seria morto por soldados amotinados dois anos depois. A autoridade do imperador era inexistente. Cada grande oligarca estava jogado à própria sorte, com seu exército de arrendatários à disposição. Ainda havia um imperador Han, mas o seu Império havia morrido, brutal e incontestavelmente assassinado. Alguns pontos comparativos saltam aos meus olhos, como historiador do Império romano, ao me deparar com essa queda. O primeiro de todos, e o que mais quero destacar aqui, é o fator de estabilidade que era o Exército romano. Fosse quem fosse o herdeiro de Augusto, ele era umbilicalmente ligado às suas tropas – e vice-versa. Essa ligação, em momentos de turbulência, era frequentemente fatal para o imperador romano; um imperador que tratasse mal o seu Exército seria inevitavelmente morto por ele. Mas mesmo aí havia um fator de estabilidade; o líder do motim se tornava, normalmente, o novo imperador. A estrada para o poder, após a rude tarefa de esmagar o imperador 21 anterior, era relativamente simples. Aqui, que o imperador romano fosse um esquisito retalho constitucional de um mambembe regime republicano era perigoso para a vida dos indivíduos imperadores, mas servia como outro fator de estabilidade. Vespasiano ou Sétimo Severo poderiam muito bem (como, de fato, conseguiram) se tornar imperator, mas a tomada de poder manu militari por Dong Zhuo não o possibilitava a se tornar o huangdi Han, um indivíduo que se equiparava ao Céu e à Terra. Ao fazer o que Vespasiano fez, Dong Zhuo se transformou em um monstro quase proverbial na cultura chinesa – e o senhor da guerra mais bem-sucedido no período que se seguiu à morte de Dong Zhuo, Cao Cao, literalmente virou um provérbio, fazendo as vezes do Demônio no equivalente chinês do nosso ditado “falando no diabo”: 说曹操,曹操到, shuō Cáo Cāo, Cáo Cāo dào. Outro ponto de destaque: o amplo leque de ação dado aos grandes senhores rurais chineses. É difícil imaginar que os mais ricos proprietários de terra Han pudessem alcançar a imensa riqueza da oligarquia senatorial romana. No entanto, o fato do exército “interior” Han ser basicamente uma milícia amadora possibilitava a esses senhores de terra montar a sua própria milícia amadora, composta por vastas multidões de arrendatários (e, eventual e catastroficamente, profissionalizá-la). À uma rica família senatorial romana, muito era possível, inclusive se desfazer de todas as suas possessões e doálas para a Igreja, como fez Melânia, a Jovem; mas nem mesmo a riqueza de Melânia financiaria uma tomada violenta do poder. Em situações de vácuo de poder, em Roma, as guerras civis eram disputadas pelos grandes líderes do Exército; após a queima de Luoyang, o império Han foi dividido em cerca de 30 unidades territoriais, lideradas por todo tipo de oligarca. Por fim, cabe destacar a imensidão da rebelião dos Bandanas Amarelas. A profundidade da revolução religiosa cristã, e a sua permanência, não deve obscurecer o que foi essa rebelião. Estamos de frente com a maior revolta religiosa da Antiguidade, um dos maiores exemplos de milenarismo político em toda a história, e com uma revolta camponesa que abalou os alicerces de um Império. A partir de 189, então, o Império Han se encontrou em um período de profunda guerra civil por praticamente trinta anos. Sabemos bastante sobre estes trinta anos, até demais: para além das fontes históricas propriamente ditas, uma das grandes obras literárias da China, o Romance dos Três Reinos, de Luo Guozhang (escrita, ou coletada, no início do século quinze), se passa a partir desse período. O efeito, talvez deletério, para o estudo da história do período é que os Reis Artures da China (personagens como Cao Cao, Liu Bei, Zhuge Liang ou Sima Yi) possuem RG e endereço certo, o fim do século II e o início do séc. III. A pulverização do Império se torna bastante visível ao olhar um mapa, representando grosso modo a situação em 195 d.C.: 22 Destaco três pontos interessantes aqui: primeiramente, o território de Zhang Lu, o regime “teocrático” taoísta dos Mestres Celestiais. Em segundo lugar, que os vários “Liu” que governavam territórios eram reputadamente membros da burocracia imperial, que face ao caos de 189 se tornaram funcionalmente independentes. Terceiro, que mesmo este território pulverizado já havia passado por uma certa racionalização, e nenhuma racionalização foi maior do que a ocorrida no território de Cao Cao. Cao Cao é um personagem fascinante, mesmo se nos limitarmos às fontes históricas: maior senhor da guerra do período, ele só não é o maior poeta dele porque foi superado por seu filho Cao Zhi (Sobre Cao Cao, ver a brilhante biografia escrita por De Crespigny: DE CRESPIGNY, 2010). As planícies centrais da China eram o território mais pulverizado de todos em 189: o indivíduo que conseguisse massacrar o considerável número de oponentes existentes nesse território e unificá-lo se tornaria, por dura experiência, um gênio militar. Cao Cao conseguiu, em um lance ousado, capturar o antigo imperador títere e usá-lo para seus próprios fins; após uma série de batalhas ainda mais ousadas, chegaria a dominar todo o norte da China a partir de 208 (chegou, inclusive, a anexar o território de Zhang Lu em 215, após uma solução negociada). No entanto, fracassou em seu intento de unificar o território Han. Para além de vicissitudes de batalhas individuais, três pontos estruturais me parecem importantes aqui: nos quatrocentos anos do império Han, a antiga ecumêne Zhou se expandiu, decisivamente, para o Sul. Aos fundadores dos Impérios Qin e Han bastou conquistar a atual cidade de Changsha: os rivais de Cao Cao no Sul tinham recursos muito mais significativos. O outro: Cao Cao, como todo e qualquer senhor da guerra no período, possuía uma inerente falta de autoridade. Como já colocado acima, a possibilidade de uma tomada de poder manu militari localizada era muito mais aberta do que no Império Romano, mas a esses senhores da guerra Han era muito mais 23 complicado se tornar imperador. Um imperador romano, e mesmo um usurpador com alguns recursos, podia se dirigir ao campo de batalha com uma segurança contra o dissenso interno com a qual Cao Cao jamais dispôs. O terceiro ponto é que a guerra civil Han se tornou uma guerra entre Estados. Em 215, a divisão tripartite do antigo Império Han já estava, em essência, completada: foi o período dos Três Reinos. A Cao Cao (Wei), Liu Bei (Shu) ou Sun Quan (Wu) não restava mais a oportunidade de vencer uma batalha e ganhar a guerra: uma vitória total era necessária. Na década de 220 (o filho de Cao Cao, Cao Pi, depôs finalmente o último imperador Han no início da década), os três Estados teriam, cada um, seu próprio imperador: no maior esforço de guerra antes de 260, o general de Shu Zhuge Liang lançaria cinco campanhas contra os descendentes de Cao Cao durante o final da década de 220. Obteve inúmeras vitórias conjunturais, que estruturalmente de nada lhe valeram. A derrota mais impactante de Cao Cao (apesar da mitologia em volta de outra, ocorrida em 208) ocorreu em 219, quando o território de Hanzhong foi conquistado por Liu Bei: a derrota de Cao Cao foi tão grande quanto a de qualquer um de seus antigos rivais na planície central chinesa quase trinta anos antes, mas Cao Cao já era bem mais que um senhor da guerra. Se Cao Cao obteve grande sucesso contra inimigos externos, seus sucessores sucumbiriam a inimigos internos: um golpe palaciano, liderado por Sima Yi (o general que se opôs a Zhuge Liang), levaria com que os Caos se tornassem títeres dos Sima em 249. Seriam os Simas que reunificariam o território Han entre 263 e 280; contudo, a unificação aqui (em marcante contraste com o 24 Império Romano) seria bastante efêmera. Povos nômades setentrionais acabariam por romper com essa unidade em 311; a reunificação duradoura do império Han só se daria quatrocentos anos depois da tomada de poder por Dong Zhuo, em 589. Mas este é tema para outro artigo. Referências Gabriel Requia Gabbardo é Doutor em Classics pela University of St Andrews. BUJARD, M., e PIRAZZOLI-T’SERSTEVENS, M. 2017. Les Dynasties Qin et Han. Histoire générale de la Chine (221 av. J.-C.-200 apr. J.-C.). Paris, Les Belles Lettres, 2017 CRESPIGNY, R. Imperial Warlord: A Biography of Cao Cao. Leiden: Brill, 2010. CRESPIGNY, R. 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Cambridge: Cambridge University Press, 1986. 25 O CENTENÁRIO DE PUBLICAÇÃO D’O GRITO” (1923), DE LU XUN: MARCO HISTÓRICO NA TRADIÇÃO LITERÁRIA CHINESA MODERNA, por Luiz Gabriel Ribeiro Locks O presente ensaio tem como objetivo refletir acerca do centésimo aniversário que envolve a compilação e publicação da obra nà hǎn 呐喊 de Lu Xun 鲁迅, ou, “O Grito”, em tradução livre. A obra, compilada em dezembro de 1922 e publicada em 1923, é marcada por um avanço nas técnicas de narração, lançada sua inspiração em novelas e romances estrangeiros, enquanto readapta elementos da tradição de romances chineses; bem como, a obra exibe diferentes métodos criativos e meios de expressão, refletindo o processo transcorrente no ambiente social e nas tendências socioliterárias da época, durante o conturbado período inicial da República da China. Introdução O ano de 2023 marca uma ocasião momentânea – o centésimo aniversário da publicação de um influente livro, “O Grito”. Autoria de Lu Xun, 鲁迅 com nome de Zhou Shuren. Ele foi um proeminente escritor chinês e intelectual que teve um papel fundamental no desenvolvimento da literatura chinesa moderna e do pensamento sociopolítico contemporâneo. O livro, “O Grito”, escrito entre o fim da segunda década e início da terceira do século XX é uma coleção de contos, no estilo de prosa, que contam a dura realidade da sociedade chinesa no período inicial do século XX e tornou-se um catalisador para mudanças culturais e políticas no país. Esse trabalho tem como seu objetivo explorar a significância literária, por mais, histórico-cultural e política deste trabalho do autor Lu Xun, encarando seu legado de forte impacto para o quadro da situação político-social chinesa no período; e mais, na passagem do centenário de sua publicação. “O poeta civil de hoje continua sendo o poeta do mais antigo sacerdócio. Antes, compactuou com as trevas e agora deve interpretar a luz.” (Neruda, 2016, p. 309) Talvez resida na citação superior o que, quilômetros de distância que separam a porção Sudamericana do mundo, com a mais longeva reinante ordem dinástica celestial e civilização do mundo; Chile e China, haja outras máximas dificuldades em encontrar nestes demais pontos em comum entre os dois países, ou mesmo, que na anterior obra do poeta-cônsul chileno encontremos outras similitudes com as vidas e produções que encaramos. Além, de compartilharem simultaneamente um similar tempo histórico global. Onde reside o objetivo empreendido nessa tarefa que tem o presente trabalho é tratar e dissertar a respeito de uma corrente político-literária, e mais, linguística-social que também envolveu uma e demais correntes de um movimento modernizador muito mais amplo, Movimento da Nova Cultura e o Incidente do 4 de Maio (Chow, 1960), especialmente no Império do Meio - a China. 26 Ainda que Neruda, posteriormente, tenha conhecido algumas das figuras que, décadas atrás, empreenderam tais ferramentas político-literárias no seu país digo, principalmente a escritora de nome Ding Ling, ou, em pseudônimo Jiang Binzhi, a qual Neruda confessou grande admiração e amizade enquanto fazia parte do corpo editorial literário do prêmio Lenin (antigo prêmio Stalin) presente nas passagens de sua respectiva obra de memórias aqui citada. (2016) Além do mais, esse trabalho comprime um esforço que vem a colaborar com recentes publicações literárias que se iniciaram no Brasil acerca da figura que trataremos. Lu Xun, ou de nascimento, Zhou Shuren. Assumi oficialmente o nome Lu Xun com esta obra que trabalhamos, mas que veio primeiramente ao mundo pelas páginas impressas da revista xin qingnian, a Nova Juventude - ainda em 1918, com os recortes dos capítulos de Diário de um homem louco. Em francês, La Jeunesse, como constava na capa da revista até o fim do sexto volume da revista, em dezembro de 1919. A revista que tinha cunho político-educacional, que entre seus autores, tradutores e articuladores, como o próprio irmão de Lu Xun o foi, Zhou Zuoren, alcançaram a marca de algo em torno mensalmente como 50mil leitores – dado que ao período considerado é bastante alto, dentro dos limites de baixíssima alfabetização das massas chinesas -, num mundo que uma única cópia (meio quantificável que pode ser estudado enquanto fonte direta) podia circular entre dezenas de leitores. Historicidade da produção e circulação Não só venha a calhar as duas obras que valem referência breve são, “Ervas daninha” (2022), compilado de escritos dos anos de 1923-4 e traduzido por Calebe Guerra, publicado pela edição independente da Aboio Editorial. Bem como, o trabalho da linha da Editora da Unicamp, que lançou em julho de 2021 a obra “Flores matinais colhidas ao entardecer” (2021), cujo reúne 10 escritos em prosa e compilados feitos pelo autor no ano de 1926. Enquanto isso, a obra que ocuparemos é “O grito”, em tradução livre feita por Pontes Motta (2017), ou, a obra de língua inglesa (Lu Xun; Li, 2009) que consultamos, demonstrando demais colaboração em estudos e obras que passaram a tratar dessa figura que, também, despendemos aqui, uma atribuição criticamente de breves reflexões sobre a obra e a figura do escritor situada em um momento histórico determinado. E ainda mais recentemente, a primeira publicação que reúne o gênero narrativo que englobou, dizemos assim, as maiores peças literárias e das quais Lu Xun é lembrado até os dias atuais - o dos contos. Não só, nessa versão de língua portuguesa da Editora Carambaia (2022a), a obra “O diário de um homem louco: contos completos de Lu Xun”, é mais um desses esforços que traduzem, logo tornam possível, a aproximação do público brasileiro como a própria língua portuguesa, contando-a com mais um repertório literário, agora, acessível. Pois fim, ressalta a importância de o mercado brasileiro receber esse 27 tipo de obra; demonstra a importância que os escritos do autor têm - a luz dos acontecimentos que seu país passava nos idos do início do século XX. Escreveu, contou, deixou registrado, inscreveu para a história onde os seus textos que reverberam tanto o tempo em que foi gestado quanto em seu lançamento há um século, ou no presente, possibilita a história de acessá-lo criticamente com os olhos do presente assistindo o passado que não passa, virando a quadra centenária. A obra, O Grito, em chinês 呐喊 nà hǎn, contava primeiramente com 15 contos, entre esses (em tradução, 2022ª): O diário de um louco; Kong Yiji; O remédio; Amanhã; Um pequeno incidente; Sobre o cabelo; Uma tempestade passageira; Terra natal; A verdadeira história de Ah Q; Festival do barco do dragão; Luz branca; Coelhos e gatos; Comédia dos patos; Óperas de uma cidadezinha do interior. O décimo quinto conto foi pessoalmente retirado pelo autor, após as primeiras tiragens ainda em 1923, enquadrando a obra dentre 14 capítulos, enlatando-a em padrões de forma e extensão que casasse com demais obras ocidentais. (Wang, 2012) Em breves palavras, a coleção a obra conta inclusa de distintas histórias, como em Sobre o cabelo retratando os efeitos persistentes do pensamento feudal na China. Tempestade passageira destaca a apatia da população rural em relação às questões sociais, e Terra Natal retrata os danos que a sociedade feudal infligiu à classe trabalhadora. A verdadeira história de Ah Q investiga as mentes psicologicamente deformadas de pessoas sob influência feudal, Luz branca reflete as lutas de intelectuais dentro do sistema de exame imperial. A escrita de Lu Xun também se aproxima e contornada pelos fracos e desafortunados e com desdém aos fortes, como visto em Coelhos e gatos. Em Comédia dos patos, ele revela a dura realidade da lei da selva na sociedade. Na Ópera relembra a infância e mostra as características da sociedade e do ser humano da época. Enquanto as três primeiras histórias do livro; Diário de um louco, Kong Yiji, e Remédio destacam-se até hoje dentro da produção do autor. Usuários e canais de televisão na China já se preparam para a virada centenária da obra. Posts em rede sociais antecipam essa ocasião e tratam da sua importância. O autor frente ao país: China Lu Xun, uma das mais proeminentes figuras da literatura moderna chinesa, chamado como “pai da literatura moderna”, publicou esta obra seminal um século atrás. Essa coleção de escritos revolucionários desafiou as normas tradicionais da sociedade chinesa e participou como personagem destacado nesse processo que ficou conhecido como o “despertar nacional”. Assim como nós hoje, acadêmicos, literatos e/ou leitores de suas obras aqui no ocidente, conseguimos apontar a sua relevância histórico-literária para o determinado contexto chines, porém sua importância sobressalta-se além desse expectado. O pano de fundo dessa publicação é essencial para entender tanto o sentidos 28 da obras tanto como suas implicações no contexto histórico, bem como, para examinar o impacto da obra de Lu Xun na apropriação do ser moderno chines, seja no campo literário, mas também no campo sociopolítico. O contexto histórico da obra, para ser percebido no quadro geral do início do século XX na China, primeiramente, devemos compreender o ambiente sociopolítico daquele tempo. A melhor compreensão que é possível se dar é, de que a obra cobre-se em suas entrelinhas de uma inteligibilidade acerca do pessimismo em relação com o próprio país. Ilustrado no prefácio feito pelo autor em dezembro de 1922, que o sagrou no ocidente com essa citação usada ao léu: [citação caixa de ferro aqui O país vivia uma crescente ingerência por parte das potencias estrangeiras, onde, ao cabo dessa despactuação social houve também a queda da Dinastia Qing pela Revolução Xinhai, iniciada com a Revolta de Wuchang, em Wuhan (2022a, p. 62) que levou ao fim da China propriamente unificada e propriamente dinástica, ao cabo levando-nos a República da China. Além disso, as beligerâncias internas foram percebidas de forma perspicaz por Lu Xun e seu afiado poder de observação e ríspido poder crítico-intelectual, reconhecendo a urgência de uma mudança social daquele paradigma e de um rejuvenescimento cultural, como ferramenta que paramentasse essa mudança possível. O impacto da obra “O Grito” dentro desse bojo de despertar da consciência nacional – tema muito recorrente no período da Nova Cultura (ibid) -, tem nos contos e escritos de Lu Xun uma capacidade de avivar a sociedade chinesa de sua inércia, e ressoar profundamente em seus leitores compelindo-os a confrontar os seus desafios presentes da árdua realidade sociopolítica que viva a China contemporaneamente a obra. Assim como o jovem Gao Yihan alertou a tal inércia nas páginas da xin qingnian, em fevereiro de 1916: The deepest evil. That is inertia. Inertness is the public poison of the people of our country. That is, the public enemy of our people. Our surrender to this enemy is far and wide. Nothing else is the poison of inertness. For thousands of years, this public enemy cannot be overcome. Now my age will be wiped out. Don't be afraid. (Gao, 1916) Os próprios escritos de Lu Xun fornecem valiosos dados sobre o contexto histórico destacado. Em particular suas tidas como obra autobiográficas, como "Diário de um louco" que é narrada a partir da primeira pessoa e faz com que se lançam luzes sobre o ambiente sociopolítico opressivo e o impacto das influências ocidentais na sociedade chinesa da época. Seus temas e o estilo literário empregados na obra "O Grito" incorpora vários temas centrais que se repetem ao longo da obra de Lu Xun. As histórias exploram o lado obscuro da sociedade, dando voz sobre a pobreza, a corrupção e os efeitos desumanizadores da tradição milenar chinesa. 29 O estilo de escrita de Lu Xun, caracterizado por descrições vívidas, imagens pungentes e sátiras mórbidas da realidade, cativou os leitores e deixou uma marca indelével na literatura chinesa moderna e contemporânea. Postulante a servir como marco inaugural também de um novo período para produção de wénxué 文学, ou, literatura em chinês, tradição milenar presente no país nas distintas formas de prosa, tratados políticos, compilações, traduções e relatos de emissários estrangeiros por milênios. Trabalhos acadêmicos sobre o estilo de escrita e da exploração temática que Lu Xun faz em suas obras fornecem referências de valiosas explicações, como na obra " Narrative Modes in Lu Xun’s Short Stories " de Tan Junqiang (2016) e "Lu Xun and His Legacy" de Leo Ou-fan Lee (1985) mergulham nos aspectos estilísticos e especificações temáticas que circundam as obras de Lu Xun. Como também, pesquisadores analisam o impacto da obra na sociedade chinesa a época, como "Lu Xun: A Revolution in Writing" (2013) de Gloria Davies nos oferece uma abordagem da capacidade transformativa que seus escritos detinham. Como dito na introdução, o reconhecimento que não só essa obra tem mesmo no ocidente, hoje, se destaca chegando em língua portuguesa portanto salienta que seja um destaque global que a literatura de Lu Xun pode conquistar. Esse significado que o “O Grito” trouxe foi além das fronteiras chinesas, como dito, alçando além de figura de extrema relevância nacional, pondo-o no hall de grandes escritores internacionais – pois certamente, Lu Xun rompeu – escrevendo - todas as barreiras em quaisquer parâmetros. Servindo-o assim de uma ponte para o intercambio de culturas num plano de uma sociedade global mais harmoniosa e multipolar. Trabalhos como "Lu Xun's Revolution: Writing in a Time of Violence" de Gloria Davies (ibid) e de Kowallis (2006), destacam o reconhecimento global e os impactos internacionais da sua obra. Encaminhamentos finais Ainda sobre essa relevância duradoura de Lu Xun nos reflexos da sociedade contemporânea, pois, os temas tratados na obra “O Grito” continuam relevantes e atuais. A crítica penetrante do poder das estruturas, da injustiça social, e a luta pela individualidade numa sociedade massificada. Onde, de forma populacional densa desde tempos pregressos e massificada pela harmonia celeste, a herança da dita tradição chinesa seja o alvo de todos os canhões apontados por Lu Xun. Por isso, seus trabalhos continuam ressonantes no público contemporâneo e através da sua crítica altiva e narrativa a altura tão poderosa, esta obra seminal nos lembra do poder duradouro da literatura em afeiçoar o mundo ao redor de nós. O próprio nome “O Grito” é simbólico, representando o chamado de Lu Xun para inspirar jovens progressistas durante o Movimento Quatro de Maio. A coleção mantém as características de um escritor quebrando o silêncio da época para se expressar e, não só, coroando uma geração de jovens intelectuais com uma obra escrita aos soslaio dos eventos que ocorriam na 30 vida político-social do país. Como também, cristaliza esse movimento com uma obra-prima literária a brindar tais esforços juvenis. Essa sua inspiração para as gerações futuras já estava contida nos escritos, pois o espírito crítico e inflexivelmente reflexivo de Lu Xun serviu e serve para as gerações futuras. À medida que tanto o mundo globalizado – globalização, do ponto de vista de História Global, encarado por Sachsenmaier (2012) enfrenta novos desafios, seus trabalhos nos lembram da importância do espírito crítico, da empatia e do cometimento pela luta do progresso social. Portanto, o centenário da obra é uma ocasião que nos convida a celebração, mas antes de tudo, a refletir acerca das obras-primas literárias que Lu Xun produziu, em especial, esta que tanto se relaciona com seu espaço-tempo vivido. Um marco, definitivamente, dentro da literatura contemporânea da China e sagra o movimento sociopolítico literário a qual fazia parte. Referências Luiz Gabriel Ribeiro Locks. Lic. em História pela Universidade do Estado de Santa Catarina e realiza estudos a nível de mestrado na Universidade Federal do Paraná dentro das áreas de: história moderna e contemporânea da China, acerca de movimentos modernizantes chineses e a fundação e desenvolvimento inicial do Partido Comunista Chinês, utilizando-se da metodologia de investigação sobre impressos no século XX. Membro do Grupo de Estudos sobre China do Grupo de Pesquisa em Ásia, América Latina e Caribe (ASIALAC), do Instituto de Relações Internacionais da Universidade de Brasília (IREL-UnB). Bolsista do Fumdes-SED-SC. e-mail: [email protected]. https://lattes.cnpq.br/7596722949537188 Links para web 历叒䘊的䛊儉: 1923年8月3日. China: 说天下, 2015. P&B. Disponível em: https://v.youku.com/v_show/id_XMTMwMDE5MjYyMA==.html. Acesso em: 20 jul. 2023. 䰑䙆呕. 鲁迅初版本《呐喊》. Lu Xun's first version of "Outcry" Disponível em: https://baijiahao.baidu.com/s?id=1746195708686320627&wfr=spider&for=pc. Acesso em: 20 jul. 2023. Bibliografia DAVIES, Gloria. Lu xun’s revolution: Writing in a time of violence. London, England: Harvard University Press, 2013. ILGO, Tina. The Significance of Symbolic Elements in Lu Xun’s Short Stories. Asian and African Studies XIV, 3, pp. 19–28 2010 LEE, Leo Ou-Fan. Lu Xun and His Legacy. Berkeley, CA: University of California Press, 1985. MOTTA, Bruno Pontes. Destruir a casa de ferro: o escritor Lu Xun na China do quatro de maio, 1918-1927. 2017. 86 f. 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Por ter sido alvo de críticas duras por estudiosos homens da época, sua escrita brilhante foi posta em segundo plano, deixandoa ser ofuscada pelos escândalos da sua vida pessoal. Desse modo, o objetivo do artigo é elucidar como Yu Xuanji foi vítima de uma ótica negativa, perpetuada em grande parte pelo olhar masculino, impedindo que sua obra tenha sido reconhecida enquanto um importante ponto de inflexão na poesia chinesa. Além disso, também se pretende, a partir do trabalho de autoras que vem realizando o processo de ressignificar o legado de Yu, pautar a vida da poeta a partir dos seus próprios poemas, e questionar como sua obra era lida pelas mulheres de sua época, perguntando se a poeta seria uma figura de admiração ou um mal exemplo. Tido como a tragédia de Yu, o ponto central do trabalho é elucidar como a poeta foi perseguida em vida e após a morte, ao passo que tentava encontrar equilíbrio, amor verdadeiro e liberdade a partir da sua escrita. Minha reputação me precede? Yu Xuanji a partir do olhar masculino do Tang Condenada à morte após ter sido considerada culpada por ter assassinado a própria serviçal, Yu Xuanji assumiu diversos papéis ao longo da vida, seja a de filha de uma família plebeia, a segunda esposa de um Oficial do Estado e sacerdotisa daoísta, mas o principal papel que desempenhou foi o de poeta. Há registro de cerca de cinquenta poemas de Yu, o que a torna uma das primeiras mulheres a serem escritoras na China que detém uma obra tão extensa (Jia, 2016: 25). Desse modo, se demonstra como ao longo de todas as fases de vida, Yu permaneceu escrevendo, justificando afirmar que a poesia foi sua maior companhia. Em seu trabalho, pode ser destacado poemas em cinco categorias: amor, questões sociais da sua época, daoísmo, viagens e autocontemplação [Liu, 2011, 29]. Enquanto esteve viva e mesmo após a morte, Yu Xuanji foi alvo de críticas negativas, com estudiosos inserindo novas narrativas em torno da sua vida, a chamando de cortesã e reprovando seus poemas de amor, os taxando de licenciosos. Dessa forma, a poesia de Yu acabou sendo depreciada por uma visão moral equivocada, que não correspondia com a vida da poeta. A 33 realidade é que Yu foi uma ilustre sacerdotisa daoísta que optou por uma vida diferente, muito distinta da maioria das mulheres que viveram na mesma época [Jia, 2016: 27]. Dessa forma, optar por reconhecer a sua obra como sua biografia mais sincera é a opção mais sensata, já que parte de um princípio de acreditar no caráter e nas escolhas de vida da poeta a partir das suas próprias palavras, entrando de acordo com a observação de Suzanne Cahill, que se queremos saber alguma coisa sobre Yu, sejam os seus pensamentos ou suas conquistas, é preciso estudar o que ela de fato escreveu, no contexto em que ela estava inserida [Liu, 2011: 53]. Em concordância com a autora Yang Liu, expõe-se a importância de entender as mulheres daoístas enquanto figuras históricas, ao invés de entidades míticas, partindo do princípio de que todas possuíam um talento extraordinário para a poesia, o que levou alguns estudiosos homens a ignorarem suas diferentes realidades, as assumindo como prostitutas. No caso de Yu Xuanji, Liu insere que a principal fonte acerca da vida da poeta veio do Sānshuǐ Xiǎodú (三水小牘), Breves e pequenas anotações de Sanshui, escrito por Huang-fu Mei, contemporâneo de Yu. Dos três volumes que Huang-fu escreveu, um acabou se perdendo, com outro escritor, Miu Quanshun, que tentou reorganizar os capítulos perdidos, encontrados desta vez na obra Xù tán zhù (續談助), do Taiping Guangji. Enquanto Miu descreveu Yu como uma “garota de uma casa de prazer”, Guangji a definiu como “garota de uma casa que fica numa esquina”, servindo de exemplo para elucidar como a origem da poeta provoca dúvidas até os dias de hoje. [Liu, 2011: 20]. Ainda de acordo com Liu, mesmo Sānshuǐ Xiǎodú sendo uma obra da sua época, que agrupa um conjunto de fofocas e lendas que circulavam na sociedade do período, e sua autenticidade seja bastante questionável, é o primeiro livro que descreve em detalhes sobre Yu Xuanji, incluindo informações sobre sua origem, seus pais, sua identidade daoísta, versos de seus poemas e informações de sua morte. Dessa forma, tendo em vista o grande número de leitores que Huang-fu conquistou não apenas no seu tempo, mas também na posterioridade, ele foi um dos grandes responsáveis por divulgar e perpetuar a má fama de Yu. Além dele, Sun Guangxiang, outro famoso articulador do Período das Cinco Dinastias [907-960], expressou sua opinião desfavorável em relação à Yu Xuanji no livro Běimèng suǒyán (北夢瑣言), Histórias triviais de Sonhos no Norte, que conta com notas biográficas não autorizadas. Segundo Liu, Sun descreveu de forma breve acerca da vida de Yu, descrevendo a poeta como alguém que, pela sua natureza, se entregava ao prazer e vivia como uma prostituta. Por outro lado, num parecer mais favorável, outro estudioso, Xin Wenfang, descreveu Yu de forma elogiosa, afirmando que, por meio de seus versos, se podia perceber sua postura ambiciosa, e que se ela fosse um homem, com certeza seu talento seria muito apreciado [Liu, 2011: 27]. A mulher no Período Tang: obediência e nunca suficiente sozinha 34 Para entender um pouco melhor o contexto em que Yu Xuanji viveu, e para compreender o motivo dos seus poemas serem tão significativos e singulares para a sociedade da época, partimos de uma contextualização sobre como era a vivência de uma mulher ao longo da Dinastia Tang. Num primeiro momento, por meio da obra O Livro de Artigos e Explicação de Palavras, expõe-se que a palavra ‘mulher’ no vocabulário chinês deriva da palavra ‘submissão’, apresentando portanto a perspectiva de subordinação que foi perpetuada e internalizada entre as mulheres da China. Além disso, a sua conduta moral era regida a partir das chamadas Três Obediências: “O pai é o deus aos olhos do filho, assim é o marido aos olhos da esposa”; “Uma mulher trata seu pai como um deus quando solteira e trata seu marido como um deus quando casada” e “Seja obediente a seu pai antes do casamento, seu marido depois do casamento e seu filho quando o marido morrer” [LEE, 2006: 346]. Desse modo, evidencia-se como na sociedade chinesa a mulher era normalmente associada à figura masculina desde o momento que nasce até se tornar adulta, seja por meio do pai, do futuro marido e do filho que ela viria ter. Assim, elucida-se a forma como Yu Xuanji era tida dentro da sociedade chinesa, enquanto uma mulher que saiu de casa cedo, viveu de forma independente, boa parte dela sozinha, que não teve um marido da forma convencional e que também não se tornou mãe. E se mesmo que as mulheres ao longo da Dinastia Tang conseguiram maior liberdade social em suas atividades quando em comparação a outros períodos da história chinesa, o dever de obediência e castidade que elas deveriam assumir permaneceu, reforçados por meio de guias e manuais de conduta, como é o caso do livro Nǚ lúnyǔ (女论语), ”Analectas femininas”, de Song Ruoqian e Song Ruozhao [Lee, 2006: 347-351]. Numa sociedade onde a mulher era criada para casar e se tornar mãe, desde a infância se recebia a preparação, seja por meio de aulas com tutoras ou com suas próprias mães, que ensinavam afazeres domésticos, como cozinhar, e alguns conhecimentos básicos de leitura, escrita e matemática. Assim, mesmo as mulheres de camadas mais simples, como cortesãs, prostitutas e escravas, conseguiam redigir cartas e escrever poemas. Porém, não possuíam escolas próprias, como as que os meninos tinham, além do impedimento de realizarem os exames nacionais para o serviço público, que só homens podiam participar [Hinsch, 2020: 91-93]. Entre as mulheres, o estrato que mais viajou ao longo do período Tang foram as sacerdotisas daoístas, que possuíam maior posição social que as mulheres comuns. Por meio do daoísmo, as sacerdotisas não estavam presas às obrigações de uma mulher média da sociedade chinesa. Em sua maioria, elas eram intelectuais, e possuíam maior tempo livre para ler, escrever, viajar e cultivar relações sociais com colegas letrados. Dentre outros motivos, um dos principais que levou diversas mulheres a se tornarem sacerdotisas foi o desprendimento das obrigações que uma mulher comum se sentia pressionada a cumprir na China [Fan; Wang, 2021: 7]. Com isso, nota-se como se tornar sacerdotisa daoísta ajudou Yu Xuanji a encontrar um modo de justificar seu modo de viver, com liberdade e 35 independência, podendo focar na sua escrita por meio da poesia. É importante destacar que Yu como daoísta foi sua última fase antes de falecer, e essa decisão veio após ter sido abandonada pelo seu marido, Li Yi. A partir da leitura dos seus poemas, percebe-se como Yu foi mudando de opinião ao longo do tempo, seja sobre o amor ou sobre si mesma [Liu, 2011: 29]. Poemas de Yu Xuanji: amor, daoísmo e liberdade A partir do exposto, pauta-se na introdução aos poemas de Yu Xuanji com o intuito de conhecê-la a partir de suas próprias palavras, com o entendimento de que só assim se faz capaz um estudo adequado e digno em relação à sua vida, e a sua obra. Por isso, ao invés de uma análise profunda em relação à métricas e estrutura dos versos, serão dissecados a mensagem e o significado de alguns poemas, enquadrando-os na conjuntura da vida de Yu no momento em que eles foram escritos, que se acredita melhor representar a sua inteligência, a sua forma de enxergar o mundo, o amor, e a si mesma. A autora Yang Liu expressa que os poemas de amor de Yu Xuanji apresentam uma variedade de emoções e experiências, todos demonstrando sua inteligência, independência e mentalidade forte. Em relação à Saudação ao cavalheiro Li Jinren [Portugal; Xiao, 2011: 105], Yu narra de forma alegre um clima de festa e, por meio de associações com lendas chinesas sobre a sorte no amor, descreve com alegria a chegada de um visitante, dando a entender ser sobre um amante com quem ela estaria se relacionando. Para as conjunturas da época, evidentemente isso estava fora do que era considerado adequado. A estudiosa Josephine Chiu-Duke destaca que ao passo que o objetivo geral da educação para meninas na sociedade chinesa era de que elas aprendessem a ser gentis, submissas e castas, Yu era uma poeta com coragem e talento que desafiava as normas e escrevia poemas para todas as ocasiões, e ainda que muitos deles seriam para seu próprio entretenimento, ela questionava a dinâmica de poder entre a ética e as tradições para uma mulher da sua época [Liu, 2011: 39-40]. No poema A uma garota do bairro isso se torna evidente, se tornando um dos seus trabalhos que mais gerou repercussão. Nele, Yu descreve um dia de primavera, menciona sobre se maquiar e achar o amante ideal, ainda que seja difícil. Suas lágrimas são ocultadas em meio às flores primaveris, e declara que se há a possibilidade de encontrar um homem elegante e de forte presença, não vale a pena chorar por um rapaz raso, ainda que ele seja bonito [Portugal; Xiao, 2011: 45]. Aqui, Yang Liu destaca que o modo como a poeta escolhe abordar a temática do amor é muito distinta e não convencional em comparação às outras mulheres da sociedade chinesa. De acordo com a autora, Huang Zhouxing comparou Yu enquanto uma professora que ensinava um macaco a escalar uma árvore, induzindo as pessoas a quebrarem as regras. Segundo Liu, além de Huang comparar mulheres à macacos, numa evidente conotação pejorativa, a expressão “ensinar macacos a subir em árvores” no vocabulário chinês geralmente implica em ensinar algo errado para alguém que tem potencial para o mal, tal qual macacos que possuem uma inclinação natural para subir em árvores [Liu, 2011: 43-46]. 36 Em um dos meus poemas preferidos, Vendendo peônias murchas, Yu escolhe trabalhar com uma das flores mais famosas na escrita chinesa, porém adicionando seu próprio toque especial ao se comparar com sua versão seca. Nele, a poeta fantasia sobre um dia morar num nobre jardim, no qual os homens iriam enfim perceber que se arrependeram por tê-la rejeitado. Na interpretação de Yang Liu, Yu teria acreditado enquanto jovem que pelo seu talento e beleza ela iria acabar atraindo um homem extraordinário. Agora mais velha, a poeta percebe que isso não aconteceu [Liu, 2011: 70-71]. Em um dos versos, Yu descreve: “Pétalas rubras, só crescessem em palácios” [Portugal; Xiao, 2011: 35], revelando o modo como a poeta se considerava valiosa e rara. No que condiz a sua vida enquanto monja daoísta, escolhe-se o poema Vivendo nas montanhas no verão, no qual, de acordo com Liu, Yu narra sobre não ter preocupações financeiras, e sua vida parece estar regada aos privilégios e prazeres, por meio de vinho, vestidos de seda e barcos pintados. No primeiro verso, Yu expressa: “Aqui, onde habitam os deuses, fiz minha morada” [Portugal; Xiao, 2011: 103]. Além disso, a rotina da poeta parece consistir em leituras, escrita e viagens de barco, apresentando um cotidiano bastante pacífico. Por último, mas longe de ser menos importante, cita-se talvez o poema mais famoso de Yu, Visitando o pavilhão sul do Templo Chongzhen - onde são divulgados os resultados dos exames para o serviço público. De acordo com Yang Liu, esse pode ser considerado um dos primeiros exemplos de uma mulher chinesa reivindicando pelos mesmos direitos que os homens. Ao longo dos versos, Yu percebe que o motivo dela não poder participar dos exames nacionais para se tornar funcionária pública é por conta do seu gênero, culpando o robe de seda que está usando: “Pena: os robes em seda me cobrem a poesia” [Portugal; Xiao, 2011: 65]. De acordo com a autora Liu, é a roupa que está usando que impede Yu de atingir o sucesso que ela poderia ter potencial para alcançar [Liu, 2011: 73]. A tragédia de Yu e seu reflexo nas mulheres do Tang A partir dos poemas de Yu Xuanji, percebe-se como os temas constantes de sua escrita centralizaram nas temáticas do amor, ainda que não pelo casamento convencional, bem como de saber seu próprio valor, em uma época em que as mulheres não eram incentivadas a terem autoestima estando sozinhas, e se indagar por qual motivo elas não poderiam realizar o exame nacional chinês. Segundo a autora Jinhua Jia, Yu representa a paixão expressiva de uma mulher. Sua prosa primorosa e emoções reais ultrapassaram o que a maioria dos trabalhos escritos por homens pretendiam ao descrever os sentimentos das mulheres. Enquanto eles escreviam poemas utilizando a voz feminina, Yu tomava para si suas próprias palavras sobre amor e desejo, o que a autora descreve como extraordinário. Além disso, Yu usava metáforas, símbolos, alusões e imagens do cotidiano de um modo inventivo, o que tornava seus poemas harmoniosos e únicos [Jia, 2016: p. 48]. 37 Já a partir dos estudos de Yang Liu, a autora baseia seus apontamentos a partir de Beata Grant, no qual apresenta que o que é escrito sobre mulheres e gênero em textos, sejam eles de cunho religioso, literário ou histórico, se trata de um reflexo da prática social daquela época, principalmente pelo fato de que são majoritariamente textos escritos, editados e compilados por homens, e estes, por sua vez, de forma consciente ou não, partem de uma perspectiva androcêntrica. Segundo Liu, a verdadeira tragédia de Yu não é o fato de que ela foi abandonada ao longo da vida, seja pelo marido, ou pelos amantes, mas que ela foi frequentemente censurada por homens escritores, seja estando viva ou mesmo após a sua morte. De acordo com a autora, Yu não poderia ser aceita por críticos confucionistas, e que a desaprovação em relação a ela era tão generalizada que o seu nome era tido como um sinônimo para prostituta [Liu, 2011: 53]. Assim, evidencia-se o nível que a má-fama da poeta atingiu entre o círculo literário da sua época, propiciando a difamação da sua escrita, impedindo de ter maiores êxitos na posterioridade do mundo chinês. Ao passo que Yu possui uma obra extensa de poemas que expõem a vivência de uma mulher chinesa ao longo da Dinastia Tang, questiona-se até que ponto ela retrata a experiência de outras mulheres nesse período. Por sua vida distinta, sua independência e reflexões acerca do amor, se pergunta se outras mulheres encontravam em Yu uma figura de admiração ou de rebeldia. Em todo caso, se sua obra vive até os dias de hoje, aponta-se que o motivo talvez não seja apenas pela sua má repercussão, mas também pela possibilidade de uma admiração secreta e silenciosa de uma minoria que enxergava em Yu uma figura precursora, de alguém que ilustrava as possibilidades que cabiam em uma mulher. Conclusão Como foi exposto, percebeu-se como os poemas de Yu Xuanji partiam de uma narrativa de uma mulher confiante, que vivia sob suas próprias condutas e dificilmente deixava de se expressar por medo de constrangimentos morais que poderiam prejudicá-la. Com temas fortes envolvendo o amor e reflexões de si mesma e do daoísmo, Yu foi constantemente atacada pelo seu modo de viver, não apenas enquanto estava viva, mas também após a sua morte. Assim, o que foi realizado neste trabalho é uma tentativa de problematizar a má-reputação que Yu carregou, viva ou não, que impediu que os seus poemas fossem completamente apreciados e divulgados, sendo essa a sua verdadeira e maior tragédia. Por meio do controle da sua própria narrativa, podemos conhecer e admirar uma poeta pelas suas próprias palavras, que refletiam as angústias e os desejos de uma mulher na Dinastia Tang. Referências Marcela Langer é graduanda em História pela Universidade Federal do Paraná, pesquisadora do programa de Iniciação Científica voltada aos estudos de História da China Antiga. 38 Dr. Otávio Luiz Vieira Pinto é professor de História da África pela Universidade Federal do Paraná. Fan, X; Wang, J; Xiao, H. Women’s travel in the Tang Dynasty: Gendered identity in a hierarchical society. Annals of Tourism Research, v. 89, Julho de 2021, p. 1-12. Disponível em: <https://www.sciencedirect.com/science/article/abs/pii/S0160738321001092> Acessado em: 29 jul. 2023. Hinsch, B. Women in Tang China. Reino Unido: Rowman & Littlefield, 2020. Jia, Jinhua. Unsold Peony: The Life and Poetry of Daoist Priestess-Poet Yu Xuanji of Tang China. Project Muse, Tulsa Studies in Women’s Literature, vol. 35, n. 1, 2016, p. 25-57. Disponível em: <https://muse.jhu.edu/article/621722> Acessado em: 29 jul. 2023. Lee, W. Y. Women 's education in traditional and modern China. Women 's History Review, v.4, 1995 (publicado online em 2006), p. 345-367. Dispoível em: <https://www.tandfonline.com/doi/abs/10.1080/09612029500200092> Acessado em: 29 jul. 2023. Liu, Yang. Imagery of Female Daoists in Tang and Song Poetry. 2011. Tese (doutorado) - Curso de Filosofia, The University of British Columbia, Vancouver, Abril 2011. Portugal, P. R; Xiao, T. Poesia completa de Yu Xuanji. São Paulo: Editora Unesp, 2011. 39 A POLÍTICA CHINESA SOBRE A EMIGRAÇÃO COM CONTRATO (1845-1859): AS PRIMEIRAS DECISÕES DAS AUTORIDADES DO GUANGDONG E OS PARECERES DO IMPERADOR, por Maria Teresa Lopes da Silva A dinastia Ming proibiu a emigração sobretudo para evitar que os defensores e os contestatários do poder imperial contactassem entre si. Receavam as autoridades de Pequim que os emigrantes se tornassem potenciais recrutas do exército inimigo e que, desta forma, a integridade territorial e o poder do imperador fossem ameaçados. Pretendiam ainda os mentores desta lei evitar que as famílias ancestrais abandonassem a China e se afastassem dos túmulos dos seus antepassados. No entanto, esta proibição só passou a ser fiscalizada com maior rigor desde a segunda metade do século XVII, quando a dinastia Ch’ing chegou ao poder. Se excetuarmos o Sudeste da China, esta política do governo chinês impediu a emigração em larga escala até à primeira guerra do ópio (1839-1842), mas a abertura dos portos chineses e a passagem de Hong Kong para a soberania inglesa veio alterar a situação. Com efeito, a partir desta altura verificou-se um fluxo crescente de emigração livre ou voluntária que, a partir de Hong Kong, se dirigiu principalmente para a Califórnia e para a Austrália. Desde o início da segunda metade do século XIX, o território de Macau começou também a ser usado como plataforma de apoio à emigração contratada ou forçada, que teve como destinos principais Cuba e o Peru. A emigração com contrato durou cerca de trina anos e, neste âmbito, a política das autoridades chinesas passou por duas fases distintas. A primeira decorreu entre 1845 e 1859 e a segunda entre 1860 e 1874. Na primeira fase foram escassos os relatos que chegaram ao imperador sobre o volume e as características desta emigração [Irick, 1982, p.391]. No segundo período, entre 1860 e 1874, que não iremos abordar neste artigo, o governo de Pequim foi obrigado pelas potências ocidentais a reconhecer o direito à emigração, a distinguir a emigração livre da contratada, e a regulamentar esta última até à sua extinção, no ano de 1874. Tanto na primeira como na segunda fases, o controlo da proibição de emigrar ficou a cargo dos funcionários locais. Estes, por seu lado, estavam muitas vezes divididos entre o cumprimento das ordens imperiais e o risco de se envolverem em problemas com as empresas de emigração, controladas por estrangeiros, situação que poderia conduzir a novas guerras. Perante este dilema, os referidos funcionários optaram por não colocar inicialmente entraves à emigração, desde que não fosse ameaçada a ordem pública. Quando surgiam conflitos entre os chineses e os ocidentais, eles preferiam sempre soluções de compromisso e, quando os problemas assumiam maiores 40 proporções, resolviam-nos com a ajuda dos seus superiores hierárquicos mais próximos, evitando assim dar conhecimento ao imperador. Por outro lado, os funcionários locais, de diversas graduações, retiravam algumas vantagens deste negócio. Entre estas merece particular destaque a diminuição do excedente populacional, o afastamento de muitos malfeitores e ainda as compensações monetárias para o seu próprio usufruto, que lhes eram oferecidas pelas empresas de emigração. Por todos estes motivos, nos primeiros anos os mandarins não fecharam os estabelecimentos de emigração, também designados por barracões, nem prenderam nenhum comerciante de cules. A sua ação limitou-se a proibir a afixação de cartazes contra os ocidentais, a acalmar a indignação pública e a prevenir tumultos em larga escala, com receio de que os movimentos contra os raptos de chineses se transformassem em revoltas contra os ocidentais. As decisões dos mandarins foram muitas vezes desrespeitadas mas, com exceção da punição de um conhecido corretor de cules, no ano de 1852, as suas deliberações visavam essencialmente pacificar as partes em confronto. Nesta época, o desejo de proibir definitivamente a emigração foi apenas equacionado por um magistrado da Marinha, que incentivou as autoridades britânicas a agirem neste sentido. Este magistrado receava que as vidas e as propriedades britânicas corressem perigo e, por isso, solicitou-lhes que punissem os seus concidadãos, que durante os tumultos mataram quatro chineses. Desconhecem-se as instruções que os governantes de Cantão receberam dos seus superiores hierárquicos sobre este assunto. Sabe-se, no entanto, que estas informações nunca foram comunicadas à Corte [ChingHwang, 1985, pp.74-76]. Apenas no início de 1855 o governador do Guangdong divulgou uma proclamação em que ameaçava os sequestradores. Nesse texto, Yeh Mingch’en dava instruções às autoridades locais para perseguirem e prenderem os chineses envolvidos neste comércio, prometendo-lhes em troca recompensas. No entanto, é provável que esta disposição tenha surtido pouco efeito porque um ano depois o mesmo governador mandou publicar outra ordem no mesmo sentido. Aliás, Yeh Ming-ch’en tinha plena consciência de que esta proibição seria extremamente difícil de aplicar porque muitas destas operações tinham lugar fora das suas áreas de controlo. O fracasso destas medidas provocou o crescimento contínuo do número de jovens chineses nos barracões de Macau e o aumento da hostilidade da população contra este tráfico e contra os estrangeiros. A prová-lo está o facto de em 1856 terem aparecido proclamações em Hong Kong que, com o objetivo de alertarem os jovens e as suas famílias, descreviam a forma como as vítimas eram raptadas e vendidas, assim como os maus-tratos que sofriam nos países de destino [National Archives, FO 97/102A, fl.88-88v]. 41 Numa tentativa de legalizar e introduzir alguma ordem neste negócio, que afetava a sua imagem, o governo de Londres autorizou em 1854 Lord Clarendon, secretário dos negócios estrangeiros, a regulamentar dentro do possível a emigração chinesa. No entanto, as várias tentativas deste político britânico para conseguir uma entrevista com Yeh Ming-ch’en, governador-geral do Guangdong e Quangsi, não foram bem sucedidas, e o mesmo aconteceu com as suas diligências para ir a Xangai ou ao Peiho fazer a revisão do tratado sino-britânico. A tentativa seguinte que a Grã-Bretanha desencadeou para conquistar o direito de emigrar para a população chinesa foi feita por Lord Elguin, em 1857. Todavia, as relações tensas que existiam nesta altura entre a China e o Ocidente acabaram por relegar este assunto para um plano secundário. Durante quase uma década as autoridades do Sul da China não relataram à Corte o drama da emigração. Somente no ano de 1854 é que Yeh Ming-ch’en enviou um memorial ao imperador no qual mencionava o problema do tráfico de cules. Este assunto foi despoletado por um protesto apresentado pelo cônsul americano, no âmbito de um motim que teve lugar a bordo de um navio desta nacionalidade, do qual resultou o assassinato do respetivo capitão [Ching-Hwang, 1985, p.80]. Na resposta, o imperador limitou-se a referir que tomou conhecimento da situação, comentou-a quase com indiferença, e reafirmou que os assuntos desta natureza eram da responsabilidade dos funcionários das províncias [Ching-Hwang,1985, p.80]. Esta atitude do imperador pode ser facilmente explicada, quer pelo desconhecimento da real dimensão do problema, quer ainda pelo seu envolvimento na luta contra as sucessivas revoltas internas, nomeadamente contra o movimento Taiping (1850-1864) e pelo novo conflito sino-franco-britânico (1856-1860). Enquanto isso, no Estabelecimento de Macau, sob administração portuguesa, que escapava ao controlo das autoridades imperiais, por não existir qualquer mandarim a residir do território desde 1849, a emigração para Cuba e para o Peru crescia significativamente. Na cidade, os antigos armazéns do ópio transformaram-se em depósitos de emigrantes. O governo local expediu várias portarias avulsas e em 1856 publicou o primeiro de quatro regulamentos muito minuciosos, destinados a organizar e a disciplinar o negócio da emigração, mas que tiveram escassa aplicação [SILVA, Maria Teresa Lopes, «La emigración china por el puerto de Macao hacia el Perú, 1851-1874» in Foro Internacional sobre Confucionismo. I Simposio Internacional en Lima: diálogos entre las civilizaciones de China y América Latina, 2018, pp.357-385]. Somente no verão de 1859 é que o imperador foi informado de que o tráfico de cules estava a assumir grandes proporções. Esta notícia chegou à Corte após dois tumultos que tiveram lugar em Xangai, entre julho e agosto de 1859. Ambos os conflitos eram atos de retaliação pelo facto de os estrangeiros terem comprado cules roubados aos engajadores chineses e pretenderem embarcálos num navio francês. Este incidente aconteceu na altura em que as 42 negociações entre as autoridades imperiais e as potências ocidentais estavam num impasse e o comércio continuava paralisado. Estes motins foram usados como estratégia, durante esta fase negocial, pelo enviado britânico, para pressionar o comissário imperial Ho Kuei-ch’ing a ceder às exigências ocidentais. Na sequência destes incidentes, o édito imperial de 22 de agosto de 1859 deixava transparecer pela primeira vez a fúria e a preocupação do imperador que: «in order that neither reason nor law be stretched, let orders be immediately issued to search out the culprits who kidnapped for the barbarians and execute them on the spot, and ascertain the people who attacked and mistakenly wounded the barbarians, and using the precedents, punish them as befits their crimes. Let the Governor-General order the local officials to exert all efforts in arresting the murders. They must be arrested and prosecuted […]» [Édito imperial de 22 de Agosto de 1859 in Hwang, 1985, p.82]. Nesta altura, o imperador desconhecia ainda as medidas que já estavam a ser tomadas no Guangdong e não parecia revelar grande preocupação com o tráfico, enquanto negócio de seres humanos, nem com o destino das vítimas. O seu principal objetivo era evitar a influência negativa que esta matéria estava a exercer nas negociações dos novos tratados com as potências ocidentais, que ameaçavam o trono e a segurança do império. Para solucionar este problema, o imperador ordenou ao governador-geral da província que prendesse os traficantes e fiscalizasse com maior rigor a proibição de emigrar. Ch’iao Sung-nien, o funcionário que foi enviado a Xangai, colaborou com as autoridades locais na pacificação da população e ajudou a prender, executar e expor publicamente as cabeças de quatro chineses envolvidos no engajamento. De seguida, o comissário imperial Ho Kuei-ch’ing mandou os seus delegados iniciarem negociações com os representantes das autoridades britânicas para extinguir o tráfico de cules. No entanto, o direito de extraterritorialidade, já anteriormente concedido, não permitia às autoridades chinesas punir os estrangeiros que participavam neste comércio. Sendo assim, a única possibilidade que lhes restava era convencer os cônsules das várias nações a proibirem os seus súbditos de se envolverem neste negócio, com o argumento de que eles também poderiam ser vítimas da fúria da população chinesa. Os delegados da França e dos Estados Unidos mostraram-se pelo menos aparentemente recetivos a esta tese, mas a Grã-Bretanha demarcou-se dos seus congéneres, por considerar que em Xangai os governantes chineses incentivavam o povo a lutar contra eles. Por estes motivos, foi apenas durante a ocupação de Cantão, que teve lugar entre 1858 e 1861, que as potências ocidentais fizeram o primeiro grande esforço conjunto para regulamentar a emigração chinesa. Nesta altura existia grande alarme entre a população, havia muitos desempregados e malfeitores, e tanto os dirigentes chineses como os ocidentais pretendiam resolver o 43 assunto. Os funcionários chineses ao nível local também estavam dispostos a colaborar, apesar dos riscos de serem punidos por estarem a negociar com o inimigo. Um dos primeiros êxitos alcançados pelas tropas anglo-francesas, com reflexos na política de emigração, foi a substituição do governador-geral do Guangdong e Quangsi. Como vimos, este cargo estava a ser exercido por Yeh Ming-ch’en, conhecido pelas suas posições intransigentes sobre a emigração. A chegada ao poder de Po-kuei, mais recetivo ao diálogo, abriu novas perspetivas aos defensores do direito de emigrar. Todavia, foi do labor dos funcionários locais, nomeadamente de Nanhai e Puanyu, mandarins do Guangdong, que resultou a proclamação de 6 de abril de 1859, que esteve na origem do novo sistema de emigração. De acordo com este diploma, passou a ser reconhecido aos chineses o direito de emigrar, devendo os interessados ser esclarecidos acerca das condições de trabalho antes de assinarem os respetivos contratos. Em simultâneo, foram proibidas as operações de engajamento e o encarceramento dos chineses nos barracões. O governador Po-kuei confirmou esta proclamação seis semanas antes da sua morte, em maio do mesmo ano. Após esta fase, o processo de emigração começou a ser organizado de forma mais detalhada por Harry S. Parkes (ex cônsul britânico em Cantão) e por J.G. Austin (agente geral da emigração britânica na Guiana inglesa) . No dia 28 de outubro desse mesmo ano, os cinco artigos do regulamento, conhecido como «Canton System», foram aprovados por Lao Ch’ung-kuang, o novo governadorgeral do Guangdong e Kuangsi. Este diploma previa a supervisão conjunta de funcionários britânicos e chineses, que tinham como função analisar a disposição dos chineses para emigrar, as características dos contratos, as condições das casas de emigração e assegurar as viagens gratuitas às mulheres e aos filhos dos homens que quisessem ir trabalhar para fora da China. A pedra basilar deste projeto assentava nas agências de emigração, que centralizavam todo o processo, desde a afixação de cartazes, passando pela verificação da espontaneidade da emigração, pelo cumprimento dos regulamentos e pela procura de transporte para os emigrantes. Em suma, a agência destinava-se a substituir os barracões, passando doravante a emigração a ter um carácter público e legal. A inspeção destas casas estava a cargo de funcionários chineses e de estrangeiros. A primeira licença para abrir uma casa de emigração foi concedida a J. G. Austin, no dia 10 de novembro de 1859 [Campbell, 1971, pp.123-124]. De seguida, foram enviados agentes chineses para as áreas onde se supunha existir maior emigração, a fim de explicarem aos líderes locais o novo processo de recrutamento. A difusão destas notícias através dos canais oficiais conferialhes maior credibilidade junto das autoridades das províncias. 44 Dois dias após a assinatura do regulamento, Lao Ch’ung-Kuang enviou também uma frota para o ancoradouro de Huangpu, composta por juncos de guerra, para evitar ações concertadas entre os engajadores e os responsáveis pelos navios estrangeiros. Na sequência destas diligências, 36 raptores de cules foram presos, 18 decapitados, 11 severamente punidos e 41 libertados [Campbell, 1971, pp.125]. Pretendia-se que os barracões existentes na China fossem abertos e os cules libertados. No entanto, Lao estava consciente de que esta regulamentação só poderia ter sucesso se fosse aplicada e fiscalizada pelas potências ocidentais com interesses no negócio. Foi por este motivo que o governador enviou o regulamento às autoridades francesas e americanas na região. Todavia, este apelo de Lao Ch’ung-Kuang surtiu pouco efeito porque os navios de cules com bandeira holandesa, americana e peruana continuaram ancorados em Huangpu, com centenas de cules a bordo, ignorando assim as disposições do regulamento, nomeadamente em relação à vigilância das autoridades locais. A vistoria a bordo e o regresso a Cantão eram recusados e a mudança de navio e a passagem por Macau emergiam cada vez mais como a principal alternativa. Ainda assim, por determinação do governador, o regulamento foi alargado a Swatow (Shantou), na província do Guangdong, outro porto que também estava sob a sua jurisdição. O chamado «Canton System» alcançou, por isso, um sucesso muito relativo. É verdade que permitiu enviar muitos trabalhadores para as colónias britânicas. Porém, fracassou, na sua tentativa de erradicar o tráfico de cules porque o recurso aos engajadores e aos corretores já estava muito arreigado e também porque o efetivo controlo deste problema devia envolver todas as partes, incluindo os países e territórios que organizavam os contratos e que recebiam os emigrantes, o que não aconteceu. Por outro lado, nem os funcionários chineses nem os agentes ocidentais conseguiram exercer uma fiscalização efetiva fora da área de Cantão. Por outro lado, Macau surgia cada vez como um território privilegiado para o embarque de emigrantes chineses, como referimos atrás. A introdução deste sistema de emigração não foi do conhecimento imediato da Corte. No entanto, Yang Jung-hsu, informador do imperador no Distrito do Guangdong, enviou-lhe um memorial no qual referiu o envolvimento do governador-geral neste processo [Memorial de Yang Jung-hsu in Ching-Hwang, 1985, pp.95-96]. Yang Jung-hsu não criticou abertamente Lao Ch’ung-Kuang, mas fê-lo em relação aos restantes funcionários imperiais da província e aos ocidentais, que acusou não só de fracassarem na prevenção do rapto dos chineses, como até de terem criado condições para que estes se entregassem livremente aos seus exploradores. O conteúdo deste memorial desagradou obviamente ao imperador, pelo facto de ele não ter sido informado das negociações, e também porque os funcionários locais ao colaborarem neste processo violaram as leis do império. Sendo assim, o imperador expediu um édito a acusar de malfeitores os estrangeiros e alguns chineses de raptores de cules e ordenou uma 45 investigação às denúncias feitas contra os mandarins do Guangdong [Édito imperial de 22 de Abril de 1860, in Yen Ching-Hwang, 1985, p.9]. Esta tarefa ficou a cargo de Ch’i-ling, o novo governador do Guangdong, que em outubro de 1859 sucedeu a Po-kuei. O memorial que resultou da investigação realizada foi enviado ao imperador em agosto de 1860. Nesse texto, Ch’i-ling confirmou os dados recolhidos por Yang Jung-hsu, mas não julgou o sistema. Talvez por saber que o imperador tinha especial confiança em Lao Ch’ung-Kuang, o informador limitou-se a referir que o governador-geral cooperou com os estrangeiros, mas não o acusou de traição, nem especificou em que medida os restantes funcionários imperiais estavam envolvidos no assunto [Ching-Hwang, 1985, p.98]. Em suma, Ch’i-ling procurou acalmar a ira do imperador, que nesta altura estava mais preocupado em fugir de Pequim para escapar aos ataques das forças aliadas. Por todas estas razões, a reação do imperador ao regulamento de Cantão foi irrelevante. Doravante a emigração chinesa com contrato continuou a fazer-se a partir de vários portos do sul e sudeste da China até 1874, num contexto que não iremos abordar neste artigo. Porém, Macau assumiu progressivamente o papel de grande plataforma emigratória, sobretudo para Cuba e para o Peru, para onde partiram mais de duzentos mil chineses, pelo facto de o Estabelecimento escapar ao controlo das autoridades chinesas. Biografia Maria Teresa Lopes da Silva é professora, mestre em História do séc. XIX pela FCSH da Universidade Nova de Lisboa, com uma tese sobre o tema «A Transição de Macau para a Modernidade, 1841-1853. Ferreira do Amaral e a construção da soberania portuguesa». Doutoranda em História na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, prepara uma dissertação sobre a emigração chinesa através de Macau para Cuba e Peru, 1851-1874. Participou em vários congressos e tem várias publicações sobre Macau no século XIX. Email: [email protected] Biblografia Fontes: Correspondência recebida de Macau (Governadores, Senado, Juízes de Direito, Bispos, Junta da Fazenda, etc.) AHU – ACL – SEMU – DGU – 5. National Archives, Londres, FO 97/102. Estudos: CAMPBELL, Persia Crawford, Chinese coolie emigration to countries within to the british empire, Frank Cass & Co. Ltd., Londres, 1971. CHANG-RODRIGUEZ, E., «Chinese Labour Migration into Latin America in Nineteenth Century», Revista de História da América, Vol. 46, Dezembro de 1958, Instituto Panamericano de Geografía e Historia, México, pp.375-397. 46 CHESNEAUX, Jean, Movimientos campesinos en China (1840-1949), siglo XXI, Madrid, Siglo XXI, 1978. 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The chinese to the present time occasionaly style themselves Tang jin, “men of Tang” [GUTZLAFF, 1833, p.133]. Max Weber ecoa este mesmo sentimento ao escrever no século XX: “Even today the T'ang dynasty irradiates the glory of having been the actual creator of China's greatness and culture” [WEBER, 1951, p.117]. Esta percepção sobre este período dinástico impulsionou um topos da historiografia sobre China, a do “cosmopolitismo T’ang”. Um livro específico pode ser apontado como responsável pela popularização desta noção, The Golden Peaches of Samarkand: A Study of T’ang Exotics. Escrito pelo sinologista Edward Schafer em 1963, foi uma obra fundamental ao resgatar um anedotário ao redor dos itens estrangeiros e a sua boa recepção pela sociedade chinesa da época, a fim de sustentar a tese que o gosto pelo exótico foi característico do período T’ang como um todo e está presente na arte, no cotidiano, nos costumes, na dieta, na presença estrangeira em cidades como Chang’an e Guangzhou [SCHAFER, 1963, pp.7-39]. O impacto do livro é sentido em toda a sinologia subsequente, basta ler qualquer seção de referência bibliográfica de texto publicado sobre o período. Onde a influência de Schafer é mais clara é nos manuais de história da China. Alguns argumentos são comuns neles, a caracterização do período T’ang como afeita pelo exótico, receptiva de estrangeiros em território chinês, em especial mercadores e elevada pelas trocas culturais entre chineses e estrangeiros, em especial o budismo. Um exemplo que aponte estes três elementos é útil: “During the Six Dynasties period and the early T’ang, China was pervaded by a spirit of cultural tolerance. The "barbarian” invasions left the North wide open to foreign influences; Buddhism was both a vehicle for and a stimulus to close cultural contacts with distant areas; interregional trade by sea and by land was growing far beyond anything known in Han times; and the early Tang Empire brought the Chinese into direct contact with the great centers of civilization in India and West Asia. Never again until the twentieth century was China to prove so responsive to foreign influences.” [CRAIG, Albert M.; FAIRBANK, John K.; REISCHAUER, Edwin O. East Asia: Tradition & Transformation. Boston: Houghton Mifflin Company, 1989, pp.110-111] A provocação do presente texto é avaliar qual o sentido e o efeito do uso de um termo como “cosmopolitismo” para designar a totalidade de um intervalo 49 histórico. Aqui argumenta-se que um próximo passo se faz necessário, a historização do termo e a superação dele enquanto um elogio. O argumento a favor do cosmopolitismo do período é vastamente documentado. Durante o período de três séculos, mais de uma centena de monastérios budistas foram construídos em Chang’an, quantidade muito superior aos monastérios taoístas [XIONG, 200, pp.297-320]. Guangzhou, atual Cantão, foi um polo de comércio importante entre a China e o mundo IndoPacífico. O Período T’ang foi contemporâneo à ascensão do Islã como religião e seu estabelecimento como instituição política a partir dos Califados. Este processo geopolítico abriu um horizonte de possibilidades, em especial a partir dos Abássidas e o estabelecimento da cidade de Bagdá em 762, próxima do Golfo Pérsico e dos portos importantes de Siraf e Al-Ubullah, visto que os persas sassânidas já a séculos eram agentes importantes do comércio, tanto por terra quanto por mar. Nos séculos VIII e IX, o comércio marítimo entre o Califado e a China T’ang era frequente e direto, com uma viagem de duração estimada em seis meses e possibilitada pelos ventos de monções da região do subcontinente indiano. Além de persas, árabes também passaram a participar do comércio [HOURANI, 1975]. O naufrágio de Belitung, descoberto por pescadores indonésios, de uma dhow retornando da China mostra tanto as trocas materiais de longa distância [PINTO, 2021] quanto as possibilidades de trocas culturais, visto que algumas cerâmicas chinesas do naufrágio parecem utilizar técnicas de esmalte iraquiano [GEORGE, 2015, p.27]. Pratos de vidro semelhantes à padrões islâmicos foram encontrados na China, Japão e Silla [GEORGE, 2015, p27-28]. Isto aponta para a absorção de técnicas estrangeiras na produção material chinesa. Estes exemplos são ínfimos em comparação à gama extensiva de anedotas que mostram fenômenos significativos que, agrupados, qualificam o período como cosmopolita de modo convincente. O conceito de cosmopolitismo, no entanto, envolve uma gama de diferentes experiências históricas, a primeira é a sua própria etimologia. O termo foi primeiro empregado por Diógenes de Sínope [413-323 AEC], filósofo cínico que se declarou kosmopolitēs, um cidadão do mundo, do cosmos como sua pólis. Esta noção foi reforçada pelos estoicos, como Zenão de Cítio [333 – 263 AEC], que acreditavam em uma razão universal capaz de prover normas naturais de moralidade. O termo retorna a partir do Iluminismo, quando é reconhecido no Dictionnaire de Trévoux de 1721 e aparecerá na polêmica de Rousseau contra o le monde com uma carga negativa, ecoando a definição do Dictionnarie de l’Academie que o cosmopolita era um mau cidadão. A palavra foi reabilitada for Voltaire e é positivada com a desilusão dos philosophes com a monarquia absolutista francesa. A Encyclopédie de Diderot [1713-1784] e D’Alambert [1717-1783] estabelece a equivalência entre o philosophe e o cosmopolite. O responsável pelo grande tratado cosmopolita do período foi Kant com textos como Ideia de uma história universal de um ponto de vista cosmopolita [1784], onde o alemão busca expor o plano oculto da natureza de uma história universal, e Paz Perpétua [1795], que propõe uma ordem geopolítica com base na paz. É importante marcar como os dois textos se complementam para um 50 argumento do progresso natural da humanidade para uma sociedade cosmopolita de nações. O cosmopolitismo ainda é presente no marxismo tanto de forma negativa, a exploração burguesa é global, quanto positiva, vide o lema “trabalhadores do mundo uni-vos”. [BEROŠ, 2016; BOBBIO, 2004; BUSSETO, 2017] Este breve histórico do conceito busca historicizá-lo e levantar uma primeira suspeita. Evoca-se aqui a discussão de Dipesh Chakrabarty, historiador indiano que contesta a universalidade da categoria histórica do “trabalho”, associada a um tempo historicista moderno, nos termos benjaminianos de homogeneidade e vazio, que retira a agência dos agentes sobrenaturais no contexto indiano, asfaltando pelo silêncio histórias constituintes da modernidade capitalista [CHAKRABARTY, 200, p.72-96]. Espera-se que uma China cosmopolita esteja moldada às expectativas europeias de cosmopolitismo? Mesmo que seja o caso, o termo não deve ser descartado. Deve ser localizado e historicizado como faz Sheldon Pollock, historiador da língua sânscrita, que propõe o conceito de cosmopolis sânscrita para descrever o fenômeno da difusão pacífica da língua entre o subcontinente indiano e os arquipélagos do Pacífico entre 300-1300 EC e de uma estética política neste veículo que foi o sânscrito [POLLOCK, 1996, p.196-247]. Pollock argumenta que o conceito pode operar como uma categoria histórica que apresenta práticas particulares e infinitos modos de ser cosmopolita [POLLOCK et al, 2002, p.12]. O que estas leituras apontam é para a possibilidade de um cosmopolitismo enquanto uma categoria analítica sob a condição de uma historicização que aponte especificidades em um universal. Com esta proposta em mente, propõe-se pensar o cosmopolitismo associado à questão da identidade. Cosmopolita e Etnocêntrico A cosmologia chinesa, isto é, como os chineses apreendem e organizam o mundo que habitam, apresenta contornos particulares de etnocentrismo. Desde o período da Dinastia Zhou [1045-256 AEC] uma gama de conceitos, entre eles tianxia [Tudo sob o Céu] e zhongguo [Reino do Meio] convergiram para fundar uma disposição de mundo que colocava o Filho do Céu, o Imperador, no centro do mundo e, em cinco círculos concêntricas do centro zonas de maior ou menor intensidade da influência civilizatória chinesa. Nos limites deste sistema estavam os bárbaros [MINGMING, 2012. p.345]. No período pré-Imperial [?221AEC], tinha-se o ritual como o elemento que definia a alteridade chinêsbárbaro [PINES, 2004]. A partir do reconhecimento de que quem seguia os rituais como compilados no período Zhou era superior àqueles que não o faziam, e da associação à cosmologia descrita acima, tem-se uma cosmologia voltada ao etnocentrismo. O modo que a cosmologia formulada no período Zhou é recepcionada no período T’ang é complexa, visto que está ligada às percepções ligadas ao próprio confucionismo, que no momento era uma de três cosmologias que informavam as visões de mundo dos chineses, taoísmo e budismo. Nenhuma delas era mais prestigiada que as outras. Confúcio viveu, segundo o próprio, em um período de desintegração da integridade moral chinesa, entre os 51 períodos Primavera e Outono [770-476 AEC] e Estados Combatentes [475-221 AEC], em que se teria esquecido o legado de Zhou. Nos Analectos, Confúcio declara que “Zhou contempla as duas dinastias. Quão exuberantes são suas tradições escritas! Eu sigo Zhou” [CONFÚCIO, 2012, p.83] e “Transmito, mas não crio. Confio e amo a Antiguidade. Em segredo, comparo-me a meu velho [amigo] Peng” [CONFÚCIO, 2012, p.212]. Dentre aquelas duas outras doutrinas, a confucionista é aquela que se associa a herança do período Zhou. Faz-se importante esta contextualização a fim de entender a identidade no período T’ang, visto que o Confucionismo não era a doutrina prioritária como seria em períodos posteriores. Marc S. Abramson, autor de Ethnic Identity in Tang China [2008], aborda a questão da identidade étnica no período a fim de destacar o caráter multiétnico do Império, aceitando o termo de origem grega “bárbaro” e a sua carga negativa como apropriada para entender as relações entre a elite metropolitana T’ang educada e o não-han, discursivamente separado e estereotipado. A identidade étnica não é tratada como algo natural pelo historiador, e sim como uma uma ficção social. O discurso que busca criar uma identidade han seria fundado em quatro fatores, cuja prioridade era volátil ao contexto do período: cultura, genealogia, corpo e política. Aquela elite, a burocracia letrada do Estado imperial, a partir destes quatro elementos, tentará designar um Outro étnico, muito a partir de ameaças que este não-han representava à organização do Estado. Ao mesmo tempo que o bárbaro era negativizado e diminuído, ele era tido como essencial para o funcionamento próprio do Império, em especial em postos militares, ocasionando uma sensação ambígua de respeito e medo. A tensão entre a marcialidade [wu] do bárbaro e as qualidades cívicas de um burocrata [wen], é uma das chaves que pauta a diferença entre Nós e Eles nos três séculos da dinastia chinesa. Abramson fundamenta seus argumentos com exemplos concretos, que mostram as raízes na Antiguidade de uma identidade chinesa etnocêntrica. A dicotomia entre o han/chinês [nos termos do período, hua, xia e zhonghua] e não-han/ não-chinês [fan, hu, yi, man, di, jie, yi-di, etc] que remonta ao século 5 AEC [ABRAMSON, 2008, p.xxi] é encontrado na própria cosmologia, isto é, na organização do universo sob a ótica chinesa. Para esta, a região da Planície Central chinesa é o centro do mundo, o Reino do Meio [zhongguo]. Para além desta estão os territórios bárbaros, fora de zhongguo. Para aqueles que estão dentro, a influência civilizadora do Imperador é latente, enquanto os bárbaros são pouco impactados por ela [ABRAMSON, 2008, pp.109-117]. O uso do conceito das Nove Províncias [jiuzhou], localizado em “Tributo de Yu”, um texto de provável datação ao período dos Estados Combatentes [475-221 AEC] ou da Dinastia Qin [221-206 AEC], que delimita as províncias essencialmente chinesas [ABRAMSON, 2008, p.115], é exemplo de um recurso ao passado Antigo. A exegese de textos clássicos também é signo desta busca da identidade chinesa em um passado distante. Debates e polêmicas deste período, especificamente Han Yu [768-824] sobre o demérito do Budismo, que apesar de há séculos na China ainda era tido como indiano, portanto bárbaro, 52 são significativos para mostrar que a definição de identidade era um campo conflituoso [ABRAMSON, 2008, pp.52-82]. Para Abramson, a identidade han está fundamentada na dicotomia hua/hu [chinês/bárbaro]. Este princípio fundamenta uma gama de corolários: Han são sempre leais, pois é deles os conceitos civilizacionais elementares do confucionismo: relações hierarquizadas e piedade filial; a civilização han, arauta destas noções, pode ser ameaça pela animalidade do Outro; o han é educado pelos ensinamentos de Confúcio e a propriedade ritualística. Já o nãohan é incontrolável e, portanto, útil militarmente; o han é racional e passivo, já o não-han é irracional, mas ativo [ABRAMSON, 2008, p.51] A discussão ao redor da identidade chinesa nestes três séculos da dinastia T’ang rende àquela discussão sobre a historicização do conceito de cosmopolitismo e a saída da superficialidade elogiosa do topos “cosmopolitismo T’ang”. A fim de expor as possibilidades analíticas do conceito, coloca-se a aparente contradição de um período cosmopolita, cuja abertura para o estrangeiro é característica, e uma forte identidade chinesa, que tende ao etnocentrismo e remete a sua essência a tempos antigos, pré-imperiais. Este texto não deseja uma conclusão sobre o tema. Mas uma última reflexão pode mostrar o valor de engajar-se na aparente contradição. Records of Xuan Chamber [Xuanshi zhi] , compilado por Zhang Du [834-c.886 EC], é uma coleção de contos cujo título faz referência ao salão onde o Imperador Wen [r.180-157 AEC] questionou o literato Jia Yi [c.200-168 AEC] sobre assuntos místicos. O conto Lu Yong trata das aventuras de um candidato ao mingjing que dá nome ao conto com mercadores iranianos. Um dia Lu Yong é interceptado por mercadores na cidade de Chang’an que dizem se interessar pela sua erudição. Eles se reuniram duas vezes em festas particulares. Quando os colegas do chinês descobriram suas novas amizades, prontamente o advertiram da ganância dos persas. Lu Yong decidiu se isolar por precaução longe da capital. Os mercadores encontraram o aluno, para seu espanto, e revelaram suas intenções. Yong sempre comera muito trigo e ficava cada vez mais magro. Os iranianos revelaram que havia um parasita no seu estômago que se alimentava de trigo e ofereceram um preço alto pelo animal. Após a retirada do parasita, os estrangeiros comentaram que o animal tinha um qi especial que o conectava a uma recompensa majestosa. O grupo viajou para o litoral sul chinês onde várias entidades emergiram do mar e ofereceram presentes, que os mercadores recusaram até que aceitaram uma pérola – ferramenta com a qual o grupo se aventurou nas profundidades do mar e recolheram mais pérolas preciosas, tesouros e conchas. Lu Yong e os mercadores se despediram e o chinês ficou mais rico do que já era e desistiu de buscar o oficialato [DITTER, 2017, pp.124-131]. O exemplo é ilustrativo da problematização proposta. Por um lado, a presença de estrangeiros seria indicativa daquele “cosmopolitismo T’ang”. Por outro, aciona-se a partir do estereótipo do iraniano ganancioso um recurso à identidade chinesa que é repulsiva ao estrangeiro. Pode o etnocentrismo coexistir em uma sociedade cosmopolita? Um primeiro impulso em rejeitar esta 53 possibilidade trai, antes de tudo, a relação do leitor com a história como algo predicado em expectativas específicas, próximas daquele breve histórico sobre o conceito de cosmopolitismo associado ao pensamento ocidental. Outro aspectos é o cosmopolitismo como valor. Em Cosmopolitanism and Empire Universal Rulers, Local Elites, and Cultural Integration in the Ancient Near East and Mediterranean [LAVAN, Myles; PAYNE, Richard E.; WEISWEILER, John, 2016], os historiadores argumentam que o termo cosmopolitismo, usado para caracterizar uma abertura para as ideias e produtos estrangeiros, possui pouca utilidade analítica, geralmente resultando em um elogio anacrônico de como as sociedades do passado parecem com o mundo globalizado do presente. A fim de adicionar complexidade à outra proposta, a que o período T’ang pode ser cosmopolita e etnocêntrica, introduz-se a visão imperialista de Cromer, para quem: “embora jamais possamos criar um patriotismo análogo ao baseado na afinidade de raça ou na comunidade da língua, podemos talvez fomentar uma espécie de lealdade cosmopolita [nas colônias] fundada no respeito sempre concedido aos talentos superiores e à conduta abnegada, e da gratidão derivada dos favores já conferidos e dos que ainda estão por vir” [SAID, 2007, p.69] Se o empreendimento colonial pode ser percebido como cosmopolita e um adjetivo apto para uma lealdade colonial, o cosmopolitismo talvez tenha que ser entendido não como um valor, mas uma dinâmica. Como tal, ela pode não só conviver com o etnocentrismo, como também impulsioná-lo. O turco da Ásia Central, de natureza marcial, o mercador iraniano, sempre ganancioso, o sudeste asiático, tidos como perigoso e hostil [SCHAFER, 1967], só são incorporadas à cosmologia chinesa quando em contato com chineses. As investidas problematizantes podem ser úteis ao exercício historiográfico não só na rejeição, como também nas ambiguidades dos conceitos tidos como suficientes por si só. A “Era de Ouro” chinesa do “cosmopolitismo T’ang” oferece muito quando confrontada para além dos jargões. Referências Matheus Mazurkievicz Sekikawa é graduando em História pela Universidade Federal do Paraná ABRAMSON, Marc S. Ethnic Identity in Tang China. Philadelphia: University of Pennsylvania Press, 2008 BEROŠ, Marin. Cosmopolitan Identity – Historical Origins and Contemporary Relevance. Tabula, v.1, n.14, 2016. pp.197-211 BHABA, Homi K.; BRECKENRIDGE, Carol A.; CHAKRABARTY, Dipesh; POLLOCK, Sheldon. Cosmopolitanisms. Durham: Duke University Press, 2002 54 BUSETTO, Anna. 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Sui-Tang Chang’an: A Study in the Urban History of Medieval China. Ann Harbor: University of Michigan Press, 2000 56 O NATURALISMO EPISTEMOLÓGICO DO FILÓSOFO XUN, por Matheus Oliva da Costa Sobre o Xúnzǐ e o significado de “epistemologia naturalizada” Defendemos nesse texto que a obra Xúnzǐ 荀子 (1999; 2006; 2014) pode ser entendida como uma epistemologia naturalista em sentido amplo. Nesse sentido, este texto tem como principal pergunta quais são as características que possibilitam categorizar o Xúnzǐ como tendo produzido uma epistemologia naturalista? O filósofo Xun (aproximadamente 310-211 AEC), autor da obra Xúnzǐ, foi um dos mais relevantes filósofos na China antiga, sendo um dos primeiros acadêmicos em um contexto de debate livre e aberto a múltiplas posições e tendo um estilo mais analítico e direto que seus antecessores (para maiores detalhes: Knoblock, 1988; Sato, 2003; Costa, 2022b). Enquanto um tipo de abordagem filosófica, o naturalismo é a posição que foca suas investigações somente no que é natural ou físico, no que está neste mundo, limitando-se a não usar explicações que envolvam aspectos sobrenaturais. A própria filosofia em suas origens se confunde com o naturalismo na busca por explicações sobre princípios impessoais que configuram a realidade. Mas há pelo menos duas formas de naturalismo numa linguagem atual: (1) o metafísico ou ontológico, que defende que tudo que existe no espaço-tempo é natural, material ou físico – é a versão mais forte; já o (2) naturalismo metodológico ou moderado é sua versão mais “fraca” ou modesta, e apenas usa uma linguagem que limita-se a abordar as propriedades e os estados naturais tratados pelas ciências (Feldman, 2001; Papineau 2021; Rysiew, 2021). Ambas as formas de naturalismo “são unânimes na compreensão de que é necessário o recurso a certas categorias naturais, como comportamento”, organismo, ambiente e o “esquema estímulo-resposta” para que possamos ter uma “compreensão adequada da estrutura da linguagem e do pensamento” (Imaguire, 2006, p. 73). Independentemente da adoção da posição forte ou modesta do naturalismo, ambas encaminham para uma estratégia epistemológica de limitar-se ou reduzir a explicação da realidade apenas ao que for próprio do mundo natural observável cientificamente. Aqui nos preocupamos apenas com a posição epistemológica, não o naturalismo ontológico. O sentido estrito de naturalismo em epistemologia tem como principal referência o filósofo analítico Willard Quine (1969; 1975) em seu famoso artigo Epistemologia Naturalizada. Assim, o uso de um naturalismo epistemológico em sentido estrito cabe apenas para as filosofias analíticas que adotam tal posição a partir da segunda metade do século XX. No entanto, é possível falar em naturalismo epistemológico no sentido amplo, que abarca todas as formas 57 de filosofar sobre o conhecimento que limitam-se a investigar este mundo, no sentido dado pelas ciências naturais (de sua época), que abrem mão de explicações sobrenaturais, e que entendem que não há teleologia ou valor moral intrínseco nesse mundo natural. Sigo o entendimento de que mesmo autores anteriores a Quine, e que não fazem a defesa explícita do uso das ciências naturais para o filosofar, como Ludwig Wittgenstein (1889-1951), podem ser vistos como naturalistas em sentido amplo (Imaguire, 2006). Entendo que “ciência” pode ser tanto no sentido empírico e contemporâneo do termo, quanto no sentido da ciência que existia anteriormente, que seriam conhecimentos confiáveis e que se pretendiam verdadeiros ou válidos em cada época. Nesse sentido, eu incluo também entre os naturalistas em sentido amplo, p. ex., já os Epicuristas na Grécia antiga, os Carvakas da Índia antiga, e, claro, o filósofo Xun (Van Norden, 2018). O naturalismo de Xun contra explicações que envolvem o sobrenatural Um trecho dos Analectos de Confúcio pouco lembrado em discussões epistemológicas é o 6.22, em que Confúcio (2007, p. 89) é questionado sobre o que é conhecimento, e ele responde que “trabalhar pelas coisas às quais o povo tem direito e manter-se à distância dos deuses e dos espíritos enquanto lhes mostra reverência pode ser chamado de sabedoria”. Aqui fica claro o compromisso com este mundo, mais especificamente com a política social. Mas ficou ambígua a posição quanto ao que poderia ser chamado de sobrenatural (deuses e espíritos): ao mesmo tempo em que ele recomenda um distanciamento, ele também sugere a reverência, o que poderia indicar a aceitação da existência deles. Nos Analectos não há uma posição naturalista ontológica, apenas há uma inclinação para focar nos vivos, na política, nos ritos culturais, e não em aspectos da realidade que estão além da nossa possibilidade de conhecimento. O capítulo 17 do Xunzi, Discurso sobre o Céu (Tiān Lún 天倫), é um escrito sistemático de um período em que o filósofo Xun já havia estudado, trabalhado como ministro, e, provavelmente, era professor-chefe da Academia Jixia (Knoblock, 1988, p. 11). Em síntese, nesse texto ele defende uma posição metafísica como um naturalista “fraco”: o mundo é entendido como processos naturais regulares e irregulares, mas não nega a existência de seres espirituais, apenas concentra-se e limita-se na cultura humana. Seguindo Confúcio, ele apenas se detém no que é possível conhecer (Costa, 2021b). A própria distinção entre processos naturais independentes do querer humano, por um lado, e ações culturais humanas deliberadas, por outro lado, é um ponto central da sua filosofia. Seu naturalismo é usado como um meio para argumentar que os humanos precisam deliberar sabiamente para viver bem, pois o mundo natural funciona apesar de nós. A deliberação adequada em confluência com a naturalidade levaria a benefícios políticos e materiais, enquanto decisões equivocadas e comportamentos individualistas que ignoram os padrões naturais e culturais poderiam levar a pessoa e sua comunidade a ter prejuízos, ou até mesmo à morte (Costa, 2021b). Mas, de que forma alguém 58 pode saber que sua distinção é correta e funcional? Vamos entender a descrição dele sobre como nosso organismo processa o conhecimento no trecho 17.4: “[...] Amar ou odiar, alegrar ou enraivecer, entristecer ou regozijar estão contidos no que podemos chamar de emoções naturais. Os ouvidos, os olhos, o nariz, a boca e o corpo têm cada um deles uma habilidade de receber [informações sensoriais], mas suas habilidades não são intercambiáveis, isso é o que chamamos de ‘órgãos naturais’. O coração-mente localiza-se na cavidade central [do corpo] para ordenar os cinco órgãos [dos sentidos], isso é o que chamamos de ‘soberano natural’. [Usar] recursos diferentes da sua espécie para nutrir a sua própria espécie, isso é o que chamamos de ‘nutrir-se do natural’. [...] Obscurecer seu soberano natural, desordenar seus órgãos naturais, abandonar sua nutrição natural, opor-se ao seu governo natural, virar as costas às suas emoções naturais, de forma a perder as realizações naturais, isso é o que chamamos de ‘grande temor’. O sábio aclara seu soberano natural, regula seus órgãos naturais, prepara sua nutrição natural, segue o governo natural, nutre-se das suas emoções naturais, de forma que se integra com suas realizações naturais. Assim, segue-se que ele sabe o que fazer, ele sabe o que não fazer; o Céu e a Terra são como o seu palácio e as dez mil coisas são como os seus servos. Suas ações são minuciosamente ordenadas, sua nutrição é meticulosamente apropriada, sua vida não é danificada, isso é o que chamamos de ‘conhecer o Céu [a natureza]’” (Xunzi, 17.4 In: Costa, 2021b, p. 214-215). Xun entende que os humanos são seres naturais como outros, e que o nosso organismo é fruto de processos naturais. Assim, o que nos é inato, como a condição de produzir emoções, são também processos naturais. Nossa percepção do ambiente se dá também via nossos órgãos naturais, ou sentidos físicos. E, mais importante, há um aspecto do nosso organismo que é um “soberano”, que está no controle de tudo que é nosso naturalmente, que, na China antiga, foi identificado como sendo o coração, xīn 心, o que faz muitos traduzirem como “coração-mente”. Voltaremos nesse ponto depois. Ainda sobre a citação, o raciocínio é que somos seres naturais, mas a natureza em geral, de que somos um dos frutos, continua seus processos impessoais apesar de nós, logo, cabe-nos adequarmos a ela. Essa adequação, no entanto, não deve ser passiva e nem cega às singularidades próprias da cultura humana, como ele acusa de ser o caso dos daoístas Lǎozǐ 老子, nesse mesmo capítulo 17, e do Zhuāngzǐ 莊子, no capítulo 21. Xun defende que devemos conhecer ativamente e profundamente os processos naturais para usar esse conhecimento a favor da humanidade, para nos nutrir. Outro aspecto da sua posição naturalista era a de que a forma mais adequada de entender os fenômenos naturais era vendo-os como processos de transformações continuas e impessoais. No trecho 17.11 ele defende que os eventos naturais que causam temor na maioria das pessoas são apenas 59 “transformações do Yin e do Yang”, e que não haveria o que temer nisso (Costa, 2021b). Depois, de forma ainda mais assertiva, ele diz: “Fizeram um sacrifício ritual para chover e choveu, por que isso ocorreu? Digo: não há relação nisso, é como se não fizessem o sacrifício ritual para chover e chovesse [mesmo assim]. Ao pedir ajuda para salvar o sol e a lua do eclipse, ao fazer um sacrifício ritual para chover quando há seca, ao realizar adivinhações para decidir grandes assuntos, não se trata de agir para obter o que se [parece] buscar, [mas sim para] fazer o uso cultural daquilo. Então o Educado considera isso cultura, mas as cem famílias consideram ser algo espiritual. Ao considerar como cultura, será afortunado, ao considerar como espiritual, serão temerosos!” (Xunzi, 17.13 In: Costa, 2021b, p. 220). Assim, ele crítica que a população em geral tende a ver os ritos mágicoreligiosos como de fato tendo a eficácia que prometem ter, o que pode causar medos injustificados nas pessoas, e, por consequência, prejuízos (como ele diz no trecho 21.13). Pensem, por exemplo, em recursos limitados gastos com rituais mágicos ou amuletos da sorte, ou até no uso de supostos remédios milagrosos que podem destruir a saúde de alguém desesperado. Xun faz uma distinção entre atos culturais e fenômenos naturais: entende que supostas interferências mágicas não procedem, mas que há, na verdade, um sentido cultural para esses ritos, pois nutrem as emoções humanas (por exemplo, apaziguando ou animando a comunidade), e podem ser formas de memória coletiva. Entendidas assim, a cultura é justificada, mas é abandonada a ingenuidade de crer nos aspectos que não são justificáveis naquelas práticas. Já sabemos então, os limites epistêmicos propostos por Xun, seguindo os passos de Confúcio: o mundo natural em geral, e mais especificamente as sociedades (feitas de humanos, que também são organismos naturais), são o que realmente importa conhecer. Mais exatamente, é o que estamos justificados a buscar conhecer, pois temos condições de observar os processos naturais e entender os significados das ações culturais. Porém, é sugerido como imprudente aceitar explicações sobrenaturais para entender a realidade. O que é e como é possível o conhecer? Mesmo que saibamos que os processos naturais e as ações culturais são o que podemos e devemos conhecer, ainda resta entender o que é conhecer e como é possível o conhecimento. O termo chinês antigo equivalente a conhecimento ou saber seria zhī 知, ou, em alguns contextos, zhì 智. Daí que vem o termo chinês atual equivalente a “epistemologia” como área da filosofia que teoriza sobre o conhecimento: zhīshì lùn 知识论 , também chamado de rènshí lùn认识论. Do ponto de vista da Escola dos Eruditos (Rú Jiā儒家), mais conhecida como “confucionistas”, o conhecimento relaciona-se com estar ciente de que sabe ou não de algo (Harbsmeier, 1993). Segundo Confúcio (2012), nos Analectos 2.17: “[...] Se você sabe, então sabe; se você não sabe, então não sabe. Nisso consiste o saber” (zhī 知). Na mesma obra no trecho 9.8, Confúcio (2012; 2007) diz que não tem conhecimento por não saber responder um camponês, mas 60 disse que se esforçou para responder mesmo assim. Ou seja, o primeiro esboço epistemológico dessa tradição atribuiu o saber ao estar consciente de X a ponto de saber expressar o conhecimento sobre X verbalmente. Para Xun, conhecimento é apresentado no trecho 2.3 em uma referência direta à Confúcio: “Por conhecimento designo saber o que é e o que não é; Por ignorância designo [acreditar que] o que não é, é, e o que é, não é” (Xunzi, 2006, tradução minha). Nesse caso, o sentido de “ignorância” é de um conhecimento falso, errado, equivocado, que não corresponde, em realidade, com o que é afirmado. Avançando além dessa distinção inicial Xun realizou várias definições, descrições e argumentações que formam sua teoria do conhecimento no trecho 2 do capítulo 22, Nomeação Correta (Zhèng Míng 正名): “[...] O que é de nascença é chamado de “caráter natural”. O caráter natural é aquilo harmonizado com o que vem de nascença, da mesma forma, a conexão essencial entre o estímulo e a resposta, o que não é trabalhado e continua espontâneo, é chamado de caráter natural. O que o agrada ou desagrada ao nosso caráter natural, o alegrar-se ou o enraivecer, [o ficar] triste ou feliz são chamadas de “emoções”. Ao surgirem as emoções o coração-mente faz escolhas, o que é chamado de “ponderação”. Quando o coração-mente pondera e consegue promover mudanças, isso é chamado de ‘construção consciente (wěi 偽)’. Ponderando e acumulando, sendo capaz de praticar, e depois finalmente é chamado de ‘construção consciente’” (Xunzi, 22.2 In: Costa e Li, 2021, p. 119, adaptado). Assim, há a distinção entre o que é inato, o caráter natural (ou natureza humana) e o que desenvolvido a partir do inato (a construção consciente). Esse desenvolvimento a partir do natural, mas que busca ir além dele, ocorre por meio de um uso do que hoje é denominado de funções executivas do sistema nervoso. Naquele contexto, incluso o Xun, entendiam que o que fazia essa função era o coração-mente, o soberano natural. Está claro, hoje, que, por um lado, erraram a localização desse órgão que tem funções de controle central do organismo; por outro lado, a percepção de Xun de que é um mesmo órgão que processa os dados dos sentidos recebidos pelos cinco sentidos, as emoções e a cognição (ou razão) se mostrou condizente e aproximado com o que sabemos atualmente de como funciona o organismo humano, com ênfase para o encéfalo no sistema nervoso central. Já vimos um trecho do capítulo 17 em que Xun descreve que nossos órgãos naturais percebem o mundo. No trecho 22.5, ele defende que já esses sentidos naturais e seus órgãos conseguem reconhecer distinções iniciais, que são melhor identificadas com as disposições e emoções (qíng 情) internas geradas em seguida. Por exemplo, podem sentir se algo é macio ou áspero, azul ou verde etc, e a valência afetiva positiva ou negativa que surge a seguir pode rapidamente sinalizar se é mais adequado se aproximar ou se afastar daquilo com que teve contato. O coração-mente processa tudo isso, mas também pondera e avalia sobre o que recebeu e sentiu. É durante esse processo natural que há a possibilidade de nos desenvolvermos para além da nossa 61 natureza “bruta”, usando de funções executivas como planejamento, memória de trabalho ou deliberações. “O coração-mente tem o poder de comprovar o conhecimento [com consciência]. Se sua consciência comprova, é devido ao ouvido poder conhecer os sons, devido aos olhos poder conhecer as formas. Porém, para a consciência comprovar [algo] ela precisa requerer que os seus órgãos naturais registrem [qual é] o tipo [da coisa percebida], só depois disso ela pode [comprovar]. [Se] os cinco órgãos [naturais] registrarem mas não reconhecerem, [se] o coração-mente comprova o conhecimento mas sem [conseguir] explicar, então as pessoas concordam que não há [conhecimento]: isso é chamado de “não saber”. É por essa razão que se faz [a distinção entre coisas] iguais e diferentes” (Xunzi, 22.2 In: Costa e Li, 2021, p. 122). Para Xun, o conhecimento está relacionado principalmente com a capacidade de fazer distinções (yì 異, bié 别 e, principalmente, biàn 辨), uma influência tanto de Confúcio quanto do Mòzǐ 墨子 (Goldin, 2023; Elstein, 2022; Rošker, 2022; Wu, 2018). Assim, o conhecer não é apenas informacional, pois precisa também de um entendimento correto que saiba avaliar se a percepção dos dados dos sentidos faz sentido. É devido a isso que, mesmo recebendo e sentido uma infinidade de informações constantemente, podemos conhecer de algum modo ordenado. Nossas funções cognitivas incluem a ordenação dessas sensações, que podem ser desenvolvidas amplamente, gerando todo tipo de classificação, comparação, síntese e raciocínios sobre qualquer assunto. Em resumo, o processo de conhecer o mundo passa: (1) pelo contato e captação do ambiente pelos cinco sentidos naturais, (2) a percepção interna dessa captação através das emoções naturais que filtram o igual e o diferente são processadas pelo coração-mente, para, finalmente, (3) o coração-mente analisar o que é admissível ou não. Feito todo esse processo, uma pessoa saberá expressar a realidade percebida através de uma explicação – quando tudo isso ocorre, podemos dizer que alguém sabe algo. Se alguma parte desse processo falhar entre o início e o final, então não podemos afirmar que a pessoa sabe que X, mas apenas que percebeu, sentiu ou afetou-se com X. Como Xun afirma entre os trechos 14 a 18 do capítulo 22 (Costa e Li, 2021), e aprofundado em todo capítulo 21, Livrar-se das obsessões (Jiě Bì 解蔽), as avaliações e as ponderações feitas por alguém que está desequilibrado acarretarão em erros. Isso ocorre pelo fato de que as emoções e funções executivas fazem parte dos processos cognitivos que ocorrem principalmente no coração-mente, influenciando-se mutuamente. Assim, estar com emoções extremas em intensidade (menor/maior) ou valência (positiva/negativa) tem forte impacto na cognição, podendo mesmo prejudicar desde a captação e percepção do ambiente até as avaliações mentais mais refinadas. Ao contrário, com as emoções equilibradas, usando essas disposições naturais ao seu favor e de forma moderada, então é possível entender e conhecer – os dois tipos de ganhos epistêmicos. 62 Para Xun, nesse capítulo 21 (Costa, 2023), a melhor forma de não se dividir cognitivamente e ainda equilibrar essas emoções é ter a habilidade de unificar ou sintetizar o conhecimento, contra a tendência dualista natural da mente que nos leva a distração. No programa epistemológico de Xun é necessário ser habilidoso não só com nossas funções cognitivas geralmente chamadas de “racionais”, mas também com as próprias emoções, que são parte do processo de produção do conhecimento pelo agente epistêmico. Dessa forma, sua epistemologia é naturalizada tanto por se deter no conhecimento do ambiente natural e das ações culturais humanas, quanto por focar em entender como nosso organismo processa o conhecimento por meio de suas ferramentas naturais que são desenvolvidas e aperfeiçoadas pelo agente epistêmico. Sobre o autor Matheus Oliva da Costa é pós-doutorando pelo Departamento de Filosofia da USP, é doutor e mestre em Ciência das religiões pela PUC-SP, é graduado em Filosofia pelo Centro Universitário Internacional e em Ciência das religiões pela UNIMONTES-MG. Referências CONFÚCIO. Os Analectos. Tradução, comentários e notas de Giorgio Sinedino. São Paulo: Editora UNESP, 2012. CONFÚCIO. Os Analectos. Tradução e introdução de Dim Cheuk Lau. Porto Alegre, RS: L&PM, 2007. COSTA, M. O. Xunzi - Tradução do cap. 21 - Jie Bi 解蔽 - Livrar-se das obsessões. Anais de Filosofia Clássica (Online), v. 16, p. 171-200, 2023. COSTA, M. O. 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Rio de Janeiro: Batel, Go East Brasil, 2018. 65 O PAPEL DAS CONCUBINAS NA DINASTIA SONG, por Renata Ary Uma breve introdução sobre a Dinastia Song [960 – 1279] A dinastia Song [960-1279] durou mais de três séculos e foi dividida em dois períodos: Song do Norte [960-1127] e Song do Sul [1127-1279]. Foi uma época de grande criatividade, de uma sociedade muito rica e refinada. Havia grandes cidades, cujo povo era culto e sofisticado e, diferente de épocas anteriores, as rotas marítimas eram desenvolvidas e por isso o comércio apresentou exponencial crescimento que ensejou o alargamento da economia que foi monetizada. Foi um período de grande desenvolvimento cultural, político, demográfico, filosófico, científico e tecnológico. A cultura se desenvolveu: haviam livros impressos, pinturas e passou a existir um sistema de exame para administração pública. Alguns autores comparam a era Song com o renascimento Europeu. Do ponto de vista ideológico, eram clássicos e pouco se abriram para a modernidade. O tempo dos Song foi considerado a era de ouro chinesa. [Fairbank, 1991, p. 64]. De acordo com Gernet (1974, p. 280): “Adoptamos, aqui, o termo Renascimento. O seu uso é criticável, apesar das numerosas analogias: retorno a tradição clássica, difusão do saber, surto das ciências e das técnicas [imprensa, explosivos, progressos das técnicas navais, relógio de escapo, etc], nova filosofia e nova visão do mundo, em suma, o mundo Chinês tem, tal como o Ocidente, os seus caracteres próprios e originais”. Nesse mesmo sentido, Fairbank [1991, p. 64] narra: “O século e meio de domínio dos Song do Norte [960-1126] seria um dos períodos mais frutíferos da história chinesa, algo semelhante ao Renascimento europeu que ocorreria dois séculos depois”. Foi no ano de 960 que a dinastia anterior, os Tang, num período denominado de as “cinco dinastias e dez reinos” caiu. Os últimos anos que antecederam a queda, foi marcado por desordens e guerras que culminaram na proclamação, pelas tropas de guarda do palácio, de seu comandante como o novo imperador, dando início a era dos Song. Ao ascender ao poder, Zhao Kuangyin fundou a dinastia Song e foi proclamado imperador sob o nome de Sung Tai Tsu. Ele e seu sucessor [Taizong, seu irmão mais novo - 976-997] aposentaram os generais e preencheram os cargos com funcionários públicos. Reuniram as melhores tropas para cercar o palácio, criaram um sistema burocrático de centralização das receitas fiscais, mapearam as cidades e províncias e com isso garantiram o controle da força militar e estabeleceram um novo poder civil. Nas palavras de Gernet [1974, p.8] “São impressionantes as diferenças entre a China dos séculos XII e XIII e a dos Tang, cujo período mais brilhante se situa 66 no século VIII. Em quatro séculos, a China metamorfoseou-se. A um mundo rude, guerreiro, um tanto artificial e hierático substituindo-se uma China animada, comerciante, ávida de prazeres e corrupta. Entrevê-se sempre em plano recuado a vida miserável e precária dos camponeses, e essa miséria aumentou mesmo, relativamente. Mas a atmosfera é completamente diferente”. Era uma sociedade mais aberta que as dinastias anteriores, permitia-se que a pessoas se movimentassem com maior facilidade. Com o desenvolvimento naval, houve o avanço do comércio maritimo e surgiram novas atividades como barqueiro, almocreves, marinheiros e mercadores. Além dos comerciantes, haviam os letrados e o populares. A economia agrária deu lugar a economia mercantil. Os oficiais acadêmicos aumentaram seu status social e eram responsáveis pela administração local. As mudanças de fortunas eram frequentes e davam ensejo a novos grupos sociais e novas relações. [Gernet, 1974, p. 300]. O desenvolvimento da tecnologia foi exponencial na era Song, eles inventaram a bússola magnética, a impressão e a pólvora. As armas de fogo passaram a ser utilizadas em combates e a construção de navios foi majorada e melhorada. Foram os Song que estabeleceram a primeira marinha permanente na China. A fabricação de papel, a produção de seda e o artesanato, desenvolveram-se, inclusive os Song imprimiram o seu próprio papel-moeda. Houve um regresso à tradição clássica e a hegemonia do budismo chegou ao fim. “A mistura dos seres vivos – demônios, animais, seres infernais, homens e deuses – feita através das suas transmigrações, toda esta fantasmagoria cósmica se apaga para dar lugar, unicamente, ao mundo sensível. O homem torna-se homem num mundo limitado e compreensível que lhe basta observar para conhecer”. Houve o advento do racionalismo prático alicerçado na experiência e na filosofia naturalista. A renovação da vida intelectual garantiu a rápida e barata reprodução dos textos escritos. “O homem das elites chinesa no século XI é tão diferente dos seus antecessores da época dos Tang, como o homem do Renascimento o é do da Idade Média”. [Gernet, 1974, p. 312] Em 1126 a Dinastia Jin, sob a liderança dos Ruzhen, invadiu o norte da China e tomou o controle de Kaifeng, forçando os Song a estabelecerem sua capital no Sul, em Hangzhou [ao sul do rio Yangtze]. No entanto “o Sul, para muitos, não é a terra dos seus antepassados: lá, tem a sensação de estar no exílio. [...] As grandes dinastias chinesas sempre tiveram as suas capitais no Norte, na região do atual Si-an ou mais a leste” [Gernet, p. 9]. Os Song do Sul alcançaram seu apogeu no século XIII. Para Fairbank [1991, p. 67] “Durante o seu apogeu, no início dos anos 1200, a grande capital da Song do Sul estendeu-se ao longo do estuário do rio Qiantang por mais de trinta quilômetros do subúrbio do sul - com aproximadamente quatrocentos mil habitantes - atravessando a cidade imperial murada, na qual viviam meio milhão de pessoas, até o subúrbio ao norte, onde residiam mais duzentos mil pessoas. Hangzhou tinha algumas semelhanças com Veneza, como apontou 67 Marco Polo. A água clara do grande Lago Oeste corria pela cidade em duas ou mais dezenas de canais que levavam os resíduos em direção ao marés no estuário do rio. A cidade cobria cerca de 18 quilômetros quadrados dentro suas paredes e a ampla via Imperial, que corria de sul a norte, dividiam-na em duas. Antes conquistada pelos mongóis em 1279, Hangzhou tinha uma população de mais de um milhão de habitantes [algumas estimativas chegam a 2,5 milhões], o que a tornou a maior do mundo. A Veneza de Marco Polo tinha talvez cinqüenta mil habitantes: daí seu grande espanto com a vida urbana na China”. “Com o decorrer dos séculos, o peso da China do Sul fez-se sentir cada vez mais: ela povoou-se, enriqueceu-se, desenvolveu as suas relações marítimas e fluviais, inaugurou um gênero de vida especificamente urbano, que era quase desconhecido na China do Norte, deu origem a grandes famílias letradas, enfim tomou consciência de si própria e do seu dinamismo”. [Gernet, p.9] Em 1234, no Norte da China, os mongois derrotaram a dinastia Jin e em 1279, através de seu comandante Genghis Khan e posteriormente por Kublai Khan, invadiram Song do Sul e quando da ocupação total do território, derrotaram os Song, pondo fim a dinastia. O papel das concubinas na Dinastia Song Nas famílias chinesas patrilineares e patrilocais, as mulheres eram subdivididas em duas categorias: as que nasceram no território Song [filhas, netas] e as que foram trazidas de fora: esposas, concubinas e criadas. Na china imperial dos Song, as concubinas [Qie] eram equiparadas às esposas [qi] em dois aspectos: o primeiro, na questão sexual - pois ambas eram parceiras sexuais do membro de sexo masculino da família e das quais esperava-se a procriação: ter filhos [na China Imperial o status de filho não dependia do fato da mãe biológica ter qualquer tipo de vínculo com o pai biológico]; o segundo, ambas - esposa e concubina, eram incorporadas à família do marido e não lhes era permitido retornar à sua família natural, inclusive em caso de viuvez. De acordo com o código legal da Dinastia Tang [618-960], que em grande parte foi copiado pela sucessora Song, as regras de exogamia e incesto eram as mesmas para esposas e concubinas: caso alguém tivesse relações sexuais com elas era considerado crime de adultério. Era ofensa grave transformar uma esposa em concubina ou uma concubina em esposa, pois violava a ética social. Diferente das esposas, as concubinas eram equiparadas às empregadas domésticas [bi] pois eram marginalizadas no status de parentesco devido a forma que eram adquiridas. [Na china tradicional era socialmente desonroso e ilegal um homem ter mais de uma esposa, no entanto, ele poderia ter quantas concubinas ele pudesse pagar]. Na china imperial, o termo concubina também era utilizado para designar as consortes secundárias do imperador – muitas 68 delas ocupavam um alto escalão no império e raramente eram chamadas de qie. [Ebrey, 2013, p. 50] O casamento da esposa e das concubinas era diferente, pois a esposa casavase com dote e as concubinas não. As esposas, na maioria das vezes, tinham o mesmo status social do marido e o ritual de casamento envolvia documentos formais, troca de presentes entre as famílias, período de noivado e festa. Com as concubinas era diferente e elas poderiam até ser escravas ou servas e quanto mais abastada era a família, sobretudo as famílias de funcionários de alto escalão e cavalheiros [shidafu] que tinham importância política e cultural no império, mais comum era essa relação. Não havia qualquer vínculo de afeto entre as concubinas e seu “mestre”, em especial quando a parceira não conseguia procriar ou quando os filhos não eram assumidos pelo homem. A concubina era “tomada em casamento” [qu] ou comprada [mai] de forma perpétua [por toda a vida] ou em alguns casos, por algum período específico. Ebrey [2013, p. 46] narra: “No Song, o mercado mais altamente especializado para concubinas estava nas capitais, especialmente em Hangzhou durante os Song do Sul (1127-1279). O Mengliang lu [Sonhos de Esplendor], depois de discutir os corretores que lidavam com trabalhadores masculinos, gerentes e balconistas, discutia a questão feminina equivalente: ‘Existem corretoras oficiais e privadas [yasao] para auxiliar oficiais ou famílias ricas que desejam comprar uma concubina [chongqie], uma cantora, uma dançarina, uma cozinheira, uma costureira ou uma empregada grosseira ou fina. [Ebrey, p. 46] Elas eram altamente treinadas para serem vendidas no mercado. Eram apresentadas de forma luxuosa e uma vez compradas, eram tradadas como empregadas. “Acredita-se que muitas concubinas, como as cortesãs, sabiam ler, compor poesias, cantar, tocar instrumentos. Muitas delas eram bonitas, talentosas e vinham de famílias educadas, refinadas, que haviam passado por tempos difíceis. Outras meninas, que vinham de família pobre, eram treinadas para serem mais comercializáveis’ [no treinamento elas eram associadas as cortesãs, já que os homens as consideravam como cortesãs particulares]. [Ebrey, 2013, p. 47] . Mulheres para serem esposas não eram incentivadas a estudar. Elas recebiam, apenas, uma educação básica. Cortesãs e concubinas estavam entre as mulheres mais cultas da sociedade chinesa. [Moreira, 2020] Uma vez adquiridas, grande parte delas, ficavam sob o controle e supervisão da esposa. De acordo com Bueno: “Em Yangchow, havia centenas de pessoas ganhando a vida com atividades ligadas aos "cavalos magros" [alcunha do mercado de concubinas].[...] Depois de feita a escolha, confirmada pelo tsatai, a dona da casa aparecia com uma folha de papel vermelho e um pincel de escrever. No papel estavam escritos os itens: sedas, flores de ouro, presentes em dinheiro e peças de pano. A dona mergulhava o pincel em tinta e deixava-o pronto para que o freguês preenchesse o total de peças e do presente em dinheiro que estava disposto a dar para ter a moça. Se isso fosse satisfatório, o negócio estava concluído e o cliente despedia-se.” [Bueno, 2018, p. 108]. 69 No entender de Ebrey [2013, p. 48], haviam os “corretores de pessoas” [shengkou ya]. Alguns deles eram honestos, outros sequestravam as meninas para serem vendidas. “Eles diziam às famílias que uma menina era necessária como esposa ou filha adotiva, seduzindo-os a entregar uma filha ou empregada doméstica. A menina ou mulher então ficaria escondida por alguns dias, e após seria despachada para algum lugar distante para ser vendida. Mesmo se a família trouxesse uma acusação, quando o governo descobrisse o truque, uma busca seria malsucedida e eles nunca saberiam o paradeiro da garota ou mesmo se ela estava viva ou morta. O sequestro direto também é mencionado com frequência. É claro que era completamente ilegal, em oposição à sedução” [muitos pais eram seduzidos com a promessa de que a filha seria concubina de um homem rico e teria uma vida boa]. Ebrey questiona [2013, p. 49]: “Por que um pobre fazendeiro ou morador da cidade relutaria em vender sua filha como concubina de um homem rico que poderia lhe proporcionar uma vida de conforto? Parece haver duas razões principais: primeiro, era mais respeitável para ele casá-la com alguém de seu próprio status social; e segundo, foi amplamente reconhecido que qualquer que seja o conforto com o qual ela possa começar, uma concubina não tinha a segurança de uma esposa e poderia acabar sendo maltratada”. Casar a filha como concubina era infame, desonroso, além do fato de que era humilhante para o clã a que a família pertencia. Essa separação estrita entre as concubinas e a esposa deriva, provavelmente, do sentimento de hierarquia: classe e status social. “Confundir esposa e concubina era como confundir senhor e servo”. Era uma desonra a filha de uma família ser reduzida a condição de concubina. Deste modo, o dote permitia que a filha da família casasse de forma apropriada, assumindo a condição de esposa e não de concubina. [Ebrey, 2013, p. 55] No direito penal, as concubinas ocupavam uma posição intermediária entre a esposa e as criadas. “Era menos grave para um chefe de família matar uma empregada do que matar uma concubina; era mais grave para a concubina ferir um parente do seu mestre do que para a esposa fazer isso”. [Ebrey, 2013, p.56] Entre os Tang havia uma diferença de status entre as concubinas e as empregadas domésticas [bi], pois para eles se uma empregada desse um filho ao seu mestre, ela poderia ser libertada [fang] e promovida a concubina - era necessário que elas fossem “libertas” para que seu status fosse modificado. As concubinas libertas eram conhecidas como biqie. Nada impedia, no entanto, que os mestres tivessem relações sexuais com as criadas, sem transformá-las em concubinas. “Às vezes, uma concubina de status relativamente alto seria chamada de “quarto lateral” [ceshi] ou “aposentos traseiros” [houfang], enfatizando seu papel de companheira e parceira sexual. Os tribunais não reconheceram essas distinções, no entanto, isso é trazido à tona em uma decisão judicial complexa registrada por Liu Kezhuang [1187–1269]. Ele mencionou que duas mulheres 70 não foram consideradas de status equivalentes pelos membros da família, uma administrava assuntos domésticos durante a vida de seu mestre, a outra [mãe do filho de seu mestre] era desprezada como uma concubina [qieying]. No entanto, uma vez que nenhuma das duas havia se casado ritualmente [fei li hun], nenhuma delas poderia ser considerada uma esposa”. [Ebrey, 2013, p.56] A esposa era obrigada a receber em sua família, na maioria das vezes, uma mulher mais jovem [concubina] e suprimir qualquer sentimento de ciúme ou aversão. “De fato, o número de mulheres secundárias que um nobre deveria ter foi prescrito da mesma forma como carruagens ou roupas”. As concubinas tinham status mais elevados que seus filhos, no entanto, muitos deles, quando crianças, as viam como ama de leite: uma mulher servil com quem tinham uma intimidade especial, mas que não tinha importância para outras pessoas da sociedade, sobretudo porque o seu pai, provavelmente, havia olhado para sua mãe como uma cortesã. [Ebrey, 2013, p. 48-55] Quando o marido falecia, os direitos da esposa viúva eram protegidos, de modo que nenhum outro homem da família poderia reivindicá-la ou tomá-la como companheira ou impedi-la de usar a propriedade da família para sustentar seus filhos. A família natal da esposa viúva poderia ajudá-la nos negócios da família – pois ela não havia sido vendida, mas casado legalmente, inclusive com dote. Além disso, uma esposa poderia assumir os filhos de uma concubina, permitindo uma última e pequena participação na família. E se nenhuma esposa sobrevivesse e não houvesse homem herdeiro, uma concubina não poderia nomear um herdeiro póstumo”. [Ebrey, 2013, p. 57] Durante o dinastia Qing [1644-1911] o status de concubina foi melhorado, porque “tornou-se permitido promover uma concubina para esposa se esta tivesse morrido e a concubina fosse a mãe dos únicos filhos sobreviventes. Além disso, a proibição de forçar uma viúva a se casar novamente foi estendida às concubinas viúvas. [Ebrey, 2013, p. 61]. Na década de 1940, o antropólogo Francis Hsu escreveu: “O concubinato é um costume aceito, mas ninguém quer ter um. Tão forte é a aversão, que até a pessoa mais pobre ficará com raiva se for sugerido abertamente que sua filha pode ser uma concubina.” [apud Ebrey, 2013, p. 60]. Referências Renata Ary é doutoranda em educação, mestre em direitos difusos e coletivos e pósgraduada em Direito Processual Civil pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). BUENO, André. (org.). Mulheres na China Imperial. União da Vitória. 2008. EBREY, Patrícia Buckley. Concubines in Song China in Women and the Family in Chinese History. 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Após o resultado desastroso das guerras de Khosrow II [r. 591-628] contra o Império Bizantino, a família Sasan não conseguiu manter a unidade do império, com generais provincianos se autoproclamando imperadores e cunhando moedas em seus nomes [Daryaee, 2010: 43-45]. Yazdgerd III, o último imperador sassânida, foi coroado em 632, mesmo ano da morte do profeta Maomé, que foi seguida pelo estabelecimento do Califado Rashidun [632-661] e o início da guerra santa islâmica sobre Bizâncio e o Império Sassânida [Zarrinkub, 1975: 1]. Ele viveu um reinado errante, pressionado a se deslocar para o leste do império devido aos avanços árabes no Irã, facilitados pelo sectarismo instalado no território [Daryaee, 2010: 51-52]. Seu assassinato na cidade de Merv em 651 marca o fim do Império Sassânida para a historiografia, abrindo o caminho para a expansão do islamismo sobre a Ásia Central, mas os povos que viviam nas regiões na fronteira leste do império, como Sistão, Cabulistão, Tocarestão e Sogdiana, resistiram ativamente à dominação árabe sobre seus territórios até o início do século VIII [Rezakhani, 2017: 173]. Essa resistência teve a participação de descendentes de Yazdgerd III, dos quais o príncipe Peroz é o mais conhecido, por buscar o apoio da maior potência política, militar e cultural da Ásia naquele momento: a China Tang. Conhecemos sua história devido ao registro feito pelos historiadores chineses no Jiu Tang Shu [Velho Livro de Tang] e no Xin Tang Shu [Novo Livro de Tang], as duas Histórias Oficiais [em chinês, Zhengshi 正史] referentes à Dinastia Tang, que narram a trajetória de Peroz desde sua resistência militar na Ásia Central, após um pedido de ajuda ao Imperador Tang Gaozong [r. 649683], até sua ida à corte chinesa em Chang’an, onde recebeu um título militar do imperador e viveu o resto de seus dias. Neste texto, buscarei contextualizar a trajetória de Peroz do Irã até a corte Tang dentro das relações políticas existentes entre a China e o Império Sassânida ao longo do tempo e das transformações que ocorriam no continente asiático ao longo do século VII. Os primeiros contatos entre a China e a região do Irã foram estabelecidos no século II AEC, durante o reinado do Imperador Han Wudi [r. 141-87 AEC], a partir das viagens de Zhang Qian para as terras a oeste da Dinastia Han [206 AEC-220 EC]. Elas iniciaram as trocas diplomáticas e comerciais entre os chineses e as chamadas “Regiões Ocidentais”, inaugurando o início da Rota da Seda, entendida aqui tanto como “um conjunto de estradas e trajetos comerciais abertos pela China entre o leste asiático e o mar Mediterrâneo” quanto como “um processo de aproximação cultural entre diferentes 73 sociedades asiáticas” [Pinto, 2023: 8]. A posição geográfica do Irã colocou rapidamente a região no papel de intermediadora das relações econômicas e culturais entre a China, a Índia e o Mediterrâneo [Tashakori, 1974: 1], exercido primeiro pelo Império Parto [247 AEC-224 EC], contemporâneo à Dinastia Han, e, posteriormente, pelos sassânidas. A ascensão do Império Sassânida coincidiu com o fim da Dinastia Han e a fragmentação política do território chinês, o que impediu o contato diplomático entre as duas regiões por alguns séculos. Foi durante a Dinastia Wei do Norte [386-535], resultado da unificação territorial dos povos turco-mongóis que habitavam o norte da China pelos Tuoba Wei, que as relações diplomáticas entre sassânidas e chineses foram estabelecidas. É também nesse momento que os chineses passam a se referir à região não mais pelo termo Anxi 安息, transliteração do nome do imperador parto Ársaces I, mas pelo termo Bosi 波斯, provavelmente derivado do nome Pars [ou Pérsia], província natal da família Sasan [Tashakori, 1974: 42]. O Wei Shu [Livro de Wei] registra a primeira embaixada sassânida enviada à corte chinesa, no ano 455, durante o reinado do imperador Yazdgerd II [r. 439457]. Segundo János Harmatta [1971: 136], a maior parte do governo de Yazdgerd foi marcada pela guerra contra os quidaritas, e a busca por apoio político e militar é uma possível motivação para o envio de uma delegação à China. Depois disso, o imperador Peroz I [r. 459-484] enviou quatro embaixadas à corte Wei, entre 461 e 479; para Abbas Tashakori [1974: 42-44], elas também foram motivadas pela constante ameaça heftalita à fronteira leste do Império Sassânida. Embora nenhuma ajuda chinesa tenha chegado em ambos os casos, o envio dessas embaixadas demonstra que os sassânidas não apenas buscavam cultivar relações amigáveis com os chineses, como também viam neles um possível aliado contra os povos nômades que não apenas comprometiam a segurança de suas fronteiras, como atrapalhavam o fluxo de mercadorias vindas do leste asiático para o Irã. Embora a maior parte das iniciativas diplomáticas tenham vindo do Império Sassânida – segundo Tashakori [1974: 47], as Histórias Oficiais chinesas registram a chegada de, pelo menos, dezessete delegações sassânidas na China, entre 455 e 648 –, os chineses também enviaram, em menor escala, algumas missões para a Pérsia, atestando as boas relações entre as duas regiões. Uma tradição iraniana relata que a corte sassânida recebeu uma embaixada chinesa durante o reinado de Khosrow I [r. 538-578], um dos períodos mais prestigiosos da história sassânida, e as fontes chinesas relatam o envio de emissários chineses ao Império Sassânida pelo menos uma vez na Dinastia Wei e uma na Dinastia Sui [581-618] [Tashakori, 1974: 45-46]. A ascensão dos Tang na China coincidiu com o início da desintegração do Império Sassânida, que, segundo Touraj Daryaee [2010], pode ser dividida em três fases. A primeira consistiu no declínio da legitimidade monárquica da família Sasan entre 628 e 630, causada pelo fracasso da guerra contra os bizantinos durante o reinado de Khosrow II, e agravada pelo fratricídio 74 cometido por Kawad II [r. 628-630]. A segunda foi o período de sectarismo e divisão, quando vários concorrentes políticos se autoproclamaram imperadores em diversas províncias do império entre 630 e 636, demonstrando a fraqueza do poder central. A terceira e última corresponde ao reinado errante de Yazdgerd III [632-651], que tentou restabelecer um governo legítimo, mas precisava se manter continuamente em movimento para se fazer presente entre as elites locais do império, o que impediu uma organização política e militar capaz de frear os avanços árabes sobre o Irã, forçando o deslocamento contínuo de Yazdgerd III para as províncias a leste do império. Enquanto isso, na China, o processo de reunificação territorial e política iniciado pela Dinastia Sui foi consolidado no início da Dinastia Tang, inaugurando um período que seria “unanimemente considerado uma ‘era de ouro’ para a civilização chinesa, marcado por um intenso desenvolvimento cultural, tecnológico, literário e cosmopolita” [Pinto, 2023: 62]. A estabilidade interna do início da dinastia permitiu aos primeiros imperadores Tang voltar os olhares para o exterior, levando à expansão territorial e da área de influência chinesa sobre a Ásia Central, que atingiu o seu ápice em meados do século VII, após a destruição dos Turcos Orientais e o restabelecimento do Protetorado das Regiões Ocidentais em 640 [r. [Pinto, 2023: 70-71]. É neste contexto que, em 647, Yazdgerd III envia uma embaixada à corte chinesa em Chang’an, poucos anos antes de seu assassinato em Merv, em 651. Essa informação está presente no Jiu Tang Shu [Forte, 1996: 361], e é reforçada pelo historiador árabe al-Tabari na obra Tarikh al-Rusul wa al-Muluk [História dos Profetas e Reis], que diz que Yazdgerd enviou mensageiros aos líderes dos turcos, dos sogdianos e da China pedindo auxílio contra os árabes [Smith, 1994: 54]. Como vimos, a busca por ajuda chinesa contra inimigos pode ter um precedente na história sassânida [nos casos de Yazdgerd II e Peroz I], mas “provavelmente a grande distância e […] a presença dos Turcos Ocidentais no meio do caminho, tornariam qualquer tentativa de intervenção militar insustentável e arriscada demais para os chineses” [Oliveira, 2021: 42]. As coisas seriam diferentes durante o reinado de Tang Gaozong [r. 649-683], com o colapso dos Canato Turco Ocidental em 658 e a submissão dos povos que se encontravam sob o seu território aos chineses, colocando o Império Tang no seu ápice de expansão sobre a Ásia Central [Oliveira, 2021: 45]. Naquele momento, o domínio chinês nas Regiões Ocidentais se estendia da Bacia do Tarim até as fronteiras do Irã Oriental e, para administrar terras tão distantes, a Dinastia Tang adotou uma política externa que foi definida por Wang Zhenping [2013: 8-10] como “pluralismo pragmático”: conhecendo o caráter fluido e mutável das relações políticas das sociedades nômades de fronteira, os Tang concluíram que seria impossível controlar completamente e permanentemente aquelas regiões, optando por um sistema de governo indireto [em chinês, jimi 羈縻, literalmente “rédeas de cavalo e cabresto de gado”] que empregava os próprios líderes locais na administração das áreas conquistadas em troca de tributos regulares à corte chinesa em Chang’an. Esses territórios eram organizados em Prefeituras [zhou 州] e Comandos de 75 Área [dudufu 都督府] e respondiam aos Protetorados [duhufu 都護府], jurisdições comandadas por oficiais Tang que interferiam nas questões locais apenas quando necessário [Skaff, 2012: 247-249]. Segundo o Jiu Tang Shu e o Xin Tang Shu, após a morte de Yazdgerd III, seu filho Peroz fugiu para o Tocarestão e, em 661, enviou um memorial à corte chinesa, informando sobre os ataques árabes ao seu território e pedindo auxílio militar. Em resposta, Gaozong enviou o magistrado Wang Mingyuan para estabelecer dezesseis Comandos de Área naquela região, recém-integrada ao sistema de governo indireto chinês após a queda dos Turcos Ocidentais, que responderiam ao Protetorado do Oeste Pacificado [Anxi duhufu 安西都護府]. Entre eles, o Comando de Área Persa [Bosi dudufu 波斯都督府] foi estabelecido na cidade de Jiling [疾陵城], identificada com a atual Zaranj, no Sistão, na fronteira entre o Afeganistão e o Irã [Harmatta, 1971: 140-141], e Peroz foi nomeado o seu comandante-chefe [dudu 都督]. Esse seria o mais longe que os braços do Império Tang chegariam no interior da Ásia e o controle, precário devido à distância e à ameaça árabe constante, também não duraria muito tempo: em 673, os árabes conseguem ocupar o Sistão e Peroz vai para Chang’an, sem nunca retornar ao Irã. Após sua morte, seu filho Narseh também tentou reestabelecer o controle sobre a região com o apoio militar do Tocarestão, retornando sem sucesso para a corte chinesa em 708 [Oliveira, 2021: 45-49]. De qualquer forma, a nomeação de Peroz para um comando no Sistão, uma das províncias sassânidas que mais resistiram à dominação árabe da região, nos indica que a família sassânida ainda possuía alguma legitimidade para a população e as elites locais do leste do Irã [Oliveira, 2021: 47]. Domenico Agostini e Soren Stark [2016] também demonstraram, a partir de documentos árabes, iranianos, evidências numismáticas e fontes chinesas, que, mesmo após a morte de Peroz e Narseh, descendentes [ou impostores que usavam o nome] da família Sasan continuaram reivindicando o controle sobre as áreas de Cabulistão e Zabulistão, no Irã Oriental, inclusive enviando embaixadas com tributos para a corte Tang até meados do século VIII, mesmo após a Batalha de Talas, em 751, sacramentar a dominação islâmica sobre a Ásia Central. Enquanto, para os últimos sassânidas no leste do Irã, o apoio chinês representava a sua maior chance de recuperar o território perdido e restabelecer o Império Sassânida, para os chineses, a submissão de líderes estrangeiros “reforçava o ideal de superioridade da civilização chinesa sobre o mundo, com sua esfera de influência chegando em terras longínquas do Ocidente” [Oliveira, 2021: 51]. Esse ideal está bem representado na entrada para a tumba do Imperador Gaozong no Mausoléu de Qianling, rodeada por um grupo de estátuas de pedra em posição de reverência que retratam líderes e emissários estrangeiros que, em sua maioria, serviram à dinastia como vassalos ou oficiais militares. Para Tonia Eckfeld [2005: 23-25], essas estátuas, em conjunto com as outras esculturas que flanqueiam o caminho para a câmara funerária imperial, simbolizam a dimensão do poder acumulado pelo imperador em vida. Hoje, todas as estátuas estão decapitadas e com suas 76 inscrições apagadas pelo tempo, mas algumas delas foram registradas na obra Chang’an Zhitu [Registro Ilustrado de Chang’an], escrita por Li Haowen durante a Dinastia Yuan [1279-1368], que inclui o nome de Peroz na lista de emissários estrangeiros [Pashazanous e Sangari, 2018: 502-503]. Vemos, portanto, que a história de Peroz é um bom ponto de partida para analisarmos o contexto político em que o Irã e a China se encontravam no século VII, evidenciando a existência de relações diplomáticas entre potências tão distantes quanto a China e o Império Sassânida, possibilitadas pelo desenvolvimento da Rota da Seda ao longo da Ásia Central, e que levaram ao exílio de um príncipe persa na corte chinesa em Chang’an. A relação entre os últimos sassânidas e a Dinastia Tang nos ajuda a entender o nível de complexidade das interações políticas entre as sociedades asiáticas naquele período. Referências Samantha Alves de Oliveira é licenciada e mestranda em História pela Universidade de Brasília, sob a orientação do professor Leandro Duarte Rust. Dedica-se, desde 2018, ao estudo das relações entre a China Tang e o Império Sassânida, utilizando como fonte principal o Jiu Tang Shu. E-mail: [email protected] AGOSTINI, Domenico; STARK, Sören. “Zāwulistān, Kāwulistan and the Land Bosi 波斯 – on the question of a Sasanian Court-in-Exile in the Southern Hindukush”, in Studia Iranica, Paris, 45, 1, 2016, p. 17-38. DARYAEE, Touraj. “When the End is Near: Barbarized Armies and Barracks Kings of Late Antiquity”. In: MACUCH, Maria et al. Ancient and Middle Iranian Studies: Proceedings of the 6th Euopean Conference of Iranian Studies, held in Vienna, 18-22 September 2007. Wiesbaden: Harrassowitz Verlag, 2010. p. 4352. ECKFELD, Tonia. Imperial Tombs in Tang China, 618-907: The Politics of Paradise. Nova York: Routledge Curzon, 2005. 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