ESTUDOS
CHINESES
André Bueno [org.]
Reitor
Mario Sérgio Alves Carneiro
Chefe de Gabinete
Bruno Redondo
Direção
Pró-reitora de Extensão e Cultura
Cláudia Gonçalves de Lima
Produção
Obra produzida e vinculada pelo Projeto Orientalismo,
Proj. Extens. UERJ Reg. 6078, coordenado pelo Prof.
André Bueno [Dept. História].
Rede
www.orientalismo.net
Rede
https://aladaainternacional.com/aladaa-brasil/
Ficha Catalográfica
Bueno, André [org.]
Oriente 23: Estudos Chineses. 1ª Ed. Rio de Janeiro: Proj. Orientalismo/ UERJ,
2023. 87 p.
ISBN: 978-65-00-74871-0
História da Ásia; Orientalismo; China; Diálogos Interculturais.
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Apresentação
Oriente 23 é uma coleção de livros dedicada aos estudos orientais
no Brasil. Construída a partir dos debates realizados no 7º Simpósio
internacional de Estudos Orientais, organizado pelo Projeto
Orientalismo da UERJ, Oriente 23 é formada de maneira
interdisciplinar e transversal, conjugando as mais diversas
experiências no campo dos estudos das civilizações do oriente
próximo e do extremo oriente. Fazendo uma abordagem
multitemporal e intercultural, a coleção emprega estratégias
decoloniais no estudo do orientalismo, das civilizações asiáticas e
dos trânsitos culturais entre os muitos orientes possíveis,
procurando compreender suas características originais e sua
recepção no imaginário e na intelectualidade ocidental. Nesse
sentido, a coleção Oriente 23 é formada por uma série de volumes
que compreendem cada uma dessas dimensões espaçogeográficas e culturais, buscando transmitir ao público uma nova
perspectiva de conhecimento, capaz de ampliar os horizontes
intelectuais, acadêmicos e educacionais do contexto cultural
brasileiro. Estão aqui presentes estudos dos mais diversos campos,
que tentam apreender a variedade das expressões das culturas
asiáticas, de moda torná-las inteligíveis ao público brasileiro. Seja
bem-vindo a nossa coleção!
Volumes de Oriente 23:
Orientalismos e Literatura
Orientalismos: Mídias e Arte
Visões do Orientalismo
Estudos sobre Oriente Médio
Estudos Chineses
Estudos Japoneses
Estudos Coreanos
Estudos Asioindianos
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Sumário
UMA NOVA EPISTEMOLOGIA PARA AS NARRATIVAS DA HISTÓRIA CHINESA, por André Bueno .. 7
A RECONSTRUÇÃO DA CHINA E A AMIZADE SINO-SOVIÉTICA ATRAVÉS DAS PÁGINAS DA
REVISTA CHINA RECONSTRUCTS NOS ANOS 1950, por Anna Maria L. Neves ............................. 10
O DECLÍNIO DO IMPÉRIO HAN (206 A.C – 220 D.C), por Gabriel Requia Gabbardo.................... 18
O CENTENÁRIO DE PUBLICAÇÃO D’O GRITO” (1923), DE LU XUN: MARCO HISTÓRICO NA
TRADIÇÃO LITERÁRIA CHINESA MODERNA, por Luiz Gabriel Ribeiro Locks ................................ 26
A TRAGÉDIA DE YU XUANJI: PERSEGUIDA POR SER UMA MULHER LIVRE, por Marcela Langer e
Otávio Luiz Vieira Pinto................................................................................................................ 33
A POLÍTICA CHINESA SOBRE A EMIGRAÇÃO COM CONTRATO (1845-1859): AS PRIMEIRAS
DECISÕES DAS AUTORIDADES DO GUANGDONG E OS PARECERES DO IMPERADOR, por Maria
Teresa Lopes da Silva ................................................................................................................... 40
CHINA T’ANG: COSMOPOLITA E ETNOCÊNTRICA, por Matheus Mazurkievicz Sekikawa ........... 49
O NATURALISMO EPISTEMOLÓGICO DO FILÓSOFO XUN, por Matheus Oliva da Costa ............. 57
O PAPEL DAS CONCUBINAS NA DINASTIA SONG, por Renata Ary .............................................. 66
PEROZ E OS ÚLTIMOS SASSÂNIDAS NA CORTE TANG: UMA ANÁLISE DAS RELAÇÕES SINOSASSÂNIDAS AO LONGO DA HISTÓRIA, porSamantha Alves de Oliveira..................................... 73
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UMA NOVA EPISTEMOLOGIA PARA AS NARRATIVAS
DA HISTÓRIA CHINESA, por André Bueno
‘Assim, a tarefa do historiador é falar sobre todos os
aspectos de uma Dinastia [contexto histórico], abordar
tudo que acontece entre os quatro Mares. Sobre seus
ombros cai a responsabilidade de decidir o que é falso e
verdadeiro. Nenhuma outra tarefa é tão laboriosa quanto a
dos que manejam o pincel’. [Liuxie]
A compreensão da história da China não passa tão somente pelo
conhecimento superficial de sua imensa trajetória histórica. Decorar o
nome de autores e livros é um começo, mas mergulhar a fundo na
historiografia chinesa significa topar com conceitos e teorias distintas
daquelas encontradas no Ocidente. Há uma atitude problemática, e ainda
reincidente, relativa à ideia de racionalidade e colonialidade que impomos
muito naturalmente ao pensamento chinês. Quando este se apresenta
segundo critérios científicos que nos são próprios, o aprovamos – como
se a racionalidade fosse uma propriedade eminentemente Ocidental.
Considerar essa mesma ideia de racionalidade, contudo, já é em si um
ponto delimitador, supondo que ‘razão’ não possua qualquer significado
ou variante que torna o conceito polissêmico. Assim sendo, somente
aquilo que se ‘parece’, de forma análoga, com o que produzimos, faria
‘sentido’, excluindo de uma perspectiva de diversidade o que não é
acessível pela ‘nossa’ racionalidade. Mesmo o mais bem intencionado dos
intelectuais pode cair nessa armadilha, que não o permite escapar da
gaiola logocêntrica criada por Hegel e defendida ardorosamente por
autores como Deleuze e Derrida. O segundo problema, porém, é que
disposto a estudar melhor a China – num sensação indescritível de
concessão, incômodo ou curiosidade – o estudioso usualmente escorrega
na falácia orientalista que ainda campeia a área da Sinologia. A crítica
Saidiana [1998] mostrou que construímos orientes imaginários,
hierarquizados e subjugados; Irwin [2008] nos mostrou, porém, que sem
eles não chegaríamos a qualquer Oriente; Gong [2020] revelou que a
Sinologia cumpre esse papel dúbio, de investigar a distorcer a China; mas
Vukovich [2019] voltou ao ponto de origem, mostrando que ainda somos
colonizados e orientalistas ao falar da China. Estamos de tal maneira
contaminados pela hierarquia imaginária denunciada por Said que,
quando analisamos qualquer problema histórico relativo à China, temos
por hábito assumir que aquilo que os chineses nos dizem só está ‘correto’
se concordar com nossas aspirações e impressões. Quando algum autor
chinês nos informa de algo que não concordamos, ou não gostaríamos
de ouvir, refutamos a ideia como se fosse irracional ou equivocada, uma
impressão incorreta sobre si mesmo. Vukovich analisa muito bem esse
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fenômeno no episódio da Praça Tiananmen, em 1989; qualquer leitura
que divirja da ideia de que os ‘chineses lutavam pela democracia e pelo
fim do regime comunista’, tão enfaticamente propalada pela mídia norteamericana, é automaticamente refutada, e interpretada como
manipulação. É como se no país mais populoso do planeta ninguém
soubesse ou pudesse pensar de forma livre e autônoma; e qualquer
conquista no âmbito da ordem pública, da economia, da política, ou seja
de qual campo for, é sempre interpretado de forma pejorativa, como
resultado de um ‘sistema opressor’ – que somente é assim, por que não
funciona do mesmo modo que o Ocidente entende que ele deveria ser
[Ninio, 2014].
Portanto, acessar ao mundo da historiografia chinesa, com suas formas
de pensar história, a persistência da tradição e as mudanças
contemporâneas é uma tarefa complexa e de fôlego. Há uma persistente
dificuldade em compreender – e precisar – os limites e inter-relações
entre os campos de saber na tradição chinesa. Isso implica, diretamente,
naquilo que conhecemos como Epistemologia, ou seja, de como se
constrói conhecimento.
Por conta da visão de estagnação e imobilismo que se aplicou á China –
efeito direto do orientalismo, e filtrada erroneamente pelo conceito de
longa- duração Braudeliano [mas não sem certa colaboração do próprio] –
o pensamento chinês tem sido traduzido a partir de comparações
epistêmicas que o situam no passado. A ciência chinesa, com certeza,
teve sua gênese no chamado ‘mundo antigo’ [se aceitarmos, igualmente,
a periodização ocidental]; mas ela não parou por lá de forma alguma. Sua
sequência brilhante de grandes invenções para a Humanidade [Temple,
2006] mostra que os chineses estiveram longe do imobilismo; mesmo
assim, a ‘episteme’ chinesa, quando analisada, é alocada num sentido de
‘tradicional’ que, sinonimicamente, acaba sendo entendido como
‘primitiva’ ou ‘antiga’. E, novamente, seus sucessos são lidos através de
uma grade racionalista que nos é própria. Tomemos um exemplo:
Lawrence Sklar [1992], falando do surgimento da filosofia e da ciência no
Ocidente, afirmou que:
“A demarcação das ciências naturais em relação à filosofia foi um processo
longo e gradual no pensamento ocidental. Inicialmente, a investigação da
natureza das coisas consistia numa mistura entre o que hoje seria visto
como filosofia [considerações gerais das mais vastas sobre a natureza do
ser e a natureza do nosso acesso cognitivo a ele] e o que hoje seria
considerado como próprio das ciências particulares [a acumulação de fatos
da observação e a formulação de hipóteses teóricas gerais para os explicar].
Se olharmos para os fragmentos que nos restam das obras dos filósofos
pré- socráticos, encontraremos não só tentativas importantes e engenhosas
para aplicar a razão a questões metafísicas e epistemológicas vastas, mas
também as primeiras teorias físicas, simples mas extraordinariamente
imaginativas, sobre a natureza da matéria e os seus aspectos mutáveis”.
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O que Sklar deixa claro é que, no início do mundo grego, a Filosofia
significava Ciência, e o afastamento dos campos ainda embrionava.
Ignorando qualquer raiz ancestral do Egito ou do Oriente próximo, e
considerando a separação como evolução, o autor demarca o surgimento da
ciência racional ali. Milênios depois, buscamos superar esse abismo, por
meio da interdisciplinaridade e da transversalidade. O conceito, este ainda
está em debate. Nesse sentido, o historiador das ciências Colin Ronan
[1996], falando sobre a gênese da ciência chinesa, afirmava que:
“Nem sempre é fácil determinar a quantidade de conhecimento científico que
foi transmitida do Ocidente para a China, e vice- versa, pois linhas de
pesquisa e invenções independentes mas paralelas poderiam aparecer e
apareceram, em ambas as partes do mundo. Por exemplo, parece que a
ideia de uma "escada de almas", que se encontraria em Aristóteles e Xuanzi
[Hsuan Tzu], nasceu independentemente na Grécia e na China, pois,
embora as ideias tenham aparecido com cem anos de diferença uma da
outra, ocorreram em uma época em que as condições de viagem entre leste
e oeste não eram propícias. Além disso, parece que todo o conceito - que
constitui realmente uma expressão da complexidade das coisas vivas poderia ocorrer muita naturalmente a uma pessoa preocupada em explicar e
classificar o mundo da natureza. De qualquer maneira, a comunicação entre
a China e o Ocidente não era tão rara quanto se poderia imaginar”.
Donde se depreende que, aquilo que há de racional na China antiga, o seria
pelo seu contato com a ‘razão’ grega. Contrapondo esses dois trechos,
poderíamos até pensar que as construções epistemológicas chinesas e
ocidentais andaram em paralelo, seguindo um mesmo esquema de
interpretação da natureza calcado em um sistema baseado na razão.
Todavia, é justamente a ‘divergência das razões’ que criou o afastamento,
lançando a China no ‘atraso’[o que não foi de forma alguma real exceto por
um breve hiato de tempo entre os séculos 19 e 20].
Boaventura de Sousa Santos [2009] nos mostrou que visão de uma única
via epistemológica possível pode se transformar em um grande problema
interpretativo. As civilizações humanas, em suas multifacetadas expressões,
são capazes de construir sistemas epistemológicos cujas bases e fatores
variam de forma ampla. Como Boaventura propõe:
“Toda a experiência social produz e reproduz conhecimento e, ao fazê-lo,
pressupõe uma ou várias epistemologias. Epistemologia é toda a noção ou
ideia, refletida ou não, sobre as condições do que conta como conhecimento
válido. É por via do conhecimento válido que uma dada experiência social se
torna intencional e inteligível. Não há, pois, conhecimento sem
práticas e atores sociais. E como umas e outros não existem senão no
interior de relações sociais, diferentes tipos de relações sociais podem dar
origem a diferentes epistemologias. As diferenças podem ser mínimas e,
mesmo se grandes, podem não ser objeto de discussão, mas, em qualquer
caso, estão muitas vezes na origem das tensões ou contradições presentes
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nas experiências sociais sobretudo quando, como é normalmente o caso,
estas são constituídas por diferentes tipos de relações sociais. No seu
sentido mais amplo, as relações sociais são sempre culturais [intraculturais
ou interculturais] e políticas [representam distribuições desiguais de poder].
Assim sendo, qualquer conhecimento válido é sempre contextual, tanto em
termos de diferença cultural como em termos de diferença política. Para
além de certos patamares de diferença cultural e política, as experiências
sociais são constituídas por vários conhecimentos, cada um com os seus
critérios de validade, ou seja, são constituídas por conhecimentos rivais. Em
face desta reflexão levantam-se três perguntas. Por que razão, nos dois
últimos séculos, dominou uma epistemologia que eliminou da reflexão
epistemológica o contexto cultural e político da produção e reprodução do
conhecimento? Quais foram as consequências de uma tal
descontextualização? Haverá epistemologias alternativas? [Santos, 2009]
Tomamos como válida, aqui, uma interpretação de um intelectual europeu,
mas não eurocentrado. Se a concepção de episteme é um ponto de partida,
ela não é nem uma estrada única, nem da mesma forma, e nem chega
necessariamente aos mesmos lugares. Por outro lado, ela compreende
pontos de interseção que fazem dialogar os saberes em direção a
resultados efetivos sobre o real. Aceitamos esse ponto de vista para
compreender a necessidade de estudar, de forma renovada, uma
epistemologia das narrativas históricas chinesas contemporâneas.
Em ‘Outras Lentes para a China’, o sinólogo francês François Jullien
salientou a necessidade de modificarmos nossos critérios epistemológicos e
filosóficos ao entendimento da mentalidade chinesa – que ainda está, de
certo modo, sendo paulatinamente ‘redescoberta’. Até agora, essa
civilização foi visitada segundo nossos critérios de entendimento; e se essa
é uma condição necessária, posto que somos ocidentais, por outro lado,
isso não nos permitiu vislumbrar, com clareza, o cerne da uma ‘mentalidade
chinesa’, se for igualmente possível sintetizar seus milênios de experiência
em uma concepção de ‘essencialidade sínica’. Por outro lado, da
convivência com esses ‘saberes ocidentais’, a China desenvolve a sua
própria estratégia epistêmica, como aludido por Boaventura, no nível
político, social e cultural:
“Com frequência, objeta-se que os chineses administrariam tudo como
nós, já que eles planificam como nós, modelizam como nós etc. O que eu
reconheço de bom grado. Mas isso não nos deve deixar esquecer que, ao
mesmo tempo em que utilizam totalmente os recursos que lhes oferecem
nossas coerências, os chineses se reservam a possibilidade de também
voltar àquelas que eles teceram há milênios. Graças a isso, agora eles
possuem esta vantagem considerável — e que utilizam estrategicamente —
que é a de poder cruzar esses recursos” [Jullien, 2006].
Com essa ideia em mente, podemos então compreender que uma nova
abordagem sobre as narrativas históricas chinesas requisitam uma
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perspectiva epistemológica diferenciada e mais aberta do que a usual.
Introduzindo a questão histórica
No século XII, o filósofo chinês Zhuxi comparava a análise dos textos
históricos, calcada no uso da razão, como:
“[encontrar] a fonte de um enunciado, que significa identificar a base que o
sustenta. É exatamente como construir um edifício; temos que construir
bases sólidas, e só depois podemos erguê-lo. Se os alicerces não forem
sólidos, toda a madeira empregada na construção será inútil, e somente
servirá para edificar um prédio tão frágil quanto suas bases”. [Trad. Bueno,
2010]
Zhuxi falava do princípio central que rege não só o entendimento do
pensamento, mas a sobrevivência da cultura chinesa, a ideia de Li 理
[princípio, fundamento, estrutura]. Para os chineses, a continuidade de seu
mundo dependia da manutenção e reprodução das ideias concebedoras de
sua existência, mas baseadas, inequivocamente, na observação, na
experiência e na efetividade de meios e métodos. Ricardo Joppert, [1998]
destacado sinólogo brasileiro, resumiu de forma brilhante esse aspecto:
“A constatação dessa supremacia da experiência prática sobre a imaginação
teórica, tão essencial para a evolução humana, na Idade da Pedra, jamais
abandonou o verdadeiro espírito chinês e iria marcar, definitivamente, a
civilização do país de um pragmatismo de base: é da periferia do visível que
se parte para o cerne, nem sempre evidente, mas que pode ser atingido se
seguir o rumo da realidade, o ritmo das linhas diretrizes que desfazem a
trama dos emaranhados... E isso, a todos os níveis da vida. Assim, dessa
necessidade prática do homem primitivo evoluiu-se para o pensamento
abstrato, mas permanece constante, na China, a ideia de que se parte da
realidade, lato sensu, vista e comprovada, para a elaboração teórica, que,
num estágio mais maduro vai efetivamente permitir à mente os voos do
espírito, sempre, porém, em cordão umbilical com a realidade reveladora.”
Essa ‘realidade reveladora’ seria o cerne tanto da reflexão filosófica quanto
da busca de eficácia – que nunca se desvincularam em demasia. A China,
portanto, testemunhou uma longa experiência histórica na qual, em
sucessivos tentames e experimentos, construiu um modo de olhar o mundo,
com suas próprias regras e conceitos fundamentais. Sua efetividade ficou
provada pela contínua expansão de sua população, de sua cultura, e da
destacada resistência de suas tradições. Nesse sentido, as descobertas
científicas chinesas revolucionaram a qualidade de vida dessa sociedade.
Desde os períodos mais remotos da história, os chineses alcançaram
grandes avanços nos mais diversos setores. Cobrindo campos distintos
como metalurgia, mecânica, química, agricultura, matemática ou física, os
conhecimentos produzidos por seus pensadores conseguiram prover as
necessidades dessa civilização.
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No campo do pensamento, essas raízes são igualmente antigas, porém,
dinâmicas. Em torno do século -6, a cultura chinesa estruturava-se em torno
de um corpo literário bem definido, que respondia a diversas demandas
intelectuais: o Shujing contava a história; o Shijing trazia as poesias, que
ilustravam a vida cotidiana; o Yuejing preservava as músicas e cânticos
sagrados e profanos; o Liji trazia os rituais, costumes e regras sociológicas;
e o Yijing era o manual de ciências [e também fazia o papel de oráculo],
compondo assim o quadro que ilustrava uma pessoa ‘Educada’ - o Junzi de
que Confúcio falava. Depois, o mesmo Confúcio iria inserir o Chunqiu, as
crônicas históricas de sua terra natal, entre esses livros clássicos. O século 6 traria uma reviravolta nesse quadro; premida por uma profunda
instabilidade política, a China seria lançada num longo e doloroso processo
de conflito interno, que se arrastaria por quase três séculos. Diferente dos
filósofos gregos, que reimaginaram seu mundo no melhor momento da
história de sua civilização, a virada ética no pensamento chinês se dá diante
da iminência de uma crise devastadora. Os pensadores se puseram a
pensar em como resgatar a harmonia social e política, em como superar a
crise e trazer a razão para iluminar os caminhos [o Dao]. As escolas de
pensamento chinesa que hoje conhecemos surgiram nesse período, e
desenvolveram-se ao longo da história, disseminando-se, se entrecruzando,
criando sínteses criativas. Um modelo como esse não tem paralelo direto no
Ocidente, exceto pelas religiosidades; e por isso, nossos referenciais de
comparação precisam ser readaptados.
O choque moderno
A China não foi infensa a influências externas [como no caso do Budismo],
mas as absorveu e transformou em formas chinesas, dando-lhes um caráter
novo. O impacto das teorias ocidentais, após o século 19, não foi diferente –
embora a presença colonial tenha sido muito mais agressiva e exigente do
que a gradual entrada de ideias ao longo do período imperial chinês. O
despertar para o mundo contemporâneo foi lido por reformadores como
Kang Youwei ou Liang Qichao, que buscaram preservar o Estado
tradicional. O advento da república – um modelo político importado –
disseminou a presença das teorias estrangeiras entre os intelectuais, e uma
sequencia de episódios desastrosos, que culminaram com a vitória do
marxismo em 1949, lançaram novas bases sobre o pensamento chinês e a
escrita da história. Mesmo assim, esse processo foi permeado pela força
das tradições adaptativas, que incluíram a maneira como os chineses
sinizaram as teorias socialistas. Arif Dirlik [1985] mostrou como a
historiografia chinesa modificou substancialmente as ideias marxistas, de tal
forma que muitas delas são interpretações praticamente inovadoras e
bastante diferentes sobre os conceitos originais.
Desde a década de 1980, as transformações políticas e econômicas na
China se refletiram diretamente na produção historiográfica, modificando
linhas e tendências [Bueno, 2016]. Todavia, é ascensão do país no plano
globalizado do século 21 que trouxe reinterpretações substanciais em sua
escrita histórica, congregando elementos diversos que pedem um esforço
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interpretativo de nossa parte – implicando na busca da alternativa
epistêmica. Para concluirmos, queremos citar três autores recentes, de
relevo no cenário intelectual chinês, que podem exemplificar o que
afirmamos ao longo de nosso texto: Wang Hui, Gao Mobo e Jiang Qing.
Wang Hui e Gao Mobo fazem parte de uma chamada ‘nova esquerda’, que
tem buscado reinterpretar o passado recente chinês à luz de discursos
originais e pluriteóricos. Nesse sentido, suas abordagens são bem distintas.
Wang Hui defende que a efetiva modernização da China começou após o
governo de Deng Xiaoping, recolocando o país em um novo contexto
mundial. Em sua visão, as adaptações das teorias marxistas ao novo
contexto contemporâneo, a flexibilidade em relação às dinâmicas globais e o
abandono das posturas radicais da época da Revolução Cultural permitiram
ao país superar suas dificuldades internas, o atraso tecnológico e econômico
[Wang, 2010]. Nesse sentido, Hui propõe uma abordagem que dialoga com
as teorias e ideias ocidentais de mercado, liberdade e governança, mas
defende uma originalidade do pensamento chinês frente à esses valores. A
flexibilidade do comunismo chinês garantiu-lhe sua sobrevivência e
características próprias. O desafio seria descolonizar o pensamento chinês
sem oscilar do eurocentrismo a um asiocentrismo: ‘A crítica ao
eurocentrismo não deveria tentar confirmar o asiacentrismo, mas eliminar a
lógica egocêntrica, exclusiva e expansionista da dominação. [...] Por isso, as
novas representações da Ásia devem ultrapassar os objetivos e os projetos
dos movimentos socialistas e de libertação nacional do século 20. Nas
circunstâncias históricas atuais, elas devem refletir sobre os projetos
históricos não realizados desses movimentos’ [Wang, 2005].
Gao Mobo vai em sentido inverso, afirmando que uma característica
essencialista da civilização chinesa permitiu a ela continuamente
desenvolver-se após as crises do século 20. Gao defende que o período
Maoísta, bem como a revolução cultural, foram necessários a renovação do
plano político chinês, estruturando um sistema produtivo e intelectual autosustentável e independente [Gao, 2008]. Nessa visão, períodos da história
recente da China como a grande fome ou as perseguições a intelectuais
precisam ser redimensionadas, como partes integrantes de um longo
processo histórico que aperfeiçoou as características políticas de uma nova
China:
“Os primeiros e segundos 30 anos da RPC são geralmente caracterizados
por historiadores, comentaristas e mídia dentro e fora da China através de
uma dicotomia entre uma China fechada e uma China aberta, entre uma
economia planejada e uma de mercado, entre uma pobreza extrema e a
melhoria substancial do padrão de vida, entre políticas ditatoriais e um
autoritarismo brando ou duro. Em minha opinião, essa dicotomia reflete
uma pobreza de recursos discursivos que não leva em conta a variedade
histórica e espacial e a vitalidade da China, e também ignora o papel que o
povo chinês desempenhou na formação da história diante de nossos olhos.
[...] Esse desenvolvimento econômico é uma jornada consequente e um
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resultado lógico das bases lançadas justamente na época de Mao, que
incluem uma capacidade industrial orgânica graças à qual a China é capaz
de produzir qualquer coisa [...] Mas a importância das bases estabelecidas
na época de Mao, tanto em termos de hardware industrial e agrícola quanto
da perspectiva de software, nunca pode ser enfatizada o suficiente: o
progresso humano” [Gao, 2019].
Ademais, ele pressupõe que uma mudança mundial, baseada no papel do
Estado, não foi totalmente abandonada – a China estaria cumprindo a etapa
de formar um quadro burguês e concorrencial que, no futuro, seria
abandonado novamente em prol de uma versão finalmente completa de
Comunismo estatal e proletarizado.
Jiang Qing vai em outra direção, propondo uma reação tradicionalista. Em
sua proposta, um novo modelo de Confucionismo irá substituir o
Comunismo, construindo uma nova forma de república constitucional
confucionista [2003]. Esse novo arranjo ideal baseia-se no resgate dos
elementos das tradições culturais chinesas, que dão a sustentação histórica
da civilização chinesa. Segundo ele, o marxismo cumpriu uma função
histórica episódica na trajetória do país, mas sua sobrevivência depende das
transformações e adaptações feitas pelos próprios chineses – e nesse
sentido, o alicerce cultural da civilização, que determina esses processos, é
essencialmente
a
atitude
racionalizante
do
Confucionismo.
Consequentemente, a retomada dessa doutrina na estrutura política do país
seria um processo natural, repetido e constatado ao longo das eras
históricas chinesas:
“Porém, além de pensar em questões "chinesas e ocidentais", estou
pensando mais em questões "antigas e modernas". O pensamento sobre as
questões "chinesas e ocidentais" resolve o "caráter chinês" do modelo de
desenvolvimento político da China, enquanto o pensamento de questões
"Antigas e Modernas" resolve a "universalidade" do modelo que liga o
desenvolvimento político da China; em outras palavras, pensar as questões
"chinesas e ocidentais" é fazer com que o modelo de desenvolvimento
político da China retorne à sua civilização única. O pensamento sobre
questões "antigas e modernas" faz com que o modelo de desenvolvimento
político da China reflita um valor absoluto universal e eterno. Se você usar
termos filosóficos ocidentais, o pensamento de questões "chinesas e
ocidentais" pertence ao particularismo, e o pensamento de questões
"antigas e modernas" pertence ao universalismo. O primeiro resolve a
"singularidade" do modelo de desenvolvimento político da China na
autoidentidade da civilização, enquanto o último resolve a "universalidade"
do modelo de desenvolvimento político da China no valor universal da
civilização. Esses dois problemas são os maiores problemas enfrentados
pelo desenvolvimento político da China no século passado, e os maiores
problemas aos quais os intelectuais chineses devem responder no século
futuro. Claro, são os maiores problemas que o confucionismo chinês deve
resolver no século futuro. Portanto, minha proposta de "Confucionismo
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Político" é justamente resolver esses dois grandes problemas, isto é,
resolver os problemas "chineses e ocidentais" e os problemas "antigos e
modernos" [Jiang, 2017].
Como podemos observar, nesses três casos, o uso das teorias políticas e
intelectuais importadas são utilizada – e lidas – de acordo com o resgate de
um discurso ‘essencialista’ da cultura chinesa. Hui entende que a
modernidade ajudou a mudar a China, mas a sociedade mantém uma leitura
própria dessas transformações; Gao acredita que o substrato de todas
essas mudanças é uma sinidade autêntica, que transformou o marxismo e o
renovou para o país e o seu futuro; por fim, Jiang retoma claramente o
passado para a construção de um novo projeto de futuro, prevendo uma
renovação das tradições [numa postura classificada como ‘conservadora’;
mas o que ele quereria conservar com essas mudanças?]. Nos três casos, a
autenticidade da mentalidade chinesa é a chave para a flexibilização,
adaptação, mudança e sucesso; e todas elas recorrem, igualmente, a uma
releitura da história para embasarem suas propostas. Contra as previsões
teóricas da racionalidade ocidental, a eficácia do pensamento sínico reside,
justamente, no emprego dos elementos de sua cultura em alternativa ao
pensamento dominante eurocentrado. A ‘biculturalidade’ chinesa, como
Jullien bem apontou, deixa claro que uma renovada consciência sobre o
papel da cultura tradicional tem sido o caminho para a reestruturação do
país, de sua cultura e história. Para isso, por fim, é necessário então buscar
compreender os elementos conceituais que nos desviam de nossa
episteme, para embarcar no mundo das mentalidades chinesas – e esse
desvio, crucial, pode nos levar a uma nova concepção de escrita histórica e
reinterpretação do passado.
O movimento de criação e evolução da historiografia chinesa deve ser
entendido, pois, como algo que atravessa esses milênios de história e
continuidade, e que continua a se reinventar, dentro de um dinamismo
próprio que lhe dá autonomia e originalidade. Algo que, por si só, merece um
olhar cuidadoso.
Referências
André Bueno é Professor de História Oriental da UERJ e diretor do Projeto
Orientalismo, atuando na área da Sinologia, pensamento clássico chinês e
Confucionismo.
Bueno, André História da China Antiga. União da Vitória: Ebook, 2007.
Bueno, André. ‘Os desafios da historiografia chinesa na modernidade’ in Revista
Sobre Ontens, v.1, 2016.
Bueno, André. Cem Textos de História Chinesa. União da Vitória: FAFIUV –
Kaygangue, 2010.
Dirlik, Arif. ‘The universalisation of a concept: ‘feudalism’ to ‘feudalism’ in
7
Chinese Marxist historiography’ in Journal of Peasant Studies, 1985, p.197227.
Gao, Mobo. ‘La forma della Storia e il ruolo ignorato del popolo cinese’ in Il
Manifestto, 25 de setembro de 2019.
Gao, Mobo. The Battle of China’s Past: Mao and the Cultural Revolution,
London: Pluto Press, 2008.
Irwin, Robert. Pelo amor ao saber: os orientalistas e seus inimigos. São
Paulo: Record, 2008.
Jiang, Qing 政治儒学具有“普适性”,不是排斥西方的极端原教旨主义— —
答美国明克胜教授问 in 申论政治儒学, [台湾] 新北:
养正堂文化事业股份有限公司, 2017.
Jiang, Qing. 政治儒學:當代儒學的轉向、特質與發展, 2003.
Joppert, Ricardo. China: Esboço sobre uma civilização de acordo com sua
própria filosofia da História. Cehvet, 1998.
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9
A RECONSTRUÇÃO DA CHINA E A AMIZADE SINOSOVIÉTICA ATRAVÉS DAS PÁGINAS DA REVISTA CHINA
RECONSTRUCTS NOS ANOS 1950, por Anna Maria L. Neves
Introdução
Esse artigo é uma breve análise da revista bimestral China Reconstructs
durante os anos 1950, que aqui é utilizada como uma fonte para compreender
os primeiros anos da República Popular da China [RPC], evidenciando também
quem estava por trás de suas páginas e como a valorização da amizade SinoSoviética é retratada a partir de um periódico de alcance internacional. A China
Reconstructs foi uma revista que nasceu em um período específico do pós
revolução, período esse no qual o país precisava se reinventar para sobreviver.
Suas páginas foram uma porta para que as pessoas de outros países
conhecessem a China através das imagens e das histórias dos trabalhadores
chineses, que eram os principais protagonistas dos artigos escritos por
pessoas importantes no Partido.
A Revolução Comunista Chinesa de 1949 foi um dos eventos mais importantes
do século XX, transformando completamente, a longo prazo, o panorama
socioeconômico da China. O país saiu completamente arrasado da Segunda
Guerra Mundial, esfacelado politicamente, uma vez que vivia uma guerra civil
interna desde 1927 entre as forças comunistas e nacionalistas, e repleto de
desafios a nível internacional. A revolução simbolizou definitivamente, para os
chineses, o fim do "Século da Humilhação" [百年国耻], iniciado com as Guerras
do Ópio em 1840, e a construção de uma 'Nova China' a partir de uma base
sobretudo camponesa. Autores como Jean Chesneaux, Jonathan Spence,
John K. Fairbank, dentre outros, são importantes referências teóricas para
compreendermos de que forma uma revolução desse porte foi possível.
Após a revolução, no entanto, poucos países reconheceram o novo governo
internacionalmente, uma vez que a República Popular da China sequer
conseguiu um assento na ONU até os anos 1970. Isso dificultou qualquer tipo
de ajuda econômica dos Estados Unidos, um país que saiu fortalecido da
guerra e estava focado principalmente na reconstrução dos países europeus
ocidentais e do Japão.
Chen Jian [JIAN, 2001] destaca que o suporte contínuo dos Estados Unidos ao
Guomindang de Chiang Kaishek [Jiang Jieshi], tanto durante a guerra quanto
após a fuga dos nacionalistas para Taiwan, somado ao receio de uma nova
invasão imperialista que poderia ameaçar a soberania do povo chinês,
contribuiu para o alinhamento dos comunistas chineses com a União Soviética.
Esse movimento foi batizado por Mao Zedong de "lean-to-one-side" [一边倒].
10
Dessa forma, qualquer possibilidade de aproximação imediata com os Estados
Unidos não avançou, ao menos até os anos 1970. Com a Guerra da Coreia,
inclusive, as hostilidades entre os EUA e a RPC progressivamente se
acirraram, e o discurso anti-imperialista chinês frequentemente tinha os
Estados Unidos como um dos alvos. Após a deterioração das relações com a
URSS, em meados dos anos 1960, esse discurso passou a incluir a própria
União Soviética como uma potência "revisionista" e "imperialista". No entanto,
esse cisma, bem como suas causas e consequências, não serão analisados
neste estudo, uma vez que nosso foco é no período anterior.
Os chineses contaram, inicialmente, apenas com a ajuda da URSS para se
reerguer durante os anos 1950. Rana Mitter destaca que, após o fim da guerra
e da ocupação japonesa, havia um saldo de "[...] 14 a 20 milhões de mortos, e
80 a 100 milhões de refugiados" [MITTER, 2013, p. 387, tradução da autora].
Somaram-se a isso todos os problemas e perdas decorrentes de um longo
período de guerra civil interna, o que levou a China a depender, durante alguns
anos, da ajuda externa dos soviéticos, não apenas do ponto de vista
econômico, mas também em perspectiva de auxílio técnico para o
desenvolvimento da agricultura e da indústria. Além disso, foi vultoso o auxílio
militar, com marcante presença de especialistas e conselheiros não apenas
dentro do partido, mas também nos órgãos de defesa durante os anos 1950
[SHEN, 2020].
Nesse período de reconstrução, a imprensa teve um papel fundamental, não
apenas na mobilização da população para participar ativamente desse
processo, como também na divulgação a nível internacional dos progressos
obtidos pelo governo do Partido Comunista Chinês [PCCh] nas mais diversas
áreas, como educação, indústria, saúde, agricultura, dentre outros. Sendo
assim, algumas das fontes historiográficas que temos acesso no Ocidente
sobre esse período são jornais e periódicos, alguns deles publicados em inglês.
Tania Regina de Luca ressalta que o trabalho com periódicos exige do
historiador o cuidado com a leitura da intencionalidade por trás de um coletivo
de indivíduos, uma vez que “[...] jornais e revistas não são, no mais das vezes,
obras solitárias, mas empreendimentos que reúnem um conjunto de indivíduos,
o que os torna projetos coletivos, por agregarem pessoas em torno de ideias,
crenças e valores que se pretende difundir a partir da palavra escrita”. [LUCA,
2008, p.140]. Dessa forma, nossa análise se fundamenta na compreensão
dessas intencionalidades e desses discursos materializados por meio de
imagens e artigos da China Reconstructs.
A construção da “nova china” e a presença soviética nas páginas da
China Reconstructs.
Dentre as revistas de apelo internacional chinesas, se destacam a Beijing
Review [1958-] e a China Reconstructs [1952-], que desde os anos 1990
passou a se chamar China Today. Em ambos os casos, tratam-se de revistas
periódicas traduzidas em mais de uma língua, sobretudo com o intuito de
alcançar o público de vários países. A China Reconstructs foi fundada por
11
Soong Ching Ling, personagem importante tanto na história anterior à
revolução quanto depois dela.
Soong Ching Ling foi casada com Sun Yatsen, motivo pelo qual ficou
conhecida como “Mme. Sun Yatsen”, e defendeu, dentro até mesmo do
Guomindang, as ideias do falecido esposo e a causa revolucionária como
solução para os problemas que assolavam a China. Ching Ling era uma mulher
culta e, apesar de ser cunhada de Chiang Kaishek, não apenas apoiou a
revolução, como se tornou uma das fiéis divulgadoras dos progressos obtidos
desde a chegada dos comunistas ao poder. Isso lhe custou o afastamento dos
seus dois irmãos [T.V. Soong e Song Meiling, também conhecida como “Mme.
Chiang Kaishek”]. Segundo Christine Dabat:
“A independência de espírito de Song Qingling, sua coragem na defesa dos
princípios defendidos junto com seu finado marido a levaram a enfrentar as
forças reacionárias que reivindicavam a mesma herança política de Sun
Yatsen. Chiang Kaishek [seu cunhado] empregou, em vão, contra ela todos os
meios: sedução, intimidação, calúnia, isolamento [fazendo desaparecer
colaboradores e amigos].” [DABAT, 2017, p. 40]
Soong começou a publicar a China Reconstructs em 1952, por meio da China
Welfare Institute (CWI), uma Organização não-governamental filantrópica
fundada por ela mesma em 1938 com o nome de China Defense League
[CDL]. O objetivo inicial da ONG era ajudar os refugiados e as pessoas em
geral que sofriam com a guerra civil e a invasão japonesa. Ela também foi uma
voz ativa na defesa dos direitos humanos e na condenação pública e
divulgação dos horrores cometidos pelos nacionalistas e pelos japoneses. Após
a fundação da República Popular da China, a CWI se dedicou a arrecadar
fundos voltados, sobretudo, para a proteção das mulheres e crianças, mas
também para a divulgação, a nível internacional, da China pelos olhos dos
chineses.
Com a ajuda de Israel Epstein, um amigo próximo e jornalista que documentou
sua vida posteriormente em uma biografia póstuma, e com seu amplo
conhecimento acerca de outras línguas, países e culturas, Soong Ching Ling
reunia bimestralmente artigos de várias pessoas importantes dentro do Partido.
Muito do seu ponto de vista pode ser percebido na forma como ela organizou
os artigos, que abordavam temas que variam desde a queda nos índices de
mortalidade infantil até os avanços na indústria e na coletivização da
agricultura.
Em termos de imagens, predominam fotografias do povo chinês como
protagonistas dessa reestruturação, com variadas fotos de trabalhadores rurais
e urbanos em cada artigo. Essas fotos, apesar de serem em preto e branco,
dão vida à ideia de que os homens e as mulheres da China trabalhavam
coletivamente pela reconstrução gradual do país, como exemplificado abaixo
12
Imagem de uma cooperativa agrícola na província de Zhejiang, mostrando
camponesas em trabalho coletivo
Fonte: [CHINA RECONSTRUCTS, 1954, p.09]
Trabalhadores da Indústria Têxtil. A legenda original ressalta que os têxteis
agora eram mais bem pagos que em qualquer época.
Fonte: [CHINA RECONSTRUCTS, 1952, p.22]
Apesar do foco dedicado sobretudo ao que os chineses conseguiram realizar
com seus próprios esforços e competência, é possível perceber que os artigos
eventualmente mencionam o peso da ajuda soviética. Nesse ponto, para além
do fato histórico de que há um consenso acerca da importância da cooperação
mútua entre os dois países durante os primeiros anos da RPC, é importante
destacar a relação pessoal que Soong Ching Ling tinha com os soviéticos.
13
Relação essa que, aliás, data de anos anteriores à concretização da revolução,
quando ela fugiu secretamente para a URSS em 1927, por ocasião do início da
guerra civil entre comunistas e nacionalistas decorrente do Massacre de
Xangai [1927].
Soong Ching Ling foi uma grande entusiasta das relações da China com a
URSS, sendo considerada por Epstein como “[...] a cabeça no corpo da
amizade Sino-soviética em toda China” e uma voz constante na defesa dessa
parceria [EPSTEIN, 1995, p. 483, tradução da autora]. No discurso de
inauguração da “Associação da Amizade Sino-Soviética”, em 1949, ela definiu
a parceria como a realização de um sonho de mais de 24 anos [sonho este que
teria sido iniciado com Sun Yatsen], desejando a construção de um novo
mundo baseado na cooperação entre os povos dos dois países em benefício
mútuo das nações mais fracas, tecendo críticas à OTAN e ao Plano Marshall.
[SOONG, 1953, p. 195-196]
É importante ressaltarmos que o contexto da maior parte dos artigos escritos
na China Reconstructs dos anos 1950 são da época do Primeiro Plano
Quinquenal [1953-1957], onde a China escolheu o modelo soviético como via
para o desenvolvimento, baseado sobretudo no controle estatal com foco no
desenvolvimento industrial, sendo este último o motor que alçaria à China ao
status de grande potência. A técnica de desenvolvimento rápido da URSS tinha
como chave 5 elementos: “uma ênfase na necessidade de rápido crescimento
durante todo o período do plano, um foco na indústria pesada como índice de
crescimento significativo, insistência em altas taxas de poupança e
investimento para tornar esse crescimento possível, transformações
institucionais na agricultura e uma tendência para métodos intensivos em
capital.” [SPENCE, 1990, 544, tradução da autora] Stuart Schram destaca que
Mao tinha o grande desafio de adaptar as ideias marxistas-leninistas à
realidade chinesa, criando condições para o desenvolvimento industrial a partir
de uma economia agrária:
“Tendo tomado o poder tanto nas cidades quanto no interior, o Partido
Comunista Chinês estava efetivamente em posição de desenvolver uma
indústria moderna, e então criar sua suposta classe base de “vanguarda do
proletariado”, abrindo a via de convergência com os países mais avançados
sob domínio comunista.” [SCRHAM, 1989, p.95, tradução da autora]
Nesse ínterim, havia um clima compreensível de expectativas altas com a
recuperação econômica e social. Para além da simples recuperação, estava
implícito também o desejo de transformar a China em uma potência
independente, bem como o foco na indústria de base e na agricultura
coletivizada. Na edição China in Transition, que reuniu artigos selecionados de
todas as edições até 1957, a ajuda soviética ao primeiro plano quinquenal
aparecia em destaque em vários artigos, conforme exemplo abaixo:
“Em 1953, o Primeiro Plano de Industrialização Socialista foi lançado. Com
ajuda técnica generosa da União Soviética e de seus co-membros do mundo
socialista, a China iniciou a construção de centenas de empreendimentos na
14
esfera da indústria básica, a única base sólida para a independência nacional e
progresso contínuo no bem-estar do povo. Na agricultura: dezenas de milhões
de pequenos camponeses, livres das extorsões de latifundiários e cobradores
de impostos, entraram em equipes de ajuda mútua, o primeiro passo em
direção às cooperativas agrícolas.” [CHINA IN TRANSITION, 1957, p.04,
tradução da autora]
Em outra reportagem, sobre o aumento expressivo da produção de aço na
indústria siderúrgica de Anshan, a revista traz a imagem de um especialista
soviético auxiliando operários chineses, demonstrando visualmente a
importância dessa colaboração:
Imagem de um especialistas soviético inspecionando os primeiros lotes de aço
produzidos em uma siderúrgica de Anshan.
Fonte: [CHINA RECONSTRUCTS, 1954, p.09]
Apesar do destaque dado à ajuda soviética, não podemos perder de vista que
o foco das matérias estava muito mais nos milagres que o povo chinês
conseguia fazer com tal ajuda, do que na simples ajuda em si. Isso tornava a
revista um meio eficiente de divulgação da capacidade de cada trabalhador de
construir uma “nova china”, seja no campo ou nos centros industriais. Dentro
desse contexto, o modelo soviético pareceu o ideal para alçar um país pobre,
que havia acabado de sair do “século da humilhação”, ao patamar de uma
nação industrializada, assim como a URSS, que funcionava como um espelho
a ser seguido.
É importante atentarmos ao fato de que, na visão dos chineses,
o
desenvolvimento também era uma forma de se proteger da ameaça dos países
ditos “imperialistas”, na medida em que a China teria a oportunidade de se
impor não apenas do ponto de vista econômico, mas também militar. No
entanto, a questão militar não tinha tanto destaque na China Reconstructs nos
seus primeiros anos, na medida em que o discurso dos autores estava muito
15
mais voltado para a resolução de problemas internos do que nas questões
externas.
Considerações finais
A República Popular da China, de início, se viu imersa em dificuldades sociais
e econômicas, com pouca possibilidade de ajuda internacional. Enquanto os
EUA voltaram seus olhos para o Japão e a Europa Ocidental, a RPC sequer
teve reconhecimento internacional, mesmo tendo participado do esforço de
guerra dos aliados. O pós Segunda Guerra Mundial deixou a China arrasada,
tendo a URSS como único parceiro nesse processo de reconstrução.
Dessa forma, foi necessário um esforço coletivo para reerguer o país. Os
veículos de imprensa, como a China Reconstructs, foram muito importantes na
mobilização do povo chinês para essa difícil tarefa e na divulgação
internacional dos avanços obtidos na RPC desde a chegada dos comunistas ao
poder. Sua autora, Soong Ching Ling, não mediu esforços em reunir artigos
positivos sobre o período do Primeiro Plano Quinquenal, bem como sobre a
importância da ajuda soviética na concretização dele.
Apesar da história ter, posteriormente, revelado os erros, e também os acertos,
cometidos nos primeiros anos da implantação de um modelo soviético na
China, a China Reconstructs é a tradução, em forma de revista, dos sonhos do
povo chinês e das expectativas criadas em torno do sucesso da revolução.
Sendo assim, o periódico é uma fonte historiográfica importante e acessível
para entendermos o ponto de vista do povo chinês nos primeiros anos da
revolução, bem como o protagonismo dos trabalhadores nessa conjuntura.
Referências
Anna Maria Litwak Neves é Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em
História da Universidade Federal de Pernambuco e curadora auxiliar da
Curadoria de História da Coordenadoria de Estudos da Ásia da UFPE. E-mail:
[email protected]
DABAT, C. Rufino. Mulheres de ferro: revolucionárias feministas na China do
século XX. In REVISTA HISTÓRIA & LUTA DE CLASSES, v. 24, 2017, p. 2944.
EPSTEIN, Israel. Woman In World History: Life and Times of Soong Ching Ling
[Mme. Sun Yatsen]. Beijing: New World Press, 1995.
JIAN, Cheng. Mao 's China and the Cold War. North Carolina: The University of
North Carolina Press, 2001.
LUCA, Tania Regina de. “História dos, nos e por meio dos periódicos.” in
PINSKY, Carla Bassanezi [Org]. Fontes Históricas. 2.ed. São Paulo: Contexto,
2008. p.111-153.
16
MITTER, Rana. China's War With Japan 1937-1945: the struggle for survival.
London: Penguin Books, 2013.
SCHRAM, Stuart R. The thought of Mao Tse-Tung. Cambridge: Cambridge
University Press, 1989.
SHEN, Zhihua [Org]. A Short History of Sino-Soviet Relations, 1917–1991.
Singapore: Palgrave Macmillan, 2020.
SOONG, Ching Ling. Struggle for New China. Peking: Foreign Languages
Press, 1953.
SPENCE, Jonathan D. The Search for Modern China. New York: Norton &
Company, 1990.
Referências das imagens
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n.1, Jan-Fev, 1952, p. 21-23
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RECONSTRUCTS, v. 3, n.1, Jan-Fev, 1954, p. 05-10
CHOU, Hung-Shih. Three New Giants of Ansham. In CHINA
RECONSTRUCTS, v. 3, n.2, Mar-Apr, 1954, p. 07-09
China Reconstructs Writers. China in Transition: Selected Articles 1952-1956.
Peking: China Reconstructs, 1957.
17
O DECLÍNIO DO IMPÉRIO HAN (206 A.C – 220 D.C),
por Gabriel Requia Gabbardo
Pretendo aqui discorrer brevemente sobre o declínio do Império Han (206 a.C –
220 d.C) sob uma perspectiva comparativa com a crise enfrentada pelo Império
Romano desde o reinado de Marco Aurélio (161-180 d.C). Assumo, da leitora,
algum conhecimento sobre a crise do século III em Roma: o tempo é breve, e a
China urge. Assumo, ainda, que a leitora concordará que houve uma crise no
século III em Roma: o que quer que se pense dos impérios romanos de Marco
Aurélio de um lado e de Diocleciano, do outro, há de se convir que ocorreram
importantes mutações nesse interregno. Assumirei, também, um completo
desconhecimento da história do Império Han; peço da leitora que conheça um
pouco desta história um mínimo de tolerância. Após considerações
comparativas iniciais entre as crises que os impérios romano e Han sofreram
no final do séc. II D.C, passarei a relatar as razões estruturais que percebi
como decisivas para o colapso final do último em 220 d.C.
No período de 235 a 284, cerca de oitenta indivíduos pretenderam assumir o
trono imperial de Roma: qualquer general mais ambicioso nas fronteiras do
Império era um usurpador em potencial. A esta crise interna somaram-se
diversas crises externas: um Império Persa Sassânida belicoso nas fronteiras
mesopotâmicas, os godos nas margens do Reno e do Danúbio: o imperador
Décio morreria lutando contra os godos no Danúbio em 251, e Valeriano seria
capturado pelos sassânidas em 260, morrendo no cativeiro. Como se isso
fosse pouco, a ordem do Principado, uma polida ficção de que o imperador era
apenas o princeps do Senado, ruía a olhos vistos. Em dado momento, partes
importantes do Império se tornaram independentes, se não de jure pelo menos
de facto (o império Gálico de Póstumo, o império de Zenóbia).
Contudo, o Império Romano sobreviveu, e se adaptou, bastante bem face a
estes desafios. Os soldados-imperadores do Danúbio, como Diocleciano e o
próprio Constantino, restauraram a unidade do Império: mesmo a
“evanescente” restauração do Império Romano do Ocidente durou mais ou
menos 150 anos. O contraste com o seu império coevo, o Império Han na atual
China, não pode ser mais marcante.
Como fazer esse contraste? Uma pequena moda historiográfica vem
aparecendo nos últimos anos, no qual esse texto faz parte: a de estudar,
simultaneamente, a Antiguidade Clássica e algum império chinês coevo. Os
resultados, contudo, de um empreendimento comparativo mal concebido por
parte de estudiosos sem familiaridade alguma com uma das sociedades
comparadas podem ser, simplesmente, ruins (um exemplo destas camas de
Procusto é ENGELS, 2021). As sociedades clássicas e a chinesa antiga são
demasiado diferentes para formular paralelismos; uma história comparativa
18
entre o Império Romano e o Império Han deve destacar as diferenças para
então realçar – e, idealmente, iluminar – as particularidades de cada
sociedade.
Não tenho espaço, aqui, para fazer uma grande exposição cronológica da
Dinastia Han (Como introdução ao período, ao primeiro volume da Cambridge
History of China – TWITCHETT, D., e LOEWE, M., eds, 1986 – podem ser
acrescidos a obra introdutória de Mark Edward Lewis - LEWIS, 2010 – e, em
francês, o volume de Bujard e Pirazzoli-T’serstevens – BUJARD e PIRAZZOLIT’SERSTEVENS, 2017. CRESPIGNY, 2016, é uma obra tão erudita quanto,
por vezes, irritantemente retrógrada em sua metodologia). Estabelecida em 206
a.C., é dividida em dois grandes períodos: a Han Ocidental (até 9 d.C) e a Han
Oriental (de 25 até 220 d.C – o espaço é preenchido pela dinastia Xin, um
período de profundo conflito civil que não nos interessa aqui). “Ocidental” e
“Oriental” são denominações derivadas da localização relativa da capital das
respectivas dinastias, Chang’an e Luoyang. Se, como se vê, o Império Han era
mais antigo que o Império Romano em c. 160 d.C., enfrentaria, de maneira
parecida, uma grande crise na segunda metade do séc. II; em marcante
contraste com o Império Romano, não sobreviveria a essa grande crise. Por
quê? Os fatores que pretendo apresentar aqui não são “as” respostas, mas
acredito que sejam pontos importantes para essa divergência.
O primeiro: o papel social diverso do Exército nos dois impérios. Estes impérios
foram constituídos por processos semelhantes de expansionismo belicista.
Contudo, se durante a República Romana o exército se profissionalizou, se
institucionalizou, a imensa máquina militar da Dinastia Qin e do início da
Dinastia Han foi, em larga medida, dissolvida – exceto nas fronteiras
setentrionais, onde um exército profissional chinês ainda existia, sendo
direcionado contra os povos nômades dos atuais Xinjiang e Mongólia. O
cuidado com a estabilidade interna, em Roma, era feito por tropas profissionais
pagas; salvo em situações de extrema necessidade, sob os Han essa tarefa
era destinada a recrutas (forçados ou não). À diminuição do recrutamento
militar sob os Han seguiu-se um aumento do que historiadores ocidentais
chamam de “corveia”, trabalho obrigatório em grandes obras públicas.
O segundo: o papel divergente que a figura do imperador tinha nos dois
impérios. Em Roma, o imperador escondia seu verdadeiro poder; a ficção de
que o imperator era tão somente o princeps disfarçava seu poder autocrática.
O imperador Han tinha uma presença muito mais incisiva; era o Filho do Céu, o
Augusto Tearca (huangdi), e ocupava uma posição semelhante à do Céu e da
Terra no cosmos. Contudo, o acaso interviu sob os Han orientais. De 25 a 189
d.C., doze homens ocuparam o trono imperial chinês; por absoluto acaso do
destino, apenas os dois primeiros chegaram aos 35 anos. Se o imperador
romano era uma presença constante na vida aristocrática romana, como se vê
em Tácito, as constantes disputas pela regência de imperadores infantes
fizeram com que mesmo na capital imperial as famílias aristocráticas chinesas
tivessem ampla liberdade de ação. Essa liberdade foi utilizada no
arrendamento de suas propriedades para camponeses; se, em 200 a.C.,
19
apenas 5% do campesinato era arrendatário, em 180 d.C. essa percentagem
estava entre 30 e 70%.
O terceiro: a construção de um espaço de colonização ao sul do Rio Yangzi.
Se, no séc. II a.C., o território ao redor da atual Nanquim era um espaço
fronteiriço, comparativamente “subdesenvolvido”, no séc. II d.C. ele já era
quase autônomo: uma tendência demográfica que percorreu todo o império
Han foi a migração de habitantes das fronteiras setentrionais para as
meridionais.
O quarto: o estabelecimento de uma ortodoxia imperial “confuciana”. Se a
China antes do império Han se destacava por uma pluralidade de escolas
filosóficas, o espaço concedido a outras maneiras de pensar se tornava cada
vez mais circunscrito. Sima Qian (145-c. 90 a.C) ainda podia preferir o taoísmo
ao confucionismo; justamente por essa preferência, se tornaria execrado já no
séc. I a.C. Quem definia a ortodoxia era justamente o poder imperial; em
marcado contraste tanto com o império romano pagão quanto com o cristão
(uma vez que não havia um referencial paralelo ao imperial – no caso, o das
Igrejas – que delimitava a ortodoxia). As elites foram as mais afetadas,
inicialmente, por este desenvolvimento; contudo, as crenças populares de
vastos setores camponeses se tornavam proscritas, ou pelo menos
heterodoxas, com profundas consequências para a crise final da dinastia, da
qual trataremos a seguir.
A crise final foi detonada durante a década de 180. De um auge cerca de 100
d.C., o Império Han vinha perdendo, lentamente, terreno nas suas fronteiras
setentrionais; os filhos e netos do exército imperial daquela época tinham ou
migrado para o sul, ou abandonado as fileiras para se juntar aos nômades da
região, ou perdido lentamente sua lealdade para com o distante imperador
Han.
A situação no campesinato também não era alvissareira. Fosse por causa da
“corveia”, fosse por causa de sua dependência para com os grandes
latifundiários, vastas populações rurais passaram a se interessar cada vez mais
por sistemas de crença “heterodoxas”. Uma fagulha bastaria para causar crises
nessa situação, e o Império Han se viu frente a frente com o incêndio da peste.
A partir da década de 170, o Império foi atingido por sucessivas levas de
doenças contagiosas; embora (por razões que não nos interessam aqui) a
historiografia imperial chinesa pouco dava valor à descrição de doenças, a data
torna quase que obrigatória a identificação dessa onda com a praga antonina
(sobre esta, ver o fundamental estudo de HARPER, 2017).
Ideias religiosas novas, podemos até dizer esquisitas, permeavam os dois
impérios durante o século II. A estranha seita judaica que se espalhava pelo
Mediterrâneo podia horrorizar grande parte da elite romana; mas os cristãos
não apresentavam um desafio político direto à ordem estabelecida. Muito
diferente era o que chamo, com muitas e justificadas aspas, de “taoísmo
20
popular” de movimentos como os Bandanas Amarelas e do Caminho dos
Mestres Celestiais.
Um movimento milenarista, o dos Bandanas Amarelas, sob a liderança
carismática de um certo Zhang Jiao, proclamava que o fim do mundo atual se
aproximava, e que a um céu azul (do imperador Han) se seguiria um céu
amarelo (de Zhang Jiao). A rebelião foi detonada em 184 d.C.; chegou a tomar
capitais provinciais importantes, como Wan, na província de Nanyang. Esse
movimento de massas rurais foi esmagado pelas tropas “imperiais”: um dos
generais Han, Huangfu Song, chegou a erguer um monte com os cadáveres de
suas vítimas – mas cenas de repressão semelhantes só surgiram após os
senhores de terra mobilizarem seus arrendatários como soldados. Em
marcante contraste com os milenaristas seguidores de Zhang Jiao, reprimidos
com fúria genocida, os Mestres Celestiais, talvez mais sóbrios e pragmáticos,
conseguiram se apoderar da província de Hanzhong.
Todo o sistema fronteiriço setentrional Han colapsou com essa rebelião. Partes
importantes do império foram perdidas imediatamente, como a província de
Liang; os generais que comandavam a fronteira se ressentiam, algo
justificadamente, do abandono que sofriam por parte do governo central.
O golpe de morte foi dado quando o imperador Ling faleceu, em 189 d.C. O
genro do falecido imperador teve a ideia de chamar um desses generais
fronteiriços, Dong Zhuo, para a capital, de maneira a reforçar a sua posição.
Esse genro foi morto por seus rivais, mas mesmo assim Dong Zhuo veio.
Seguiu-se mais um massacre palaciano, com um imperador mirim agindo sob
as ordens de Dong. Revoltados com a situação, diversos governantes de
província, grandes donos de terra e membros da burocracia imperial
denunciaram Dong Zhuo como traidor, e passaram a organizar um exército
próprio de maneira a tomar a capital Luoyang. Temendo por sua situação, e
carente de recursos, Dong Zhuo queimou a capital, deportou a população para
a antiga capital Han, Chang’an, e saqueou as tumbas imperiais em busca de
ouro e bronze. A coalizão montada contra ele logo se dissolveu em rivalidades
fratricidas, e o próprio Dong Zhuo seria morto por soldados amotinados dois
anos depois. A autoridade do imperador era inexistente. Cada grande oligarca
estava jogado à própria sorte, com seu exército de arrendatários à disposição.
Ainda havia um imperador Han, mas o seu Império havia morrido, brutal e
incontestavelmente assassinado.
Alguns pontos comparativos saltam aos meus olhos, como historiador do
Império romano, ao me deparar com essa queda. O primeiro de todos, e o que
mais quero destacar aqui, é o fator de estabilidade que era o Exército romano.
Fosse quem fosse o herdeiro de Augusto, ele era umbilicalmente ligado às
suas tropas – e vice-versa. Essa ligação, em momentos de turbulência, era
frequentemente fatal para o imperador romano; um imperador que tratasse mal
o seu Exército seria inevitavelmente morto por ele. Mas mesmo aí havia um
fator de estabilidade; o líder do motim se tornava, normalmente, o novo
imperador. A estrada para o poder, após a rude tarefa de esmagar o imperador
21
anterior, era relativamente simples. Aqui, que o imperador romano fosse um
esquisito retalho constitucional de um mambembe regime republicano era
perigoso para a vida dos indivíduos imperadores, mas servia como outro fator
de estabilidade. Vespasiano ou Sétimo Severo poderiam muito bem (como, de
fato, conseguiram) se tornar imperator, mas a tomada de poder manu militari
por Dong Zhuo não o possibilitava a se tornar o huangdi Han, um indivíduo que
se equiparava ao Céu e à Terra. Ao fazer o que Vespasiano fez, Dong Zhuo se
transformou em um monstro quase proverbial na cultura chinesa – e o senhor
da guerra mais bem-sucedido no período que se seguiu à morte de Dong Zhuo,
Cao Cao, literalmente virou um provérbio, fazendo as vezes do Demônio no
equivalente chinês do nosso ditado “falando no diabo”: 说曹操,曹操到, shuō
Cáo Cāo, Cáo Cāo dào.
Outro ponto de destaque: o amplo leque de ação dado aos grandes senhores
rurais chineses. É difícil imaginar que os mais ricos proprietários de terra Han
pudessem alcançar a imensa riqueza da oligarquia senatorial romana. No
entanto, o fato do exército “interior” Han ser basicamente uma milícia amadora
possibilitava a esses senhores de terra montar a sua própria milícia amadora,
composta por vastas multidões de arrendatários (e, eventual e
catastroficamente, profissionalizá-la). À uma rica família senatorial romana,
muito era possível, inclusive se desfazer de todas as suas possessões e doálas para a Igreja, como fez Melânia, a Jovem; mas nem mesmo a riqueza de
Melânia financiaria uma tomada violenta do poder. Em situações de vácuo de
poder, em Roma, as guerras civis eram disputadas pelos grandes líderes do
Exército; após a queima de Luoyang, o império Han foi dividido em cerca de 30
unidades territoriais, lideradas por todo tipo de oligarca.
Por fim, cabe destacar a imensidão da rebelião dos Bandanas Amarelas. A
profundidade da revolução religiosa cristã, e a sua permanência, não deve
obscurecer o que foi essa rebelião. Estamos de frente com a maior revolta
religiosa da Antiguidade, um dos maiores exemplos de milenarismo político em
toda a história, e com uma revolta camponesa que abalou os alicerces de um
Império.
A partir de 189, então, o Império Han se encontrou em um período de profunda
guerra civil por praticamente trinta anos. Sabemos bastante sobre estes trinta
anos, até demais: para além das fontes históricas propriamente ditas, uma das
grandes obras literárias da China, o Romance dos Três Reinos, de Luo
Guozhang (escrita, ou coletada, no início do século quinze), se passa a partir
desse período. O efeito, talvez deletério, para o estudo da história do período é
que os Reis Artures da China (personagens como Cao Cao, Liu Bei, Zhuge
Liang ou Sima Yi) possuem RG e endereço certo, o fim do século II e o início
do séc. III.
A pulverização do Império se torna bastante visível ao olhar um mapa,
representando grosso modo a situação em 195 d.C.:
22
Destaco três pontos interessantes aqui: primeiramente, o território de Zhang
Lu, o regime “teocrático” taoísta dos Mestres Celestiais. Em segundo lugar, que
os vários “Liu” que governavam territórios eram reputadamente membros da
burocracia imperial, que face ao caos de 189 se tornaram funcionalmente
independentes.
Terceiro, que mesmo este território pulverizado já havia passado por uma certa
racionalização, e nenhuma racionalização foi maior do que a ocorrida no
território de Cao Cao. Cao Cao é um personagem fascinante, mesmo se nos
limitarmos às fontes históricas: maior senhor da guerra do período, ele só não é
o maior poeta dele porque foi superado por seu filho Cao Zhi (Sobre Cao Cao,
ver a brilhante biografia escrita por De Crespigny: DE CRESPIGNY, 2010). As
planícies centrais da China eram o território mais pulverizado de todos em 189:
o indivíduo que conseguisse massacrar o considerável número de oponentes
existentes nesse território e unificá-lo se tornaria, por dura experiência, um
gênio militar. Cao Cao conseguiu, em um lance ousado, capturar o antigo
imperador títere e usá-lo para seus próprios fins; após uma série de batalhas
ainda mais ousadas, chegaria a dominar todo o norte da China a partir de 208
(chegou, inclusive, a anexar o território de Zhang Lu em 215, após uma solução
negociada).
No entanto, fracassou em seu intento de unificar o território Han. Para além de
vicissitudes de batalhas individuais, três pontos estruturais me parecem
importantes aqui: nos quatrocentos anos do império Han, a antiga ecumêne
Zhou se expandiu, decisivamente, para o Sul. Aos fundadores dos Impérios Qin
e Han bastou conquistar a atual cidade de Changsha: os rivais de Cao Cao no
Sul tinham recursos muito mais significativos.
O outro: Cao Cao, como todo e qualquer senhor da guerra no período, possuía
uma inerente falta de autoridade. Como já colocado acima, a possibilidade de
uma tomada de poder manu militari localizada era muito mais aberta do que no
Império Romano, mas a esses senhores da guerra Han era muito mais
23
complicado se tornar imperador. Um imperador romano, e mesmo um
usurpador com alguns recursos, podia se dirigir ao campo de batalha com uma
segurança contra o dissenso interno com a qual Cao Cao jamais dispôs.
O terceiro ponto é que a guerra civil Han se tornou uma guerra entre Estados.
Em 215, a divisão tripartite do antigo Império Han já estava, em essência,
completada: foi o período dos Três Reinos.
A Cao Cao (Wei), Liu Bei (Shu) ou Sun Quan (Wu) não restava mais a
oportunidade de vencer uma batalha e ganhar a guerra: uma vitória total era
necessária. Na década de 220 (o filho de Cao Cao, Cao Pi, depôs finalmente o
último imperador Han no início da década), os três Estados teriam, cada um,
seu próprio imperador: no maior esforço de guerra antes de 260, o general de
Shu Zhuge Liang lançaria cinco campanhas contra os descendentes de Cao
Cao durante o final da década de 220. Obteve inúmeras vitórias conjunturais,
que estruturalmente de nada lhe valeram. A derrota mais impactante de Cao
Cao (apesar da mitologia em volta de outra, ocorrida em 208) ocorreu em 219,
quando o território de Hanzhong foi conquistado por Liu Bei: a derrota de Cao
Cao foi tão grande quanto a de qualquer um de seus antigos rivais na planície
central chinesa quase trinta anos antes, mas Cao Cao já era bem mais que um
senhor da guerra.
Se Cao Cao obteve grande sucesso contra inimigos externos, seus sucessores
sucumbiriam a inimigos internos: um golpe palaciano, liderado por Sima Yi (o
general que se opôs a Zhuge Liang), levaria com que os Caos se tornassem
títeres dos Sima em 249. Seriam os Simas que reunificariam o território Han
entre 263 e 280; contudo, a unificação aqui (em marcante contraste com o
24
Império Romano) seria bastante efêmera. Povos nômades setentrionais
acabariam por romper com essa unidade em 311; a reunificação duradoura do
império Han só se daria quatrocentos anos depois da tomada de poder por
Dong Zhuo, em 589. Mas este é tema para outro artigo.
Referências
Gabriel Requia Gabbardo é Doutor em Classics pela University of St Andrews.
BUJARD, M., e PIRAZZOLI-T’SERSTEVENS, M. 2017. Les Dynasties Qin et
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Belles Lettres, 2017
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VANKEERBERGHEN, G, (eds), 2021, “Rulers and Ruled in Ancient Greece,
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History of China, vol. 1). Cambridge: Cambridge University Press, 1986.
25
O CENTENÁRIO DE PUBLICAÇÃO D’O GRITO” (1923), DE LU
XUN: MARCO HISTÓRICO NA TRADIÇÃO LITERÁRIA
CHINESA MODERNA, por Luiz Gabriel Ribeiro Locks
O presente ensaio tem como objetivo refletir acerca do centésimo aniversário
que envolve a compilação e publicação da obra nà hǎn 呐喊 de Lu Xun 鲁迅,
ou, “O Grito”, em tradução livre. A obra, compilada em dezembro de 1922 e
publicada em 1923, é marcada por um avanço nas técnicas de narração,
lançada sua inspiração em novelas e romances estrangeiros, enquanto
readapta elementos da tradição de romances chineses; bem como, a obra
exibe diferentes métodos criativos e meios de expressão, refletindo o processo
transcorrente no ambiente social e nas tendências socioliterárias da época,
durante o conturbado período inicial da República da China.
Introdução
O ano de 2023 marca uma ocasião momentânea – o centésimo aniversário da
publicação de um influente livro, “O Grito”. Autoria de Lu Xun, 鲁迅 com nome
de Zhou Shuren. Ele foi um proeminente escritor chinês e intelectual que teve
um papel fundamental no desenvolvimento da literatura chinesa moderna e do
pensamento sociopolítico contemporâneo. O livro, “O Grito”, escrito entre o fim
da segunda década e início da terceira do século XX é uma coleção de contos,
no estilo de prosa, que contam a dura realidade da sociedade chinesa no
período inicial do século XX e tornou-se um catalisador para mudanças
culturais e políticas no país. Esse trabalho tem como seu objetivo explorar a
significância literária, por mais, histórico-cultural e política deste trabalho do
autor Lu Xun, encarando seu legado de forte impacto para o quadro da
situação político-social chinesa no período; e mais, na passagem do centenário
de sua publicação.
“O poeta civil de hoje continua sendo o poeta do mais antigo sacerdócio. Antes,
compactuou com as trevas e agora deve interpretar a luz.” (Neruda, 2016, p.
309) Talvez resida na citação superior o que, quilômetros de distância que
separam a porção Sudamericana do mundo, com a mais longeva reinante
ordem dinástica celestial e civilização do mundo; Chile e China, haja outras
máximas dificuldades em encontrar nestes demais pontos em comum entre os
dois países, ou mesmo, que na anterior obra do poeta-cônsul chileno
encontremos outras similitudes com as vidas e produções que encaramos.
Além, de compartilharem simultaneamente um similar tempo histórico global.
Onde reside o objetivo empreendido nessa tarefa que tem o presente trabalho
é tratar e dissertar a respeito de uma corrente político-literária, e mais,
linguística-social que também envolveu uma e demais correntes de um
movimento modernizador muito mais amplo, Movimento da Nova Cultura e o
Incidente do 4 de Maio (Chow, 1960), especialmente no Império do Meio - a
China.
26
Ainda que Neruda, posteriormente, tenha conhecido algumas das figuras que,
décadas atrás, empreenderam tais ferramentas político-literárias no seu país digo, principalmente a escritora de nome Ding Ling, ou, em pseudônimo Jiang
Binzhi, a qual Neruda confessou grande admiração e amizade enquanto fazia
parte do corpo editorial literário do prêmio Lenin (antigo prêmio Stalin) presente
nas passagens de sua respectiva obra de memórias aqui citada. (2016)
Além do mais, esse trabalho comprime um esforço que vem a colaborar com
recentes publicações literárias que se iniciaram no Brasil acerca da figura que
trataremos.
Lu Xun, ou de nascimento, Zhou Shuren. Assumi oficialmente o nome Lu Xun
com esta obra que trabalhamos, mas que veio primeiramente ao mundo pelas
páginas impressas da revista xin qingnian, a Nova Juventude - ainda em 1918,
com os recortes dos capítulos de Diário de um homem louco. Em francês, La
Jeunesse, como constava na capa da revista até o fim do sexto volume da
revista, em dezembro de 1919. A revista que tinha cunho político-educacional,
que entre seus autores, tradutores e articuladores, como o próprio irmão de Lu
Xun o foi, Zhou Zuoren, alcançaram a marca de algo em torno mensalmente
como 50mil leitores – dado que ao período considerado é bastante alto, dentro
dos limites de baixíssima alfabetização das massas chinesas -, num mundo
que uma única cópia (meio quantificável que pode ser estudado enquanto fonte
direta) podia circular entre dezenas de leitores.
Historicidade da produção e circulação
Não só venha a calhar as duas obras que valem referência breve são, “Ervas
daninha” (2022), compilado de escritos dos anos de 1923-4 e traduzido por
Calebe Guerra, publicado pela edição independente da Aboio Editorial. Bem
como, o trabalho da linha da Editora da Unicamp, que lançou em julho de 2021
a obra “Flores matinais colhidas ao entardecer” (2021), cujo reúne 10 escritos
em prosa e compilados feitos pelo autor no ano de 1926.
Enquanto isso, a obra que ocuparemos é “O grito”, em tradução livre feita por
Pontes Motta (2017), ou, a obra de língua inglesa (Lu Xun; Li, 2009) que
consultamos, demonstrando demais colaboração em estudos e obras que
passaram a tratar dessa figura que, também, despendemos aqui, uma
atribuição criticamente de breves reflexões sobre a obra e a figura do escritor
situada em um momento histórico determinado.
E ainda mais recentemente, a primeira publicação que reúne o gênero narrativo
que englobou, dizemos assim, as maiores peças literárias e das quais Lu Xun é
lembrado até os dias atuais - o dos contos. Não só, nessa versão de língua
portuguesa da Editora Carambaia (2022a), a obra “O diário de um homem
louco: contos completos de Lu Xun”, é mais um desses esforços que traduzem,
logo tornam possível, a aproximação do público brasileiro como a própria
língua portuguesa, contando-a com mais um repertório literário, agora,
acessível. Pois fim, ressalta a importância de o mercado brasileiro receber esse
27
tipo de obra; demonstra a importância que os escritos do autor têm - a luz dos
acontecimentos que seu país passava nos idos do início do século XX.
Escreveu, contou, deixou registrado, inscreveu para a história onde os seus
textos que reverberam tanto o tempo em que foi gestado quanto em seu
lançamento há um século, ou no presente, possibilita a história de acessá-lo
criticamente com os olhos do presente assistindo o passado que não passa,
virando a quadra centenária.
A obra, O Grito, em chinês 呐喊 nà hǎn, contava primeiramente com 15 contos,
entre esses (em tradução, 2022ª): O diário de um louco; Kong Yiji; O remédio;
Amanhã; Um pequeno incidente; Sobre o cabelo; Uma tempestade passageira;
Terra natal; A verdadeira história de Ah Q; Festival do barco do dragão; Luz
branca; Coelhos e gatos; Comédia dos patos; Óperas de uma cidadezinha do
interior.
O décimo quinto conto foi pessoalmente retirado pelo autor, após as primeiras
tiragens ainda em 1923, enquadrando a obra dentre 14 capítulos, enlatando-a
em padrões de forma e extensão que casasse com demais obras ocidentais.
(Wang, 2012)
Em breves palavras, a coleção a obra conta inclusa de distintas histórias, como
em Sobre o cabelo retratando os efeitos persistentes do pensamento feudal na
China. Tempestade passageira destaca a apatia da população rural em relação
às questões sociais, e Terra Natal retrata os danos que a sociedade feudal
infligiu à classe trabalhadora. A verdadeira história de Ah Q investiga as
mentes psicologicamente deformadas de pessoas sob influência feudal, Luz
branca reflete as lutas de intelectuais dentro do sistema de exame imperial.
A escrita de Lu Xun também se aproxima e contornada pelos fracos e
desafortunados e com desdém aos fortes, como visto em Coelhos e gatos. Em
Comédia dos patos, ele revela a dura realidade da lei da selva na sociedade.
Na Ópera relembra a infância e mostra as características da sociedade e do
ser humano da época.
Enquanto as três primeiras histórias do livro; Diário de um louco, Kong Yiji, e
Remédio destacam-se até hoje dentro da produção do autor. Usuários e canais
de televisão na China já se preparam para a virada centenária da obra. Posts
em rede sociais antecipam essa ocasião e tratam da sua importância.
O autor frente ao país: China
Lu Xun, uma das mais proeminentes figuras da literatura moderna chinesa,
chamado como “pai da literatura moderna”, publicou esta obra seminal um
século atrás. Essa coleção de escritos revolucionários desafiou as normas
tradicionais da sociedade chinesa e participou como personagem destacado
nesse processo que ficou conhecido como o “despertar nacional”. Assim como
nós hoje, acadêmicos, literatos e/ou leitores de suas obras aqui no ocidente,
conseguimos apontar a sua relevância histórico-literária para o determinado
contexto chines, porém sua importância sobressalta-se além desse expectado.
O pano de fundo dessa publicação é essencial para entender tanto o sentidos
28
da obras tanto como suas implicações no contexto histórico, bem como, para
examinar o impacto da obra de Lu Xun na apropriação do ser moderno chines,
seja no campo literário, mas também no campo sociopolítico.
O contexto histórico da obra, para ser percebido no quadro geral do início do
século XX na China, primeiramente, devemos compreender o ambiente
sociopolítico daquele tempo. A melhor compreensão que é possível se dar é,
de que a obra cobre-se em suas entrelinhas de uma inteligibilidade acerca do
pessimismo em relação com o próprio país. Ilustrado no prefácio feito pelo
autor em dezembro de 1922, que o sagrou no ocidente com essa citação usada
ao léu: [citação caixa de ferro aqui
O país vivia uma crescente ingerência por parte das potencias estrangeiras,
onde, ao cabo dessa despactuação social houve também a queda da Dinastia
Qing pela Revolução Xinhai, iniciada com a Revolta de Wuchang, em Wuhan
(2022a, p. 62) que levou ao fim da China propriamente unificada e
propriamente dinástica, ao cabo levando-nos a República da China. Além
disso, as beligerâncias internas foram percebidas de forma perspicaz por Lu
Xun e seu afiado poder de observação e ríspido poder crítico-intelectual,
reconhecendo a urgência de uma mudança social daquele paradigma e de um
rejuvenescimento cultural, como ferramenta que paramentasse essa mudança
possível.
O impacto da obra “O Grito” dentro desse bojo de despertar da consciência
nacional – tema muito recorrente no período da Nova Cultura (ibid) -, tem nos
contos e escritos de Lu Xun uma capacidade de avivar a sociedade chinesa de
sua inércia, e ressoar profundamente em seus leitores compelindo-os a
confrontar os seus desafios presentes da árdua realidade sociopolítica que viva
a China contemporaneamente a obra. Assim como o jovem Gao Yihan alertou
a tal inércia nas páginas da xin qingnian, em fevereiro de 1916:
The deepest evil. That is inertia. Inertness is the public poison of the people of
our country. That is, the public enemy of our people. Our surrender to this
enemy is far and wide. Nothing else is the poison of inertness. For thousands of
years, this public enemy cannot be overcome. Now my age will be wiped
out. Don't be afraid. (Gao, 1916)
Os próprios escritos de Lu Xun fornecem valiosos dados sobre o contexto
histórico destacado. Em particular suas tidas como obra autobiográficas, como
"Diário de um louco" que é narrada a partir da primeira pessoa e faz com que
se lançam luzes sobre o ambiente sociopolítico opressivo e o impacto das
influências ocidentais na sociedade chinesa da época. Seus temas e o estilo
literário empregados na obra "O Grito" incorpora vários temas centrais que se
repetem ao longo da obra de Lu Xun. As histórias exploram o lado obscuro da
sociedade, dando voz sobre a pobreza, a corrupção e os efeitos
desumanizadores da tradição milenar chinesa.
29
O estilo de escrita de Lu Xun, caracterizado por descrições vívidas, imagens
pungentes e sátiras mórbidas da realidade, cativou os leitores e deixou uma
marca indelével na literatura chinesa moderna e contemporânea. Postulante a
servir como marco inaugural também de um novo período para produção de
wénxué 文学, ou, literatura em chinês, tradição milenar presente no país nas
distintas formas de prosa, tratados políticos, compilações, traduções e relatos
de emissários estrangeiros por milênios.
Trabalhos acadêmicos sobre o estilo de escrita e da exploração temática que
Lu Xun faz em suas obras fornecem referências de valiosas explicações, como
na obra " Narrative Modes in Lu Xun’s Short Stories " de Tan Junqiang (2016) e
"Lu Xun and His Legacy" de Leo Ou-fan Lee (1985) mergulham nos aspectos
estilísticos e especificações temáticas que circundam as obras de Lu Xun.
Como também, pesquisadores analisam o impacto da obra na sociedade
chinesa a época, como "Lu Xun: A Revolution in Writing" (2013) de Gloria
Davies nos oferece uma abordagem da capacidade transformativa que seus
escritos detinham.
Como dito na introdução, o reconhecimento que não só essa obra tem mesmo
no ocidente, hoje, se destaca chegando em língua portuguesa portanto salienta
que seja um destaque global que a literatura de Lu Xun pode conquistar. Esse
significado que o “O Grito” trouxe foi além das fronteiras chinesas, como dito,
alçando além de figura de extrema relevância nacional, pondo-o no hall de
grandes escritores internacionais – pois certamente, Lu Xun rompeu –
escrevendo - todas as barreiras em quaisquer parâmetros. Servindo-o assim de
uma ponte para o intercambio de culturas num plano de uma sociedade global
mais harmoniosa e multipolar. Trabalhos como "Lu Xun's Revolution: Writing in
a Time of Violence" de Gloria Davies (ibid) e de Kowallis (2006), destacam o
reconhecimento global e os impactos internacionais da sua obra.
Encaminhamentos finais
Ainda sobre essa relevância duradoura de Lu Xun nos reflexos da sociedade
contemporânea, pois, os temas tratados na obra “O Grito” continuam
relevantes e atuais. A crítica penetrante do poder das estruturas, da injustiça
social, e a luta pela individualidade numa sociedade massificada. Onde, de
forma populacional densa desde tempos pregressos e massificada pela
harmonia celeste, a herança da dita tradição chinesa seja o alvo de todos os
canhões apontados por Lu Xun. Por isso, seus trabalhos continuam
ressonantes no público contemporâneo e através da sua crítica altiva e
narrativa a altura tão poderosa, esta obra seminal nos lembra do poder
duradouro da literatura em afeiçoar o mundo ao redor de nós.
O próprio nome “O Grito” é simbólico, representando o chamado de Lu Xun
para inspirar jovens progressistas durante o Movimento Quatro de Maio. A
coleção mantém as características de um escritor quebrando o silêncio da
época para se expressar e, não só, coroando uma geração de jovens
intelectuais com uma obra escrita aos soslaio dos eventos que ocorriam na
30
vida político-social do país. Como também, cristaliza esse movimento com uma
obra-prima literária a brindar tais esforços juvenis.
Essa sua inspiração para as gerações futuras já estava contida nos escritos,
pois o espírito crítico e inflexivelmente reflexivo de Lu Xun serviu e serve para
as gerações futuras. À medida que tanto o mundo globalizado – globalização,
do ponto de vista de História Global, encarado por Sachsenmaier (2012) enfrenta novos desafios, seus trabalhos nos lembram da importância do
espírito crítico, da empatia e do cometimento pela luta do progresso social.
Portanto, o centenário da obra é uma ocasião que nos convida a celebração,
mas antes de tudo, a refletir acerca das obras-primas literárias que Lu Xun
produziu, em especial, esta que tanto se relaciona com seu espaço-tempo
vivido. Um marco, definitivamente, dentro da literatura contemporânea da
China e sagra o movimento sociopolítico literário a qual fazia parte.
Referências
Luiz Gabriel Ribeiro Locks. Lic. em História pela Universidade do Estado de
Santa Catarina e realiza estudos a nível de mestrado na Universidade Federal
do Paraná dentro das áreas de: história moderna e contemporânea da China,
acerca de movimentos modernizantes chineses e a fundação e
desenvolvimento inicial do Partido Comunista Chinês, utilizando-se da
metodologia de investigação sobre impressos no século XX. Membro do Grupo
de Estudos sobre China do Grupo de Pesquisa em Ásia, América Latina e
Caribe (ASIALAC), do Instituto de Relações Internacionais da Universidade de
Brasília
(IREL-UnB).
Bolsista
do
Fumdes-SED-SC.
e-mail:
[email protected]. https://lattes.cnpq.br/7596722949537188
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Acesso em: 20 jul. 2023.
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32
A TRAGÉDIA DE YU XUANJI: PERSEGUIDA POR SER UMA
MULHER LIVRE, por Marcela Langer e Otávio Luiz Vieira Pinto
Introdução
Perseguida pela sua reputação mesmo após a morte, a poetisa chinesa da
Dinastia Tang [618-907 E.C.] Yu Xuanji [843-868] teve uma vida curta, de
aproximadamente 25 anos, marcada por sucessivas difamações de uma
sociedade que não a aceitava. Tida como prostituta e cortesã, Yu foi plebeia,
esposa e sacerdotisa daoísta, mas desempenhou uma constante função ao
longo da vida, a de poeta. Por ter sido alvo de críticas duras por estudiosos
homens da época, sua escrita brilhante foi posta em segundo plano, deixandoa ser ofuscada pelos escândalos da sua vida pessoal.
Desse modo, o objetivo do artigo é elucidar como Yu Xuanji foi vítima de uma
ótica negativa, perpetuada em grande parte pelo olhar masculino, impedindo
que sua obra tenha sido reconhecida enquanto um importante ponto de
inflexão na poesia chinesa. Além disso, também se pretende, a partir do
trabalho de autoras que vem realizando o processo de ressignificar o legado de
Yu, pautar a vida da poeta a partir dos seus próprios poemas, e questionar
como sua obra era lida pelas mulheres de sua época, perguntando se a poeta
seria uma figura de admiração ou um mal exemplo. Tido como a tragédia de
Yu, o ponto central do trabalho é elucidar como a poeta foi perseguida em vida
e após a morte, ao passo que tentava encontrar equilíbrio, amor verdadeiro e
liberdade a partir da sua escrita.
Minha reputação me precede? Yu Xuanji a partir do olhar masculino do
Tang
Condenada à morte após ter sido considerada culpada por ter assassinado a
própria serviçal, Yu Xuanji assumiu diversos papéis ao longo da vida, seja a de
filha de uma família plebeia, a segunda esposa de um Oficial do Estado e
sacerdotisa daoísta, mas o principal papel que desempenhou foi o de poeta. Há
registro de cerca de cinquenta poemas de Yu, o que a torna uma das primeiras
mulheres a serem escritoras na China que detém uma obra tão extensa (Jia,
2016: 25). Desse modo, se demonstra como ao longo de todas as fases de
vida, Yu permaneceu escrevendo, justificando afirmar que a poesia foi sua
maior companhia. Em seu trabalho, pode ser destacado poemas em cinco
categorias: amor, questões sociais da sua época, daoísmo, viagens e
autocontemplação [Liu, 2011, 29].
Enquanto esteve viva e mesmo após a morte, Yu Xuanji foi alvo de críticas
negativas, com estudiosos inserindo novas narrativas em torno da sua vida, a
chamando de cortesã e reprovando seus poemas de amor, os taxando de
licenciosos. Dessa forma, a poesia de Yu acabou sendo depreciada por uma
visão moral equivocada, que não correspondia com a vida da poeta. A
33
realidade é que Yu foi uma ilustre sacerdotisa daoísta que optou por uma vida
diferente, muito distinta da maioria das mulheres que viveram na mesma época
[Jia, 2016: 27]. Dessa forma, optar por reconhecer a sua obra como sua
biografia mais sincera é a opção mais sensata, já que parte de um princípio de
acreditar no caráter e nas escolhas de vida da poeta a partir das suas próprias
palavras, entrando de acordo com a observação de Suzanne Cahill, que se
queremos saber alguma coisa sobre Yu, sejam os seus pensamentos ou suas
conquistas, é preciso estudar o que ela de fato escreveu, no contexto em que
ela estava inserida [Liu, 2011: 53].
Em concordância com a autora Yang Liu, expõe-se a importância de entender
as mulheres daoístas enquanto figuras históricas, ao invés de entidades
míticas, partindo do princípio de que todas possuíam um talento extraordinário
para a poesia, o que levou alguns estudiosos homens a ignorarem suas
diferentes realidades, as assumindo como prostitutas. No caso de Yu Xuanji,
Liu insere que a principal fonte acerca da vida da poeta veio do Sānshuǐ Xiǎodú
(三水小牘), Breves e pequenas anotações de Sanshui, escrito por Huang-fu
Mei, contemporâneo de Yu. Dos três volumes que Huang-fu escreveu, um
acabou se perdendo, com outro escritor, Miu Quanshun, que tentou reorganizar
os capítulos perdidos, encontrados desta vez na obra Xù tán zhù (續談助), do
Taiping Guangji. Enquanto Miu descreveu Yu como uma “garota de uma casa
de prazer”, Guangji a definiu como “garota de uma casa que fica numa
esquina”, servindo de exemplo para elucidar como a origem da poeta provoca
dúvidas até os dias de hoje. [Liu, 2011: 20].
Ainda de acordo com Liu, mesmo Sānshuǐ Xiǎodú sendo uma obra da sua
época, que agrupa um conjunto de fofocas e lendas que circulavam na
sociedade do período, e sua autenticidade seja bastante questionável, é o
primeiro livro que descreve em detalhes sobre Yu Xuanji, incluindo informações
sobre sua origem, seus pais, sua identidade daoísta, versos de seus poemas e
informações de sua morte. Dessa forma, tendo em vista o grande número de
leitores que Huang-fu conquistou não apenas no seu tempo, mas também na
posterioridade, ele foi um dos grandes responsáveis por divulgar e perpetuar a
má fama de Yu.
Além dele, Sun Guangxiang, outro famoso articulador do Período das Cinco
Dinastias [907-960], expressou sua opinião desfavorável em relação à Yu
Xuanji no livro Běimèng suǒyán (北夢瑣言), Histórias triviais de Sonhos no
Norte, que conta com notas biográficas não autorizadas. Segundo Liu, Sun
descreveu de forma breve acerca da vida de Yu, descrevendo a poeta como
alguém que, pela sua natureza, se entregava ao prazer e vivia como uma
prostituta. Por outro lado, num parecer mais favorável, outro estudioso, Xin
Wenfang, descreveu Yu de forma elogiosa, afirmando que, por meio de seus
versos, se podia perceber sua postura ambiciosa, e que se ela fosse um
homem, com certeza seu talento seria muito apreciado [Liu, 2011: 27].
A mulher no Período Tang: obediência e nunca suficiente sozinha
34
Para entender um pouco melhor o contexto em que Yu Xuanji viveu, e para
compreender o motivo dos seus poemas serem tão significativos e singulares
para a sociedade da época, partimos de uma contextualização sobre como era
a vivência de uma mulher ao longo da Dinastia Tang. Num primeiro momento,
por meio da obra O Livro de Artigos e Explicação de Palavras, expõe-se que a
palavra ‘mulher’ no vocabulário chinês deriva da palavra ‘submissão’,
apresentando portanto a perspectiva de subordinação que foi perpetuada e
internalizada entre as mulheres da China. Além disso, a sua conduta moral era
regida a partir das chamadas Três Obediências: “O pai é o deus aos olhos do
filho, assim é o marido aos olhos da esposa”; “Uma mulher trata seu pai como
um deus quando solteira e trata seu marido como um deus quando casada” e
“Seja obediente a seu pai antes do casamento, seu marido depois do
casamento e seu filho quando o marido morrer” [LEE, 2006: 346].
Desse modo, evidencia-se como na sociedade chinesa a mulher era
normalmente associada à figura masculina desde o momento que nasce até se
tornar adulta, seja por meio do pai, do futuro marido e do filho que ela viria ter.
Assim, elucida-se a forma como Yu Xuanji era tida dentro da sociedade
chinesa, enquanto uma mulher que saiu de casa cedo, viveu de forma
independente, boa parte dela sozinha, que não teve um marido da forma
convencional e que também não se tornou mãe. E se mesmo que as mulheres
ao longo da Dinastia Tang conseguiram maior liberdade social em suas
atividades quando em comparação a outros períodos da história chinesa, o
dever de obediência e castidade que elas deveriam assumir permaneceu,
reforçados por meio de guias e manuais de conduta, como é o caso do livro Nǚ
lúnyǔ (女论语), ”Analectas femininas”, de Song Ruoqian e Song Ruozhao [Lee,
2006: 347-351].
Numa sociedade onde a mulher era criada para casar e se tornar mãe, desde a
infância se recebia a preparação, seja por meio de aulas com tutoras ou com
suas próprias mães, que ensinavam afazeres domésticos, como cozinhar, e
alguns conhecimentos básicos de leitura, escrita e matemática. Assim, mesmo
as mulheres de camadas mais simples, como cortesãs, prostitutas e escravas,
conseguiam redigir cartas e escrever poemas. Porém, não possuíam escolas
próprias, como as que os meninos tinham, além do impedimento de realizarem
os exames nacionais para o serviço público, que só homens podiam participar
[Hinsch, 2020: 91-93]. Entre as mulheres, o estrato que mais viajou ao longo do
período Tang foram as sacerdotisas daoístas, que possuíam maior posição
social que as mulheres comuns. Por meio do daoísmo, as sacerdotisas não
estavam presas às obrigações de uma mulher média da sociedade chinesa.
Em sua maioria, elas eram intelectuais, e possuíam maior tempo livre para ler,
escrever, viajar e cultivar relações sociais com colegas letrados. Dentre outros
motivos, um dos principais que levou diversas mulheres a se tornarem
sacerdotisas foi o desprendimento das obrigações que uma mulher comum se
sentia pressionada a cumprir na China [Fan; Wang, 2021: 7].
Com isso, nota-se como se tornar sacerdotisa daoísta ajudou Yu Xuanji a
encontrar um modo de justificar seu modo de viver, com liberdade e
35
independência, podendo focar na sua escrita por meio da poesia. É importante
destacar que Yu como daoísta foi sua última fase antes de falecer, e essa
decisão veio após ter sido abandonada pelo seu marido, Li Yi. A partir da
leitura dos seus poemas, percebe-se como Yu foi mudando de opinião ao longo
do tempo, seja sobre o amor ou sobre si mesma [Liu, 2011: 29].
Poemas de Yu Xuanji: amor, daoísmo e liberdade
A partir do exposto, pauta-se na introdução aos poemas de Yu Xuanji com o
intuito de conhecê-la a partir de suas próprias palavras, com o entendimento de
que só assim se faz capaz um estudo adequado e digno em relação à sua vida,
e a sua obra. Por isso, ao invés de uma análise profunda em relação à métricas
e estrutura dos versos, serão dissecados a mensagem e o significado de
alguns poemas, enquadrando-os na conjuntura da vida de Yu no momento em
que eles foram escritos, que se acredita melhor representar a sua inteligência,
a sua forma de enxergar o mundo, o amor, e a si mesma.
A autora Yang Liu expressa que os poemas de amor de Yu Xuanji apresentam
uma variedade de emoções e experiências, todos demonstrando sua
inteligência, independência e mentalidade forte. Em relação à Saudação ao
cavalheiro Li Jinren [Portugal; Xiao, 2011: 105], Yu narra de forma alegre um
clima de festa e, por meio de associações com lendas chinesas sobre a sorte
no amor, descreve com alegria a chegada de um visitante, dando a entender
ser sobre um amante com quem ela estaria se relacionando. Para as
conjunturas da época, evidentemente isso estava fora do que era considerado
adequado. A estudiosa Josephine Chiu-Duke destaca que ao passo que o
objetivo geral da educação para meninas na sociedade chinesa era de que elas
aprendessem a ser gentis, submissas e castas, Yu era uma poeta com
coragem e talento que desafiava as normas e escrevia poemas para todas as
ocasiões, e ainda que muitos deles seriam para seu próprio entretenimento, ela
questionava a dinâmica de poder entre a ética e as tradições para uma mulher
da sua época [Liu, 2011: 39-40].
No poema A uma garota do bairro isso se torna evidente, se tornando um dos
seus trabalhos que mais gerou repercussão. Nele, Yu descreve um dia de
primavera, menciona sobre se maquiar e achar o amante ideal, ainda que seja
difícil. Suas lágrimas são ocultadas em meio às flores primaveris, e declara que
se há a possibilidade de encontrar um homem elegante e de forte presença,
não vale a pena chorar por um rapaz raso, ainda que ele seja bonito [Portugal;
Xiao, 2011: 45]. Aqui, Yang Liu destaca que o modo como a poeta escolhe
abordar a temática do amor é muito distinta e não convencional em
comparação às outras mulheres da sociedade chinesa. De acordo com a
autora, Huang Zhouxing comparou Yu enquanto uma professora que ensinava
um macaco a escalar uma árvore, induzindo as pessoas a quebrarem as
regras. Segundo Liu, além de Huang comparar mulheres à macacos, numa
evidente conotação pejorativa, a expressão “ensinar macacos a subir em
árvores” no vocabulário chinês geralmente implica em ensinar algo errado para
alguém que tem potencial para o mal, tal qual macacos que possuem uma
inclinação natural para subir em árvores [Liu, 2011: 43-46].
36
Em um dos meus poemas preferidos, Vendendo peônias murchas, Yu escolhe
trabalhar com uma das flores mais famosas na escrita chinesa, porém
adicionando seu próprio toque especial ao se comparar com sua versão seca.
Nele, a poeta fantasia sobre um dia morar num nobre jardim, no qual os
homens iriam enfim perceber que se arrependeram por tê-la rejeitado. Na
interpretação de Yang Liu, Yu teria acreditado enquanto jovem que pelo seu
talento e beleza ela iria acabar atraindo um homem extraordinário. Agora mais
velha, a poeta percebe que isso não aconteceu [Liu, 2011: 70-71]. Em um dos
versos, Yu descreve: “Pétalas rubras, só crescessem em palácios” [Portugal;
Xiao, 2011: 35], revelando o modo como a poeta se considerava valiosa e rara.
No que condiz a sua vida enquanto monja daoísta, escolhe-se o poema
Vivendo nas montanhas no verão, no qual, de acordo com Liu, Yu narra sobre
não ter preocupações financeiras, e sua vida parece estar regada aos
privilégios e prazeres, por meio de vinho, vestidos de seda e barcos pintados.
No primeiro verso, Yu expressa: “Aqui, onde habitam os deuses, fiz minha
morada” [Portugal; Xiao, 2011: 103]. Além disso, a rotina da poeta parece
consistir em leituras, escrita e viagens de barco, apresentando um cotidiano
bastante pacífico.
Por último, mas longe de ser menos importante, cita-se talvez o poema mais
famoso de Yu, Visitando o pavilhão sul do Templo Chongzhen - onde são
divulgados os resultados dos exames para o serviço público. De acordo com
Yang Liu, esse pode ser considerado um dos primeiros exemplos de uma
mulher chinesa reivindicando pelos mesmos direitos que os homens. Ao longo
dos versos, Yu percebe que o motivo dela não poder participar dos exames
nacionais para se tornar funcionária pública é por conta do seu gênero,
culpando o robe de seda que está usando: “Pena: os robes em seda me
cobrem a poesia” [Portugal; Xiao, 2011: 65]. De acordo com a autora Liu, é a
roupa que está usando que impede Yu de atingir o sucesso que ela poderia ter
potencial para alcançar [Liu, 2011: 73].
A tragédia de Yu e seu reflexo nas mulheres do Tang
A partir dos poemas de Yu Xuanji, percebe-se como os temas constantes de
sua escrita centralizaram nas temáticas do amor, ainda que não pelo
casamento convencional, bem como de saber seu próprio valor, em uma época
em que as mulheres não eram incentivadas a terem autoestima estando
sozinhas, e se indagar por qual motivo elas não poderiam realizar o exame
nacional chinês. Segundo a autora Jinhua Jia, Yu representa a paixão
expressiva de uma mulher. Sua prosa primorosa e emoções reais
ultrapassaram o que a maioria dos trabalhos escritos por homens pretendiam
ao descrever os sentimentos das mulheres. Enquanto eles escreviam poemas
utilizando a voz feminina, Yu tomava para si suas próprias palavras sobre amor
e desejo, o que a autora descreve como extraordinário. Além disso, Yu usava
metáforas, símbolos, alusões e imagens do cotidiano de um modo inventivo, o
que tornava seus poemas harmoniosos e únicos [Jia, 2016: p. 48].
37
Já a partir dos estudos de Yang Liu, a autora baseia seus apontamentos a
partir de Beata Grant, no qual apresenta que o que é escrito sobre mulheres e
gênero em textos, sejam eles de cunho religioso, literário ou histórico, se trata
de um reflexo da prática social daquela época, principalmente pelo fato de que
são majoritariamente textos escritos, editados e compilados por homens, e
estes, por sua vez, de forma consciente ou não, partem de uma perspectiva
androcêntrica. Segundo Liu, a verdadeira tragédia de Yu não é o fato de que
ela foi abandonada ao longo da vida, seja pelo marido, ou pelos amantes, mas
que ela foi frequentemente censurada por homens escritores, seja estando viva
ou mesmo após a sua morte. De acordo com a autora, Yu não poderia ser
aceita por críticos confucionistas, e que a desaprovação em relação a ela era
tão generalizada que o seu nome era tido como um sinônimo para prostituta
[Liu, 2011: 53].
Assim, evidencia-se o nível que a má-fama da poeta atingiu entre o círculo
literário da sua época, propiciando a difamação da sua escrita, impedindo de
ter maiores êxitos na posterioridade do mundo chinês. Ao passo que Yu possui
uma obra extensa de poemas que expõem a vivência de uma mulher chinesa
ao longo da Dinastia Tang, questiona-se até que ponto ela retrata a experiência
de outras mulheres nesse período. Por sua vida distinta, sua independência e
reflexões acerca do amor, se pergunta se outras mulheres encontravam em Yu
uma figura de admiração ou de rebeldia. Em todo caso, se sua obra vive até os
dias de hoje, aponta-se que o motivo talvez não seja apenas pela sua má
repercussão, mas também pela possibilidade de uma admiração secreta e
silenciosa de uma minoria que enxergava em Yu uma figura precursora, de
alguém que ilustrava as possibilidades que cabiam em uma mulher.
Conclusão
Como foi exposto, percebeu-se como os poemas de Yu Xuanji partiam de uma
narrativa de uma mulher confiante, que vivia sob suas próprias condutas e
dificilmente deixava de se expressar por medo de constrangimentos morais que
poderiam prejudicá-la. Com temas fortes envolvendo o amor e reflexões de si
mesma e do daoísmo, Yu foi constantemente atacada pelo seu modo de viver,
não apenas enquanto estava viva, mas também após a sua morte.
Assim, o que foi realizado neste trabalho é uma tentativa de problematizar a
má-reputação que Yu carregou, viva ou não, que impediu que os seus poemas
fossem completamente apreciados e divulgados, sendo essa a sua verdadeira
e maior tragédia. Por meio do controle da sua própria narrativa, podemos
conhecer e admirar uma poeta pelas suas próprias palavras, que refletiam as
angústias e os desejos de uma mulher na Dinastia Tang.
Referências
Marcela Langer é graduanda em História pela Universidade Federal do Paraná,
pesquisadora do programa de Iniciação Científica voltada aos estudos de
História da China Antiga.
38
Dr. Otávio Luiz Vieira Pinto é professor de História da África pela Universidade
Federal do Paraná.
Fan, X; Wang, J; Xiao, H. Women’s travel in the Tang Dynasty: Gendered
identity in a hierarchical society. Annals of Tourism Research, v. 89, Julho de
2021, p. 1-12. Disponível em:
<https://www.sciencedirect.com/science/article/abs/pii/S0160738321001092>
Acessado em: 29 jul. 2023.
Hinsch, B. Women in Tang China. Reino Unido: Rowman & Littlefield, 2020.
Jia, Jinhua. Unsold Peony: The Life and Poetry of Daoist Priestess-Poet Yu
Xuanji of Tang China. Project Muse, Tulsa Studies in Women’s Literature, vol.
35, n. 1, 2016, p. 25-57. Disponível em: <https://muse.jhu.edu/article/621722>
Acessado em: 29 jul. 2023.
Lee, W. Y. Women 's education in traditional and modern China. Women 's
History Review, v.4, 1995 (publicado online em 2006), p. 345-367. Dispoível
em: <https://www.tandfonline.com/doi/abs/10.1080/09612029500200092>
Acessado em: 29 jul. 2023.
Liu, Yang. Imagery of Female Daoists in Tang and Song Poetry. 2011. Tese
(doutorado) - Curso de Filosofia, The University of British Columbia, Vancouver,
Abril 2011.
Portugal, P. R; Xiao, T. Poesia completa de Yu Xuanji. São Paulo: Editora
Unesp, 2011.
39
A POLÍTICA CHINESA SOBRE A EMIGRAÇÃO COM
CONTRATO (1845-1859): AS PRIMEIRAS DECISÕES DAS
AUTORIDADES DO GUANGDONG E OS PARECERES DO
IMPERADOR, por Maria Teresa Lopes da Silva
A dinastia Ming proibiu a emigração sobretudo para evitar que os defensores e
os contestatários do poder imperial contactassem entre si. Receavam as
autoridades de Pequim que os emigrantes se tornassem potenciais recrutas do
exército inimigo e que, desta forma, a integridade territorial e o poder do
imperador fossem ameaçados. Pretendiam ainda os mentores desta lei evitar
que as famílias ancestrais abandonassem a China e se afastassem dos
túmulos dos seus antepassados.
No entanto, esta proibição só passou a ser fiscalizada com maior rigor desde a
segunda metade do século XVII, quando a dinastia Ch’ing chegou ao poder. Se
excetuarmos o Sudeste da China, esta política do governo chinês impediu a
emigração em larga escala até à primeira guerra do ópio (1839-1842), mas a
abertura dos portos chineses e a passagem de Hong Kong para a soberania
inglesa veio alterar a situação. Com efeito, a partir desta altura verificou-se um
fluxo crescente de emigração livre ou voluntária que, a partir de Hong Kong, se
dirigiu principalmente para a Califórnia e para a Austrália. Desde o início da
segunda metade do século XIX, o território de Macau começou também a ser
usado como plataforma de apoio à emigração contratada ou forçada, que teve
como destinos principais Cuba e o Peru.
A emigração com contrato durou cerca de trina anos e, neste âmbito, a política
das autoridades chinesas passou por duas fases distintas. A primeira decorreu
entre 1845 e 1859 e a segunda entre 1860 e 1874. Na primeira fase foram
escassos os relatos que chegaram ao imperador sobre o volume e as
características desta emigração [Irick, 1982, p.391]. No segundo período, entre
1860 e 1874, que não iremos abordar neste artigo, o governo de Pequim foi
obrigado pelas potências ocidentais a reconhecer o direito à emigração, a
distinguir a emigração livre da contratada, e a regulamentar esta última até à
sua extinção, no ano de 1874.
Tanto na primeira como na segunda fases, o controlo da proibição de emigrar
ficou a cargo dos funcionários locais. Estes, por seu lado, estavam muitas
vezes divididos entre o cumprimento das ordens imperiais e o risco de se
envolverem em problemas com as empresas de emigração, controladas por
estrangeiros, situação que poderia conduzir a novas guerras. Perante este
dilema, os referidos funcionários optaram por não colocar inicialmente entraves
à emigração, desde que não fosse ameaçada a ordem pública. Quando
surgiam conflitos entre os chineses e os ocidentais, eles preferiam sempre
soluções de compromisso e, quando os problemas assumiam maiores
40
proporções, resolviam-nos com a ajuda dos seus superiores hierárquicos mais
próximos, evitando assim dar conhecimento ao imperador.
Por outro lado, os funcionários locais, de diversas graduações, retiravam
algumas vantagens deste negócio. Entre estas merece particular destaque a
diminuição do excedente populacional, o afastamento de muitos malfeitores e
ainda as compensações monetárias para o seu próprio usufruto, que lhes eram
oferecidas pelas empresas de emigração.
Por todos estes motivos, nos primeiros anos os mandarins não fecharam os
estabelecimentos de emigração, também designados por barracões, nem
prenderam nenhum comerciante de cules. A sua ação limitou-se a proibir a
afixação de cartazes contra os ocidentais, a acalmar a indignação pública e a
prevenir tumultos em larga escala, com receio de que os movimentos contra os
raptos de chineses se transformassem em revoltas contra os ocidentais.
As decisões dos mandarins foram muitas vezes desrespeitadas mas, com
exceção da punição de um conhecido corretor de cules, no ano de 1852, as
suas deliberações visavam essencialmente pacificar as partes em confronto.
Nesta época, o desejo de proibir definitivamente a emigração foi apenas
equacionado por um magistrado da Marinha, que incentivou as autoridades
britânicas a agirem neste sentido. Este magistrado receava que as vidas e as
propriedades britânicas corressem perigo e, por isso, solicitou-lhes que
punissem os seus concidadãos, que durante os tumultos mataram quatro
chineses. Desconhecem-se as instruções que os governantes de Cantão
receberam dos seus superiores hierárquicos sobre este assunto. Sabe-se, no
entanto, que estas informações nunca foram comunicadas à Corte [ChingHwang, 1985, pp.74-76].
Apenas no início de 1855 o governador do Guangdong divulgou uma
proclamação em que ameaçava os sequestradores. Nesse texto, Yeh Mingch’en dava instruções às autoridades locais para perseguirem e prenderem os
chineses envolvidos neste comércio, prometendo-lhes em troca recompensas.
No entanto, é provável que esta disposição tenha surtido pouco efeito porque
um ano depois o mesmo governador mandou publicar outra ordem no mesmo
sentido. Aliás, Yeh Ming-ch’en tinha plena consciência de que esta proibição
seria extremamente difícil de aplicar porque muitas destas operações tinham
lugar fora das suas áreas de controlo.
O fracasso destas medidas provocou o crescimento contínuo do número de
jovens chineses nos barracões de Macau e o aumento da hostilidade da
população contra este tráfico e contra os estrangeiros. A prová-lo está o facto
de em 1856 terem aparecido proclamações em Hong Kong que, com o objetivo
de alertarem os jovens e as suas famílias, descreviam a forma como as vítimas
eram raptadas e vendidas, assim como os maus-tratos que sofriam nos países
de destino [National Archives, FO 97/102A, fl.88-88v].
41
Numa tentativa de legalizar e introduzir alguma ordem neste negócio, que
afetava a sua imagem, o governo de Londres autorizou em 1854 Lord
Clarendon, secretário dos negócios estrangeiros, a regulamentar dentro do
possível a emigração chinesa. No entanto, as várias tentativas deste político
britânico para conseguir uma entrevista com Yeh Ming-ch’en, governador-geral
do Guangdong e Quangsi, não foram bem sucedidas, e o mesmo aconteceu
com as suas diligências para ir a Xangai ou ao Peiho fazer a revisão do tratado
sino-britânico. A tentativa seguinte que a Grã-Bretanha desencadeou para
conquistar o direito de emigrar para a população chinesa foi feita por Lord
Elguin, em 1857. Todavia, as relações tensas que existiam nesta altura entre a
China e o Ocidente acabaram por relegar este assunto para um plano
secundário.
Durante quase uma década as autoridades do Sul da China não relataram à
Corte o drama da emigração. Somente no ano de 1854 é que Yeh Ming-ch’en
enviou um memorial ao imperador no qual mencionava o problema do tráfico
de cules. Este assunto foi despoletado por um protesto apresentado pelo
cônsul americano, no âmbito de um motim que teve lugar a bordo de um navio
desta nacionalidade, do qual resultou o assassinato do respetivo capitão
[Ching-Hwang, 1985, p.80].
Na resposta, o imperador limitou-se a referir que tomou conhecimento da
situação, comentou-a quase com indiferença, e reafirmou que os assuntos
desta natureza eram da responsabilidade dos funcionários das províncias
[Ching-Hwang,1985, p.80]. Esta atitude do imperador pode ser facilmente
explicada, quer pelo desconhecimento da real dimensão do problema, quer
ainda pelo seu envolvimento na luta contra as sucessivas revoltas internas,
nomeadamente contra o movimento Taiping (1850-1864) e pelo novo conflito
sino-franco-britânico (1856-1860).
Enquanto isso, no Estabelecimento de Macau, sob administração portuguesa,
que escapava ao controlo das autoridades imperiais, por não existir qualquer
mandarim a residir do território desde 1849, a emigração para Cuba e para o
Peru crescia significativamente. Na cidade, os antigos armazéns do ópio
transformaram-se em depósitos de emigrantes. O governo local expediu várias
portarias avulsas e em 1856 publicou o primeiro de quatro regulamentos muito
minuciosos, destinados a organizar e a disciplinar o negócio da emigração,
mas que tiveram escassa aplicação [SILVA, Maria Teresa Lopes, «La
emigración china por el puerto de Macao hacia el Perú, 1851-1874» in Foro
Internacional sobre Confucionismo. I Simposio Internacional en Lima: diálogos
entre las civilizaciones de China y América Latina, 2018, pp.357-385].
Somente no verão de 1859 é que o imperador foi informado de que o tráfico de
cules estava a assumir grandes proporções. Esta notícia chegou à Corte após
dois tumultos que tiveram lugar em Xangai, entre julho e agosto de 1859.
Ambos os conflitos eram atos de retaliação pelo facto de os estrangeiros terem
comprado cules roubados aos engajadores chineses e pretenderem embarcálos num navio francês. Este incidente aconteceu na altura em que as
42
negociações entre as autoridades imperiais e as potências ocidentais estavam
num impasse e o comércio continuava paralisado. Estes motins foram usados
como estratégia, durante esta fase negocial, pelo enviado britânico, para
pressionar o comissário imperial Ho Kuei-ch’ing a ceder às exigências
ocidentais.
Na sequência destes incidentes, o édito imperial de 22 de agosto de 1859
deixava transparecer pela primeira vez a fúria e a preocupação do imperador
que: «in order that neither reason nor law be stretched, let orders be
immediately issued to search out the culprits who kidnapped for the barbarians
and execute them on the spot, and ascertain the people who attacked and
mistakenly wounded the barbarians, and using the precedents, punish them as
befits their crimes. Let the Governor-General order the local officials to exert all
efforts in arresting the murders. They must be arrested and prosecuted […]»
[Édito imperial de 22 de Agosto de 1859 in Hwang, 1985, p.82].
Nesta altura, o imperador desconhecia ainda as medidas que já estavam a ser
tomadas no Guangdong e não parecia revelar grande preocupação com o
tráfico, enquanto negócio de seres humanos, nem com o destino das vítimas. O
seu principal objetivo era evitar a influência negativa que esta matéria estava a
exercer nas negociações dos novos tratados com as potências ocidentais, que
ameaçavam o trono e a segurança do império.
Para solucionar este problema, o imperador ordenou ao governador-geral da
província que prendesse os traficantes e fiscalizasse com maior rigor a
proibição de emigrar. Ch’iao Sung-nien, o funcionário que foi enviado a Xangai,
colaborou com as autoridades locais na pacificação da população e ajudou a
prender, executar e expor publicamente as cabeças de quatro chineses
envolvidos no engajamento.
De seguida, o comissário imperial Ho Kuei-ch’ing mandou os seus delegados
iniciarem negociações com os representantes das autoridades britânicas para
extinguir o tráfico de cules. No entanto, o direito de extraterritorialidade, já
anteriormente concedido, não permitia às autoridades chinesas punir os
estrangeiros que participavam neste comércio. Sendo assim, a única
possibilidade que lhes restava era convencer os cônsules das várias nações a
proibirem os seus súbditos de se envolverem neste negócio, com o argumento
de que eles também poderiam ser vítimas da fúria da população chinesa. Os
delegados da França e dos Estados Unidos mostraram-se pelo menos
aparentemente recetivos a esta tese, mas a Grã-Bretanha demarcou-se dos
seus congéneres, por considerar que em Xangai os governantes chineses
incentivavam o povo a lutar contra eles.
Por estes motivos, foi apenas durante a ocupação de Cantão, que teve lugar
entre 1858 e 1861, que as potências ocidentais fizeram o primeiro grande
esforço conjunto para regulamentar a emigração chinesa. Nesta altura existia
grande alarme entre a população, havia muitos desempregados e malfeitores,
e tanto os dirigentes chineses como os ocidentais pretendiam resolver o
43
assunto. Os funcionários chineses ao nível local também estavam dispostos a
colaborar, apesar dos riscos de serem punidos por estarem a negociar com o
inimigo.
Um dos primeiros êxitos alcançados pelas tropas anglo-francesas, com reflexos
na política de emigração, foi a substituição do governador-geral do Guangdong
e Quangsi. Como vimos, este cargo estava a ser exercido por Yeh Ming-ch’en,
conhecido pelas suas posições intransigentes sobre a emigração. A chegada
ao poder de Po-kuei, mais recetivo ao diálogo, abriu novas perspetivas aos
defensores do direito de emigrar.
Todavia, foi do labor dos funcionários locais, nomeadamente de Nanhai e
Puanyu, mandarins do Guangdong, que resultou a proclamação de 6 de abril
de 1859, que esteve na origem do novo sistema de emigração. De acordo com
este diploma, passou a ser reconhecido aos chineses o direito de emigrar,
devendo os interessados ser esclarecidos acerca das condições de trabalho
antes de assinarem os respetivos contratos. Em simultâneo, foram proibidas as
operações de engajamento e o encarceramento dos chineses nos barracões. O
governador Po-kuei confirmou esta proclamação seis semanas antes da sua
morte, em maio do mesmo ano.
Após esta fase, o processo de emigração começou a ser organizado de forma
mais detalhada por Harry S. Parkes (ex cônsul britânico em Cantão) e por J.G.
Austin (agente geral da emigração britânica na Guiana inglesa) . No dia 28 de
outubro desse mesmo ano, os cinco artigos do regulamento, conhecido como
«Canton System», foram aprovados por Lao Ch’ung-kuang, o novo governadorgeral do Guangdong e Kuangsi. Este diploma previa a supervisão conjunta de
funcionários britânicos e chineses, que tinham como função analisar a
disposição dos chineses para emigrar, as características dos contratos, as
condições das casas de emigração e assegurar as viagens gratuitas às
mulheres e aos filhos dos homens que quisessem ir trabalhar para fora da
China.
A pedra basilar deste projeto assentava nas agências de emigração, que
centralizavam todo o processo, desde a afixação de cartazes, passando pela
verificação da espontaneidade da emigração, pelo cumprimento dos
regulamentos e pela procura de transporte para os emigrantes. Em suma, a
agência destinava-se a substituir os barracões, passando doravante a
emigração a ter um carácter público e legal. A inspeção destas casas estava a
cargo de funcionários chineses e de estrangeiros. A primeira licença para abrir
uma casa de emigração foi concedida a J. G. Austin, no dia 10 de novembro de
1859 [Campbell, 1971, pp.123-124].
De seguida, foram enviados agentes chineses para as áreas onde se supunha
existir maior emigração, a fim de explicarem aos líderes locais o novo processo
de recrutamento. A difusão destas notícias através dos canais oficiais conferialhes maior credibilidade junto das autoridades das províncias.
44
Dois dias após a assinatura do regulamento, Lao Ch’ung-Kuang enviou
também uma frota para o ancoradouro de Huangpu, composta por juncos de
guerra, para evitar ações concertadas entre os engajadores e os responsáveis
pelos navios estrangeiros. Na sequência destas diligências, 36 raptores de
cules foram presos, 18 decapitados, 11 severamente punidos e 41 libertados
[Campbell, 1971, pp.125]. Pretendia-se que os barracões existentes na China
fossem abertos e os cules libertados. No entanto, Lao estava consciente de
que esta regulamentação só poderia ter sucesso se fosse aplicada e fiscalizada
pelas potências ocidentais com interesses no negócio. Foi por este motivo que
o governador enviou o regulamento às autoridades francesas e americanas na
região. Todavia, este apelo de Lao Ch’ung-Kuang surtiu pouco efeito porque os
navios de cules com bandeira holandesa, americana e peruana continuaram
ancorados em Huangpu, com centenas de cules a bordo, ignorando assim as
disposições do regulamento, nomeadamente em relação à vigilância das
autoridades locais. A vistoria a bordo e o regresso a Cantão eram recusados e
a mudança de navio e a passagem por Macau emergiam cada vez mais como
a principal alternativa. Ainda assim, por determinação do governador, o
regulamento foi alargado a Swatow (Shantou), na província do Guangdong,
outro porto que também estava sob a sua jurisdição.
O chamado «Canton System» alcançou, por isso, um sucesso muito relativo. É
verdade que permitiu enviar muitos trabalhadores para as colónias britânicas.
Porém, fracassou, na sua tentativa de erradicar o tráfico de cules porque o
recurso aos engajadores e aos corretores já estava muito arreigado e também
porque o efetivo controlo deste problema devia envolver todas as partes,
incluindo os países e territórios que organizavam os contratos e que recebiam
os emigrantes, o que não aconteceu. Por outro lado, nem os funcionários
chineses nem os agentes ocidentais conseguiram exercer uma fiscalização
efetiva fora da área de Cantão. Por outro lado, Macau surgia cada vez como
um território privilegiado para o embarque de emigrantes chineses, como
referimos atrás.
A introdução deste sistema de emigração não foi do conhecimento imediato da
Corte. No entanto, Yang Jung-hsu, informador do imperador no Distrito do
Guangdong, enviou-lhe um memorial no qual referiu o envolvimento do
governador-geral neste processo [Memorial de Yang Jung-hsu in Ching-Hwang,
1985, pp.95-96]. Yang Jung-hsu não criticou abertamente Lao Ch’ung-Kuang,
mas fê-lo em relação aos restantes funcionários imperiais da província e aos
ocidentais, que acusou não só de fracassarem na prevenção do rapto dos
chineses, como até de terem criado condições para que estes se entregassem
livremente aos seus exploradores.
O conteúdo deste memorial desagradou obviamente ao imperador, pelo facto
de ele não ter sido informado das negociações, e também porque os
funcionários locais ao colaborarem neste processo violaram as leis do império.
Sendo assim, o imperador expediu um édito a acusar de malfeitores os
estrangeiros e alguns chineses de raptores de cules e ordenou uma
45
investigação às denúncias feitas contra os mandarins do Guangdong [Édito
imperial de 22 de Abril de 1860, in Yen Ching-Hwang, 1985, p.9].
Esta tarefa ficou a cargo de Ch’i-ling, o novo governador do Guangdong, que
em outubro de 1859 sucedeu a Po-kuei. O memorial que resultou da
investigação realizada foi enviado ao imperador em agosto de 1860. Nesse
texto, Ch’i-ling confirmou os dados recolhidos por Yang Jung-hsu, mas não
julgou o sistema. Talvez por saber que o imperador tinha especial confiança em
Lao Ch’ung-Kuang, o informador limitou-se a referir que o governador-geral
cooperou com os estrangeiros, mas não o acusou de traição, nem especificou
em que medida os restantes funcionários imperiais estavam envolvidos no
assunto [Ching-Hwang, 1985, p.98]. Em suma, Ch’i-ling procurou acalmar a ira
do imperador, que nesta altura estava mais preocupado em fugir de Pequim
para escapar aos ataques das forças aliadas. Por todas estas razões, a reação
do imperador ao regulamento de Cantão foi irrelevante.
Doravante a emigração chinesa com contrato continuou a fazer-se a partir de
vários portos do sul e sudeste da China até 1874, num contexto que não
iremos abordar neste artigo. Porém, Macau assumiu progressivamente o papel
de grande plataforma emigratória, sobretudo para Cuba e para o Peru, para
onde partiram mais de duzentos mil chineses, pelo facto de o Estabelecimento
escapar ao controlo das autoridades chinesas.
Biografia
Maria Teresa Lopes da Silva é professora, mestre em História do séc. XIX pela
FCSH da Universidade Nova de Lisboa, com uma tese sobre o tema «A
Transição de Macau para a Modernidade, 1841-1853. Ferreira do Amaral e a
construção da soberania portuguesa». Doutoranda em História na Faculdade
de Letras da Universidade de Lisboa, prepara uma dissertação sobre a
emigração chinesa através de Macau para Cuba e Peru, 1851-1874. Participou
em vários congressos e tem várias publicações sobre Macau no século XIX. Email:
[email protected]
Biblografia
Fontes:
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Direito, Bispos, Junta da Fazenda, etc.)
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48
CHINA T’ANG: COSMOPOLITA E ETNOCÊNTRICA,
por Matheus Mazurkievicz Sekikawa
Que a dinastia T’ang foi uma “Era de Ouro” é uma noção compartilhada tanto
por chineses quanto por sinologistas ocidentais. O missionário Charles Gutzlaff
relata durante sua missão à China em 1833 que das dinastias após o século III
EC: “The most celebrated among them doubtless is that of the Tang, which
ruled from 618 to 906. The chinese to the present time occasionaly style
themselves Tang jin, “men of Tang” [GUTZLAFF, 1833, p.133]. Max Weber
ecoa este mesmo sentimento ao escrever no século XX: “Even today the T'ang
dynasty irradiates the glory of having been the actual creator of China's
greatness and culture” [WEBER, 1951, p.117].
Esta percepção sobre este período dinástico impulsionou um topos da
historiografia sobre China, a do “cosmopolitismo T’ang”. Um livro específico
pode ser apontado como responsável pela popularização desta noção, The
Golden Peaches of Samarkand: A Study of T’ang Exotics. Escrito pelo
sinologista Edward Schafer em 1963, foi uma obra fundamental ao resgatar um
anedotário ao redor dos itens estrangeiros e a sua boa recepção pela
sociedade chinesa da época, a fim de sustentar a tese que o gosto pelo exótico
foi característico do período T’ang como um todo e está presente na arte, no
cotidiano, nos costumes, na dieta, na presença estrangeira em cidades como
Chang’an e Guangzhou [SCHAFER, 1963, pp.7-39]. O impacto do livro é
sentido em toda a sinologia subsequente, basta ler qualquer seção de
referência bibliográfica de texto publicado sobre o período. Onde a influência
de Schafer é mais clara é nos manuais de história da China. Alguns
argumentos são comuns neles, a caracterização do período T’ang como afeita
pelo exótico, receptiva de estrangeiros em território chinês, em especial
mercadores e elevada pelas trocas culturais entre chineses e estrangeiros, em
especial o budismo. Um exemplo que aponte estes três elementos é útil:
“During the Six Dynasties period and the early T’ang, China was pervaded by a
spirit of cultural tolerance. The "barbarian” invasions left the North wide open to
foreign influences; Buddhism was both a vehicle for and a stimulus to close
cultural contacts with distant areas; interregional trade by sea and by land was
growing far beyond anything known in Han times; and the early Tang Empire
brought the Chinese into direct contact with the great centers of civilization in
India and West Asia. Never again until the twentieth century was China to prove
so responsive to foreign influences.” [CRAIG, Albert M.; FAIRBANK, John K.;
REISCHAUER, Edwin O. East Asia: Tradition & Transformation. Boston:
Houghton Mifflin Company, 1989, pp.110-111]
A provocação do presente texto é avaliar qual o sentido e o efeito do uso de um
termo como “cosmopolitismo” para designar a totalidade de um intervalo
49
histórico. Aqui argumenta-se que um próximo passo se faz necessário, a
historização do termo e a superação dele enquanto um elogio.
O argumento a favor do cosmopolitismo do período é vastamente
documentado. Durante o período de três séculos, mais de uma centena de
monastérios budistas foram construídos em Chang’an, quantidade muito
superior aos monastérios taoístas [XIONG, 200, pp.297-320]. Guangzhou, atual
Cantão, foi um polo de comércio importante entre a China e o mundo IndoPacífico. O Período T’ang foi contemporâneo à ascensão do Islã como religião
e seu estabelecimento como instituição política a partir dos Califados. Este
processo geopolítico abriu um horizonte de possibilidades, em especial a partir
dos Abássidas e o estabelecimento da cidade de Bagdá em 762, próxima do
Golfo Pérsico e dos portos importantes de Siraf e Al-Ubullah, visto que os
persas sassânidas já a séculos eram agentes importantes do comércio, tanto
por terra quanto por mar. Nos séculos VIII e IX, o comércio marítimo entre o
Califado e a China T’ang era frequente e direto, com uma viagem de duração
estimada em seis meses e possibilitada pelos ventos de monções da região do
subcontinente indiano. Além de persas, árabes também passaram a participar
do comércio [HOURANI, 1975]. O naufrágio de Belitung, descoberto por
pescadores indonésios, de uma dhow retornando da China mostra tanto as
trocas materiais de longa distância [PINTO, 2021] quanto as possibilidades de
trocas culturais, visto que algumas cerâmicas chinesas do naufrágio parecem
utilizar técnicas de esmalte iraquiano [GEORGE, 2015, p.27]. Pratos de vidro
semelhantes à padrões islâmicos foram encontrados na China, Japão e Silla
[GEORGE, 2015, p27-28]. Isto aponta para a absorção de técnicas
estrangeiras na produção material chinesa. Estes exemplos são ínfimos em
comparação à gama extensiva de anedotas que mostram fenômenos
significativos que, agrupados, qualificam o período como cosmopolita de modo
convincente.
O conceito de cosmopolitismo, no entanto, envolve uma gama de diferentes
experiências históricas, a primeira é a sua própria etimologia. O termo foi
primeiro empregado por Diógenes de Sínope [413-323 AEC], filósofo cínico que
se declarou kosmopolitēs, um cidadão do mundo, do cosmos como sua pólis.
Esta noção foi reforçada pelos estoicos, como Zenão de Cítio [333 – 263 AEC],
que acreditavam em uma razão universal capaz de prover normas naturais de
moralidade. O termo retorna a partir do Iluminismo, quando é reconhecido no
Dictionnaire de Trévoux de 1721 e aparecerá na polêmica de Rousseau contra
o le monde com uma carga negativa, ecoando a definição do Dictionnarie de
l’Academie que o cosmopolita era um mau cidadão. A palavra foi reabilitada for
Voltaire e é positivada com a desilusão dos philosophes com a monarquia
absolutista francesa. A Encyclopédie de Diderot [1713-1784] e D’Alambert
[1717-1783] estabelece a equivalência entre o philosophe e o cosmopolite. O
responsável pelo grande tratado cosmopolita do período foi Kant com textos
como Ideia de uma história universal de um ponto de vista cosmopolita [1784],
onde o alemão busca expor o plano oculto da natureza de uma história
universal, e Paz Perpétua [1795], que propõe uma ordem geopolítica com base
na paz. É importante marcar como os dois textos se complementam para um
50
argumento do progresso natural da humanidade para uma sociedade
cosmopolita de nações. O cosmopolitismo ainda é presente no marxismo tanto
de forma negativa, a exploração burguesa é global, quanto positiva, vide o
lema “trabalhadores do mundo uni-vos”. [BEROŠ, 2016; BOBBIO, 2004;
BUSSETO, 2017]
Este breve histórico do conceito busca historicizá-lo e levantar uma primeira
suspeita. Evoca-se aqui a discussão de Dipesh Chakrabarty, historiador indiano
que contesta a universalidade da categoria histórica do “trabalho”, associada a
um tempo historicista moderno, nos termos benjaminianos de homogeneidade
e vazio, que retira a agência dos agentes sobrenaturais no contexto indiano,
asfaltando pelo silêncio histórias constituintes da modernidade capitalista
[CHAKRABARTY, 200, p.72-96]. Espera-se que uma China cosmopolita esteja
moldada às expectativas europeias de cosmopolitismo? Mesmo que seja o
caso, o termo não deve ser descartado. Deve ser localizado e historicizado
como faz Sheldon Pollock, historiador da língua sânscrita, que propõe o
conceito de cosmopolis sânscrita para descrever o fenômeno da difusão
pacífica da língua entre o subcontinente indiano e os arquipélagos do Pacífico
entre 300-1300 EC e de uma estética política neste veículo que foi o sânscrito
[POLLOCK, 1996, p.196-247]. Pollock argumenta que o conceito pode operar
como uma categoria histórica que apresenta práticas particulares e infinitos
modos de ser cosmopolita [POLLOCK et al, 2002, p.12]. O que estas leituras
apontam é para a possibilidade de um cosmopolitismo enquanto uma categoria
analítica sob a condição de uma historicização que aponte especificidades em
um universal. Com esta proposta em mente, propõe-se pensar o
cosmopolitismo associado à questão da identidade.
Cosmopolita e Etnocêntrico
A cosmologia chinesa, isto é, como os chineses apreendem e organizam o
mundo que habitam, apresenta contornos particulares de etnocentrismo. Desde
o período da Dinastia Zhou [1045-256 AEC] uma gama de conceitos, entre eles
tianxia [Tudo sob o Céu] e zhongguo [Reino do Meio] convergiram para fundar
uma disposição de mundo que colocava o Filho do Céu, o Imperador, no centro
do mundo e, em cinco círculos concêntricas do centro zonas de maior ou
menor intensidade da influência civilizatória chinesa. Nos limites deste sistema
estavam os bárbaros [MINGMING, 2012. p.345]. No período pré-Imperial [?221AEC], tinha-se o ritual como o elemento que definia a alteridade chinêsbárbaro [PINES, 2004]. A partir do reconhecimento de que quem seguia os
rituais como compilados no período Zhou era superior àqueles que não o
faziam, e da associação à cosmologia descrita acima, tem-se uma cosmologia
voltada ao etnocentrismo.
O modo que a cosmologia formulada no período Zhou é recepcionada no
período T’ang é complexa, visto que está ligada às percepções ligadas ao
próprio confucionismo, que no momento era uma de três cosmologias que
informavam as visões de mundo dos chineses, taoísmo e budismo. Nenhuma
delas era mais prestigiada que as outras. Confúcio viveu, segundo o próprio,
em um período de desintegração da integridade moral chinesa, entre os
51
períodos Primavera e Outono [770-476 AEC] e Estados Combatentes [475-221
AEC], em que se teria esquecido o legado de Zhou. Nos Analectos, Confúcio
declara que “Zhou contempla as duas dinastias. Quão exuberantes são suas
tradições escritas! Eu sigo Zhou” [CONFÚCIO, 2012, p.83] e “Transmito, mas
não crio. Confio e amo a Antiguidade. Em segredo, comparo-me a meu velho
[amigo] Peng” [CONFÚCIO, 2012, p.212]. Dentre aquelas duas outras
doutrinas, a confucionista é aquela que se associa a herança do período Zhou.
Faz-se importante esta contextualização a fim de entender a identidade no
período T’ang, visto que o Confucionismo não era a doutrina prioritária como
seria em períodos posteriores.
Marc S. Abramson, autor de Ethnic Identity in Tang China [2008], aborda a
questão da identidade étnica no período a fim de destacar o caráter multiétnico
do Império, aceitando o termo de origem grega “bárbaro” e a sua carga
negativa como apropriada para entender as relações entre a elite metropolitana
T’ang educada e o não-han, discursivamente separado e estereotipado. A
identidade étnica não é tratada como algo natural pelo historiador, e sim como
uma uma ficção social. O discurso que busca criar uma identidade han seria
fundado em quatro fatores, cuja prioridade era volátil ao contexto do período:
cultura, genealogia, corpo e política. Aquela elite, a burocracia letrada do
Estado imperial, a partir destes quatro elementos, tentará designar um Outro
étnico, muito a partir de ameaças que este não-han representava à
organização do Estado. Ao mesmo tempo que o bárbaro era negativizado e
diminuído, ele era tido como essencial para o funcionamento próprio do
Império, em especial em postos militares, ocasionando uma sensação ambígua
de respeito e medo. A tensão entre a marcialidade [wu] do bárbaro e as
qualidades cívicas de um burocrata [wen], é uma das chaves que pauta a
diferença entre Nós e Eles nos três séculos da dinastia chinesa.
Abramson fundamenta seus argumentos com exemplos concretos, que
mostram as raízes na Antiguidade de uma identidade chinesa etnocêntrica. A
dicotomia entre o han/chinês [nos termos do período, hua, xia e zhonghua] e
não-han/ não-chinês [fan, hu, yi, man, di, jie, yi-di, etc] que remonta ao século 5
AEC [ABRAMSON, 2008, p.xxi] é encontrado na própria cosmologia, isto é, na
organização do universo sob a ótica chinesa. Para esta, a região da Planície
Central chinesa é o centro do mundo, o Reino do Meio [zhongguo]. Para além
desta estão os territórios bárbaros, fora de zhongguo. Para aqueles que estão
dentro, a influência civilizadora do Imperador é latente, enquanto os bárbaros
são pouco impactados por ela [ABRAMSON, 2008, pp.109-117]. O uso do
conceito das Nove Províncias [jiuzhou], localizado em “Tributo de Yu”, um texto
de provável datação ao período dos Estados Combatentes [475-221 AEC] ou
da Dinastia Qin [221-206 AEC], que delimita as províncias essencialmente
chinesas [ABRAMSON, 2008, p.115], é exemplo de um recurso ao passado
Antigo. A exegese de textos clássicos também é signo desta busca da
identidade chinesa em um passado distante. Debates e polêmicas deste
período, especificamente Han Yu [768-824] sobre o demérito do Budismo, que
apesar de há séculos na China ainda era tido como indiano, portanto bárbaro,
52
são significativos para mostrar que a definição de identidade era um campo
conflituoso [ABRAMSON, 2008, pp.52-82].
Para Abramson, a identidade han está fundamentada na dicotomia hua/hu
[chinês/bárbaro]. Este princípio fundamenta uma gama de corolários: Han são
sempre leais, pois é deles os conceitos civilizacionais elementares do
confucionismo: relações hierarquizadas e piedade filial; a civilização han,
arauta destas noções, pode ser ameaça pela animalidade do Outro; o han é
educado pelos ensinamentos de Confúcio e a propriedade ritualística. Já o nãohan é incontrolável e, portanto, útil militarmente; o han é racional e passivo, já o
não-han é irracional, mas ativo [ABRAMSON, 2008, p.51] A discussão ao redor
da identidade chinesa nestes três séculos da dinastia T’ang rende àquela
discussão sobre a historicização do conceito de cosmopolitismo e a saída da
superficialidade elogiosa do topos “cosmopolitismo T’ang”. A fim de expor as
possibilidades analíticas do conceito, coloca-se a aparente contradição de um
período cosmopolita, cuja abertura para o estrangeiro é característica, e uma
forte identidade chinesa, que tende ao etnocentrismo e remete a sua essência
a tempos antigos, pré-imperiais. Este texto não deseja uma conclusão sobre o
tema. Mas uma última reflexão pode mostrar o valor de engajar-se na aparente
contradição.
Records of Xuan Chamber [Xuanshi zhi] , compilado por Zhang Du [834-c.886
EC], é uma coleção de contos cujo título faz referência ao salão onde o
Imperador Wen [r.180-157 AEC] questionou o literato Jia Yi [c.200-168 AEC]
sobre assuntos místicos. O conto Lu Yong trata das aventuras de um candidato
ao mingjing que dá nome ao conto com mercadores iranianos. Um dia Lu Yong
é interceptado por mercadores na cidade de Chang’an que dizem se interessar
pela sua erudição. Eles se reuniram duas vezes em festas particulares.
Quando os colegas do chinês descobriram suas novas amizades, prontamente
o advertiram da ganância dos persas. Lu Yong decidiu se isolar por precaução
longe da capital. Os mercadores encontraram o aluno, para seu espanto, e
revelaram suas intenções. Yong sempre comera muito trigo e ficava cada vez
mais magro. Os iranianos revelaram que havia um parasita no seu estômago
que se alimentava de trigo e ofereceram um preço alto pelo animal. Após a
retirada do parasita, os estrangeiros comentaram que o animal tinha um qi
especial que o conectava a uma recompensa majestosa. O grupo viajou para o
litoral sul chinês onde várias entidades emergiram do mar e ofereceram
presentes, que os mercadores recusaram até que aceitaram uma pérola –
ferramenta com a qual o grupo se aventurou nas profundidades do mar e
recolheram mais pérolas preciosas, tesouros e conchas. Lu Yong e os
mercadores se despediram e o chinês ficou mais rico do que já era e desistiu
de buscar o oficialato [DITTER, 2017, pp.124-131].
O exemplo é ilustrativo da problematização proposta. Por um lado, a presença
de estrangeiros seria indicativa daquele “cosmopolitismo T’ang”. Por outro,
aciona-se a partir do estereótipo do iraniano ganancioso um recurso à
identidade chinesa que é repulsiva ao estrangeiro. Pode o etnocentrismo
coexistir em uma sociedade cosmopolita? Um primeiro impulso em rejeitar esta
53
possibilidade trai, antes de tudo, a relação do leitor com a história como algo
predicado em expectativas específicas, próximas daquele breve histórico sobre
o conceito de cosmopolitismo associado ao pensamento ocidental. Outro
aspectos é o cosmopolitismo como valor. Em Cosmopolitanism and Empire
Universal Rulers, Local Elites, and Cultural Integration in the Ancient Near East
and Mediterranean [LAVAN, Myles; PAYNE, Richard E.; WEISWEILER, John,
2016], os historiadores argumentam que o termo cosmopolitismo, usado para
caracterizar uma abertura para as ideias e produtos estrangeiros, possui pouca
utilidade analítica, geralmente resultando em um elogio anacrônico de como as
sociedades do passado parecem com o mundo globalizado do presente. A fim
de adicionar complexidade à outra proposta, a que o período T’ang pode ser
cosmopolita e etnocêntrica, introduz-se a visão imperialista de Cromer, para
quem:
“embora jamais possamos criar um patriotismo análogo ao baseado na
afinidade de raça ou na comunidade da língua, podemos talvez fomentar uma
espécie de lealdade cosmopolita [nas colônias] fundada no respeito sempre
concedido aos talentos superiores e à conduta abnegada, e da gratidão
derivada dos favores já conferidos e dos que ainda estão por vir” [SAID, 2007,
p.69]
Se o empreendimento colonial pode ser percebido como cosmopolita e um
adjetivo apto para uma lealdade colonial, o cosmopolitismo talvez tenha que
ser entendido não como um valor, mas uma dinâmica. Como tal, ela pode não
só conviver com o etnocentrismo, como também impulsioná-lo. O turco da Ásia
Central, de natureza marcial, o mercador iraniano, sempre ganancioso, o
sudeste asiático, tidos como perigoso e hostil [SCHAFER, 1967], só são
incorporadas à cosmologia chinesa quando em contato com chineses. As
investidas problematizantes podem ser úteis ao exercício historiográfico não só
na rejeição, como também nas ambiguidades dos conceitos tidos como
suficientes por si só. A “Era de Ouro” chinesa do “cosmopolitismo T’ang”
oferece muito quando confrontada para além dos jargões.
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56
O NATURALISMO EPISTEMOLÓGICO DO FILÓSOFO XUN,
por Matheus Oliva da Costa
Sobre o Xúnzǐ e o significado de “epistemologia naturalizada”
Defendemos nesse texto que a obra Xúnzǐ 荀子 (1999; 2006; 2014) pode ser
entendida como uma epistemologia naturalista em sentido amplo. Nesse
sentido, este texto tem como principal pergunta quais são as características
que possibilitam categorizar o Xúnzǐ como tendo produzido uma epistemologia
naturalista? O filósofo Xun (aproximadamente 310-211 AEC), autor da obra
Xúnzǐ, foi um dos mais relevantes filósofos na China antiga, sendo um dos
primeiros acadêmicos em um contexto de debate livre e aberto a múltiplas
posições e tendo um estilo mais analítico e direto que seus antecessores (para
maiores detalhes: Knoblock, 1988; Sato, 2003; Costa, 2022b).
Enquanto um tipo de abordagem filosófica, o naturalismo é a posição que foca
suas investigações somente no que é natural ou físico, no que está neste
mundo, limitando-se a não usar explicações que envolvam aspectos
sobrenaturais. A própria filosofia em suas origens se confunde com o
naturalismo na busca por explicações sobre princípios impessoais que
configuram a realidade. Mas há pelo menos duas formas de naturalismo numa
linguagem atual: (1) o metafísico ou ontológico, que defende que tudo que
existe no espaço-tempo é natural, material ou físico – é a versão mais forte; já
o (2) naturalismo metodológico ou moderado é sua versão mais “fraca” ou
modesta, e apenas usa uma linguagem que limita-se a abordar as
propriedades e os estados naturais tratados pelas ciências (Feldman, 2001;
Papineau 2021; Rysiew, 2021).
Ambas as formas de naturalismo “são unânimes na compreensão de que é
necessário o recurso a certas categorias naturais, como comportamento”,
organismo, ambiente e o “esquema estímulo-resposta” para que possamos ter
uma “compreensão adequada da estrutura da linguagem e do pensamento”
(Imaguire, 2006, p. 73). Independentemente da adoção da posição forte ou
modesta do naturalismo, ambas encaminham para uma estratégia
epistemológica de limitar-se ou reduzir a explicação da realidade apenas ao
que for próprio do mundo natural observável cientificamente. Aqui nos
preocupamos apenas com a posição epistemológica, não o naturalismo
ontológico.
O sentido estrito de naturalismo em epistemologia tem como principal
referência o filósofo analítico Willard Quine (1969; 1975) em seu famoso artigo
Epistemologia Naturalizada. Assim, o uso de um naturalismo epistemológico
em sentido estrito cabe apenas para as filosofias analíticas que adotam tal
posição a partir da segunda metade do século XX. No entanto, é possível falar
em naturalismo epistemológico no sentido amplo, que abarca todas as formas
57
de filosofar sobre o conhecimento que limitam-se a investigar este mundo, no
sentido dado pelas ciências naturais (de sua época), que abrem mão de
explicações sobrenaturais, e que entendem que não há teleologia ou valor
moral intrínseco nesse mundo natural.
Sigo o entendimento de que mesmo autores anteriores a Quine, e que não
fazem a defesa explícita do uso das ciências naturais para o filosofar, como
Ludwig Wittgenstein (1889-1951), podem ser vistos como naturalistas em
sentido amplo (Imaguire, 2006). Entendo que “ciência” pode ser tanto no
sentido empírico e contemporâneo do termo, quanto no sentido da ciência que
existia anteriormente, que seriam conhecimentos confiáveis e que se
pretendiam verdadeiros ou válidos em cada época. Nesse sentido, eu incluo
também entre os naturalistas em sentido amplo, p. ex., já os Epicuristas na
Grécia antiga, os Carvakas da Índia antiga, e, claro, o filósofo Xun (Van
Norden, 2018).
O naturalismo de Xun contra explicações que envolvem o sobrenatural
Um trecho dos Analectos de Confúcio pouco lembrado em discussões
epistemológicas é o 6.22, em que Confúcio (2007, p. 89) é questionado sobre o
que é conhecimento, e ele responde que “trabalhar pelas coisas às quais o
povo tem direito e manter-se à distância dos deuses e dos espíritos enquanto
lhes mostra reverência pode ser chamado de sabedoria”. Aqui fica claro o
compromisso com este mundo, mais especificamente com a política social.
Mas ficou ambígua a posição quanto ao que poderia ser chamado de
sobrenatural (deuses e espíritos): ao mesmo tempo em que ele recomenda um
distanciamento, ele também sugere a reverência, o que poderia indicar a
aceitação da existência deles. Nos Analectos não há uma posição naturalista
ontológica, apenas há uma inclinação para focar nos vivos, na política, nos ritos
culturais, e não em aspectos da realidade que estão além da nossa
possibilidade de conhecimento.
O capítulo 17 do Xunzi, Discurso sobre o Céu (Tiān Lún 天倫), é um escrito
sistemático de um período em que o filósofo Xun já havia estudado,
trabalhado como ministro, e, provavelmente, era professor-chefe da
Academia Jixia (Knoblock, 1988, p. 11). Em síntese, nesse texto ele defende
uma posição metafísica como um naturalista “fraco”: o mundo é entendido
como processos naturais regulares e irregulares, mas não nega a existência de
seres espirituais, apenas concentra-se e limita-se na cultura humana. Seguindo
Confúcio, ele apenas se detém no que é possível conhecer (Costa, 2021b).
A própria distinção entre processos naturais independentes do querer humano,
por um lado, e ações culturais humanas deliberadas, por outro lado, é um
ponto central da sua filosofia. Seu naturalismo é usado como um meio para
argumentar que os humanos precisam deliberar sabiamente para viver bem,
pois o mundo natural funciona apesar de nós. A deliberação adequada em
confluência com a naturalidade levaria a benefícios políticos e materiais,
enquanto decisões equivocadas e comportamentos individualistas que ignoram
os padrões naturais e culturais poderiam levar a pessoa e sua comunidade a
ter prejuízos, ou até mesmo à morte (Costa, 2021b). Mas, de que forma alguém
58
pode saber que sua distinção é correta e funcional? Vamos entender a
descrição dele sobre como nosso organismo processa o conhecimento no
trecho 17.4:
“[...] Amar ou odiar, alegrar ou enraivecer, entristecer ou regozijar estão
contidos no que podemos chamar de emoções naturais. Os ouvidos, os olhos,
o nariz, a boca e o corpo têm cada um deles uma habilidade de receber
[informações sensoriais], mas suas habilidades não são intercambiáveis, isso é
o que chamamos de ‘órgãos naturais’. O coração-mente localiza-se na
cavidade central [do corpo] para ordenar os cinco órgãos [dos sentidos], isso é
o que chamamos de ‘soberano natural’. [Usar] recursos diferentes da sua
espécie para nutrir a sua própria espécie, isso é o que chamamos de ‘nutrir-se
do natural’. [...] Obscurecer seu soberano natural, desordenar seus órgãos
naturais, abandonar sua nutrição natural, opor-se ao seu governo natural, virar
as costas às suas emoções naturais, de forma a perder as realizações naturais,
isso é o que chamamos de ‘grande temor’. O sábio aclara seu soberano
natural, regula seus órgãos naturais, prepara sua nutrição natural, segue o
governo natural, nutre-se das suas emoções naturais, de forma que se integra
com suas realizações naturais. Assim, segue-se que ele sabe o que fazer, ele
sabe o que não fazer; o Céu e a Terra são como o seu palácio e as dez mil
coisas são como os seus servos. Suas ações são minuciosamente ordenadas,
sua nutrição é meticulosamente apropriada, sua vida não é danificada, isso é o
que chamamos de ‘conhecer o Céu [a natureza]’” (Xunzi, 17.4 In: Costa, 2021b,
p. 214-215).
Xun entende que os humanos são seres naturais como outros, e que o nosso
organismo é fruto de processos naturais. Assim, o que nos é inato, como a
condição de produzir emoções, são também processos naturais. Nossa
percepção do ambiente se dá também via nossos órgãos naturais, ou sentidos
físicos. E, mais importante, há um aspecto do nosso organismo que é um
“soberano”, que está no controle de tudo que é nosso naturalmente, que, na
China antiga, foi identificado como sendo o coração, xīn 心, o que faz muitos
traduzirem como “coração-mente”. Voltaremos nesse ponto depois.
Ainda sobre a citação, o raciocínio é que somos seres naturais, mas a natureza
em geral, de que somos um dos frutos, continua seus processos impessoais
apesar de nós, logo, cabe-nos adequarmos a ela. Essa adequação, no entanto,
não deve ser passiva e nem cega às singularidades próprias da cultura
humana, como ele acusa de ser o caso dos daoístas Lǎozǐ 老子, nesse mesmo
capítulo 17, e do Zhuāngzǐ 莊子, no capítulo 21. Xun defende que devemos
conhecer ativamente e profundamente os processos naturais para usar esse
conhecimento a favor da humanidade, para nos nutrir.
Outro aspecto da sua posição naturalista era a de que a forma mais adequada
de entender os fenômenos naturais era vendo-os como processos de
transformações continuas e impessoais. No trecho 17.11 ele defende que os
eventos naturais que causam temor na maioria das pessoas são apenas
59
“transformações do Yin e do Yang”, e que não haveria o que temer nisso
(Costa, 2021b). Depois, de forma ainda mais assertiva, ele diz:
“Fizeram um sacrifício ritual para chover e choveu, por que isso ocorreu? Digo:
não há relação nisso, é como se não fizessem o sacrifício ritual para chover e
chovesse [mesmo assim]. Ao pedir ajuda para salvar o sol e a lua do eclipse,
ao fazer um sacrifício ritual para chover quando há seca, ao realizar
adivinhações para decidir grandes assuntos, não se trata de agir para obter o
que se [parece] buscar, [mas sim para] fazer o uso cultural daquilo. Então o
Educado considera isso cultura, mas as cem famílias consideram ser algo
espiritual. Ao considerar como cultura, será afortunado, ao considerar como
espiritual, serão temerosos!” (Xunzi, 17.13 In: Costa, 2021b, p. 220).
Assim, ele crítica que a população em geral tende a ver os ritos mágicoreligiosos como de fato tendo a eficácia que prometem ter, o que pode causar
medos injustificados nas pessoas, e, por consequência, prejuízos (como ele diz
no trecho 21.13). Pensem, por exemplo, em recursos limitados gastos com
rituais mágicos ou amuletos da sorte, ou até no uso de supostos remédios
milagrosos que podem destruir a saúde de alguém desesperado. Xun faz uma
distinção entre atos culturais e fenômenos naturais: entende que supostas
interferências mágicas não procedem, mas que há, na verdade, um sentido
cultural para esses ritos, pois nutrem as emoções humanas (por exemplo,
apaziguando ou animando a comunidade), e podem ser formas de memória
coletiva. Entendidas assim, a cultura é justificada, mas é abandonada a
ingenuidade de crer nos aspectos que não são justificáveis naquelas práticas.
Já sabemos então, os limites epistêmicos propostos por Xun, seguindo os
passos de Confúcio: o mundo natural em geral, e mais especificamente as
sociedades (feitas de humanos, que também são organismos naturais), são o
que realmente importa conhecer. Mais exatamente, é o que estamos
justificados a buscar conhecer, pois temos condições de observar os processos
naturais e entender os significados das ações culturais. Porém, é sugerido
como imprudente aceitar explicações sobrenaturais para entender a realidade.
O que é e como é possível o conhecer?
Mesmo que saibamos que os processos naturais e as ações culturais são o
que podemos e devemos conhecer, ainda resta entender o que é conhecer e
como é possível o conhecimento. O termo chinês antigo equivalente a
conhecimento ou saber seria zhī 知, ou, em alguns contextos, zhì 智. Daí que
vem o termo chinês atual equivalente a “epistemologia” como área da filosofia
que teoriza sobre o conhecimento: zhīshì lùn 知识论 , também chamado de
rènshí lùn认识论.
Do ponto de vista da Escola dos Eruditos (Rú Jiā儒家), mais conhecida como
“confucionistas”, o conhecimento relaciona-se com estar ciente de que sabe ou
não de algo (Harbsmeier, 1993). Segundo Confúcio (2012), nos Analectos 2.17:
“[...] Se você sabe, então sabe; se você não sabe, então não sabe. Nisso
consiste o saber” (zhī 知). Na mesma obra no trecho 9.8, Confúcio (2012; 2007)
diz que não tem conhecimento por não saber responder um camponês, mas
60
disse que se esforçou para responder mesmo assim. Ou seja, o primeiro
esboço epistemológico dessa tradição atribuiu o saber ao estar consciente de X
a ponto de saber expressar o conhecimento sobre X verbalmente.
Para Xun, conhecimento é apresentado no trecho 2.3 em uma referência direta
à Confúcio: “Por conhecimento designo saber o que é e o que não é; Por
ignorância designo [acreditar que] o que não é, é, e o que é, não é” (Xunzi,
2006, tradução minha). Nesse caso, o sentido de “ignorância” é de um
conhecimento falso, errado, equivocado, que não corresponde, em realidade,
com o que é afirmado. Avançando além dessa distinção inicial Xun realizou
várias definições, descrições e argumentações que formam sua teoria do
conhecimento no trecho 2 do capítulo 22, Nomeação Correta (Zhèng Míng
正名):
“[...] O que é de nascença é chamado de “caráter natural”. O caráter natural é
aquilo harmonizado com o que vem de nascença, da mesma forma, a conexão
essencial entre o estímulo e a resposta, o que não é trabalhado e continua
espontâneo, é chamado de caráter natural. O que o agrada ou desagrada ao
nosso caráter natural, o alegrar-se ou o enraivecer, [o ficar] triste ou feliz são
chamadas de “emoções”. Ao surgirem as emoções o coração-mente faz
escolhas, o que é chamado de “ponderação”. Quando o coração-mente
pondera e consegue promover mudanças, isso é chamado de ‘construção
consciente (wěi 偽)’. Ponderando e acumulando, sendo capaz de praticar, e
depois finalmente é chamado de ‘construção consciente’” (Xunzi, 22.2 In: Costa
e Li, 2021, p. 119, adaptado).
Assim, há a distinção entre o que é inato, o caráter natural (ou natureza
humana) e o que desenvolvido a partir do inato (a construção consciente). Esse
desenvolvimento a partir do natural, mas que busca ir além dele, ocorre por
meio de um uso do que hoje é denominado de funções executivas do sistema
nervoso. Naquele contexto, incluso o Xun, entendiam que o que fazia essa
função era o coração-mente, o soberano natural. Está claro, hoje, que, por um
lado, erraram a localização desse órgão que tem funções de controle central do
organismo; por outro lado, a percepção de Xun de que é um mesmo órgão que
processa os dados dos sentidos recebidos pelos cinco sentidos, as emoções e
a cognição (ou razão) se mostrou condizente e aproximado com o que
sabemos atualmente de como funciona o organismo humano, com ênfase para
o encéfalo no sistema nervoso central.
Já vimos um trecho do capítulo 17 em que Xun descreve que nossos órgãos
naturais percebem o mundo. No trecho 22.5, ele defende que já esses sentidos
naturais e seus órgãos conseguem reconhecer distinções iniciais, que são
melhor identificadas com as disposições e emoções (qíng 情) internas geradas
em seguida. Por exemplo, podem sentir se algo é macio ou áspero, azul ou
verde etc, e a valência afetiva positiva ou negativa que surge a seguir pode
rapidamente sinalizar se é mais adequado se aproximar ou se afastar daquilo
com que teve contato. O coração-mente processa tudo isso, mas também
pondera e avalia sobre o que recebeu e sentiu. É durante esse processo
natural que há a possibilidade de nos desenvolvermos para além da nossa
61
natureza “bruta”, usando de funções executivas como planejamento, memória
de trabalho ou deliberações.
“O coração-mente tem o poder de comprovar o conhecimento [com
consciência]. Se sua consciência comprova, é devido ao ouvido poder
conhecer os sons, devido aos olhos poder conhecer as formas. Porém, para a
consciência comprovar [algo] ela precisa requerer que os seus órgãos naturais
registrem [qual é] o tipo [da coisa percebida], só depois disso ela pode
[comprovar]. [Se] os cinco órgãos [naturais] registrarem mas não
reconhecerem, [se] o coração-mente comprova o conhecimento mas sem
[conseguir] explicar, então as pessoas concordam que não há [conhecimento]:
isso é chamado de “não saber”. É por essa razão que se faz [a distinção entre
coisas] iguais e diferentes” (Xunzi, 22.2 In: Costa e Li, 2021, p. 122).
Para Xun, o conhecimento está relacionado principalmente com a capacidade
de fazer distinções (yì 異, bié 别 e, principalmente, biàn 辨), uma influência
tanto de Confúcio quanto do Mòzǐ 墨子 (Goldin, 2023; Elstein, 2022; Rošker,
2022; Wu, 2018). Assim, o conhecer não é apenas informacional, pois precisa
também de um entendimento correto que saiba avaliar se a percepção dos
dados dos sentidos faz sentido. É devido a isso que, mesmo recebendo e
sentido uma infinidade de informações constantemente, podemos conhecer de
algum modo ordenado. Nossas funções cognitivas incluem a ordenação dessas
sensações, que podem ser desenvolvidas amplamente, gerando todo tipo de
classificação, comparação, síntese e raciocínios sobre qualquer assunto.
Em resumo, o processo de conhecer o mundo passa: (1) pelo contato e
captação do ambiente pelos cinco sentidos naturais, (2) a percepção interna
dessa captação através das emoções naturais que filtram o igual e o diferente
são processadas pelo coração-mente, para, finalmente, (3) o coração-mente
analisar o que é admissível ou não. Feito todo esse processo, uma pessoa
saberá expressar a realidade percebida através de uma explicação – quando
tudo isso ocorre, podemos dizer que alguém sabe algo. Se alguma parte desse
processo falhar entre o início e o final, então não podemos afirmar que a
pessoa sabe que X, mas apenas que percebeu, sentiu ou afetou-se com X.
Como Xun afirma entre os trechos 14 a 18 do capítulo 22 (Costa e Li, 2021), e
aprofundado em todo capítulo 21, Livrar-se das obsessões (Jiě Bì 解蔽), as
avaliações e as ponderações feitas por alguém que está desequilibrado
acarretarão em erros. Isso ocorre pelo fato de que as emoções e funções
executivas fazem parte dos processos cognitivos que ocorrem principalmente
no coração-mente, influenciando-se mutuamente. Assim, estar com emoções
extremas em intensidade (menor/maior) ou valência (positiva/negativa) tem
forte impacto na cognição, podendo mesmo prejudicar desde a captação e
percepção do ambiente até as avaliações mentais mais refinadas. Ao contrário,
com as emoções equilibradas, usando essas disposições naturais ao seu favor
e de forma moderada, então é possível entender e conhecer – os dois tipos de
ganhos epistêmicos.
62
Para Xun, nesse capítulo 21 (Costa, 2023), a melhor forma de não se dividir
cognitivamente e ainda equilibrar essas emoções é ter a habilidade de unificar
ou sintetizar o conhecimento, contra a tendência dualista natural da mente que
nos leva a distração. No programa epistemológico de Xun é necessário ser
habilidoso não só com nossas funções cognitivas geralmente chamadas de
“racionais”, mas também com as próprias emoções, que são parte do processo
de produção do conhecimento pelo agente epistêmico. Dessa forma, sua
epistemologia é naturalizada tanto por se deter no conhecimento do ambiente
natural e das ações culturais humanas, quanto por focar em entender como
nosso organismo processa o conhecimento por meio de suas ferramentas
naturais que são desenvolvidas e aperfeiçoadas pelo agente epistêmico.
Sobre o autor
Matheus Oliva da Costa é pós-doutorando pelo Departamento de Filosofia da
USP, é doutor e mestre em Ciência das religiões pela PUC-SP, é graduado em
Filosofia pelo Centro Universitário Internacional e em Ciência das religiões pela
UNIMONTES-MG.
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XUNZI. Xunzi. In: STURGEON, Donald. Chinese Text Project. Online: 2006.
Disponível em <https://ctext.org/xunzi>. Acesso em: 27 mai. 2023.
WU, Chun. Filosofia chinesa. Rio de Janeiro: Batel, Go East Brasil, 2018.
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O PAPEL DAS CONCUBINAS NA DINASTIA SONG,
por Renata Ary
Uma breve introdução sobre a Dinastia Song [960 – 1279]
A dinastia Song [960-1279] durou mais de três séculos e foi dividida em dois
períodos: Song do Norte [960-1127] e Song do Sul [1127-1279]. Foi uma época
de grande criatividade, de uma sociedade muito rica e refinada. Havia grandes
cidades, cujo povo era culto e sofisticado e, diferente de épocas anteriores, as
rotas marítimas eram desenvolvidas e por isso o comércio apresentou
exponencial crescimento que ensejou o alargamento da economia que foi
monetizada. Foi um período de grande desenvolvimento cultural, político,
demográfico, filosófico, científico e tecnológico. A cultura se desenvolveu:
haviam livros impressos, pinturas e passou a existir um sistema de exame para
administração pública. Alguns autores comparam a era Song com o
renascimento Europeu. Do ponto de vista ideológico, eram clássicos e pouco
se abriram para a modernidade. O tempo dos Song foi considerado a era de
ouro chinesa. [Fairbank, 1991, p. 64].
De acordo com Gernet (1974, p. 280): “Adoptamos, aqui, o termo
Renascimento. O seu uso é criticável, apesar das numerosas analogias:
retorno a tradição clássica, difusão do saber, surto das ciências e das técnicas
[imprensa, explosivos, progressos das técnicas navais, relógio de escapo, etc],
nova filosofia e nova visão do mundo, em suma, o mundo Chinês tem, tal como
o Ocidente, os seus caracteres próprios e originais”. Nesse mesmo sentido,
Fairbank [1991, p. 64] narra: “O século e meio de domínio dos Song do Norte
[960-1126] seria um dos períodos mais frutíferos da história chinesa, algo
semelhante ao Renascimento europeu que ocorreria dois séculos depois”.
Foi no ano de 960 que a dinastia anterior, os Tang, num período denominado
de as “cinco dinastias e dez reinos” caiu. Os últimos anos que antecederam a
queda, foi marcado por desordens e guerras que culminaram na proclamação,
pelas tropas de guarda do palácio, de seu comandante como o novo
imperador, dando início a era dos Song. Ao ascender ao poder, Zhao Kuangyin
fundou a dinastia Song e foi proclamado imperador sob o nome de Sung Tai
Tsu. Ele e seu sucessor [Taizong, seu irmão mais novo - 976-997]
aposentaram os generais e preencheram os cargos com funcionários públicos.
Reuniram as melhores tropas para cercar o palácio, criaram um sistema
burocrático de centralização das receitas fiscais, mapearam as cidades e
províncias e com isso garantiram o controle da força militar e estabeleceram
um novo poder civil.
Nas palavras de Gernet [1974, p.8] “São impressionantes as diferenças entre a
China dos séculos XII e XIII e a dos Tang, cujo período mais brilhante se situa
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no século VIII. Em quatro séculos, a China metamorfoseou-se. A um mundo
rude, guerreiro, um tanto artificial e hierático substituindo-se uma China
animada, comerciante, ávida de prazeres e corrupta. Entrevê-se sempre em
plano recuado a vida miserável e precária dos camponeses, e essa miséria
aumentou mesmo, relativamente. Mas a atmosfera é completamente diferente”.
Era uma sociedade mais aberta que as dinastias anteriores, permitia-se que a
pessoas se movimentassem com maior facilidade. Com o desenvolvimento
naval, houve o avanço do comércio maritimo e surgiram novas atividades como
barqueiro, almocreves, marinheiros e mercadores. Além dos comerciantes,
haviam os letrados e o populares. A economia agrária deu lugar a economia
mercantil. Os oficiais acadêmicos aumentaram seu status social e eram
responsáveis pela administração local. As mudanças de fortunas eram
frequentes e davam ensejo a novos grupos sociais e novas relações. [Gernet,
1974, p. 300].
O desenvolvimento da tecnologia foi exponencial na era Song, eles inventaram
a bússola magnética, a impressão e a pólvora. As armas de fogo passaram a
ser utilizadas em combates e a construção de navios foi majorada e melhorada.
Foram os Song que estabeleceram a primeira marinha permanente na China. A
fabricação de papel, a produção de seda e o artesanato, desenvolveram-se,
inclusive os Song imprimiram o seu próprio papel-moeda.
Houve um regresso à tradição clássica e a hegemonia do budismo chegou ao
fim. “A mistura dos seres vivos – demônios, animais, seres infernais, homens e
deuses – feita através das suas transmigrações, toda esta fantasmagoria
cósmica se apaga para dar lugar, unicamente, ao mundo sensível. O homem
torna-se homem num mundo limitado e compreensível que lhe basta observar
para conhecer”. Houve o advento do racionalismo prático alicerçado na
experiência e na filosofia naturalista. A renovação da vida intelectual garantiu a
rápida e barata reprodução dos textos escritos. “O homem das elites chinesa
no século XI é tão diferente dos seus antecessores da época dos Tang, como o
homem do Renascimento o é do da Idade Média”. [Gernet, 1974, p. 312]
Em 1126 a Dinastia Jin, sob a liderança dos Ruzhen, invadiu o norte da China
e tomou o controle de Kaifeng, forçando os Song a estabelecerem sua capital
no Sul, em Hangzhou [ao sul do rio Yangtze]. No entanto “o Sul, para muitos,
não é a terra dos seus antepassados: lá, tem a sensação de estar no exílio. [...]
As grandes dinastias chinesas sempre tiveram as suas capitais no Norte, na
região do atual Si-an ou mais a leste” [Gernet, p. 9].
Os Song do Sul alcançaram seu apogeu no século XIII. Para Fairbank [1991,
p. 67] “Durante o seu apogeu, no início dos anos 1200, a grande capital da
Song do Sul estendeu-se ao longo do estuário do rio Qiantang por mais de
trinta quilômetros do subúrbio do sul - com aproximadamente quatrocentos mil
habitantes - atravessando a cidade imperial murada, na qual viviam meio
milhão de pessoas, até o subúrbio ao norte, onde residiam mais duzentos mil
pessoas. Hangzhou tinha algumas semelhanças com Veneza, como apontou
67
Marco Polo. A água clara do grande Lago Oeste corria pela cidade em duas ou
mais dezenas de canais que levavam os resíduos em direção ao marés no
estuário do rio. A cidade cobria cerca de 18 quilômetros quadrados dentro suas
paredes e a ampla via Imperial, que corria de sul a norte, dividiam-na em duas.
Antes conquistada pelos mongóis em 1279, Hangzhou tinha uma população de
mais de um milhão de habitantes [algumas estimativas chegam a 2,5 milhões],
o que a tornou a maior do mundo. A Veneza de Marco Polo tinha talvez
cinqüenta mil habitantes: daí seu grande espanto com a vida urbana na China”.
“Com o decorrer dos séculos, o peso da China do Sul fez-se sentir cada vez
mais: ela povoou-se, enriqueceu-se, desenvolveu as suas relações marítimas e
fluviais, inaugurou um gênero de vida especificamente urbano, que era quase
desconhecido na China do Norte, deu origem a grandes famílias letradas, enfim
tomou consciência de si própria e do seu dinamismo”. [Gernet, p.9]
Em 1234, no Norte da China, os mongois derrotaram a dinastia Jin e em 1279,
através de seu comandante Genghis Khan e posteriormente por Kublai Khan,
invadiram Song do Sul e quando da ocupação total do território, derrotaram os
Song, pondo fim a dinastia.
O papel das concubinas na Dinastia Song
Nas famílias chinesas patrilineares e patrilocais, as mulheres eram subdivididas
em duas categorias: as que nasceram no território Song [filhas, netas] e as que
foram trazidas de fora: esposas, concubinas e criadas.
Na china imperial dos Song, as concubinas [Qie] eram equiparadas às esposas
[qi] em dois aspectos: o primeiro, na questão sexual - pois ambas eram
parceiras sexuais do membro de sexo masculino da família e das quais
esperava-se a procriação: ter filhos [na China Imperial o status de filho não
dependia do fato da mãe biológica ter qualquer tipo de vínculo com o pai
biológico]; o segundo, ambas - esposa e concubina, eram incorporadas à
família do marido e não lhes era permitido retornar à sua família natural,
inclusive em caso de viuvez.
De acordo com o código legal da Dinastia Tang [618-960], que em grande parte
foi copiado pela sucessora Song, as regras de exogamia e incesto eram as
mesmas para esposas e concubinas: caso alguém tivesse relações sexuais
com elas era considerado crime de adultério. Era ofensa grave transformar
uma esposa em concubina ou uma concubina em esposa, pois violava a ética
social.
Diferente das esposas, as concubinas eram equiparadas às empregadas
domésticas [bi] pois eram marginalizadas no status de parentesco devido a
forma que eram adquiridas. [Na china tradicional era socialmente desonroso e
ilegal um homem ter mais de uma esposa, no entanto, ele poderia ter quantas
concubinas ele pudesse pagar]. Na china imperial, o termo concubina também
era utilizado para designar as consortes secundárias do imperador – muitas
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delas ocupavam um alto escalão no império e raramente eram chamadas de
qie. [Ebrey, 2013, p. 50]
O casamento da esposa e das concubinas era diferente, pois a esposa casavase com dote e as concubinas não. As esposas, na maioria das vezes, tinham o
mesmo status social do marido e o ritual de casamento envolvia documentos
formais, troca de presentes entre as famílias, período de noivado e festa. Com
as concubinas era diferente e elas poderiam até ser escravas ou servas e
quanto mais abastada era a família, sobretudo as famílias de funcionários de
alto escalão e cavalheiros [shidafu] que tinham importância política e cultural no
império, mais comum era essa relação. Não havia qualquer vínculo de afeto
entre as concubinas e seu “mestre”, em especial quando a parceira não
conseguia procriar ou quando os filhos não eram assumidos pelo homem.
A concubina era “tomada em casamento” [qu] ou comprada [mai] de forma
perpétua [por toda a vida] ou em alguns casos, por algum período específico.
Ebrey [2013, p. 46] narra: “No Song, o mercado mais altamente especializado
para concubinas estava nas capitais, especialmente em Hangzhou durante os
Song do Sul (1127-1279). O Mengliang lu [Sonhos de Esplendor], depois de
discutir os corretores que lidavam com trabalhadores masculinos, gerentes e
balconistas, discutia a questão feminina equivalente: ‘Existem corretoras
oficiais e privadas [yasao] para auxiliar oficiais ou famílias ricas que desejam
comprar uma concubina [chongqie], uma cantora, uma dançarina, uma
cozinheira, uma costureira ou uma empregada grosseira ou fina. [Ebrey, p. 46]
Elas eram altamente treinadas para serem vendidas no mercado. Eram
apresentadas de forma luxuosa e uma vez compradas, eram tradadas como
empregadas. “Acredita-se que muitas concubinas, como as cortesãs, sabiam
ler, compor poesias, cantar, tocar instrumentos. Muitas delas eram bonitas,
talentosas e vinham de famílias educadas, refinadas, que haviam passado por
tempos difíceis. Outras meninas, que vinham de família pobre, eram treinadas
para serem mais comercializáveis’ [no treinamento elas eram associadas as
cortesãs, já que os homens as consideravam como cortesãs particulares].
[Ebrey, 2013, p. 47] . Mulheres para serem esposas não eram incentivadas a
estudar. Elas recebiam, apenas, uma educação básica. Cortesãs e concubinas
estavam entre as mulheres mais cultas da sociedade chinesa. [Moreira, 2020]
Uma vez adquiridas, grande parte delas, ficavam sob o controle e supervisão
da esposa.
De acordo com Bueno: “Em Yangchow, havia centenas de pessoas ganhando
a vida com atividades ligadas aos "cavalos magros" [alcunha do mercado de
concubinas].[...] Depois de feita a escolha, confirmada pelo tsatai, a dona da
casa aparecia com uma folha de papel vermelho e um pincel de escrever. No
papel estavam escritos os itens: sedas, flores de ouro, presentes em dinheiro e
peças de pano. A dona mergulhava o pincel em tinta e deixava-o pronto para
que o freguês preenchesse o total de peças e do presente em dinheiro que
estava disposto a dar para ter a moça. Se isso fosse satisfatório, o negócio
estava concluído e o cliente despedia-se.” [Bueno, 2018, p. 108].
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No entender de Ebrey [2013, p. 48], haviam os “corretores de pessoas”
[shengkou ya]. Alguns deles eram honestos, outros sequestravam as meninas
para serem vendidas. “Eles diziam às famílias que uma menina era necessária
como esposa ou filha adotiva, seduzindo-os a entregar uma filha ou empregada
doméstica. A menina ou mulher então ficaria escondida por alguns dias, e após
seria despachada para algum lugar distante para ser vendida. Mesmo se a
família trouxesse uma acusação, quando o governo descobrisse o truque, uma
busca seria malsucedida e eles nunca saberiam o paradeiro da garota ou
mesmo se ela estava viva ou morta. O sequestro direto também é mencionado
com frequência. É claro que era completamente ilegal, em oposição à sedução”
[muitos pais eram seduzidos com a promessa de que a filha seria concubina de
um homem rico e teria uma vida boa].
Ebrey questiona [2013, p. 49]: “Por que um pobre fazendeiro ou morador da
cidade relutaria em vender sua filha como concubina de um homem rico que
poderia lhe proporcionar uma vida de conforto? Parece haver duas razões
principais: primeiro, era mais respeitável para ele casá-la com alguém de seu
próprio status social; e segundo, foi amplamente reconhecido que qualquer que
seja o conforto com o qual ela possa começar, uma concubina não tinha a
segurança de uma esposa e poderia acabar sendo maltratada”. Casar a filha
como concubina era infame, desonroso, além do fato de que era humilhante
para o clã a que a família pertencia.
Essa separação estrita entre as concubinas e a esposa deriva, provavelmente,
do sentimento de hierarquia: classe e status social. “Confundir esposa e
concubina era como confundir senhor e servo”. Era uma desonra a filha de uma
família ser reduzida a condição de concubina. Deste modo, o dote permitia que
a filha da família casasse de forma apropriada, assumindo a condição de
esposa e não de concubina. [Ebrey, 2013, p. 55]
No direito penal, as concubinas ocupavam uma posição intermediária entre a
esposa e as criadas. “Era menos grave para um chefe de família matar uma
empregada do que matar uma concubina; era mais grave para a concubina ferir
um parente do seu mestre do que para a esposa fazer isso”. [Ebrey, 2013,
p.56] Entre os Tang havia uma diferença de status entre as concubinas e as
empregadas domésticas [bi], pois para eles se uma empregada desse um filho
ao seu mestre, ela poderia ser libertada [fang] e promovida a concubina - era
necessário que elas fossem “libertas” para que seu status fosse modificado. As
concubinas libertas eram conhecidas como biqie. Nada impedia, no entanto,
que os mestres tivessem relações sexuais com as criadas, sem transformá-las
em concubinas.
“Às vezes, uma concubina de status relativamente alto seria chamada de
“quarto lateral” [ceshi] ou “aposentos traseiros” [houfang], enfatizando seu
papel de companheira e parceira sexual. Os tribunais não reconheceram essas
distinções, no entanto, isso é trazido à tona em uma decisão judicial complexa
registrada por Liu Kezhuang [1187–1269]. Ele mencionou que duas mulheres
70
não foram consideradas de status equivalentes pelos membros da família, uma
administrava assuntos domésticos durante a vida de seu mestre, a outra [mãe
do filho de seu mestre] era desprezada como uma concubina [qieying]. No
entanto, uma vez que nenhuma das duas havia se casado ritualmente [fei li
hun], nenhuma delas poderia ser considerada uma esposa”. [Ebrey, 2013, p.56]
A esposa era obrigada a receber em sua família, na maioria das vezes, uma
mulher mais jovem [concubina] e suprimir qualquer sentimento de ciúme ou
aversão. “De fato, o número de mulheres secundárias que um nobre deveria ter
foi prescrito da mesma forma como carruagens ou roupas”. As concubinas
tinham status mais elevados que seus filhos, no entanto, muitos deles, quando
crianças, as viam como ama de leite: uma mulher servil com quem tinham uma
intimidade especial, mas que não tinha importância para outras pessoas da
sociedade, sobretudo porque o seu pai, provavelmente, havia olhado para sua
mãe como uma cortesã. [Ebrey, 2013, p. 48-55]
Quando o marido falecia, os direitos da esposa viúva eram protegidos, de
modo que nenhum outro homem da família poderia reivindicá-la ou tomá-la
como companheira ou impedi-la de usar a propriedade da família para
sustentar seus filhos. A família natal da esposa viúva poderia ajudá-la nos
negócios da família – pois ela não havia sido vendida, mas casado legalmente,
inclusive com dote. Além disso, uma esposa poderia assumir os filhos de uma
concubina, permitindo uma última e pequena participação na família. E se
nenhuma esposa sobrevivesse e não houvesse homem herdeiro, uma
concubina não poderia nomear um herdeiro póstumo”. [Ebrey, 2013, p. 57]
Durante o dinastia Qing [1644-1911] o status de concubina foi melhorado,
porque “tornou-se permitido promover uma concubina para esposa se esta
tivesse morrido e a concubina fosse a mãe dos únicos filhos sobreviventes.
Além disso, a proibição de forçar uma viúva a se casar novamente foi
estendida às concubinas viúvas. [Ebrey, 2013, p. 61].
Na década de 1940, o antropólogo Francis Hsu escreveu: “O concubinato é um
costume aceito, mas ninguém quer ter um. Tão forte é a aversão, que até a
pessoa mais pobre ficará com raiva se for sugerido abertamente que sua filha
pode ser uma concubina.” [apud Ebrey, 2013, p. 60].
Referências
Renata Ary é doutoranda em educação, mestre em direitos difusos e coletivos
e pósgraduada em Direito Processual Civil pela Pontifícia Universidade
Católica de São Paulo (PUC-SP).
BUENO, André. (org.). Mulheres na China Imperial. União da Vitória. 2008.
EBREY, Patrícia Buckley. Concubines in Song China in Women and the Family
in Chinese History. London and New York: Routledge. 2003.
FAIRBANK, John King. China, Uma Nova História. Editorial Andres Bello. 1991.
71
GERNET, Jacques. O mundo Chinês: uma civilização e uma história. Lisboa:
Editora. 1974. Cosmos.
________. A vida cotidiana na China: nas vésperas da invasão Mongólica
1250-1276. Tradução de Bruno da Ponte. Coleção A vida cotidiana em todos
os tempos. Lisboa: Edição Livros do Brasil.
MOREIRA, Janaina Rossi. As mulheres do Milênio. Disponível em:
institutoconfucio.com.br/as-mulheres-dos-milenios. 2020.
72
PEROZ E OS ÚLTIMOS SASSÂNIDAS NA CORTE TANG: UMA
ANÁLISE DAS RELAÇÕES SINO-SASSÂNIDAS AO LONGO DA
HISTÓRIA, porSamantha Alves de Oliveira
O fim do Império Sassânida [224-651] foi um período conturbado da história do
Irã. Após o resultado desastroso das guerras de Khosrow II [r. 591-628] contra
o Império Bizantino, a família Sasan não conseguiu manter a unidade do
império, com generais provincianos se autoproclamando imperadores e
cunhando moedas em seus nomes [Daryaee, 2010: 43-45]. Yazdgerd III, o
último imperador sassânida, foi coroado em 632, mesmo ano da morte do
profeta Maomé, que foi seguida pelo estabelecimento do Califado Rashidun
[632-661] e o início da guerra santa islâmica sobre Bizâncio e o Império
Sassânida [Zarrinkub, 1975: 1]. Ele viveu um reinado errante, pressionado a se
deslocar para o leste do império devido aos avanços árabes no Irã, facilitados
pelo sectarismo instalado no território [Daryaee, 2010: 51-52]. Seu assassinato
na cidade de Merv em 651 marca o fim do Império Sassânida para a
historiografia, abrindo o caminho para a expansão do islamismo sobre a Ásia
Central, mas os povos que viviam nas regiões na fronteira leste do império,
como Sistão, Cabulistão, Tocarestão e Sogdiana, resistiram ativamente à
dominação árabe sobre seus territórios até o início do século VIII [Rezakhani,
2017: 173].
Essa resistência teve a participação de descendentes de Yazdgerd III, dos
quais o príncipe Peroz é o mais conhecido, por buscar o apoio da maior
potência política, militar e cultural da Ásia naquele momento: a China Tang.
Conhecemos sua história devido ao registro feito pelos historiadores chineses
no Jiu Tang Shu [Velho Livro de Tang] e no Xin Tang Shu [Novo Livro de
Tang], as duas Histórias Oficiais [em chinês, Zhengshi 正史] referentes à
Dinastia Tang, que narram a trajetória de Peroz desde sua resistência militar na
Ásia Central, após um pedido de ajuda ao Imperador Tang Gaozong [r. 649683], até sua ida à corte chinesa em Chang’an, onde recebeu um título militar
do imperador e viveu o resto de seus dias. Neste texto, buscarei contextualizar
a trajetória de Peroz do Irã até a corte Tang dentro das relações políticas
existentes entre a China e o Império Sassânida ao longo do tempo e das
transformações que ocorriam no continente asiático ao longo do século VII.
Os primeiros contatos entre a China e a região do Irã foram estabelecidos no
século II AEC, durante o reinado do Imperador Han Wudi [r. 141-87 AEC], a
partir das viagens de Zhang Qian para as terras a oeste da Dinastia Han [206
AEC-220 EC]. Elas iniciaram as trocas diplomáticas e comerciais entre os
chineses e as chamadas “Regiões Ocidentais”, inaugurando o início da Rota da
Seda, entendida aqui tanto como “um conjunto de estradas e trajetos
comerciais abertos pela China entre o leste asiático e o mar Mediterrâneo”
quanto como “um processo de aproximação cultural entre diferentes
73
sociedades asiáticas” [Pinto, 2023: 8]. A posição geográfica do Irã colocou
rapidamente a região no papel de intermediadora das relações econômicas e
culturais entre a China, a Índia e o Mediterrâneo [Tashakori, 1974: 1], exercido
primeiro pelo Império Parto [247 AEC-224 EC], contemporâneo à Dinastia Han,
e, posteriormente, pelos sassânidas.
A ascensão do Império Sassânida coincidiu com o fim da Dinastia Han e a
fragmentação política do território chinês, o que impediu o contato diplomático
entre as duas regiões por alguns séculos. Foi durante a Dinastia Wei do Norte
[386-535], resultado da unificação territorial dos povos turco-mongóis que
habitavam o norte da China pelos Tuoba Wei, que as relações diplomáticas
entre sassânidas e chineses foram estabelecidas. É também nesse momento
que os chineses passam a se referir à região não mais pelo termo Anxi 安息,
transliteração do nome do imperador parto Ársaces I, mas pelo termo Bosi
波斯, provavelmente derivado do nome Pars [ou Pérsia], província natal da
família Sasan [Tashakori, 1974: 42].
O Wei Shu [Livro de Wei] registra a primeira embaixada sassânida enviada à
corte chinesa, no ano 455, durante o reinado do imperador Yazdgerd II [r. 439457]. Segundo János Harmatta [1971: 136], a maior parte do governo de
Yazdgerd foi marcada pela guerra contra os quidaritas, e a busca por apoio
político e militar é uma possível motivação para o envio de uma delegação à
China. Depois disso, o imperador Peroz I [r. 459-484] enviou quatro
embaixadas à corte Wei, entre 461 e 479; para Abbas Tashakori [1974: 42-44],
elas também foram motivadas pela constante ameaça heftalita à fronteira leste
do Império Sassânida. Embora nenhuma ajuda chinesa tenha chegado em
ambos os casos, o envio dessas embaixadas demonstra que os sassânidas
não apenas buscavam cultivar relações amigáveis com os chineses, como
também viam neles um possível aliado contra os povos nômades que não
apenas comprometiam a segurança de suas fronteiras, como atrapalhavam o
fluxo de mercadorias vindas do leste asiático para o Irã.
Embora a maior parte das iniciativas diplomáticas tenham vindo do Império
Sassânida – segundo Tashakori [1974: 47], as Histórias Oficiais chinesas
registram a chegada de, pelo menos, dezessete delegações sassânidas na
China, entre 455 e 648 –, os chineses também enviaram, em menor escala,
algumas missões para a Pérsia, atestando as boas relações entre as duas
regiões. Uma tradição iraniana relata que a corte sassânida recebeu uma
embaixada chinesa durante o reinado de Khosrow I [r. 538-578], um dos
períodos mais prestigiosos da história sassânida, e as fontes chinesas relatam
o envio de emissários chineses ao Império Sassânida pelo menos uma vez na
Dinastia Wei e uma na Dinastia Sui [581-618] [Tashakori, 1974: 45-46].
A ascensão dos Tang na China coincidiu com o início da desintegração do
Império Sassânida, que, segundo Touraj Daryaee [2010], pode ser dividida em
três fases. A primeira consistiu no declínio da legitimidade monárquica da
família Sasan entre 628 e 630, causada pelo fracasso da guerra contra os
bizantinos durante o reinado de Khosrow II, e agravada pelo fratricídio
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cometido por Kawad II [r. 628-630]. A segunda foi o período de sectarismo e
divisão, quando vários concorrentes políticos se autoproclamaram imperadores
em diversas províncias do império entre 630 e 636, demonstrando a fraqueza
do poder central. A terceira e última corresponde ao reinado errante de
Yazdgerd III [632-651], que tentou restabelecer um governo legítimo, mas
precisava se manter continuamente em movimento para se fazer presente
entre as elites locais do império, o que impediu uma organização política e
militar capaz de frear os avanços árabes sobre o Irã, forçando o deslocamento
contínuo de Yazdgerd III para as províncias a leste do império.
Enquanto isso, na China, o processo de reunificação territorial e política
iniciado pela Dinastia Sui foi consolidado no início da Dinastia Tang,
inaugurando um período que seria “unanimemente considerado uma ‘era de
ouro’ para a civilização chinesa, marcado por um intenso desenvolvimento
cultural, tecnológico, literário e cosmopolita” [Pinto, 2023: 62]. A estabilidade
interna do início da dinastia permitiu aos primeiros imperadores Tang voltar os
olhares para o exterior, levando à expansão territorial e da área de influência
chinesa sobre a Ásia Central, que atingiu o seu ápice em meados do século
VII, após a destruição dos Turcos Orientais e o restabelecimento do
Protetorado das Regiões Ocidentais em 640 [r. [Pinto, 2023: 70-71].
É neste contexto que, em 647, Yazdgerd III envia uma embaixada à corte
chinesa em Chang’an, poucos anos antes de seu assassinato em Merv, em
651. Essa informação está presente no Jiu Tang Shu [Forte, 1996: 361], e é
reforçada pelo historiador árabe al-Tabari na obra Tarikh al-Rusul wa al-Muluk
[História dos Profetas e Reis], que diz que Yazdgerd enviou mensageiros aos
líderes dos turcos, dos sogdianos e da China pedindo auxílio contra os árabes
[Smith, 1994: 54]. Como vimos, a busca por ajuda chinesa contra inimigos pode
ter um precedente na história sassânida [nos casos de Yazdgerd II e Peroz I],
mas “provavelmente a grande distância e […] a presença dos Turcos
Ocidentais no meio do caminho, tornariam qualquer tentativa de intervenção
militar insustentável e arriscada demais para os chineses” [Oliveira, 2021: 42].
As coisas seriam diferentes durante o reinado de Tang Gaozong [r. 649-683],
com o colapso dos Canato Turco Ocidental em 658 e a submissão dos povos
que se encontravam sob o seu território aos chineses, colocando o Império
Tang no seu ápice de expansão sobre a Ásia Central [Oliveira, 2021: 45].
Naquele momento, o domínio chinês nas Regiões Ocidentais se estendia da
Bacia do Tarim até as fronteiras do Irã Oriental e, para administrar terras tão
distantes, a Dinastia Tang adotou uma política externa que foi definida por
Wang Zhenping [2013: 8-10] como “pluralismo pragmático”: conhecendo o
caráter fluido e mutável das relações políticas das sociedades nômades de
fronteira, os Tang concluíram que seria impossível controlar completamente e
permanentemente aquelas regiões, optando por um sistema de governo
indireto [em chinês, jimi 羈縻, literalmente “rédeas de cavalo e cabresto de
gado”] que empregava os próprios líderes locais na administração das áreas
conquistadas em troca de tributos regulares à corte chinesa em Chang’an.
Esses territórios eram organizados em Prefeituras [zhou 州] e Comandos de
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Área [dudufu 都督府] e respondiam aos Protetorados [duhufu 都護府],
jurisdições comandadas por oficiais Tang que interferiam nas questões locais
apenas quando necessário [Skaff, 2012: 247-249].
Segundo o Jiu Tang Shu e o Xin Tang Shu, após a morte de Yazdgerd III, seu
filho Peroz fugiu para o Tocarestão e, em 661, enviou um memorial à corte
chinesa, informando sobre os ataques árabes ao seu território e pedindo auxílio
militar. Em resposta, Gaozong enviou o magistrado Wang Mingyuan para
estabelecer dezesseis Comandos de Área naquela região, recém-integrada ao
sistema de governo indireto chinês após a queda dos Turcos Ocidentais, que
responderiam ao Protetorado do Oeste Pacificado [Anxi duhufu 安西都護府].
Entre eles, o Comando de Área Persa [Bosi dudufu 波斯都督府] foi
estabelecido na cidade de Jiling [疾陵城], identificada com a atual Zaranj, no
Sistão, na fronteira entre o Afeganistão e o Irã [Harmatta, 1971: 140-141], e
Peroz foi nomeado o seu comandante-chefe [dudu 都督]. Esse seria o mais
longe que os braços do Império Tang chegariam no interior da Ásia e o
controle, precário devido à distância e à ameaça árabe constante, também não
duraria muito tempo: em 673, os árabes conseguem ocupar o Sistão e Peroz
vai para Chang’an, sem nunca retornar ao Irã. Após sua morte, seu filho
Narseh também tentou reestabelecer o controle sobre a região com o apoio
militar do Tocarestão, retornando sem sucesso para a corte chinesa em 708
[Oliveira, 2021: 45-49].
De qualquer forma, a nomeação de Peroz para um comando no Sistão, uma
das províncias sassânidas que mais resistiram à dominação árabe da região,
nos indica que a família sassânida ainda possuía alguma legitimidade para a
população e as elites locais do leste do Irã [Oliveira, 2021: 47]. Domenico
Agostini e Soren Stark [2016] também demonstraram, a partir de documentos
árabes, iranianos, evidências numismáticas e fontes chinesas, que, mesmo
após a morte de Peroz e Narseh, descendentes [ou impostores que usavam o
nome] da família Sasan continuaram reivindicando o controle sobre as áreas de
Cabulistão e Zabulistão, no Irã Oriental, inclusive enviando embaixadas com
tributos para a corte Tang até meados do século VIII, mesmo após a Batalha
de Talas, em 751, sacramentar a dominação islâmica sobre a Ásia Central.
Enquanto, para os últimos sassânidas no leste do Irã, o apoio chinês
representava a sua maior chance de recuperar o território perdido e
restabelecer o Império Sassânida, para os chineses, a submissão de líderes
estrangeiros “reforçava o ideal de superioridade da civilização chinesa sobre o
mundo, com sua esfera de influência chegando em terras longínquas do
Ocidente” [Oliveira, 2021: 51]. Esse ideal está bem representado na entrada
para a tumba do Imperador Gaozong no Mausoléu de Qianling, rodeada por um
grupo de estátuas de pedra em posição de reverência que retratam líderes e
emissários estrangeiros que, em sua maioria, serviram à dinastia como
vassalos ou oficiais militares. Para Tonia Eckfeld [2005: 23-25], essas estátuas,
em conjunto com as outras esculturas que flanqueiam o caminho para a
câmara funerária imperial, simbolizam a dimensão do poder acumulado pelo
imperador em vida. Hoje, todas as estátuas estão decapitadas e com suas
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inscrições apagadas pelo tempo, mas algumas delas foram registradas na obra
Chang’an Zhitu [Registro Ilustrado de Chang’an], escrita por Li Haowen durante
a Dinastia Yuan [1279-1368], que inclui o nome de Peroz na lista de emissários
estrangeiros [Pashazanous e Sangari, 2018: 502-503].
Vemos, portanto, que a história de Peroz é um bom ponto de partida para
analisarmos o contexto político em que o Irã e a China se encontravam no
século VII, evidenciando a existência de relações diplomáticas entre potências
tão distantes quanto a China e o Império Sassânida, possibilitadas pelo
desenvolvimento da Rota da Seda ao longo da Ásia Central, e que levaram ao
exílio de um príncipe persa na corte chinesa em Chang’an. A relação entre os
últimos sassânidas e a Dinastia Tang nos ajuda a entender o nível de
complexidade das interações políticas entre as sociedades asiáticas naquele
período.
Referências
Samantha Alves de Oliveira é licenciada e mestranda em História pela
Universidade de Brasília, sob a orientação do professor Leandro Duarte Rust.
Dedica-se, desde 2018, ao estudo das relações entre a China Tang e o Império
Sassânida, utilizando como fonte principal o Jiu Tang Shu. E-mail:
[email protected]
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OLIVEIRA, Samantha Alves. O último sassânida? A narrativa do Jiu Tang Shu
sobre o fim de um império persa. Trabalho de Conclusão de Curso
[Licenciatura em História] – Universidade de Brasília, Brasília, 2021.
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