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Série Ensino, Aprendizagem e Tecnologias
Educação em
Direitos Humanos
Rochele Fellini Fachine�o
Fernando Seffner
Renan Bulsing dos Santos
Organizadores
2ª edição
Reitor
Rui Vicente Oppermann
Vice-Reitora e Pró-Reitora
de Coordenação Acadêmica
Jane Fraga Tutikian
EDITORA DA UFRGS
Diretor
Alex Niche Teixeira
Conselho Editorial
Álvaro Roberto Crespo Merlo
Augusto Jaeger Jr.
Carlos Pérez Bergmann
José Vicente Tavares dos Santos
Marcelo Antonio Conterato
Marcia Ivana Lima e Silva
Maria Stephanou
Regina Zilberman
Tânia Denise Miskinis Salgado
Temístocles Cezar
Alex Niche Teixeira, presidente
Série Ensino, Aprendizagem e Tecnologias
Educação em
Direitos Humanos
Rochele Fellini Fachine�o
Fernando Seffner
Renan Bulsing dos Santos
Organizadores
2ª edição
© dos autores
1ª edição 2017
Direitos reservados desta edição:
Universidade Federal do Rio Grande do Sul
Coordenação da Série:
Laura Wunsch, Cínthia Kulpa, Tanara Forte Furtado e Marcello Ferreira
Coordenação de Editoração: Cínthia Kulpa e Ely Petry
Capa: Ely Petry
Editoração Eletrônica: Bruno Assis, Ellen Rosa, Francine Aires
Revisores da 1ª edição: Carolina Rodrigues e Moira Revisões
Esta obra é resultante do Curso de Aperfeiçoamento Educação em Direitos Humanos, financiado
pelo Ministério de Educação (MEC) e Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE)
e ofertado pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) através do Centro de
Formação de Professores (FORPROF) no ano de 2014.
O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de
Nível Superior - Brasil (CAPES) - Código de Financiamento 001.
E24
Educação em Direitos Humanos [ recurso eletrônico] / organizadoras Rochele
Fellini Fachinetto, Fernando Seffner [e] Renan Bulsing dos Santos ; coordenado pela SEAD/UFRGS. – 2. ed. – dados eletrônicos. – Porto Alegre:
Editora da UFRGS, 2018.
254 p. ; pdf
(Série Ensino, Aprendizagem e Tecnologias)
Inclui referências.
1. Educação. 2. Direitos Humanos. 3. Cidadania. 4. Violência – Espaço escolar. 5. Conflitos – Cotidiano escolar. 6. Prática docente – Direitos Humanos.
7. Gênero – Escola – Democracia. 8. Dominação masculina. 9. Sexualidade – Juventude. I. Fachinetto, Rochele Fellini. II. Seffner, Fernando. III. Santos, Renan
Bulsing dos. IV. Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Secretaria de
Educação a Distância. V. Série.
CDU 37:342.7
CIP-Brasil. Dados Internacionais de Catalogação na Publicação.
(Jaqueline Trombin– Bibliotecária responsável CRB10/979)
ISBN 978-85-386-0444-0
ADVERTÊNCIA
Uma das principais preocupações deste trabalho é o uso de linguagem
inclusiva de gênero. Porém, com o intuito de preservar a fluidez da leitura
e evitar sobrecarga gráfica, optou-se pelo emprego do masculino genérico,
quando não especificada a diferenciação de gênero. Os trechos em itálico
reproduzem falas de estudantes, profissionais da educação e responsáveis,
aqui apresentadas conforme a expressão de seus autores no momento das
entrevistas.
AGRADECIMENTOS
Agradecemos ao empenho dos docentes, tutores e tutoras, coordenação,
pessoal técnico administrativo da UFRGS, do MEC e dos quatro polos
abrangidos pela Secretaria de Educação à Distância da UFRGS: Porto
Alegre, Santo Antônio da Patrulha, São Francisco de Paula e Sapucaia do
Sul, que tornaram possível a realização do curso de aperfeiçoamento em
regime EAD Educação em Direitos Humanos, do qual resultou este livro.
Em especial agradecemos aos cursistas, professores e professoras do ensino
fundamental e ensino médio dos quatro municípios, que se dispuseram a
rever suas práticas, a enfrentar delicadas questões de respeito à diferença
no âmbito da docência e a modificar os regimes escolares, possibilitando
abertura para novos caminhos pedagógicos pautados nos direitos humanos.
SUMÁRIO
Capítulo 1
EDUCAÇÃO EM DIREITOS HUMANOS: COMPONENTE
CURRICULAR INDISPENSÁVEL NA ESCOLA PÚBLICA
BRASILEIRA CONTEMPORÂNEA ............................................................ 9
Rochele Fellini Fachinetto, Fernando Seffner, Renan Bulsing dos Santos
Capítulo 2
DIREITOS HUMANOS: TUDO A VER COM A NOSSA VIDA ........... 27
Paulo César Carbonari
Capítulo 3
CIDADANIA E DIREITOS HUMANOS: PARA TODOS
OU PARA ALGUNS? ................................................................................ 45
Denise Dourado Dora
Capítulo 4
VIOLÊNCIAS E CONFLITUALIDADES
NO ESPAÇO ESCOLAR ...........................................................................63
Rochele Fellini Fachinetto
Capítulo 5
O COTIDIANO ESCOLAR COMO UM AMBIENTE
DE CONFLITOS E OS DIREITOS HUMANOS
COMO ESTÍMULO À SUA SOLUÇÃO PACÍFICA ............................... 77
Renan Bulsing dos Santos
Capítulo 6
O INCREMENTO DA PRÁTICA DOCENTE A PARTIR
DA EXPERIÊNCIA DA TUTORIA PRESENCIAL:
PERCURSO DE (RE)SENSIBILIZAÇÃO ATRAVÉS
DA TEMÁTICA DOS DIREITOS HUMANOS ........................................89
Rúbia Aparecida Cidade Borges
7
......
8
......
Capítulo 7
GÊNERO NA ESCOLA E DEMOCRACIA À BRASILEIRA:
LIMITES E DESAFIOS PARA UMA VIDA LIVRE
DE DISCRIMINAÇÃO E VIOLÊNCIA ...................................................103
Fabiane Simioni
capítulo 8
DOMINAÇÃO MASCULINA: A VIOLÊNCIA SIMBÓLICA
NOSSA DE CADA DIA ..........................................................................123
Elisa Girotti Celmer
Capítulo 9
SEXUALIDADE E JUVENTUDE: PEGAR, FICAR E NAMORO.........139
Paula Pinhal de Carlos
Capítulo 10
EDUCAÇÃO PARA A SEXUALIDADE,
EQUIDADE DE GÊNERO E DIVERSIDADE SEXUAL:
APONTAMENTOS PARA FORMAÇÃO
DE PROFESSORES(AS) DA EDUCAÇÃO BÁSICA ..........................163
Alessandra Maria Bohm
Capítulo 11
EDUCAÇÃO A DISTÂNCIA: UMA FERRAMENTA
POSSÍVEL DE INCLUSÃO E REINSERÇÃO DE LGBTS
AO ESPAÇO EDUCACIONAL............................................................... 175
Amilton Gustavo da Silva Passos
Capítulo 12
QUANDO AIDS, GÊNERO, SEXUALIDADE E DIREITOS
HUMANOS SE ENCONTRAM NO TERRITÓRIO ESCOLAR ............191
Cláudio Nunes, Fernando Seffner
RESUMOS DOS TRABALHOS FINAIS DOS ALUNOS ....................207
SOBRE AUTORAS E AUTORES ...........................................................251
Capítulo 1
EDUCAÇÃO EM DIREITOS HUMANOS:
COMPONENTE CURRICULAR
INDISPENSÁVEL NA ESCOLA PÚBLICA
BRASILEIRA CONTEMPORÂNEA
Rochele Fellini Fachinetto
Fernando Seffner
Renan Bulsing dos Santos
1. NÃO SE TRATA DE MAIS UM MODISMO EDUCACIONAL
Desde a promulgação da Constituição Brasileira de 1988, que
estabeleceu a obrigatoriedade da escolarização no ensino fundamental,
a escola pública brasileira passou não apenas por um forte processo de
inclusão (materializada no slogan e no programa “todos na escola”) como
também tem sido assolada por uma avalanche de temas que se entendeu que
ela deveria tratar. Câmaras de vereadores, assembleias legislativas, câmara
federal, conselhos de educação e diretivas do executivo propuseram à escola a
abordagem de educação sexual, educação para a paz, educação para o trânsito,
noções do código do consumidor, direitos da criança e do adolescente,
educação estética e musical, conhecimento de línguas estrangeiras para além
do inglês, ensino religioso, preparação para o trabalho, educação ambiental,
multiculturalismo, educação antirracista, ética e cidadania, educação para
a saúde, educação para as competências e habilidades, conhecimentos
9
......
10
......
e práticas da alimentação saudável, dentre outros temas de caráter mais
episódico e pontual. Muitas vezes, delegar à escola o ensino de certos
temas representa certa incompetência de outros órgãos e instâncias sociais
que não têm sucesso em sua missão educativa e acabam por enxergar na
escola a alternativa para efetivar o que não conseguem fazer. O ingresso
dessa avalanche de conteúdos e questões na estrutura curricular tem se
dado basicamente através de três formas: na criação de novas disciplinas
(ensino religioso, ética e cidadania, educação para o trânsito, por exemplo);
na abordagem via temas transversais dentro das disciplinas (educação sexual;
educação para a paz; abordagens do multiculturalismo, por exemplo) ou
na execução de projetos interdisciplinares com duração temporal variável
e agregando certo número de disciplinas (educação antirracista, educação
ambiental, conhecimentos e práticas da alimentação saudável, por exemplo).
Este movimento de delegar à escola uma série de novos conteúdos e
funções deriva de uma conexão entre vários fatores: ampliação e aprofundamento do regime democrático brasileiro; a intensificação das lutas políticas
e pelos direitos de comunidades e atores sociais; a inclusão obrigatória de
todos e todas na escola de ensino fundamental; a ampliação da oferta de
ensino médio tanto pelo acesso dos jovens quanto pelo retorno aos bancos
escolares de indivíduos que haviam se evadido; o crescimento do acesso ao
ensino superior; o ingresso na escola de grupos sociais marginalizados; o
crescimento da oferta de escolas públicas em regime de turno integral, com
a consequente ampliação do horário de cobertura escolar; a abertura das
escolas aos finais de semana, através do Programa Mais Educação1 e de outras
iniciativas, funcionando como locais de agregação e convívio das culturas
juvenis. A forte ampliação da presença da rede escolar no Brasil em todo o
território nacional se conjuga com demandas de integração e inclusão social
que todas elas passam pela necessidade de formação escolar. Ir à escola não
é mais algo opcional, é agora obrigatório por lei e exigência indispensável
para inserção no mundo do trabalho e na sociedade do conhecimento e da
informação.
1 Mais informações em: <http://portal.mec.gov.br/programa-mais-educacao>. Acesso em: out. 2015.
Todo este conjunto de pressões afeta a escola, os gestores dos sistemas
de ensino, os alunos e alunas, pais e famílias e principalmente professores e
professoras, que têm estado no centro de intermináveis debates sobre quais
conteúdos devem ser ensinados e quais os modos mais adequados de ensinar
e se são competentes ou não para o exercício da docência. A isso, somaramse pelo menos dois outros fatores de estresse educacional: o primeiro são os
exames e avaliações nacionais e internacionais rotineiros, que mensuram as
competências, os conhecimentos e as habilidades do alunado, oportunizando
comparações entre turmas de alunos, entre escolas e grupos de escolas, entre
redes escolares de diferentes entes federativos, entre países e continentes, e
gerando um impacto sem precedentes na mídia nacional, que deles se ocupa
de modo insistente e em tom francamente alarmista. O segundo fator de
estresse são as polêmicas acerca do financiamento da educação pública, que
envolve gastos que vão da merenda escolar até a aquisição de equipamentos
de informática, passando pelo transporte dos alunos, aquisição massiva de
livros didáticos, ampliação de prédios, construção de quadras esportivas,
dentre outras rubricas.
É necessário reconhecer que nas últimas décadas a profissão docente
tem enfrentado desafios enormes, que vão desde os baixos salários, passando
pela exigência de novos conhecimentos e chegando até a necessidade de
gerência das situações de indisciplina e violência entre alunos e aquelas
dirigidas aos próprios docentes, que são rotineiras nos espaços escolares no
Brasil e no mundo; basta um exame aos noticiários diários. É nesse contexto
que tem avançado a demanda por oportunidades de formação continuada
para professores e professoras, feita pelos próprios docentes e por suas
associações. Claro está que a formação continuada não vai resolver todos
os problemas apontados acima, vários dos quais são decisões de gestores,
mas ela pode colaborar para ampliar as oportunidades pedagógicas em
sala de aula. Não é mais possível permanecer em atividade na sala de aula
apenas com o que foi aprendido na formação inicial nas licenciaturas. É
necessário ter espaços de aprendizagem constante para os professores
acerca das culturas juvenis, dos impasses políticos da educação nacional, das
novas teorias e métodos de ensino e aprendizagem, dos novos conteúdos
11
......
12
......
e temas transversais, das possibilidades tecnológicas que se abrem a todo
instante no cenário educacional. O dinamismo do sistema educacional, com
a incorporação dos novos conhecimentos, efetivamente implica oportunizar
aos professores boas condições de formação continuada.
No meio dessa realidade altamente dinâmica e cheia de conflitos e
enfrentamentos entre os diferentes modos de conceber a natureza e funções
da educação pública nacional, o objetivo deste texto é analisar a necessidade
e importância da presença da Educação em Direitos Humanos na escola
pública brasileira. Não se trata de inserir mais um componente, mas de
agregar diversos conteúdos, objetivos e estratégias educacionais e políticas
já presentes no ambiente escolar no interior de uma robusta preocupação
com os direitos humanos. Para compreender a importância da Educação em
Direitos Humanos na escola pública brasileira, é necessário discutir a função
e propósitos que a escola assume na contemporaneidade e detalhar a nova
feição de sua figura central, a saber, o corpo de professores e professoras, bem
como conhecer a natureza do campo dos direitos humanos e o ordenamento
jurídico que estabelece a obrigatoriedade de seu ensino em todos os níveis e
graus de escolaridade no país. Nos tópicos seguintes abordamos estes itens e
no final do texto apresentamos os artigos que compõem este livro, produto
final de um curso para professores e professoras em Educação em Direitos
Humanos. Mostramos também algo da estruturação e funcionamento do
curso, o que permite perceber melhor nossa compreensão de como se
organiza o campo dos direitos humanos.
2. ESCOLA PÚBLICA E PROFESSOR PÚBLICO NO CENÁRIO
POLÍTICO ATUAL2
A função social da escola pública experimentou variações ao longo das
diferentes conjunturas históricas nacionais, com reflexos nas disciplinas e
no ordenamento curricular. Nenhuma instituição atravessa a história sem
2 A exposição de motivos feita neste item está mais bem desenvolvida no artigo “Escola pública e professor como
adulto de referência: indispensáveis em qualquer projeto de nação”, de autoria de Fernando Seffner, em fase de publicação na Revista Educação Unisinos. Disponível em: http://revistas.unisinos.br/index.php/educacao/index>.
experimentar modificações, o que afeta também a representação de seus
integrantes frente à sociedade. No cenário político atual, a escola pública
brasileira pode ser mais bem compreendida quando tomada em dupla função:
a tradicional tarefa de instituição para aquisição do conhecimento científico
acrescida fortemente de local onde jogam importante papel os processos de
sociabilidade e socialização. Frente à comunidade de pais e famílias, bem
como sociedade em geral, a escola retira boa parte da legitimidade social
pela função de alfabetização científica. Em outras palavras, para isso que
a ela são encaminhadas as novas gerações, para aprender a ler, escrever,
interpretar, realizar as operações matemáticas, conhecer os conteúdos
fundamentais da história e da geografia do país e do mundo, dominar uma
língua estrangeira, ter contato com as artes, com as novidades tecnológicas e
desenvolver habilidades esportivas.
Embora todos admitam que o conhecimento hoje se encontra disseminado no mundo virtual, havendo mesmo quem defenda a tese de que
uma criança deixada na frente de um computador conectado à web poderá
aprender mais e melhor do que na escola, pais e famílias ainda percebem a
escola como o melhor local para a aprendizagem. É visível, entretanto, que
na sociedade atual o pressuposto de que “os mais velhos educam os mais
jovens” se encontra fortemente sacudido e quando se trata do domínio de
tecnologias de informação e comunicação parece haver amplo consenso de
que são os mais jovens que ensinam os mais velhos. Todas essas constatações
abalam de certa forma o prestígio da escola, mas claramente a sociedade
ainda não inventou outra instituição capaz de educar as novas gerações e
a escola segue com sua tarefa de acesso ao conhecimento, embora com o
reconhecimento de que ela necessita se atualizar, o que é dito de modo
constante por muitos e diferentes atores sociais.
Se por um lado se pede que a escola se atualize, a força da tradição
indica que há um conjunto de procedimentos altamente valorizados para
aquisição do conhecimento e que marcam o cotidiano escolar, dentre eles:
as novas gerações precisam aprender a disciplina da leitura e interpretação
de textos. A busca do conhecimento científico se dá via pesquisas e coleta de
informações; é importante aprimorar o registro escrito dos aprendizados.
13
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......
Além de aprender novos conhecimentos, as novas gerações necessitam
aprender a expor seu pensamento, debater com os colegas, confrontar
pontos de vista divergentes, expressar-se em público e aprimorar as
argumentações; o livro é elemento fundamental para o bom aprendizado.
O professor desempenha importante papel de avaliação e monitoramento
das aprendizagens; o bom professor é capaz de discorrer sobre os conteúdos
que leciona e os bons alunos devem saber escutar o que ele diz. Os alunos
também estão na escola para serem disciplinados e aprender a enfrentar
testes e provas; é desejável que os alunos percebam conexões entre as
diferentes disciplinas, compondo um quadro complexo do conhecimento,
não restrito apenas ao conteúdo de cada disciplina.
Por fim, ainda no tópico conhecimento, a escola promove o acesso a
um saber diferenciado daquele que se aprende no âmbito da família e este
é um horizonte sensível para temas como questões de gênero e sexualidade,
origem da espécie humana, filosofia da história, estudo da presença africana
na cultura brasileira contemporânea, arqueologia, dentre muitos outros
tópicos em que se alojam questões polêmicas. Dessa forma, vale lembrar
que a educação é um bem público e a escola uma instituição que deve se
pautar pelos princípios da laicidade do Estado, em particular enfatizando
as liberdades laicas, a saber: o acesso ao conhecimento marcado pela mais
ampla liberdade de crença, pela mais ampla liberdade de consciência e pela
mais ampla liberdade de manifestação e exposição e debate dos pontos
de vista, em clima de respeito e negociação das diferenças. O percurso
escolar é caminho de entrada no espaço público, que funciona sob lógicas
completamente diferentes do que o ambiente privado das famílias e isso
é fundamental de ser lembrado quando dos processos de aquisição do
conhecimento. Escola não é local para confundir educação com catequese
ou doutrinamento, pois isso não é próprio da alfabetização científica, em
que o convívio com a dúvida, a incerteza e os questionamentos constitui a
regra.
A escola não se caracteriza, contudo, apenas pela marca do acesso ao
conhecimento. Cada vez mais, no cenário contemporâneo, ela é local para
os processos de sociabilidade e socialização. Entendemos aqui sociabilidade
como o aprendizado de modo livre e espontâneo que acontece entre as
crianças e jovens, testando os modos de relacionamento uns com os outros,
ampliando seus círculos de relação, aprendendo o valor da amizade, que
não se confunde com os laços de sangue da família, pois é livremente
escolhida. Ao lado disso, a escola se pauta pelo aprendizado dos processos
de socialização, ou seja, o conhecimento e experimentação de um conjunto
de regras que marcam nosso convívio no espaço público e que são
fortemente influenciadas pelas estratégias de negociação das diferenças. O
espaço público é local de diversidade e convívio dos diferentes, portanto
local regrado por códigos que nos fazem aprender que a vida em sociedade
não é mera extensão das lógicas da vida familiar. Dessa forma, é na escola,
em atividades simples, que alunos e alunas aprendem códigos de respeito
às diferenças, que são as mais variadas: diferenças de pertencimento
religioso; diversidade de modos de expressão de gênero e orientação sexual;
diversidade dos modos de organização familiar das quais alunos e alunas
provém; diversidade de classe social de origem dos alunos; diversidade de
compreensões políticas acerca do mundo e de vinculações a instituições
como partidos, associações e sindicatos; diversidade de códigos morais de
conduta; diversidade de projetos de vida; diversidade de gostos musicais e
estéticos em geral; diversidade de compreensão das questões de raça e etnia;
etc. Toda essa diversidade necessita de códigos de convivência e isso marca
então os processos de socialização, em que crianças e jovens aprendem a
conviver e negociar pontos de vista para a vida em sociedade.
Com os fortes processos de inclusão de todos e todas na escola a partir
do ordenamento jurídico posto pela Constituição de 1988, esta marca da
vida escolar vem adquirindo grande importância. A escola pública brasileira
foi historicamente reservada para as classes médias e parte da classe operária,
basicamente de crença católica e cor branca, e com certa homogeneidade
de gostos culturais. Hoje, basta circular pelos corredores, salas de aula e
horários de recreios das escolas para perceber a enorme diversidade de
culturas juvenis. Essa situação provoca complexos processos de negociação
das diferenças, que tensionam a instituição. A escola conviveu historicamente
com a simples expulsão dos diferentes e aqueles que ela em geral considerava
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......
inadequados para a aprendizagem, mas no cenário contemporâneo, com a
escolaridade obrigatória, esse recurso não tem mais como ser utilizado. A
noção do direito à aprendizagem educação é uma conquista importante do
regime democrático brasileiro, que trouxe para a escola a necessidade de
produção de estratégias de negociação das diferenças visando à garantia do
acesso e da permanência nos bancos escolares.
Fruto dessa situação, cada vez mais as escolas organizam seus projetos
político-pedagógicos e regimentos disciplinares com vistas a promover
estratégias de boa convivência entre alunos e alunas, o que envolve
necessariamente mediação de conflitos. É nesse campo que a Educação em
Direitos Humanos cada vez mais se faz presente. O percurso escolar não é
apenas um aprofundamento no conhecimento científico do mundo, ele é
também a progressiva inserção dos jovens no espaço público, a compreensão
de que os modos de gestão da vida que marcam a família não são suficientes
para gerir o mundo. Em outras palavras, cabe à escola mostrar que a
sociedade não é mera extensão da família, embora muito se afirme que
“a família é a base da sociedade”. A família é o mundo do privado e seus
códigos de funcionamento são insuficientes para pensar um ordenamento
com justiça social. A escola é, em geral, a primeira instituição de natureza
pública em que crianças e jovens se inserem de modo prolongado e ela é,
dessa forma, como um laboratório para a inserção no mundo público. Essa
dimensão da função escolar, que por vezes já foi chamada de construção
da cidadania, vem ganhando cada vez mais relevo nas últimas décadas, em
especial pelo recuo das famílias e de outras agências como educadoras para
a vida em sociedade e por conta da ampliação da escola de turno integral,
na qual crianças e jovens passam o dia todo e não apenas estudam, mas
convivem, visitam museus, organizam grupos pelo gosto musical, namoram,
constroem redes de amizade, fazem as refeições em conjunto, dispõem
de horas para estudo em grupo ou individual, organizam festas, feiras e
mostras, etc. E é neste terreno que a Educação em Direitos Humanos presta
valiosa colaboração. Trata-se de acionar pedagogias culturais que visam à
autonomia dos indivíduos para decidir sobre si, seu corpo, suas trajetórias,
seus pertencimentos políticos; mas tudo isso em estreita conexão com
o domínio das leis, da justiça, do direito, dos deveres e obrigações e do
respeito para com os demais.
Pensada a escola nesta dupla chave – local de alfabetização científica e
local de preparação para a vida no espaço público em sociedade – podemos
refletir agora sobre as marcas identitárias dos professores, que constituem a
alma das escolas, uma vez que eles são seu quadro permanente. Coerente com
o que analisamos para a escola, seus docentes podem ser pensados também
em dupla chave. A primeira marca identitária dos professores é o domínio
dos conhecimentos de uma disciplina, que é de onde provém sua autoridade
intelectual. Professor é o que ensina e ensina a partir do conhecimento de
uma determinada disciplina, por vezes área do conhecimento mais ampla,
como ocorre nas séries iniciais. Para além de entender de uma disciplina,
é bastante desejável que o professor tenha uma relação de empatia e
gosto pelo conhecimento daquela disciplina e pelo saber de modo geral.
Ensinar não é apenas transmitir conhecimentos, ensinar é mostrar o gosto
pelo conhecimento e isso só é possível se quem ensina gosta do que faz. É
perceptível quando estamos frente a professores e professoras que têm um
gosto genuíno pelo que ensinam ou frente a outros que desempenham essa
tarefa de modo essencialmente burocrático. Em resumo, para dar boas aulas
de História, a pessoa tem que, em primeiro lugar, gostar de História, não
há solução possível para isso a não ser por uma disposição individual. Para
além de gostar, é necessário desenvolver uma didática própria de ensino,
mas, sem o gostar, todo o trabalho que se segue fica comprometido. Ensinar
algo para as novas gerações é em parte estar convencido da legitimidade e da
importância daquilo que se ensina e se o(a) professor(a) não está animada
por esse espírito, todo seu trabalho experimenta comprometimento. Uma
vez que se goste e se esteja convencido da importância daquela disciplina
para a vida futura das novas gerações, entra em cena o aspecto propriamente
profissional da docência, que é a produção de estratégias pedagógicas
adequadas, o que distingue alguém que simplesmente gosta de História
daquele profissional que não apenas gosta, mas gosta e sabe ensinar História,
que são professores e professoras.
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......
A segunda marca identitária de professores e professoras, em sintonia
com o que se falou da escola, é atuar como um adulto de referência frente
às novas gerações. Um aluno precisa reconhecer no professor não apenas
alguém que tem expertise em determinada disciplina, mas alguém que
representa o mundo dos adultos e com quem ele pode conversar acerca
de muitos temas a partir das lógicas já expressadas das liberdades laicas:
desenvolvendo a mais ampla liberdade de manifestação de opiniões. O
professor, como adulto de referência, aposta no diálogo acerca dos temas de
interesse das culturas juvenis e na apresentação do mundo, sem fazer disso
uma pregação religiosa, pois ele não lida com dogmas, mas reconhece que
as novas gerações podem mudar elementos que estruturam o mundo ao
mesmo tempo em que precisam reconhecer como o mundo se ordena. Essa
dimensão do exercício da docência mistura elementos de ética, cidadania,
capacidade de diálogo aberto e franco com as novas gerações e disposição
para compreender os traços marcantes das culturas juvenis, como gostos
musicais. Não se trata de gostar de tudo que os jovens gostam, mas de ter
disposição para dialogar com eles acerca dos temas que surgem como foco
de interesse, e orientar esse diálogo pelos princípios que regem o espaço
público; basicamente, a capacidade de respeitar e conviver com as diferenças,
não querendo transformar o mundo em uma extensão dos valores privados.
Um professor atua como adulto de referência quando ele ajuda os alunos a
entender que o mundo se organiza a partir de uma multiplicidade de pontos
de vista e que a vida em sociedade exige um considerável grau de negociação
das diferenças. E mais uma vez salientamos que todo esse esforço de convívio
com a diferença deve ser feito no quadro dos direitos humanos e, para isso,
as escolas devem se ocupar da Educação em Direitos Humanos.
3. O CAMPO DA EDUCAÇÃO EM DIREITOS HUMANOS
A compreensão moderna de direitos humanos está conectada com
o postulado da dignidade humana universal: há um valor intrínseco à vida
humana que a torna digna. E dessa dignidade, estendida a todos os seres
humanos (independentemente de gênero, raça, credo ou nacionalidade),
decorre um conjunto mínimo de direitos indivisíveis, inalienáveis e
garantidos no âmbito global, escapando às fronteiras geográficas dos
Estados nacionais. São direitos fundamentais à existência humana. É nessa
direção que os direitos humanos vêm sendo definidos, pelo menos desde a
criação da Organização das Nações Unidas em 1948. Desde então, vemos
um progressivo engajamento da comunidade internacional no sentido de
estabelecer com maior clareza e profundidade quais seriam esses direitos
mínimos, bem como quais são os compromissos dos Estados nacionais em
garantir a efetividade deles.
Um elemento imprescindível para que os indivíduos e os povos tenham
seus direitos humanos efetivados é a consciência de sua existência. Por isso
a importância da Educação em Direitos Humanos: é preciso ensinar a todos
os destinatários desses direitos que eles existem e podem ser acionados, e
que devem cobrar de seus Estados nacionais a sua efetivação e denunciar
para a comunidade internacional as situações de violação. O principal
esforço da ONU em promover o tema ocorreu com a declaração da Década
da Educação em Direitos Humanos, de 1995 a 2004. Com isso, os Estados
compositores das Nações Unidas foram instados a promoverem o tema em
âmbito interno, no intuito de estimular uma cultura de respeito e promoção
dos direitos humanos. Como orientação para o cumprimento da tarefa, foi
elaborado o Plano de Ação Internacional da Década das Nações Unidas para
a Educação em Matéria de Direitos Humanos (1995-2004)3.
Aproveitando as iniciativas e trocas de experiências promovidas ao longo
da década, em dezembro de 2004 a Assembleia Geral das Nações Unidas
proclamou o Programa Mundial para Educação em Direitos Humanos
(Resolução nº 59/113-A). O objetivo foi oferecer orientações e subsídios
para a construção de programas educacionais voltados ao tema. Enquanto
a década foi prevista para ocorrer durante um determinado período, o
Programa Mundial é uma proposta permanente que vem sendo aplicada em
fases, sendo a primeira delas (2005-2009) voltada para a educação básica4,
3 Disponível em: <http://www.gddc.pt/direitos-humanos/serie_decada_1_b.pdf>. Acesso em: out. 2015.
4 Disponível em: <http://unesdoc.unesco.org/images/0014/001478/147853por.pdf>. Acesso em: out. 2015.
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a segunda (2010-2014)5 para a educação superior e a atual terceira (20152019) voltada para a mídia6. Ainda no âmbito internacional, cabe citar a
aprovação, em março de 2011, da Declaração das Nações Unidas Sobre
a Educação e Formação em Direitos Humanos (Resolução 16/1), adotada
pela Assembleia Geral da ONU em dezembro do mesmo ano (Resolução
66/137).
Voltando-se ao plano interno do Brasil, a preocupação com os direitos
humanos toma corpo a partir dos anos 1980, invocada pelos movimentos
sociais na luta a favor do encerramento da ditadura militar e reinstauração
do regime democrático republicano. Como afirma Sader (2007, p. 81),
“[...] no período prévio à ditadura militar, o tema dos direitos humanos não
fazia parte da pauta de debates políticos, nem dos programas educacionais,
ficando reduzido aos currículos dos estudos jurídicos. Foi durante a ditadura
militar que o tema dos direitos humanos ganhou espaço de destaque”. No
plano nacional, comissões de direitos humanos, compostas por juristas,
membros da Igreja Católica, do meio universitário, de movimentos sociais,
foram incorporados ao campo das lutas políticas, dos debates, das denúncias,
das matérias de jornal, de teses acadêmicas. A temática passou a disputar
espaço no discurso hegemônico, no plano nacional.
A Constituição Federal de 1988 consolida essa demanda, incluindo
em seu texto diversos dispositivos relacionados à garantia de direitos
fundamentais à dignidade humana. Especial destaque merecem os diversos
incisos do Artigo 5º, que concentram a maior parte desses direitos. Com isso,
os direitos humanos tornam-se o debate mais presente na agenda pública
nas décadas de 1980 e 1990. O compromisso com o tema é reafirmado
pelo Estado brasileiro em 1996, com a elaboração da primeira edição do
Programa Nacional de Direitos Humanos I (PNDH). Uma segunda edição
do programa foi elaborada em 2002, até chegarmos à terceira e mais recente
versão, o PNDH III, em 2010. Nessa versão do Plano Nacional de Direitos
Humanos há um eixo orientador dedicado com exclusividade à promoção e
garantia da Educação em Direitos Humanos.
5 Disponível em: <http://unesdoc.unesco.org/images/0021/002173/217350por.pdf>. Acesso em: out. 2015.
6 Disponível em: <http://unesdoc.unesco.org/images/0023/002329/232922POR.pdf>. Acesso em: out. 2015.
Com a Portaria nº 98, em julho de 2003, ocorre a criação do Comitê
Nacional para a Educação em Direitos Humanos, vinculado ao Ministério
da Justiça. Esse grupo, em conjunto com a Secretaria de Direitos Humanos
da Presidência da República e o Ministério da Educação, encarrega-se da
elaboração do Plano Nacional de Educação em Direitos Humanos (PNEDH),
Portaria nº 66/2003 da SEDH7. Esse plano foi revisto e sua versão final
data de dezembro de 20068. O PNEDH dialoga com o Programa Mundial
de Educação em Direitos Humanos da ONU, contendo princípios e ações
programáticas orientadoras da ação política do Estado voltadas para cinco
eixos: educação básica, educação superior, educação não formal, educação
dos profissionais dos sistemas de justiça e segurança e educação e mídia.
Em abril de 2009, o Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação
(FNDE) elabora a Resolução CD/FNDE nº 15, que estabelece orientações
e diretrizes para a produção de materiais didáticos e paradidáticos voltados
para a promoção, no contexto escolar, da Educação em Direitos Humanos9.
Em 2012, o Conselho Nacional de Educação, por meio do Parecer n 8/2012
e da Resolução n 1/2012, aprova as Diretrizes Nacionais para a Educação
em Direitos Humanos (DNEDH)10. Não se trata de diretrizes curriculares,
pois não tratam apenas de currículo, englobando também gestão da vida
institucional educativa.
A aprovação da segunda versão do Plano Nacional de Educação em
2014 (Lei 13.005/2014) conferiu aos municípios o prazo de um ano
para se adequarem, elaborando os seus respectivos Planos Municipais
de Educação (PMEs), sob pena de restrição de repasses financeiros e da
adesão a programas do governo federal voltados para a educação. O não
recebimento de tais recursos traria consequências negativas para as contas
dos municípios, motivo pelo qual houve certa pressa na aprovação e sanção
dos planos pelas autoridades municipais até 24 de junho de 2015. A pressa
7 Disponível em: <http://new.netica.org.br/prevencao/cartilha/plano-educdh.pdf>.Acesso em: out. 2015.
8 Disponível em: <http://portal.mec.gov.br/index.php?option=com_docman&view=download&alias=2191-plano
-nacional-pdf&category_slug=dezembro-2009-pdf&Itemid=30192>. Acesso em: out. 2015.
9 Disponível em: <https://www.fnde.gov.br/fndelegis/action/UrlPublicasAction.php?acao=abrirAtoPublico&sgl_tipo=
RES&num_ato=00000015&seq_ato=000&vlr_ano=2009&sgl_orgao=CD/FNDE/MEC>. Acesso em: out. 2015.
10 Disponível em: <http://portal.mec.gov.br/index.php?option=com_docman&view=download&alias=10889-rcp001
-12&category_slug=maio-2012-pdf&Itemid=30192 >. Acesso em: out. 2015.
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dificultou a amplitude e profundidade dos debates locais com a sociedade
civil e resultou em diversas cidades do país enfrentando forte lobby religioso
das igrejas militando contra a inclusão do que foi chamado de “ideologia
de gênero” nas escolas. As assembleias legislativas municipais se viram
constrangidas a remover quaisquer referências ao enfrentamento do
machismo e da homofobia, lesbofobia e transfobia nas escolas, bem como
remover políticas voltadas à inclusão das minorias sexuais e compreensão
sobre questões de gênero e sexualidade. De toda forma, esses temas estão
postos para debate nas escolas através de um número de ações e programas,
bem como de materiais didáticos e livros que já circulam nacionalmente. A
necessidade de debater tais temas, bem como a compreensão da Educação
em Direitos Humanos, leva à necessidade de formação docente continuada.
4. FORMAÇÃO DOCENTE CONTINUADA EM EDUCAÇÃO EM
DIREITOS HUMANOS
A formação continuada dos professores da educação básica encontrase entre as prioridades do Ministério da Educação explicitadas no Plano
de Desenvolvimento da Educação (PDE), para garantir uma educação de
qualidade, centrada no aprendizado do educando. A criação da Política
Nacional de Formação de Profissionais do Magistério da Educação Básica
é uma das respostas a esse compromisso. Instituída pelo Decreto 6.755 de
29 de janeiro de 2009, a Política Nacional de Formação de Profissionais
do Magistério da Educação Básica tem por finalidade apoiar, em regime de
colaboração entre a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, a
formação inicial e continuada dos professores das redes públicas da educação
básica. Em consonância com o Plano de Desenvolvimento da Educação,
que prioriza e fomenta a formação docente continuada, bem como pelo
reconhecimento da complexidade do espaço da sala de aula no contexto
contemporâneo, pelas razões anteriormente expostas, foi desenvolvido
o curso de extensão “Educação em Direitos Humanos”, no âmbito do
Programa de FORPORF/UFRGS (Centro de Formação de Professores) da
Universidade Federal do Rio Grande do Sul.
O curso foi realizado no período de dezembro de 2014 a agosto de
2015, na modalidade semipresencial – com carga horária de 36 horas
presenciais e 144 horas à distância – em quatro polos abrangidos pela
Secretaria de Educação à Distância da UFRGS: Porto Alegre, Santo Antônio
da Patrulha, São Francisco de Paula e Sapucaia do Sul. O principal objetivo
do curso foi oferecer a professores(as) do Ensino Fundamental e a agentes
jurídico-estatais conhecimentos sobre a construção histórica de afirmação
e garantia de direitos humanos, estimulando reflexões sobre como trabalhar
e fomentar o tema dos direitos humanos na sala de aula, bem como o
desenvolvimento de práticas de convivência harmônica no espaço público
por meio da mediação de conflitos no território escolar, efetivando assim
uma formação para a cidadania. A equipe do curso era composta por
professores, com mestrado ou doutorado em diversas áreas (Educação,
Antropologia, Sociologia, Direito), bem como por tutores presenciais e à
distância que acompanhavam as atividades realizadas, auxiliando os alunos
nas suas dúvidas e no desenvolvimento dos trabalhos. Realizaram o curso
sessenta e quatro professores que atuam no ensino fundamental da rede
pública do estado do Rio Grande do Sul.
O curso foi organizado a partir de cinco módulos. No primeiro módulo,
foi realizada uma introdução sobre o ambiente virtual Moodle tendo como
objetivo capacitar os cursistas a utilizar a plataforma ao longo do curso,
minimizando as dificuldades de manejo no ambiente virtual e possibilitando
um bom aproveitamento e acompanhamento do curso. O segundo módulo,
“Introdução aos Estudos de Direitos Humanos”, abordou a relevância teórica
e política dos direitos humanos, em especial para o campo da educação,
dando ênfase às legislações atuais que orientam as discussões de temas
relacionados aos direitos humanos e seus reflexos nas práticas docentes e
discentes, de modo a oferecer aos educadores instrumentos de formação
para a cidadania, por meio do conhecimento dos direitos fundamentais e
respeito à pluralidade humana. No terceiro módulo, propôs-se uma discussão
acerca dos marcadores sociais da diferença que perpassam o espaço da sala
de aula, como gênero, sexo, orientação sexual, classe social, raça/etnia,
geração, entre outros. O reconhecimento das diversidades presentes em
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sala de aula possibilita a compreensão das diferentes sensibilidades jurídicas
em direitos humanos e suas expressões no contexto escolar e curricular.
Dessa forma, o objetivo desse módulo foi proporcionar discussões e análises
de temas, tais como: sexismo, machismo, homofobia, racismo, e demais
formas de intolerância, à luz dos estudos culturais e dos estudos de gênero
no ambiente escolar.
No quarto módulo, intitulado “Mediação de conflitos no espaço
escolar”, propôs-se uma reflexão sobre a complexidade do espaço escolar
contemporâneo no qual numerosos conflitos sociais se manifestam. Partindo
do reconhecimento da diversidade que perpassa a sala de aula, através de
uma multiplicidade de códigos, trajetórias, identidades e assumindo que
o conflito é inerente às relações sociais, o módulo procurou apresentar e
discutir as diferentes possibilidades e estratégias de mediação de conflitos
escolares a serem operacionalizadas nas atividades pedagógicas. Buscou-se
também analisar os papéis dos diferentes agentes da comunidade escolar
(alunos e alunas, responsáveis, professores e professoras, gestores, demais
profissionais) na produção e resolução dos conflitos no espaço escolar, a
partir do marco teórico e político de um projeto pedagógico escolar de
afirmação e garantia de direitos humanos. O último módulo do curso foi
o Seminário Integrador, cuja proposta era que os cursistas diagnosticassem
uma situação violadora de direitos humanos nas escolas onde trabalham e
elaborassem, para seu enfrentamento, uma dinâmica de intervenção em
sala de aula. Nesse sentido, a atividade possibilitou que os educadores
exercitassem, na prática, as reflexões e discussões desenvolvidas no decorrer
do curso, tanto pela capacidade de observar e identificar as situações que
configurassem uma violação de direitos humanos quanto pela iniciativa de
elaborar uma atividade com os seus alunos que pudesse abordar o tema e
mediar a situação em sala de aula.
A conclusão do Seminário Integrador ocorreu durante o encontro
presencial de encerramento do curso, realizado no auditório da Faculdade de
Educação da UFRGS, que possibilitou o contato pessoal entre seus diversos
participantes (cursistas de todos os polos e a equipe pedagógica do curso).
Nesse encontro, realizado ao longo de um dia, os sessenta e quatro alunos que
concluíram o curso assistiram a uma conferência intitulada Direitos humanos e
diversidade na escola e também apresentaram seus trabalhos finais elaborados
para o módulo do Seminário Integrador. Os trabalhos finais dos alunos do
curso versaram sobre diversos temas ligados aos direitos humanos, como
raça/etnia, classes sociais, deficiência e acessibilidade na escola, gênero e
sexualidades, geração e pertencimentos religiosos. Considerando-se que os
temas partiram dos próprios alunos do curso e da produção de diagnósticos
a partir da sala de aula, percebe-se como os temas dos direitos humanos
fazem parte do cotidiano escolar e constituem, de forma muito intensa,
as tramas das relações que se estabelecem tanto na sala de aula como na
comunidade escolar de forma mais ampla. Os temas de direitos humanos
não podem ser introduzidos na sala de aula, eles já estão nela, nas microrrelações
cotidianas que atravessam sujeitos de múltiplos e diversos pertencimentos
e, por essa razão, precisam ser trabalhados pedagogicamente em sala de
aula, de modo que a própria escola não seja um espaço de reprodução de
violações de direitos e invisibilidades. Os trabalhos dos alunos do curso
também possibilitaram evidenciar o engajamento em sala de aula, a imensa
capacidade criativa que mobiliza os professores do ensino fundamental a
partir de diversas metodologias: da utilização de pesquisa em sala de aula,
observações, aplicação de questionários, etc., e utilizando-se de múltiplos
recursos como poesias, vídeos, músicas, legislações, relatos, experiências,
brincadeiras, brinquedos. Os alunos do curso compartilharam as múltiplas
possibilidades de trabalhar com direitos humanos em sala de aula.
Dessa forma, o encerramento do curso proporcionou um momento
extremamente rico de trocas de experiências, de relatos e reflexões a partir
de diversos contextos de sala de aula e das estratégias criadas pelos alunos
do curso para, nas suas vivências de sala de aula, abordar com seus alunos
do ensino fundamental os diversos temas de direitos humanos. O curso
possibilitou observar também como os direitos humanos são significados
nas práticas cotidianas dos sujeitos envolvidos nesse processo, o que permite
ampliar esses sentidos para além do que estabelecem normativas e tratados
internacionais de direitos humanos, dando contornos a partir das percepções
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vividas nos processos sociais por esses atores e contribuindo, assim, para a
construção de uma educação com cidadania.
Em sintonia com esta trajetória, o conjunto de artigos que seguem
aprofundam questões colocadas no curso, ao modo de um material para
continuidade dos estudos. Nosso propósito é não apenas enfocar com mais
cuidado alguns tópicos levantados ao longo do curso, como também abrir
possibilidades de pensar a Educação em Direitos Humanos em outros
temas, todos eles questões sensíveis em sala de aula. A meta de todas as
ações é transformar a escola em um território de respeito à diversidade, de
negociação entre muitos marcadores da diferença e convívio fraterno entre
alunos e alunas. Todas as ações estão em sintonia com a noção de escola
como espaço público, lugar de negociação dos pontos de vista particulares
e de respeito pelas diferenças, possibilitando a todos boas oportunidades de
aprendizado, sem exclusões ou discriminações. Não é tarefa fácil, e revela o
empenho de tantos docentes em ir além das aulas de suas disciplinas, e fazer
do percurso escolar uma formação para cidadania e justiça social. São temas
sensíveis, abordados na sala de aula com sensibilidade e em sintonia com os
direitos humanos.
5. REFERÊNCIAS
SADER, Emir. Contexto histórico e Educação em Direitos Humanos no Brasil: da ditadura à
atualidade. In: SILVEIRA, Rosa Maria Godoy Silveira et al. Educação em direitos humanos: fundamentos teórico-metodológicos. João Pessoa: Editora Universitária, 2007. Disponível em:
<http://www.dhnet.org.br/dados/livros/edh/br/fundamentos/06_cap_1_artigo_03.pdf>.
Acesso em: set. 2015.
Capítulo 2
DIREITOS HUMANOS: TUDO A VER
COM A NOSSA VIDA1
Paulo César Carbonari
Tem assunto de todo tipo. Uns são importantes, outros nem tanto!
Uns têm tudo a ver, outros nem tanto! Conversar sobre um assunto que tem
tudo a ver com a vida, com a sua vida, com a vida de cada uma e de todas
as pessoas, os direitos humanos, é ocupar-se daquilo que realmente vale a
pena.
Como assim, se muitas pessoas falam que quem defende direitos
humanos prefere os bandidos às pessoas “de bem”? Como assim, se quando
se fala em direitos em geral se esquece dos deveres? Como assim, se já há
tantos direitos proclamados e a vida continua muito difícil para a maioria
das pessoas?
É exatamente para enfrentar questões como essas e várias outras que
propomos esta conversa. Queremos apresentar algumas ideias para mostrar
que direitos humanos têm tudo a ver com a vida, a sua vida, a vida de cada
uma e de todas as pessoas, a vida daquelas pessoas que você conhece e
até daquelas que você nunca viu, a vida das pessoas de quem você gosta e
também daquelas de quem você não gosta.
1 Este texto foi originalmente publicado como um caderno de apoio pedagógico pela Comissão de Direitos Humanos
de Passo Fundo (CDHPF), da qual o autor é associado e membro da coordenação geral. A publicação foi feita em 2012
no âmbito do Projeto Educação Popular em Direitos Humanos, com apoio da Secretaria dos Direitos Humanos da
Presidência da República (Convênio nº 750325/2010 SDH/PR). O texto foi revisado e completado para esta edição.
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O motivo é simples: a vida não vale porque tem algum equivalente,
ou porque pode ser trocada por qualquer coisa. A vida não tem preço,
simplesmente vale! A vida humana, então, vale simplesmente porque as
pessoas são seres com dignidade.
1. OLHANDO A VIDA
Para a maioria dos brasileiros e das brasileiras a vida é ainda muito
difícil. Por quê? A pobreza e a violência estão presentes no cotidiano. Somase a elas a desigualdade, que põe milhões em situação de inferioridade, sem
reconhecimento, em situações de discriminação, distantes do acesso aos
bens públicos e também da possibilidade de ter acesso a eles. Em outras
palavras, esse complexo de situações faz com que milhões de pessoas ainda
não tenham os direitos humanos como conteúdo cotidiano e concreto
em suas vidas. Pior, são facilmente transformadas em vítimas reais e/ou
potenciais de violações.
Mas há esperanças! Passos vêm sendo dados no sentido de melhorar a vida
das pessoas. Há garantias legais e programas de inclusão. Todavia, isso ainda
é insuficiente para fazer frente às históricas escolhas que marcam a sociedade
brasileira. Sim! São escolhas sociais, políticas, econômicas e culturais que
fazem a vida ser melhor ou pior. No Brasil, as classes dirigentes historicamente
escolheram mais a seu favor do que para efetivamente garantir condições de
vida melhor às classes populares e ao conjunto da população. Escolheram pela
desigualdade, pela violência e pelo conservadorismo. As transições políticas,
econômicas e sociais são permanentes e duram décadas. Todavia, dificilmente
se traduzem em efetiva inclusão em escala capaz de transformar profundamente
as relações e promover o reconhecimento efetivo dos direitos humanos. Os
abismos que separam as pessoas, mesmo com todo o esforço para superá-los,
continuam imensos e, em alguns casos, se ampliam.
Reagindo a tudo isso, as pessoas que sentem na carne a opressão, a
exploração, a expropriação, a escravidão, a pobreza, a desigualdade e a
violência não se calam. Organizam-se e fazem lutas. É dessa maneira,
organizando a resistência, que o povo organizado construiu condições
melhores de vida, construiu e continua construindo direitos.
Na história recente do Brasil, foi através da luta popular que foi sendo
construído o processo de democratização e de superação da ditadura militar;
foi indo às ruas para colher assinaturas que foram garantidas emendas
populares incorporadas à Constituição Federal de 1988; foi organizando
o novo sindicalismo que conquistas de direitos foram reconhecidas e
consagradas; foi reunindo mulheres e indo às ruas que o movimento
feminista e de mulheres fez avançar a luta por seus direitos; foi ocupando e
resistindo que os sem-terra ajudaram a realizar o pouco de reforma agrária
que já foi feita; foi denunciando e exigindo respeito que negras e negros
lutaram e ainda lutam contra o racismo e os resquícios de quase 400 anos
de escravidão; foi com a educação popular, realizada nos recantos do país,
que ONGs e movimentos sociais constituíram lideranças populares; foi nas
comunidades de base que uma nova igreja brotou; foi nas ocupações de
prédios abandonados e terrenos de especulação que a luta pela moradia
ganhou status de direito humano; foi com organização que crianças e
adolescentes passaram a ser reconhecidos como sujeitos de direitos; foi
nas ruas e de cara pintada que a juventude movimentou o país, levando
à destituição de um presidente; enfim, foi e continua sendo assim que os
pobres do campo e da cidade constroem lutas por direitos. A vida mostra
que os direitos humanos são um conteúdo concreto e que colabora para
torná-la ainda melhor para todas as pessoas.
2. SENTIDO DOS DIREITOS HUMANOS
Mas afinal, de que falamos quando tratamos de direitos humanos?
Falar de direitos humanos é tratar de um tema complexo, controverso e que
tem vários sentidos. Isso porque são muito diversos os agentes e as posições
assumidas pelas pessoas. Assumir um posicionamento sobre os direitos
humanos não significa se opor a outras posições. Antes pelo contrário; isso
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é feito na expectativa de que haja incentivo a outros posicionamentos e ao
debate.
A complexidade dos direitos humanos ocorre porque o tema se abre
a abordagens de vários campos do conhecimento: filosofia, sociologia,
psicologia, direito, teologia, entre outras; em consequência, exigindo
preferencialmente posturas interdisciplinares e até transdisciplinares. O
fato de direitos humanos ter vários sentidos deve-se à condição histórica
e às várias concepções da dignidade humana, que é o objeto dos direitos
humanos. A controvérsia, a polêmica, deve-se à presença de agentes diversos
na arena de debates sobre o sentido dos direitos humanos e também do que
significa atuação efetiva, o que exige abertura à diversidade e à pluralidade
sem que isso leve a evitar posicionamentos.
Tomando em conta a experiência de atuação em direitos humanos e
no contexto de uma compreensão histórico-crítica, os direitos humanos
radicam na construção de reconhecimento, na relação, entre as pessoas –
antes de serem faculdade ou titularidade de indivíduos. São prerrogativas
disponíveis a cada um dos indivíduos. E, além disso, os direitos humanos se
constituem em construção feita na relação com os outros e que se traduz
em processos de criação de condições de interação e reconhecimento em
várias dimensões: interpessoal (singular), grupal-comunitária (particular),
genérico-planetária (universal). Nesse processo se conjugam o cotidiano e
a utopia, a cultura e a natureza, a ação e a reflexão. Em outras palavras, os
direitos humanos nascem na e da relação de alteridade, das relações e das
interações alternativas.
Os direitos humanos referenciam-se na dignidade humana como
condição e possibilidade da produção e reprodução de sua vida material, da
corporeidade, da identidade cultural e social, da participação política e da
expressão livre; enfim, do ser sujeito de direitos. Isso porque a realização dos
direitos humanos é um processo histórico, assim como é histórico seu conteúdo, a dignidade humana. Nesse sentido, o conteúdo dos direitos humanos
está mais na materialidade das condições e possibilidades de humanização e
menos no enunciado dos instrumentos e mecanismos que os explicitam como
pactos de convivência e/ou regulação. Isso não significa desconhecer a força
dos pactos; antes, indica que têm um lugar que não esgota o conteúdo dos
direitos humanos.
A ética nos informa que os direitos humanos se constituem em
exigências que estão referenciadas na dignidade humana dos sujeitos de
direitos. Isso torna os direitos humanos não disponíveis a transações em
qualquer das circunstâncias, ao mesmo tempo em que exigem condições
da efetivação histórica. Ou seja, os direitos humanos têm uma dimensão
de utopia que escapa à realização histórica, por um lado, mas que exige sua
efetivação no cotidiano histórico, por outro.
A perspectiva histórica remete à realização e às escolhas, o que inaugura
a dimensão política dos direitos humanos. A realização dos direitos humanos
cobra da ação política que esteja centrada na presença de todos os agentes
como sujeitos (autores, portanto, nunca somente atores) diversos, múltiplos,
plurais, tanto na deliberação como na implementação. Subjetividades
e instituições não substituem umas às outras; antes, têm perspectivas e
responsabilidades distintas e complementares, sempre, porém, orientadas
pelo conteúdo dos direitos, o parâmetro da ação. Escolhas pautadas por
direitos humanos põem a primazia na pessoa (sem separá-la das condições
culturais e naturais necessárias à sua reprodução), em detrimento das
coisas, do patrimônio – o que significa afastar-se de dinâmicas econômicas,
políticas, culturais e sociais que modelam as vontades para que entendam
a escolha pelas coisas como uma escolha pelos direitos humanos. Em
complemento, escolhas por direitos humanos demandam a promoção de
todas e de cada pessoa, por um lado, e a proteção daquelas em situação
de maior vulnerabilidade, além do reconhecimento de violações que geram
vítimas, que cobram reparação, por outro.
Em suma, em traços rápidos e resumidos, desenhamos um sentido para
os direitos humanos que tem na realização efetiva da dignidade de cada uma
e de todas as pessoas o seu conteúdo fundamental, ao mesmo tempo em que
se convertem em exigência para que nenhuma pessoa tenha seus direitos
violados ou ainda não realizados. É isso que significa dizer que direitos
humanos se constituem em construção crítica de e em condições históricas.
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3. ORIGEM DOS DIREITOS HUMANOS
E como nascem e se desenvolvem os direitos humanos? Eles nascem e se
afirmam no processo histórico. É nas lutas populares que nascem os direitos
humanos. É porque os que não têm direitos exigem reconhecimento, maior
liberdade e distribuição equitativa dos bens públicos que os direitos humanos
fazem lutas, “põem a boca no mundo”, para que os direitos passem a ser
garantidos. É porque as vítimas de violações dos direitos humanos reclamam
reparação que os direitos precisam ser efetivados. É porque continuam na
luta, mesmo contra todo tipo de “dono” e todo tipo de “cerca”, enfrentando
todo tipo de adversidade e repressão, que a sociedade toda passa a ter
direitos. Por isso que os direitos humanos são uma construção histórica
que nasce das lutas populares. Por isso que são afirmados historicamente na
luta permanente dos povos, das pessoas, das vítimas, contra a exploração,
o domínio, a vitimização, a exclusão e todas as formas que reduzem o ser
humano.
Direitos humanos não nascem das declarações, dos tratados, dos
pactos, em suma, das leis, sejam elas nacionais ou internacionais.
A positivação dos direitos gera condições, instrumentos e mecanismos
para que possam ser exigidos publicamente, o que é muito importante,
mas também tende a enfraquecer sua força constitutiva e instituinte, como
processo permanente de geração de novos conteúdos, de novos direitos e de
alargamento permanente do seu sentido. Ao serem institucionalizados em
documentos jurídicos, os direitos humanos passam a ser exigência para todos.
Ou seja, toda pessoa, toda organização social e, de modo particular, o poder
público, estão comprometidos com o respeito e a promoção dos direitos de
todas as pessoas.
Esse é um passo muito importante e significa que exigir que os direitos
se tornem leis e que elas sejam cumpridas é fundamental para a efetivação
dos direitos humanos. Mas, além disso, é preciso manter acesa a luta popular
pelos direitos humanos, até porque é ela que está na raiz das leis e das lutas
pela sua efetivação. Lutar por direitos humanos é lutar para que a lei esteja
na vida concreta e também para que a vida concreta seja a fonte crítica de
toda a lei.
4. CARACTERÍSTICAS DOS DIREITOS HUMANOS
Quais são as qualidades dos direitos humanos de modo específico? Eles
não seriam parte do conjunto dos direitos em geral? A concepção ampla
e aberta de direitos humanos que desenhamos entende que os direitos
humanos têm as seguintes características centrais: “Todos os direitos
humanos são universais, indivisíveis e interdependentes e estão relacionados
entre si. A comunidade internacional deve tratar os direitos humanos de
forma global e de maneira justa e equitativa, em pé de igualdade, dando a
todos o mesmo peso” (ONU, Declaração e Programa de Ação de Viena,
1993, § 5°).
4.1 Universalidade
A universalidade dos direitos humanos radica na dignidade humana
construída por processos históricos. Os seres humanos não nascem livres e
iguais em dignidade e direitos, como diz a Declaração Universal dos Direitos
Humanos (1948). Os seres humanos se tornam livres e iguais em dignidade
e direitos porque estabelecem processos e dinâmicas que valorizam a
liberdade, a igualdade e a dignidade. Por isso, é na vivência concreta que
se pode (ou não) reconhecer em cada uma e em todas as pessoas, na
diferença e na diversidade que lhe são constitutivas, um sujeito de direitos.
A universalidade dos direitos humanos exige sempre reconhecimento da
diversidade e da pluralidade, que são intrínsecas à dignidade humana. Dessa
forma, a universalidade dos direitos humanos é uma construção que parte
do reconhecimento da dignidade de cada pessoa, de sua singularidade, que
é única, do reconhecimento de que as pessoas se fazem de diferentes formas
e têm aspirações comuns e também diferentes. Dizer que direitos humanos
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são universais é querer que cada pessoa possa viver em condições concretas
nas quais seja reconhecida como pessoa, simplesmente como pessoa.
4.2 Indivisibilidade
A indivisibilidade dos direitos aponta para a necessidade de superação das
leituras geracionais dos direitos humanos, no sentido de que há direitos que
vieram primeiro e por isso são mais importantes. Todos os direitos humanos,
os civis e políticos; os econômicos, sociais e culturais; os de solidariedade,
entre outros, constituem, juntos, um todo indivisível, o conjunto dos
direitos humanos. A necessidade do compromisso e de responsabilidade
pela garantia efetiva vale para todos os direitos, igualmente. Dessa forma, o
conjunto dos direitos humanos constitui um todo que exige a construção
de dinâmicas e processos concretos e adequados à efetivação de cada direito
como direito humano e de todos os direitos humanos como realização da
dignidade da pessoa humana.
4.3 Interdependência
A interdependência dos direitos complementa as duas noções anteriores
para dizer que a realização de um direito exige a realização dos demais. Por
exemplo, não há como realizar direitos civis e políticos sem que os direitos
econômicos, sociais e culturais também sejam realizados. É claro que há
procedimentos e instrumentos distintos para efetivar diferentes direitos.
No entanto, é central que todos sejam realizados, mesmo que nem sempre
de uma única vez, mas ao menos de tal forma a não admitir retrocessos.
Nesse sentido, os direitos humanos se constituem em base que não pode ser
ultrapassada nas relações interpessoais, na efetivação de políticas públicas,
nas decisões judiciais, nas práticas culturais e educativas; enfim, os direitos
humanos orientam o tipo de desenvolvimento e de democracia que se
efetiva numa determinada sociedade, da mesma forma que os tipos de
desenvolvimento e de democracia que se vive numa sociedade podem ser
mais ou menos favoráveis aos direitos humanos.
As características dos direitos humanos esboçadas trabalham com
a noção de ser humano como construção histórica, procuram superar a
ideia de ser humano genérico e abstrato e abrem-se para compreendêlo na sua concretude. O desdobramento imediato é a necessidade de
construção de dinâmicas e processos que tornem os direitos humanos uma
realidade concreta. Por isso, acrescentamos as características que seguem: a
irrenunciabilidade, a imprescritibilidade, a exigibilidade e a justiciabilidade.
4.4 Irrenunciabilidade
A irrenunciabilidade dos direitos humanos baseia-se na compreensão
de que os direitos humanos não são concedidos à pessoa humana por um
terceiro (o Estado, por exemplo) e também não são eleitos ou escolhidos
por ela. A construção histórica de seu reconhecimento faz com que não seja
possível abrir mão deles e nem deles possam ser retirados os direitos de
forma unilateral. Ou seja, uma pessoa não pode renunciar a seus direitos; se
pudesse fazer isso, seria como se estivesse abrindo mão de parte ou de toda
a sua humanidade singular. Por outro lado, se a pessoa não pode renunciar
a direitos humanos, também nenhum outro agente, de modo particular o
Estado, tem qualquer justificativa legítima para subtraí-los. Isso faz com que os
direitos humanos não estejam disponíveis ao Estado para que possa escolher
realizá-los ou não. Considera-se, no entanto, que a existência jurídica dos
direitos humanos implica sua presença no ordenamento jurídico de cada
país, em sua constituição e na ratificação dos tratados internacionais. Isso faz
com que muitos Estados não atuem no sentido de proteção da pessoa e por
isso não incorporem juridicamente os direitos humanos. Esse fato somente
demonstra que o Estado que age desta forma é omisso. O problema que
se instala numa situação dessas trata da possibilidade de a pessoa invocar o
direito internacional dos direitos humanos para sua proteção. Para alguns,
se os direitos não estiverem reconhecidos na legislação do país, qualquer
35
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medida internacional seria uma intervenção externa, ferindo a soberania.
Para outros, a soberania tem limites exatamente no que diz respeito aos
direitos humanos. O risco, porém, é que há a possibilidade de uso dos
direitos humanos como argumento geopolítico para intervenções ilegais e
até guerras (há muitos exemplos disso na história recente), o que obviamente
não é legitimado pelos direitos humanos. Em suma, mesmo considerando
esses problemas, entender os direitos humanos como irrenunciáveis dá
força e poder à pessoa e exige pôr as instituições a seu serviço.
4.5 Imprescritibilidade
A imprescritibilidade dos direitos humanos baseia-se na compreensão de
que os direitos não cessam no tempo. Ou seja, os direitos humanos são
valores ao mesmo tempo construídos historicamente e que transcendem
às circunstâncias epocais e podem ser exigidos a qualquer tempo. Isso
vale também para situações de violação: a vítima pode exigir reparação e
justiciabilidade a qualquer momento. É por este motivo que os “crimes
contra a humanidade” podem ser julgados a qualquer tempo. Essa
característica dos direitos humanos ajuda a proteger as pessoas contra o
arbítrio dos violadores, visto que, cessadas as circunstâncias de maior
cerceamento dos direitos, as pessoas, sobretudo as vítimas, que estavam
impedidas de promover ações para proteger seus direitos, podem exigir
reparação. É também fundamental compreender que a imprescritibilidade
compromete o Estado com a promoção e a proteção dos direitos humanos
independente do governo. Ou seja, um governo que sucede a outro não
pode alegar impossibilidade de responder às garantias dos direitos em caso
de governos anteriores não terem agido dessa forma. A responsabilidade pela
garantia dos direitos é do Estado e, portanto, todo governo está submetido a
agir pela sua garantia. Assim que se, por exemplo, uma pessoa foi torturada
durante o regime militar e o Estado for condenado a indenizá-la em período
democrático, ele terá que pagar a indenização, não podendo alegar que o
fato teria acontecido em outro período, em outro governo, e que não teria
responsabilidade com isso.
4.6 Exigibilidade
A exigibilidade reconhece que cada cidadão tem a possibilidade de
demandar a realização dos direitos, cabendo ao Estado, sobretudo, e à
sociedade civil, em complemento, a busca de condições para sua efetivação.
Um dos instrumentos mais significativos que permitem a realização de
condições para a exigibilidade dos direitos humanos é a efetivação de
políticas públicas de direitos humanos e o posicionamento dos direitos
humanos como parâmetro de todas as políticas públicas. A exigibilidade
é uma das características mais significativas da historicidade dos direitos
humanos, visto que dá à cidadania condições para se organizar, inclusive
de forma coletiva, para realizar mobilizações e pressões sobre governos e
agentes públicos do Estado, a fim de cobrar a proteção e a promoção dos
direitos humanos e a reparação das violações.
4.7 Justiciabilidade
A justiciabilidade dos direitos humanos exige reconhecer que os direitos
humanos podem ser demandados ao Poder Judiciário sempre que não
forem realizados. Há muitos passos ainda a serem dados, especialmente no
sentido de dotar a sociedade de conhecimento e de instrumentos concretos
para demandar dos Tribunais o justo remédio para as violações dos direitos
humanos. Há todo um trabalho a ser feito neste campo, de tal forma que o
poder do Estado em matéria de direitos humanos possa ser também exercido
pelo Judiciário que, infelizmente e em grande medida, ainda desconhece a
possibilidade de tratar de direitos desta ordem. Exigir justiça em geral e em
sentido de justiciabilidade é uma das principais lutas pelos direitos humanos.
4.8 Historicidade
A historicidade parte da constatação de que os direitos humanos
são afirmados na história e que isso faz com que a compreensão do que
são os direitos, quais são os tipos de direitos, bem como as maneiras e
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......
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......
os mecanismos para efetivá-los, vá sendo modificada. Mesmo que se
tenha uma compreensão “naturalista” dos direitos humanos, ainda assim
se pode perceber a presença da historicidade, pois o sentido de natureza
humana que lhe dá base vai recebendo influências e modificações. Admitir
a historicidade é não partir da ideia de que os direitos são absolutos e, por
isso, imodificáveis, o que levaria a uma postura que poderia contrastar com
a finalidade principal dos direitos humanos, que é proteger a humanidade.
5. DIMENSÕES DOS DIREITOS HUMANOS
Os direitos humanos são todos iguais? Por que então se fala em várias
listas de direitos? Afinal, se são universais, indivisíveis e interdependentes,
por que dizer que existem diversos direitos? Identificar várias dimensões dos
direitos humanos pode gerar classificação dos direitos. Isso, no entanto, em
hipótese alguma pode significar determinar maior ou menor importância a
uns ou a outros. Também não pode significar endossar uma leitura geracional
evolucionista pela qual alguns direitos, por terem sido reconhecidos antes
do que outros, já teriam sido superados pelos que vieram depois ou então
têm mais importância.
5.1 Direitos Civis e Políticos
Os direitos civis e políticos estão presentes na Declaração Universal
dos Direitos Humanos (1948) e foram proclamados pela ONU através do
Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos (PDCP) (1966), ratificados
pelo Brasil em 1992 e também, entre outras, através da Declaração sobre a
Proteção contra Tortura e outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos
ou Degradantes (1975).
Em termos gerais, poderíamos dizer que são aqueles direitos relativos às
garantias e liberdades fundamentais. Apesar da dificuldade de consenso sobre
sua classificação, poderíamos dizer que os direitos civis são, entre outros, o
direito: ao reconhecimento e igualdade diante da lei; a um julgamento justo;
de ir e vir; à liberdade de opinião, de pensamento e de religião. Os direitos
políticos, entre outros, são o direito: à liberdade de reunião; à liberdade de
associação; à participação na vida política. Muitos consideram que esses são
os direitos individuais por excelência e que constituem garantias absolutas
contra o Estado – direitos de prestação negativa.
O conceito atual de direitos humanos indica que não é suficiente
essa concepção, já que os direitos civis e políticos implicam também
responsabilidades do Estado na sua garantia, sem que isso diminua a
responsabilidades de cada pessoa.
5.2 Direitos Econômicos, Sociais e Culturais
Os direitos econômicos, sociais e culturais estão presentes na
Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948) e foram proclamados
pela ONU através do Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais
e Culturais (PIDESC) (1966), ratificados pelo Brasil em 1992.
Em termos gerais, poderíamos dizer que são aqueles direitos que os
indivíduos demandam ao coletivo; por isso, acarretam a garantia de condições
coletivas e estruturais de desenvolvimento, implicando não somente os
indivíduos, mas toda a coletividade. Apesar da dificuldade de consenso na sua
classificação, poderíamos dizer que os direitos econômicos são: os direitos a
um desenvolvimento autônomo, a um meio ambiente sadio, a alimentação,
ao trabalho e os direitos do trabalhador; os direitos sociais são relativos à
segurança social, à família, à maternidade e à infância, à moradia e à cidade, o
direito à saúde e à educação; os direitos culturais são relativos à participação
da vida cultural e do progresso científico. Também incluem os direitos à nãodiscriminação e os direitos das mulheres e de outros grupos sociais vitimizados.
Muitos consideram esses direitos como sendo aqueles cuja ação do
Estado deveria ser determinante para sua garantia – direitos de prestação
positiva. O conceito atual, novamente, assim como no caso dos direitos
civis e políticos, exige compromissos tanto do Estado quanto da cidadania.
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......
Esses direitos são de realização progressiva, o que não significa, em hipótese
alguma, admitir retrocessos.
5.3 Direitos Coletivos e de Solidariedade
Também são conhecidos como direitos coletivos, meta-individuais,
difusos ou de solidariedade. Os instrumentos internacionais que contêm estes
direitos são: Declaração sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento (1992),
Declaração sobre Direito ao Desenvolvimento (1986), Declaração sobre
Direitos dos Povos à Paz (1984), a Convenção sobre os Direitos da Criança
(1990), a Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação
contra as Mulheres (1983), a Convenção sobre Eliminação de Todas as Formas
de Discriminação Racial (1967), a Convenção sobre Direitos das Pessoas com
Deficiência (2006), a Declaração dos Direitos dos Povos Indígenas (2007) e
vários outros.
Caracterizam-se por serem direitos que não têm titularidade individual
e também não regulam a relação dos indivíduos com o Estado. São direitos
públicos no sentido profundo do termo. Em geral, formam aquele conjunto
de direitos que dizem respeito à garantia de um meio ambiente social e
natural na perspectiva da proteção, preservação e recuperação das condições
naturais pelo uso sustentável dos recursos naturais, ao desenvolvimento, à
paz e à autodeterminação dos povos. Também incluem os direitos à proteção
de grupos e segmentos e os direitos relacionados ao consumo.
Há ainda um conjunto de outros direitos que estão em disputa por
reconhecimento e que poderiam ser chamados de “novíssimos” direitos.
Trata-se dos direitos que protegem a vida humana e poderiam ser chamados
de bioéticos, dos direitos advindos da realidade virtual e das tecnologias de
informação (internet, por exemplo), além do debate sobre os direitos dos
animais. Esse conjunto de direitos vem sendo discutido e já há instrumentos
internacionais, porém ainda sem abrangência ampla como no caso dos
demais.
6. REALIZAÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS
A quem cabe respeitar e reconhecer os direitos humanos? Ora, a
todas as pessoas cabe respeitar e reconhecer os direitos humanos. Não por
razões egoístas, ou seja, para que seus próprios direitos sejam respeitados
e reconhecidos. Cabe a cada um(a) o dever de respeitar e reconhecer os
direitos dos outros simplesmente porque os outros são seres humanos.
Esse compromisso não existe somente em relação a certos tipos de seres
humanos, os “de bem”, mas de todas as pessoas. Essa ideia de querer separar
as pessoas, distinguindo aquelas que são boas das que não são é um discurso
falso. Pior, a história nos mostra as consequências: foi isso que justificou o
totalitarismo do nazismo e do fascismo que matou milhões de judeus; foi
o que justificou a escravidão dos negros africanos na América e no Brasil;
é isso que continua justificando a discriminação dos negros, das mulheres,
dos homossexuais. Enfim, são pensamentos que acham que há certos tipos
de gente mais gente do que outros que levaram e continuam levando ao
desrespeito às pessoas, à falta de reconhecimento e de compromisso com
os direitos humanos. Não se pode invocar os direitos humanos de uns
poucos, por melhores que sejam, contra os direitos dos outros, sob qualquer
argumento, sob pena de na verdade transformar direitos em conteúdo que
depõe contra os direitos humanos.
Os direitos humanos não são somente para os “humanos direitos”;
os direitos humanos são direitos de todos os seres humanos simplesmente
porque são humanos. Superar posturas discriminatórias é o primeiro passo
para se comprometer com a realização desses direitos.
Mas todos têm as mesmas responsabilidades com os direitos humanos?
Sim, a responsabilidade é de todos, mas o tipo de responsabilidade é
diferente. A uma pessoa individualmente cabe reconhecer o outro ser
humano como sujeito de direitos, não agredindo e nem discriminando e,
acima de tudo, respeitando-o em sua dignidade.
As organizações e movimentos sociais são agentes fundamentais
no processo de luta por direitos, seja para criar novos direitos, seja para
fazer com que aqueles que foram institucionalizados deixem de ser “letra
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......
morta” e se transformem em ação, em políticas públicas. As organizações
e movimentos sociais populares têm a tarefa de mobilizar as pessoas e
articular suas lutas para apresentar agendas novas e renovadas de direitos;
para prestar atenção, vigiar, controlar, monitorar para que nem indivíduos,
nem empresas e nem o poder público violem os direitos e, mais do que isso,
para propor alternativas para avançar na efetivação dos direitos.
O Estado também é agente de garantia, promoção, proteção e
realização dos direitos humanos de todas as pessoas e também de reparação
das violações. O poder público, nas suas diversas esferas e poderes, tem a
responsabilidade de atender às demandas sociais, de regular as relações e
de gerar mediações de tal forma a garantir que os direitos sejam realizados
e as violações sejam evitadas e, quando ocorrerem, sejam reparadas. A
institucionalidade justa é aquela que tem nos direitos humanos não um
recurso a mais, mas como conteúdo e método central de ação. Os direitos
humanos não são somente uma finalidade a ser atingida com esforço, são
exigências de constituição de mediações; portanto, de relações efetivas que
também sejam pautadas por eles.
As empresas e grupos privados não podem transformar sua vocação
para o lucro e a apropriação privada dos bens públicos em instrumentos de
violação dos direitos. Cabem-lhes responsabilidades no sentido de cumprir a
lei e respeitar os direitos humanos como qualquer outro agente. Os agentes
econômicos não estão dispensados dos compromissos com os direitos
humanos. Assim, contando com o compromisso de diversos agentes, os
direitos humanos podem se tornar realidade. Até porque nenhuma pessoa
e nenhuma instituição, organização ou agente econômico tem o direito de
violar os direitos humanos. Os direitos humanos não estão disponíveis para
serem violados. Pelo contrário, são parte da ação comum, compromisso de
todos e de cada um. É por isso que nenhuma justificativa para a violação dos
direitos humanos pode ser legítima e muito menos deveria ser legal.
7. REFERÊNCIAS
CARBONARI, Paulo César. Direitos humanos: sugestões pedagógicas. Passo Fundo: IFIBE; Brasília: SDH, 2014.
___. Realização dos direitos humanos. Passo Fundo: IFIBE, 2006a.
CARBONARI, Paulo César (Org.). Sentido filosófico dos direitos humanos: leituras do pensamento
contemporâneo. Passo Fundo: IFIBE, 2006b. v. 1.
___. ___. Passo Fundo: IFIBE, 2009. v. 2.
___. ___. Passo Fundo: IFIBE, 2013. v. 3.
CDHPF. Direitos humanos desde Passo Fundo. Passo Fundo: CDHPF, 2002.
CPT; FIAN; MNDH. Direitos Humanos Econômicos: seu tempo chegou. Goiânia: CPT; FIAN;
MNDH, 1997.
HERRERA FLORES, Joaquin. A (re)invenção dos direitos humanos. Trad. C.R.D. Garcia et al. Florianópolis: Fundação Boiteux; IDHID, 2009.
IIDH. Protección de derechos humanos. 2. ed. San José: IIDH, 2002.
MÜHL, Eldon et al. (Org.). Textos referenciais para a educação em direitos humanos. Passo Fundo:
IFIBE; FAED/UPF; CDHPF, 2009.
SILVEIRA, Rosa Maria Godoy et al. (Org.). Educação em direitos humanos: fundamentos teóricometodológicos. João Pessoa: UFPB, 2007.
WOLKMER, Antônio Carlos. Direitos humanos: novas dimensões e novas fundamentações.
Revista Direito em Debate, Ijuí, n. 16-17, p. 9-32, jan./jun. 2002.
43
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Capítulo 3
CIDADANIA E DIREITOS HUMANOS:
PARA TODOS OU PARA ALGUNS?
Denise Dourado Dora
Em 1823, o Diccionario da Língua Portugueza conceituava o cidadão
como “o homem que goza dos direitos de alguma cidade, das isenções, e
privilégios, que se contêm no seu foral, posturas”, ou “o vizinho de alguma
cidade”, ou, ainda, o “homem bom” (Santos; Ferreira, 2009, p. 44); ou seja,
remetia a definição de cidadania à ideia de pertencimento a uma cidade. Os
direitos humanos ou “direitos do homem”1 partem de uma sucessão de
conceitos, dos direitos naturais aos direitos do homem e dos direitos do
homem aos direitos humanos, a partir dos séculos XVII e XVIII na Europa.
Inicialmente, como distinção do que era divino ou animal, direitos humanos
e direitos do homem passam a ser utilizados ao lado de direitos de cidadãos
(Hunt, 2009).
Portanto, cidadania e direitos humanos são ideias com significados
muito aproximados, que surgem a partir de uma experiência humana
histórica associada às grandes transformações ocorridas na passagem da
Idade Média para o período moderno, especialmente na Europa, e que
acaba expandindo-se para outros continentes. Hoje há vários esforços para
entender e identificar quando, onde e como estes conceitos começam a ser
1 A linguagem tem gênero; chamar de “direitos do homem” já demonstra que, nos seus primórdios, os direitos humanos eram destinados a homens, excluindo mulheres, crianças e escravos.
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......
utilizados, e como se transformaram e criaram novos significados a partir de
contextos diferentes.
Especialmente na história brasileira recente, cidadania e direitos
humanos aparecem muito frequentemente associados, como se fossem
mesmo uma só ideia ou conceito. “Esta é uma questão de cidadania e
direitos humanos” parece ser uma frase muito comum de se ouvir em
variados ambientes, tanto políticos e sociais quanto acadêmicos; convites
para “seminários sobre cidadania e direitos humanos” também fazem parte
do cotidiano dos movimentos sociais e organizações não governamentais,
indicando que há uma forte inter-relação entre ambos os conceitos.
Na verdade, a combinação dos conceitos de direitos humanos e
cidadania existe como uma adição de significados para reforçar a noção
de que pessoas têm direitos e os governos têm deveres. Vamos analisar o
percurso histórico dessa ideia.
1. CIDADANIA
Embora se possam encontrar referências de exercício de cidadania já
na Antiguidade ocidental, em especial na Grécia e em Roma, vamos refletir
sobre a experiência moderna de cidadania, fundada a partir do século XVIII.
Em 1823, cidadão era “o homem que goza dos direitos de alguma cidade,
das isenções, e privilégios, que se contêm no seu foral, posturas”, ou “o
vizinho de alguma cidade”, ou, ainda, o “homem bom”2. Cidadania era
muito ligada à ideia de território, cidade, vizinhança, e foi desta forma que
as primeiras experiências de cidadania se revelaram. Conforme Santos e
Ferreira, na passagem da Idade Média para a Idade Moderna os conceitos
de vizinho e cidadão eram muito semelhantes, definidos por um “estatuto
jurídico que definia o pertencimento de um indivíduo à comunidade local
em termos de privilégios, deveres, isenções e costumes” (2009, p. 45).
Assim, as primeiras noções de cidadania ainda estavam atreladas a uma
ordem política e econômica medieval e foi o processo de mudanças políticas
2 Dicionário Houaiss.
e sociais no século XVIII que permitiu a passagem desta compreensão
hierárquica para uma de fundo mais igualitário. Esse processo acontece
devido a vários fatores, mas especialmente dois são mais relevantes: o
surgimento de uma forte noção de indivíduo como sujeito de direitos, e a
construção dos Estados-nação.
O movimento de construção de identidades individuais, de uma pessoa
que passa a se diferenciar um pouco de sua família e/ou comunidade,
vai demarcar a passagem de sociedades tradicionais, baseadas em valores
comunitários e religiosos, para sociedades modernas. Nessa passagem que
percorre o mundo medieval por vários séculos há uma mudança profunda em
relação às noções de integridade corporal, redefinição do espaço doméstico,
da casa, dos cômodos, dos conceitos de higiene, da autoridade parental e das
tradições familiares. Essa redefinição do uso do espaço físico e das relações
pessoais leva a uma redefinição das relações com o poder constituído
(Hunt, 2009, p. 28); de fato, essas profundas modificações no modo de
vida têm implicações decisivas para reorientar a relação dos indivíduos com
o país, com a nação e com seus direitos. É nesse momento de passagem do
século XVII para o século XVIII que se desenvolve um forte sentimento de
pertencimento a um país e de crescente interesse em participar e definir os
rumos da política.
O conceito de indivíduo como motor da sociedade emerge do ambiente
cultural do Renascimento europeu no qual a pessoa “renasce” em uma ordem
econômica diferente com ideias de privacidade, passando da experiência de
uma família coletiva para a vida mais solitária, e, por decorrência, solidária.
Essa é a experiência histórica fundamental que permite enxergar o outro
como outro, desenvolver empatia e solidariedade e criar alicerces para noções
de igualdade e fraternidade que levam aos direitos fundamentais. Muitos
autores afirmam que a cidadania moderna surge com as revoluções inglesa,
americana e francesa do século XVIII, relacionadas à luta pela construção
de uma nação com indivíduos livres e autônomos, os cidadãos. Portanto,
o processo de construção de noções de indivíduos convive e dá elementos
para uma nova concepção política de pertencimento a uma nação, a uma
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......
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......
ordem de direitos e deveres e a um Estado que organiza a vida em sociedade
(Mondaini, 2003).
O estabelecimento de Estados-nação é, portanto, uma invenção do
mundo moderno que redefine a organização política de um país a partir
dos elementos de território, língua comum (oficial) e leis que atingem todas
as pessoas desse Estado. A experiência das revoluções acima mencionadas
gerou um grande debate intelectual sobre noções de poder, criação de
instituições e participação da sociedade a partir de critérios racionais e não
mais baseados em tradições religiosas ou hierarquias comunitárias. Trata-se
de uma disputa com os conceitos medievais, com o poder religioso anterior;
em especial, a partir da ideia de que o poder não é natural e divino, mas sim
decidido pelas pessoas.
Mesmo as bandeiras da Revolução Francesa – igualdade, liberdade e
fraternidade – são bandeiras que surgem para responder e transformar uma
sociedade feudal, fixa em castas e segmentos sociais na qual não havia
mobilidade; com o avanço do conceito de indivíduos com direitos, essa
estrutura de poder precisa ser modificada e é modificada com processos
políticos de ruptura violenta com antigos regimes, rearranjo de forças e
construção de novos modelos de governo.
As revoluções do século XVIII consolidam então as concepções de que
os indivíduos nascem livres e iguais e que a garantia destes direitos é dada
por um Estado nacional, no qual os direitos passam a ser regulados por
lei. Esse Estado moderno necessita de uma autoridade central, um poder
concentrado com monopólio da força mediante a lei. Ser cidadão nesse
contexto é ter nacionalidade, é fazer parte de um Estado que protege seus
direitos. E a palavra cidadão, como mencionado na introdução, remete à
ideia de cidade. Por quê? Porque é a cidade que surge como definidora do
espaço público; os direitos se exercem na cidade e não no campo; eis que o
campo remetia ao mundo feudal, dos servos, dos sem direito, era um espaço
da tradição. É, portanto, na cidade que estes novos direitos podem ser
realizados, nas disputas entre setores econômicos e políticos e de afirmação
de direitos.
Pensar em cidadania é então refletir sobre esse primeiro marco de
instalação de uma cidadania moderna, no qual os fatores constitutivos são o
nascimento de um indivíduo com autonomia, de leis que regulam a vida em
sociedade e de um Estado que se responsabiliza por implementar estas leis
e proteger seus cidadãos. Entretanto, desde esse marco inicial, a noção de
cidadania não foi inclusiva em relação ao povo a qual se dirigia, o que não
é surpreendente. Saindo de uma sociedade marcada por hierarquias fortes,
com exclusão econômica e política de camponeses, mulheres, crianças,
estrangeiros e servos, ou seja, a maioria da população, essa construção de
cidadania foi primeiramente dirigida a homens com propriedade e educação.
As pessoas “livres e iguais” tinham, portanto, endereço certo; eram as novas
elites econômicas que reorganizavam seus espaços de poder.
Essa nova organização da vida em sociedade não se deu sem conflitos
intensos, ganhos e perdas, inclusive entre os setores que desejavam mudanças.
Por exemplo, as mulheres do povo francês foram mobilizadas para participar
da Revolução, mas da elaboração da Declaração dos Direitos do Homem
e do Cidadão elas foram excluídas. Esse fato leva a uma forte crítica das
lideranças femininas e inclusive à execução de várias delas, entre as quais
Olympe de Gouges é a mais conhecida (Perrot, 1997). Como a história é
um motor em constante movimento, a construção da cidadania moderna
vai então passar por diversos confrontos e fases em que esses desafios de
inclusão e participação, além da capacidade de garantir direitos por parte do
Estado, vão ir redefinindo seus contornos.
T. H. Marshall, em seu artigo Cidadania e Classe Social (1967), mostra
que houve um encadeamento lógico a partir da noção de direitos individuais
e civis, em que as pessoas – em especial, os cidadãos – passavam a contar
com a prerrogativa de ter suas vidas reguladas por leis e não por critérios
arbitrários das hierarquias tradicionais. A vontade do senhor feudal, do duque
ou do rei passa a ser substituída por um conjunto de normas que regulam
a vida e protegem os indivíduos. Para sustentar o exercício desses direitos
desenvolveram-se instituições, parlamentos e cortes judiciais. Esse modelo
de cidadania poderia estar completo se não houvesse desigualdade econômica
e social. As imensas desigualdades sociais criam obstáculos para o exercício
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......
desses direitos por parte de uma grande parcela da população, totalmente à
margem desse sistema de direitos. Isso leva a demandas e lutas políticas por
direitos sociais que exigem do Estado um conjunto de políticas de proteção
social e novas instituições que possam reduzir as desigualdades e dar soluções
a esses conflitos.
A cidadania precisa caminhar ao lado da democracia; eis que o
encadeamento positivo de direitos, leis e instituições só é potencializado
em Estados que realmente ouvem seus cidadãos, mas exige reconhecer
as desigualdades econômicas e de poder (Reis, 1998). A cidadania, para que
tenha efeitos substantivos, deve ser exercida por sujeitos em condições de
paridade. A pobreza e as desigualdades educacionais excluem do exercício de
direitos, assim como as discriminações contra grupos específicos também
ameaçam e mesmo impedem a efetividade dos direitos. Como mencionado
anteriormente, desde a Revolução Francesa há uma crítica feminista à noção
limitada de cidadania; eis que o processo político e histórico de definição
de cidadania construiu modelos de cidadão que excluía as mulheres de
direitos civis e políticos básicos, como votar e ser votada, ter autonomia
jurídica, receber herança e outros. Não por acaso, vários dicionários ainda
mencionam “cidadão” como “o homem bom”. A exclusão das mulheres e a
escravidão de africanos e indígenas nos séculos XVIII e XIX são, sem dúvida,
os limites óbvios dessa cidadania moderna, cuja promessa de igualdade não
se realiza em muitos lugares pela permanência de desigualdades econômicas
e sociais, heranças de preconceitos arraigados e discriminações estruturais.
Como os indivíduos não são iguais e dessa forma não correspondem aos
modelos tradicionais de cidadãos, há o desafio de atualização dos conceitos
de cidadania e de sua efetividade. Reconhecer essas singularidades é
condição para cidadania que, além de direitos formalmente normatizados,
exige políticas e solidariedade social.
Outro fator que hoje desafia os conceitos clássicos de cidadania é
a crescente integração de países e de culturas. O processo de integração
econômica em larga escala leva a um comércio realmente global, com
trânsito de capitais, empresas e pessoas. O processo de integração política e
cultural tem alterado o cenário das políticas nacionais, passando a haver cada
vez mais instituições, leis e procedimentos transnacionais. A globalização
produz uma transição da concepção eminentemente nacional de cidadania
para uma concepção de cidadania transnacional e continental. Esse é um
fenômeno muito recente e que vai levar à necessidade de reflexão sobre o
lugar no qual se produzem e se realizam os direitos de cidadania, considerados
até então como direitos produzidos no âmbito dos Estados nacionais e
implementados através de políticas por estes mesmos Estados. Esse debate
nos leva a pensar sobre como e quando se estabelecem os direitos humanos
com um caráter universal e sua relação com os direitos e o exercício da
cidadania tradicionalmente exercidos desde o século XVIII.
2. DIREITOS HUMANOS
A ideia de que as pessoas têm direitos pelo simples fato de serem
humanas pode ser encontrada em distintos períodos da história da
humanidade, presente em doutrinas religiosas, filosofias, noções de respeito
à lei, enfim, formas de organização de diferentes sociedades que remetem a
uma ideia de direitos. Portanto, assim como cidadania, a expressão “direitos
humanos” tem uma história que pode ser rastreada no tempo, mas que
se cristaliza como afirmação de direitos humanos no final do século XVIII
(Hunt, 2009, p. 18-19).
Thomas Jefferson, em 1776, ao rascunhar a Declaração de Independência
Americana escreve que: “Consideramos estas verdades autoevidentes: que
todos os homens são criados iguais, dotados pelo seu criador de certos
direitos inalienáveis, que entre estes estão a Vida, a Liberdade e a busca
da Felicidade” (Hunt, 2009, p. 13). Em 1789, o rascunho da Declaração
Francesa dos Direitos do Homem e do Cidadão falava dos “direitos naturais,
inalienáveis e sagrados do homem”. Esses dois documentos estavam
diretamente relacionados à inauguração de uma nova ordem política em
um contexto determinado, mas a linguagem presente nas duas Declarações
acabou por transformá-las em documentos mais duradouros e mesmo
universais ao propor uma ideia revolucionária: a da igualdade entre as pessoas.
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......
Essa noção de igualdade foi depois estabelecida em várias constituições
nacionais, ficando claro então quem eram os beneficiários desta igualdade
na prática e como mulheres, crianças, pessoas consideradas insanas, ciganos,
estrangeiros e escravos africanos estavam fora do alcance dos direitos (Hunt,
2009). Posteriormente, houve um esforço do governo francês quando, em
1791, concede direitos aos judeus, em 1792 aos homens sem propriedade
e em 1794 abole a escravidão (Hunt, 2009). Outro exemplo eloquente é
a abolição da escravatura em todos os países ocidentais, sendo o Brasil o
último a fazê-lo em 1888.
Estabelecidos direitos de cidadania, as duas Guerras Mundiais, as
independências africanas e asiáticas e as lutas contra ditaduras latinoamericanas no século XX colocam novos desafios. Os direitos, segundo
alguns, não passam de uma expressão da vontade do Estado e, portanto,
podem ser modificados e reduzidos se isto interessar ao Estado. Essa
interpretação vai contribuir para uma relação instrumental com os direitos
humanos e possibilitar a emergência e legitimação de regimes autoritários.
Por exemplo, na Alemanha Hitler é eleito e vislumbra a possibilidade de
realizar os fins do nazismo utilizando-se dos mecanismos formalmente
estabelecidos pela Constituição. Dessa forma, o direito neutro serve de
instrumento para um Estado nazista (Vieira, 2006). Um dos primeiros atos
de Hitler foi destituir diversos grupos do seu status de nacionais. Os judeus
foram os primeiros a ser desnacionalizados. Como não tinham mais vínculos
com o Estado alemão e como não havia relações jurídicas que os ligassem a
qualquer outra esfera de proteção de direitos, eles encontravam-se excluídos
moral e juridicamente do sistema de proteção de direitos. Excluídos, judeus,
ciganos, comunistas, homossexuais e outras minorias ficaram totalmente
vulneráveis e passaram a ser tratados como objeto e não como sujeito de
direitos, como descreve Hannah Arendt (Lafer, 1988).
Dessa forma, uma reinterpretação das noções de direitos fundamentais
em um novo contexto político propiciou uma série de fatos que levam à II
Guerra Mundial, quando milhões de pessoas foram assassinadas por seus
próprios Estados, que deveriam ter a função primordial de protegê-las.
A II Guerra Mundial (1939-1945) se diferencia das demais exatamente
pelo fato de que as principais vítimas foram nacionais mortos pelos seus
próprios Estados. No período que vai de meados dos anos 1930 até o final
da II Guerra morreram cerca de 45 milhões de pessoas. Mais da metade
desses mortos não foram soldados vitimados em combate, mas civis mortos
pelos seus próprios Estados, principalmente na Alemanha e na União
Soviética. Então esses mais de 20 milhões de seres humanos foram vítimas
da instituição que a princípio deveria protegê-los. Esse é um fato novo e
incompatível com os princípios de criação dos Estados modernos, que
poderiam até ter cidadanias excludentes, mas que não assumiam um papel
proativo no extermínio de seus próprios cidadãos. O Estado utilizando
noções de direito formal e provocando a morte de grupos raciais, religiosos
e dissidentes políticos, numa escala assustadora, é algo peculiar ao período
da II Guerra (Hobsbawn, 1994).
Essa experiência de erosão de direitos que se materializou na II Guerra
e o receio de outra guerra mundial com efeitos ainda mais devastadores
cria a necessidade de construção de uma instituição transnacional com
legitimidade para redefinir um corpo de direitos e responsabilidades dos
Estados nacionais. Surge então a Organização das Nações Unidas, criada
por 51 países em 1945, e a Declaração Universal dos Direitos Humanos,
aprovada pela Assembleia Geral das Nações Unidas em 10 de dezembro de
1948.
Durante 200 anos, a Declaração Francesa foi a principal referência para
um discurso sobre direitos humanos universais, mas foi com a aprovação
da Declaração Universal em 1948 que essa promessa se materializa ao
afirmar que “Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e
direitos” (Art. 1º) e que “Todo ser humano pode fruir de todos os direitos
e liberdades apresentados nesta Declaração, sem qualquer distinção de
raça, cor, sexo, língua, religião, opinião política ou de outra ordem, origem
nacional ou social, bens, nascimento ou qualquer outro status” (Art. 2º).
O longo período que separou a Declaração Francesa (1789) da Declaração
Universal (1948) não é desprovido de leis de proteção a direitos, mas essas
são basicamente nacionais. São constituições e leis nacionais que trataram
dos direitos de categorias profissionais, grupos específicos e procedimentos
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estatais. A ideia dos direitos universais realmente só ganhou protagonismo
a partir da necessidade de uma reação à violência contra seres humanos que
foram perpetrados pelos Estados durante a II Guerra.
Logo após a sua criação, a ONU constituiu uma comissão para elaborar
uma declaração universal de direitos humanos da qual fizeram parte, entre
outros, Rene Cassin e Eleonor Roosevelt, representando respectivamente a
França e os Estados Unidos. Essa comissão, que também contava com um
representante libanês e um chinês, elaborou um documento que serviu de
base para o debate na Assembleia Geral da ONU e foi aprovado em 1948.
A Declaração Universal tem 30 artigos que tratam de direitos individuais,
civis, políticos, sociais, econômicos e culturais e também um dispositivo
que estabelece que nada na Declaração deve ser interpretado de forma a
autorizar qualquer Estado, grupo ou pessoa a se engajar em atividade que
violem direitos humanos (Glendon, 2001).
A Declaração Universal dos Direitos Humanos é aprovada como um
marco ético e político pela qual a comunidade internacional deve zelar e os
Estados nacionais devem seguir, mas não teve efeitos jurídicos imediatos.
Foi o uso regular e constante dos artigos da Declaração nos últimos 60
anos, seja por terem sido adotados em Constituições e leis nacionais,
mencionados em decisões judiciais sobre violações de direitos humanos e
em pesquisas e publicações sobre o tema que fez com que a Declaração fosse
progressivamente sendo incorporada ao arcabouço jurídico internacional
(Piovesan, 1998). Muitas constituições nacionais elaboradas depois de
1948 incorporam formalmente os princípios e artigos da Declaração como
preceitos jurídicos locais; isso acontece na África pós-colonial, na América
Latina e países europeus, como Portugal e Espanha. A Constituição Brasileira
de 1988 é um exemplo precioso desta incorporação jurídica dos princípios
da Declaração (Vieira, 2006)
A Declaração também produziu efeitos no debate sobre autodeterminação dos povos, o que levou a uma expansão do debate sobre a independência de países africanos e de suas lutas políticas a partir dos anos
50 e criou bases morais ainda mais sólidas para a expansão do feminismo
no mundo. Portanto, a Declaração surgida em um momento histórico de
construção de novos consensos é, ao mesmo tempo, a cristalização de
um longo caminho desde as revoluções do século XVIII e o início de uma
nova época para a defesa dos direitos humanos. Conforme Lynn Hunt, “a
Declaração Universal é mais o início do processo do que o seu apogeu”
(Hunt, 2009, p. 209), e vai influenciar todo o movimento político no
mundo pós II Guerra Mundial.
Do ponto de vista interno da Organização das Nações Unidas, o debate
sobre direitos humanos segue depois de 1948. Sendo a primeira vez que
uma “lista” de direitos é elaborada para ter caráter universal e considerando
o ambiente da Guerra Fria nos anos 50 e 60, uma forte controvérsia é
mantida dentro da ONU em relação à natureza desses direitos e à obrigação
dos Estados em cumpri-los. Assim, em 1966, dois Pactos de Direitos
Humanos são aprovados; um tratando dos Direitos Civis e Políticos e outro
dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, que respondem à divisão
existente entre União Soviética, China e demais países comunistas e os
Estados Unidos, Inglaterra e países “ocidentais”. De qualquer forma, esses
pactos cumprem um papel muito importante, pois tratam de arrolar com
mais precisão os direitos humanos e estabelecem os mecanismos de adesão
dos Estados nacionais a obrigações jurídicas internacionais. Um país, para
aderir ao pacto, deve ter aprovação do parlamento e do governo executivo,
o que exige um debate nacional. Hoje, 164 nações fazem parte do Pacto de
Direitos Civis e Políticos e 160 do Pacto de Direitos Econômicos, Sociais e
Culturais, sendo sua mais notável exceção os Estados Unidos da América.
Nos últimos 60 anos, a ONU também aprovou Convenções
Internacionais sobre diversos temas específicos, como a Convenção para
Eliminação do Racismo, a Convenção para Eliminação da Discriminação
contra a Mulher, a Convenção para Abolição da Tortura e Tratamento
Degradante, a Convenção dos Direitos da Criança, entre outras. Cada
Convenção criou um sistema de monitoramento da aplicação de seus
preceitos pelos Estados membros da ONU; assim, há comitês especializados
em requerer relatórios dos governos sobre o cumprimento das normas da
Convenção, realizar audiências públicas e ouvir a sociedade civil dos diversos
países. A partir dos anos 1960, a ONU estabeleceu procedimentos para
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denúncias que “aparentemente revelam um padrão consistente, repulsivo e
confiavelmente atestado de violações de direitos humanos”, ou seja, “graves
violações de direitos humanos”. Nessas situações, o Estado estaria violando
obrigações contraídas com a Carta e poderia, assim, sofrer investigações,
repreensões e mesmo sanções por parte da comunidade internacional
(Vieira, 2006).
Fora da esfera das Nações Unidas e dos governos, a sociedade de
diversos países passa a se organizar no âmbito local e também global através
da criação de diversas organizações não governamentais, como a Anistia
Internacional, criada em 1961, que dão voz a vítimas de violações no
mundo inteiro. Em 1993, a ONU, como parte de seu ciclo de conferências
mundiais, realiza a Conferência Mundial de Direitos Humanos em Viena,
que recomenda a criação de um Alto Comissariado para Direitos Humanos
e do Tribunal Penal Internacional, a partir das experiências dos Tribunais
de Ruanda e da Ex-Iugoslávia. Em 1994, é criado o Alto Comissariado de
Direitos Humanos e, em 1998, é criado o Tribunal Penal Internacional,
que tem competência para julgar crimes de genocídio, crimes contra a
humanidade e crimes de guerra, fortalecendo assim o sistema das Nações
Unidas (Vieira, 2006).
Paralelos a esses esforços institucionais na Organização das Nações
Unidas também houve desenvolvimentos no âmbito dos continentes.
A Europa, a América e, mais recentemente a África desenvolveram seus
sistemas de proteção aos direitos humanos dentro de suas estruturas
institucionais regionais, como a Organização dos Estados Americanos
e a União Europeia. Os sistemas regionais são fundados a partir de
tratados internacionais que definem normas jurídicas e criam sistemas de
monitoramento e julgamento de casos, como as Comissões e as Cortes de
Direitos Humanos.
O sistema interamericano de direitos humanos foi estabelecido a partir
de 1948, com a adoção da Declaração dos Direitos e Deveres do Homem
pela Organização dos Estados Americanos. Em 1959, a OEA criou a
Comissão Interamericana de Direitos Humanos para acompanhar a situação
de direitos humanos no continente. Dez anos depois, em 1969, é aprovada a
Convenção Americana de Direitos Humanos, que entra finalmente em vigor
apenas em 1978, com consequências jurídicas de tratado internacional3.
Quando da aprovação da Convenção Interamericana, é criada a Corte
Interamericana de Direitos Humanos, e a Comissão de Direitos Humanos
passa a ter novas funções, o que lhe permite ocupar um espaço relevante
no monitoramento de violações de direitos humanos durante os regimes
autoritários e ditatoriais na América Latina nas décadas de 1970 e 1980. É
notória a visita in loco que a Comissão de Direitos Humanos da OEA fez à
Argentina durante o regime repressivo que ensejou milhares de denúncias
contra torturas e desaparecimentos, até então represadas pela ditadura.
A Comissão Interamericana organiza audiências temáticas, analisa
relatórios de países, recebe denúncias individuais e faz investigações in
loco, ouvindo testemunhas e coletando evidências. Na verdade, a Comissão
funciona como o local de reclamação de cidadãos e cidadãs em relação a seus
Estados. Se um país não cumpre com o disposto nas convenções de direitos
humanos e não faz nada para reparar o dano causado, pode ser denunciado
no sistema internacional de direitos humanos, regional ou global.
A sociedade civil organizada dos mais diversos países costuma usar
estratégias combinadas, que vão da elaboração de relatórios, demonstrando
o caráter regular de determinadas violações que configuram um padrão
de desrespeito aos direitos humanos, a casos individuais no qual há provas
evidentes de abuso. Por exemplo, o uso de tortura no sistema prisional no
Brasil que já foi objeto de várias denúncias através de organizações como
Justiça Global, Conectas ou Movimento Nacional de Direitos Humanos, que
se utilizaram de variados mecanismos como audiência temáticas, relatórios,
apresentação de casos e convite para visitas da Comissão a presídios
brasileiros. Um desses casos, o do presídio Urso Branco em Rondônia,
resultou no pedido de intervenção federal no estado por continuado abuso
aos direitos humanos.
3 Existe uma diferença entre declaração e convenção no âmbito do direito internacional, sendo que a declaração é
considerada uma carta de princípios e de intenções a que os Estados aderem de forma política, e as convenções são
realmente leis internacionais que exigem procedimentos técnico-jurídicos para a adesão dos Estados. A ratificação
de um Estado membro à convenção passa a vinculá-lo juridicamente, podendo inclusive receber sanções pelo seu
descumprimento.
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......
Outro caso conhecido no Brasil foi o da farmacêutica Maria da Penha,
que foi vítima de severa violência doméstica e tentativa de homicídio e
não teve por parte das instituições públicas brasileiras nenhuma resposta,
seja na investigação ou condenação do agressor. Após mais de uma década
sem solução, Maria da Penha, que ficou paralítica em função das agressões,
entrou com uma petição individual na Comissão Interamericana de Direitos
Humanos, afirmando que o governo brasileiro nada fazia efetivamente para
proteger suas cidadãs contra a violência doméstica. O governo brasileiro foi
instado a investigar e punir o agressor e condenado a pagar uma indenização
e rever sua legislação e política para contemplar medidas de proteção à vida
e integridade das mulheres4.
A decisão do caso Maria da Penha levou efetivamente à mudança da
legislação nacional com a adoção da Lei Maria da Penha de prevenção e
combate à violência contra as mulheres que cria, entre outras medidas,
juizados especiais para investigação e punição de agressores.
Em 60 anos, partiu-se de uma Declaração de direitos para a existência
de tratados jurídicos internacionais e instituições criadas para implementálos. Esse arcabouço de leis e instituições tem muitos limites para exercer
suas funções – desde questões de legitimidade até de sustentabilidade –, mas
sem dúvida se criou uma possibilidade, antes inexistente, de que cidadãos e
cidadãs reclamem de seus Estados e não estejam inexoravelmente submetidos
a dinâmicas nacionais. Governos, parlamentos e judiciário podem ser
criticados em esferas superiores de jurisdição, o que obviamente gera muita
controvérsia e exige um trabalho constante de análise e inovação (Piovesan,
1997). A questão que se coloca é se a existência destes procedimentos em
escala global impacta sobre as concepções nacionais de cidadania, quais
os novos desafios e como se estabelecem as conexões entre as tórias e as
práticas na vida real.
Os direitos de cidadania estão relacionados a ser cidadão de um
determinado Estado nacional, o que garante prerrogativas, leis e políticas
de proteção, assim como responsabilidades e deveres. Ser cidadão e cidadã
é ter identidade nacional, poder votar e ser votado, ter acesso a políticas
4 O relatório e a decisão podem ser encontrados em: <www.cidh.oas.org>.
de proteção social e à justiça, pagar impostos e ter documentos oficiais,
entre outros. Ter direitos humanos, por outro lado, não está relacionado ou
restrito a um Estado nacional ou a uma nacionalidade; pelo contrário, diz
respeito a um conjunto de direitos que devem ser respeitados por qualquer
pessoa ou Estado, em qualquer lugar do mundo – estão vinculados à condição
humana de sujeitos de direitos. Assim, uma brasileira de férias na Espanha
não pode emitir um passaporte espanhol, nem se candidatar ou votar nas
eleições locais, mas pode e deve ter a proteção do Estado espanhol em casos
de violência ou risco de vida. Esse é um exemplo que ilustra as diferenças e
complementaridades entre direitos de cidadania e direitos humanos. Como
afirmam Maia e Pereira,
[...] de modo geral, pode-se dizer que todos os indivíduos pertencentes a um Estado-nação têm direitos e deveres inscritos numa ordem jurídico-política
sob a vigência de uma constituição. Com a consolidação das identidades nacionais no século XIX,
percebe-se que esses direitos e deveres variam de
país para país. Ao contrário dos direitos humanos,
que visam a universalidade, na medida em que são
direitos da pessoa humana na sua dignidade, a cidadania refere-se especificamente a um Estado (Maia;
Pereira, 2009, p. 40).
A cidadania, por estar mais vinculada a um contexto nacional e local, pode
ser mais dinâmica eis que o processo de mobilização de um país, ou de um
grupo específico de pessoas, em torno de demandas de direitos pode alterar
a condição de cidadania de forma mais rápida. As transformações ocorridas
no Brasil entre final dos anos 1970 e início dos anos 1980 são evidência
dessa dinâmica de mudanças sociais: o país saiu de uma ditadura para um
regime civil (1985), alterou sua Constituição Federal (1988), estabeleceu
eleições diretas para presidente da República (1989) e renovou seu marco
legal. A aprovação de uma nova lei internacional de direitos humanos, por
outro lado, exige um processo de mobilização global, com o convencimento
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de vários países, inúmeros debates no âmbito da ONU e pode levar décadas.
Entretanto, quando aprovada, essa Convenção ou Tratado reifica os direitos
em uma escala universal, para qualquer pessoa em qualquer lugar do mundo.
Muitas vezes, a existência de leis internacionais de direitos humanos ajuda
a redefinir e ressignificar a cidadania nacional, seja porque funciona como
um elemento de resistência à opressão de regimes autoritários, seja como
inspiração para o estabelecimento de direitos nacionais.
A combinação dos processos de construção de cidadania nacional com
o de definição e expansão dos direitos humanos levanta um grande desafio
sobre quem são os sujeitos destes direitos. As exclusões históricas de mulheres,
escravos e seus descendentes, crianças, prisioneiros, grupos étnicos, limitam
o exercício destes direitos. A obstrução do gozo dos direitos, por exemplo, no
acesso à justiça, ou à terra, ou ao direito à saúde, especialmente para grupos
que foram e são discriminados pelo Estado e pela sociedade inviabiliza um
Estado democrático. O fato de que as instituições funcionam para alguns
empoderados econômica e socialmente apenas reproduz o funcionamento
de uma sociedade de privilégios, uma sociedade medieval que as noções de
cidadania e direitos vieram para transformar. Portanto, a construção de um
lugar no mundo para todos, de acesso ao debate político e de expansão da
base da cidadania, local ou global, é ainda um grande desafio (Jelin, 2006).
Direitos de cidadania e direitos humanos são diferentes, mas é bom
que caminhem juntos. A cidadania, como um processo político, ajuda a
democratizar o Estado, a promover mudanças legais, a instaurar políticas
públicas, a monitorar sua execução e, neste processo, a fortalecer novas
vozes e novos sujeitos. Se esse processo acontece influenciado por um
discurso ético de respeito aos direitos humanos, melhor ainda. Teremos, ao
final, sociedades menos racistas e mais feministas, menos discriminatórias e
mais igualitárias.
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Brasileira, 2004.
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HOUAISS, Antonio. Dicionário da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Editora Objetiva, 2004.
HUNT, Lynn. A Invenção dos Direitos Humanos, uma história, São Paulo: Companhia das Letras,
2009.
JELIN, Elizabeth. Cidadania Revisitada: Solidariedade, Responsabilidade e Direitos. In: Construindo a Democracia: Direitos Humanos, Cidadania e Sociedade na América Latina, São Paulo:
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LAFER, Celso. A reconstrução dos Direitos Humanos: um diálogo com o pensamento de Hannah
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MAIA, João Marcelo Ehlert; PEREIRA, Luiz Fernando Almeida. Pensando com a Sociologia. Rio
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MONDAINI, Marco. O Respeito aos Direitos dos Indivíduos. In: PINSKY, Jaime; PINSKY,
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REIS, Elisa Pereira. Sobre a Cidadania. In: REIS, Eliza Pereira. Processos e escolhas, estudos de
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VIEIRA, Oscar Vilhena. Direitos Fundamentais, uma leitura da jurisprudência do STF. São Paulo:
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Capítulo 4
VIOLÊNCIAS E CONFLITUALIDADES NO
ESPAÇO ESCOLAR
Rochele Fellini Fachinetto
1. INTRODUÇÃO
Vivemos num contexto social em que os fenômenos da violência
atravessam nosso cotidiano: são imagens, cenas, relatos, notícias, estatísticas,
episódios que ocorrem com conhecidos ou ainda quando nós mesmos
estamos envolvidos. São inúmeras situações cotidianas veiculadas em jornais,
revistas, noticiários, redes sociais, entre outros, em que nos vemos absorvidos
e, por assim dizer, assustados, com uma multiplicidade de fenômenos que
podem ser caracterizados como violentos e que se manifestam nos mais
variados espaços sociais.
De forma geral, é mais comum sermos “capturados” por fenômenos de
violência explícita, que possuem uma dimensão material, como os episódios
de violência física que deixam no corpo sua marca. Entretanto, para nos
acercarmos um pouco mais da complexidade desses fenômenos, torna-se
pertinente refletirmos sobre outras formas de manifestação das violências.
Para Zizek (2009, p. 9), num primeiro plano, a violência emerge
para nós a partir de seus traços mais evidentes: do crime, do terror, dos
confrontos civis e internacionais, mas:
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Deveríamos aprender a ganhar recuo, a
desenredarmo-nos do engodo fascinante desta violência “subjectiva” diretamente visível, exercida por
um agente claramente identificável. É necessário
sermos capazes de nos aperceber dos contornos
dos antecedentes que engendram essas explosões. O
recuo permitir-nos-á identificar uma violência que
subjaz aos nossos próprios esforços que visam combater a violência e promover a tolerância.
O trecho do autor traz alguns aspectos que são fundamentais para
iniciarmos a reflexão sobre este tema. O primeiro deles convida a um
distanciamento dessa violência explícita, direta, que se torna visível e se
utiliza de uma dramatização da dor para sensibilizar, comover e envolver.
Essa comoção e envolvimento funcionam como uma “armadilha” ao olhar
crítico, pois concentram nossos esforços à dimensão mais explícita e visível
da violência – ao horror dos crimes violentos, mortes, torturas e outras
tantas violações que acabam limitando nosso posicionamento ao medo, à
revolta ou – o que pode ser pior – à própria ideia de vingança e de que
algo precisa ser feito agora e já para conter esses episódios. Essa violência
explícita, ou demasiadamente explicitada, é para Zizek (2009, p. 9) somente
a parte mais visível de um processo que envolve outras formas de violência e
que, via de regra, não são tematizadas ou mesmo visibilizadas.
Essa urgência que se coloca diante dos fatos é justamente aquilo que nos
impede de fazer uma análise mais aprofundada e cuidadosa dos fenômenos
da violência. Somos chamados a nos posicionar e agir imediatamente quando
é justamente isso que nos impede de pensar, de refletir e de lançar um olhar
analítico sobre a violência, porque estamos demasiadamente envolvidos
pelo terror, pela face sangrenta e dolorosa da violência. Essa é uma primeira
consideração importante sobre as reflexões que pretendemos pontuar neste
texto.
O segundo aspecto a ser destacado com relação ao trecho do autor
atenta para a necessidade de olharmos não apenas para uma violência que
consideramos externa, distante, longe e fora de nós. Ao contrário, instiga a
pensar numa violência que subjaz aos nossos próprios esforços que visam
combater a violência e promover a tolerância (Zizek, 2009, p. 9). Este se
constitui num exercício interessante na medida em que nos faz olhar para
diferentes formas pelas quais a violência pode ser manifestar; muitas vezes, a
partir de nossas próprias práticas, quando nos dizemos contrários à violência
e defensores da tolerância. Há fissuras que nos passam despercebidas e
que revelam formas de violência que manifestamos sem nos apercebemos
que constituem, elas próprias, também outras formas de violência, porém
invisibilizadas.
É justamente nesse sentido que se coloca a importância do recuo e
do distanciamento para compreensão de tais fenômenos, pois, ao sermos
absorvidos por essa violência explícita, visível, acabamos por desconsiderar
outras dimensões que subjazem estas dinâmicas.
Há razões para olharmos obliquamente a violência.
A premissa subjacente que parto é a de que há qualquer coisa de intrinsecamente mistificador numa
consideração directa: a alta potência do horror diante dos actos violentos e a empatia com as vítimas
funcionam inexoravelmente como um engodo que
nos impede de pensar (Zizek, 2009, p. 11).
O exercício de distanciamento dessas formas mais explícitas de
violências e da comoção que ela nos provoca tensiona nosso olhar para um
posicionamento analítico em relação a esses fenômenos, um olhar capaz de
explorar os múltiplos significados contidos nesses atos e que podem não
estar assim tão visíveis e explícitos ou mesmo que podem ocorrer em espaços
que, via de regra, não são pensados como locus da violência, como o espaço
doméstico, o local de trabalho ou instituições como a escola. Por outro
lado, também somos provocados a refletir justamente sobre as diferentes
percepções acerca da violência: o que é violência para alguns, pode assim
não se constituir para outros. Podemos nos opor, de forma muito enfática,
a determinadas formas de violência e, ao mesmo tempo, reproduzirmos
práticas violentas que assim não se constituem aos nossos olhos.
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Acercar-se da violência não apenas como problema social mas como
conceito, como uma questão sociológica constitui, sempre, um grande
desafio, tendo em vista tanto a complexidade desses fenômenos quanto
a necessidade de um distanciamento, de modo a possibilitar um olhar
analítico sobre a questão. Nesse sentido, este texto propõe uma reflexão
acerca do conceito de violência e sua relação com as noções de crime e
conflito a partir de uma sociologia das conflitualidades, cuja abordagem
busca reconstruir tais fenômenos, atentando para suas especificidades.
Aprofundar a reflexão acerca do que é violência, conflito e crime constitui
um exercício fundamental para complexificar e compreender os diversos
processos conflitivos que tomam lugar na escola e na sala de aula, espaços
para os quais este texto busca lançar um olhar a partir de uma sociologia das
conflitualidades.
2. VIOLÊNCIAS, CONFLITOS E CRIMES: APROXIMAÇÕES
CONCEITUAIS
Qualquer exercício de compreensão e interpretação dos fenômenos
da violência na sociedade contemporânea não pode abdicar de uma postura
epistemológica que parta do reconhecimento da complexidade do fenômeno
que considere tais processos nas tramas sociais e históricas nas quais eles
estão inseridos. Por essa razão, Tavares-dos-Santos (2009, p. 17) propõe a
complexidade como uma primeira ideia-elemento para construção do olhar
sociológico sobre a conflitualidade social contemporânea.
O caminho sociológico para se compreender a violência social segue a reconstrução da complexidade
das relações sociais e de poder, as quais se exercem
por múltiplas formas, de um modo transversal a vários eixos de estruturação do social. Tais eixos podem
ser dispostos em cinco conjuntos relacionais de conflitualidades: classes sociais, relações étnicas, relações de gênero; processos disciplinares; dispositivos
da biopolítica; e os processos mentais inconscientes.
Em cada conjunto de relações sociais reconhecemos
relações de força entre a ordem e a desordem, macro e micro poderes; e tensões sociais, algumas das
quais originam conflitos sociais, outras geram lutas
sociais, em diversas expressividades. (Tavares-dosSantos, 2009, p. 17)
Ao partir de uma ideia-elemento da complexidade social, Tavares-dosSantos (2009) propõe a reconstrução desses fenômenos e das múltiplas
dimensões que os compõem e traça uma diferenciação fundamental de
algumas noções que perpassam esse campo temático.
A reconstrução da complexidade desses múltiplos fenômenos constitui
um exercício imprescindível para nos aproximar da sua compreensão; isso
se torna bastante visível quando, em uma determinada situação em sala de
aula, por exemplo, nos deparamos com uma resposta grosseira, um gesto
ou ato violento, uma reação agressiva e a consideramos apenas por aquele
momento, como se ela representasse a totalidade da vida daquele sujeito.
A sociologia das conflitualidades nos provoca a reconstruir a complexidade
das tramas sociais que culminam na ação representada à nossa frente,
considerando o contexto histórico e social onde essa cena e esse sujeito
estão inseridos, de modo a compreender quais os códigos que estão sendo
acionados nessa interação.
O reconhecimento dessa complexidade também implica que
aprofundemos um pouco mais algumas noções que, vez ou outra, são
tratadas como equivalentes: violências, crimes e conflitos. Quando falamos
em crime, estamos nos referindo a uma categoria jurídica, ou seja, trata-se
de um código, estabelecido na forma de uma lei, que não apenas tipifica um
determinado tipo de comportamento como crime, mas também prescreve
uma pena, uma sanção àqueles que o praticarem. Cada sociedade ou grupo
estabelece para si quais são os comportamentos considerados ofensivos
àquela coletividade. Desse modo, numa acepção sociológica, o crime
consiste numa ofensa aos sentimentos coletivos de determinada sociedade
e não há o crime em si, mas sim as diversas formas pelas quais as diferentes
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sociedades definem quais são essas ofensas (Durkheim, 1978). Essa ideia
contribui para compreendermos como há diferentes concepções de crimes
e o que é considerado crime em uma determinada sociedade não o é em
outra, já que esses sentimentos coletivos variam em diferentes contextos
históricos e sociais.
Essa definição do crime é interessante para compreendermos
justamente que não há o crime em si, mas diferentes modos pelos quais as
diversas sociedades definem quais são as práticas e condutas que ameaçam
esses sentimentos coletivos. Por outro lado, pensar nessa noção de crime
para as sociedades complexas contemporâneas nos impõe novos olhares,
justamente considerando que há uma multiplicidade de sentimentos
coletivos – por vezes opostos, contraditórios, que entram em conflito na
trama social. Um bom exemplo para provocar a reflexão é pensar nos casos
de linchamentos, bastante comuns no cenário brasileiro, quando a própria
sociedade legitima atos de violência em nome de determinados sentimentos
coletivos e acaba também infringindo a lei, cometendo crimes contra outros
indivíduos que supostamente também cometeram algum crime.
A violência, por sua vez, não encontra seu substrato ou fonte de
legitimação numa tipificação jurídica. Ela está disseminada no tecido social,
tanto através de formas mais visíveis, das marcas físicas deixadas nos corpos,
quanto nas suas dimensões veladas e simbólicas. A violência seria a relação
social, caracterizada pelo uso real ou virtual da força ou coerção que impede
o reconhecimento do outro – pessoa, classe gênero ou raça –, provocando
algum tipo de dano, configurando o oposto das possibilidades da sociedade
democrática (Tavares-dos-Santos, 2009, p. 16).
A compreensão dos múltiplos fenômenos de violência que atravessam
a sociedade contemporânea não pode ser buscada sem uma historicização
desses processos sociais. Ao situar o contexto atual, sobretudo a partir
do início do século XXI, Tavares-dos-Santos (2009, p. 15) faz referência
ao chamado processo de mundialização, que é marcado pela globalização
dos processos econômicos e pela mundialização das novas questões sociais
mundiais. Dentre essas novas questões sociais que marcam o processo
de mundialização, destaca-se a violência nas suas mais diversas formas de
expressão.
Os fenômenos da violência adquirem novos contornos, passando a disseminar-se por toda sociedade
contemporânea: a multiplicidade das formas de violência – violência política, costumeira, violência de
gênero, violência sexual, racista, ecológica, simbólica e violência na escola, configuram-se como um
processo de dilaceramento da cidadania (Tavares-dos-Santos, 2009, p. 16).
É interessante perceber que o autor não trabalha a partir de um
conceito geral de violência – como se fosse um fenômeno único, passível
de uma definição universal –, mas sim com uma noção mais complexa de
que há “fenômenos da violência” que expressam uma rede de poderes que
se sobrepõem, estão continuamente em circularidade e se manifestam nos
microprocessos cotidianos da vida social. Portanto, para compreendermos
os fenômenos da violência, precisamos buscar compreender como se
estabelece essa rede de múltiplos poderes, que sujeitos estão nela envolvidos
e mediante quais dinâmicas se dão esses fenômenos.
O autor identifica uma multiplicidade de fenômenos da violência
ligados a questões políticas, raciais, sexuais, de gênero, às relações na escola,
nas famílias e outras instituições que evidenciam a chamada violência difusa,
pois ela está disseminada por todo o tecido social. Essa violência difusa
coloca desafios à sociedade contemporânea e às suas instituições que se
veem, hoje, diante da necessidade de reconhecer essas formas de violência e
pensar estratégias para enfrentá-las.
Nesse sentido, ao correlacionarmos estas primeiras noções – de crime
e de violência –, já é possível identificarmos algumas especificidades em
relação a cada uma. A noção de crime implica uma tipificação jurídica, precisa
estar explicitada em códigos para que possa ser acionada e reconhecida
pelos mecanismos da justiça. O crime não é sinônimo de violência. Há
alguns crimes que são executados sem violência, como o furto, quando
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algum pertence da vítima é subtraído sem que ela perceba. Os fenômenos da
violência, por sua vez, não são tão fáceis de categorizar; trata-se de processos
complexos e multifacetados que envolvem uma multiplicidade de fatores,
não podendo ser “encapsulados” numa categoria jurídica.
Essa distinção é interessante e nos possibilita incursionar pela
complexidade que envolve cada noção. A temática da violência de gênero
nos fornece um exemplo interessante para pensarmos essa distinção. A
promulgação da Lei Maria da Penha, em 2006, expressa uma aposta política
que os movimentos sociais têm feito na revisão jurídica e nas instituições
da justiça criminal como forma de enfrentar a violência contra a mulher,
processo que tem sido chamado de judicialização das relações sociais
(Debert; Gregori, 2008, p. 165).
Para as autoras, este recurso ao direito penal deixa evidente o que elas
denominam de “encapsulamento da violência pela criminalidade” (Debert;
Gregori, 2008, p. 165). Isso contribui justamente para evidenciar que
essas duas noções expressam processos sociais distintos que precisam ser
compreendidos dentro de suas complexidades e das teias de relações que as
compõem. Nesse âmbito, o encapsulamento da violência pela noção de crime
pode vir a representar a ideia de que apenas a produção de uma categoria
jurídica acerca do fenômeno pudesse dar conta do que é a complexidade
da violência de gênero. A tipificação jurídica da violência contra a mulher
tem uma importância política que não se pode deixar de considerar, pois ela
estabelece uma fronteira e sinaliza que isso não é possível, que a violência
contra a mulher não é algo natural ou aceitável no âmbito das relações sociais.
Entretanto, apenas estabelecer que se trata de um crime e que seu o autor
receberá uma punição não é suficiente para dar conta da complexidade do
que é a violência de gênero. Seja porque os efeitos (psicológicos, psíquicos,
materiais, corporais, subjetivos) dessa violência não são simplesmente
“apagados” com a punição do agressor, seja porque apenas o recurso ao
direito penal não contribui para tensionar, problematizar ou descontruir os
termos pelos quais essa violência se constrói. Dito de outra forma, apenas
a tipificação jurídica do fenômeno não garante ou resolve o problema da
violência de gênero, que envolve uma multiplicidade de dimensões, tem
como substrato um conflito de gênero que é histórico e que demanda uma
mudança cultural de longa data nas representações acerca dos papéis de
gênero.
Assim, para as autoras, é também pertinente essa diferenciação entre o
crime e a violência.
Da mesma forma, o significado de violência – que
atribui o sentido de danos, abusos e lesões a determinadas ações – é construído historicamente e
depende do poder de voz daqueles que participam
do jogo democrático. É, portanto, de importância
fundamental empreender distinções entre os significados de processos de violência e daqueles processos
que criminalizam abusos. (Debert, Gregori, 2008,
p. 166).
Outra noção chave que compõe o quadro interpretativo de uma
sociologia da conflitualidade, conforme proposta por Tavares-dos-Santos
(2009), é a ideia do conflito. O autor retoma a linhagem sociológica da
sociologia do conflito, cujo principal argumento não é simplesmente o de
que a sociedade consiste em conflito, mas o de que, quando o conflito não é
explícito, ocorre um processo de dominação (Collins, 2009, p. 49)1. Para os
teóricos dessa tradição, a ordem social é constituída por grupos e indivíduos
que tentam impor seus próprios interesses sobre os outros, sendo que
podem ou não irromper conflitos abertos nessa luta para obter vantagens.
Portanto, partindo dessa abordagem, o conflito não constitui um
processo necessariamente desagregador da sociedade, mas inerente às
relações sociais e potencialmente criador de outras relações sociais. Da
mesma forma, o conflito não implica necessariamente violência, mas pode
refletir uma pluralidade de diferentes tipos de normas sociais, padrões
de códigos de orientação de conduta que são divergentes e incompatíveis
(Tavares-dos-Santos, 2009, p. 19).
1 Randall Collins (2009) apresenta na obra Quatro Tradições Sociológicas as principais tradições do pensamento sociológico clássico e seus desdobramentos no pensamento sociológico contemporâneo. As quatro tradições trabalhadas no
texto do conflito, a racional-utilitarista, a durkheiminiana e a microinteracionista.
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Desse modo, seguindo a proposta de uma sociologia das conflitualidades,
que instiga a olhar e traçar a complexidade dos fenômenos, propomos agora
uma reflexão sobre o espaço escolar, buscando evidenciar de que forma essa
diferenciação entre os fenômenos da violência, os conflitos e os crimes nos
ajuda a compreender a complexidade das relações que se estabelecem na
escola.
3. POR UMA SOCIOLOGIA DAS CONFLITUALIDADES NA
ESCOLA
A busca por uma compreensão dos processos conflitivos e violentos
que se dão no espaço escolar não pode abdicar de uma reflexão mais
ampla que situe as mudanças que marcam a sociedade contemporânea. São
transformações que manifestam dimensões econômicas, políticas, sociais e
culturais, impactando nos padrões de sociabilidade e de interação social.
A escola, enquanto uma instituição central no processo de socialização das
novas gerações, afeta e também é afetada por essas transformações.
O imaginário social sobre a escola esteve marcado por um bom
tempo como um lugar do aprendizado, do conhecimento, da sociabilidade
entre alunos e professores e não como um espaço de violências, mesmo
considerando que era comum a utilização de castigos físicos como forma de
educar; isso não era percebido como violência, mas naturalizado como parte
do processo educativo.
O contexto contemporâneo, marcado pela violência difusa e por uma
multiplicidade de novas conflitualidades, coloca a escola diante de uma
nova configuração de relações sociais e escolares, trazendo-a à tona também
como um lugar de produção de violências.
Para Tavares-dos-Santos (2009), a violência no espaço escolar constitui
uma nova questão social mundial, considerando-se que o fenômeno começa
a ser reconhecido e visibilizado em um conjunto expressivo de sociedades
nos últimos 10 anos, com alcance global e não apenas nos países periféricos.
Em seus estudos sobre o fenômeno na cidade de Porto Alegre (Tavaresdos-Santos, 1999), o autor não identifica algo como uma “violência na
escola”, mas antes uma multiplicidade de fenômenos que dizem respeito
a violências, conflitos e crimes, que expressam dinâmicas, motivações e
significados distintos que precisam ser decodificados.
Para o autor, faz-se necessário distinguir as diferentes formas de
“violência na escola”. Em primeiro lugar, há uma violência que se origina
“fora da escola” e que acaba adentrando ou influenciando as relações dentro
do espaço escolar. Essa dinâmica violenta possui relação estreita com outras
dinâmicas criminais, como o tráfico de drogas.
A outra forma de violência na escola está relacionada às formas de
sociabilidades violentas entre os jovens que se produzem no tecido social.
Essas formas de violência estão atreladas a uma socialização marcada por
códigos violentos que, numa situação de conflito, podem se transformar em
atos violentos.
Neste último caso, podemos observar a violência configurandose como linguagem e como norma social para algumas categorias sociais
(Tavares-dos-Santos, 2009, p. 19). Nesse ponto de vista, a violência não é
percebida necessariamente como um dano, mas como uma forma possível de
expressão, de comunicação, ainda que produza danos materiais, subjetivos,
simbólicos. A violência como norma social expressa uma internalização de
códigos violentos que podem ser manifestados nas mais variadas formas –
verbais, corporais, gestuais, simbólicas – em que, muitas vezes, o próprio
autor de atos violentos não reconhece estar produzindo um dano, mas ao
contrário, está manifestando-se, expressando-se de alguma forma. Essas
diferenças somente podem ser percebidas e tensionadas considerando como
os conflitos e as violências são relacionalmente produzidos, ao ponto de que
o que é violência para alguns, para outros é uma forma de manifestação,
uma forma de perceber e de estar no mundo. Nesse aspecto, é preciso
que se problematize justamente a forma como se constroem os processos
de socialização que acabam tornando possível que a violência venha a se
configurar como um código social, como uma forma de linguagem.
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E, por fim, o autor destaca a violência que emerge na própria instituição
escolar, no intuito de preservar a ordem, de manter o disciplinamento dos
alunos. Essa forma de violência pode emergir como forma de resolução de
conflitos a partir de divergências de códigos de orientação de conduta.
Talvez fosse mais adequado denominarmos as incivilidades como um conflito de civilidades, pois entre professores e alunos há portadores de diferentes
normas de conduta, o que se manifesta por formas
menores, moleculares e cotidianas de violência no
espaço escolar, indicando a difícil questão da convivência entre grupos sociais que utilizam diversos códigos culturais nas relações de sociabilidade. (Charlot; Emin, 1997 apud Tavares-dos-Santos, 2009).
A maneira como a escola resolve seus conflitos pode, por exemplo,
atenuar ou agravar uma determinada situação.
Esse último aspecto é fundamental para a argumentação desenvolvida
neste texto: a proposta de uma sociologia das conflitualidades no espaço
escolar provoca justamente a construção de um olhar complexo sobre essa
realidade que busque reconstruir os conflitos que se dão nesse espaço,
traçando as tramas pelas quais os sujeitos são atravessados de modo a
compreender quais os significados dos atos de violência, das divergências
entre os códigos mobilizados. Para que essa comunicação e compreensão se
efetivem no espaço da sala de aula, os professores precisam conhecer seus
alunos, conhecer suas realidades, suas identidades, os contextos sociais de
suas famílias e comunidades.
A reconstrução da conflitualidade que perpassa esse espaço também é
fundamental para que se possam distinguir as situações que estão em jogo
e quais os encaminhamentos mais adequados para cada uma. Nem todos os
conflitos que tomam lugar na escola levam necessariamente à violência. Por
outro lado, um conflito que não é visibilizado e solucionado pode culminar
numa situação de violência mais grave ou mesmo num crime.
É preciso reconhecer que a escola e a sala de aula são espaços de
conflitos. Isso não é necessariamente prejudicial às rotinas escolares e ao
aprendizado. É fundamental olhar para esse espaço tendo como horizonte
não uma sociedade da harmonia ou do consenso, mas ao contrário, a
possibilidade de vivermos numa sociedade em que os conflitos sociais possam
vir à tona, possam ser socialmente visibilizados, tensionados e solucionados.
Ao levarmos em conta que os conflitos fazem parte da realidade social, das
relações sociais, estamos dando vazão à complexidade do tecido social e
podemos, assim, esperar uma sociedade menos violenta, na qual os conflitos
sociais não culminem em atos de violência. Se nosso horizonte for uma
sociedade harmônica a consensual, os conflitos – que fazem parte do tecido
social – acabam sendo vistos como problemas sociais e não como a expressão
da diversidade ou da multiplicidade de códigos culturais e sociais.
4. CONSIDERAÇÕES FINAIS
A violência na escola figura hoje como uma das novas questões sociais
mundiais (Tavares-dos-Santos, 2009) e precisa ser compreendida nas suas
mais variadas formas de expressão. Por outro lado, é preciso reconhecer
que a escola é um espaço multicultural, diverso, complexo e marcado por
múltiplos conflitos sociais que não implicam necessariamente formas de
violência. Os conflitos presentes na escola trazem consigo um potencial de
transformação, de criação de novos laços sociais e por essa razão podem
ser trabalhados pedagogicamente, por meio de estratégias de mediação que
passam por procedimentos de escuta e de fala. A mediação de conflitos
é hoje uma prática extremamente necessária no espaço escolar, tanto
por possibilitar momentos de fala e de escuta quanto porque implica os
sujeitos na resolução dos seus conflitos, empoderando-os para que eles
próprios encontrem uma solução para suas divergências. O enfrentamento
das violências e a resolução dos conflitos que perpassam o espaço escolar
passam necessariamente pelo protagonismo dos sujeitos envolvidos nesse
processo, ou seja, a comunidade escolar: professores, alunos, pais, diretores,
funcionários e comunidade.
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A sociologia das conflitualidades nos desafia à construção de um olhar
complexo sobre a realidade escolar, buscando reconstruir e compreender
os significados dos fenômenos da violência e dos conflitos sociais que se
manifestam nesse espaço.
5. REFERÊNCIAS
COLLINS, Randal. O surgimento das Ciências Sociais. Quatro tradições sociológicas. Petrópolis,
Rio de Janeiro: Vozes, 2009.
DEBERT, Guita Grin; GREGORI, Maria Filomena. Violência e gênero: novas propostas, velhos
dilemas. Rev. bras. Ci. Soc. [online]. 2008, v. 23, n. 66, p. 165-185.
DURKHEIM, Emile. As regras do método sociológico. São Paulo: Editora Nacional, 1978.
TAVARES-DOS-SANTOS, J. V. A palavra e o gesto emparedados: a violência na escola. Porto Alegre: Secretaria Municipal de Educação, 1999. 176p.
___. Violências e Conflitualidades. Porto Alegre: Tomo Editorial, 2009.
ZIZEK, Slavoj. Violência: seis notas à margem. Lisboa: Relógio D’Água Editores, 2009.
Capítulo 5
O COTIDIANO ESCOLAR COMO UM
AMBIENTE DE CONFLITOS E OS
DIREITOS HUMANOS COMO ESTÍMULO
À SUA SOLUÇÃO PACÍFICA
Renan Bulsing dos Santos
Ao analisarmos a história da formação do Brasil, restringindo nosso foco
a observarmos como nosso sistema educacional foi construído, é possível
concluir que o objetivo inicial das instituições escolares era a alfabetização
de uma camada bastante restrita da população: homens, brancos, cristãos,
heterossexuais, membros das classes altas. Muita coisa mudou desde então: a
Educação é compreendida hoje como um direito humano universal, motivo
pelo qual o acesso à escolaridade é um dever de todos os Estados em relação
às suas populações. Em especial nas últimas décadas, o Brasil tem feito
diversos esforços no sentido de erradicar o analfabetismo, ampliando vagas
e estendendo o acesso ao ensino básico e médio. Nesse processo, grupos
tradicionalmente excluídos da escola vêm, enfim, tendo acesso a ela.
Em razão disso, os educadores têm-se deparado com mudanças no
perfil do alunado: é cada vez mais frequente a presença de estudantes que
destoam dos demais em razão de algum marcador social de diferença. Seja
em termos de classe social, raça, religião, gênero, sexualidade, ou outras
características, o fato é que nunca antes o ambiente escolar no Brasil foi tão
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marcado pela diversidade de identidades dos estudantes. O país apresenta
uma configuração multicultural, e essa pluralidade tem sido uma tendência
em todo o planeta.
Esse grande conjunto de diferenças entre as pessoas muitas vezes
resulta em discordâncias. A divergência é um efeito inevitável da convivência
coletiva, e não é em si algo negativo. Não é preciso encará-la como uma
ameaça, pois o conflito tem um potencial construtivo: ao me deparar com
posicionamentos distintos do meu, posso descobrir caminhos que antes eu
sequer cogitava. Ao ver minhas verdades questionadas, posso me permitir
fazer novas perguntas, e a partir delas, repensar minhas opiniões. Muitas
vezes, apenas quando sou desafiado pelo outro enfim faço o esforço de
enxergá-lo e reconhecer suas demandas.
Contudo, Hicks salienta:
Uma consequência destrutiva do conflito é o processo de alienação e o isolamento entre as partes,
criando a distância e a falta de comunicação que
resultam no processo de desumanização. Informações precisas sobre a outra parte são substituídas por
distorções e estereótipos que alimentam e agravam
o conflito. O outro deixa de ser importante, o que
justifica o impulso para humilhar e aniquilar. (Hicks,
2007, p. 152)
Propomos aqui uma sutil diferença entre as palavras conflito e confronto,
mais em termos de grau do que de natureza; o conflito pode resultar em
confronto (e, muitas vezes, uma tentativa mal calculada de resolução de
conflito pode ser justamente o gatilho de um confronto). O conflito pode
se manifestar de modo intenso, porém, conforme ficar mais evidente a
dimensão da violência, mais ele se configura em um confronto. A violência
pode se manifestar tanto pela via física (danos ao corpo), material (dano
a objetos), psicológica (provocar medo ou ansiedade) ou moral (espalhar
mentiras ou calúnias, constranger o outro publicamente)1.
A importância dessa distinção é apenas para que possamos compreender
que o conflito (ou, digamos, um confronto numa etapa muito inicial) contém
um potencial positivo, que deve ser explorado; não apenas para resolver a
situação tensa em específico, como também pode servir para o futuro. Um
conflito bem administrado pode servir para modificar comportamentos,
tanto dos envolvidos, como de outros atores ao redor deles. Essa é uma
perspectiva similar, em muito menor escala, a de uma diplomacia preventiva,
proposta pelo ex-secretário-geral da ONU, Boutros Boutros-Ghali, no
documento “Uma Agenda Para a Paz” (apud Hicks, 2007, p. 157): “ação
para evitar que surjam disputas entre as partes, para evitar que disputas
existentes cresçam e se tornem conflitos, e para limitar que o conflito se
espalhe.”
1. A MEDIAÇÃO COMO ESTRATÉGIA DE SOLUÇÃO DE
CONFLITOS
A escola é um espaço público, ou seja, é um ambiente em que eu não
tenho uma garantia de antemão de que não conviverei com essa pessoa
ou aquela. Espaços públicos são ambientes de livre circulação, que somos
obrigados a compartilhar, mesmo com pessoas portadoras de características
com as quais não estamos acostumados, ou mesmo das quais não gostamos.
Sendo o Brasil uma república democrática, comprometida com diversos
pactos de direitos humanos assinados diante da comunidade internacional,
nós, cidadãos, somos todos comprometidos com uma convivência
harmoniosa e pacífica, a despeito de nossas diferenças.
Nesse sentido, afirma Hicks:
O impulso de distanciar-se um do outro e de atacar
psicologicamente, pelo abuso verbal, ou fisicamente,
1 Cabe aqui o lembrete de Reardon: “a violência, em todas as suas formas, é uma agressão à dignidade humana”
(2007, p. 64).
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com danos corporais, deve ser contido. Atualmente,
este impulso teve maus resultados nas instâncias em
que a violência pode ser observada em todos os níveis de interação humana: na família, nas escolas, nas
comunidades e entre os países. (Hicks, 2007, p. 161)
É importante destacar que não são as diferenças em si que resultam
em conflitos, e sim as desigualdades sociais construídas em cima dessas
diferenças. Por exemplo: ainda hoje encontramos indicadores estatísticos
apontando que as mulheres costumam receber salários menores que os
homens (mesmo quando possuem a mesma formação, contratadas para
desempenharem as mesmas funções)2. Isso não significa que haja qualquer
problema em nascer mulher; significa que há um problema cultural ainda
não resolvido, presumindo haver uma diferença entre as capacidades laborais
de um e de outro.
Houve uma longa e árdua luta dos movimentos de mulheres para
conquistarem o direito de serem tratadas com os mesmos direitos que os
homens sempre detiveram, e é uma luta que infelizmente ainda não venceu
por completo as discriminações das quais as mulheres permanecem sendo
vítimas. Pensamento similar pode ser aplicado aos demais marcadores
sociais da diferença, que, como dito no início, cada vez mais são expressos e
reconhecidos no ambiente escolar. E, espelhando os conflitos relacionados
às desigualdades da sociedade como um todo, também na escola eles
acontecem.
É bastante comum que os educadores, quando se deparam com
situações de conflito na escola, costumem adotar dois comportamentos:
ou tentam conter o fato e dispersar os sujeitos o mais rápido possível
(objetivando apenas evitar que o evento piore e se alastre), ou se esquivam
de resolvê-lo, requisitando a intervenção de terceiros (outros profissionais
2 “O salário médio de uma mulher brasileira com educação superior representa apenas 62% do de um homem
com a mesma escolaridade, apontou um relatório divulgado nesta terça-feira, 24, pela Organização para Cooperação
do Desenvolvimento Econômico (OCDE), com dados de 46 países. A porcentagem posiciona o Brasil, empatado
com o Chile, no primeiro lugar do ranking de maior discrepância de renda entre gêneros no mercado de trabalho.”
(Fonte:<http://noticias.uol.com.br/ultimas-noticias/agencia-estado/2015/11/24/brasil-tem-maior-diferenca-salarialentre-homens-e-mulheres.htm>, acesso: dez. 2015).
da própria escola, ou profissionais externos, como psicólogos, médicos,
policiais, juízes, ou mesmo os pais/responsáveis).
Transferir a responsabilidade é sempre problemático, pois, ao fazê-lo,
abre-se margem para críticas: falta de capacidade, comprometimento e/ou
interesse do educador e/ou da escola. Fora o fato de que a transmissão de
responsabilidade nem sempre significa que o problema será resolvido, muito
menos que o será de forma satisfatória – em especial, quando a escola requer
que os pais ou familiares resolvam o problema (as famílias resolverão como
lhes parecer mais adequado e, como não possuem nenhum treinamento
específico, podem fazê-lo de modo ineficaz).
A escola existe para transmitir conhecimentos, mas não apenas
em termos do conteúdo técnico das disciplinas. A escola não transmite
apenas conhecimento intelectual; também ensina a convivência coletiva.
Os educadores que não enxergam como sendo sua essa responsabilidade
estão fazendo um trabalho incompleto e contraproducente, pois se esquivar
de resolver os conflitos entre os alunos contribui para mantê-los mais
displicentes, barulhentos e resistentes ao aprendizado técnico. Procurar
resolver os conflitos também é envolver os alunos, participar da vida deles,
demonstrar uma preocupação não apenas passageira com eles, reconhecêlos e respeitá-los como indivíduos, e tudo isso reverbera em uma relação
mais consistente também no plano da aprendizagem.
2. A ESCOLA COMO UM ESPAÇO DE CONFLITOS
Estamos de acordo quanto à importância de uma atuação ativa por
parte dos educadores na resolução dos conflitos escolares. Permanece,
porém, a dúvida: como fazê-lo? Uma das principais razões que explicam o
comportamento esquivo dos educadores em tentar administrativas situações
de tensão é a sensação de despreparo: não sabem exatamente que caminho
adotar pra lidar com determinados eventos. Algumas vezes, ocorrem
situações conflituosas por meio de piadas ou brincadeiras entre os alunos, e
alguns professores preferem enxergá-las como se não contivessem nenhum
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conteúdo conflituoso, quando muitas vezes essas piadas são feitas em cima
de característica dos envolvidos centrais às suas identidades (ser muito
gordo, muito magro, muito baixo, muito míope, muito lento, muito rápido,
muito feminino, muito masculina, muito branco, muito escuro, etc.).
Uma estratégia que vem tendo bastante eficácia em resolver conflitos
em sala de aula é pela via da mediação3. Na mediação, as partes divergentes
são chamadas a empreender um verdadeiro diálogo, no qual cada uma terá
sua oportunidade de verbalizar seus motivos, ao mesmo tempo em que se
disporá a escutar a outra parte. O objetivo aqui é desestabilizar a tensão
por meio da fala, permitindo que as partes se expliquem, apresentem sua
posição, e ao mesmo tempo possam escutar o outro e visualizar o evento por
uma perspectiva diferente, muitas vezes nem cogitada.
3. ESCUTAR O OUTRO É RECONHECER SUA DIGNIDADE
Cabe aqui recuperar parte da argumentação dos direitos humanos para
justificar o porquê de uma técnica tão simples e aparentemente ineficaz
como o diálogo é, na verdade, tão produtiva. Como afirma Spector (2007,
p. 279): “Os direitos humanos não são abstrações ou ideais isolados, mas
são, no final, aquilo que acordamos uns com os outros no contexto de nossas
culturas e de nosso cenário político”.
O cerne do debate sobre direitos humanos é o reconhecimento da
dignidade universal de todos os seres humanos. Importante destacar o
quão extraordinário é pautar-nos pela universalidade da dignidade: ao
postularmos uma dignidade universal, estamos reconhecendo que o mero
pertencimento à humanidade nos torna dignos, nos confere direitos, nos
assegura um tratamento igualitário. Nenhuma característica física, social,
histórica ou geográfica é necessária: basta nascer humano. A dignidade
universal foi acordada pela ONU apenas na década de 1950. Ao pensarmos
3 Para maiores informações sobre a mediação de conflitos em escolas, o Conselho Nacional do Ministério Público
desenvolveu e disponibilizou excelente material voltado aos educadores: <http://www.cnmp.mp.br/portal/images/
stories/Comissoes/CSCCEAP/Di%C3%A1logos_e_Media%C3%A7%C3%A3o_de_Conflitos_nas_Escolas_-_Guia_
Pr%C3%A1tico_para_Educadores.pdf>.
no contexto histórico, percebemos uma mudança de paradigma bastante
radical em termos de como a humanidade vinha se portando até ali.
No caso do Brasil, o período escravocrata, no qual todo um grupo
humano foi destituído por completo de sua dignidade, havia sido encerrado
em 1888 (menos de cem anos antes). A origem dos conflitos raciais deve
muito a uma oposição à ideia de igualdade universal: um grupo humano,
tecnologicamente dominante, postulou uma divisão de todos os demais
grupos humanos do mundo em raças – sendo que a sua própria era
considerada a única legítima. As demais eram versões inferiorizadas dela, daí
a legitimidade de conquistá-las e escravizá-las.
A transição de um momento histórico em que a humanidade era
dividida em raças superiores e inferiores para o reconhecimento da igualdade
universal não foi sem conflitos, nem se resolveu por completo. Não é à toa
que ainda hoje o racismo se faz muito presente no cotidiano. Contudo, o
reconhecimento da universalidade da dignidade, inerente a todos os homens
e mulheres pelo simples fato de serem humanos, foi uma grande conquista
coletiva, que deve ser disseminada e estimulada. Quanto mais defendermos
essa ideia, maiores serão as chances de concretizarmos condições de vida
mais igualitárias.
Se todos nós humanos compartilhamos uma mesma dignidade,
então toda a vida humana tem o mesmo valor, e então todos merecemos o
mesmo respeito. Todos merecemos ser reconhecidos como sujeitos dotados
de conhecimento e autodeterminação, capazes do pensamento crítico
e de definir o próprio caminho. Todos merecemos ter nossa experiência
reconhecida e nossa opinião ouvida. Todos merecemos a chance de participar
do debate, expressando nosso ponto de vista.
4. PROMOVENDO UM AMBIENTE DE APRENDIZADO PACÍFICO
Há um aspecto da instituição escolar que transmite aos alunos uma
ideia de desigualdade de legitimidades: a tradicional divisão de tarefas do
processo educacional, na qual os alunos estão lá apenas para aprender, os
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professores apenas para ensinar. Nessa perspectiva, o conhecimento segue
uma via unilateral, saindo da cabeça dos professores para ser assimilado
pelos alunos, que ou são considerados vasos vazios a serem preenchidos, ou
vasos recheados com porcaria, cabendo aos professores tirá-la e substituí-la
pelo verdadeiro conhecimento.
Como afirma Meintjes:
Tratar os estudantes simplesmente como receptáculos a serem preenchidos com ideias e informações
úteis é privá-los de sua consciência crítica e iludi-los,
fazendo-os acreditar que o conhecimento é mais um
objeto a ser recebido do que um processo contínuo
de investigação e reflexão. (Meintjes, 2007, p. 122)
O aprendizado é um processo de trocas, no interior do qual os
alunos também aportam conhecimentos. Ocorre um ganho de qualidade
na assimilação da novidade quando ela é transmitida a partir do que os
estudantes já conhecem. Ainda segundo Meintjes:
O ambiente educacional mais desejável para uma pedagogia que objetive o pleno exercício da cidadania
é aquele em que as relações tradicionais entre os estudantes e os educadores, por um lado, e estudantes
e conhecimento, por outro lado, são transformadas.
[...] qualquer hierarquia de instrução preexistente
deve ser substituída por relações de diálogo horizontais. (Meintjes, 2007, p. 136)
A despeito de os educadores estarem operando a partir desse novo
paradigma, o senso comum tradicional descrito antes segue muito presente
na cabeça dos alunos: muitos chegam à escola numa atitude defensiva,
entendendo-se numa posição de inferioridade em relação aos professores,
diretores e funcionários da escola. A isso, somam-se as inúmeras desigualdades
do mundo “lá fora”, que, por óbvio, também se fazem presentes na escola. As
diferentes marcas identitárias perpassam todos os sujeitos, e não é possível
deixá-las nesse mítico “lá fora”. Tudo isso serve para explicar o porquê de
serem tão comuns os conflitos no espaço escolar.
Diante disso, cabe aos educadores o papel fundamental de atuarem na
promoção de um ambiente de aprendizado pacífico, e os direitos humanos
podem ser uma ferramenta muito útil nesse processo. Nesse sentido,
Flowers e Shiman afirmam:
Quaisquer que sejam, injustiças e intolerâncias existentes em uma sociedade também estarão presentes
em suas escolas. Os professores são fundamentais
para mostrar aos estudantes como analisar eventos
em suas próprias vidas através de uma “lente dos direitos humanos”. Os estudantes podem ver que linguagem abusiva, que sugere estereótipos, provocadora, intimidadora e outras formas de discriminação
tem uma relação direta com os direitos humanos,
assim como manifestações sociais de intolerância,
tais como sexismo, racismo e homofobia. (Flowers e
Shiman, 2007, p. 266)
É inviável em absoluto que os educadores se responsabilizem para
intervir em todas as inúmeras desigualdades presentes na escola (motivadoras
dos conflitos). No entanto, os educadores precisam estar atentos para
intervirem quando essas desigualdades estiverem operando de modo a
prejudicar ou impossibilitar que as partes em conflito manifestam seu ponto
de vista. Em toda situação conflitiva há um desequilíbrio de comunicação;
em regra, alguma das partes (a que detiver maior quantidade de marcadores
sociais da diferença) estará em piores condições de se manifestar e ser
ouvida (e, portanto, reconhecida como digna). Daí o porquê de a mediação
ser um caminho eficaz, ao apostar numa solução na qual todas as partes
são colocadas em igualdade em relação umas às outras, conferindo a cada
uma a chance de expressarem seus pontos de vista. Cada parte poderá
manifestar a razão pela qual está se sentindo agredida em sua dignidade pelo
comportamento do outro, sem chance da recusa deste a escutá-la.
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......
Como afirma Hicks (2007, p. 149), “a resolução dos conflitos exige
uma análise das necessidades humanas não atendidas que estão na raiz da
luta”, e para descobri-las, é preciso empreender o diálogo. O autor oferece
uma orientação mais prática sobre como mediar:
[...] o diálogo deveria começar com uma “avaliação
de necessidades”, e seria seguido por um período de
avaliação conjunta, durante o qual os próprios participantes trariam propostas de como lidar com as
necessidades expostas por ambas as partes e quais
as restrições que cada parte teria. (Hicks, 2007, p.
153)
Ao ter a oportunidade de se manifestar e ser ouvida, a parte agredida
vivencia um lugar de legitimidade para expressar a sua experiência de vida.
O ato de ouvir a experiência do outro permite se colocar no lugar dele e
reconhecê-lo como alguém que também sofre, e também merece não sofrer.
Nesse processo, contar a própria história confere validação e reconhecimento
à violência sofrida4, e escutar a história do outro permite o desenvolvimento
da empatia para com o sofrimento alheio. Estabelecem-se aí as bases para
uma conexão emocional, capaz de neutralizar e/ou ressignificar a relação
conflituosa.
Hicks salienta:
A hipótese básica de que necessidades humanas não
atendidas precisam ser tratadas nas relações de conflito traz implícita outra crença fundamental, a de
que as necessidades humanas não são negociáveis.
Assim, o processo de resolução de conflitos que lida
com o nível de necessidades não pode ser baseado
em acordos ou barganhas, que sempre caracterizam
técnicas de negociação que tratam dos “interesses”
de cada parte. Ao contrário, o processo envolve ado4 Segundo Hicks (2007, p. 155): “Este tipo de reconhecimento é um passo significativo no processo de cura dos
que se tornaram vítimas, e pode contribuir para a reconstrução de sua autoestima como membro de um grupo com a
mesma identidade ao qual são negados os direitos civis.”
tar uma abordagem “analítica”, por meio da qual se
cria o ambiente para a “resolução do problema”,
atacando as raízes do conflito. O propósito é analisar
as necessidades de cada parte sem discussões, para
ter ideia da perspectiva de cada uma. Nas relações
de conflito, as informações que cada parte tem uma
da outra são quase sempre baseadas em preconceitos
e estereótipos, uma vez que as partes normalmente
não tem a oportunidade de conversar diretamente.
(Hicks, 2007, p. 151)
Em suma: se os conflitos ocorrem em razão das diferenças que marcam
os alunos, mediá-los por meio do diálogo permite reestabelecer uma
sensação de igualdade a despeito das diferenças. Não se trata aqui de reduzir
as diferenças ou fazê-las sumirem; trata-se de fazer as partes sentirem que, a
despeito de serem diferentes, têm ambas o dever e o direito de se tratarem
como iguais, conferindo-se mútuo respeito.
5. REFERÊNCIAS
FLOWERS, Nancy; SHIMAN, David. A.. “10. Educação de Professores e a Visão de Direitos
Humanos”. In: CLAUDE, P. Richard; ANDREOPOULOS, George (orgs.). Educação em Direitos
Humanos para o Século XXI. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo: Núcleo de Estudos
de Violência, 2007, p. 253-273.
HICKS, Donna. “06. Resolução de Conflitos e Educação em Direitos Humanos: Ampliação
da Agenda”. In: CLAUDE, P. Richard; ANDREOPOULOS, George (orgs.). Educação em Direitos
Humanos para o Século XXI. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo: Núcleo de Estudos
de Violência, 2007, p. 141-163.
MEINTJES, Garth. “05. Educação em Direitos Humanos para o Pleno Exercício da Cidadania:
Repercussões na Pedagogia”. In: CLAUDE, P. Richard; ANDREOPOULOS, George (orgs.).
Educação em Direitos Humanos para o Século XXI. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo:
Núcleo de Estudos de Violência, 2007, p. 119-140.
REARDON, Betty. “02. Direitos Humanos como Educação para a paz”. In: CLAUDE, P. Richard; ANDREOPOULOS, George (orgs.). Educação em Direitos Humanos para o Século XXI. São
Paulo: Editora da Universidade de São Paulo: Núcleo de Estudos de Violência, 2007, p. 61-80.
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......
SPECTOR, Paul. “11. Instrução de Instrutores”. In: CLAUDE, P. Richard; ANDREOPOULOS, George (orgs.). Educação em Direitos Humanos para o Século XXI. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo: Núcleo de Estudos de Violência, 2007, p. 275-299.
Capítulo 6
89
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O INCREMENTO DA PRÁTICA
DOCENTE A PARTIR DA EXPERIÊNCIA
DA TUTORIA PRESENCIAL:
PERCURSO DE (RE)SENSIBILIZAÇÃO
ATRAVÉS DA TEMÁTICA DOS DIREITOS
HUMANOS
Rúbia Aparecida Cidade Borges
Prezado Professor, sou sobrevivente de um campo de concentração. Meus olhos viram o que nenhum homem deveria
ver. Câmaras de gás construídas por engenheiros formados.
Crianças envenenadas por médicos diplomados. Recém-nascidos mortos por enfermeiras treinadas. Mulheres e bebês
fuzilados e queimados por graduados de colégios e universidades. Assim tenho minhas suspeitas sobre a Educação.
Meu pedido é: ajude seus alunos a tornarem-se humanos.
Seus esforços nunca deverão produzir monstros treinados ou
psicopatas hábeis. Ler, escrever e saber aritmética só são importantes se fizerem nossas crianças mais humanas. (Texto
encontrado na parede de Campo de Concentração, após a
Segunda Guerra Mundial.)
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1. O QUE DESCOBRI SOBRE SER TUTORA PRESENCIAL?
Para exercer a tutoria – presencial ou à distância – o profissional precisa
possuir, além do domínio do conteúdo (e das ferramentas que viabilizam o
acesso a esses conteúdos pelos cursistas), a habilidade de estimular a busca
por respostas pelos alunos do curso. É tentador “transmitir” o conhecimento
e direcionar as respostas, mas cabe ao tutor exercer um papel de mediação,
de facilitador da aprendizagem, sendo alguém que se propõe a trilhar o
caminho do conhecimento com os tutorados e não por eles.
Para que a função da tutoria presencial seja efetiva, o profissional que
ocupa essa função precisa elaborar sua práxis pedagógica como mediador dos
processos de aprendizagem, incentivando e investigando conhecimentos de
própria prática e da aprendizagem individual e coletiva. É essa a pessoa que
se relaciona diretamente com os alunos, auxiliando-os na compreensão e na
aproximação dos assuntos trabalhados, utilizando-se de meios para o ensino
e acompanhamento dos conteúdos, inclusive daqueles que dizem respeito
às novas tecnologias de informação e comunicação. É quem estabelece a
parceria com o(a) cursista na trajetória a ser cumprida. Cabe a mediação
pedagógica do tutor ajudar o(a) aluno(a) a construir seu conhecimento por
meio da investigação, exploração, pesquisa, trocas com os demais, elaboração
e reelaboração dos processos de aprendizagem.
O tutor presencial atua no polo e tem como finalidade fazer a orientação
síncrona para os alunos que estudam na modalidade de EaD (Educação
à Distância), enfatizando a necessidade de se adquirir autonomia de
aprendizagem. A função do tutor presencial, dentre outras, é a de contribuir
para o sucesso de um curso por meio da criação de ações articuladas que
envolvam aluno-professor-tutor em um sistema de orientação e de trocas
em prol de um trabalho que se constrói e reconstrói mediante esquemas
didáticos, oportunizando a construção do conhecimento em um caráter
multidimensional.
A tutoria presencial no Curso de Extensão em direitos humanos da
UFRGS teve, para mim, uma grata especificidade: éramos eles (os cursistas)
e eu professores da rede pública de ensino! Por isso, muito mais do que uma
relação dicotômica ou hierárquica de professor X alunos, estabelecemos
uma parceria baseada na troca de experiência, no diálogo e no entendimento
mútuo dos desafios diários da prática docente. Dessa forma, os cursistas
nunca me viram como aquela que fiscalizava e cobrava o cumprimento das
tarefas ou como o ser que materializava o sistema de controle e avaliação do
curso, mas como alguém que, como eles, partilhava das mesmas dificuldades
comuns à vida de quem se propõe ser um bom professor: pouco tempo para
planejamento e estudo, dificuldades em estabelecer alianças pedagógicas nas
escolas, pouca valorização profissional.
Esse exercício de empatia para com os interlocutores é uma das
características que identifico como importante na atuação do tutor presencial.
Além disso, verifico ser necessário ter uma concepção clara da aprendizagem
e dos objetivos do curso, ser organizado(a), ter boa comunicação, domínio
do conteúdo e postura que facilite a construção de conhecimento através da
reflexão, do intercâmbio de experiências e informações.
Mais do que ter relação direta com os cursistas, auxiliando o manuseio
e aproximação dos conteúdos, o tutor presencial precisa administrar
situações de conflito, de euforia, desânimos e rotinas, tentando manter o
aluno motivado em seus estudos. Ele precisa manter uma atitude positiva,
compreensiva e flexível em relação às demandas dos cursistas, que são
também adultos e colegas professores.
O que se vislumbra é um papel ativo para o tutor presencial que seja
intercambiável com o papel do tutor à distância, com os professores do
curso, com os demais membros da coordenação e com os professorescursistas, mas que tenha suas singularidades e, ainda, que esse profissional
tenha uma representação social construída pela própria condição concreta
do seu trabalho. É necessário reconhecer que a construção da identidade
docente (e nesse caso também da identidade do tutor) é um processo sóciohistórico que tem existência não apenas determinada pela experiência e
formação do profissional selecionado para essa função.
Em meu caso, minha atuação como tutora foi influenciada pela minha
condição de trabalhadora da educação, funcionária pública há alguns anos,
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licenciada em uma ciência humana (Geografia). Fosse outra minha trajetória,
diferente também seria minha atuação como tutora presencial, apesar de
idênticas as funções solicitadas pelas necessidades do curso. Enfim, minha
atuação, muito mais do que em aspectos técnicos, esteve embasada naquilo
que me constitui como pessoa: meus valores, minha formação, minhas
leituras, minha visão de mundo. Na interação com os cursistas também e
principalmente me constituí como tutora presencial. Afinal, a interação é
de extrema importância no processo mútuo de aprendizagens, pois estamos
juntos e envolvidos num projeto de interesse comum. A relação de afetividade
e empatia entre o grupo é um dos fatores que tornou agradável a jornada pelo
curso.
2. COMO A EXPERIÊNCIA DE TUTORIA “RESPINGOU” EM
MINHA CONSTITUIÇÃO E PRÁTICA DOCENTE
Esses “respingos” em minha prática docente advieram especialmente
de duas fontes: da interação com a equipe (demais tutores, professores,
coordenação) e cursistas e do meu envolvimento com o conteúdo do curso.
Essa interação primeiro citada possibilitou repensar algumas práticas e
posturas presentes no ambiente escolar e que passam despercebidas em razão
da familiaridade gerada pela rotina. Por vezes nos falta um estranhamento
para perceber práticas injustas, discriminatórias, segregadoras em nossos
discursos e práticas na escola. Através das conversas nos encontros presenciais
com os colegas cursistas e nas reuniões com a equipe, essas situações foram
grifadas, enfatizadas e geraram certo “policiamento” sobre a minha fala e
atuação docente para contribuir para a erradicação dessas violências para
com os alunos.
O papel político do professor é um dos eixos principais da sua formação.
Além do domínio dos conteúdos e das práticas pedagógicas, cabe a ele ter
uma atuação no ambiente escolar afinado com seu discurso e ambos discurso
e práxis precisam estar afinados com um projeto de sociedade cada vez mais
justa e igualitária. O educador deve defender um projeto de sociedade e
atuar tendo como orientação esse projeto. Direção e intencionalidade são
necessárias para suas ações, tendo em vista a transformação da sociedade
rumo a novos caminhos, a novos propósitos. Por isso, deve-se fazer a vigilância
constante da nossa prática, daquilo que é transmitido nas entrelinhas da
rotina escolar, na escolha dos conteúdos, na seleção daquilo que é dito, de
como é dito e daquilo que é silenciado. Das coisas e pessoas que são vistas
ou invisíveis no cotidiano da sala de aula.
A rotina e a familiaridade com as situações fazem com que, por vezes,
enxerguemos sem ver, sem perceber. Dessa forma, o bullying, o deboche, a
segregação e a violência presentes na escola deixam de chocar o professor
e passam a ser “normais” e corriqueiros. Muitas vezes o cotidiano da
instituição de ensino anestesia os profissionais em relação às violências a que
os alunos são submetidos, muitas delas causadas pelos próprios professores
e gestores da escola.
E é refletindo sobre esse lugar chamado escola que
podemos dialogar sobre as práticas que fazem brotar
os contextos de violências, tais como: as avaliações
classificatórias; a homogeneização das diferenças,
pelas ações disciplinares e normativas; a coação pelo
exagero da autoridade; a desvalorização e as péssimas condições do trabalho dos(as) professores(as); a
exclusão de educandos(as) pela seleção meritocrática, entre outros, como zonas de manutenção do poder. Tudo isso fortalece os contextos institucionais e
públicos, que são geradores de violências. (Zapelini,
2010, p. 106)
Tenho a certeza de que o professor não deve ser visto apenas como um
técnico em questões de ensino, mas como pessoa em processo de construir
mudanças em sua identidade e no “sentido de si”. Assim, a experiência da
tutoria agregou elementos à minha identidade que, obviamente, modificaram
minha atuação docente, da mesma forma como as minhas vivências como
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professora interferiram e agregaram um olhar diferenciado em minha
atuação como tutora presencial.
A constituição pessoal e profissional docente decorre de um processo
complexo, que é tecido conforme ele se posiciona em relação a múltiplas
e, por vezes, contraditórias situações. Para tanto, contribuem diferentes
pontos de vista, valores morais, crenças, discursos elaborados por vários
interlocutores em variados contextos sociais, nos vários campos científicos,
nas legislações, nas experiências sindicais, etc. No caso, a experiência
no Curso de Extensão em Direitos Humanos modificou e acrescentou
elementos não só pela interação com outros agentes, mas também, como já
dito, pelo conteúdo do curso.
A leitura dos textos propostos para as atividades ressaltou o caráter
excludente da escola no Brasil durante séculos. A universalização do ensino
nas últimas décadas expôs a escola e nós professores a um grupo de alunos
que antes era excluído do ambiente formal de ensino: os deficientes, os
miseráveis, os não brancos e não cristãos, ou seja, todos os que fogem dos
padrões predominantes até então. Esses novos contingentes de estudantes
trouxeram à tona, para os ambientes educacionais, a questão da diversidade
de grupos e sujeitos que sempre foram excluídos do direito à educação
e dos demais direitos. Essa exposição tencionou e modificou as relações
no ambiente educativo e trouxe aos professores novos desafios que fogem
muito da preocupação somente com os conteúdos. O estudo desses textos
trouxe para mim os mesmos questionamentos que aos cursistas: minha
atuação docente contribui para uma sociedade mais justa ou para perpetuar
o sofrimento e a segregação de um grupo? Estou sendo omissa e negligente
em relação a alguma situação de discriminação? Enfim, sou parte do
problema ou da solução?
3. SOBRE POR QUE A INTERAÇÃO COM A TEMÁTICA DOS
DIREITOS HUMANOS “INUNDOU” MINHAS ESCOLHAS
CURRICULARES E METODOLÓGICAS
Sou professora de séries finais do ensino fundamental de Geografia,
licenciada nessa disciplina pela Universidade Federal do Rio Grande do
Sul. Atuo há quinze anos na rede pública de ensino, primeiro estadual e
atualmente pelo município de Porto Alegre. O que trabalhar nas minhas
aulas é uma preocupação minha e de todos os professores. A seleção do
currículo acontece através das orientações dos Parâmetros Curriculares
Nacionais, pelas recomendações da mantenedora e dos Planos de Estudos
da escola e também pelos pressupostos teóricos vistos durante minha
formação e em leituras posteriores. No entanto, os assuntos tratados
em minhas aulas também precisam respeitar minha constituição como
docente e as demandas vindas da realidade dos alunos, para que oportunize
aprendizagens significativas. O ensino de geografia não precisa ser útil, mas
deve ter sentido.
Cotidianamente, vários segmentos da população e inclusive muitos de
nossos alunos estão submetidos a uma série de violações de direitos. Trabalhar
a temática dos direitos humanos se faz necessário para “desnaturalizar”
essas violações, desenvolver uma visão crítica da realidade e levá-los a
questionar vários preconceitos e ideias pré-concebidas sobre assuntos que
estão sendo discutidos pela sociedade. Frequentemente a mídia apresenta
e as redes sociais disseminam ideias discriminatórias e injustas a respeito
de negros, mulheres, “menores de idade”, imigrantes, gays. Questões
como a maioridade penal, política de cotas, linchamentos, emancipação
feminina, direitos civis aos homossexuais, vinda de haitianos para o Brasil
ou liberdade de credo suscitam opiniões muitas vezes baseadas somente no
senso comum, em conceitos preconceituosos resultantes da intolerância e
da falta de conhecimento sobre os temas.
A escolha por trabalhar direitos humanos em minhas aulas de Geografia
se justifica pela quantidade de violações (muitas vezes justificadas por uma
grande parcela da sociedade) a que muitos alunos de escolas públicas de
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periferia estão submetidos, mesmo sem se darem conta. Vale enfatizar,
no entanto, que ao trabalhar questões referentes à igualdade, liberdade
e cidadania, que são de importância social inquestionável, não se pode
abrir mão dos pressupostos teóricos, curriculares e metodológicos das
diferentes áreas do conhecimento. A Geografia, por suas características,
desenvolve habilidades e competências que não podem ser desprezadas no
planejamento. É preciso conciliar a discussão das questões sociais com o
bom uso da cartografia, com a análise da espacialização de fenômenos, com
o estudo da distribuição das desigualdades socioeconômicas no espaço,
com a consideração da interferência das questões culturais e religiosas no
modo de vida das populações, entre outros temas previstos pela disciplina.
Privar o aluno de áreas de vulnerabilidade social daquilo que a Geografia (ou
de qualquer oura disciplina) pode acrescentar em seu desenvolvimento é
contribuir para a sua permanência em uma situação de carência e desigualdade
em relação a outros jovens que terão melhores oportunidades. A escola tem o
papel de acolhimento, de desenvolvimento da cidadania e da reflexão social,
mas tem como objetivo, sobretudo, a aprendizagem dos alunos. Abrir mão
desse papel é contribuir para que se perpetuem condições de desvantagem
da maioria da população em relação a uma minoria privilegiada.
Os direitos humanos são fruto da luta pelo reconhecimento da dignidade
humana apesar das diferenças que nos constituem. É a legitimação de
direitos e garantias pelo simples fato de, apesar de tudo e de qualquer coisa,
sermos humanos, nós todos. As profundas desigualdades que marcam nossa
sociedade são mais efetivas e implacáveis em áreas populares e pobres, como
a comunidade onde está inserida a escola onde eu e os cursistas lecionamos.
As contradições presentes nessas localidades indicam a existência de graves
violações de direitos em razão da exclusão social, econômica, política e
cultural, que promovem a pobreza, as desigualdades, as discriminações, os
autoritarismos, enfim, múltiplas violências contra a pessoa humana.
A participação como tutora presencial no Curso de Extensão em
Educação em Direitos Humanos motivou-me a abordar essa temática nas
minhas aulas. Pesquisamos o contexto em que foi feita a Declaração Universal
dos Direitos Humanos; elencamos garantias/violações desses direitos no
ambiente escolar e na comunidade, utilizamos os Objetivos do Milênio
alcançados em várias regiões do globo para determinar os desafios em relação
à garantia de alguns direitos em diferentes continentes e mapeamos no
mundo as regiões que precisam avançar em relação à superação de variadas
desigualdades. Finalmente, através de pesquisas e fotos da comunidade onde
está inserida a escola, determinamos os maiores desafios para a garantia
dos direitos humanos nessa localidade. Ou seja, conseguimos trabalhar
simultaneamente com o global e o local e aproximar a temática da vida dos
alunos, trazendo-lhes motivação e sentido.
A opção por trabalhar a temática em Geografia veio da percepção
de que, por estarem em uma área de vulnerabilidade social, esses alunos
têm seus direitos negligenciados e violados constantemente. Estão em
permanente risco de violação de suas integridades físicas, não têm acesso a
boa saúde, educação de qualidade, infraestrutura, moradias dignas. Mesmo
assim, também são agentes de violações de direitos ao fazerem bullying com
colegas, compartilharem em redes sociais postagens racistas, machistas e
homofóbicas. Pensar essas questões em aula aproxima a disciplina da vida
dos estudantes, melhora a interação entre eles e com os professores e,
principalmente, cumpre na escola o papel de incentivar a cidadania, a busca
por melhores condições de vida e a criticidade. A vida, ainda que dura,
precisa entrar para a escola.
Ensinar a condição humana. Conhecer o humano
é, antes de mais nada, situá-lo no universo, e não
separá-lo dele. Como vimos, todo o conhecimento
deve contextualizar seu objeto, para ser pertinente.
“Quem somos” é inseparável de “onde estamos”,
“de onde viemos”, “para onde vamos”. Interrogar
nossa condição humana implica questionar primeiro
nossa posição no mundo (Tonini, 2014, p. 239).
Paulo Freire, no trecho a seguir, destaca a necessidade de uma educação
para além dos conteúdos e dos pressupostos curriculares e metodológicos
das disciplinas. Assim, articulado com o desenvolvimento das habilidades
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próprias da Geografia, não posso como educadora me abster de tratar de
temas que possibilitem a construção (mesmo que utópica) da sociedade
igualitária, justa e fraterna que motiva minha prática:
[s]ó somos porque estamos sendo. Estar sendo é a
condição, entre nós para ser. Não é possível pensar os seres humanos longe, sequer, da ética, quanto
mais fora dela. Estar longe, ou pior, fora da ética,
entre nós, mulheres e homens, é uma transgressão.
É por isso que transformar a experiência educativa
em puro treinamento técnico é amesquinhar o que
há de fundamentalmente humano no exercício educativo: o seu caráter formador. Se respeita a natureza
do ser humano, o ensino dos conteúdos não pode dar-se
alheio à formação moral do educando. Educar é substantivamente formar (2007, n. 33, grifo nosso).
Não é a prática docente em si que é formadora, mas a capacidade
de refletir sobre essa prática. Esse entendimento motivou os cursistas a
realizarem o curso em questão e me motiva a refletir a partir da experiência da
tutoria. Compartilhamos o entendimento de que, enriquecidos pela tensão
da convivência e da aprendizagem, nos conhecemos melhor. Só podemos
descobrir quem somos olhando para os outros. Só nos entendemos como
homens ou mulheres quando vemos ao nosso lado o outro gênero. Só somos
brancos ou negros porque, ao nosso lado, há outras etnias. A escola, seus
alunos e professores não podem ver o diferente como ameaça ou anomalia.
O outro é sempre uma possibilidade de aprendizagem.
4. AO FINAL: UMA MULHER/ESTUDANTE/PROFESSORA
DIFERENTE DAQUELA DO INÍCIO DA JORNADA
A educação autêntica proposta por Freire (2002) não se faz de A para B
ou vice-versa, mas de A com B, de forma horizontal, mediada pelo mundo.
Assim, aprendemos eu e os cursistas-professores no convívio e na nossa
interação, bem como através dos textos e propostas do curso em si. E, se
o desafio em EaD é oportunizar a educação em detrimento da distância,
encurtá-la e ampliar ideias, é esse o sentido da transformação pensada
pela educação libertadora na concepção de Freire. É possível construir
conhecimentos sólidos, com sentido, pelas vias da interação, em ambientes
virtuais de aprendizagem, se a ação do tutor, marcada pelo caminho da
comunicação dialógica, se estabelecer pelo diálogo verdadeiro entre as
pessoas. O tutor presencial pode ser esse link entre professores, alunos e
conteúdo.
O crescimento e a aprendizagem se dão no diálogo de homens e mulheres
comprometidos com a transformação das coisas em prol da melhoria da
vida humana, na capacidade de criar e recriar. Acreditar nas pessoas, nos
alunos, na capacidade inerente a todos de melhorar é fundamental para uma
Educação em Diretos Humanos. A educação, seja a que distância for, pode
isso, porque é fruto da intencionalidade e da ação humana. Como ensina
Freire (2002, p. 68), “ninguém educa ninguém, ninguém educa a si mesmo,
os homens se educam entre si, mediatizados pelo mundo”.
Somos em um só tempo parte e totalidade. Trazemos dentro de
nós – alunos e professores – todas as contradições da sociedade. Somos
professores constituídos pela nossa interação, nossas crenças, ideologias,
vivências, leituras e personalidades. Cada oportunidade de convívio, de
exposição a novas experiências, agrega em nós componentes distintos que
aprimoram nossa prática docente. Assim como acredito ter contribuído com
o crescimento dos cursistas, tenho plena percepção do que se agregou em
mim a partir de tudo o que vivenciei nesse período como tutora presencial
do Curso de Extensão em Direitos Humanos.
Trata-se de significações culturais constituidoras da
gramaticalidade social que permeia e torna possível
a vida em sociedade. É esse repertório de experiências, de saberes, que orienta o modo como o professor pensa, age, relaciona-se consigo mesmo, com as
pessoas, com o mundo, e vive sua profissão. Enten-
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demos, pois, que o professor traz para sua prática
profissional toda a bagagem social, sempre dinâmica, complexa e única. (Cavalcanti, 2012, p. 22)
Tratar de direitos humanos implica uma postura de compreensão e
tolerância para com a diferença, mas de intolerância a quem discrimina o
diferente. Não é possível ter os direitos humanos no discurso desarticulado
da prática.
Ensinar e, enquanto ensino, testemunhar aos alunos
o quanto me é fundamental respeitá-los e respeitarme são tarefas que jamais dicotomizei. Nunca me
foi possível separar em dois momentos o ensino
dos conteúdos da formação ética dos educandos. A
prática docente que não há sem a discente é uma
prática inteira. O ensino dos conteúdos implica o
testemunho ético do professor. A boniteza da prática
docente se compõe do anseio vivo de competência
do docente e dos discentes e de seu sonho ético.
Não há nesta boniteza lugar para a negação da decência, nem de forma grosseira nem farisaica. Não
há lugar para puritanismo. Só há lugar para pureza
(Freire, 2007, p. 95).
Ao final da Segunda Guerra Mundial foi encontrada, em um campo
de concentração, escrita em uma parede, a epígrafe que abre esse texto.
Destaca a importância de, além dos conteúdos, privilegiar aquilo que nos
faz humanos: a solidariedade e a capacidade de nos colocarmos na pele
do nosso semelhante. Tantos anos depois e ainda vemos desigualdades e
violações de direitos humanos na escola, local do cuidado e do bom senso
por excelência. Gostaria de finalizar minha contribuição com outro escrito,
desta vez de Bertolt Brecht, amplamente disseminado nas redes sociais. Ele
enfatiza essa necessidade da empatia entre os seres e o compromisso de
todos, principalmente de nós educadores, em zelar pela dignidade e justiça
através da defesa dos direitos humanos:
Primeiro levaram os negros
Mas não me importei com isso
Eu não era negro
Em seguida levaram alguns operários
Mas não me importei com isso
Eu também não era operário
Depois prenderam os miseráveis
Mas não me importei com isso
Porque eu não sou miserável
Depois agarraram uns desempregados
Mas como tenho meu emprego
Também não me importei
Agora estão me levando
Mas já é tarde.
Como eu não me importei com ninguém
Ninguém se importa comigo.
101
......
102
......
5. REFERÊNCIAS
CAVALCANTI, Lana. O ensino de geografia na escola. Campinas: Papirus, 2012.
CRUZ, Sônia; INFORSATO, Edson; STEFANINI, Maria Cristina. Formação de professores à
luz de Meirieu: interação reflexiva sobre a prática educativa. Revista Brasileira de Política e Administração da Educação. Porto Alegre, v. 25, n. 2. 2009. Disponível em: <http://seer.ufrgs.br/rbpae/
article/view/37410>. Acesso em: 29 set. 2015.
COSTA, Maria Luiza. As representações sociais do trabalho do tutor presencial: limites e possibilidades. Educar em Revista. Curitiba: n. 4. 2014. Disponível em: <http://ojs.c3sl.ufpr.br/ojs/
index.php/educar/article/view/38660>. Acesso em: 29 set. 2015.
FREIRE, Paulo. Pedagogia da Autonomia. São Paulo: Paz e Terra, 2007
___. Pedagogia do Oprimido. São Paulo: Paz e Terra, 2002.
PERRENOUD, Philippe. Utilizar novas tecnologias. Dez novas competências para ensinar. Porto
Alegre: Artmed, 2000, p. 125-140.
TONINI, Ivaine et al. O ensino de geografia e suas composições curriculares. Porto Alegre: Mediação,
2014.
ZAPELINI, Cristiane. Violências, Rede de Proteção e Sistema de Garantia de Direitos. Florianópolis:
NUVIC-CED-UFSC, 2010.
Capítulo 7
GÊNERO NA ESCOLA E DEMOCRACIA
À BRASILEIRA: LIMITES E DESAFIOS
PARA UMA VIDA LIVRE DE
DISCRIMINAÇÃO E VIOLÊNCIA
Fabiane Simioni
1. INTRODUÇÃO
A partir da experiência como professora-formadora em um curso
de aperfeiçoamento de Educação em Direitos Humanos para educadoras
e educadores de quatro municípios do Rio Grande do Sul, realizado pela
Faculdade de Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul,
trago algumas ponderações sobre o debate de gênero no espaço escolar.
Esse curso atingiu sessenta e quatro professoras e professores,
durante seis meses do ano de 2015 (março a setembro), com atividades
presenciais e à distância. Nesse período, acompanhei as discussões em
fóruns virtuais, as produções e as análises sobre os temas de cada um
dos módulos que compunham o curso: da historicidade dos direitos
humanos, passando pela introdução teórica dos marcadores sociais de
diferenças (gênero, raça/etnia, orientação sexual, geração, deficiências
físicas e intelectuais, pertencimento regional e religioso) ao papel da
escola na mediação e solução de conflitos.
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Neste artigo, apresento algumas reflexões sobre as implicações trazidas
pelos retrocessos legislativos decorrentes da retirada do termo “gênero” do
Plano Nacional de Educação, seguido dos estaduais e municipais.
O Plano Nacional de Educação (PNE – 2014/2024) é o dispositivo
normativo que estabelece metas e estratégias desde a educação infantil até o
ensino superior e a pós-graduação, incluindo a formação e a valorização das
educadoras e educadores e o financiamento da educação, que deverá atingir,
no mínimo, 10% do Produto Interno Bruto (PIB) até o fim de vigência
dessa lei. Após a aprovação do plano nacional, estados e municípios tiveram
até o dia 24 de junho de 2015 para aprovar os seus respectivos planos, sendo
que nem todos o fizeram1.
Foi nesse contexto de mobilização parlamentar e da opinião pública
para aprovação dos planos nacional, estaduais e municipais que vimos um
intenso debate sobre a (im)pertinência das diferenças sociais e culturais que
são trazidas para dentro do ambiente escolar por estudantes, educadoras e
educadores, funcionárias e funcionários, pais e mães. De acordo com Anna
Paula Vencato (2014, p. 20), há uma série de singularidades trazidas de fora
para dentro da escola junto com diferentes pessoas que por ali circulam;
mas estas, em geral, são tidas como exóticas e/ou inapropriadas ao contexto
escolar e, portanto, como algo que não pode pertencer àquele espaço. A
escola, o sistema de ensino e todas as pessoas que fazem parte dele têm
historicamente dificuldades em lidar com a questão das diferenças. Essa
dificuldade é reflexo da sociedade a que pertencemos e de sua lógica cultural
hierarquizada e excludente.
Os efeitos dessa lógica cultural excludente também perpassaram o
debate no parlamento e nas tribunas, em que profissionais da educação,
comunidade escolar e leigos tiveram oportunidade de opinar sobre o tema.
Observamos o apego, a defesa de ideias essencialistas sobre o que é ser
mulher ou ser homem e a reivindicação da liberdade de expressão como
argumentos para a exclusão de quaisquer referências ao termo “gênero”
1 O Ministério da Educação tem um portal virtual em que é possível acompanhar o mapa de estados e municípios
que já aprovaram seus respectivos planos e aqueles que ainda não o fizeram. Ver: <http://pne.mec.gov.br/planos-de-educacao/situacao-dos-planos-de-educacao>. Acesso em: 25 jan. 2016.
das diretrizes político-pedagógicas da educação brasileira, mais de 45 anos
depois de pesquisadoras e pesquisadores das ciências sociais começarem
a problematizar as relações de gênero no Brasil2, mais de 27 anos de um
regime democrático de Estado3.
Importante registrar que esse discurso de naturalização das condições
de socialização dos gêneros não é novidade no contexto brasileiro recente.
No segundo turno para as eleições presidenciais em 2010 vimos grupos
religiosos (católicos e evangélicos) ameaçarem a retirada de apoio à
candidata Dilma Roussef, caso ela manifestasse uma posição favorável ou
tomasse qualquer iniciativa legislativa sobre a descriminalização do aborto,
o que se repetiu na campanha de reeleição em 20144. Em maio de 2011,
depois que fora produzidos, sob demanda do Ministério da Educação,
materiais audiovisuais para subsidiar o combate à homofobia nas escolas,
a presidenta Dilma Roussef vetou a distribuição do referido material (kit
anti-homofobia), pressionada pelas bancadas religiosas da base aliada de seu
governo.
Os exemplos acima citados são sintomáticos de um discurso que
pretende “privatizar” os temas relativos à sexualidade e ao gênero no sentido
de retirar desse cenário qualquer interveniência do Estado.
Dessa forma, meu objetivo é demonstrar que a discussão dos temas
relacionados à pedagogia dos gêneros no contexto escolar deve estar em
acordo com os preceitos normativos constitucionais e de direito internacional
dos direitos humanos e, portanto, o Estado tem um papel a cumprir quando se
trata de dar efetividade ao direito a uma vida livre de violência e discriminação.
2 Ver CORRÊA, Mariza. Do feminismo aos estudos de gênero no Brasil: um exemplo pessoal. Cadernos Pagu, n. 16,
2001, p. 13-30.
3 A partir da promulgação da Constituição Federal de 1988, o Estado brasileiro se auto reconhece como um Estado
Democrático de Direito.
4 Ver BRUM, Eliane. O aborto na fogueira eleitoral. Disponível em: <www.brasil.elpais.com/m/brasil/2014/04/28/opinion/1398692471_063651.html>. Acesso em: 25 jan. 2016.
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2. GÊNERO NO DEBATE PARLAMENTAR BRASILEIRO
Os impactos sociais e culturais posteriores à aprovação do Plano Nacional
de Educação (PNE – 2014/2024) ainda estão em processo de elaboração
e reflexão. De outra forma, os impactos políticos nos planos estaduais e
municipais já podem ser quantificados. Até o momento da escrita deste
texto, ao menos oito estados brasileiros eliminaram referências à discussão
de gênero: Pernambuco, Paraíba, Tocantins, Acre, Distrito Federal, Espírito
Santo, Paraná e Rio Grande do Sul. Aprovaram os respectivos planos e
mantiveram o termo gênero: Mato Grosso do Sul, Mato Grosso, Maranhão
e Amapá. Estados como São Paulo, Rio de Janeiro, Minas Gerais, Bahia e
Ceará ainda não aprovaram seus planos estaduais5.
Em alguns municípios, a mobilização da sociedade civil e dos
movimentos sociais alcançou a maioria dos membros das Câmaras de
Vereadores no sentido de manter o registro do termo gênero no plano
de educação, embora a tendência seja de acompanhar o silêncio do Plano
Nacional de Educação. Como qualquer debate democrático, cada uma
das partes interessadas deveria ter a oportunidade e a representatividade
para argumentar sobre o seu ponto de vista. Sabemos que, em localidades
onde há pouca organização da sociedade civil, a discussão é muito menos
democrática e participativa e, portanto, as decisões políticas são tomadas
com base no pressuposto da legitimidade da representatividade do sistema
eleitoral6. Essa ausência de organização social impacta na exigibilidade de
políticas públicas e no monitoramento daquelas já implementadas. Mas não
basta ter voz, é preciso que o parlamento também tenha espírito democrático
e zelo pelos valores, princípios e normas constitucionais e internacionais
5 Ver: <http://www1.folha.uol.com.br/educacao/2015/06/1647528-por-pressao-planos-de-educacao-de-8-estadosexcluem-ideologia-de-genero.shtml>. Acesso em: 25 jan. 2016.
6 Representatividade eleitoral e representatividade social são coisas distintas. Os movimentos de mulheres negras, por
exemplo, há tempos insistem que há muita diversidade de experiências entre as mulheres e é preciso reconhecer que
há diferenças e implicações importantes entre ser uma mulher negra e uma mulher branca. Nesse sentido, o sistema
eleitoral brasileiro está longe de acolher a diversidade de grupos e interesses daqueles apontados como vulneráveis ou
minorias: mulheres, negros, indígenas, deficientes intelectuais ou físicos, homossexuais, entre outros. No contexto atual, a chamada bancada BBB (Boi, Bíblia e Bala) representa um esforço de oposição e de resistência às transformações
sociais e culturais pelas quais o país vem passando no período recente.
para rever posições, quando for o caso, diante dos argumentos vindos da
tribuna e/ou do plenário.
Onde o conservadorismo atuou sem uma oposição igualmente potente,
os vetos dos respectivos parlamentos se direcionaram às metas de combate
à discriminação racial, de orientação sexual ou de identidade de gênero,
pesquisas sobre a permanência de transexuais ou transgêneros na escola,
bem como sobre programas de formação continuada para professoras e
professores em gênero, diversidade e orientação sexual.
Os membros desses parlamentos, alinhados a diferentes partidos
políticos, mas aglutinados em torno de crenças religiosas dogmáticas,
consideraram que esses temas representam um problema para a “família
tradicional brasileira”, porque subverteriam os conceitos de mulher e de
homem, de matrimônio e de maternidade.
Prevaleceu a ideia de que discutir sobre esses temas no cotidiano escolar
é perigoso e, possivelmente, contaminador para crianças, jovens e adultos,
apoiada no equivocado pressuposto de que determinados aspectos relativos
às identidades de sujeitos em formação não devem ser explorados dentro do
universo escolar, cabendo somente às famílias oferecer a correta orientação
quanto aos aspectos relacionados à pedagogia do gênero.
Para além de ser contra ou favor, o que é um equívoco maniqueísta,
é preciso compreender o que está em disputa quando se fala em gênero,
pedagogias do gênero, relações de gênero, entre outras expressões: gênero é
um conceito que permeia e organiza a vida de todo mundo; é tão presente
que naturalizamos seus efeitos (Pelúcio, 2014, p. 97).
Segundo Débora Diniz (2014, p. 11-12), gênero é um regime
político, cuja instituição fundamental é a família reprodutora e cuidadora,
e o patriarcado, uma tecnologia moral. A autora reconhece que existe uma
variedade de críticas à ideia de patriarcado, da mesma forma que não seria
possível afirmar sua universalidade ou existência desde sempre. Entretanto,
reivindica a precedência do patriarcado para a compreensão daquilo que
denomina pedagogias do gênero: “As pedagogias do gênero garantem a
reprodução do poder patriarcal. As instituições o oficializam como regra de
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governo. As leis são o registro de sua legalidade e de sua potência para o uso
da força perante as insubordinadas” (Diniz, 2014, p. 12).
É somente aparente a simplicidade com que a autora enquadra o
conceito de gênero. Mas vale a pena o esforço de compreendê-lo. De início,
poder patriarcal é aquele que organiza um sistema jurídico-político no qual a
autoridade e os direitos sobre os bens e as pessoas obedeciam a uma regra de
filiação patrilinear, tendo como titular e representante exclusivo o homem (o
pai, o senhor de escravos, o marido – o pater). A reação ao patriarcado seria o
seu duplo oposto, o matriarcado. De acordo com Roudinesco (2003, p. 35),
no final do século XIX julgava-se necessário reorganizar a soberania patriarcal,
uma vez que estava ameaçada por uma “feminilização do corpo social” em
que o pai deixava de ser o único vetor de transmissão dos bens culturais e a
mulher-mãe, por sua vez, passava a concorrer por um espaço nessa disputa
intrafamiliar. Dessa forma, as teses desenvolvidas em torno do matriarcado
e do patriarcado se prestariam a densificar o “medo do transbordamento
feminino”, ou seja, para reafirmar a dominação masculina sobre a feminina
como única regra a partir da qual era possível construir as relações entre os
sexos (Roudinesco, 2003, p. 36).
Assim, ensinar a pedagogia dos gêneros a partir do poder patriarcal é
reforçar a essencialidade do poder de dominação masculino e da subjugação
feminina, mas esse reforço à essencialidade das diferenças e hierarquias
entre mulheres e homens se ensina e se concretiza a partir das convenções
sociais e culturais construídas pelas instituições pedagogizantes (família,
escola, igrejas, etc.) e dos modos pelos quais essas convenções governam
nossas representações (aquilo que pensamos/elaboramos/descrevemos
sobre alguma coisa) e práticas (como nos comportamos). Essas instituições
pautam suas normatizações pelos valores hegemônicos do seu tempo e
lugar, cuja desobediência ou inconformidade pode ser solvida através
do uso (pragmático e simbólico) da força perante aquelas e aqueles que
experimentam outras formas de vivências dos gêneros.
Gênero, portanto, é um conceito que afirma o caráter social e plural
do feminino e do masculino em termos de tempo, espaço e de diversidade
dos grupos sociais (étnicos, religiosos, raciais, de classe). Tem a intenção de
se afastar de proposições essencialistas ao dirigir-se em uma perspectiva de
processo em construção, e não algo que exista (ou sempre existiu) a priori
(Louro, 1997, p. 23).
Nesse sentido, as instituições pedagogizantes, entre as quais a família, têm
um papel e um dever importante: promover uma vida livre de discriminação e
violência para cada um de seus membros. Não é demais repisar que todo o esforço
de trazer para dentro da escola o debate de gênero foi e tem permanecido ativo
porque as alunas e os alunos estão imersos em relações familiares permeadas
por processos de exclusão e violência, sobretudo para aquelas e aqueles que não
atendem às expectativas em relação ao seu gênero. Nessas situações, foi a escola
que, de alguma forma, passou a prestar atenção nessa aparente invisibilidade.
Suspeito que as tentativas de abandono dos estereótipos de gênero na escola
tenham se realizado porque o assédio, em geral, e a homofobia, em especial,
tivessem se transformado em algo escancaradamente insuportável, elevando
cada vez mais os níveis de evasão “involuntária” de estudantes e de professoras.
Afirmar que a família, e não a escola, deve ser a única responsável pela pedagogia
do gênero, é sugerir que estamos tratando de assuntos pessoais, individuais. O
que estamos postulando é que sexo e gênero são, antes, questões de Estado e,
portanto, públicas, não de foro privado; são questões políticas (Pelúcio, 2014,
p. 114).
Conforme Cook e Cusack (2009, p. 42), quando um Estado aplica,
executa ou perpetua um estereótipo de gênero em suas leis, políticas
públicas ou práticas, o institucionaliza dando-lhe a força e a autoridade do
direito e do precedente e, portanto, gera uma atmosfera de legitimidade e
normalidade. Quando um Estado não adota medidas legais para eliminar e
remediar a perpetuação de um estereótipo de gênero por outros meios, tais
como os meios de comunicação, as escolas e os currículos, um estereótipo
de gênero também é institucionalizado e se lhe outorga a força e autoridade
da lei. Quando um Estado legitima assim um estereótipo de gênero, ele
estabelece um marco que facilita a perpetuação e discriminação no tempo e
através de diferentes setores da vida e da experiência social.
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3. ZONAS LIMÍTROFES: O PÚBLICO E O PRIVADO
A ideia de que a família, e não a escola, deva tratar desse assunto é
equivocada porque está sustentada em uma falsa dicotomia entre o mundo
público, personificado na escola, e o doméstico, na família. Alguns autores
identificam, a partir do Estado de Bem-Estar Social (Welfare State) do
século XX, uma tendência de redução do espaço da autonomia privada
para a garantia da tutela jurídica daqueles considerados mais vulneráveis,
implicando uma certa intervenção dos poderes do Estado em setores da vida
privada, antes interditados à ação pública, notadamente em Estados liberais
(Lôbo, 1999; Carbonnier, 2001).
Na legislação brasileira, temos vários exemplos dessa tutela jurídica e da
opção pela interferência do Estado quando aprovamos leis que proíbem e
punem ações consideradas “privadas” sobre os corpos de mulheres, crianças,
idosos ou deficientes para protegê-las da violência doméstica – Lei Maria da
Penha, Estatuto da Criança e do Adolescente, Estatuto do Idoso, Estatuto dos
Deficientes.
As diferenças entre o público e o doméstico subsistem; porém elas são
meramente “quantitativas”, pois há situações em que prevalecem os interesses
individuais, embora também estejam presentes interesses da coletividade,
e outras em que predominam os interesses da sociedade, ainda que
funcionalizados à realização dos interesses existenciais das pessoas (Facchini
Neto, 2003).
Muito frequentemente, os termos “público” e “privado” são usados
com pouca preocupação em relação a sua clareza e sem uma definição
precisa, como se todos soubessem o que querem dizer, independentemente
do contexto. Há, no entanto, como os estudos feministas têm tornado cada
vez mais explícito, ao menos duas ambiguidades envolvidas na maioria das
discussões sobre o público e o privado. Público/privado é usado tanto para
referir-se à distinção entre Estado e sociedade (como em propriedade pública
e privada) quanto para referir-se à distinção entre vida não-doméstica e vida
doméstica. Nessas duas dicotomias, o Estado é (paradigmaticamente) público
e a família, a vida íntima e doméstica são (também paradigmaticamente)
privadas.
Para Susan Okin (2008, p. 307-308), a dicotomia público/doméstico
é produzida como esferas separadas, de modo a invisibilizar as formas
de dependência econômica e as estruturas de poder inerentes na família
e na divisão sexual do trabalho produtivo e reprodutivo. A vida familiar é
pressuposta ao invés de discutida e a divisão do trabalho entre os sexos não
é considerada uma questão de justiça social (Okin, 2008, p. 309-310).
A reprodução dessa dicotomia torna possível a invisibilidade da
natureza política da vivência familiar, a relevância da justiça na vida pessoal e,
consequentemente, de uma parte central das desigualdades entre mulheres
e homens, entre jovens, adultos e idosos. De acordo com a autora, no centro
dessa discussão está a análise crítica dos desdobramentos da divisão sexual
do trabalho doméstico para a participação das mulheres em outras esferas
da vida. A crítica feminista, a partir da politização daquilo que era tido
como restrito à privacidade do doméstico, estabeleceu conexões entre a
subordinação das mulheres aos homens e a definição dos papéis de umas e
outros nas diferentes esferas sociais (Okin, 2008, p. 307).
Mulheres devem exercer sua afetividade (natural e intrínseca, se
supõe) no âmbito doméstico e os homens, por sua vez, devem promover
a sustentabilidade material, financeira, a partir de sua inserção na esfera
não-doméstica. Desde seus primórdios teóricos, toda a divisão sexual do
trabalho é fundamental para a dicotomia e a separação entre as esferas
públicas e privadas. Os homens são vistos, sobretudo, como ligados às
ocupações da esfera da vida econômica e política e responsáveis por elas,
enquanto as mulheres seriam responsáveis pelas ocupações da esfera
privada da domesticidade e reprodução. As mulheres têm sido vistas como
“naturalmente” inadequadas à esfera pública, dependentes dos homens e
subordinadas à família. Esses pressupostos, como se poderia esperar, têm
efeitos de grande alcance na estruturação da dicotomia e de cada uma das
esferas que a compõem.
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Como os estudos feministas descreveram, tanto os direitos políticos
quanto os direitos pertencentes à concepção moderna liberal de privacidade e
do privado têm sido defendidos desde os princípios do liberalismo no século
XVII como direitos dos indivíduos; mas esses indivíduos foram supostos e com
frequência explicitamente definidos como adultos, chefes de família, do sexo
masculino. Assim, os direitos desses indivíduos a serem livres de intrusão por
parte do Estado, da igreja ou da vigilância curiosa de vizinhos, eram também os
direitos desses indivíduos a não sofrer interferência no controle que exerciam
sobre os outros membros da sua esfera de vida privada – aqueles que, seja
pela idade, sexo ou condição de servidão, eram vistos como legitimamente
controlados por eles e tendo sua existência limitada à sua esfera de privacidade.
Não há qualquer noção de que esses membros subordinados das famílias
devessem ter seus próprios direitos à privacidade (Okin, 2008, p. 307-308).
Quando as escolas foram interpeladas por seus próprios estudantes
com situações de negligência, violência, assédio e abuso, na maior parte
das vezes promovidos por aqueles que tinham o dever legal de proteger
crianças e adolescentes, se viram sem ferramentas para acolher, proteger e
tampouco prevenir todo o tipo de discriminação e violência contra mulheres
e meninas, contra lésbicas, gays, bissexuais, transexuais e transgêneros. O
que faz uma educadora ou educador quando sua aluna ou aluno relata em
detalhes um estupro praticado pelo pai ou outro familiar contra si, sua
irmã ou mãe? O que deveria fazer quando no meio de uma aula explode
uma confusão causada pela proximidade física entre dois meninos ou
duas meninas no fundo da sala de aula? Qual banheiro deve usar o aluno
que na lista de presença é identificado por um nome masculino, mas que
solicita que seja tratado como uma garota?7 É possível à escola ignorar a
pluralidade de estilos de vida ou de cosmovisões de mundo presente nas
sociedades contemporâneas ou no interior das próprias famílias de origem
dos estudantes?
7 Compartilho da posição de Larissa Pelúcio (2014, p. 118), para quem “nossa pedagogia de gênero insiste que
banheiros precisam ser separados porque ensinamos às meninas que meninos são perigosos e elas são presas fáceis; e
ensinamos aos meninos que eles devem ser perigosos e ousados sexualmente. Portanto, a discussão sobre banheiros
não é sobre banheiros para homo ou heterossexuais, mas sobre como ocupamos os espaços públicos a partir de um
lugar de gênero”.
Se essas situações não foram adequadamente acolhidas e mediadas no
âmbito doméstico, é na escola, diante de educadoras e educadores e dos
demais colegas, enquanto alguns daqueles estudantes ainda permanecem por
lá, que são explicitados os pedidos de ajuda e reivindicado o reconhecimento
e a escuta dessas demandas.
A teoria liberal tomou o “privado” como a esfera da vida social nas
quais a intrusão ou interferência em relação à liberdade requer justificativa
especial, e o “público” como uma esfera geralmente ou justificadamente
mais acessível e, portanto, com maior tolerância à incidência ou influência
externas (Okin, 2008, p. 306). Quando a escola, um espaço de características
públicas, em que a autonomia privada é relativizada em função do convívio
entre múltiplos e divergentes interesses, é constrangida a fazer de conta
que as pedagogias do gênero não adentram nos seus portões, é porque a
sociedade, através de seus agentes políticos, optou por “privatizar” aquele
espaço, no sentido de torná-lo intolerante quanto à diversidade e às violações
de direitos ocorridas dentro e fora do seu ambiente.
Dito de outro modo, a vingar a intervenção do Estado nas escolas para
banir o debate de gênero, estaremos, no limite, legitimando a discriminação e a
violência contra meninas, mulheres, lésbicas, gays, transexuais e transgêneros
em flagrante negação da força normativa da ordem constitucional brasileira,
notadamente naquilo que aponta para a centralidade da dignidade humana
e a garantia de direitos fundamentais, especialmente de grupos em situação
de vulnerabilidade social.
4. ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
A Constituição Federal de 1988, fundante do Estado Democrático de
Direito, veicula consensos mínimos, essenciais para a dignidade das pessoas
e para o funcionamento do regime democrático e que não deveriam ser
afetados por maiorias políticas ocasionais. Uma constituição em um Estado
Democrático de Direito tem duas grandes funções: (i) proteger valores
fundamentais básicos contra a ação predatória das maiorias e (ii) garantir o
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funcionamento adequado da democracia e do pluralismo político (Barroso,
2014, p. 232-233).
A ação predatória da maioria no sistema eleitoral revelou, no debate
dos planos de educação, uma reação a algumas conquistas jurídicas e sociais
em termos de representatividade e de garantia de direitos para segmentos
historicamente invisibilizados em uma sociedade hierárquica e desigual
como a brasileira. É como se houvesse uma disputa para a retomada daquilo
que se convencionou como tradicional e foi construído como hegemônico
para conter “o outro”, aquele considerado desviante, subversivo, impuro ou
abjeto.
Entretanto, essa nova cruzada contra corpos/sujeitos específicos
(porque nem todos são dotados dos mesmos privilégios no acesso aos
modos de distribuição de bens, recursos e prestígio) revela uma faceta
antidemocrática que acabou por acalentar as mentes e os corações mais
conservadores daqueles que não compartilhavam os mesmos compromissos
políticos com quaisquer práticas religiosas. Nesse caso, a democracia,
como valor e como bem público, é atacada, porque a regra do igual
respeito e igual consideração é deturpada para dar lugar a reminiscências
de um projeto de heteronormatividade compulsória.
A abordagem das relações de gênero no contexto escolar, entretanto,
está inscrita em um marco de combate a todas as formas de violência e
de discriminação, como também em normas nacionais e internacionais
ratificadas pelo Estado brasileiro. De acordo com a Constituição Federal
de 1988, a proteção de direitos fundamentais tem como fundamento a
proibição de discriminação em razão de sexo, de gênero ou de orientação
sexual. Não por acaso, o texto constitucional de 1988 permitiu ao Brasil
a ratificação e consequente incorporação no âmbito doméstico de uma
série de tratados internacionais de direitos humanos, os quais servem de
instrumentos para a denúncia de práticas discriminatórias e a promoção de
não-violência.
A tentativa de negar vigência a normas nacionais e internacionais através
da retirada de quaisquer referências à palavra “gênero” é inconstitucional,
anti-democrática e ilegal, porque pretende a exclusão da proteção jurídica
contra a discriminação e a violência a que estão mais facilmente submetidos
determinados grupos sociais. Em uma democracia à moda brasileira, os
parlamentos perderam uma ótima oportunidade para promoção de uma
cultura de respeito às diferenças e de não-violência.
Outro argumento frequentemente veiculado é o de cerceamento à
liberdade de expressão. No contexto de uma pretensão de formar todos
os sujeitos para serem heterossexuais ou organizarem suas vidas a partir do
modelo supostamente coerente, superior e “natural” da heterossexualidade8,
a oposição sistemática a quaisquer outras possibilidades de orientação sexual
seria, na visão desses grupos religiosos e conservadores, um direito fundado
na liberdade de expressão. De novo, não se trata de ser contra ou favor, se
trata da regra democrática de igual respeito e igual consideração a qualquer
sujeito, independentemente de raça, sexo, cor, orientação sexual, etc. Tal
reivindicação, baseada em uma noção de segregação de determinados grupos
sociais, não pode ser admitida, tendo em vista que a Constituição Federal
consagra a construção de uma sociedade livre, justa e solidária, isenta de
quaisquer preconceitos.
Lourdes Bandeira e Anália Soria Batista (2002, p. 120-121) afirmam
que, quando o Poder Público, através da elite política, favorece ou
desfavorece determinados grupos identificados por sua etnia, raça, religião,
sexo, região, etc., ele nega a legitimidade de existência e de expressão de
outros segmentos, deixando as portas abertas às práticas preconceituosas
e discriminatórias. Em outras palavras, nega a possibilidade do outro (da
diferença) ter acesso à igualdade e à equidade:
Do ponto de vista jurídico, uma sociedade que prega a construção diferenciada e não-plural de seus
membros, como signo do preconceito, que admite o acesso particularizado de alguns, seja aos bens
materiais, seja aos bens culturais, que dá valoração
8 Sobre heterossexualidade compulsória, ver: MISKOLCI, Richard. A Teoria Queer e a Sociologia: o desafio de uma
analítica da normalização. Sociologias, Porto Alegre, a. 11, n. 21, p. 150-182, jan./jun. 2009. De acordo com o autor,
a heteronormatividade é um conjunto de prescrições que fundamentam processos sociais de regulação e controle de
quaisquer práticas sexuais (Miskolci, 2009, p. 157).
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positiva à desigualdade substantiva de seus membros
está fadada à instauração da violência nas suas variantes
materiais e simbólicas (Bandeira; Batista, 2002, p. 121,
grifos meus).
O sistema normativo constitucional brasileiro veda a censura de
natureza política, ideológica ou artística às diversas formas de manifestação
do pensamento (liberdade de expressão). A liberdade de expressão é um
direito fundamental, decorrente da conjunção de diferentes dispositivos
constitucionais. O Artigo 5º, inciso IV, dispõe que “é livre a manifestação
do pensamento, sendo vedado o anonimato”, e o inciso IX, que “é livre
a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação,
independentemente de censura ou licença”. O Artigo 220, caput, garante
que “a manifestação do pensamento, a criação, a expressão e a informação,
sob qualquer forma, processo ou veículo não sofrerão qualquer restrição,
observado o disposto na Constituição” e § 2º, diz que é “vedada toda e
qualquer censura de natureza política, ideológica e artística”.
O fundamento do direito à liberdade de expressão, positivado no
texto constitucional, está relacionado ao período de ditadura militar
experimentado no Brasil em que havia uma violenta repressão a qualquer
manifestação contrária ao regime político autoritário. Daí porque a ênfase
do legislador constituinte na proibição a qualquer censura de natureza
política, ideológica e artística.
Nesse sentido, afirmar que
a vitória da ideologia de gênero significaria a permissão de toda perversão sexual (incluindo o incesto e
a pedofilia), a incriminação de qualquer oposição ao
homossexualismo (crime de “homofobia”), a perda
do controle dos pais sobre a educação dos filhos, a
extinção da família e a transformação da sociedade
em uma massa informe, apta a ser dominada por
regimes totalitários (Zenit, 2014).9
9 Matéria do blog Zenit – o mundo visto de Roma: O exemplo da Suécia, um país totalmente contaminado pela ideologia
de gênero. Disponível em: <http://pt.zenit.org/articles/o-exemplo-da-suecia-um-pais-totalmente-contaminado-pelaideologia-de-genero/>. Acesso em: 25 jan. 2016.
é se opor à implementação de políticas públicas educacionais de
combate à violência ou à discriminação de gêneros, pactuadas pelo Estado
brasileiro, a partir da Constituição Federal e da adesão a uma série de
tratados e convencionais internacionais de direitos humanos. Muito longe
do exercício regular da liberdade de manifestação, esse discurso está mais
próximo de um hate speech (discursos de incitamento ao ódio) contra toda
e qualquer pessoa que não se enquadra às normalizações de identidade de
gênero e/ou de orientação sexual.
O Supremo Tribunal Federal foi chamado a se manifestar sobre um
caso paradigmático para a compreensão do direito à liberdade de expressão
(Habeas Corpus/RS, nº 82.424, conhecido como caso Ellwanger). Nesse
julgado, o STF decidiu que a ordem constitucional impõe limites à liberdade
de expressão, porque nenhum direito é absoluto e porque ninguém tem o
direito de invocar a liberdade de expressão para emitir discursos racistas,
antissemitas, xenófobos, etc. A seguir, selecionei alguns trechos que resumem
o inteiro teor dessa decisão:
HABEAS-CORPUS. PUBLICAÇÃO DE LIVROS:
ANTI-SEMITISMO. RACISMO. CRIME IMPRESCRITÍVEL. CONCEITUAÇÃO. ABRANGÊNCIA
CONSTITUCIONAL. LIBERDADE DE EXPRESSÃO. LIMITES. ORDEM DENEGADA. 1. Escrever,
editar, divulgar e comerciar livros “fazendo apologia de
ideias preconceituosas e discriminatórias” contra a comunidade judaica (Lei 7716/89, artigo 20, na redação dada
pela Lei 8081/90) constitui crime de racismo sujeito às
cláusulas de inafiançabilidade e imprescritibilidade
(CF, artigo 5º, XLII). [...] 3. Raça humana. Subdivisão. Inexistência. Com a definição e o mapeamento do
genoma humano, cientificamente não existem distinções
entre os homens, seja pela segmentação da pele, formato
dos olhos, altura, pêlos ou por quaisquer outras características físicas, visto que todos se qualificam como espécie
humana. Não há diferenças biológicas entre os seres
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humanos. Na essência são todos iguais. 4. Raça e racismo. A divisão dos seres humanos em raças resulta de
um processo de conteúdo meramente político-social. Desse
pressuposto origina-se o racismo que, por sua vez, gera a
discriminação e o preconceito segregacionista. 5. Fundamento do núcleo do pensamento do nacional-socialismo de que os judeus e os arianos formam raças
distintas. Os primeiros seriam raça inferior, nefasta
e infecta, características suficientes para justificar a
segregação e o extermínio: irreconciabilidade com
os padrões éticos e morais definidos na Carta Política do Brasil e do mundo contemporâneo, sob os
quais se ergue e se harmoniza o estado democrático.
Estigmas que por si só evidenciam crime de racismo.
Concepção atentatória dos princípios nos quais se erige e se
organiza a sociedade humana, baseada na respeitabilidade
e dignidade do ser humano e de sua pacífica convivência
no meio social. Condutas e evocações aéticas e imorais que
implicam repulsiva ação estatal por se revestirem de densa
intolerabilidade, de sorte a afrontar o ordenamento infraconstitucional e constitucional do País. 6. Adesão do Brasil
a tratados e acordos multilaterais, que energicamente repudiam quaisquer discriminações raciais, aí compreendidas
as distinções entre os homens por restrições ou preferências
oriundas de raça, cor, credo, descendência ou origem nacional ou étnica, inspiradas na pretensa superioridade de um
povo sobre outro, de que são exemplos a xenofobia, “negrofobia”, “islamafobia” e o anti-semitismo. 7. A Constituição Federal de 1988 impôs aos agentes de delitos
dessa natureza, pela gravidade e repulsividade da
ofensa, a cláusula de imprescritibilidade, para que
fique, ad perpetuam rei memoriam, verberado o repúdio e a abjeção da sociedade nacional à sua prática.
[...] 9. Direito comparado. A exemplo do Brasil as
legislações de países organizados sob a égide do estado
moderno de direito democrático igualmente adotam em seu
ordenamento legal punições para delitos que estimulem e
propaguem segregação racial. Manifestações da Suprema Corte Norte-Americana, da Câmara dos Lordes
da Inglaterra e da Corte de Apelação da Califórnia
nos Estados Unidos que consagraram entendimento
que aplicam sanções àqueles que transgridem as regras de
boa convivência social com grupos humanos que simbolizem
a prática de racismo. [...] 13. Liberdade de expressão. Garantia constitucional que não se tem como absoluta. Limites
morais e jurídicos. O direito à livre expressão não pode abrigar, em sua abrangência, manifestações de conteúdo imoral
que implicam ilicitude penal. 14. As liberdades públicas
não são incondicionais, por isso devem ser exercidas
de maneira harmônica, observados os limites definidos na própria Constituição Federal (CF, artigo 5º, §
2º, primeira parte). O preceito fundamental de liberdade
de expressão não consagra o “direito à incitação ao racismo”, dado que um direito individual não pode constituir-se
em salvaguarda de condutas ilícitas, como sucede com os
delitos contra a honra. Prevalência dos princípios da dignidade da pessoa humana e da igualdade jurídica. 15. [...]
No estado de direito democrático devem ser intransigentemente respeitados os princípios que garantem a prevalência
dos direitos humanos. Jamais podem se apagar da memória dos povos que se pretendam justos os atos repulsivos do passado que permitiram e incentivaram
o ódio entre iguais por motivos raciais de torpeza
inominável. 16. A ausência de prescrição nos crimes de racismo justifica-se como alerta grave para
as gerações de hoje e de amanhã, para que se impeça
a reinstauração de velhos e ultrapassados conceitos
que a consciência jurídica e histórica não mais admitem. Ordem denegada. (STF, Pleno, HC 82424,
Relator: Min. Moreira Alves, Relator p/ Acórdão:
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Min. Maurício Corrêa, julgado em 17/09/2003, DJ
19/03/2004, p. 17, grifos meus).
Afirmar que gênero na escola é ensinar “perversão” para crianças e
adolescentes é, além de ignorância (no sentido de desconhecimento de
fatos), uma forma de inculcar um estereótipo às defensoras e defensores
de uma escola não indiferente à discriminação e à violência. Somos todos
“pervertidas ou pervertidos” por que queremos uma escola que reconheça
e respeite as diferenças?
Os discursos públicos de incitamento ao ódio contra mulheres, gays,
lésbicas, travestis e transexuais violam o Estado Democrático de Direito,
porque desrespeitam os princípios republicanos que garantem a prevalência
dos direitos humanos, porque atentam contra o respeito à dignidade humana
e o dever de igual respeito e igual consideração de todas e todos.
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS
As demandas de reconhecimento das diferenças (de gênero, de raça/
etnia, de sexo, de orientação sexual, de classe, de pertencimento religioso, de
origem territorial, das deficiências) se inserem em um contexto de ruptura
com os processos de invisibilização e exclusão social e cultural. Dos debates
nos parlamentos (federal, estadual e municipal) sobre os planos de educação
emergiram questões muito importantes que vão além da suposta oposição
entre escola (mundo da vida pública) e família (mundo da vida doméstica).
Revelaram implicações para pensarmos sobre dignidade humana, igualdade
e democracia no contexto contemporâneo brasileiro.
No campo legislativo, as recentes alterações nos planos de educação
introduzem uma pseudo-neutralidade da escola quanto às pedagogias de
gênero. Trata-se de uma forma de mascarar os problemas decorrentes dos
processos de exclusão e violência reproduzidos no interior das famílias sobre
corpos/sujeitos não conformados às convenções de gênero.
A inclusão dos debates de gênero no contexto escolar faz parte de
legítimos anseios pela promoção da equidade de gênero, de uma vida livre
de discriminação e de violência para meninas e meninos, jovens e adultos.
Os discursos de incitamento ao ódio estão na contramão dos esforços
locais, regionais e globais de proteção e efetivação dos direitos humanos:
violam marcos normativos, a partir dos quais reivindicamos igual respeito e
consideração, reconhecimento do direito à existência digna, à liberdade e ao
desenvolvimento para todas e todos.
6. REFERÊNCIAS
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de violência. Revista Estudos Feministas, v. 10, n.1, p. 119-141, 2002.
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PELÚCIO, Larissa. Desfazendo o gênero. In: MISKOLCI, Richard; LEITE JUNIOR, Jorge
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ROUDINESCO, Elisabeth. A família em desordem. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2003.
VENCATO, Anna Paula. Diferenças na escola. In: MISKOLCI, Richard; LEITE JUNIOR, Jorge
(Orgs.). Diferenças na Educação: outros aprendizados. São Carlos: EdUFSCar, p. 19-56, 2014.
capítulo 8
DOMINAÇÃO MASCULINA:
A VIOLÊNCIA SIMBÓLICA NOSSA DE
CADA DIA
Elisa Girotti Celmer
1. CONSIDERAÇÕES INICIAIS
A partir dos estudos para a elaboração deste texto foi possível verificar
que, embora a maioria dos estudos sobre violência contra as mulheres
desenvolva conceitos a esse respeito, eles apresentam uma indistinção
terminológica, fazendo certa confusão entre os termos “violência contra a
mulher”, “violência doméstica”, “violência familiar” e “violência conjugal”,
os quais muitas vezes são utilizados como sinônimos, mesmo não o sendo.
Conforme a Convenção de Belém do Pará, violência contra mulher é
“qualquer ação ou conduta baseada no gênero, que cause morte, dano ou
sofrimento físico, sexual ou psicológico à mulher, tanto no âmbito público
como privado”. O termo “violência contra a mulher”, portanto, engloba a
violência doméstica, a violência familiar e a violência conjugal.
Por violência doméstica deve-se entender aquela conduta que cause
dano físico, psíquico ou sexual não só à mulher como a outras pessoas que
coabitem na mesma casa, incluindo empregados e agregados. Já a violência
familiar é mais específica, abrangendo apenas as agressões físicas ou
psicológicas entre membros da mesma família. Por fim, violência conjugal
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deve ser entendida como todo tipo de agressão praticada contra cônjuge,
companheira(o) ou namorada(o).
Não se deve restringir a violência conjugal àquela praticada pelo marido
contra a esposa, pois sabidamente essas agressões alcançam também os
casais de namorados, além de recentes pesquisas demonstrarem a existência
de violência conjugal entre lésbicas, o que desnatura essa violência como
sendo cometida exclusivamente pelos homens contra as mulheres (esposas,
companheiras ou namoradas). Ademais, embora sejam poucos os casos
registrados, existe também a violência conjugal praticada pela mulher contra
o homem.
A Lei 11.340/06, conhecida como Lei Maria da Penha, nos incisos do
Art. 5º, define violência doméstica ou familiar contra a mulher como sendo
toda ação ou omissão, baseada no gênero, que cause morte, sofrimento
físico, sexual ou psicológico e dano moral e patrimonial, no âmbito da
unidade doméstica, da família e em qualquer relação íntima de afeto,
em que o agressor conviva ou tenha convivido com a agredida. Ainda, no
parágrafo único do referido artigo, há a ressalva de que as relações íntimas
mencionadas independem de orientação sexual, do que se pode entender
a possibilidade de o “agressor” também ser mulher, caso se trate de uma
relação homossexual.
Da leitura do Art. 5º da Lei 11.340/06 depreende-se que os dispositivos
dessa lei deverão abarcar não só condutas que importem em delitos de lesão
corporal (Art. 129, § 9º do CP), mas todos os delitos praticados contra a
mulher no âmbito doméstico ou familiar. Em suma, a apuração de qualquer
tipo de violência em que a vítima seja mulher, desde que o(a) suposto(a)
autor(a) do fato tenha com ela relações íntimas de afeto, deve ser regulada
pela lei supracitada. Ademais, a Lei Maria da Penha, ao enumerar o dano
moral e patrimonial como consequências da violência doméstica e familiar,
engloba os casos de apropriações indébitas, furtos e outros delitos de cunho
patrimonial praticados contra a mulher no âmbito doméstico, abrindo a
possibilidade para se pleitear, inclusive, indenizações pelo dano moral.
A expressão violência tem origem na palavra latina violentia, que significa
ferocidade, arrebatamento, veemência, e no verbo violare, ultrajar, profanar,
prejudicar, ferir (Faria, 1967, p. 1067).
Pensadores das mais diversas áreas, psicologia, filosofia, antropologia,
sociologia, direito, etc., conceituam o que seja violência. Contudo, essa
tarefa não é nada simples, pois a realidade que transborda das inúmeras
expressões do constrangimento não consegue ser apreendida em um único
conceito. Nesse sentido, seria mais adequado falar em violências, utilizando
o plural, para uma aproximação do caráter multifacetado dos fenômenos
violentos.
A antropóloga Alba Zaluar, ao tratar da expressão violência, diz o
seguinte:
O termo violência vem do latim violentia, que remete
a vis (força, vigor, emprego de força física, ou recurso do corpo para exercer sua força vital). Essa
força torna-se violência quando ultrapassa um limite
ou perturba acordos tácitos e regras que ordenam
relações, adquirindo assim, carga negativa, ou maléfica. É a percepção do limite e da perturbação (e
do sofrimento causado), que vai caracterizar um ato
como violento, percepção que varia cultural e historicamente (Zaluar, 1999, p. 28).
A autora traz à baila a ideia de que há um grau aceitável de agressividade
e que a percepção desse nível varia conforme o contexto histórico e a
cultura da sociedade e dos indivíduos envolvidos nas violências. Sendo
assim, a agressividade é inerente ao ser humano. As manifestações dessa
agressividade, em maior ou menor grau, poderão ser aceitas socialmente,
sendo muitas vezes consideradas “normais”. Nesse sentido, pode-se “dizer
que a violência é um elemento estrutural, intrínseco ao fato social e não um
resto anacrônico de uma ordem bárbara em vias de extinção” (Gauer, 2003,
p. 13).Por muito tempo as violências contra a mulher foram socialmente
aceitas, o que impregnou as identidades culturais de homens e mulheres de
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um grau elevado de tolerância para com tais manifestações de agressividade.
Essa aceitação sociocultural das violências contra a mulher foi tão bem
alicerçada ao longo dos tempos que, até nos dias atuais, quando inclusive a
legislação reprova essa forma de violência, as mulheres vitimizadas possuem
dificuldade de reconhecer as agressões sofridas como sendo violência1.
A violência de gênero é a tradução das imposições baseadas na divisão
sexual. Ao estabelecer o gênero masculino (e sua heteronormatividade)
como medida de todos os gêneros, tal qual esse fosse neutro, a sociedade
impõe sutilmente comportamentos, raciocínios, hábitos, gostos, espaços,
profissões, lugares, etc. Essas formas de anulação (ou redução) identitária
configuram o que pode ser chamado de violência de gênero, que vai da tênue
determinação das cores das roupas de meninos e meninas até as agressões
físicas fatais.
São as espécies mais sutis de constrangimento que serão abordadas
adiante neste trabalho, por meio do estudo do conceito de violência
simbólica de Pierre Bourdieu. Se agressões físicas e os abusos sexuais não
são fáceis de serem reconhecidos como expressões de violência, o que dizer
da violência simbólica nossa de cada dia!
2. A MULHER EM SITUAÇÃO DE VIOLÊNCIA
Interessante é analisar a etimologia dos vocábulos vítima e mulher, para
perceber a origem da ligação entre eles. Uma das explicações diz que a
palavra vítima adviria de vincere, que significaria vencer, ser vencedor, sendo
a vítima aquele vencido, o derrotado, o abatido; e mulher teria derivado de
mulier, que designaria a pessoa tímida, frágil, fraca. Nota-se que a associação
feita entre vítima e mulher está calcada no significado dessas duas palavras.
Dessa maneira, a mulher é vista e vê a si mesma como a fraca, a submissa;
ou seja, a dominada.
1 Sobre a dificuldade do reconhecimento da violência pela mulher, ver SCHAIBER, Lilia Blima et al. Violência dói e
não é direito: A violência contra a mulher, a saúde e os direitos humanos. São Paulo: Editora UNESP, 2005. p. 46-49.
Tamanha é a preocupação do movimento feminista com a mulher
na condição de vítima que há quem diga ser a vitimologia, uma questão
exclusivamente feminina (Fernandes, 1995, p. 38). Reivindica-se maior
proteção penal às mulheres, por meio de penas mais rigorosas, isto é, pena de
prisão, restrições na progressão de regime, duração maior das condenações
para os homens que praticam violência contra a mulher.
O termo mulher em situação de violência foi criado justamente para tentar
desvincular as mulheres com a posição de eternas vítimas. Ademais, tal
expressão é utilizada para designar mulheres que estão inseridas em um
ambiente onde agressões são constantes.
Nos últimos vinte anos, o reconhecimento da violência contra a
mulher como sendo um problema público vem ocorrendo na sociedade
brasileira. Durante esse período, aconteceu uma politização do discurso
relativo às práticas de violência contra a mulher, resultando em correntes de
opinião que tendem a recorrer à criminalização e à punição dessas formas
de violência. Simultaneamente, esse discurso punitivo dos movimentos
de mulheres, em um cenário mais amplo, tem se confrontado com dois
aspectos importantes da contemporaneidade: a crise do sistema de justiça
criminal brasileiro e a falência do sistema punitivo. Contudo, quando um
movimento social conhece um certo sucesso e perdura durante algumas
décadas, mudanças, obviamente, acontecem. O entusiasmo inicial diminui,
o “sucesso” do movimento não é estável: determinados temas levantados
podem, às vezes, ser retomados e incorporados pela sociedade, esvaziando
o caráter de tabu de tais assuntos e fazendo com que o discurso deixe de ser
marginal e se torne dominante.
Por sua vez, o Estado, no intuito de se mostrar politicamente correto,
encampou a defesa dos Direitos das Mulheres, institucionalizando alguns
espaços de discussão dos movimentos feministas e de mulheres. Em
decorrência dessa aproximação do movimento social com os órgãos estatais,
está ocorrendo uma tendência maior de o Estado incorporar à legislação
reivindicações feministas, mormente no que se refere à violência doméstica
e familiar contra a mulher.
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Dentro desse contexto existem, em especial, duas leis: a Lei
10.886/2004, a qual inseriu no Código Penal o agravamento da lesão corporal
em decorrência de violência doméstica, e a recente Lei 11.340/2006, que
instituiu os Juizados da Violência Doméstica e familiar contra a mulher e,
entre outras modificações, aumentou a pena do delito de lesão corporal
decorrente de violência doméstica, bem como vedou a utilização do rito da
Lei 9.099/95 para a apuração do referido delito.
A intenção aqui não é debater a Lei 11.340/2006 (Maria da Penha),
nem os reflexos de sua implementação, mas levantar alguns tópicos mais
polêmicos da referida legislação que são pertinentes para uma reflexão sobre
as condições das mulheres em situação de violência. Será dado destaque à
busca por entender as racionalidades que permeiam os atos dessas mulheres
submersas em um contexto violento e que apresentam tanta dificuldade de
se movimentar para fora desses ambientes opressores.
O fato de a maioria das mulheres em situação de violência não denunciar
às autoridades seus agressores ou não manter as acusações quando, após a
denúncia, fazendo o primeiro movimento para sair do contexto violento,
retrata o então desejo de representar criminalmente contra o acusado é
comportamento que causa grande incômodo e incompreensão entre quem
se depara com o tema. Especialmente quando passam a existir instrumentos
legais que, embora muitas vezes não sejam adequados ou suficientemente
eficazes para seus intuitos, visam a proteção das mulheres em situação de
vulnerabilidade.
Duas são as razões mais aventadas para explicar esse comportamento
reiterado por mulheres em situação de violência: a dependência econômica
do suposto agressor e as ameaças feitas pelo agressor caso elas denunciem ou
continuem com o processo criminal.
Apesar de a dependência econômica ser aspecto relevante que leva
inúmeras mulheres em situação de violência a retratarem-se da representação
criminal, a dependência emocional, com seus múltiplos fatores, normalmente
é a razão principal pela qual as mulheres não registram o fato ou desistem
de processar o agressor. Viver sem um homem a lhes respaldar, a lhes dar
a sensação de proteção, muitas vezes, é um temor suficiente para a mulher
calar-se e manter a relação conjugal. Não obstante as mudanças e conquistas
formais de direitos, a sociedade, aqui particularmente a brasileira, ainda
exige o cumprimento de papéis de gênero pré-estabelecidos.
As mulheres, na sua maioria, ainda são educadas para serem esposas
(boas esposas!); com isso, no íntimo dessas mulheres, o que passa é que se
foram agredidas por seus companheiros é porque fizeram algo que não lhes
agradou, frustraram a expectativa que seus papéis de esposa lhes impunha.
Nessa linha, denunciar a violência às autoridades corresponde a reconhecer
publicamente o fracasso de sua relação conjugal2. Daí vislumbra-se que a
resistência das mulheres em situação de violência em denunciar essa condição
não é despropositada, nem devida apenas à dependência econômica. O
cuidado que se deve ter é de não se criarem mecanismos que, embora com
o intuito de proteger, dificultem ainda mais às mulheres uma atitude de
denunciar a situação de violência em que estão inseridas. Ainda, há que se
investigar quais esquemas psicossociais estão relacionados a essa atitude de
não denunciar o agressor, buscando compreender as racionalidades dessas
mulheres e não as tratar como seres irracionais.
O argumento no sentido de que a vítima desiste da representação coagida
por agressões e por isso deve o Ministério Público, incondicionalmente, ser
o titular da ação penal para apurar esses casos leva à seguinte indagação: não
continuará ela sendo agredida e ameaçada assim que seu suposto agressor
tomar conhecimento de que está sendo processado criminalmente? Não se
estará apenas transferindo o momento da coação, ou até piorando, pois o
que antes era ameaça agora será agressão de fato? O processo penal não é
instrumento adequado para dar proteção à mulher vítima. Não se discorda
que sendo a violência contra as mulheres um problema, inclusive de saúde
pública, o Estado deva dispor de mecanismos que as protejam contra tal
violência. Contudo, isso deve ocorrer através de políticas públicas e da
aplicação das medidas protetivas previstas na Lei 11.340/06. Da análise
do modo como se opera esse tipo de violência, percebe-se que pouco, ou
2 Sobre esse tema específico, ler: LARRAURI, Elena. ¿Por qué las mujeres maltratadas retiran las denuncias? In:
Mujeres y Sistema Penal: violência doméstica. Montevidéu: B de F, 2008. p. 127.
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nada, irá ajudar a ação penal ser de iniciativa pública incondicionada se
não aplicadas a ela medidas efetivas de proteção, pois o suposto agressor
continuará coabitando com a vítima e sendo pai de seus filhos, vínculo que
não cessa nunca.
O tema é complexo e delicado, já que as consequências são maiores do
que um reflexo apenas processual. Raros são os casos de violência doméstica
e familiar contra a mulher que ocorrem sob os olhares de terceiros alheios
ao conflito que possam denunciar o fato; a maioria esmagadora dessa
espécie de violência acontece ao abrigo da publicidade e só é denunciada
às autoridades se a vítima o fizer. A dificuldade de fazer a denúncia é
imensa devido ao vínculo que possui com o agressor, mesmo sabendo da
possibilidade de não processar ou “desistir do processo” mais tarde. Ao se
instituir a prescindibilidade da representação e a inevitabilidade do processo
penal com o registro da noticia criminis, certamente a atitude de denunciar
a situação de violência em que estão inseridas será muito mais difícil de ser
tomada pelas mulheres.
3. DOMINAÇÃO MASCULINA E VIOLÊNCIA SIMBÓLICA
A dominação masculina, para Bourdieu (2005), é um fenômeno
decorrente da violência simbólica construída historicamente de forma
autoritária, mas um tanto sutil. Isso porque a separação e a hierarquização
entre os sexos foram infiltradas de tal maneira na ordem das coisas, que se
apresentam como se naturais fossem, sendo introjetadas e reproduzidas por
homens e mulheres por meio do que Bourdieu chama de habitus.
O habitus seria a trama resultante da mediação entre as estruturas
sociais e as disposições individuais; da articulação entre essas duas dimensões
sociais são produzidas disposições duráveis. As estruturas sociais tornam-se
estruturas cognitivas; dessa forma, objetiva e subjetivamente, a ordem social
se reproduz pelos modos de sentir, pensar e agir, os quais estão em um
esquema de percepção. O habitus não é, contudo, algo estático, uma vez que
é criado socialmente, sendo resultado de um longo e intenso processo de
incorporação de significados nos corpos e mentes das pessoas.
A ideia de habitus é útil para pensar que existe uma matriz cultural que
propicia aos indivíduos fazerem suas escolhas, ou seja, que as escolhas nunca
são totalmente livres e individuais. Na conformação dessa matriz cultural
possuem papel relevante as instituições sociais como a família, as igrejas,
a escola e, na atualidade, especialmente, a mídia. Bourdieu (2005) critica,
principalmente, a Escola, pois essa deveria promover uma socialização capaz
de superar desigualdades sociais – dentre as quais a de gênero –, porém não
o faz, reproduzindo as desigualdades ao não habilitar suficientemente os(as)
jovens a transpor os obstáculos sociais e culturais.
A partir de sua pesquisa etnográfica na comunidade camponesa da
Cabília, situada no norte da África, Bourdieu (2005) estabelece as bases para
sua explicação da dominação masculina, destacando os conceitos de habitus e
socialização. Estudar o comportamento dos camponeses e das camponesas da
Cabília trouxe para o autor a conclusão de que estes indivíduos mantinham
estruturas representativas da perspectiva androcêntrica habituais em todas as
sociedades mediterrâneas. Com base nas observações da dinâmica social da
comunidade Cabilia, Bourdieu (2005) compreende e explica a dominação
masculina nas sociedades contemporâneas.
A divisão (e hierarquização) entre os sexos é naturalizada, aparenta
ser inevitável e neutra. Uma vez incorporada essa organização natural das
coisas, a justificação da força da ordem masculina é dispensável. Essa ordem
masculina como medida para todas as coisas é a principal face da dominação
masculina, que muitos dizem estar superada, mas persiste no cotidiano de
mulheres e homens.
Instituições sociais tais como o Estado, a Igreja e a Escola são as
principais responsáveis pela dinâmica de retroalimentação das estruturas
objetivas e subjetivas da dominação masculina. Quando os(as) dominados(as)
desenvolvem seus pensamentos e suas percepções em consonância com as
mesmas estruturas da relação de dominação que lhes foi imposta seus atos de
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conhecimento são, invariavelmente, atos de reconhecimento da submissão
(Bourdieu, 2005, p. 22).
Há brechas nesta correspondência entre as realidades e as divisões
que lhes são aplicadas que possibilitam aos(às) dominados(as) resistirem,
disputando o sentido das relações de gênero. A definição dos órgãos sexuais,
assim, não é algo dado pela simples descrição de características naturais,
mas produto de uma construção social realizada pela acentuação de algumas
diferenças e a ocultação de algumas semelhanças. O falo, então, é instituído
como símbolo de virilidade pela perspectiva de mundo que se alicerça na
divisão e hierarquização dos gêneros.
Ao tratar da relação entre os sexos, Bourdieu (2005) mostra que a
designação do masculino-ativo e do feminino-passivo extrapolou o âmbito
da intimidade e alcançou todas as áreas da vida social. Essa divisão, que se
tornou um princípio, acabou sendo aplicada no sentido de direcionar o
desejo masculino para a posse e o desejo feminino para uma subordinação
erotizada. Existe um processo coletivo de socialização difusa que inscreve
nos corpos as relações sociais de dominação; portanto, são as diferenças
biológicas que são explicadas pelas diferenças sociais – e não o contrário.
Apesar das liberdades formais, tais como direito ao voto, à educação,
o acesso ao mercado de trabalho, bem como da popularização dos métodos
anticoncepcionais, os corpos e mentes das mulheres continuam submissos
ao olhar masculino. Bourdieu (2005) alerta para essas permanências
dentro das mudanças; as mulheres conseguem se profissionalizar, mas as
ocupações “feminilizadas” são desvalorizadas. Ainda que as mulheres,
atualmente, tenham acesso às funções públicas, constantemente são
posições desprestigiadas, além de terem remunerações menores do que a
dos homens, mesmo desempenhando as mesmas tarefas.
As profissões majoritariamente ocupadas pelas mulheres, nos dias
atuais, ainda estão situadas nas áreas dominadas pela lógica tradicional
do modelo de divisão masculino/feminino. Assim, as ocupações das
mulheres no espaço público permanecem sendo extensões de suas tarefas
domésticas, ou seja, funções relacionadas ao cuidado: magistério do ensino
básico, enfermagem, serviços de limpeza. Ocupações muito relevantes,
porém extremamente desprestigiadas socialmente, tanto em relação ao
status quanto à remuneração.
Outra área profissional bastante ocupada por mulheres que também
é uma ampliação do âmbito doméstico é a de apresentação, representação
e acolhida: recepcionistas, modelos, propagandistas, aeromoças, hostess.
Nesses casos, Bourdieu (2005) destaca a atenção extrema que essas mulheres
precisam dispensar para com a aparência física, pois tais profissões ou papéis
sociais que lhes são reservados importam em uma boa dose de sedução –
explícita ou implícita.
As categorias construídas desde a lógica da dominação masculina são
aplicadas pelas mulheres às relações sociais, fazendo com que tais categorias
sejam percebidas como naturais, neutras e indiscutíveis. Nesse sentido,
A violência simbólica se impõe por intermédio da
adesão que o dominado não pode deixar de conceder ao dominante (e, portanto, à dominação) quando ele não dispõe, para pensá-la e para se pensar, ou
melhor, para pensar sua relação com ele, mais que
instrumentos de conhecimento que ambos têm em
comum e que, não sendo mais que a forma incorporada da relação de dominação, fazem esta relação ser vista como natural; ou, em outros termos,
quando os esquemas que ele põe em ação para se
ver e se avaliar, ou para ver e avaliar os dominantes
(elevado/baixo, masculino/feminino; branco/negro
etc.), resultam da incorporação de classificações, assim naturalizadas, de que seu ser social é produto
(Bourdieu, 2005, p. 47).
Essas incorporações alcançam também os homens, que acabam sendo
prisioneiros das representações da dominação masculina. A virilidade é a
principal dessas representações; ela precisa ser conservada a qualquer custo
pelos homens. A virilidade se desdobra para além do aspecto físico ou
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......
reprodutivo, se traduz em constante coragem moral. A exigência de que os
homens exerçam habilidades reprodutivas, sociais e tenham disposição para
a agressividade é algo que sobrecarrega muitos homens. Com isto, notase que Bourdieu (2005) destaca a questão relacional da problemática da
dominação entre os homens e as mulheres.
A percepção que grande parte das mulheres possui do próprio corpo
segue os ditames da moda; o padrão imposto pela moda é uma força simbólica
que parece natural, mas é produto da dominação masculina. De acordo com
Bourdieu (2005, p. 50), uma força simbólica pode ser caracterizada como
uma forma de poder que é exercida sobre os corpos e mentes sem nenhuma
coação física, tal qual espécie de magia que só é eficaz porque se vale do
apoio das predisposições incorporadas historicamente nos pontos mais
profundos dos indivíduos. Assim, a força simbólica das coisas, dos atos e das
emoções se exerce por meio de um gasto muito pequeno de energia, pois ela
encontra respaldo no contínuo trabalho prévio de produção de disposições
duradouras que ela desperta.
Se a noção de virilidade tem a força simbólica de ser associada ao
poder, a feminilidade, por oposição, remete à ideia de tudo o que não se
refere ao poder. Isso coloca as mulheres, frequentemente, em uma posição
hesitante: se demonstram atributos viris para acessarem o poder, se afastam
dos requisitos da feminilidade, mas se não o fazem são taxadas de inaptas
para lidar com situações que envolvam poder.
Tendo em conta a profunda inscrição da força simbólica da dominação
nos corpos, Bourdieu (2005) previne que, para a mudança das predisposições
do habitus, não basta apenas uma tomada de consciência a respeito da
dominação, pois tais forças estão inculcadas no mais íntimo dos corpos,
sob as formas das vocações e desejos. Contudo, a tomada de consciência
é o primeiro passo para uma mudança, pois não há como transformar um
problema, sem antes reconhecer a sua existência.
4. CONSIDERAÇÕES FINAIS
A violência simbólica pode ser entendida como expressões de crenças
historicamente construídas para fundamentar relações de dominação e
a peculiaridade dessa forma de violência é que as(os) dominadas(os) são
parte essencial na reprodução das situações de opressão às quais estão
submetidas(os). Assim, comportamentos que inibem a criatividade podem
ser considerados simbolicamente violentos, pois restringem a liberdade de
expressão ao se basearem em papéis sociais de gênero (homem/mulher)
pré-fixados (Bourdieu, 2005).
Situações de violência simbólica são as mais corriqueiras no cotidiano
das mulheres. Ainda que jamais tenham sido vítimas de agressões físicas
ou psicológicas, dificilmente passaram ilesas a um episódio de violência
simbólica. A clássica frase “isso não é coisa de menina” é expressão
clara de violência simbólica. Outros exemplos podem ser descritos, tais
como o estabelecimento de tarefas domésticas a serem desempenhadas
exclusivamente por mulheres; o privilégio na escolha de homens para
ocuparem cargos de chefia ou o pagamento de salários mais baixos às
mulheres quando elas ocupam tais cargos.
O tema da violência é extremamente complexo. As manifestações
agressivas envolvem fatores biopsicossociais; especificamente em relação à
violência contra as mulheres, os aspectos psicológicos e sociais imbricados
entre si são os que ganham maior evidência. Contudo, as articulações desses
fatores são mecanismos muito sutis, embora muitas vezes suas expressões
sejam bem contundentes quando se tornam marcas físicas e essa sutileza
com que esses aspectos se encadeiam de modo a produzir violências faz desse
assunto algo complexo, tal qual um novelo de lã multicolorido totalmente
emaranhado que precisa ser desenredado para então poder se começar a
tecer; pensar em soluções para a violência contra as mulheres passa por
descobrir as pontas do novelo. Tentar identificar quais comportamentos
(comissivos ou omissivos) importam violência é o percurso inicial no
caminho para compreensão do fenômeno da violência contra as mulheres.
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136
......
Ao se compreender o fenômeno da violência contra as mulheres com
suas peculiaridades, especialmente no que diz respeito à violência doméstica,
nota-se que, quanto menor a intervenção estatal de cunho penal, menos
traumas ocorrerão. Não se trata de privilegiar o suposto agressor, mas de
pensar segundo a perspectiva da redução de danos para a vítima, que nesses
casos está intimamente envolvida com o acusado.
Certo é que uma abordagem mais adequada da violência doméstica deve
levar em conta também a agressão como uma relação de poder, entendendo
o poder não como algo absoluto e estático, exercido invariavelmente pelo
homem sobre a mulher, mas como algo fluído que perpassa a dinâmica
relacional, exercido ora por homens, ora por mulheres. Ainda, é importante
reconhecer os limites do Direito Penal para alcançar resultados efetivos no
combate à violência contra a mulher, a fim de viabilizar a construção de
novas possibilidades de enfretamento dos conflitos de gênero de acordo
com novos modelos de justiça.
Os aspectos socioculturais influenciam na construção dos aspectos
psicológicos dos seres humanos; esses aspectos, por sua vez, auxiliarão na
reprodução da cultura. Enquanto as violências estiverem arraigadas nos seres
como maneira preponderante de comunicação, as situações de violência irão
continuar. Transformar padrões culturais é uma das mais árduas tarefas de
serem operadas, pois desestruturam certezas até então consolidadas.
A busca de mecanismos para diminuir a violência contra a mulher
passa por identificar os elementos que compõem esses esquemas de
reprodução de contextos violentos. Assim, como as instituições, segundo
Bourdieu (2005), possuem responsabilidade na reprodução do habitus que
produz a dominação masculina, elas também têm papel relevante para a
sua desconstrução. A escola é, talvez, a instituição com maior potencial
de ensejar transformações, mas para tanto é preciso que os agentes que
compõem os espaços de ensino percebam a sutileza da violência simbólica e
promovam ações políticas que levem em conta o maior número possível dos
efeitos da dominação masculina, para que, em longo prazo e paulatinamente,
tal dominação vá desaparecendo. Assumir uma postura em sala de aula de
não reiterar desigualdade de gênero e promover o debate sobre as formas de
violência de gênero, obviamente, com os recursos pedagógicos adequados a
cada faixa etária, é um bom começo dessas transformações.
5. REFERÊNCIAS
BOURDIEU, Pierre. A dominação Masculina. Traduzido por: Maria Helena Kühner. 4. ed. Rio
de Janeiro: Bertrand Brasil, 2005.
CONVENÇÃO INTERAMERICANA para prevenir, punir e erradicar a violência contra a mulher – Convenção de Belém do Pará, 1994.
FARIA, Ernesto (Org.). Dicionário Escolar Latim-Português. 4. ed. Rio de Janeiro: Departamento
Nacional de Educação/Ministério da Educação e Cultura, 1967.
FERNANDES, Antônio Scarance. O papel da vítima no processo penal. São Paulo: Malheiros, 1995.
GAUER, Ruth Chittó. Fenomenologia da violência. Curitiba: Juruá, 2003.
LARRAURI, Elena. ¿Por qué las mujeres maltratadas retiran las denuncias? In: Mujeres y Sistema
Penal: violência doméstica. Montividéu: B de F, 2008.
SCHAIBER, Lilia Blima et al. Violência dói e não é direito: A violência contra a mulher, a saúde e
os direitos humanos. São Paulo: Editora UNESP, 2005.
ZALUAR, A. M. Violência e Crime. In: Sergio Miceli. (Org.). O que ler na Ciência Social brasileira
(1970-1995). São Paulo: Editora Sumaré/ANPOCS, 1999, v. 1, p. 15-107.
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Capítulo 9
SEXUALIDADE E JUVENTUDE: PEGAR,
FICAR E NAMORO
Paula Pinhal de Carlos
1. INTRODUÇÃO
Este texto é um extrato de minha tese de doutorado, intitulada
’Sou para casar’ ou ‘pego, mas não me apego’: práticas afetivas e representações
de jovens sobre amor, sexualidade e conjugalidade, orientada por Miriam Pillar
Grossi, coorientada por Mara Coelho de Souza Lago e defendida em 2011
no Programa de Pós-graduação Interdisciplinar em Ciências Humanas
da Universidade Federal de Santa Catarina. Tratou-se de uma pesquisa
multissituada (MARCUS, 1995) realizada com jovens de 13 a 18 anos, de
ambos os sexos, alunos de escolas públicas. Parte dela foi desenvolvida em
Florianópolis e na cidade de São José, pertencente à Região Metropolitana.
A partir de oficinas, observações e entrevistas, foi possível perceber
que, dentre as práticas afetivas de jovens, três conceitos eram muito
importantes: pegar, ficar e namoro. O pegar e o ficar parecem exemplificar
muito bem aquilo que Bauman (2004) denomina de “amor líquido”, devido
à fluidez e à instabilidade, unidas ao desapego e mesmo a uma noção de
descartabilidade das relações. Neste texto, procuro traçar considerações
acerca do conceito de juventude e sua relação com a sexualidade, para
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......
então adentrar nas categorias específicas da sexualidade juvenil estudadas,
privilegiando as noções de pegar e ficar.
2. CONSIDERAÇÕES SOBRE O CONCEITO DE JUVENTUDE
Para tratar dessa temática, faz-se necessário compreender de que
forma surge o conceito de juventude. Além disso, é preciso refletir sobre a
relevância de estudá-la. Para Peralva (2007, p. 25),
[...] enquanto o adulto vive ainda sob o impacto de
um modelo de sociedade que se decompõe, o jovem
já vive em um mundo radicalmente novo, cujas categorias de inteligibilidade ele ajuda a construir. Interrogar essas categorias permite não somente uma
melhor compreensão do universo de referências de
um grupo etário particular, mas também da nova sociedade transformada pela mutação.
Também Novaes (2007) entende que estudar a juventude auxilia
na compreensão dos valores da contemporaneidade. Tendo por base tais
entendimentos, acredito que pesquisar práticas afetivas de jovens permite
não só averiguar as vivências relacionadas à sexualidade juvenil, mas também
entender as modificações ocorridas nos relacionamentos amorosos na
atualidade.
Para situar historicamente o conceito de juventude, é preciso
inicialmente remeter à invenção da infância, a qual, segundo Ariès
(1981), estaria situada nos fins do século XVIII. O autor demonstra que,
anteriormente a tal período, as crianças eram vistas como adultos em
miniatura, não sendo reservados a elas cuidados especiais. A infância é
representada como categoria construída socialmente no momento em que
as crianças passaram a ser vistas como seres frágeis e vulneráveis que, por
esse motivo, possuíam necessidades específicas. Tomando-se como exemplo
sua obra, é possível deduzir que também a categoria juventude inexistia
nesse momento histórico. Não havendo uma diferenciação entre crianças e
adultos, tampouco poderia estar presente a juventude, etapa intermediária
entre a vida infantil e adulta.
Também se torna imperativo falar de Mead (1961) e o texto publicado
em 1928 no qual compara a juventude de Samoa. Em sua pesquisa,
a antropóloga compara as vivências juvenis de Samoa com as dos jovens
americanos. Um dos destaques é dado justamente à questão da sexualidade,
já que os jovens e as jovens de Samoa desfrutavam de uma liberdade sexual,
algo muito diferente da situação dos Estados Unidos na época.
Em que momento histórico se situa, então, o advento da noção atual de
juventude? Segundo Reguillo (2003), a categoria juventude, da forma como
a conhecemos atualmente, consiste numa invenção operada após a Segunda
Guerra Mundial, contexto no qual tomavam forma um discurso jurídico,
um discurso escolar e uma indústria que reivindicava que crianças e jovens
fossem tidos como sujeitos de direitos1 e, especialmente no caso dos jovens,
de consumo.
Seguindo esses autores, se a invenção da infância pode ser localizada
no final do século XVIII, a da juventude pode ser identificada na metade do
século XX. É após a Segunda Guerra Mundial e diante do reconhecimento
do holocausto nazista que se busca o reconhecimento da universalidade dos
direitos humanos. Em virtude da discriminação operada durante o conflito,
que diferenciava judeus, ciganos, homossexuais, deficientes físicos, crianças
e idosos, por exemplo, como seres que não mereciam viver, a Organização
das Nações Unidas, com a promulgação da Declaração Universal dos
Direitos Humanos, busca a extensão e a garantia desses direitos a todas as
pessoas e, portanto, também a crianças e jovens.
Nesse momento, com as economias abaladas pela participação na
guerra, era preciso também a reestruturação, o que foi operado inclusive
pelo consumo. Ser jovem, nesse momento, passou também a significar
poder adquirir bens de consumo específicos para essa faixa etária. Isso é
ressaltado por Louro (2000), que afirma que, no Brasil dos anos 1950, a
juventude tinha como base os padrões de referência e estética da juventude
1 O sujeito de direitos pode ser compreendido como ente (individual ou coletivo) que é titular de direitos e deveres
conferidos pelo ordenamento jurídico.
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......
estadunidense, que nesse momento se tornava um mercado de consumo
distinto do mercado adulto.
A noção de juventude criada no pós-guerra também possui reflexos
muito importantes para a geração de jovens dos anos 1960, lembrada pela
quebra de diversos paradigmas no que diz respeito a gênero, sexualidade
e preconceito racial, por exemplo. Para Cardoso (2005), a geração dos
anos 1960 é crucial para o desenvolvimento do que a autora chama de
“entronização do modo jovem de ser como estilo de vida” (p. 93), que é
uma de suas características. Ela é oriunda, também, segundo a socióloga, da
flexibilização das hierarquias e da autoridade, a qual gerou novas relações
entre adultos e jovens.
Salienta-se que essas novas relações, com a flexibilização da autoridade
adulta, também estão profundamente conectadas ao reconhecimento dos
jovens como sujeitos de direitos. Reconhece-se, dessa forma, que jovens
possuem direitos que são universais e devem ser respeitados, motivos pelos
quais a autoridade adulta, independentemente de sua origem, se familiar ou
educacional, por exemplo, não é ilimitada.
A juventude passa a ser, portanto, também uma referência, inclusive
com padrões específicos de estética. Ela não é mais apenas uma faixa etária
e, muito menos, um período da vida disposto entre a infância e a vida adulta.
Ser jovem é poder questionar e quebrar barreiras. Por esse motivo, no século
XX, a juventude é também um ideal a ser alcançado (Ariès, 1981).
Nota-se que a noção de juventude não está restrita à delimitação de
uma faixa etária. Segundo os ensinamentos de Groppo (2000), ela não
pode ser compreendida apenas sob esse prisma. A juventude deve ser tida
também como representação social e cultural, bem como situação social.
Dessa maneira, embora o fator idade seja importante para sua definição,
a noção de juventude é muito mais ampla, envolvendo aspectos sociais e
culturais.
O que caracteriza, então, a juventude? Como defini-la? Entendo que,
para tanto, é preciso primeiramente remeter à noção sociológica clássica de
Foracchi (1965), que caracteriza a juventude a partir do reconhecimento de
que se trata de uma fase da vida, da constatação de sua força social renovadora
e da percepção de que vai além de uma etapa cronológica, constituindo-se
também como um estilo próprio de existência.
Estão presentes em seu conceito elementos já apontados aqui, quais
sejam: a juventude é também, mas não só, uma fase cronologicamente
datada da vida das pessoas. Ela possui um estilo próprio (ser jovem não
é apenas possuir determinada idade, mas ser de determinado jeito). Há,
por fim, o caráter de mudança social que a juventude carrega consigo, tão
visível, por exemplo, na geração dos anos 1960. É esse caráter de quebra
de paradigmas, de renovação, que muitas vezes faz com que, nos dizeres de
Giroux (1996), a juventude possua um caráter paradoxal, pois ao mesmo
tempo em que é exaltada, é também demonizada.
Segundo Galland (1997), a juventude seria o período da vida que se
estenderia até que eventos como o advento de um emprego em período
integral, da conjugalidade, da parentalidade ou da constituição de uma
residência autônoma da família de origem ocorram. Nota-se, aqui, que
trabalho e família seriam dois norteadores importantes da vida adulta.
Logo, é a admissão em um emprego, e em período integral, que poderia
caracterizar o término da juventude.
Sobre a delimitação da juventude, Magnani (2005, p. 174) também
afirma que “essa etapa pode ser marcada tanto por fatores biopsicológicos
como por rituais de passagem, de mudança de status e ingresso em esferas
específicas, como o mercado de trabalho, a constituição de família, o
pertencimento a grupos, etc.”. No entanto, ele propõe que a juventude
não seja tomada como categoria explicativa, mas como o ponto de partida
empírico para os recortes efetuados nas pesquisas.
Ponto de vista semelhante possui Weller (2005, p. 112), que afirma
que,
[...] se quisermos entender o que vem a ser juventude
e como ela é vivida de fato pelos adolescentes e jovens
de ambos os sexos, será necessário dedicar maior
importância às descrições e narrativas dos atores en-
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......
volvidos, associada à reflexão teórico-metodológica
e à análise rigorosa dos dados empíricos.
Também Foracchi (1965, p. 302) já apontava para a necessidade de
se pensar a juventude como um fenômeno plural, ao sinalizar que “cada
sociedade constitui o jovem à sua imagem”, bem como que uma sociedade
pode produzir diversos tipos de jovens.
Percebe-se dessa forma que, por possuir contornos extremamente
complexos e limiares tênues, é preciso sempre ter o cuidado de tratar de
juventude de forma plural. É preciso compreender que a juventude não é
uma experiência única e que, pelo contrário, possui diversas matizes que
variam de época para época, de sociedade para sociedade e, ainda, dentro
de uma mesma época e de uma mesma sociedade, variam por fatores como
gênero, etnia, classe social, etc.
A categoria juventude está fortemente atrelada às ciências sociais, uma
vez que difundida como
[...] momento de transição no ciclo de vida, da infância para a maturidade, que corresponde a um
momento específico e dramático de socialização,
em que os indivíduos processam a sua integração
e se tornam membros da sociedade, por meio da
aquisição de elementos apropriados da ‘cultura’ e da
assunção de papéis adultos (Abramo, 2007, p. 79).
Esse conceito contrasta em certa medida com o de adolescência, mais
difundido no campo da Psicologia. É preciso frisar que o conceito nativo
utilizado pelos jovens pesquisados é adolescente, ou seja, é como adolescentes
que eles se denominam, o que denota a aceitação desse conceito no meio
social. Lago (1998, p. 262) assim o descreve:
A adolescência é a etapa da vida que tem início com
as mudanças fisiológicas da puberdade – quando as
glândulas sexuais começam a produzir os hormônios
que vão desenvolver as características sexuais secun-
dárias, reforçando biologicamente a diferenciação sexual – e termina somente quando se atinge um certo
nível de maturação psicológica e social, que pressupõe a relativa independência do adulto jovem. Em
nossas sociedades, caracteriza-se como um período
de crise psicossocial, um tempo em que o jovem deve
realizar a passagem da infância para a vida adulta.
Os conceitos de juventude e adolescência são também semelhantes.
Em ambos os casos procura-se demarcar uma fase compreendida entre a
infância e a vida adulta. Além disso, ressalta-se que a noção de crise também
se faz presente tanto na ideia de juventude quanto na de adolescência.
Por fim, também se faz presente nos dois casos a questão da aquisição de
maturidade, seja psicológica ou social.
3. PEGAR, FICAR E NAMORO COMO MANIFESTAÇÕES DA
SEXUALIDADE JUVENIL
No intuito de tratar da sexualidade juvenil, torna-se imperativo
primeiramente realizar algumas considerações sobre a sexualidade. Neste
trabalho, a sexualidade será concebida como uma construção social, portanto
determinada histórica e culturalmente. Nesse sentido, considera-se, com
Vance (1995), que aquilo que é aceitável, ou seja, aquilo que é considerado
normal ou natural é variável conforme a época, o local e a cultura.
Para Foucault (1988, p. 100), a sexualidade deve ser vista como um
dispositivo histórico:
Não se deve concebê-la como uma espécie de dado
da natureza que o poder é tentado a pôr em xeque,
ou como um domínio obscuro que o saber tentaria,
pouco a pouco, desvelar. A sexualidade é o nome
que se pode dar a um dispositivo histórico: não à
realidade subterrânea que se apreende com dificuldade, mas à grande rede da superfície em que a
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estimulação dos corpos, a intensificação dos prazeres, a incitação do discurso, a formação dos conhecimentos, o reforço dos controles e das resistências,
encadeiam-se uns aos outros, segundo algumas estratégias de saber e poder.
No mesmo sentido são os dizeres de Weeks (2001), para quem a
sexualidade só pode ser compreendida num contexto histórico específico,
sendo preciso, ainda, compreender as relações de poder que interferem nos
comportamentos considerados normais ou aceitáveis. Também Louro (1997)
entende que a sexualidade é uma invenção social, constituída historicamente
e a partir de discursos reguladores sobre o sexo. Logo, segundo a autora, é
a partir dos processos culturais que é definido o que é ou não natural em
determinada sociedade e em determinada época.
Esses autores, baseados em Foucault, tratam da sexualidade como
uma construção e como circunscrita às relações de poder; conforme
afirma Giddens (1993, p. 33), “a sexualidade é uma elaboração social que
opera dentro dos campos do poder, e não simplesmente um conjunto de
estímulos biológicos que encontram ou não uma liberação direta”. Rubin
também rejeita o que chama de “essencialismo sexual” (2010, p. 10),
compreendendo que a sexualidade é histórica e socialmente construída e
não biologicamente determinada: “[i]sso não significa que as capacidades
biológicas não são pré-requisito para a sexualidade humana. Significa que a
sexualidade humana não é compreensível em termos puramente biológicos”
(Rubin, 2010, p. 11).
A esse conjunto de autores também se une Ferrand (2004), que entende
a sexualidade como aquilo que compreende as práticas sexuais físicas e
corporais, bem como as relações e interações sociais provocadas por ela.
Nesses significados, estariam inseridos as representações e os afetos, dentre
outros. Para Bozon (2009), é a sociedade que produz a sexualidade humana,
a qual, diferentemente da dos animais, não é instintiva, mas culturalmente
construída. A sexualidade é compreendida ainda como sendo relacionada
aos atos, às relações e às significações.
É também Bozon (2009) quem traz importantes elementos para
a compreensão da sexualidade juvenil. Para o sociólogo, a adolescência
consistiria num período de preparação e aprendizagem da sexualidade,
sendo que a juventude seria considerada como uma nova etapa para a qual
a passagem à sexualidade genital seria decisiva. A construção da autonomia,
que seria central na adolescência, se basearia na constituição de uma esfera
pessoal, constituída por relações que escapam às instituições familiar e
escolar: as relações com os amigos e as relações amorosas e sexuais. Numa
entrevista concedida sobre gerações e sexualidade (Bessin, 2009), Bozon
também assevera que após os anos 1980 a sexualidade juvenil passa a ter um
estatuto diferenciado, pois a vida sexual regular é tida como um estabilizador
da vida dos jovens. Por esse motivo, estaria presente uma cumplicidade dos
pais em relação à vida sexual dos filhos (Bozon, 2009), modificando as
normas de passagem à sexualidade adulta (Bozon, 2001).
3.1 Pegar e Ficar
No que se refere à prática de pegar, apenas um trabalho tratando
do tema foi encontrado: o artigo científico de Oliveira et al (2007),
publicado na Revista Brasileira de Enfermagem com o título Pegar, ficar e
namorar: representações sociais de relacionamentos entre adolescentes. Esse texto
traz os resultados de uma pesquisa realizada com 130 estudantes de duas
escolas públicas estaduais do Rio de Janeiro. De acordo com os jovens que
participaram da pesquisa, o pegar é algo geralmente associado ao beijo, ainda
que possa resultar inclusive numa relação sexual. Essa prática seria baseada,
ainda, na espontaneidade e no descompromisso.
Já sobre o ficar há diversos trabalhos. Se a noção do ficar emerge no final
dos anos 1980 (Schuch, 2002, p. 282), é principalmente na segunda metade
da década de 1990 que estão concentrados os trabalhos acadêmicos sobre o
tema. Cabe aqui citar as dissertações de mestrado de Giongo (1998) sobre
jovens estudantes de uma escola de classe média alta de Porto Alegre, e de
Schuch (1998) sobre jovens universitários da mesma localidade. Destaco
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......
ainda os artigos de Weingartner et al (1995) sobre as diferenças entre ficar e
namorar, e de Guareschi (1999) sobre ficar e relações de gênero.
Esses trabalhos não cessam nessa década e há também nos anos 2000
referências sobre o ficar. São eles a pesquisa GRAVAD, realizada em Porto
Alegre, Rio de Janeiro e Salvador (Heilborn et al., 2006) e a pesquisa de Jesus
(2005), sobre adolescentes de Aracaju. Ambas tratam do ficar e do namoro.
Há ainda o artigo científico de Justo (2005), que traz questões oriundas
da Psicologia sobre o ficar, e a dissertação de Diógenes (2007) sobre o ficar
entre adultos de Fortaleza.
Assim como no pegar, também no ficar o beijo é central (Almeida, 2006).
Para Rieth (2001), que desenvolveu uma pesquisa de doutorado em Pelotas,
no ficar há um envolvimento afetivo sem compromisso e por isso ele se torna
uma maneira de conhecer pessoas diferentes. No mesmo sentido é o trabalho
de Giongo (1998), para quem essa ausência de compromisso também faz
com que a fidelidade não seja um requisito. Esse descomprometimento
e essa efemeridade do ficar são considerados por Clair (2008) como um
divertimento, expresso na categoria “fun2”.
Heilborn et al (2006, p. 165) demonstram em sua pesquisa a difusão
dessa prática, já que 76% das mulheres e 90% dos homens declararam já
ter tido a experiência de ficar, sendo que, dentre os entrevistados de Porto
Alegre, os números eram ainda mais elevados: 88% das mulheres e 94% dos
homens revelaram já ter ficado. Nesse trabalho, o ficar é descrito como uma
“experiência, em geral não sexualizada”, que “constitui o primeiro elemento
de familiarização com a vida amorosa para os indivíduos dos dois sexos”.
Bozon e Heilborn (1996) salientam, além disso, que o ficar geralmente
ocorre num lugar público.
Nessa análise do ficar, é preciso atentar para as diferenças de gênero.
Elas estão presentes tanto no que diz respeito ao número de pessoas com
que se fica quanto no que se refere ao ato de tomar a iniciativa. Clair (2008)
assevera que, no caso das meninas, o “fun” possui limites, o que é também
corroborado por Abramovay et al (2004), que alertam para o valor positivo
2 Diversão, em inglês.
que é atribuído aos meninos que possuem uma variação de parceiras,
enquanto que para as meninas na mesma situação pode gerar a atribuição
de um valor negativo.
Por fim, um último elemento a respeito do ficar, também conexo a
essa ideia de conhecer pessoas diferentes, é relevante aqui. Trata-se da
ocorrência de práticas não-heterossexuais entre os jovens. Piloni (2010),
em seu trabalho de conclusão de curso sobre jovens alternativos em
Florianópolis, analisa festas nas quais os universitários ficam com pessoas
do mesmo sexo. Aqui, além da ideia da diversão, estaria presente também a
noção de liberação.
3.2 Namoro
Em diversos dos estudos citados, a prática do ficar aparece de forma
contrastante à do namoro. Por esse motivo, a questão da demarcação de
fronteiras entre uma prática e outra é algo constante. A dificuldade enfrentada
pelos jovens para definir seu próprio status de relacionamento (se se trata de
ficar ou namorar) é algo descrito tanto por Rieth (2001) quanto por Giongo
(1998). E isso ocorreria principalmente porque o namoro, segundo Oliveira
et al (2007), em geral decorre da continuidade e repetição do ficar com a
mesma pessoa.
Diferentemente do ficar, a relação de namoro é publicizada para família
e amigos, além da maior intensidade de sentimento dos envolvidos (Rieth,
2001; Oliveira et al, 2007; Leal, 2003). Além disso, no namoro há um elo
mais forte entre os jovens do que no ficar, estabelecendo-se uma relação
afetiva caracterizada pelo compromisso e pela durabilidade (Jesus, 2005).
O namoro é tido como uma relação séria, na qual a fidelidade seria uma
exigência (Rieth, 2001).
Por fim, outro ponto importante no que se refere ao namoro juvenil é a
manutenção de relações sexuais. Embora não obrigatórias, a sua ocorrência
se dá com frequência nessa prática (Heilborn et al, 2006), motivo pelo qual
alguns jovens a compreendem como inclusive inevitável (Rieth, 2001).
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Pegar, ficar e namoro aparecem na literatura estudada como práticas e
manifestações da sexualidade na juventude. Seriam, dessa maneira, formas
de iniciação sexual e componentes da transição entre a vida afetiva juvenil
e adulta. Nesse sentido, sua diferenciação é demarcada, mesmo que as
fronteiras entre o pegar e o ficar sejam mais tênues, e que sobre a prática
do pegar não existam muitos registros. No entanto, se no meio científico o
pegar não é muito difundido, é a partir das falas dos próprios jovens que é
possível apreender o seu sentido, diferenciando-o da prática de ficar, o que
será feito a seguir.
4. DIFERENÇAS E SEMELHANÇAS ENTRE AS NOÇÕES DE
PEGAR E FICAR
As práticas do pegar, do ficar e do namoro encontram-se, de acordo com
Oliveira et al (2007, p. 500), num “continuum que vai da liberdade absoluta
à responsabilidade formalizada”. O pegar estaria num dos extremos, o da
liberdade absoluta, enquanto que o namoro encarnaria a responsabilidade
formalizada. Para os jovens da pesquisa de Oliveira et al (2007), no pegar
há instantaneidade, ausência de compromisso e de repetição, bem como
uma predominância no interesse físico, o que em geral resulta em beijos e
não em relação sexual. O beijo, segundo Almeida (2006), ocupa um papel
central nessas relações tão efêmeras.
Nas entrevistas realizadas sobre esse tema com os estudantes do Colégio
Rose Marie Muraro, foi mencionada por praticamente todos os jovens a
existência de diferenças entre pegar e ficar. Para Thaíse (16 anos), pegar e
ficar consistem apenas de termos diferentes para designar a mesma prática,
sendo que o termo pegar seria mais utilizado por meninos. Assim, tanto pegar
quanto ficar envolveriam beijos e carícias a título de experimentação, sem
qualquer tipo de compromisso com o outro que implicasse a continuidade
da relação ou mesmo a repetição da prática em outro momento. Já para
Laura (17 anos) em ambos os casos se trata da “mesma bobagem”. A jovem
criticou essa necessidade que alguns jovens têm de pegar todo mundo ou ficar
com todo mundo.
Para os demais jovens que participaram das entrevistas, trata-se de
práticas diferentes. Sofia (17 anos) fala das diferenças entre as práticas de
pegar e ficar, descrevendo a sua ocorrência em uma festa. Para ela, pegar
alguém é beijar e “sair fora”, ou seja, nunca mais olhar para a cara da pessoa;
“pegar é só dá um peguinha bem rapidinho e era só isso”.
Embora trate apenas do ficar, Almeida (2006, p. 150) esclarece-nos
muito bem o papel que o beijo ocupa nessas relações tão efêmeras: “nos
regimes que compõem as novas semióticas afetivas em torno do ‘ficar’, o
beijo assume a condição de performance, de intransitividade, fisicalidade,
arma corporal, descarga rápida da emoção. Princípio e fim. Ubiquidade do
ato”.
Eduardo (16 anos) fala ainda de uma questão corporal envolvendo o
pegar, fato que também é evidenciado por Ana Carolina (16 anos). Logo, o
pegar não incluiria apenas o beijo: “pegar é pegar... tem todo o jogo e vai...
e... que é um lance mais quente”.
O jovem também afirma que para pegar é preciso ter pegada e que o pegar
envolve agarramentos, ou seja, carícias mais íntimas, que não estariam tão
presentes no ficar. A pegada consiste, portanto, num atributo do indivíduo.
Ela não parece ser algo que possa ser adquirido, ou seja: ou tem pegada ou
não tem.
José (16 anos) define o pegar como “aquela coisa só de uma tarde assim,
uma coisa pouca assim, sabe. Só uma coisa momentânea”. A efemeridade
dessa prática também é descrita por Ana Carolina (16 anos): “parece que
pegar é aquela coisa mais do momento, de ‘ah, tô a fim de pegar, peguei
e deu’. Pegar e largar. É uma coisa mais, sei lá, desapego total assim.3 [...]
Pegar até sugere objeto, uma coisa mais corpo, uma coisa mais de contato.”
Para ela, quando se fica com alguém em uma festa, a denominação utilizada
deve ser o pegar: “eu acho que numa festa tu vai ter pegado a pessoa... não vai
3 Esse desapego é descrito em várias comunidades do Orkut, cujo título faz um trocadilho com as palavras pegar e
apegar. É o caso de “Eu pego... mas não me apego”, comunidade destinada “a todos aqueles que gostam de uma boa
aventura sem qualquer compromisso”.
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ter ficado”. Essa efemeridade também está presente no esclarecimento que
Laura (17 anos) presta em sua entrevista: para a jovem, o termo pegar nunca
é usado no presente. Logo, os jovens sempre falariam eu peguei.
O pegar envolve, ainda, além do beijo sem qualquer compromisso, do
elemento corporal (a pegada) e do desapego, um desejo de estar com diversas
pessoas. Para Natália, o pegar é “tipo ‘ah, vou pegar todos hoje’”. A prática de
ficar sem compromisso ou de ficar com várias pessoas também é vista como
forma de diversão e, por isso, é frequentemente exemplificada pelos jovens
como algo que ocorre em uma festa. Ana Clara (17 anos) fala da prática de
pegar como sendo “aquela coisa assim mais na diversão, sabe, quando tu
tá numa festa ‘ah, vou pegar’ assim, meio sem compromisso, [...] nem tá
preocupado com o que vai acontecer depois assim, ou com o sentimento”.
Diante do que foi descrito por esses jovens, a prática do pegar parece
se encaixar muito bem no modelo de amor líquido. Se as experiências
amorosas constituem-se de “episódios intensos, curtos e impactantes”
(Bauman, 2004, p. 20), o que poderia ser mais intenso, curto e impactante
do que o pegar? Além disso, se o amor contemporâneo é visto como um
desejo a ser saciado, também isso se aplica ao pegar.
A prática do pegar também pode ser associada à “relação de bolso”
descrita por Bauman (2004). Isso porque o pegar encarna a instantaneidade e
a disponibilidade presentes nesse tipo de relação. Não há compartilhamento,
não há entrega e não há trocas. Não há paixão, sendo apenas necessário estar
a fim, o que levaria a dar uns pega. A conveniência que Bauman (2004) diz
estar presente nesse tipo de relação é personificada pela diversão descrita
pelos jovens pesquisados. Pegar é, acima de tudo, divertir-se, curtir, aproveitar,
sem envolvimento emocional e afetivo.
Para a grande maioria dos jovens participantes da pesquisa, portanto,
há diferenças significativas entre pegar e ficar. Na prática do pegar, a noção de
desapego assume extrema importância, pois aquilo que se pega com facilidade
também se larga. O ato de pegar também é fortemente associado pelos
interlocutores às festas realizadas em locais públicos, como em danceterias,
nas quais a quantidade de pessoas desconhecidas geralmente supera a de
conhecidas. É na festa que se pega, que é possível exercitar essa prática na
qual as palavras (saber o nome do outro e conversar com ele) não se fazem
necessárias.
Essa instantaneidade também permite que, numa mesma situação – a
da festa, por exemplo – eles peguem várias pessoas, contabilizando, inclusive,
recordes que são compartilhados posteriormente com os amigos. Pedro
(17 anos) afirma que “pegar é tipo ‘quantas tu pegou?’ Peguei três, peguei
dez”. Extremamente associada à diversão e à ausência de compromisso, a
prática do pegar caracteriza também pela sua não continuidade, ou seja, pela
não repetição: não se pega várias vezes a mesma pessoa. Quando se trata da
mesma pessoa, aquela que o jovem já conhece, a relação adquire um outro
status: o de ficar. Pedro (17 anos) informa que “ficar é mais tipo tá ficando”
e que se fica com alguém que já se pegou antes.
No que tange à instantaneidade, é interessante notar que os jovens,
quando pegam a mesma pessoa a festa inteira, ou seja, quando permanecem
durante toda a festa com a mesma pessoa, afirmam que casaram na festa. Esse
termo foi utilizado tanto por Pedro (17 anos), quanto por Natasha (16 anos).
Pedro (17 anos) esclarece que prefere ficar com meninas que ele já conhece
(por isso utiliza o termo ficar, e não pegar), mas que não necessariamente casa
com elas nas festas. Ele esclarece que nesses casos conversa um pouco com a
menina, fica com ela, mas depois vai “dar uma volta” com os amigos e, num
outro momento, eles podem se encontrar novamente na mesma festa. Logo,
o termo casar, utilizado nas festas, pode ser aplicado tanto a conhecidos
quanto a desconhecidos, mas se dá com quem se fica e não com quem se
pega, já que se trata de uma relação mais duradoura. A ideia de curtir a festa
com os amigos é apontada tanto por Pedro (17 anos) quanto por Natasha
(16 anos) como um empecilho a esse casar. Natasha (16 anos) inclusive
afirma que, quando saía com as amigas para curtir, elas faziam uma espécie
de pacto entre elas, o de que nenhuma delas casaria na festa.
As características do amor líquido elencadas também estão presentes
na prática do ficar, embora a instantaneidade e o desapego não sejam tão
extremos. Também a duração da relação pode se estender, não sendo restrito
apenas a alguns pega, a um ou alguns beijos e a carícias de apenas alguns
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minutos. Rieth (2001) define o ficar como uma “forma descomprometida de
envolvimento afetivo, ou como uma forma comum e prática de conhecer
outras pessoas” (2002, p. 90).
Esse descomprometimento que é associado frequentemente pelos
jovens à diversão está presente na prática. Ao tratar da experiência amorosa
entre jovens da periferia de Paris, Clair (2008) apresenta a categoria “fun”,
ou seja, diversão. Para a autora, as relações de diversão são necessariamente
efêmeras, já que a diversão só seria possível quando se escapa de relações
longas e da gestão e dos aborrecimentos que estão presentes em relações
mais sérias.
Como já foi afirmado anteriormente, há muito mais referências de
pesquisas sobre o ficar. Para Bozon e Heilborn (1996), o ficar contrasta
fortemente com o namoro e consiste num relacionamento que ocorre
geralmente num lugar público, envolvendo normalmente beijos e
carícias, sem que isso implique comprometimento entre os envolvidos.
Outra característica importante do ficar seria a de prescindir de contato
verbal. Os jovens de Aracaju associam ficar a “beijar sem compromisso”,
“relacionamento momentâneo” e “conhecer alguém” (Jesus, 2005, p. 70).
A caracterização de Justo (2005, p. 71) vai no mesmo sentido:
Embora a palavra “ficar” tenha o sentido genérico
de parada e permanência, sugerindo uma certa fixação em algum lugar, seu uso pelos adolescentes,
ao contrário, designa um relacionamento episódico
e ocasional, na maioria das vezes com a duração de
apenas algumas horas ao longo de uma noitada de
festa e diversão. A prática mais comum envolve beijos, abraços e carinhos. Outra característica importante é que o “ficar” não implica compromissos futuros e é visto como um relacionamento passageiro,
fortuito, superficial, sem maiores consequências ou
envolvimentos profundos.
Em relação à comparação com o namoro, é possível afirmar que o
ficar não possui nem as formalidades e nem a visibilidade social presentes
no primeiro tipo de relacionamento, encontrando-se “em uma região
definitória mediana entre a liberdade e a responsabilidade” (Oliveira et al,
2007, p. 500-501). Para Giongo (1998), o compromisso e a fidelidade não
estão presentes no ficar mesmo quando se está ficando, ou seja, ainda que esse
ficar não esteja restrito à troca de alguns beijos em uma festa.
José (16 anos) fala na divisão existente entre pegar e ficar em categorias.
Ele afirma que ficar seria “uma coisa que vai dar... que pode desencadear
um namoro”. Ficar possui, segundo o jovem, um compromisso que não está
presente na prática de pegar. Ele ainda esclarece: “se tu conhece a pessoa,
tu já tem tipo uma intimidade com a pessoa, e na festa tu pegou ela... eu
considero ficar”, fato que é também corroborado por Natália, para quem o
ficar envolve alguém que já se conhece anteriormente. Pedro (17 anos) diz
que, nesse caso, não se utiliza o termo pegar porque ele é “meio chulo”. Esse
maior comprometimento existente na prática do ficar também aparece na
fala de Laura (17 anos).
Para Ana Clara (17 anos), além do conhecimento prévio da pessoa, há
uma continuidade na prática de ficar que não está presente na de pegar:
acho que é mais aquela coisa que já vinha de antes,
já tinha meio que combinado... meio que conversado por MSN, alguma coisa assim. Daí tu fica com
a pessoa, daí no outro dia tu vai lá, fica com ela de
novo assim. É uma coisa mais contínua, sabe... que
vai além do que só uma noite.
As falas dos jovens pesquisados contrariam, portanto, as noções de
“desinvestimento” e de ausência de escolha no ficar, descritas por Giongo
(1998, p. 146-147). Para a psicóloga, além da efemeridade, da ausência de
compromisso e da necessidade de fidelidade do ficar, haveria também um
“desinvestimento” na pessoa com quem os jovens ficam: “o outro é tratado
como objeto descartável, como ‘coisa’, passível de ser escolhida entre outras,
ou para ser ‘largada fora’”. Ela também fala que não haveria uma escolha em
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relação à pessoa com quem os jovens ficam e que ficar com qualquer pessoa
consiste numa possibilidade: “não importa com quem se fique, desde que
se possa ficar”.
Essa combinação prévia, esse conhecimento anterior da pessoa com
quem os jovens ficam revelam um investimento e uma escolha prévia.
Portanto, a fala de Giongo, a partir do que é dito pelos jovens, poderia ser
aplicada à prática do pegar, mas não à do ficar. Natália diz que o termo ficar é
mais utilizado por ela “quando é gente conhecida assim, quando... não que
tu vá ficar várias vezes, sabe? Mas é uma pessoa, é mais próxima de ti”. A
jovem também afirma que o ficar não está ligado à consideração que se tem
em relação à pessoa com que se fica, mas com o conhecimento prévio: “por
ela ser uma pessoa conhecida daí tu sabe mais ou menos o que tu vai fazer,
sabe? Tu não vai, não é uma coisa... sei lá, totalmente desprogramada”.
No entanto, é preciso corroborar as palavras de Giongo (1998, p. 147)
quando diz que “o ficar é uma relação que não possui início, meio e fim”,
embora discorde de que ele “não permite vínculo, ou troca”, já que isso
também seria mais aplicável ao pegar, em virtude do maior envolvimento
presente no ficar. Além disso, Giongo (1998, p. 148) tem razão quando
afirma que “gostar, no ficar, não é necessário”. Basta, como foi dito no início
do capítulo, estar a fim. No entanto, o ficar também está associado ao que se
sente em relação à pessoa com quem se fica. Para Ana Carolina (16 anos), há
uma diferença de intensidade entre o pegar e o ficar: “esse negócio de pegar e
ficar pode ser considerado muito como intensidade. Talvez pegar tenha uma
intensidade menor, do que se diz... de sentimento, de sentir [...] intensidade
menor, e o ficar é uma intensidade maior. Isso só sentindo pra tu saber a
diferença”.
Sofia (17 anos) diz que o ficar tem uma duração maior, já que se
estende por mais tempo; geralmente durante toda a festa. Ainda que exista
um compromisso maior envolvendo a prática do ficar, Sofia alerta-me de que
tanto pegar quanto ficar podem estar restritos a apenas uma festa. Ou seja,
ficar é apenas ficar naquele momento. Se o relacionamento se estende, podese dizer que o casal está ficando, que pode evoluir para o ficar sério, quando já
pode existir um compromisso de fidelidade, e para um namoro, desde que
exista um acordo entre o casal de que eles estão namorando, ou desde que
exista um pedido de namoro.
É interessante notar a diferença existente entre o descrito por Sofia (17
anos) sobre o início do namoro e a análise de Azevedo (1986, p. 9) sobre o
namoro no Brasil de meados do século XX. Segundo o antropólogo,
o namoro costumava passar por duas ou três fases
[...]: a da troca dos primeiros e furtivos sinais de interesse recíproco e da exploração das possibilidades
de aproximação e de comunicação interpessoal direta e próxima, a da associação deliberada ou namoro
em sentido exato e a do compromisso preliminar ao
noivado formal.
Embora os jovens pesquisados também façam uma associação entre
as práticas de pegar, ficar, namorar e casar, colocando-as, às vezes, como
diferentes etapas de uma relação afetiva, pode-se dizer que essa “troca
dos primeiros e furtivos sinais de interesse recíproco” e “a exploração
das possibilidades de aproximação e de comunicação interpessoal direta e
próxima” sequer são mencionadas como uma prática afetiva em si. Elas são
tidas, na realidade, como demonstrações do estar a fim e como formas de
aproximação. Além disso, a duração dessa etapa prévia ao pegar e ao ficar é
bastante restrita e muitas vezes ela pode nem ocorrer.
É preciso salientar ainda que o pedido de namoro ao qual Sofia (17
anos) se referiu na entrevista provavelmente muito pouco se assemelha ao
“compromisso” do qual fala Azevedo (1986). Em primeiro lugar, porque
quem pede em namoro não é necessariamente o menino e porque esse
pedido também está muito mais próximo do acordo sobre o namoro que
a mesma jovem descreve. O início do namoro se dá apenas após a etapa do
ficar e a etapa do ficar sério, o que significa que os sujeitos envolvidos já se
conhecem e, no mínimo, já trocaram diversas vezes beijos e carícias, ou
mesmo mantiveram relações sexuais.
Para ficar ou pegar, segundo Sofia (17 anos), é preciso que ocorra beijo
de língua:
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o ficar, por exemplo, tu pode transar com um guri
que tu não ficou com ele ... entendeu? Mas ficar ...
é, tem que beijar de língua. Não adianta nem selinho. Tipo, tu pode dar pro guri que tu não ficou
com ele. Ao meu ver é isso, tipo ... se tu dá um selinho tu não ficou, foi só um selinho. Se tu deu, tu
não ficou, tu só deu.
Ana Carolina (16 anos) diz que “o ficar, envolve talvez uma vontade
maior das duas pessoas, não é só... aquela coisa mais corporal, já pegar.
[...] o ficar eu acho que é menos... não tanto quanto só corporal”. Para
a jovem, o ficar seria um segundo momento do relacionamento, que viria
depois do pegar: “eu acho que o ficar é... pode ser evolução, tipo tu pegou
a pessoa e depois tu pode vir a ficar com ela. Eu acho que... o segundo
passo”. Também para Ana Clara (17 anos) o pegar pode se transformar num
ficar: “pode acontecer claro, a gente pode se apegar àquela pessoa, curtir, ter
ficado e tal, acho que pode acontecer, normal”.
Embora também centralizado na figura do beijo e ainda caracterizado
pela instantaneidade, o ficar apresenta alguns aspectos diferenciais em
relação ao pegar. Em primeiro lugar, para ficar, não é preciso antes pegar.
O ficar é caracterizado pelos jovens principalmente por três características:
o conhecimento prévio da pessoa com quem se fica, um sentimento mais
intenso envolvido (ainda que o estar a fim seja suficiente para ficar, o desapego
não está tão presente aqui) e uma maior duração em relação ao pegar, ainda
que o ficar também possa durar apenas uma festa. Nesse caso, quem pega
o faz apenas por um momento e quem fica o faz por toda ou quase toda a
festa. Essa maior duração do ficar pode gerar inclusive outras duas situações,
a de estar ficando e a de ficar sério, quando pode estar presente inclusive um
compromisso de fidelidade, à semelhança da relação de namoro. Nota-se,
portanto, que pegar e ficar podem estar situados no extremo da linha de
evolução dos relacionamentos afetivos, na qual estariam ainda presentes o
namoro e a conjugalidade.
5. CONCLUSÃO
Se “compreender a juventude atual é desvendar o mundo de hoje”
(Novaes, 2007, p. 253), também as práticas afetivas desses jovens auxiliam na
compreensão da sexualidade, do amor e da conjugalidade contemporâneos.
Afinal, os jovens pegam e não se apegam ou são para casar? Acredito que eles
pegam e não se apegam, pegam e se apegam, ficam e namoram. Se, para a
geração dos anos 1990, o ficar se apresentou como uma prática revolucionária,
a noção de pegar demonstra que o ficar pode adquirir dimensões ainda mais
fluidas e instáveis. Pegar é pegar e largar, é não ter apego. Os jovens pegam
sobretudo desconhecidos em festas, sem perguntar o nome. É o beijo que
sela essa prática, acrescido ou não de outras carícias. No entanto, não se
pode pegar durante muito tempo e o ideal é pegar mais de uma pessoa na
mesma festa, às vezes até algumas pessoas ou mesmo dezenas delas.
Já o ficar seria para o pegar o que o namoro já foi para o ficar. Ficar envolve
um conhecimento prévio do outro e também um sentimento: o de estar a
fim. Fica-se com quem já se conhece (colega, amigo etc.), fica-se com quem
se tem uma certa consideração, fica-se com a pessoa de quem se está a fim.
Ficar seria, portanto, pegar e se apegar. Não há tanta fluidez, não há tanta
descartabilidade, não há tanto desapego quanto no pegar.
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Capítulo 10
EDUCAÇÃO PARA A SEXUALIDADE,
EQUIDADE DE GÊNERO E DIVERSIDADE
SEXUAL: APONTAMENTOS PARA
FORMAÇÃO DE PROFESSORES(AS) DA
EDUCAÇÃO BÁSICA
Alessandra Maria Bohm
1. PALAVRAS INICIAIS
O presente texto tem por objetivo contribuir para o desenvolvimento
de habilidades e competências para que professores(as) da educação básica
possam atuar em sala de aula, inserindo nos currículos escolares as temáticas
de educação para sexualidade, relações de gênero e diversidade sexual.
As instituições escolares são fértil terreno para exercitar a cidadania e a
Educação em Direitos Humanos, muito embora se reconheça que no Brasil
contemporâneo ainda persistam inúmeras situações ilustrativas da violação
dos mesmos. Seguindo o argumento de Melissa Pimenta (2015), a violação
dos direitos implica a “desumanização e coisificação do outro”, que, embora
seja também um ser humano, nunca é visto como tal.
Saber ser e saber conviver com as diversidades e as diferenças são os
grandes desafios de educadores que apostam na importância da prática
educativa enquanto instrumento para a formação das futuras gerações.
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Gerações essas que compreendam o significado de cidadania e direitos
humanos para além de um entendimento imediato, que não contempla, de
fato, seus significados.
O texto propõe problematizar a importância da Educação em Direitos
Humanos e Cidadania a partir da educação para as relações de gênero,
sexualidade e diversidade sexual. Tais iniciativas se constituem como um
esboço que aponta algumas das temáticas necessárias e que possibilitam
rabiscar rotas provisórias para o desenvolvimento do texto.
A construção de um currículo que valorize o indivíduo e o coletivo
deve articular e problematizar a representação de diferentes marcadores
identitários, entre eles raça/etnia, gênero, classe social, sexualidade,
geracionalidade e diferenças físicas e cognitivas, contribuindo assim para
o respeito e valorização da multiplicidade de sujeitos que compõem nossa
sociedade. Através da implementação de projetos didáticos, se faz possível
o desenvolvimento de práticas educativas significativas e que objetivam uma
formação integral do sujeito, vinculando a aprendizagem dos conhecimentos
escolares à capacitação das habilidades afetivas e sociais. Para tal, a
capacitação continuada de professores é um dos elementos centrais para
que sejam possíveis práticas de Educação para os Direitos Humanos e para
o exercício da cidadania.
Antes de qualquer coisa, é necessário sensibilizar os docentes para que
estes identifiquem a necessidade de comprometimento com a Educação em
Direitos Humanos e Cidadania, pois só assim será possível a elaboração de
um trabalho educativo que contemple tais temáticas. Admite-se que, como
nas discussões de raça e etnia (Rocha, 2009), as temáticas indicadas neste
texto, na maioria das vezes, passam pela fase da invisibilidade e da negação
(ilustrativas em frases como “isso não é competência da escola, além disso,
esse tipo de problema não existe aqui”), para chegar à necessária etapa do
reconhecimento e do avanço.
2. A IMPORTÂNCIA DAS INSTITUIÇÕES ESCOLARES NA
CONSTRUÇÃO DE APRENDIZAGENS ATITUDINAIS
Os(as) pesquisadores educacionais estão apenas começando a compreender que a escolarização produz
não apenas formas de conhecimento e relações particulares de desigualdade, ao longo de divisores de
raça e de gênero, mas, imediatamente, produz e organiza, de forma coincidente, as identidades raciais,
culturais e generificadas dos(as) estudantes.
O que essa coisa chamada amor? (Britzman, 1996,
p. 72).
A partir da assertiva de que as instituições educacionais ocupam
lugar central na formação de valores e de construção de referenciais de
inter-relações humanas é possível argumentar que é fundamental a busca
intermitente de valorização e qualificação dos profissionais que ali atuam,
além da instituição de currículos e práticas educativas que visem a uma
educação para além dos conhecimentos disciplinares. Nesse sentido:
A capacidade de uma pessoa para se relacionar depende das experiências que vive, e as instituições
educacionais são um dos lugares preferenciais, nesta
época, para estabelecer vínculos e relações que condicionam e definem as próprias concepções pessoais
sobre si mesmo e sobre os demais (Zabala, 1998,
p. 28).
Valores éticos e que desenvolvam valores de justiça e cultura da paz
devem abarcar todas as práticas educacionais através de debates e discussões,
vivências que instiguem a importância da valorização dos direitos humanos
desde a educação infantil. Solidariedade, empatia, apreço às diferenças,
respeito a si e aos outros são conhecimentos atitudinais que merecem
destaque e que, se inseridos nos diferentes níveis de ensino, possibilitam a
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construção de futuras gerações mais preocupadas com a coletividade e com
a formação de uma sociedade mais justa e solidária e menos desigual.
Em se tratando da Educação em Direitos Humanos
(EDH) esta compreende todo o processo educativo,
indo além da aprendizagem cognitiva, considerando
o aspecto social e emocional do desenvolvimento humano, de forma que as dimensões da ética, da justiça, dos direitos humanos como um todo devem estar
presentes neste processo. Portanto, a educação consiste em um instrumento indispensável para o fortalecimento da cidadania (Santos et al., 2010, p. 4).
Os currículos educacionais ocupam nesse cenário uma importância
central que define os saberes e conhecimentos que serão ou não
desenvolvidos e valorizados dentro de um determinado modelo de sociedade.
É recorrente a seleção de conhecimentos conceituais e procedimentais que
visam à transmissão de conteúdos fragmentados, pontuais e desconectados
da realidade na qual os sujeitos estão inseridos. Dentro dessa lógica, a
fragmentação de matérias escolares e a falta de interdisciplinaridade atuam
como um modelo de educação tradicional, desconsiderando as necessidades
cognitivas e intelectuais que constituem os seres humanos. Tais práticas
dificultam o entendimento e a assimilação dos saberes, já que muitas vezes
não existe um fio condutor que facilite a compreensão sequencial dos
aprendizados. Da mesma forma, as disciplinas são organizadas de forma
descontextualizada e em raras situações é possível acompanhar quais
conhecimentos não foram construídos para serem retomados na etapa
seguinte, o que sugere o estabelecimento de lacunas de construção de
saberes que geralmente não atendem à demanda do aluno fora dos muros
escolares.
O currículo é sempre o resultado de uma seleção:
de um universo mais amplo de conhecimentos e saberes seleciona-se a parte que vai construir, precisamente o currículo. [...] na medida em que as teorias
de currículo deduzem o tipo de conhecimento considerado importante justamente a partir de que descrições sobre o tipo de pessoa que elas consideram
ideal. Qual é o tipo de ser humano desejável para um
tipo de sociedade? (Silva, 2000, p. 15).
Cabe problematizar: dentro de uma hierarquia de seleção de saberes que
são valorizados ou não nos currículos escolares, quais valorizam a construção
de valores éticos e voltados à educação para os direitos humanos? Quais
conhecimentos de ser e saber conviver estão imersos nas pautas curriculares?
As aprendizagens desenvolvidas contemplam e valorizam a construção de
uma sociedade mais humanitária, igualitária e solidária? Existem práticas
educativas que ensinam sobre a educação para sexualidade, para a equidade
entre os gêneros e para o respeito às diversidades sexuais?
Se admitirmos que a escola não apenas transmite
conhecimentos, nem mesmo apenas os produz, mas
que ela também fabrica sujeitos, produz identidades
étnicas, de gênero, de classe; se reconhecermos que
essas identidades estão sendo produzidas através de
relações de desigualdade; se admitirmos que a escola
está intrinsecamente comprometida com a manutenção de uma sociedade dividida e que faz isso cotidianamente, com nossa participação ou omissão; se
acreditarmos que a prática escolar é historicamente
contingente e que é uma prática política, isto é, que
se transforma e pode ser subvertida; e, por fim, se
não nos sentimos conformes com essas divisões sociais, então, certamente, encontrarmos justificativas
não apenas para observar, mas especialmente, para
tentar interferir na continuidade dessas desigualdades (Louro, 1997, p. 85).
Por meio de uma proposta de formação continuada de professores,
é possível qualificar o processo de ensino-aprendizagem através da
sensibilização e qualificação docente para que os(as) professores(as) estejam
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capacitados(as) a inserir tais temáticas enquanto elementos transversais na
interação escolar. Trata-se ainda de uma proposta baseada em experiências
em formação de professores(as) e revisão teórica norteada em referenciais
teóricos e metodológicos voltados à educação para a sexualidade e igualdade
de gênero.
3. EDUCAÇÃO PARA A SEXUALIDADE: PRESSUPOSTOS PARA
A FORMAÇÃO DE PROFESSORES(AS)
Uma das premissas necessárias para o desenvolvimento da educação
para a sexualidade na escola diz respeito à desconstrução de verdades
absolutas e de paradigmas (hetero) normativos relativos à sexualidade e às
relações de gênero e da compreensão do caráter sócio-histórico-cultural.
Isso corrobora com a ideia de que a construção de saberes biológicos
sobre o funcionamento corporal, as doenças sexualmente transmissíveis e
os contraceptivos são apenas fragmentos da pluralidade de temáticas que
envolvem a educação para a sexualidade.
Deborah Britzman (1996), ao problematizar as formas pelas quais a
sexualidade é representada nas instituições escolares, constrói concepções
disciplinadoras e hegemônicas e argumenta que é:
Precisamente um dos locais onde a heterossexualidade é normalizada. Quando chega a ser tratado, o
conhecimento de sala de aula sobre sexualidade é
tipicamente sinônimo de reprodução heterossexual,
embora até mesmo esse conhecimento seja banalizado (Britzman, 1996, p.78).
Jimena Furlani (2003) atenta para a importância da construção de uma
proposta continuada de educação para a sexualidade nos espaços escolares,
argumentando que:
Quando falo em Educação sexual não me refiro a
atividades pontuais e descontínuas. [...] Insisto que
deve se caracterizar pela continuidade. Uma continuidade baseada em princípios claros de um processo permanente – porque o bombardeamento
midiático de informações recebidas por crianças e
jovens é permanente... porque as situações de exclusão social, decorrentes de sexismo e da homofobia,
são constantes (Furlani, 2003, p. 68).
Em outra abordagem, as pedagogias feministas dão subsídio à educação
da sexualidade na medida em que promovem a reflexão e rompem com as
hierarquias hegemônicas que estão inseridas no cotidiano escolar:
Pensada como um novo modelo pedagógico construído para subverter a posição desigual e subordinada das mulheres no espaço escolar, a pedagogia
feminista vai propor um conjunto de estratégias,
procedimentos e disposições que devem romper
com as relações hierárquicas presentes nas salas de
aula tradicionais (Louro, 1997, p. 113).
Organizo a seguir as temáticas necessárias em seis subtítulos, ainda que
outros tantos elementos derivados destas temáticas possam fazer parte da
proposta:
3.1 Desconstrução de Representações Sexistas em Busca da
Equidade no Exercício dos Papéis de Gênero: Mídias
Desconstruir representações sexistas como os papéis de gênero
estereotipados (as brincadeiras, as tarefas domésticas, as profissões, etc.)
contribui para promoção de relações igualitárias.
É importante questionar os padrões de beleza hegemônicos e estimular
a construção de autoimagem positiva, além de problematizar a representação
estética hegemônica apresentada por diferentes artefatos culturais e
midiáticos (revistas, filmes, televisão, livros infantis, desenhos animados,
etc.). Argumentar favoravelmente frente às diferenças (peso, raça/etnia,
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idade, aparência) e reconhecer que existem imposições de modelos de beleza
que são cotidianamente apresentados pelos diferentes artefatos culturais são
também essenciais para a desconstrução desses padrões. Valorizar a própria
estética corporal para a construção da imagem positiva de si mesmo(a) e
respeitar as diferenças físicas e estéticas das demais pessoas se inserem nesse
mesmo contexto.
Sobre o papel da mídia e dos artefatos culturais:
Quanto aos contos e fábula que permearam nossa
infância, sendo um dos recursos para elaborarmos
nossa psique na representação do feminino/masculino, há algumas metáforas em comum: a mulher é
sempre frágil, insegura e insuficiente, sempre à espera do herói travestido em príncipe, caçador, cavaleiro... portadores de instrumentos falocráticos (espadas, lanças, fuzis) e detentores de beijos mágicos,
ressuscitadores (Teixeira; Alcântara, 2010, p. 15).
3.2 Questões Biológicas, Conhecimento do Próprio Corpo E do(a)
Outro(a), Exercício Saudável da Sexualidade, Prevenção de DSTS/
AIDS e Uso de Preservativos e Contraceptivos
É importante conhecer o próprio corpo, o corpo do outro e
desenvolver consciência corporal no que tange à questão biológica/orgânica:
aparelhos sexuais e reprodutores, menstruação, gravidez etc. e debater
sobre o exercício responsável da sexualidade, incluindo o conhecimento de
preservativos e contraceptivos e a prevenção às DSTs, incluindo HIV/AIDS.
3.3 Respeito às Diversidades Sexuais e de Gênero
É fundamental o conhecimento e a construção de práticas de respeito
às diversidades identitárias e sexuais através da problematização de noções
preconceituosas e estereotipadas que muitas vezes fazem parte da dinâmica
escolar. Silva (2004), ao argumentar sobre como os diferentes discursos
escolares naturalizam e reiteram a heterossexualidade como o referencial
dominante da sexualidade, diz que “[a]s identidades homossexuais são
representadas como sujas, imorais, nojentas, aberrações, desviantes,
ilegítimas, e em expressões simpáticas ou politicamente corretas como
alternativas” (Silva, 2004, p. 89).
Capacitar professores(as) para que possam educar para a diversidade
significa fornecer subsídios de apropriação e conhecimento sobre as tantas
variações existentes das formas de vivências de afetividade e sexualidade.
Portanto, conceituar e diferenciar as articulações e rupturas relativas aos
conceitos de gênero, orientação sexual, sexo biológico e identidade de
gênero é premissa básica para o reconhecimento de elementos relativos à
expressão da sexualidade humana, possibilitando uma educação que exercite
o convívio pacífico e respeitoso às multiplicidades identitárias de gênero e
de orientações sexuais nos espaços escolares e na sociedade.
3.4 Prevenção de Abuso e Exploração Sexual e Uso Responsável de
Mídias Eletrônicas
Abordar temáticas que envolvam a construção de uma cultura preventiva
com relação ao reconhecimento e prevenção de violência de gênero, do
abuso sexual e da exploração sexual é fundamental, além de argumentar
sobre o uso responsável das mídias eletrônicas para a prevenção de crimes
sexuais e fornecer informações para reconhecê-los e saber proteger a
própria intimidade.
3.5 Incentivo à Criação de Projeto de Vida e ao Desenvolvimento de
Subsídios para o Exercício Planejado de Possível Maternidade e/ou
Paternidade
Um currículo preocupado com as formas pelas quais os(as) alunos(as)
construirão e executarão o planejamento de vida deve incluir subsídios para
discussões acerca da importância dos projetos de vida enquanto elementos
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que possibilitarão projetar um esboço de um mapa do caminho que deseja
percorrer. Isso ajuda os(as) alunos(as) a exercitar a construção de um
projeto para a própria vida, especialmente relativo aos aspectos afetivos e de
constituição familiar.
3.6 Reconhecimento e Valorização de Diferentes Configurações
Familiares
Compreender que existem diferentes configurações familiares,
inclusive não heteronormativas, e argumentar para o respeito à diversidade
são posturas essenciais para reconhecê-las e valorizá-las. As diferentes
configurações incluem, por exemplo, casais homoafetivos que adotam
crianças e adolescentes, tios e tias que criam os sobrinhos devido a uma
reorganização na relação dos pais, mães que criam sozinhas seus filhos (sem
a ajuda e o convívio do pai), filhos LGBTTs.
4. CONSIDERAÇÕES FINAIS
O caminho à educação da sexualidade, equidade de gênero e respeito
às diversidades sexuais passa pela desconstrução de concepções que foram
concebidas ao longo da trajetória pessoal de cada indivíduo, através do que
foi ensinado pela família, escola, religiões, artefatos culturais e todos os
demais dispositivos que formam a subjetividade e resultam em atitudes e
comportamentos pessoais e coletivos.
A partir da inserção transversal de conhecimentos sobre o próprio
corpo, das relações de gênero e das derivas que constituem a sexualidade
humana, torna-se possível o planejamento e a qualificação das relações
afetivas, sexuais e sociais que constituirão a vida dos jovens em formação.
O fortalecimento da estima e a oferta de subsídios colaboram para que
desfrutem dos próprios prazeres com responsabilidade
Não existem “receitas prontas”. É necessário experimentar, arriscar,
criar. A proposição de debates e discussões pode (e deve) envolver as
famílias e elucidar muitas dúvidas. O uso de dinâmicas, jogos, vídeos e
livros paradidáticos é necessário e poderá complementar as atividades
desenvolvidas em sala de aula.
Educar para a cidadania e para o exercício e respeito aos direitos
humanos requer conhecimento e reconhecimento da relevância da formação
de valores que refletem as práticas sociais das futuras gerações.
5. REFERÊNCIAS
BRASIL. Secretaria de Educação Fundamental. Parâmetros Curriculares Nacionais: pluralidade cultural, orientação sexual. Brasília: MEC/SEF, 1997. Disponível em: <http://portal.mec.gov.br/
seb/arquivos/pdf/livro101.pdf>. Acesso em: 26 set. 2015.
BRITZMAN Deborah P. O que é essa coisa chamada amor: identidade sexual, educação e currículo. Educação e Realidade, Porto Alegre, v. 21, n.1, p. 71-96. jan./jun. 1995.
FURLANI, Jimena. Educação sexual na sala de aula: relações de gênero, orientação sexual e igualdade étnico-racial numa proposta de respeito às diferenças. Belo Horizonte: Autêntica, 2011.
LOURO, Guacira Lopes. Gênero, sexualidade e educação: Uma perspectiva pós-estruturalista. Petrópolis: Vozes, 1997.
PIMENTA, Melissa de Matos. Cidadania e Direitos Humanos. In MEIRELLES, Mauro, RAIZER, Leandro, MOCELIN. Cidadania e Direitos Humanos. Porto Alegre: LAVIECS/CirKula,
2015.
ROCHA, Rosa Margarida de Carvalho. Pedagogia da diferença. A tradição oral africana como
subsídio para a prática pedagógica brasileira. Belo Horizonte: Nandyala, 2009.
SANTOS, Angela M. et al. Orientações Curriculares para Educação em Direitos Humanos, Gênero e
Diversidade Sexual. Secretaria de Estado de Educação. Mato Grosso. 2010.
SERRÃO, Margarida. Aprendendo a ser e a conviver. São Paulo: FTD, 1999.
SILVA, Rosimeri Aquino da. O ponto fora da curva. In: MEYER, Dagmar Estermann; SOARES,
Rosângela de Fátima Rodrigues (Orgs.). Corpo, gênero e sexualidade. Porto Alegre: Mediação,
2004. cap. 6, p. 85-94.
___. Notas sobre o sexo da educação. In: PENALVO, Claudia; BERNARDES, Gustavo (Orgs.).
Tá difícil falar sobre sexualidade na escola? Porto Alegre: SOMOS, 2009. p. 18-25.
SILVA, Tomaz Tadeu da. Teorias de identidade: uma introdução às teorias do currículo. Belo Horizonte: Autêntica, 2000.
ZABALA, Antoni. A prática educativa: como ensinar. Porto Alegre: Artmed, 1998.
173
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Capítulo 11
EDUCAÇÃO A DISTÂNCIA: UMA
FERRAMENTA POSSÍVEL DE INCLUSÃO
E REINSERÇÃO DE LGBTS AO ESPAÇO
EDUCACIONAL
Amilton Gustavo da Silva Passos
“Hoje decidi fazer algo de diferente. Decidi ficar na minha casa, na
minha piscina, bebendo meus bons ‘drink’, na Europa, Espanha, e dividindo
com vocês esses momentos meus”. Essas são as primeiras frases de um vídeo
que ficou muito conhecido no Brasil no ano de 20101. A situação dizia
respeito a uma travesti banhando-se em uma piscina em uma mansão na
Espanha. O vídeo, tornado público inicialmente pela rede social YouTube,
foi a origem de um jargão utilizado até hoje: “Se isso é estar em uma pior...
P*rra! O que quer dizer estar bem?”.
Quando nos colocamos a pensar sobre o que é ser homem e/ou o que
é ser mulher em nossa sociedade e em nosso tempo elencamos uma série de
características disponíveis para nós e montamos uma imagem mental dessa
figura generificada. Esses parâmetros, que geralmente, estão fundamentados
em matrizes normativas de corpo, gênero e sexualidade recaem sobre a
existência LGBT. Partimos de parâmetros culturais presentes nas formas
com que a linguagem se refere a essas pessoas, bem como na maneira que
1 Vídeo disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=ikzC29rV75A>. Acesso em: 16 nov. 2015.
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essas pessoas se tornam visíveis para nós em um dado momento histórico.
Talvez o vídeo citado seja um bom exemplo. Nesse caso, a travesti que
protagoniza o vídeo foi capturada por uma visibilidade caricata, um retrato
de si inclinado para a comédia. O massivo compartilhamento desse vídeo
certamente corroborou para a vinculação da identidade travesti à condição
de caricatura; algo que devemos achar engraçado, uma pessoa que não
devemos levar a sério.
Certamente as travestis se tornam visíveis na nossa sociedade de
uma série de outras formas, como por exemplo a vinculação à pobreza,
à prostituição, à criminalidade, à condição de não-humanidade. Incidem
sobre gays, por sua vez, vinculações com a promiscuidade, transmissão
de HIV, conduta amoral. Enfim, cada letra da sigla LGBT é alvo de uma
série de construções históricas reiteradas atualmente sobre sua existência.
Tais vinculações têm efeito sobre a trajetória de vida dessas pessoas. Ser
identificado como LGBT pode carregar consigo um altíssimo grau de
vulnerabilidade. Essa população carrega nas suas histórias de vida e nos
seus corpos duras experiências de violência psicológica, simbólica e, por
vezes, física. Para entender melhor como a identidade LGBT pode conferir
uma situação de vulnerabilidade, é importante conhecer alguns conceitos
relacionados ao gênero e à sexualidade e como eles se relacionam.
Sexo e gênero são conceitos que acompanham os estudos feministas
desde muito tempo; entretanto, a forma como entendemos cada um desses
parâmetros e a maneira como eles se relacionam e nos tornam sujeitos dessa
relação têm sido tema de fortes debates, atualizações, novas abordagens,
divergências e convergências. Aproximo meus olhares para as relações
de gênero através da perspectiva cunhada pela filósofa americana Judith
Butler (2003). Segundo a autora, retomando em primeiro momento os
pensamentos de Luce Irigaray e Monique Wittig, gênero é um ato, uma série
de práticas cotidianas respaldadas pelos parâmetros normativos produzidos
pelas matrizes estabilizadoras do sexo biológico. Em outras palavras, o
gênero é performativo, e seus efeitos são produzidos no momento em que
ele é praticado. O que compreendemos como o que é “ser mulher”, por
exemplo, se torna visível na prática cotidiana dos elementos atribuídos ao
feminino em determinada cultura e tempo.
Butler alerta também para como os binarismos biológicos atuam
como produtores dos parâmetros de gênero. Historicamente, as teóricas
feministas têm investido no esforço de ressaltar o fundamento cultural do
gênero, negando sistematicamente qualquer determinismo biológico. Para
a autora, gênero e sexo são, sim, categoria distintas, embora se posicionem
em uma relação de produção simultânea em que o que se pensa sobre o
sexo produz parâmetros de gênero, e a performance de gênero também
reitera o binarismo do sexo. Pensar no sexo como inequivocamente binário,
sendo que cada polo seria idêntico a si mesmo, é, segundo a autora, mais
uma produção discursiva que torna o sexo sujeito de um saber biológico
contemporâneo. Ela não nega a materialidade dos corpos; entretanto,
argumenta que pensar no sexo como algo dado, ontológico e suspenso de
qualquer análise crítica é mais um efeito de uma discursividade atual.
Nessa ambientação, o que identificamos como homem/mulher é o
produto da inteligibilidade que exigimos uns dos outros e praticamos em
nós mesmos. Digamos que uma pessoa, por ser dotada de um pênis, tenha
seu corpo designado como do sexo masculino no nascimento, perceba a si
mesmo como um homem nos parâmetros do que é “ser homem” na nossa
cultura/tempo e pratique o desejo pelo sexo/gênero oposto. Essa pessoa
seria então dotada de inteligibilidade, ao passo que o sexo, o gênero e o
desejo estariam em “linearidade”, estabeleceriam uma relação “coerente”.
Vale ressaltar que o que chamo aqui de linearidade ou coerência são apenas
construções arbitrárias que se relacionam com os saberes de nossa época.
As leis culturais hoje, produzidas através de ligações entre sexo
biológico, gênero culturalmente construído e a expressão do afeto e do
desejo sexual tratam de fiscalizar, proibir e punir através de estratégias
enunciativas, práticas e instituições qualquer incoerência nessa linearidade.
Ao passo que se instituem certas formas de se viver o trinômio sexo/gênero/
desejo como culturalmente inteligíveis, torna-se inevitável a disseminação
de outras identidades de gênero e sexualidades, bem como suas múltiplas
possibilidades de combinação, como dissidentes e/ou desviantes.
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Nesse ponto é importante definir o que entendo por identidade de
gênero. Voltando ao pensamento que dá início a este texto, com a pergunta
“o que é ser mulher?”, imediatamente iniciamos a montagem mental de
um corpo generificado e para tal nos valemos dos parâmetros disponíveis
no nosso tempo e cultura para a construção dessa imagem. A identidade de
gênero se dá na percepção singular e pessoal de como o sujeito se relaciona
com elementos atribuídos a esse ou àquele gênero (Jesus, 2012). O conceito
de identidade de gênero, além de enfatizar o caráter cultural-histórico
do gênero, traz consigo o elemento da autoidentificação, ou seja, o que
determina o gênero com o qual alguém se identifica é a percepção de si
posta em relação aos parâmetros do que é “ser homem” ou o que é “ser
mulher”.
Entretanto, somos seres culturais e como tal estamos inseridos em
relações de poder. Enquanto uma pessoa cujo corpo foi designado como
feminino e apresenta uma identidade de gênero feminina é lida socialmente
como uma existência coerente a partir dos parâmetros de sexo/gênero, uma
pessoa cujo corpo foi designado como masculino e apresenta uma identidade
de gênero feminina é lida como incoerente e desviante a partir desses mesmos
parâmetros2. Existe uma série de práticas que operam em todas as esferas do
cotidiano que atuam como reguladores do corpo, da identidade de gênero
e da sexualidade de todos nós. Vale ressaltar que muitas dessas práticas são
intencionais, ao passo que outras estão muito mais no âmbito do discurso.
Ambas produzem efeitos sobre nós em certa medida e em certas situações.
Somos ensinados nas escolas, em aulas de ciências nas séries iniciais,
por exemplo, que a categoria “ser vivo” pode ser delimitada por aqueles
indivíduos que nascem, crescem, reproduzem e morrem. O que pode
parecer uma enunciação banal carrega um aprendizado produzido no
interior da normatividade em que vivemos. Afinal, está presente no saber
2 As pessoas que percebem a si mesmas dentro dessa coerência ou inteligibilidade construída socialmente entre
o sexo ao qual foi designada ao nascer e o gênero com o qual se identificam são denominadas pessoas cisgênero
ou pessoas cis*. Por outro lado, uma pessoa que não apresenta uma linearidade entre o sexo e o gênero é denominada travesti, transexual, transgênero ou pessoa trans*. Existem diferenças conceituais entre essas quatro últimas
categorias que podem ser esclarecidas nos textos O que é cissexismo? e Trans* como termo guarda-chuva, disponíveis em:
<http://transfeminismo.com>. Último acesso em: 19 nov. 2015.
coletivo que pessoas homossexuais não são capazes de se reproduzir3.
Perceba que talvez não exista a intencionalidade de marcar um “desvio” no
modo de vida das pessoas homossexuais; entretanto, o efeito desencadeado
por essa enunciação, reiterada infindavelmente na vida escolar, torna gays,
lésbicas, enfim, qualquer pessoa dotada de um desejo não-heterossexual,
sujeito desse saber.
Borrillo (2010) entende que homofobia são práticas de hostilidade
que têm como alvo pessoas homossexuais. Entretanto, essas práticas se
dispersam em diversos níveis da nossa sociedade, de diferentes formas,
agindo diferentemente de pessoa para pessoa. É uma modalidade de
violência que possui muitas facetas, estratégias e efeitos. O autor diferencia
algumas das formas pelas quais tais práticas se manifestam. O fenômeno da
homofobia – ainda que esse conceito tenha surgido muito recentemente da
maneira que o conhecemos – pode ser identificado em diversas esferas de
nossa sociedade.
O Brasil, mesmo que legalmente falando seja considerado um país
laico, permanece atravessado por diversos saberes produzidos no interior
das crenças culturalmente presentes. Ainda segundo Borrillo (2010), a
aversão cristã aos homossexuais procuraria justificativa na condição de suas
práticas estéreis. Segundo a doutrina, para esse autor, a prática sexual para
fins não reprodutivos configuraria algo antinatural ou pecaminoso. Dessa
forma, considerando a prática sexual entre pessoas do mesmo sexo como
estéril, manter práticas homossexuais seria algo a ser combatido.
O caráter patológico da homossexualidade produzido a partir de
construções de saberes médicos também atua como uma modalidade de
violência. Ancorado não somente nas noções de esterilidade reprodutiva
das práticas sexuais entre pessoas do mesmo sexo, mas, sobretudo, no
surto de HIV/AIDS, no passado chamada “peste gay”, o saber médico tem
sistematicamente convertido em patologia as identidades não heterossexuais.
3 Mesmo esse pensamento não está correto. Se pensarmos em uma relação entre um homem trans* homossexual e
um homem cis* homossexual, a reprodução em que o óvulo do primeiro indivíduo é fecundado pelo espermatozoide
do segundo indivíduo é perfeitamente possível.
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O termo homofobia pode dar nome a práticas que variam desde um
xingamento, à não admissão de alguém em uma vaga de emprego, à exclusão
de grupos sociais na escola, até a violência física à qual essas pessoas estão
vulneráveis. Obviamente, as práticas de violência que acabo de descrever são,
sim, do âmbito do intencional. Violências que muitas vezes são motivadas
e fundamentadas nos saberes normativos difundidos em meio aos discursos
médicos, religiosos, entre outros. São práticas que ferem, marcam, matam
e ensinam. Ensinam a quem sobreviveu a uma violência desse tipo que a
expressão “desviante da norma” o deixa vulnerável à violência, que a pessoa
não deve se sentir segura. Ensinam a quem nunca viveu esse tipo de violência,
mas está ciente dela, que pode sofrer uma agressão a qualquer momento, em
qualquer lugar, seja nas ruas, na escola ou até mesmo em casa.
A violência parece ser uma prática produzida como estratégia que
se vale de tentativas sistemáticas e reiterativas de posicionar certo sujeito
enquanto desviante da norma. Em outras palavras, não há como sugerir que
a violência contra diferentes sujeitos, mesmo sendo considerados dissidentes
à norma, atue sobre eles da mesma forma. A homofobia é uma modalidade
de violência que tem um sujeito aparentemente bem delimitado: o homem
cis homossexual. As estratégias táticas de poder que são exercidas sobre
esses indivíduos se configuraram, a partir de um campo de saber construído,
sobre uma representação desse alvo. Ou seja, as estratégias de violência
homofóbica se configuram de uma maneira muito específica, referente à
trajetória também muito singular do seu sujeito-alvo.
Partindo desse raciocínio, é possível sugerir que a violência contra
uma mulher cis lésbica, por exemplo, possa, em primeira análise, parecer
semelhante à praticada contra um homem gay. Entretanto, o atravessamento
de gênero parece tornar essa primeira modalidade de violência ligeiramente
diferente da segunda. A misoginia e o sexismo são componentes muito comuns
nas modalidades de violência praticadas contra mulheres cis homossexuais,
muito mais do que para homens cis gays. Talvez seja insuficiente tentar
enquadrar as práticas de violência contra mulheres cis lésbicas no escopo
da homofobia. Uma lesbofobia que contemple as especificidades do sujeito-
alvo dessa violência poderia, em primeira análise, servir de maneira mais
completa.
Certamente, as modalidades de violência vividas por pessoas que
se identificam como travestis diferem das vividas por homens cis gays e
mulheres cis lésbicas. Primeiramente, há uma diferença crucial entre essas
modalidades de violências: enquanto as práticas hostis contra homens cis
homossexuais, por exemplo, parecem estar vinculadas a uma aversão à prática
do desejo desviante, as práticas hostis cujo alvo é a travesti, por sua vez, têm
origem na identidade de gênero. Dessa forma, práticas de violência que têm
como alvo travestis ou pessoas transgênero são denominadas transfobias.
Assim como a homofobia e a lesbofobia, a transfobia também é o
nome dado a uma série de práticas que podem ser mais ou menos visíveis e
que tomam pessoas trans*, em especial travestis, como alvo das regulações
normativas sobre o corpo, identidade de gênero e desejo. Essas práticas estão
dispersas no cotidiano, nas instituições e na forma com que essas pessoas
são retratadas. Perceba que imaginar que todas as travestis são caricatas,
violentas ou prostituem-se é por si uma prática transfóbica por tomar como
referência um modo de visibilidade que não compreende a multiplicidade
desse grupo.
No nível institucional, uma série de práticas é desferida e torna as
pessoas trans* sujeito dos efeitos da norma. Enquanto que por um lado
os saberes médicos sobre a existência trans* parecem se concentrar nas
tentativas sistemáticas de patologizar essas identidades, por outro existe
um vácuo absoluto sobre as necessidades básicas em saúde específicas dessa
população. Um exemplo infeliz de como essa normatividade reverbera nas
instituições é a inexistência de profissionais da saúde genital que possam
atender de forma minimamente satisfatória uma mulher trans* que foi
submetida a uma readequação ou cirurgia transexualizadora4.
4 Embora eu não concorde com esse termo, “cirurgia transexualizadora” é o termo utilizados nos manuais médicos
(Machado, 2008).
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1. A INSTITUIÇÃO ESCOLAR E AS NORMAS DE GÊNERO
A instituição escolar certamente tem papel fundamental como
ferramenta de reiteração e atualização das normas sexuais e de gênero que
governam nossos corpos. Tornamo-nos sujeitos de uma série de práticas
disciplinares que agem sobre nossos corpos, modelando-os através de uma
tecnologia eficiente, regular, incessante e respaldada nas normas culturais
do nosso tempo.
O corpo humano entra numa maquinaria de poder
que o esquadrinha, o desarticula e o recompõe. [...]
Ela define como se pode ter domínio sobre o corpo dos outros, não simplesmente para que façam o
que se quer, mas para que operem como se quer,
com as técnicas, segundo a rapidez e a eficácia que
se determina. A disciplina fabrica assim corpos submissos e exercitados, corpos “dóceis”. [...] A “invenção” dessa nova anatomia política não deve ser
entendida como uma descoberta súbita. Mas como
uma multiplicidade de processos muitas vezes mínimos, de origens diferentes, de localizações esparsas,
que se recordam, se repetem, ou se imitam, apoiamse uns sobre os outros, distinguem-se segundo seu
campo de aplicação, entram em convergência e esboçam aos poucos a fachada de um método geral.
Encontramo-los em funcionamento nos colégios,
muito cedo; mais tarde nas escolas primárias; investiram lentamente o espaço hospitalar; e em algumas
dezenas de anos reestruturam a organização militar.
(Foucault, 1998, p. 165)
Ensinam-nos como devemos viver, como devem usar nossos corpos,
quais partes podemos usar, quais partes devem ser renegadas, quais partes
não devem ser citadas. Aprendemos que qualquer outra forma de operar
com nosso corpo, qualquer identidade de gênero diferente da escolhida para
nós, torna-nos indivíduos dotados de uma vida que ninguém gostaria de
viver, uma vida não vivível. Todas as vezes que os(as) professores(as) das
séries iniciais dividem uma turma de crianças em um grupo de meninos e
um grupo de meninas eles(as) dizem, mesmo que não intencionalmente,
que existem apenas essas duas possibilidades e que não cabe a você escolher
o grupo ao qual você deverá se juntar.
Na vida cotidiana e em especial na escola, um dos elementos que
conferem vulnerabilidade a quem não se compreende dentro da norma é a
passabilidade5. Bohm (2009) relata a experiência de vida de pessoas trans*
na escola; segundo a autora, são absolutamente corriqueiras as práticas
de desrespeito à identidade de gênero das pessoas trans* na escola. Uma
das interlocutoras que participaram da pesquisa da autora relata que no
momento da matrícula o ato de expor o nome designado a ela no nascimento,
um nome que remete a uma identidade masculina, causava estranhamento,
repulsa, piadas, violência simbólica.
Também está presente na pesquisa uma situação muito frequente nas
falas das pessoas trans*: o uso do banheiro. Para pessoas cis*, usar um
banheiro pode parecer um ato intuitivo, pré-reflexivo, livre de qualquer
contestação. Para pessoas trans*, por outro lado, essa prática pode ser um
espaço de exposição à vulnerabilidade. Uma interlocutora é categórica ao
dizer que “preferia ficar sem fazer xixi, apertada a manhã toda, a entrar
em um dos banheiros” (Bohm, 2009, p. 59). Os relatos são convergentes
em dizer que o uso desse espaço é um momento de tensão e medo, afinal
no banheiro masculino elas se tornam vulneráveis à violência dos homens
cis* e no banheiro feminino elas se tornam vulneráveis à violência das
mulheres cis*.
5 Passabilidade é um termo cunhado pelas teóricas transfeministas e diz respeito à capacidade de parecer estar dentro
da norma. Uma passabilidade cis*, por exemplo, está relacionada com uma pessoa trans* que passaria despercebida
como tal. Em outras palavras, quando a condição de pessoa trans* não é identificada imediatamente ou de forma
alguma. Torna-se fundamental tencionar esse conceito a partir do momento em que a passabilidade surge como um
marco normativo, entendido como um lugar comum onde todas as pessoas trans* têm o objetivo de chegar. Grande
parte da força normativa que a passabilidade adquiriu pode ser vinculada ao fato de que os grandes ícones presentes
na mídia e retratados com uma existência trans* bem-sucedida são, via de regra, pessoas dotadas de alta passabilidade.
Outro ponto é que muitas vezes essa característica está ligada ao acesso a intervenções cirúrgicas e hormonais sobre
o corpo, o que adiciona um recorte econômico a esse conceito. Enquanto todas as pessoas trans* estão vulneráveis à
violência, as que não têm acesso à passabilidade certamente se inserem em um grupo ainda mais vulnerável. Disponível em: <http://transfeminismo.com/por-um-dialogo-sobre-passabilidade-visibilidade-e-protagonismo-dentro-da-comunidade-trans/>. Último acesso em: 20 nov. 2015
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A escola insiste em assegurar um espaço de não-lugar para a população
de pessoas trans*. Um não-lugar de gênero, um não-lugar institucional,
um não-lugar humano. Existe um sistemático silêncio que se estende e
engloba a existência de pessoas trans* na escola. Estratégias de invisibilização, como desconsiderar o nome social das pessoas trans*, expondo-as a
situações diárias de constrangimento, ignorar claras situações de violência
transfóbica, reproduzindo o modelo binário e normativo de gênero nos
currículos, entre outros (Junqueira, 2012). A regularidade dessas práticas
transforma o espaço escolar em um campo inóspito para a permanência
de qualquer pessoa dotada de dissidências sexuais e de gênero, em especial
das pessoas trans*.
Não existe uma estatística exata que englobe a proporção de pessoas
trans* que permanecem resistindo às forças de repulsão produzidas pela
escola, que evadiram da escola por conta de transfobia, quantas concluíram
o ensino básico ou médio, quantas estão nas universidades, nas pósgraduações. Entretanto, as pesquisas que se preocupam em investigar a
inclusão de pessoas trans* na escolar apontam uma faixa em média de 80
a 90% de pessoas trans*, em especial travestis, que evadem da escola por
inúmeros motivos que giram em torno da transfobia e que, por conta disso,
não concluem o ensino médio (Bohm, 2009).
Utilizo aqui pontos que dizem respeito majoritariamente às pessoas
trans*; entretanto, essas forças de repulsão produzidas pela instituição da
escola também atingem pessoas cis lésbicas, gays, bissexuais ou qualquer
outra existência não-normativa. É preciso salientar que as organizações de
movimento social que procuram dar visibilidade à especificidade da violência
contra pessoas trans* ainda são muito recentes quando comparadas com as
do movimento gay ou lésbico, por exemplo. Isso tem efeito direto sobre a
pouca visibilidade das pessoas trans*, bem como sobre a falta de preparo
da instituição da escola em ser um local acolhedor para essa população. De
certa forma, entre a população LGBT, as pessoas trans* estão inseridas em
situações de maior vulnerabilidade do que as outras letras da sigla.
2. EDUCAÇÃO A DISTÂNCIA: DESESTABILIZANDO AS
RELAÇÕES DE PODER NA EDUCAÇÃO
Fica muito claro que a escola não é um espaço acolhedor para pessoas
LGBT, em especial para pessoas trans*. Embora já exista um movimento de
resistência na direção de pressionar essa instituição na direção da inclusão
da diversidade sexual e de gênero, existe um longo caminho até que esse
espaço deixe de representar risco. A evasão escolar, exclusão do espaço
familiar e a dificuldade de empregabilidade compõem um quadro de uma
trajetória social cruel frequentemente acoplado às existências LGBT, em
especial às pessoas trans*.
A instituição da escola se constitui como uma ferramenta disciplinar
desde o projeto arquitetônico, através das suas práticas cotidianas, relações
de poder, configuração das salas de aula no espaço. A escola é um local de
capilarização do poder, em que os alunos são divididos em turmas ordenadas
por um recorte etário, separados em grupos reconhecíveis (Foucault, 1998),
operando seus currículos (Silva, 2010), fazendo funcionar um aparato
normativo quem tem excelência em disciplinar e produzir corpos dóceis.
Segundo Nogueira (1996), a educação a distância surge como uma
urgência da contemporaneidade globalizada. Vivemos em um mundo em
que as tecnologias nos capturam desde muito cedo. Essa tecnologia se
tornou uma peça fundamental no mercado, na sociabilização, no trânsito
de informações, nas relações sociais, dispersando-se de tal forma que a vida
sem o uso de tecnologias passa a ser vista com estranhamento. Para o autor,
era apenas uma questão de tempo para que a educação acompanhasse o
ritmo da inserção tecnológica.
A educação a distância surge para suprir em curto prazo a dificuldade de
alcance que limitava a atuação da escola nos locais mais distantes dos centros
urbanos, seja essa limitação de ordem espacial ou temporal. Essa modalidade
de educação atenderia tanto pessoas que estivessem distantes fisicamente
quanto as que possuíssem disponibilidade de horários incompatíveis. Outra
característica da educação à distância é o caráter muito mais autônomo do
alunado (Belloni, 2002). Existe uma autonomia muito maior em seguir
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o seu próprio ritmo de aprendizado ou execução de alguma tarefa. Essas
características que citei até aqui tornam possível um tensionamento.
As relações de poder não podem ser pensadas como estruturas fixas,
algo que possa ser reduzido a uma relação simples, reprodutível e que atue
sobre todos da mesma maneira; pelo contrário, são tão mais eficientes quanto
forem específicas, capilarizadas, individuais, da ordem das micropráticas
(Foucault, 1998). Argumentei anteriormente que a escola ainda é um
ambiente normativo, disciplinar, docilizador, policialesco, autoritário,
simbólica e muitas vezes fisicamente violento; em outras palavras, um campo
de exercício do poder.
Embora o poder não possa ser descrito como uma estrutura fixa, na
escola ele parece estar fundamentado em certos elementos categóricos
reiterados como indispensáveis à escola como a conhecemos hoje. Elementos
como rotina de horário de entrada na instituição, a divisão temporal das
disciplinas ao longo de cada dia na semana, recreio, horário de merenda,
turmas divididas e ordenadas por ano letivo, configuração espacial, entre
outros, produzem os fundamentos para uma série de relações de poder
exercidas na escola. O espaço físico, por exemplo, produz subsídios para o
acesso generificado ao banheiro. Nesse sentido, a educação a distância pode
produzir um substancial efeito de inclusão à diversidade sexual e de gênero
que a escola tradicional ainda não conseguiu.
Se a educação respondeu a uma urgência da cultura imersa na tecnologia
que vivemos, a educação a distância, por sua vez, pode ser utilizada como
uma ferramenta de inclusão em resposta à visibilidade que grupos a tanto
tempo marginalizados assumiram atualmente. Não sugiro com isso que
devemos deixar de lado todo o movimento que tenta tornar a escola um
espaço acolhedor, mas não posso deixar de levar em consideração que, nesse
momento, estar em um espaço escolar é uma situação que confere risco à
população de gays, lésbicas, bissexuais e, em especial, à de travestis e de
transexuais.
Tive a oportunidade de entrevistar algumas pessoas LGBT sobre o
assunto. De forma geral, as narrativas descrevem situações de violência
vividas no espaço escolar. A Colaboradora 1, que é travesti, disse:
Eu terminei a escola no tempo certo por que eu
era desaforada. Eles [colegas de turma] me xingavam um monte. Às vezes eu fingia que não estava
nem aí, às vezes eu tirava umas brincadeiras pesadas
com eles, briguei um monte na escola. Na medida
do possível minha família me apoiava. Daí eu tive
menos problemas. Mas eu fico pensando nas gurias
que são mais pobres. Sei lá. É cruel pra elas.
Essa colaboradora foi aluna de educação a distância. Durante a
entrevista, ela diz que nunca pensou nessa modalidade de educação como
uma alternativa para prevenir a violência contra LGBT. Entretanto, concorda
que para muitas o espaço da escola é um ambiente de medo e não ter que ir
fisicamente a esse lugar pode ser usado como argumento de convencimento
para reinserir travestis à escola. Eu acredito que não apenas travestis, mas
qualquer pessoa LGBT que tenha evadido da escola por violência relacionada
com sua sexualidade ou identidade de gênero pode enxergar na educação à
distância uma forma mais imediata de retornar aos estudos.
A colaboradora 2, que é uma mulher trans*, alerta:
Claro que fazendo um curso a distância eu não corro
o risco de apanhar na sala de aula, mas tem outros
tipos de violência, né? Da vez que eu fiz uma pós a
distância eles sempre erravam meu nome. Tive que
reclamar um milhão de vezes pra coordenação acertar meu nome [nome social] na lista. No fim meu
certificado saiu com o nome certo, pelo menos.
Especialmente no caso das pessoas trans*, não estar fisicamente
presente em um local faz cair por terra um dos principais motivos de evasão
escolar para essa população: a violência física. Não há o olhar fulminante dos
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professores que transmite a sensação de não pertencimento àquele lugar.
Não há o caminho de ida e volta para a casa que dá espaço à vulnerabilidade.
A educação a distância pode possibilitar um resultado em curto prazo, uma
resposta à urgência da massiva evasão escolar que exclui LGBTs.
Claro que devemos continuar problematizando e pressionando a
instituição da escola na direção de se tornar um local acolhedor para
a diversidade. Permaneço acreditando que a socialização, as relações
interpessoais, o diálogo com os professores e os colegas de turma, o contato
crítico com uma instituição disciplinar como essa sejam experiências
enriquecedoras e pedagógicas. Mas não posso ignorar o fato de que uma
grande quantidade de pessoas LGBT já evadiu da escola por motivos de
violência e que dificilmente voltariam a frequentar esse espaço. Essas pessoas
não podem esperar, precisam de uma alternativa imediata que o ensino
presencial não pode oferecer agora. Não vejo a inclusão de pessoas LGBT
através da educação a distância como uma medida que esgota a problemática
da violência na escola, mas sim como uma ferramenta de resgate para quem
não se sente contemplado pela modalidade presencial de educação.
3. REFERÊNCIAS
BELLONI, Maria Luiza. Ensaio sobre a educação a distância no Brasil. Educação & Sociedade, Brasília, v. 78, n. 1, p. 117-142, abr. 2002.
BOHM, Alessandra Maria. Os “Monstros” e a Escola: Identidade e escolaridade de sujeitos travestis. 2009. 103f. Dissertação (Mestrado) – Curso de Educação, Universidade Federal do Rio
Grande do Sul: Porto Alegre, 2009.
BORRILLO, Daniel. Homofobia: história e crítica de um preconceito. Belo Horizonte: Autêntica
Editora, 2010.
BUTLER, Judith. Problemas de Gênero: feminismo e subversão da identidade. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 2003. 236p. (Sujeito e Histórica)
CRUZ, Elizabete Franco. Bathrooms, travestites, gender relations and differences in school’s
daily life. Rev. psicol. polít., São Paulo , v. 11, n. 21, jun. 2011 .Disponível em: <http://pepsic.
bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1519-549X2011000100007&lng=pt&nr
m=iso&tlng=pt>. Acesso em: 20 nov. 2015.
FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir: nascimento da prisão. Petrópolis: Editora Vozes, 1998.
JESUS, Jaqueline Gomes de. Identidade de gênero e políticas de afirmação identitária. In:
Congresso internacional de estudos sobre a diversidade sexual e de gênero da ABEH, 6, 2012,
Salvador. Anais. Salvador: 2012. p. 1-15.
JUNQUEIRA, Rogério Diniz. Pedagogia do armário e currículo em ação: heteronormatividade, heterossexismo e homofobia no cotidiano escolar. In: MILSKILCI, Richard. Discursos fora da
Ordem: deslocamentos, reinvenções e direitos. São Paulo: Annablume, 2012. p. 25.
MACHADO, Paula Sandrine. O Sexo dos Anjos: Representações e práticas em torno do gerenciamento sociomédico e cotidiano da intersexualidade. 2008. 265f. Tese (Doutorado) – Curso de
Antropologia Social. Universidade Federal do Rio Grande do Sul: Porto Alegre, 2008.
NOGUEIRA, Luís Lindolfo. Educação a distância: Colocar as novas tecnologias da comunicação a serviço da educação ajuda a diminuir as distâncias sociais e pode propiciar, a cada vez mais
pessoas, o direito ao saber. Comunicação e Educação, São Paulo, v. 5, n. 1, p.34-39, abr. 1996.
SILVA, Tomaz Tadeu da. Documentos de Identidade: uma introdução às teorias do currículo. 3. ed.
Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2010
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Capítulo 12
QUANDO AIDS, GÊNERO,
SEXUALIDADE E DIREITOS HUMANOS
SE ENCONTRAM NO TERRITÓRIO
ESCOLAR
Cláudio Nunes
Fernando Seffner
1. COMBINAÇÕES EXPLOSIVAS EM SALA DE AULA
Qualquer professor ou professora com poucos anos de docência sabe
o quanto questões de gênero e sexualidade habitam a sala de aula. A criança
entra na escola atualmente com seis anos de idade e cada vez mais será comum
que ela siga estudando até o final do ensino médio, quando estará com idade
ao redor de dezoito anos. Associado a isso, vale lembrar a ampliação do
turno integral nas redes públicas, com crianças e jovens cruzando os portões
escolares em torno de sete e meia da manhã, fazendo sua primeira merenda,
indo para a sala de aula, depois intervalo para recreio, mais aulas, intervalo
de almoço no refeitório, turno da tarde reservado para aulas, oficinas,
atividades esportivas e/ou momentos de estudo individual ou em grupo,
lanche ou janta ao final do dia e, algumas vezes, inclusive oportunidade
para banho no vestiário da escola antes do retorno às suas casas. Ou seja,
é na escola que cada vez mais meninos e meninas vão atravessar uma parte
importante da etapa juvenil de suas vidas e é na escola que vão reconhecer as
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possibilidades eróticas do seu corpo, estabelecer relações de afeto, amizade,
namoro, aprender a respeitar as diferenças de gênero, debater sobre as
relações com equidade de gênero, conhecer e respeitar a diversidade de
orientações sexuais e de modos de ser menino e menina. Coerente com
isso, o tema das relações de gênero e sexualidade foi um dos escolhidos
por diversos alunos do curso que gerou este livro, na ótica da Educação em
Direitos Humanos.
O exercício da sexualidade, em qualquer período histórico, comportou
agravos de saúde. Se hoje temos a AIDS a assombrar a vida sexual, vale lembrar
que antes tivemos a sífilis e antes dela uma sucessão enorme de doenças
relacionadas ao ato sexual, sem contar os problemas de saúde que podem
advir da gestação, parto e puerpério. Uma abordagem adequada das relações
afetivas e sexuais deve envolver esse tema, mas deve se ter cuidado em não
usar a doença para assustar os sujeitos em relação à vida sexual, atitude que
não produz esclarecimentos e não ajuda a ter uma vida feliz. O propósito
deste texto é duplo: apresentar um conjunto importante de informações
acerca da AIDS e dos modos de lidar com ela, a partir da experiência no
município de Porto Alegre, e vincular as questões de gênero, sexualidade e
AIDS com o campo da Educação em Direitos Humanos e os modos como elas
podem acontecer no território escolar, dando mais segurança a professores e
professoras na abordagem de tema que, reconhecemos, é altamente polêmico.
Conhecer a estrutura e os programas de uma política de atenção à AIDS e
doenças sexualmente transmissíveis ajuda professores e professoras a planejar
estratégias pedagógicas em sintonia com os profissionais de saúde.
2. PANORAMA DA AIDS EM PORTO ALEGRE
Segundo o Ministério da Saúde, os primeiros casos de AIDS no Brasil
foram identificados no início da década de 1980, tendo sido registrados
predominantemente entre gays adultos, usuários de drogas injetáveis e
hemofílicos. Passados trinta anos, o país tem como característica uma epidemia
estável e concentrada em alguns subgrupos populacionais em situação de
vulnerabilidade. A taxa de detecção de AIDS no Brasil tem apresentado
estabilização nos últimos dez anos, com uma média de 20,5 casos para
cada 100 mil habitantes. Também se observa estabilização da taxa na região
Sul, com uma média de 31,1 casos para cada 100 mil habitantes; ou seja,
mais elevada do que no restante do país. De acordo com o último Boletim
Epidemiológico HIV/AIDS, publicado em 2015, foram notificados nos
sistemas de monitoramento no estado do Rio Grande do Sul 757.042 casos
de AIDS, acumulados de 1980 a junho de 2014, sendo 491.747 (65,0%) no
sexo masculino e 265.251 (35%) no sexo feminino1.
A manutenção das taxas elevadas na incidência de casos de AIDS tem
chamado atenção para epidemia na cidade de Porto Alegre na última década,
em contraste com a queda da incidência em outros estados e capitais. O
município de Porto Alegre, conforme o boletim epidemiológico de 20142,
apresenta as maiores taxas de detecção de casos de AIDS do país, tendo
96,2 casos de AIDS para cada 100.000 habitantes, o que é muito superior
à já referida média nacional de 20,5 casos de AIDS para cada 100 mil
habitantes. Foram notificados em residentes de Porto Alegre, desde o início
da epidemia, em 1983, a 30 de junho de 2015, 27.278 casos de AIDS. A
razão de sexo apresentou um ápice de 13 homens para cada mulher com
AIDS em 1987 e, em 2002, 1,2 casos de homens para uma mulher. Do
total, 96,5% casos foram diagnosticados em indivíduos maiores de 13 anos
e 3,5% em crianças menores de 5 anos3. A variável categoria de exposição
ao HIV de 2007 a 2014 continua evidenciando a transmissão heterossexual,
com média de 55,8% dos casos, seguida da transmissão homo/bissexual,
com 13,3% dos casos e, por fim, o uso de drogas injetáveis, que representa
3% dos casos.4
No recorte raça/cor, a distribuição da incidência dos casos de AIDS
em Porto Alegre indica que a epidemia é mais pronunciada em “negros/
1 Disponível em: <http://www.aids.gov.br/system/tdf/pub/2015/90/boletim_hepatites_2015.pdf?file=1&type=n
ode&id=90&force=1>. Acesso em: out. 2015.
2 Disponível em: <http://www.aids.gov.br/system/tdf/pub/2014/73/boletim_epidemiologico_hivaids_-_2014.pdf?fil
e=1&type=node&id=73&force=1>. Acesso em: out. 2015.
3 Boletim Epidemiológico n°58/Coordenação Geral da Vigilância Epidemiológica/SMS/PMPA-agosto 2015.
4 Boletim Epidemiológico n°58/Coordenação Geral da Vigilância Epidemiológica/SMS/PMPA-agosto 2015.
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pardos” comparativamente aos brancos. Quando verificada a incidência por
sexo, nas mulheres “negras/pardas” as taxas são mais que o dobro do que
nas mulheres brancas (Boletim epidemiológico, n. 58, agosto de 2015). Em
relação à faixa etária, mantém-se o maior percentual de casos na faixa etária
de 30 a 39 anos, com média de 33,3%. Verifica-se aumento nas faixas etárias
de 13 a 19 anos e 20 a 29 anos e em indivíduos com mais de 60 anos,
independente do sexo, na série histórica de 2007 a 2014.5
A mortalidade dos casos de AIDS vem apresentando uma queda
gradativa. Porém, Porto Alegre ainda detém taxas elevadas, sendo que
apresentou 28,2 casos por 100.000 habitantes; mais do que o dobro do Rio
Grande do Sul.
Para quem é docente em escola, importa saber que os jovens são
hoje mais vulneráveis a infecção pelo HIV e essa deve ser questão para ser
pensada na ação pedagógica. Mas também importa perceber que a epidemia
de AIDS, como qualquer outro agravo de saúde, cresce entre os grupos
socialmente vulneráveis, que, além dos jovens, são aqueles marcados pela cor
negra ou parda, bem como os sujeitos que demonstram orientação sexual
diferente da heteronormatividade. Dessa forma, já aqui podemos pensar
que uma estratégia pedagógica adequada é abrir espaços para diálogo nas
escolas acerca de questões de gênero e sexualidade em conexão com outros
marcadores da diferença, como cor da pele, classe social e inserção familiar,
de modo a orientar os alunos e alunas.
3. AÇÕES DA SECRETARIA MUNICIPAL DE SAÚDE
Para o enfrentamento da epidemia em Porto Alegre, a Área Técnica
de DST/AIDS e Hepatites Virais da Secretaria Municipal de Saúde vem
implantando diversas estratégias de prevenção, com diferencial para os
acessos à testagem rápida e disponibilidade de tratamento para a redução
de casos de AIDS. Os Testes Rápidos (TRs) para o HIV/AIDS são excelentes
estratégias que possibilitam o acesso da população aos serviços de saúde,
5 Boletim Epidemiológico n°58/Coordenação Geral da Vigilância Epidemiológica/SMS/PMPA-agosto 2015.
uma vez que são de fácil execução. A leitura e a interpretação são feitas em,
no máximo, trinta minutos e não necessitam de estrutura de laboratório. Em
Porto Alegre, todas as 141 Unidades Básicas de Saúde já têm profissionais
capacitados para a execução de Testes Rápidos para o HIV, sífilis e hepatite
C, o que traduz a capilaridade e o alcance dessa ação, atingindo comunidades
bastante distantes do eixo central da cidade. Segue aqui outra dica de ação
para professores e professoras: a escola deve conhecer e manter uma relação
de trabalho com os profissionais da unidade básica de saúde mais próxima,
saber informar e referenciar.
O monitoramento dos testes rápidos realizados na Rede de Atenção
Primária (RAP) tem por objetivos principais avaliar o quantitativo dos TRs
efetuados mensalmente, os quais são inseridos no link criado e padronizado
para essa inserção e, principalmente, acompanhar o ingresso dos pacientes
diagnosticados reagentes para o vírus HIV nos serviços de saúde, bem como
verificar a desejável adesão ao tratamento. Destaca-se, aqui, a importância
de incentivar e acompanhar o aumento da realização dos testes rápidos
na rede de atenção primária, pois é preconizada a redução da realização
dos exames laboratoriais (mais onerosos e demorados) pela atual Gestão
em Saúde. Dados apresentados nos últimos Relatórios de Gestão da
Secretaria Municipal de Saúde já evidenciam essa tendência6. Com relação
aos procedimentos realizados pelas Unidades de Saúde após o resultado
reagente para o HIV, destacam-se:
• Aconselhamento;
• Solicitação de exames laboratoriais posteriores e complementares
pelo médico;
• Agendamento de consulta para apresentação dos exames;
• Análise de valores de referência, que é a avaliação do exame laboratorial;
• Contagem de Células T CD4, que conferem a imunidade celular,
comumente chamado apenas de CD4.
6 Disponível em: <http://lproweb.procempa.com.br/pmpa/prefpoa/sms/usu_doc/rag_2014.pdf>. Acesso em: out.
2015.
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Assim, CD4 com resultado maior que 350, o tratamento poderá ser
iniciado na Unidade Básica de Saúde de referência do usuário do SUS
(unidade mais próxima do local de residência), com a oferta de tratamento
(medicamentos antirretrovirais – ARV). Caso o CD4 apresente resultado
menor que 350, o paciente será encaminhado aos Serviços de Assistência
Especializados (SAEs), para início imediato de tratamento sob os cuidados
diretos de infectologista. Esse protocolo é constantemente supervisionado
pela Área Técnica DST e Hepatites Virais para o monitoramento dos
pacientes com resultados reagentes para o HIV e o rastreamento dos
encaminhamentos dos exames laboratoriais de Contagem de Células T
CD4. Utiliza-se o sistema AGHOS (sistema próprio da Secretaria Municipal
de Saúde para a marcação de consultas SUS em todo o município) para
a confirmação de presença dos pacientes nas primeiras consultas com os
infectologistas, em que se dá o início efetivo do tratamento, para casos de
CD4 inferior ao valor de referência 350.
Também é feito o trabalho de Educação Continuada das oito Gerências
Distritais (espécie de subprefeituras exclusivamente dos serviços de saúde
municipais que cobrem todo o território da cidade) através de capacitações e
atualizações dos profissionais (médicos, enfermeiros, dentistas, técnicos de
enfermagem, técnicos em saúde bucal, etc.), em que se ressalta a importância
do acolhimento e acompanhamento dos pacientes soropositivos ao HIV
para inserção precoce no tratamento, tão logo haja o diagnóstico por TRs.
4. GALERA CURTIÇÃO
Outra estratégia da Área Técnica de DST/AIDS e Hepatites Virais,
destinada à comunidade escolar, é o Projeto “Galera Curtição”. Tratase de um projeto desenvolvido pelas Secretarias Municipais de Saúde e
de Educação de Porto Alegre direcionado aos jovens de 12 a 16 anos de
escolas públicas municipais e estaduais de ensino fundamental. É realizada
uma gincana cultural entre as escolas, desenvolvida ao longo do ano letivo,
cujos objetivos são trabalhar a prevenção ao HIV e doenças sexualmente
transmissíveis e uso abusivo de álcool e outras drogas, bem como refletir
sobre gênero, sexualidade, diversidade sexual, saúde sexual e reprodutiva,
racismo, violências e bullying. Esse projeto faz parte do componente II –
Saúde e Prevenção na Escola (SPE), do Programa Saúde na Escola (PSE).
As tarefas são divulgadas no site próprio e na página no Facebook do
projeto e realizadas nas próprias escolas e comunidades. São disponibilizados
materiais de apoio para a realização das tarefas, tanto no site como no
Portal do Professor. O ponto alto do projeto são os programas de auditório,
que acontecem no início do segundo semestre. Além disso, é utilizada a
metodologia “teatro-fórum” em visitas às escolas, na qual um ator e uma atriz
propõem cenas que estimulam a reflexão e o debate acerca dos diversos temas
que compõem o projeto, com a participação dos alunos que se manifestam
debatendo as cenas presenciadas. De 2012 a 2015 foram realizadas três
edições do Galera Curtição, nas quais participaram diretamente 228 escolas,
15.000 alunos(as) e 840 professores(as). A avaliação do projeto é processual
e, no final, os(as) professores(as) e estudantes são convidados a responder
um questionário on-line. Nas edições de 2012 e 2014 foram destacados
como pontos fortes, entre outros: apoio aos professores, tarefas criativas,
ludicidade, linguagem atrativa, estímulo do trabalho coletivo e cooperação e
facilitação da reflexão e papo aberto entre professores, alunos e comunidade
sobre os temas propostos.
A metodologia utilizada tem propiciado a construção de
conhecimentos por meio de uma linguagem jovem, incentivando a
participação e o protagonismo juvenil e a atuação dos(as) estudantes como
multiplicadores(as) de conhecimentos e estratégias de prevenção do HIV,
articuladas com a compreensão dos marcadores sociais das diferenças. O
desafio posto é a inclusão dos temas (gênero, orientação sexual, sexualidade,
diversidade, racismo, etc.) no currículo e a apropriação desses por parte
dos professores no sentido dessas discussões complementarem, ainda que
transversalmente, as rotinas educacionais nas escolas. Dentro do quadro de
Educação em Direitos Humanos que estamos trabalhando, sugere-se que as
escolas e os serviços de saúde trabalhem em comum acordo no sentido de
informar, educar e respeitar a diversidade de orientação sexual e de gênero,
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......
os pertencimentos religiosos e os valores familiares, mas sem deixar de
mostrar que a abordagem em saúde é importante para garantir o acesso
seguro dos jovens ao ingresso na vida erótica e sexual.
5. PROGRAMA NASCER
Este programa foi instituído pelo Ministério da Saúde através da portaria
nº 2104/GM de 19/11/2002, com o objetivo de reduzir a transmissão vertical
do HIV e a morbimortalidade associada à sífilis congênita. A transmissão
vertical do HIV ocorre pela passagem do vírus da mãe para o bebê durante
a gestação, durante o parto ou através da amamentação. Sem qualquer ação
profilática, o risco de que isso aconteça é de 25% a 30%. Se aplicadas todas
as medidas preconizadas, a taxa de transmissão vertical do HIV é reduzida
para níveis inferiores a 2%7. Visando a essa redução, o município de Porto
Alegre vem implementando as ações junto à Rede de Atenção Primária, bem
como orientando o cuidado compartilhado das crianças expostas ao vírus
HIV. Destacamos o monitoramento da gestante HIV da saída da atenção
básica até o pré-natal HIV através de acompanhamento mensal, bem como
o acompanhamento de gestante com teste rápido de sífilis reagente.
As crianças recém-nascidas de gestantes soropositivas para o HIV
são inscritas no Nascer através de um link e a partir deste cadastramento
têm direito ao recebimento mensal de fórmulas lácteas em suas Unidades
Básicas de Saúde de referência até um ano de vida, para evitar assim
a transmissão do HIV via amamentação. Nesse contexto, a Secretaria
Municipal de Saúde trabalha com as instituições – maternidades públicas,
privadas e conveniadas – no que se refere à distribuição mensal de insumos
para prevenção da transmissão vertical mãe-bebê (antirretrovirais, fórmulas
lácteas, testes rápidos e inibidores de lactação). Estima-se que, com essas
intervenções, ocorra uma redução na taxa de transmissão vertical do HIV.
O sucesso do programa depende da responsabilidade compartilhada
entre os diversos atores participantes, destacando a importância da adesão
7 Ministério da Saúde – Transmissão Vertical do HIV e Sífilis: Estratégias para Redução e Eliminação, 2014.
das maternidades e, principalmente, das equipes de saúde pela ação direta
realizada na prestação de serviços de saúde de qualidade e pela capacidade
de promover mudanças sociais nas relações de cuidado entre mães e
recém-nascidos. Em Porto Alegre, o programa criou também o Comitê de
Transmissão Vertical do HIV/AIDS, coordenado pela Área Técnica DST/
AIDS e Hepatites Virais, que se reúne mensalmente com a presença de
representantes das maternidades (públicas, privadas e conveniadas) e de
diversos serviços de saúde municipais, em que são debatidos os casos em
que, por algum motivo, a gestante não teve acesso à profilaxia adequada e
em tempo hábil – o que poderia ter garantido a não infecção pelo HIV ao
recém-nascido. Através das apresentações e discussões sobre esses casos, os
representantes dos serviços têm subsídios para fortalecer os protocolos de
conduta editados pelo Ministério da Saúde, ajudando a estruturar essa rede
protetiva às mães gestantes e aos bebês.
Vale aqui ressaltar que a preocupação com a gravidez jovem é outro
ponto de atenção para a rede escolar. Dessa forma, estreitando a relação de
trabalho com as unidades básicas de saúde, é possível educar e informar sobre
o tema. Sabemos como é polêmica a discussão acerca do uso de preservativos
tanto para a AIDS quanto para a gravidez, a depender das vinculações
familiares e religiosas. A escola deve respeitar esses pertencimentos, mas
inserir o cuidado com a gravidez na pauta da Educação em Direitos Humanos
e fornecer informações adequadas do ponto de vista científico e técnico.
6. COMITÊ DE MORTALIDADE POR AIDS DE PORTO ALEGRE
Para contribuir no enfrentamento da epidemia de HIV/AIDS foi
criado, em novembro de 2011, o Comitê de Mortalidade por AIDS de
Porto Alegre. O objetivo é estimular a investigação dos óbitos por AIDS
no município e contribuir para o conhecimento sobre os indicadores dos
óbitos relacionados à AIDS, suas causas e os fatores de risco associados.
Esse Comitê também se reúne mensalmente e tem a coordenação da Área
Técnica DST AIDS e Hepatites Virais. Como o Comitê de Transmissão
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Vertical, inclui a participação de representantes de diversas instituições de
saúde do município, do SUS e privadas. Há também a representação do
Ministério da Saúde nas reuniões. A necessidade da criação do comitê se
deve ao fato de Porto Alegre ocupar o primeiro lugar no ranking das cidades
com maior número de casos e com maior número de óbitos do país.
A análise parcial dos dados, de 2011 até 2015, evidenciou que a
maioria dos óbitos é do sexo masculino, com média de idade de 44 anos,
grau de escolaridade bastante baixo e usuários de drogas ilícitas, juntamente
com álcool e cigarro. A transmissão sexual foi a via mais frequente.
Lembramos que Porto Alegre apresenta coeficiente de mortalidade de 23,4
óbitos/100mil habitantes, o mais alto do país. Assim, a criação do Comitê de
Mortalidade por AIDS é uma estratégia relevante de investigação e vigilância
epidemiológica. O trabalho do Comitê é atuante para poder concluir efetiva
e definitivamente sobre essa enorme diferença epidemiológica entre o
município de Porto Alegre e todos os demais municípios do Brasil. Através
do estudo dos prontuários de pacientes que vieram a óbito por decorrência
da AIDS, todos os atores envolvidos analisam e discutem medidas profiláticas
que muito provavelmente poderiam ter revertido a condição letal da infecção,
desde que tomadas em tempo hábil.
Esse é um tópico em que se verifica a diferença que faz a progressão
nos estudos e escolaridade, pois temos uma persistente vinculação entre
não conseguir se vincular e proceder ao tratamento, mesmo com a oferta
de medicação na rede de saúde, e ter nível baixo de escolaridade. Voltamos
ao que se afirmou no início do texto: crianças e jovens cada vez mais vão
passar a fase de descoberta das possibilidades eróticas de seus corpos
durante a trajetória escolar. E quando professores e professoras insistem na
continuidade dos estudos, podem acrescentar que não se estuda apenas para
ter uma profissão na vida, mas que existem conexões importantes e positivas
entre um elevado grau de estudo e a possibilidade de manter o tratamento
a AIDS, como acima se mostrou, mas também com os cuidados em relação
ao tabagismo, uso e abuso de álcool e outras drogas, doenças alimentares e
do coração. Dessa forma, amplia-se a compreensão de que estudar faz bem
à vida em geral e não apenas a possibilidade de obtenção de um trabalho ou
seguimento de uma carreira profissional.
7. DESCENTRALIZAÇÃO E ATENDIMENTO COMPARTILHADO
DE PACIENTES COM HIV/AIDS EM PORTO ALEGRE
A descentralização das políticas e ações em HIV/AIDS é um dos
maiores desafios na assistência das Pessoas Vivendo com HIV/AIDS (PVHA)
no município de Porto Alegre. Uma das estratégias para o enfrentamento da
epidemia de HIV/AIDS utilizada pela atual gestão da Secretaria Municipal de
Saúde é a educação continuada em manejo clínico como dispositivo para a
descentralização dos pacientes assintomáticos e estáveis na Atenção Primária
à Saúde (APS). O objetivo dessa capacitação é sensibilizar os médicos da
rede de atenção à saúde do Município de Porto Alegre para o manejo clínico
de pessoas vivendo com HIV/AIDS. A capacitação é dividida em duas etapas:
a primeira etapa desenvolve-se através de aulas expositivas ministradas por
médicos infectologistas e médicos treinados em atendimento de pessoas
vivendo com HIV/AIDS e estudos dirigidos em manejo clínico. Na segunda
etapa, são realizados atendimentos de pacientes em Serviços de Assistência
Especializada (SAEs) e APS. Já foram capacitados 114 profissionais médicos
(38,38%) de 97 serviços da atenção primária, representando 46,63% dos
serviços capacitados, sendo eles referentes a: 26 unidades básicas de saúde;
um consultório de rua; uma equipe de saúde indígena e 69 unidades básicas
de saúde da família.
O trabalho realizado até setembro de 2015 atingiu quase a metade
dos serviços de rede de atenção primária em saúde, faltando ainda 53,37%.
Essa primeira metade, entretanto, já possibilitou o início da descentralização
do atendimento sob matriciamento. Como esse processo de capacitação
é permanente, a etapa de pós-manejo clínico já está realizando round de
estudos de caso nas oito gerências distritais e matriciamento em serviço,
visando ao suporte na rede básica através de reflexões sobre a realidade local
e tensionamento nas novas formas de processo de trabalho inseridos dentro
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da linha de cuidado estabelecida pela Cooperação Interfederativa; ou seja,
os esforços conjuntos da Secretaria Municipal de Saúde Porto Alegre, da
Secretaria Estadual de Saúde e do Ministério da Saúde, estabelecidos para
gerenciar a situação da epidemia na região metropolitana de Porto Alegre.
De modo concreto, isso significa que em cada unidade básica de saúde
teremos profissionais capacitados a cuidar de pessoas vivendo com AIDS e
com isso teremos também, mais próximos das escolas, unidades de saúde
com profissionais qualificados para conversar sobre doenças sexualmente
transmissíveis, modos de infecção e estratégias de cuidado.
8. PROTOCOLO DE AGENDAMENTO E REGULAÇÃO DE
PACIENTES COM DOENÇAS INFECCIOSAS
O protocolo descreve os critérios estabelecidos para a regulação de
pacientes adultos com Doenças Infecciosas e Parasitárias da rede de saúde do
Município de Porto Alegre. Para a maioria dos agravos, o encaminhamento
é direcionado para infectologia adulto, infectologia HIV adulto e pediátrico,
gastro hepatites virais e lipodistrofia, efeito colateral da terapia antirretroviral
que altera a distribuição de gordura do organismo com concentração de
gordura na barriga, costas, pescoço e nuca e perda de gordura nos braços,
pernas, nádegas e face e que acarreta também alterações metabólicas como
o aumento do colesterol e dos triglicérides, elevando o risco de problemas
cardíacos.
No contexto da infecção pelo HIV/AIDS, respeitando-se a linha de
cuidado em implantação pela Área Técnica quando o diagnóstico é feito
na rede de Atenção Primária em Saúde (APS), os pacientes acometidos
por HIV/AIDS (PVHA pessoas vivendo com HIV/AIDS) poderão ter seu
acompanhamento feito pela própria unidade na APS. Além disso, os pacientes
considerados estáveis, pertencentes aos Serviços de Assistência Especializada
(SAEs), ambulatórios ou enfermarias de hospitais podem ter seu atendimento
compartilhado na APS, quer seja para o tratamento de outras enfermidades
ou para acompanhamento de seu tratamento antirretroviral.
Quando há necessidade de exames mais complexos, em nível
ambulatorial, dada a complexidade do paciente ou por não preencher
critérios para atendimento na rede de atenção primária em saúde, a unidade
básica de saúde deverá solicitar agendamento para a subespecialidade
infectologia HIV adulto ou pediátrico, se for o caso. Os critérios de alta
prioridade HIV/AIDS também são apresentados nesse documento. Pacientes
com lipodistrofia podem ser agendados para lipodistrofia HIV para avaliação
de tratamento cirúrgico. Pacientes com HIV/AIDS e que apresentam outras
Doenças Sexualmente Transmissíveis (DSTs), como sífilis e uretrites, quando
indicada abordagem etiológica, devem ser encaminhados ao especialista
dermatologista.
Pacientes com hepatites virais são encaminhados para a subespecialidade
gastro-hepatites virais; pacientes coinfectados com HIV e hepatites poderão
também ser acompanhados para início de tratamento das hepatites no SAE
Hepatites. Para que o agendamento ocorra apropriadamente é fundamental
que a atenção primária em saúde, feita em unidade básica de saúde ou em
unidade de saúde da família, solicite inserção dos pacientes no AGHOS
a partir do CID conforme os critérios, observações e CIDs apresentados
dentro do documento.
A otimização da assistência inclui a ideia do “paciente certo no lugar
certo”, ou seja, a utilização da rede de saúde pelo usuário conforme o nível de
complexidade necessário para a sua condição de saúde no momento. Desse
modo, é fundamental a clareza tanto das necessidades de saúde relacionadas
à prevenção e ao tratamento das doenças infecciosas mais prevalentes no
município, das particularidades dos pacientes, assim como da logística,
dos fluxos, dos recursos humanos e materiais de toda a rede. O protocolo
apresenta as necessidades e a rede disponível para o atendimento e para a
atenção dessas necessidades das pessoas acometidas por doenças infecciosas
do município. Em um segundo momento, os fluxos e encaminhamentos
de agendamentos e de regulação desses pacientes são detalhados por
especialidade e subespecialidade, por nível de complexidade e por local de
atendimento.
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9. PROJETO GARANTIA DE ACESSO – ATENDIMENTO À
DIVERSIDADE
Apesar da sistemática omissão dos boletins epidemiológicos brasileiros,
é sabido que a população de travestis e transexuais apresenta as maiores taxas
de incidência de HIV e de mortalidade a ele relacionadas. No banco de dados
em Porto Alegre, há a limitação formal da impossibilidade de categorizar essa
população no sistema de notificação. Muito provavelmente essas populações
podem estar enquadradas na categoria HSHs (homens que fazem sexo
com homens), mas até o presente não temos dados referentes a elas. A
pesquisa de Magnor Müller (2007) aponta fatores como vulnerabilidade,
exclusão social, desinformação quanto à importância da prevenção e, em
casos reagentes para o HIV, a quase nula adesão ao tratamento, quando não a
sua completa interrupção, devido a dura rotina de travestis e transexuais na
relação com o SUS municipal. Nesse quadro adverso, em que a maioria das
travestis enfrenta as ruas e suas violências (clientes, comunidade no entorno,
policiais), cotidianamente para a prática da prostituição, como única forma
de sobrevivência, essa vulnerabilidade é associada à maior infecção pelo HIV.
Para atender essa população nas suas condições singulares, foi criado,
em 2014, em Porto Alegre, o projeto “Garantia de Acesso – atendimento à
diversidade”, uma capacitação no próprio serviço, em que são convocados
todos os trabalhadores da unidade (porteiros, servidores de limpeza, auxiliares
de enfermagem, técnicos, enfermeiros, dentistas, médicos) para a atividade.
Trata-se de uma experiência inédita no contexto nacional, em que uma atriz
encarna uma travesti que busca uma unidade básica de saúde para seu fictício
atendimento. A unidade está sem atendimentos externos naquele horário,
pois aguarda uma capacitação a ser realizada pela Área Técnica DST/AIDS.
A “travesti” – na realidade, uma performance profissional da atriz – tenta
acessar a unidade reclamando alguma moléstia (náuseas, vômito, coceiras,
febre, diarreia) para buscar atendimento. Ressalte-se que sempre técnicos
da área técnica acompanham essa performance, observando à distância, nas
imediações da unidade, sem qualquer intervenção enquanto ocorre a cena.
Passados em média 15 minutos, há sempre duas situações: ou a “travesti” é
acolhida, tem ouvidas as suas queixas e recebe um encaminhamento, ainda
que seja para voltar em outro dia, ou tem negado o atendimento, com a
justificativa que não há profissionais disponíveis para o acolhimento naquele
momento em razão da atividade de capacitação. Após o impacto da presença
da “travesti” na unidade e o sucesso ou não de busca por atendimento,
os técnicos entram na unidade, se apresentam enquanto tais e, de pronto,
convidam a “travesti” para acompanhá-los na capacitação. A partir daí,
ocorre uma apresentação formal entre todos os presentes, inclusive da
“travesti”, e começa uma discussão de cerca de uma hora e meia sobre as
dificuldades do atendimento a travestis e transexuais no SUS municipal,
em que, invariavelmente são ouvidos relatos quanto à dificuldade de uso
do nome social por parte dos servidores, desconhecimento da portaria
municipal que institui tal procedimento, ideias equivocadas quanto a gênero
e orientação sexual; momentos em que muitas vezes preconceitos, nem
sempre tão velados, praticados contra essa população aparecem.
Após esse debate, já no final da capacitação, a atriz é convidada a
se “desmontar” e se apresenta como mulher e atriz, retirando cuidadosamente sua peruca e maquiagem. Mediante a surpresa da revelação, todos
os servidores comentam sobre a “pegadinha”. Nesses momentos, os
técnicos da área técnica reforçam os alarmantes índices do HIV em nossa
cidade, com vulnerabilidade maior justamente na população de travestis
e transexuais, que sofrem com o despreparo dos serviços em acolhêlas, tratá-las e orientá-las em situações que dizem respeito a sua saúde,
suas particularidades e os direitos de serem acolhidas e bem tratadas como
qualquer outro usuário do SUS.
A estratégia de ação acima mostra como são efetivos os recursos da
dramatização e do teatro, que podem também ser utilizados nas escolas
para mostrar as difíceis condições de convívio com as diferenças de gênero
e sexualidade.
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10. CRUZAMENTOS ENTRE SAÚDE, EDUCAÇÃO E DIREITOS
HUMANOS
A escola deve se valer das parcerias com as unidades básicas de saúde,
com os programas de saúde que existem em sua localidade, para auxiliar
no processo de informação e educação acerca das doenças sexualmente
transmissíveis. Sabemos dos conflitos entre as orientações familiares,
orientações das religiões e orientações da área da saúde em particular nessas
doenças que são resultado da vida sexual. Entretanto, de modo respeitoso
e em sintonia com os conhecimentos científicos e com os referenciais de
direitos humanos, a escola deve se afirmar como um local para conhecimento
e aconselhamento. Vale lembrar que a escola, como também o posto de
saúde, são espaços públicos, e sua tarefa é ensinar o respeito pela diversidade
de gênero e de sexualidade, bem como assegurar que todos tenham acesso
ao cuidado em saúde. Certamente a escola sozinha irá enfrentar muitos
problemas para abordar esses temas, mas em parceria com os órgãos de
saúde pública, bem como com as estruturas de direitos humanos, como
unidades do ministério público, ela poderá se tornar um local de referência
para a informação e educação em saúde sexual.
11. REFERÊNCIAS
BRASIL. Departamento de DST, Aids e Hepatites Virais. Boletim Epidemiológico de Hepatites
Virais - 2014. Disponível em: < http://www.aids.gov.br/system/tdf/pub/2014/73/boletim_epidemiologico_hivaids_-_2014.pdf?file=1&type=node&id=73&force=1>. Acesso em: out.
2015.
BRASIL. Departamento de DST, Aids e Hepatites Virais. Boletim Epidemiológico de Hepatites
Virais - 2015. Disponível em: <http://www.aids.gov.br/system/tdf/pub/2015/90/boletim_hepatites_2015.pdf?file=1&type=node&id=90&force=1>. Acesso em: out. 2015.
BRASIL. Prefeitura Municipal de Porto Alegre. Plano de Enfrentamento da epidemia de HIV/AIDS
em Porto Alegre. Secretaria Municipal de Saúde e Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento/PNUD-Brasil, 2013.
MÜLLER, M. I. Os médicos nunca me tocaram um dedo! Eu cansei daquele posto!: a percepção das
travestis quanto ao atendimento em saúde. Porto Alegre: Universidade Federal do Rio Grande
do Sul, 2007.
RESUMOS DOS TRABALHOS FINAIS
DOS ALUNOS
1. POLO: PORTO ALEGRE
Aluno(a): Gilberto Puntel
Escola: Escola Estadual Nossa Senhora de Fátima
Título do trabalho: Caminhos a percorrer
Resumo:
A atividade planejada foi a organização de materiais didáticos para
tradução ao sistema do alfabeto braile e sensibilização das pessoas à
necessidade de sinalizadores horizontais no prédio da escola, bem como a
alteração da aclividade da rampa que dá acesso ao segundo piso. Essa ação
foi escolhida em razão de a escola possuir um aluno cego e não dispor de
material didático traduzido para o braile e pelas condições de acessibilidade
da escola, pois a mesma possui muitos degraus com rampas pouco
acessíveis. O principal objetivo foi a obtenção de material traduzido para o
braile; objetivo este já atingido. No entanto, a situação de acessibilidade e
sinalização dependerá do investimento do governo do estado, para o qual se
aguarda disponibilização de recursos.
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Aluno(a): Iaraci de Souza Silva
Escola: Escola Municipal de Ensino Fundamental Nossa Sra. do
Carmo
Título do trabalho: As linguagens como instrumento
desencadeador do tema da diferença socioeconômica em
uma turma de jardim B – João e Maria
Resumo:
Vivemos novos tempos nos quais identificamos no cotidiano escolar
“uma criança de diferentes infâncias” (Dornelles, 2007) e, talvez, o mais
interessante seja saber que esses sujeitos surgiram na década de 1990 com a
era tecnológica, a mídia e outros fatores socioculturais. Diante do exposto,
vamos nos ater à infância pobre na periferia, partindo do marcador social
de diferença socioeconômica em vista da nossa realidade e de termos
vivenciado uma situação de discriminação dessa natureza no nosso grupo de
crianças da educação infantil (crianças de uma turma de Jardim B, do turno
vespertino, da EMEF Nossa Senhora do Carmo, localizada na periferia
de Porto Alegre). É verdade que o tema em questão não é, infelizmente,
novidade para quem convive nesse contexto. Entretanto, pretendemos
aqui dar a devida visibilidade ao assunto, pois temos nos preocupado com
uma educação conteudista há muito tempo e, apenas há cerca de 20 anos,
estamos revendo nossos conceitos, nossa prática pedagógica e nossos valores
na educação, como podemos constatar no texto de lei da LDB – Lei 9394/
96 – Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (MEC), quando esta
menciona, em seu Art. 2º a finalidade da educação nacional: “A educação,
dever da família e do Estado, inspirada nos princípios de liberdade e nos
ideais de solidariedade humana, tem por finalidade o pleno desenvolvimento
do educando, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação
para o trabalho”. Para tanto, nos valeremos das teorias de Freire, Dornelles,
Sarmento, Parode, Gardner e Goleman, a fim de darmos fundamentação
teórica ao processo de execução da proposta; uma proposta que será
articulada progressivamente com as crianças, considerando-as em sua
singularidade e subjetividade enquanto produtoras de cultura (Sarmento,
2007), logo, capazes de atuarem socialmente pelos seus direitos.
Aluno(a): Jairo Adilson Stangherlin
Escola: Escola Municipal de Ensino Fundamental Victor Issler
Título do trabalho: O direito de jogar futebol
Resumo:
Introdução: André é um menino que nasceu com agenesia de pés e
mãos, mas adora jogar futebol, tendo treinado e participado de jogos nos
últimos anos. Á medida que cresce, aumentam as dificuldades e diminui
sua participação, uma vez que o seu direito de jogar vai sendo burlado pelo
crescimento das diferenças entre ele e os colegas. Assim propusemos fazer a
mediação para tornar sua participação mais justa.
Objetivos:
• Melhorar a participação de André nos treinos e jogos;
• Usar a mediação para resolver os conflitos no jogo.
Metodologia: A metodologia usada será a mediação de conflitos.
Referencial teórico: O esporte rompe várias barreiras para a pessoa
com deficiência. É uma forma de reabilitação física e psicológica que, além
de ajudar a vencer o preconceito, mostra à sociedade que sua vida pode ser
ativa, competitiva e autônoma.
Desenvolvimento: a proposta de intervenção usou a mediação para
tornar as adaptações feitas nos jogos mais justas para a participação do
André nos jogos e treinos.
Resultados obtidos: Ao longo dos treinos os outros alunos agem com
André como um jogador de menor habilidade, não passando a bola. Somente
com a mediação e intervenção, eles passam a bola ou deixam que cobre
faltas, pois, na ânsia de vencer o jogo, eles agem sem pensar nos outros.
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Conclusão: A vida do deficiente físico no futebol é complicada, pois a
visão que impera é de vencer a qualquer custo e não a do jogar com o outro;
dessa forma as diferenças vão aumentando e o diferente vai sendo excluído
do sistema.
Referência: Declaração Universal dos Direitos Humanos; Cartilha
IBDD dos direitos da pessoa com deficiência.
Aluno(a): Leonardo Rocha de Almeida
Escola: Escola Municipal de Ensino Fundamental Inácio de Quadros
(Guaíba/RS)
Título do trabalho: O gênero nas brincadeiras infantis: as
músicas de pular corda
Resumo:
Durante minhas atividades junto às turmas de Educação Infantil e Ciclo
de Alfabetização, tenho me deparado com a recorrência do debate sobre
gênero. Isso se dá pelo fato de eu ser visto pela sociedade como homem e, a
partir dessa visão, um “ser estranho” às classes que trabalham com crianças
pequenas. Dessa forma, sempre chamou atenção das crianças quando eu
brincava com elas das mais diversas atividades, como cirandas, pular corda,
dançar, etc. A partir da experiência, fui percebendo como as brincadeiras
infantis carregam estereótipos de gênero e escolhi como atividade final do
curso trabalhar com o pular corda. Foi realizado junto às crianças do 1º
ano do ensino fundamental da turma em que sou docente um debate sobre
brincadeiras que estes consideravam de meninos e brincadeiras que eles
consideravam de meninas. Partimos das falas e fomos brincar de pular corda,
a brincadeira mais votada pelos alunos. Cantamos as músicas e eu, enquanto
professor, percebi o caráter domesticador das mesmas por incentivar o
casamento e a escolha de namorados para as meninas. Durante o tempo de
brincadeira, outra turma se juntou para pular corda e os alunos puderam
interagir. Ao final, voltamos para a sala e discutimos novamente sobre o
que havia acontecido, se os alunos haviam gostado e se algum menino tinha
virado menina. Concluímos que não era a brincadeira, ou o que a gente gosta
de fazer, que nos transforma em menino ou menina. Realizamos assim uma
atividade voltada para a alfabetização como forma de síntese do trabalho
para expor aos pais nos corredores da escola. Enquanto professor, percebi a
importância de trazer situações cotidianas a uma nova perspectiva, como foi
o caso de pensar essas músicas que estão tão inseridas no cotidiano escolar,
podendo assim problematizar junto aos educandos e proporcionar novas
possibilidades de interação no mundo.
Aluno(a): Leticia Svoboda
Escola: Escola Estadual Gen. Daltro Filho
Título do trabalho: Somos todos iguais nas diferenças
Resumo:
Realizei a intervenção com uma turma de 16 crianças de 7 a 8 anos
do 2º ano do ensino fundamental de uma escola pública da rede estadual
de Porto Alegre. O objetivo era sensibilizar as crianças sobre as diferenças,
apresentando através da literatura infantil a realidade das pessoas com
necessidades especiais; incentivando um novo olhar sobre a diversidade que
promova o resgate da cidadania, da solidariedade e da inclusão, através da
aceitação pessoal e social das pessoas, bem como o respeito às diferenças e o
senso de justiça através do diálogo. Iniciei com a leitura Na minha escola todo
mundo é igual e fiz duas perguntas: “O que vocês acham que é ser igual?” e
“O que nos falou a história?”. Várias respostas surgiram. Muitas propostas
puderam ser realizadas para sensibilizar as crianças, como painel com
recortes mostrando as diferenças entre as pessoas, com olhos vendados tentar
descobrir objetos através do tato, falar sobre LIBRAS e braile, entre outras.
Estou satisfeita com o desenvolvimento do projeto até aqui, pois percebo
que as crianças são abertas a novas experiências e não fazem distinções entre
si mesmas. Aceitar as diferenças é primordial para estabelecer a convivência
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e o desenvolvimento das relações humanas, afinal somos todos diferentes
uns dos outros, mas com os mesmos direitos.
Aluno(a): Olga Madalena Boelter
Escola: Escola Estadual de Ensino Fundamental Dr. Oswaldo Aranha
Título do trabalho: Racismo? Preconceito? Que feio!
Resumo:
Como professora de História, constantemente trabalho temas
relacionados à história da África e dos direitos humanos. A proposta de
intervenção pedagógica partiu de uma situação de violação de direitos
humanos, quando um aluno se referiu a uma colega com uma palavra ofensiva
e racista. Iniciando os trabalhos com os vídeos do projeto A Cor da Cultura,
os alunos foram provocados à seguinte reflexão: se todos somos iguais, por
que o preconceito? E como cor, cada um tem a sua, foram convidados a
colorir os desenhos de menino/menina de acordo com seu tom de pele,
utilizando gizes de cera da coleção Pintkor (Korale/Uniafro), com a intenção
de desconstruir a dicotomia preto/branco. A ideia é seguir inserindo o tema
dentro da disciplina, culminando em uma saída de campo, ao final do ano,
no “Percurso Territórios Negros: afro-brasileiros em Porto Alegre”.
Aluno(a): Priscila Vieira Bastos
Escola: Escola Estadual de Ensino Fundamental Vila Jardim
Renascença
Título do trabalho: Cultura do estupro
Resumo:
Busquei abordar primeiramente o que os alunos entendiam por
estupro, apresentei o conceito e posteriormente trabalhei um pouco a Lei
Maria da Penha. Após, realizei uma reflexão com os alunos a respeito dos
rótulos sociais que são impostos às mulheres ao longo das décadas, em
situações como a utilização de bebida alcoólica, uso de minissaia ou roupas
justas, batons de tons fortes, etc. Contudo, o mais impressionante foi que
tanto os meninos como as meninas acreditam que a mulher que bebe não
tem direito algum sobre seu próprio corpo, diferente do homem; mesmo
com pouca idade os educandos demonstraram um posicionamento voltado
para o patriarcalismo. Obviamente suas identidades estão em construção
e no presente momento o que é passado como correto pela família é o
que lhes parece ser a única via de pensamento. Observei que as meninas
achavam realmente que o batom vermelho provoca os meninos a as beijarem
e que se isso acontecer de modo forçado é considerado normal, já que elas
os instigam a este fato. Por fim, procurei fazer com que eles refletissem que
todas as mulheres podem sair para a rua de minissaia ou com saia longa e
que elas devem ser tratadas da mesma forma respeitosa, pois não é uma
vestimenta ou maquiagem que pode “rotular alguém”.
Aluno(a): Taís Palácios Fraga Uema
Escola: Escola Estadual de Ensino Médio Orieta
Título do trabalho: Escola, local de aprendizagens e conflitos
Resumo:
O curso de Direitos Humanos na Educação me deu subsídios para
trabalhar questões que envolviam etnia e preconceito em sala de aula.
Procurei desenvolver atividades em que os alunos pudessem se perceber
como diferentes na cor e nas características físicas, mas que isso não os
diferenciava nos seus direitos e obrigações. Por serem alunos do 4º ano do
ensino fundamental, busquei através do lúdico desenvolver nesses alunos
uma visão social humana e o respeito ao próximo e à diversidade. Para
desenvolver este trabalho, utilizei os recursos que a escola oferecia, como
vídeos, músicas e textos, o que facilitou na hora de prender a atenção dos
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alunos. Ao final de cada aula fazíamos a “roda da reflexão”, quando eles
ficavam livres para falar se já haviam sofrido algum tipo de preconceito,
como reagiram e qual a atitude que tomariam se fosse hoje. A partir dessas
atividades, os alunos iniciaram um processo de conscientização sobre seus
atos, direitos, deveres e respeito ao próximo.
Aluno(a): Vania Paiva Golgo
Escola: Escola Estadual de Ensino Fundamental Aurélio Reis
Título do trabalho: Xô Preconceito! Racismo, tô fora!
Resumo:
Apresento uma proposta de intervenção em algumas das situações
nas quais diagnostiquei uma possível violação dos direitos humanos. O
preconceito, pertinente ao racismo e às formas ofensivas das brincadeiras
racistas que os alunos utilizam no ambiente escolar, foi o motivo para a
escolha de uma prática do diálogo e do perguntar restaurativo. São situações
conflituosas vivenciadas no dia a dia, depreciando o funcionamento de
toda uma rotina escolar. Sendo assim, essa abordagem objetiva trabalhar
com práticas restaurativas no gerenciamento desses conflitos. Nessa
perspectiva, buscaremos uma abordagem por meio de uma sequência de
diálogos e intervenções no aprender a respeitar e no exercício da reflexão
e da cooperação. Apresentamos o perguntar restaurativo, elaborado no
Guia Prático para Educadores (2014): o que aconteceu? Quem foi afetado
ou sofreu algum dano? Como você acha que a vítima se sente? Quais as
soluções que podem beneficiar cada um dos envolvidos? A intervenção
desenvolvida na escola foi bastante complicada, pois estávamos entrando
em férias e precisaríamos de mais tempo e espaço físico, além de pessoal
capacitado para o desenvolvimento da proposta. Logo, as dificuldades foram
muitas. Acrescenta-se a isso que práticas restaurativas aplicadas no contexto
escolar guiam as pessoas para lidar com conflitos de forma diferenciada e
comprometida, levando o aluno à reflexão, responsabilização e restauração
dos danos causados. Sendo assim, destacaria Santos (2014, p. 2) quando
aborda a respeito dos conflitos: “Um conflito bem administrado pode servir
para modificar comportamentos, tanto dos envolvidos, como de outros
atores ao redor deles”. Vale a reflexão!
2. POLO: SANTO ANTÔNIO DA PATRULHA
Aluno(a): Ariana Souza Cavalheiro
Escola: Escola Municipal de Ensino Fundamental Michigan
Título do trabalho: Discussões acerca das relações étnico
raciais e a diversidade com o público infantil
Resumo:
O objetivo deste relatório é contar um pouco das atividades que se
efetivaram na escola onde trabalho sobre os temas raça/cor/etnia, a fim
de intervir sobre algumas práticas de racismo, violência, discriminação e
preconceito que acontecem dentro da escola. A relevância dessa intervenção
se dá pela falta de discussão e pelas atitudes que afirmam o preconceito
com as crianças negras, seja pela cor de sua pele, pelo seu cabelo ou pela
sua condição social. Dialogar e discutir sobre a importância de tais ações
afirmativas trabalhadas com o público infantil acerca da diversidade, suas
etnias e as origens afro-brasileiras torna-se extremamente importante para
que elas percebam e respeitem a singularidade de cada um. Essa intervenção
aconteceu a partiu de uma pesquisa apresentada pela mídia no mês de
novembro de 2013, a qual apresentava a concepção das crianças em faixa
etária entre 4 e 5 anos, sobre as bonecas “branca e negra”. Nesse sentido,
irei deter-me em apresentar algumas discussões que estão entrelaçadas a
esse discurso, destacando alguns pontos que nos levam desde pequenos a
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......
assumir outra identidade e ao não reconhecimento de uma identidade negra.
Uma verdadeira chuva de notícias, informações e matérias são realizadas
somente no mês de novembro, mês em que se comemora a Consciência
Negra. Assim, as discussões que precisam estar dentro do espaço da escola e
da sala de aula só aparecem quando esse mês se aproxima, esquecendo que
milhares de crianças, professores(as) e funcionários(as) negros fazem parte
desse ambiente. Mas, entre essas inúmeras matérias, a que mais me intrigou
foi uma pesquisa realizada com crianças, de faixa etária entre 4 e 5 anos, da
educação infantil de uma escola de periferia da região de Porto Alegre. Vale
pensar que nesta idade em que se encontram as crianças elas não possuem
um contato maior com discussões, mesmo que esses assuntos possam ser
tratados através de projetos. Então, penso que a proposta de se trabalhar
e apresentar uma boneca negra para as crianças em fase pré-escolar irá
auxiliar na construção da sua identidade enquanto afrodescendente. É como
se vissem em um espelho sua imagem refletida, onde suas características
também fossem representadas por esse brinquedo tão cobiçado.
Aluno(a): Claudia Emi Yoshida
Escola: Colégio Estadual Deoclécio Ferrugem
Título do trabalho: A Iniciação Científica como estratégia de
intervenção pedagógica
Resumo:
Como única escola de ensino médio da cidade, atendemos a todos os
jovens de diferentes classes sociais. Aqueles que vão para o turno da noite
precisam trabalhar, diferente dos que estudam de manhã e, aparentemente,
têm maior apoio da família nos estudos e não trabalham; por isso, há o
entendimento de que à noite estudam os jovens de menor poder aquisitivo.
É unânime a fala dos professores de que o turno da manhã é completamente
diferente do da noite. Dizem que os alunos da noite não têm interesse pelas
atividades, não fazem os trabalhos de pesquisa nem os estudos em casa. Não
são observadas, no entanto, as dificuldades que esses jovens enfrentam, tanto
sociais, como psicológicas ou familiares. Quando as atividades não fazem
sentido para a realidade do estudante, acontece o desinteresse. Isso indica
que eles têm deixado de ser atendidos nas suas necessidades e especificidades
por serem diferentes daquele ideal de estudante do imaginário da maioria
dos professores. É importante buscarmos alternativas pedagógicas que visem
atendê-los quando pensamos que a escola é para todos. A escola precisa
se dar conta de que temos grupos heterogêneos e que as metodologias
não funcionam quando padronizadas. Trabalhar com Iniciação Científica,
em que existe investigação de uma curiosidade genuína do aluno, pode
fazer com que ele se interesse pelas atividades, porque observará que seu
trabalho responderá a uma questão que ele considera relevante. Isso pode
movê-lo de forma a se organizar, desenvolver senso crítico e autonomia,
participar mais das aulas, ter interesse em aprender, trocar experiências
com os colegas e professores, responder às solicitações dos professores e
tornar-se, de fato, um estudante. O resultado do trabalho com esses jovens
não foi diferente, porém em proporção menor do que com os do turno
da manhã. Eles se interessaram em desenvolver a atividade proposta e se
envolveram com o trabalho satisfatoriamente, confirmando a teoria de que
atividades específicas que visem atender às especificidades dessa juventude
são eficientes para favorecer o processo de ensino e aprendizagem.
Aluno(a): Claudia Plá Nogueira
Escola: Escola Municipal de Ensino Fundamental Getúlio Vargas
Título do trabalho: Somos todos diferentes
Resumo:
Todos os caminhos da educação levam ao trabalho com a diversidade
e, para tal, precisamos desmitificar esse universo de diversidade e construir
valores junto aos alunos. Pretendeu-se, através deste estudo, trazer o debate
sobre gênero à escola, propondo a ampliação dos horizontes dos alunos e
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proporcionando a discussão e o entendimento de que todos somos diferentes,
buscando o relacionamento dos alunos livres de atitudes e pensamentos
preconceituosos. Buscando conhecer o grupo de alunos e tencionar a
problemática entre os alunos da turma 53 da Escola Municipal de Ensino
Fundamental Getúlio Vargas, em Cachoeirinha, se iniciou o trabalho com a
leitura do livro Chega de rosa, da autora Nathalie Hense. Após, foi solicitado
que os alunos fizessem um reconto oral da história, quando se encorajou
a participação de todos, colocando aspectos que mais lhe chamaram a
atenção. Em seguida, foi feita a brincadeira do “saco surpresa”: cada um
deveria retirar do saco um brinquedo sem poder escolher, ler a pergunta
que estava colada ao mesmo e respondê-la com a ajuda dos colegas. Todas
as perguntas tinham um cunho desafiador no sentido de fazê-los refletir
sobre suas concepções e problematizar cada situação exposta. Todas as
conclusões finais dos alunos, a partir de cada questão, foram anotadas em
um grande cartaz que simbolizou a concepção dos alunos frente à relação
proposta. A partir da atividade com a turma, foi possível sugerir à escola e
à professora que incorporem o debate das questões abordadas no trabalho
durante as aulas, assim como atividades que estimulem a cooperação e a
colaboração entre os alunos. Afinal, a fim de que possamos desenvolver uma
cultura democrática e colaborativa, temos que viabilizar a construção de
novas relações entre homens e mulheres através dos princípios de justiça e
igualdade entre todos.
Aluno(a): Janaina Peixoto de Freitas e José Carlos Ferrari Júnior
Escola: Escola Municipal de Ensino Fundamental São Pedro
Título do trabalho: O Rio Grande do Sul também é terra de
batuque, griô, turbante e Lupicinio Rodrigues
Resumo:
No Brasil, a educação antirracista é direito de todos; porém, como se
dá esse direito é uma outra história bem diferente. No estado do Rio Grande
do Sul, a situação é a mesma. Nesse sentido, junto a uma turma de 5º ano
da Escola Municipal de Ensino Fundamental São Pedro, promovemos uma
oficina que suscitasse questionamentos referentes à invisibilidade do negro,
materializado pelos livros didáticos de Geografia e História do Rio Grande
do Sul. O objetivo da realização dessa atividade foi resgatar e valorizar o
papel do negro na formação histórica, espacial, social, econômica e cultural
do estado e discutir com os alunos o que vem a ser racismo institucional.
Dentro dessa perspectiva realizamos três encontros, perpassando desde a
relação Brasil X África, o papel do negro na formação econômica, social e
cultural do Estado, a visibilidade de personalidades, festas e aspectos culturais
relevantes para a história do Estado até a reflexão de como o negro é tratado
nos livros didáticos. O planejamento da atividade aconteceu nos momentos
destinados ao planejamento individual de cada professor, impossibilitando,
às vezes, que professores pudessem discutir em conjunto detalhes da
oficina, sendo, sem dúvida, a principal dificuldade a falta de tempo para
planejar as atividades. Porém, os resultados foram bem interessantes. Os
alunos desenvolveram reflexões bastante instigantes em relação ao cotidiano
urbano, como questionamentos em relação à forma como os livros mostram
os imigrantes europeus em festas e os negros não, sabendo, por exemplo,
que só em Porto Alegre temos festas importantes como a de Ogum no
bairro Ipanema, de Iemanjá no Lago Guaíba e o Carnaval e nada disso é
relatado nos livros. Penso que foi bem proveitosa a atividade; para o segundo
semestre, iremos pensá-la e qualificá-la com professores de História,
Geografia, Língua Portuguesa, Artes e Educação Física, nas turmas dos 6º
anos, nas quais temos várias situações de práticas de racismos.
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Aluno(a): Karen Graziela Weber Machado
Escola: Escola Municipal de Ensino Fundamental Arthur Ostermann
Título do trabalho: A inclusão escolar de alunos com
deficiências
Resumo:
O presente estudo refere-se a uma proposta de intervenção
desenvolvida em uma turma de 4º ano do ensino fundamental de uma
escola da Rede Pública Municipal de São Leopoldo, devido ao fato do
grupo de alunos isolarem uma colega deficiente física no momento do
desenvolvimento das atividades propostas. A Constituição Federal diz no Art.
205 que “[A] educação, direito de todos e dever do Estado e da família, será
promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno
desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua
qualificação para o trabalho”. Segundo Santos (2015, p. 1), “[...] a educação
é compreendida hoje como um direito humano universal, motivo pelo qual
o acesso à escolaridade é um dever de todos os Estados de oferecerem às
suas populações”. Por outro lado, os educadores têm se deparado com
mudanças no perfil do alunado, pois é cada vez mais frequente a presença de
estudantes que destoam dos demais em razão de algum marcador social de
diferença. Foram trabalhadas na aula questões relacionadas às deficiências,
de forma a proporcionar a reflexão dos alunos sobre a importância da
inclusão de pessoas com deficiência na escola e de respeitar as diferenças,
sendo que a pluralidade favorece que aprendamos uns com os outros
independentemente das nossas características peculiares. Nessa aula os
educandos demonstraram-se empenhados e motivados em realizar as tarefas
solicitadas. Esses reconheceram, através de reflexões individuais e coletivas,
a importância de todos os alunos valorizarem e respeitarem as diferenças
existentes entre eles para terem uma boa convivência e participarem das
atividades propostas, sendo esse um direito de cada um deles. Portanto, a
escola deve contribuir significativamente para o desenvolvimento integral
de cada educando, que precisa ser orientado a respeitar as diferenças
existentes entre as pessoas, contribuindo assim para uma sociedade digna
e democrática.
Aluno(a): Luciane de Oliveira Machado
Escola: Escola Municipal de Ensino Fundamental Judith Macedo de
Araújo
Título do trabalho: Direitos humanos e as relações étnicoraciais – Dia internacional contra a discriminação racial
Resumo:
A atual sociedade e a escola passam por vários processos de discriminação
racial. Esse tema e as situações vivenciadas muitas vezes não são colocados
para discussão na sociedade, tampouco pela escola; porém, a turma B22
da Escola Municipal de Ensino Fundamental Judith Macedo de Araújo
teve muitas oportunidades de ter o saber sobre o processo histórico da
população negra através da troca de conhecimentos, experiências e também
intervenções em razão da discriminação racial ocorrida dentro da escola. A
atividade desenvolvida no mês de março foi sobre o Dia Internacional Contra
a Discriminação Racial. Iniciei a aula dizendo-lhes que a partir daquele
momento estavam proibidos de irem ao banheiro, tomar água e não queria
saber da opinião dos alunos, pois quem manda na sala de aula é o professor.
Os alunos ficaram surpresos com a imposição, questionaram a atitude e
queriam uma explicação. Disse-lhes que a explicação estava embaixo de
suas cadeiras; nelas, havia um texto que explicava: “O Dia Internacional de
Luta pela Eliminação da Discriminação Racial foi criado pela Organização
das Nações Unidas (ONU) e celebra-se em 21 de março em referência ao
Massacre de Sharpevill”. Houve leitura e discussão do texto, bem como
sobre o direito de ir e vir na sociedade, na comunidade em que residem,
preconceitos e discriminações vivenciadas, direitos enquanto cidadãos e
cidadãos negros (Políticas Públicas de reparação) e maneiras de convivência,
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respeitando a diversidade étnico-racial. Os alunos, em grupo, construíram
cartazes com dizeres de respeito às diferenças étnico-raciais e os expuseram
nos murais da escola.
Aluno(a): Marilia de Souza Negreiros
Escola: Escola Municipal de Educação Infantil Peixinho Dourado
Título do trabalho: Sensibilização infantil: ludicidade e
deficiência
Resumo:
A proposta de intervenção foi programada para acontecer numa escola
municipal de educação infantil com o tema ludicidade e deficiência. A
Educação em Direitos Humanos vem ao encontro de capacitar o cidadão
frente aos seus direitos desde a educação básica. O intuito do trabalho era
que os alunos soubessem que somos todos diferentes e alguns precisam
de outras formas de se locomover ou comunicar, mas todos devemos
brincar juntos. Vivências, jogos, vídeos e contação de histórias são práticas
educacionais que utilizamos para viabilizar a informação e são uma
teoria do conhecimento posta em ação (Freire, 1996). O mobilizador da
aprendizagem buscou integrar o deficiente e as crianças com a contação
de histórias por uma adolescente cega a partir de livro escrito em braille,
seguido das atividades com caixa, tapete e jogo da memória, todos táteis.
Encerramos com a assistência a um vídeo e, posteriormente, uma discussão
a respeito das diferenças, reforçando que todos são capazes, cada um com
suas peculiaridades. O segundo turno iniciou com a contação de histórias.
Em seguida, o mestre e telefone sem fio foram escolhidos para brincar com
as crianças. Finalizamos com um vídeo apresentando a Língua Brasileira de
Sinais como forma de comunicação. Com crianças, a forma de intervir deve
se basear no lúdico. Rizzo (2001, p. 40) relata que “[...] A atividade lúdica
pode ser, portanto, um eficiente recurso aliado do educador, interessado
no desenvolvimento da inteligência de seus alunos, quando mobiliza sua
ação intelectual [...]”. Portanto, usando as mais diversas formas que estão
disponíveis e que podemos criar em benefício da qualidade educacional,
seremos formadores de opinião e de cidadãos sensíveis às necessidades de
cada um. Se somos todos diferentes, temos que nos respeitarmos, e cada
um auxiliar na dificuldade do outro. A proposta não foi colocada em prática
devido às férias escolares.
Aluno(a): Natália Vieira de Souza Silvã
Escola: Escola Fundamental La Salle Sapucaia e Escola Estadual de
Ensino Fundamental Professora Silvânia Regina Ávila Alves
Título do trabalho: Direitos humanos para tod@s
Resumo:
Os direitos humanos têm como finalidade a proteção e garantia da
dignidade do ser humano, abrangendo todos os cidadãos. Sabemos que o
nosso país já teve vários avanços, uma vez que tivemos cidadãos que lutaram
por diferentes grupos na busca por equidade. O projeto Direitos humanos
para tod@s surgiu a partir de conversas com os educandos de duas
escolas da comunidade em que sou educadora. As atividades inicialmente
partiram de observações e levantamento de hipóteses, imagens, vídeos,
dinâmicas de grupos; com essas atividades intervimos no contexto escolar,
levando os educandos a refletir sobre as violações dos direitos humanos.
Juntos, educandos e educadores pensaram em ações coletivas para mudar
a realidade da atual sociedade em relação ao tema direitos humanos.
Partindo da realidade dos educandos, tivemos oportunidade de debater
sobre as temáticas cor, raça e etnia, buscando a valorização das pessoas que
fazem parte da nossa sociedade. Refletimos sobre os direitos humanos no
contexto escolar, levando os educandos a pensar nas violações dos mesmos
em diferentes contextos sociais, ou seja, na escola ou em qualquer lugar na
nossa sociedade. Com o Projeto Direitos humanos para tod@s repensamos
valores, objetivos e características que são importantes para o que vivemos
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e desejamos viver. Portanto, quando levamos para o contexto educacional
assuntos diversificados como os direitos humanos, ampliamos o olhar do
nosso educando, permitindo que o mesmo seja protagonista das ações da
sociedade. Os educandos tiveram a oportunidade de dar opiniões e ideias,
colocando-as em prática em suas atitudes do dia a dia.
Aluno(a): Priscila Estanislau
Polo Santo Antônio
Título do trabalho: Conhecendo os direitos humanos
Resumo:
O trabalho de conclusão de curso consistiu em um projeto de
conscientização dos direitos fundamentais dos seres humanos. A proposta
tem como foco a abordagem dos direitos humanos, respeito às diferenças e
tudo que norteia o preconceito e a discriminação, com ligação a cidadania,
deveres e direitos previstos na Constituição Federal e democracia, com
ligação a resolução de conflitos e mediação. O objetivo é demonstrar aos
alunos, através das atividades propostas, as desvantagens que o preconceito
gera. O estímulo para que os alunos tenham a capacidade de identificar
quando algum crime de discriminação está sendo praticado e, ao perceberem
tal violação, saberem como agir. A partir desse conhecimento, qualquer
projeto referente a respeito ao próximo, cidadania, mediação terá facilidade
em sua aplicabilidade.
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Aluno(a): Rochele Jesus de Oliveira
Trabalho realizado em função da violação dos direitos de uma criança
com necessidade especial, não em ambiente escolar.
Título do trabalho: Todas as escolas são para todos os
alunos
Resumo:
O marcador social escolhido por mim é deficiência; então, venho
falar de um ex-aluno da minha escola que tem paralisia cerebral e vem
lutando por uma vaga no ensino regular. A escola, ou melhor, o estado, não
disponibiliza uma monitora para atender esse aluno. Acho que isso é uma
violação dos direitos dessa criança de querer estudar e não ser aceita por
essa escola do estado. Onde está nossa dignidade de pessoa humana, nosso
direito à vida? Como estão levando em consideração nossas necessidades
especiais no planejamento econômico e social e onde está nossa igualdade de
oportunidades? Somos uma população muito grande em todos os países do
mundo para continuarmos ignorados e esquecidos por décadas e décadas,
sendo vítimas silenciosas das violações dos direitos humanos. São vítimas
de violações aqueles que estão privados de sua liberdade e também aqueles
que não têm acesso à educação por não contarem com meios adequados de
comunicação ou facilidades de acesso ao meio físico. As pessoas deficientes
e/ou com necessidades especiais continuam entendendo que os seus direitos
são desrespeitados e que estão assegurados apenas no papel. Então, pensei
em fazer uma campanha virtual de mobilização através de cartazes para
ajudar essa criança a ser um aluno incluso nesse meio, pois assim acho que
seria uma campanha mais efetiva e simples de desenvolver, mas que iria
tocar o coração e a consciência de cada cidadão. Para atingir os objetivos, ou
seja, neutralizar ou eliminar o preconceito contra a pessoa com deficiência,
devemos desenvolver ações fundamentais de conscientização, promovendo
uma maior reflexão de comportamento nas pessoas em geral.
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Aluno(a): Taís Barbosa Rodrigues
Escola: Escola Municipal de Ensino Fundamental José de Anchieta
Título do trabalho: Direitos humanos e cidadania no
contexto escolar
Resumo:
O presente estudo refere-se a uma proposta de intervenção
desenvolvida em uma turma do 4º ano na Escola Municipal de Ensino
Fundamental de Santo Antônio da Patrulha, por ser uma turma que entra
em conflito diariamente devido às diferenças entre os perfis de educandos,
entre identidades. É importante reconhecer a necessidade de desenvolver
atividades em que os alunos possam refletir sobre suas atitudes frente
aos demais colegas e professores. Santos (2015, p. 1) destaca que “[e]m
razão disso, os educadores têm se deparado com mudanças no perfil do
alunado: é cada vez mais frequente a presença de estudantes que destoam
dos demais em razão de algum marcador social de diferença”. O objetivo
foi proporcionar atividades e momentos de interação em que os educandos
conheçam o Estatuto da Criança e Adolescente (ECA), bem como o
Estatuto do Idoso. As seguintes atividades foram realizadas no momento da
intervenção: pesquisa familiar; hora do conto; dinâmica; vídeo; construção
de cartaz e de vídeo através dos desenhos. Os alunos não conheciam o ECA
e o Estatuto do Idoso. No primeiro momento, os alunos selecionaram os
colegas para ficar no grupo. Mas, com o decorrer da aula, mudaram de
atitude e foram muito participativos, relacionando as rotinas familiares com
a rotina escolar. Sendo assim, reconheço que no espaço escolar as crianças
devem sempre ser incentivadas a respeitar o próximo. Santos (2015, p.4)
diz que “[a] escola não transmite apenas conhecimento intelectual; também
ensina a convivência coletiva”. Os alunos conheceram o ECA e o Estatuto
do Idoso, reconhecendo e valorizando seus direitos e deveres enquanto
estudante, amigo, colega, filho, criança e adolescente.
3. POLO: SÃO FRANCISCO DE PAULA
Aluno(a): Debora Velho Cunchertt
Escola: Escola Municipal de Ensino Fundamental Getúlio Dornelles
Vargas
Título do trabalho: Fazendo arte na escola com Romero
Britto
Resumo:
A atividade proposta foi a reprodução de painéis das obras do artista
Romero Britto, pois sou professora de Artes em uma escola municipal onde
o desrespeito entre os alunos era muito grande. Há turmas em que existem
alunos portadores de deficiência, algo que me chamou a atenção, pois em
todas elas existem um ou mais alunos com necessidades especiais, os quais
sempre eram deixados de fora das atividades pelos colegas. Inicialmente,
portanto, os trabalhos em grupos eram difíceis de ser realizados, pois os
alunos especiais nunca eram escolhidos. Quando comecei com o projeto,
havia muita resistência por parte dos alunos para a inclusão de seus colegas
nos grupos, mas uma das condições era que todos deveriam participar, não
poderia ficar ninguém sem grupo. O trabalho começou e diziam que não iriam
conseguir, que era muito difícil, mas depois da segunda semana o resultado
começou a aparecer, quando conseguiram visualizar o desenho completo;
mesmo sem pintar, ficaram impressionados com o que haviam reproduzido.
Após o trabalho terminado, ficaram encantados, os painéis ficaram lindos,
então falei com a coordenação da escola e coloquei-os em exposição. Os
alunos ficaram muito orgulhosos de seus trabalhos e conseguiram entender
que não é por sermos diferentes que não somos capazes de realizar o que os
outros fazem. Consegui atingir os meus objetivos com essa atividade, mesmo
sabendo que ainda existe muito trabalho para ser realizado com as turmas.
Pude perceber que durante a construção do painel os alunos conseguiram
conversar, trocar ideias sobre como iria ficar melhor e, o que achei mais
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importante, conseguiram ouvir seus colegas sem brigas ou críticas. Tenho
certeza de que aos pouquinhos vamos conseguindo mostrar para eles que
respeito é algo que devemos ter por todos se quisermos que nos respeitem
de volta.
Aluno(a): Delezia Teresinha Martins Da Luz
Escola: Escola Municipal de Ensino Fundamental Engenheiro João
Magalhães
Título do trabalho: Possível intervenção em violação de
direitos humanos
Resumo:
A proposta planejada teve como objetivo principal apresentar as
dificuldades e os preconceitos referentes às pessoas que vêm do interior do
município de São Francisco de Paula. São ações que contrariam a educação
e violam os direitos humanos dentro do contexto escolar. Os marcadores
sociais escolhidos foram raça, cor e etnia. Neste trabalho, foram relatadas
experiências vivenciadas em uma aula de estágio, na disciplina de Ensino
Religioso, com uma turma de quinto ano do ensino fundamental na Escola
Engº João Magalhães, situada na sede, em São Francisco de Paula. Nela há vinte
e quatro alunos com idades variando de dez a dezesseis anos, a maioria vinda
do bairro local e outros vindos do interior deste município, com realidades
bem diferentes entre si. Diante de toda a experiência compartilhada,
ficou na sala e na escola a pergunta que atenta para o autoconhecimento
e questiona a falta de sensibilidade, pois os colegas de classe que diferem
na fala e vestimentas são produtores rurais, responsáveis, de certa forma,
pelo abastecimento de hortifrúti em nossas mesas. Essa agressão verbal seria
um sentimento de desconforto e inquietude diante de trabalhadores que se
apresentam com a mesma faixa etária dos demais em sala de aula. Essa visão
de descontentamento seria uma falta de preparação, já no âmbito familiar.
Com muito diálogo, foi possível estabelecer o respeito, aceitando o colega
com sua origem. Foi possível mostrar as diferenças culturais e partir para
momentos de espaço para socialização de suas angústias e dúvidas. A partir
do diálogo, foi construída uma base para o respeito a cada um, com suas
especificidades.
Aluno(a): Jesica Hencke
Escola: Instituto Estadual de Educação Assis Brasil
Título do trabalho: A complexa construção de gênero no
âmbito escolar
Resumo:
A atividade planejada envolveu um processo de autoanálise e
compreensão etimológica dos termos gênero e identidade de gênero,
perpassando por um processo de análise do espaço intraescolar com a
pretensão de evidenciar como são percebidas as atitudes que refletem
o preconceito e a discriminação sexual dentro do âmbito escolar. A
análise foi feita a partir de um levantamento de impressões, descrições
de cenas e conhecimentos prévios, relacionando-os com o Artigo 2º da
Declaração Universal dos Direitos Humanos. Pode-se destacar que falar de
sexualidades no âmbito escolar é uma tarefa espinhosa, visto que envolve
uma gama de preconceitos que ocasionam constrangimento para quem é
vítima dessas ações. A atividade foi planejada para uma turma de 9º ano
do ensino fundamental numa escola estadual do município de Pelotas.
Esse processo investigativo envolveu observação e escuta atenta. Debater
gênero, sexualidade e diferenças numa esfera cultural contribui para o
rompimento com a ótica da intolerância em busca de respeito, solidariedade
e equidade de direitos e oportunidades; sabe-se que as potencialidades de
um ser humano não se medem por sua orientação ou preferência sexual.
Além do mais, a aprendizagem imersa em grupos heterogêneos contribui
para uma compreensão ampla e multifocal das facetas que configuram o
ser humano e sua vivência em sociedade e possibilita desmistificar pré-
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conceitos e concepções moralistas. Deflagrar as mazelas de uma educação
que foca a sexualidade como fator biológico propenso ao adoecimento é o
primeiro passo para pensá-la como construção social e cultural. Objetivouse perceber, no espaço da sala de aula, se há discriminação e obstrução dos
direitos humanos em relação à identidade de gênero de cada estudante,
além de observar o contexto escolar, registrar cenas que demarcam relações
de gênero tornando-as conteúdo de análise e revalidação curricular. De
forma metodológica, valeu-se da observação participante do contexto
escolar; estudo de temas geradores, tais como gênero, identidade de gênero
e sexualidade num processo interativo e dialógico.
Aluno(a): Luzia Santos
Escola: Escola Olímpio Soares Pinto
Título do trabalho: Direitos humanos, gênero e preconceito
racial
Resumo:
Desenvolvi o meu trabalho sobre gênero. Apliquei a tarefa em uma
turma de terceiro ano, na qual realizamos atividades sobre este tema e sobre
preconceito racial, pois a turma apresentava muitos sintomas em relação a
esse assunto. Usei o texto As borboletas, de Vinícius de Moraes; construímos
borboletas com as mãos e usamos cores diferentes; após, juntamos as mãos,
pintamos com têmperas e anexamos em um cartaz, para construirmos um
texto sobre o respeito às diferenças. Assim, todos escreveram frases. Usei
também a música do Patati e Patatá, Diferentes, e dramatizamos.
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Aluno(a): Marisa dos Reis Costa de Azevedo
Escola: Escola Estadual de Ensino Fundamental Monsenhor Armando
Teixeira
Título do trabalho: Marcador social das diferenças
Resumo:
A partir do surgimento da violação de um dos direitos humanos (questão
relacionada ao racismo), houve a intervenção do professor, conduzindo,
através do diálogo, a uma percepção de que somos todos iguais e de que a
construção do mundo e das belezas que há nele se dá devido às diferenças
das etnias, isto é, diferentes culturas percebidas no mundo inteiro. Trabalhei
leituras de diversos contos africanos, fazendo a interpretação, mostrando
a eles o valor e a beleza da cultura negra, estabelecendo relações com o
cotidiano. É com essas diferenças raciais que surgem as possibilidades de
construções de conhecimentos diversos, na arte, na música, na religião,
na literatura, na medicina, na dança, entre outras, e assim fui tecendo as
minhas aulas, incluindo a leitura de contos africanos que ressaltam a beleza
da cultura negra, mostrando os costumes, as crenças, os ritmos musicais
inclusos na cultura brasileira. Concluímos o trabalho através de uma
reflexão de que devemos olhar o outro, percebendo, notando e observando
não as diferenças de cor de pele, mas sim os saberes diferentes que cada um
pode trocar e agregar aos nossos conhecimentos. Com isso, percebemos
que esses “diferentes saberes” existem em cada um, no preto, no branco e
no índio, que, somando, trocando e agregando, constroem novos saberes
e conhecimentos e que o importante é saber que, independentemente das
diferenças, é preciso manter cordialidade e respeito em relação a tudo o que
é diferente.
232
......
Aluno(a): Natacha Scheffer
Escola: Escola Municipal de Ensino Fundamental João Antonio Satte
Título do trabalho: Diversidade na sala de aula: vivências
cotidianas
Resumo:
O trabalho foi realizado com o intuito de refletir, conscientizar e
valorizar o respeito às diferenças. Teve como objetivo levar os educandos
a conhecer e respeitar as diferentes origens étnicas, percebendo o valor da
sua própria história e o resgate da autoestima. Foram realizadas atividades
de contação de histórias, discussão sobre a temática escolhida e produção
de material. Observou-se nas discussões dos pequenos grupos que os alunos
não utilizaram termos pejorativos ou realizaram brincadeiras que tivessem
teor agressivo no que se refere às questões étnico-raciais. A construção
identitária dos sujeitos é um processo que decorre de uma produção
cultural, na qual a vivência das diferenças é constitutiva, e a marcação social
da diferença é repleta de ações de inclusão e exclusão, de demarcação sobre
quem pertence a determinado grupo e quem não pertence. Pensando nesse
processo, vivenciar e confrontar diferenças no microcosmo da sala de aula
é a possibilidade de se enxergar e enxergar aos outros em um ambiente no
qual a mediação dos conflitos emergentes confere aos sujeitos alternativas
de resolução dentro de um ambiente educativo e protetor. Não é possível,
ainda, verificar se o projeto de intervenção de fato eliminará ou diminuirá
as situações observadas inicialmente; mas a reflexão consistente que se
estabeleceu a partir deste trabalho com certeza interferirá positivamente nas
relações estabelecidas no ambiente escolar.
233
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Aluno(a): Quellen Rodrigues da Silva
Título do trabalho: Intolerância Religiosa –
A importância de trabalhar ensino religioso nas escolas
Resumo:
Este foi o marcador que escolhi para a finalização do curso de Educação
em Direitos Humanos EAD, por ser um assunto intrigante e por gerar
diversos casos de preconceito e intolerância, violando assim os direitos
humanos.
No decorrer do curso, analisando alguns casos, impressionei-me com
um caso em especifico, ocorrido em uma cidade em que trabalhei, onde o
professor teve seu contrato cancelado ao falar sobre “Umbanda” quando
trabalhava religiões em sua turma. Existe um preconceito explícito de pais,
alunos e até mesmo colegas professores sobre tal assunto. Sendo assim, com
a proposta final de elaborar uma intervenção, dentro do contexto escolar,
resolvi fazer uma pesquisa na escola em que eu trabalho, para concluir se
os mesmos demonstram interesse e importância em ensino religioso nas
escolas.
Esta pesquisa foi realizada em uma escola municipal de educação infantil.
A pesquisa foi feita com 10 questões, onde se revelou que três
entrevistados eram evangélicos, um agnóstico, e um católico não praticante e
atualmente espírita. Todos concordaram que existe importância em conhecer
as religiões, mas que não se sentem a vontade de trabalhar religiosidade.
Enfim, ficou claro que apenas com essa simples entrevista, encontramos
diferentes seguimentos religiosos em um ambiente escolar, e que os
professores se sentem perdidos e acabam trabalhando ensino religioso,
apenas direcionando a valores sociais.
234
......
Aluno(a): Regina Mariza Martins Bosquetti
Escola: Colégio Estadual José de Alencar – CEJA
Título do trabalho: Marcador social de diferença:
pertencimento regional.
Resumo:
Trabalhei em sala de aula com a abordagem do texto Pechada, de
Luís Fernando Veríssimo, a partir do qual os alunos, através da leitura e
interpretação, mais incentivo e dinâmica, refletiram sobre suas atitudes e
falta de entendimento das relações sociais na escola. Entre tantas situações
identificadas em sala de aula, uma que parecia brincadeira mas que por ser
repetitiva fugiu a essa regra é que os alunos riam e imitavam as falas dos novos
colegas, a pronúncia forte da vogal “e” no final das palavras, expressões como
“te aquieta”; o que estava deixando os alunos sem jeito e desconfortáveis.
Antes da leitura do texto, questionei os alunos: falamos a mesma língua
no Brasil inteiro? Vocês conhecem ou já falaram com pessoas que falam
diferente? Como vocês percebem que uma pessoa é de outra região ou
estado? Como vocês agiriam se alguém não entendesse o que você fala? No
início, alguns alunos não estavam muito à vontade e perguntaram para que
se apresentar se todos já se conheciam; expliquei que tinham novos colegas
e seria diferente cada um apresentar o colega, poderiam conversar mais de
perto e descobrir novas informações que não sabiam. Após a conversa, foram
realizadas as atividades de apresentação e motivação envolvendo o grande
grupo; eles foram percebendo, através da socialização das ideias, que todos
tinham o mesmo direito de falar o que pensavam, porém tinham limites que
não poderiam ultrapassar, porque estavam faltando com o respeito com o
colega. O restante da aula foi tranquilo, todos participaram demonstrando
interesse.
235
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Aluno(a): Rudinei Silva dos Santos
Escola: Colégio Guianuba
Título do trabalho: Sentindo na pele a inclusão escolar
Resumo:
A atividade foi desenvolvida com alunos do primeiro ano do ensino
médio, em que eles trabalharam e refletiram sobre os direitos das pessoas
portadoras de necessidades físicas. A aula foi de caráter dialógico e expositivo,
tendo como principais recursos a sala de aula, os corredores e demais
dependências da escola. A turma foi dividida em trios e foi solicitado que cada
um desses trios representasse um tipo de necessidade física pré-estabelecida;
enquanto um faria o papel do portador, outro o ajudaria e o último faria
anotações. Depois de certo tempo de deslocamento pelas dependências
escola, eles foram reunidos para discutir as anotações. Cada grupo mostrou
as dificuldades enfrentadas, os preconceitos e constrangimentos sofridos
por essas pessoas. Constatou-se então que a escola não estava totalmente
preparada para a acessibilidade e acolhimento dessas pessoas. Em consenso
com a turma, redigimos um relatório, descrevendo o que encontramos e
o que poderia ser feito para garantir o direito de acessibilidade às pessoas
portadoras de necessidades físicas. A avaliação final desse plano de aula
se deu avaliando a participação de todos durante o processo de realização
das atividades, bem como o interesse de cada indivíduo no processo de
compreensão dos direitos humanos vivenciados durante a atividade. A
coordenação da escola foi convidada a participar da exposição do relatório e
escutar os depoimentos dos alunos que fizeram o papel da pessoa deficiente.
Essa aula foi muito produtiva, pois constatamos que algumas pequenas
melhorias já fariam uma grande diferença na qualidade de vida dessas
pessoas e que muito ainda tinha que ser feito. Essa atividade foi de cunho
pedagógico e inclusivo e não foi objeto de imitação de algum caso real que
por ventura existia em nossa escola ou com o intuito de expor qualquer
pessoa a algum constrangimento.
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Aluno(a): Silvana Castilhos Steyer
Escola: Escola Estadual de Ensino Fundamental Monsenhor Armando
Teixeira
Título do trabalho: Combatendo o machismo na escola
Resumo:
O marcador de diferença escolhido para o desenvolvimento do projeto
foi “gênero”, por considerar que a escola inicie esse processo de sensibilização
em relação às questões sexistas através de trabalhos e projetos que combatam a
prática do machismo. Trabalhos como esse podem e devem ser desenvolvidos
desde a educação infantil, período em que as crianças estão construindo
conceitos e hipóteses no que se refere ao conhecimento e às relações sociais e
culturais, ou seja, num processo cognitivo e afetivo. A escola escolhida foi uma
escola pública de São Francisco de Paula; ela possui uma clientela de alunos
distribuídos na educação infantil, anos iniciais e finais do ensino fundamental.
Na educação infantil, 20 alunos vão à escola no turno da tarde. As atividades
extraclasse, como Informática, Educação Física e Biblioteca são desenvolvidas
em espaços próprios para tal. O projeto foi desenvolvido a partir de uma história
infantil, com o objetivo de estimular as crianças à sensibilidade em relação à
temática do gênero. A história, reproduzida no datashow, foi Príncipe Cinderelo,
de Babette Cole. Ela foi apresentada às crianças fazendo todas as pausas
necessárias para que as mesmas refletissem em relação aos acontecimentos.
Em seguida, relembramos a história da Cinderela, para que fizessem algumas
relações com a do Príncipe Cinderelo. Algumas questões foram propostas
para o debate: será que os homens podem fazer as tarefas de casa, como lavar
a louça, arrumar as camas e estender as roupas? As mulheres (princesas)
podem escolher seus maridos e companheiros? As crianças expuseram suas
ideias, suas vivências de casa e de como percebem essas relações na família.
Durante o desenvolvimento da atividade, as crianças ficaram muito à vontade
para responder os questionamentos. Foi possível perceber algumas formas de
preconceito na fala das crianças em relação à questão de gênero. Todas foram
enfáticas em afirmar que os pais ajudam as mães nas tarefas de casa, como se
essas atividades fossem “naturalmente” designadas às mulheres.
Aluno(a): Vera Lúcia Carneiro Fucks
Escola: Escola Família Agrícola da Serra Gaúcha – EFASERRA
Título do trabalho: Educação do campo: refletindo sobre
identidade e conflitos geracionais
Resumo:
Pretende-se, neste trabalho, propor aos alunos do 1º ano do ensino
médio do curso Técnico em Agropecuária a reflexão sobre os temas identidade
e diversidade geracional, analisando, interpretando e reconhecendo as
singularidades, os desafios e as conquistas da população que vive no campo.
As atividades planejadas para trabalhar os temas seguem a pedagogia da
alternância, método de estudo adotado pela escola; ou seja, os alunos ficam
uma semana em casa e uma semana na escola. O planejamento foi realizado
junto com professor Arnaldo Poletto e foi dividido em cinco momentos.
Primeiro, uma técnica de apresentação, refletindo o conceito de identidade
e diversidade geracional (o aluno é provocado a refletir quem é; quem poderá
ser; do que gosta; de quem gosta). Segundo, o momento de escuta de cada
um dos alunos, a partir das informações e percepções trazidas. Terceiro, a
abordagem dos conceitos trabalhados – identidade, diferença, jovem-adulto
(urbano-rural), idoso (urbano-rural) – contextualizados com a legislação
(Estatutos da Criança e do Adolescente e do Idoso) e com a apresentação
dos alunos. Quarto, pesquisa e registro junto às suas comunidades rurais.
Por último, houve o compartilhamento e a análise dos dados pesquisados,
tendo como questionamento orientador as perguntas: pensando na vida
do campo, no contexto em que vivem vocês, viviam os seus pais, os seus
avós, quais as principais mudanças que vocês percebem do homem/mulher/
jovem do campo com relação a identidade com a terra? O que provocou/
provoca essas mudanças? A escolha do trabalho se justifica pelos sentimentos
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......
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......
demonstrados pelo aluno/jovem agricultor, desencadeados pelo “conflito
geracional”. O objetivo principal do trabalho é provocar no aluno(a) a
reflexão do eu, da família e da terra, reconhecendo-se nesse meio. Este
trabalho está em desenvolvimento; os resultados parciais demonstram que
o corpo docente da escola valoriza e apoia as atividades que envolvem a
reflexão de atitudes, conceitos e valores dentro da temática de direitos
humanos.
4. POLO: SAPUCAIA
Aluno(a): Amarildo Augusto Veiga
Escola: Escola Municipal de Ensino Fundamental José Loureiro da
Silva
Título do trabalho: Eu não quero que me tolerem, eu quero
que me respeitem!
Resumo:
O presente trabalho foi realizado como pré-requisito para a conclusão do
Curso de Extensão da UFRGS de Educação em Direitos Humanos – Edição
de 2015/01. Pretendeu-se abordar as relações étnico-raciais no ambiente
escolar a partir da necessidade de ampliar o combate ao racismo. O trabalho foi
realizado por meio de atividades práticas em sala de aula na Escola Municipal
de Ensino Fundamental José Loureiro da Silva, em Porto Alegre, ao longo do
mês de julho de 2015. Foram utilizados recursos de filmes e documentários em
DVD; sala de informática para pesquisa na internet e aula expositiva dialogada
com elaboração de cartazes. Na primeira semana, realizamos a exibição do
documentário A Cor da Cultura Mojubá. A partir dos programas, iniciamos um
debate sobre as expressões da cultura africana. Questionou-se a perseguição
que sofrem as religiões de origem africana e o fundamentalismo religioso das
religiões neopentecostais, que afirmam que as religiões de origem africana
não são religiões e sim seitas. Na terceira semana foram realizados trabalhos
com desenhos e recortes de revistas para a elaboração de cartazes sobre a
questão racial. Pretende-se dar continuidade com a visita dos Educadores do
Quilombo do Sopapo. Percebe-se a partir deste trabalho que há um longo e
árduo caminho para avançarmos no combate às discriminações e ao racismo. A
escola é um ambiente privilegiado, pois todas as crianças passam por ela e serão
elas os adultos e adultas do futuro próximo. Por isso, cabe às professoras e aos
professores a militância cotidiana, com vistas a um futuro mais digno e menos
excludente; enfim, um mundo no qual os direitos e garantias fundamentais e
individuais dos seres humanos sejam respeitados.
Aluno(a): Brasinicia Tereza Tápia
Escola: Escola de Ensino Fundamental América
Título do trabalho: Educação em Direitos Humanos
Resumo:
A cultura da violência presente em diversas comunidades escolares
requer uma ação continuada de esforços para que seja, aos poucos, abolida.
A identificação e a intervenção ao bullying são medidas necessárias para que
seus efeitos sejam evitados e/ou minimizados. As crianças ou adolescentes que
sofrem bullying podem se tornar adultos com sentimentos negativos e baixa
autoestima. Elas tendem a adquirir sérios problemas de relacionamento,
podendo, inclusive, contrair comportamento agressivo. Os atos de bullying
ferem princípios constitucionais de respeito à dignidade da pessoa humana e
o Código Civil. Diante da importância do tema, propôs-se um diálogo sobre a
temática explorada com a turma B12, 2º ciclo do ensino fundamental da Escola
de Ensino Fundamental América, em Porto Alegre. Partindo da afirmação
de diversos autores de que a violência doméstica se reflete na escola muitas
vezes na forma de bullying e com o objetivo de minimizar comportamentos
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......
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inadequados, tais como apelidos e discriminação através do diálogo,
procuramos conscientizar os alunos da responsabilidade e do envolvimento de
cada um no processo de aprimorar os relacionamentos intra e interpessoais do
grupo. Durante as atividades propostas, os alunos demonstraram interesse e
relataram inúmeras situações em que haviam sofrido e até mesmo provocado
bullying. É interessante oportunizar as crianças a falar de si mesmas, ajudálas a tomar consciência de sua existência e construir suas representações.
Tognetta (2004) esclarece que as crianças quando falam têm a possibilidade
de ressignificar os sentimentos e emoções presentes em si e, comunicando aos
outros, ou mesmo à professora ou aos pais, têm possibilidades de autocontrole
e autoconhecimento. Assim, é necessário que o professor incentive o diálogo
em suas aulas. Essas manifestações dão às aulas um clima de respeito mútuo,
fazendo com que os alunos entendam a importância de respeitar o colega e de
dialogar ao invés de ofender e brigar; isso é fundamental.
Aluno(a): Cristina Lima Hofer
Escola: Colégio La Salle
Título do trabalho: Marcador de diferença raça/etnia
Resumo:
No que se refere ao processo de marcação social da diferença, é preciso
salientar que há sempre ações de inclusão e exclusão, ou seja, de demarcação
sobre quem pertence a determinado grupo e quem não pertence. Essa
classificação ou distinção também indica hierarquias, como relações de poder
e atribuição de valores aos diferentes grupos classificados (Carlos, 2015). O
marcador de diferença raça/etnia identifica um povo pela cor da pele, seu
cabelo, cor dos olhos, música e cultura, podendo assim identificar e excluir
indivíduos da sociedade. Essa exclusão pode ser identificada na sociedade
na forma de injúrias, na forma de impedir acessos a clubes recreativos, na
desigualdade salarial e na falta de acesso e permanência em escolas, gerando
assim impacto social e econômico. No Brasil, as lutas pelo reconhecimento
e pela cidadania da raça negra tiveram início já no tempo da escravidão, que
durou desde o “descobrimento” do país por Portugal, no ano de 1500, até o
século passado, com a chamada “abolição” (Tramonte). Ao analisarmos três
séculos da história, desde a chegada dos negros como escravos no Brasil até
os dias atuais, podemos considerar sim que o preconceito com a raça negra
é uma construção cultural e histórica da sociedade brasileira, através de atos
de marginalização e exclusão. De um modo geral, os negros foram privados
ou tiveram dificuldade de acesso ao emprego, à moradia, à educação, à
saúde, à participação política; enfim, ao exercício pleno da cidadania. Esses
processos de desigualdades e violações dos direitos humanos da raça negra
geraram impactos na construção e manutenção da identidade destes e cabe
ao cidadão nos dias atuais refletir sobre esses processos de constituição e
formação de identidades e diferenças geradas pelos marcadores sociais ainda
existentes. A criação de leis específicas com o intuito de diminuir a exclusão
e a marginalização da raça negra na sociedade brasileira vem confirmar
as desigualdades e as violações dos direitos humanos desses indivíduos.
A educação tem sido fomentada como ferramenta para diminuição das
desigualdades sociais, tanto como disseminadora de conhecimento a
sociedade em geral, como potencializadora e emponderadora desse grupo
de indivíduos.
Aluno(a): Dalvana Silva da Gama
Escola: Trabalho de pesquisa teórica, para subsidiar ações em escola.
Título do trabalho: Escolas e alunos gaúchos dão lição de
direitos humanos
Resumo:
Com a crescente migração de haitianos para o Brasil, temos também
o aumento das denúncias de preconceito contra esses imigrantes. Devido
a essas atitudes discriminatórias, surgiu a preocupação quanto aos direitos
dos pequenos haitianos que vêm ao Brasil acompanhando seus pais. Assim,
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......
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......
este trabalho busca verificar, com base no Artigo 26 da Declaração Universal
dos Direitos Humanos, se o direito à educação está sendo assegurado aos
filhos desses imigrantes nas escolas da região metropolitana de Porto Alegre.
Inicialmente foi bastante difícil encontrar escolas com alunos haitianos, já
que a maioria dos imigrantes são homens e deixam suas famílias no Haiti.
Foram encontradas duas escolas na região metropolitana de Porto Alegre:
uma possuía duas alunas no ano de 2014, hoje residentes em Brasília, uma
matriculada no 1º ano e outra no 2º ano, por já ter sido alfabetizada em
francês; a outra escola tem quatro alunas haitianas, duas com 10 anos de
idade e matriculadas no 4º ano, uma de 7 e outra de 9 anos, ambas no 3º
ano. Essas escolas relatam projetos de integração sociocultural e programas
de auxilio aos estudantes para o desenvolvimento das linguagens oral e escrita
em Língua Portuguesa e destacam que os demais alunos não demonstram
qualquer atitude de preconceito, mas sim grande atração por essas colegas
que falam outra língua e vêm de um lugar tão distante e desconhecido
pela maioria, tornando as alunas haitianas muito populares nas escolas
onde estudam. Assim, apesar da dificuldade em encontrar escolas com
alunos haitianos, as poucas escolas encontradas dão uma verdadeira lição
de direitos humanos, tanto por parte da administração escolar como pelos
alunos brasileiros, que recebem sem restrições esses imigrantes que vêm ao
nosso país em busca de uma melhor qualidade de vida.
Aluno(a): Debora Costa De Borba Silva
Escola: Escola de Ensino Médio Santa Isabel – Viamão
Título do trabalho: Diversidade e relações étnico-raciais
Resumo:
Temos uma necessidade básica no convívio social: partilhar, ou melhor,
compartilhar experiências. Assim, mostra-se a diversidade de todos os
modos e lugares: cultual, étnico-racial, e com isso o homem deverá ser
capaz de se relacionar com todos. Os temas discutidos com os alunos foram
sobre raça, racismo, etnicidade, cultura afro-brasileira, políticas de ações
afirmativas e diversidade cultural. Foi feita uma roda para a discussão e,
com base nas falas, foi verificado se alguém, em algum momento da sua
vida, sofreu violação dos direitos humanos. Relato dos discentes: sim, já
sofreram alguma violação. Debatemos os artigos dos Direitos Humanos e da
Constituição Federal. Conforme o Art. 5º, somos todos iguais perante a lei.
Sim, somos, pois é uma garantia de direitos individuais e coletivos porque
vivemos em uma democracia igualitária. A Declaração Universal dos Direitos
Humanos, Artigo 2º, diz que “todo o homem tem capacidade para gozar
os direitos e as liberdades estabelecidos nesta Declaração sem distinção de
qualquer espécie, seja de raça, cor, sexo, língua, religião, opinião política
ou de outra natureza, origem nacional ou social, riqueza, nascimento,
ou qualquer outra condição”. Em suma, é necessário que conheçamos a
diversidade da sala para que possamos compartilhar informações e, assim,
as diferenças devem ser respeitadas por todos. É uma tarefa para todos,
crianças, jovens e adultos, a partir de princípios coerentes com a dignidade
humana e com a intenção explícita de promover a cidadania pautada na
democracia, na justiça, na igualdade, na equidade e na participação ativa de
todos os membros da sociedade nas decisões sobre seus rumos.
Aluno(a): Fernanda Maciel da Silveira
Escola: Escola Estadual de Ensino Fundamental de Sapucaia do Sul
Título do trabalho: A rua e a vulnerabilidade social
Resumo:
O plano de aula foi executado com a finalidade de chamar a atenção
dos alunos para a questão da vulnerabilidade social. A atividade foi
planejada para cinco períodos de Ensino Religioso e Língua Portuguesa
em que os alunos teriam de ler a crônica De quem são os meninos de rua?,
de Marina Colasanti, para produzir uma narrativa e realizar um debate
do qual sairia uma proposta de intervenção social. A produção textual
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consistia em uma narrativa em que o aluno deveria contar a história de
um jovem que vai morar na rua devido a um problema muito sério em
sua casa. Analisando os textos, verifiquei que muitos escreveram sobre
crianças e adolescentes que fugiram de sua residência porque apanhavam
dos pais, sofriam abuso sexual, usavam drogas, não tinham apoio familiar,
etc. No outro dia, a crônica foi debatida tendo em vista a Declaração
Universal dos Direitos do Homem, as experiências que os alunos tiveram
na escrita do texto e o que eles pensam sobre o assunto. Surgiram muitas
ideias e questionamentos que levaram à sensibilização do grupo quanto
às desigualdades sociais e a nossa responsabilidade, como membros da
sociedade, pelas injustiças. No meio da conversa, um dos alunos teve a
ideia de ajudar as pessoas que ficaram desabrigadas devido à enchente
que assolou a região metropolitana e a proposta foi aceita pela maioria.
Combinamos que, no dia seguinte, eles trariam mantimentos, os quais eu
levaria ao ginásio onde estes estavam sendo organizados e distribuídos, o
que, de fato, foi feito. Além disso, alguns foram voluntários, colaborando a
tarde inteira na organização dos itens doados. No entanto, mais importante
do que a decisão deles em ajudar as pessoas atingidas por esse desastre foi
a sua sensibilização, a empatia e a real preocupação com o outro.
Aluno(a): Giovana Augusta Gross Campos
Escola: Unidade do CRAS Centro de Referência em Assistência Social
Título do trabalho: Violência, medo e amor
Resumo:
Visando contribuir com as reflexões obtidas sobre gênero na
educação de Direitos Humanos ao longo do curso, busquei um local
onde encontrasse um público-alvo que necessitasse discutir e debater esse
assunto, com a intenção de ajudar de alguma forma mulheres carentes de
informações, conhecimentos e, principalmente, amor próprio. O objetivo
foi levar até as mulheres menos esclarecidas informações sobre a legislação
de proteção a mulher, a Lei Maria da Penha, a fim de orientar que elas
possam mudar a realidade em que se encontram. Reunidas em um Centro
de Referência de Assistência Social na cidade de Sapucaia do Sul, fizemos
um círculo e, em uma breve apresentação, cada uma expôs o que quis
sobre sua vida. Após, expliquei a importância dos direitos humanos
de forma simplificada e explanei sobre a Lei Maria da Penha. Logo em
seguida, iniciaram-se os relatos e houve uma troca de experiências entre
as participantes. O encontro com as participantes e a dinâmica usada
enriqueceram a proposta da atividade aplicada. A participação de cada
uma encorajou a próxima a realizar seu relato e questionar as dúvidas
pertinentes, sem medo e sem receio. Após o trabalho, pôde-se perceber
a reflexão nos posicionamentos e relatos de cada uma delas. Percebi que
a maioria já conhecia a Lei Maria da Penha, mas acabava aceitando sua
situação por medo de perder seus parceiros ou mesmo por pensarem que
é tudo normal, que foi assim com a avó, é assim com a mãe e deve ser
assim com elas também.
Aluno(a): Nilda Franchi
Escola: Escola Estadual de Ensino Médio Cristo Rei
Título do trabalho: Direitos humanos: a mulher e o mercado
de trabalho
Resumo:
A Declaração Universal dos Direitos Humanos afirma que “todas as
pessoas nascem livre e iguais em dignidade e em direitos”, independente
de sexo, raça, crença, cor, posição econômica, opção sexual, religiosa ou
política de seu povo. Entretanto, a consciência de tais valores se perdeu e suas
violações se infiltraram no campo dos direitos civis, políticos, econômicos
e sociais, agravando a violência e a intolerância nesses âmbitos. Na esfera
do Direito do Trabalho, as mulheres continuam sofrendo muitas formas
de exclusão e violência que refletem o imaginário social. Tal dominação
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estabelece e internaliza como legítimo e natural o lugar estabelecido para a
mulher, para mãe e para a trabalhadora, velando a questão de gênero. Assim,
sua inserção nos espaços públicos rompeu com esse sentido tradicional.
Destarte, esse estudo desvelou que essa figura, tornada invisível pelo
mercado de trabalho e esferas produtivas, convive com problemas como a
inferioridade salarial, o não reconhecimento laboral ou intelectual, a dupla
jornada de trabalho, os assédios e, na maioria das vezes, as piores áreas
de trabalho. A partir de um questionário aplicado, foi possível comprovar
ou refutar algumas hipóteses da pesquisa: 47% dos respondentes têm
conhecimento de que alguma mulher de seu meio social sofreu assédio
moral/sexual no ambiente de trabalho; 16% deles têm notícia de que alguma
mulher foi impedida ou teve sua licença maternidade afetada de alguma
forma; 34% das mulheres/mães são as únicas responsáveis pelos afazeres da
casa. Sobre a disparidade salarial entre os gêneros, 53% dos entrevistados
concordam que esse fenômeno exista; os outros 37% têm o fato como um
mito. Asseveramos que, enquanto não forem mudadas as relações dentro da
família, ou da sociedade, não mudarão outras relações, posto que a ideia de
sua criação seja denominada pelo poder masculino.
Aluno(a): Patrícia Glaeser de Souza
Escola: Escola Municipal de Ensino Fundamental São João Batista
Título do trabalho: Inclusão e diversidade
Resumo:
A construção de uma sociedade inclusiva pressupõe o respeito e
a valorização da diversidade, o direito de igualdade de oportunidades e a
garantia da dignidade e dos direitos humanos. Entende-se por inclusão o
acesso de todos ao espaço comum da vida em sociedade; sociedade esta que
deve estar orientada por relações de acolhimento à diversidade humana, de
aceitação das diferenças individuais e de esforço coletivo na equiparação
de oportunidades de desenvolvimento. O objetivo geral deste trabalho é
conscientizar os alunos a respeito da inclusão e diversidade. Entre os objetivos
específicos, estão: oportunizar ao aluno o desenvolvimento da autonomia e
da responsabilidade; possibilitar reflexões éticas e valores morais; reconhecer
direitos e deveres; refletir sobre suas ações na convivência social; resgatar a
autoestima; perceber-se como membro importante na sociedade; respeitar
e compreender as diferenças em suas várias dimensões e formar cidadãos
críticos e reflexivos. Em uma turma de 2º ano, ficamos em roda e fiz a leitura
do livro O Emaranhado da Maçaroca, que aborda a infância e a percepção
de mundo de um deficiente visual por meio da história de dois meninos
que se conhecem por acaso e se tornam amigos; além da amizade, nasce
também uma relação de troca e respeito. Os alunos prestaram atenção e
gostaram muito da história. Quando terminei de ler, já vários alunos haviam
pedido a vez para falar. Eles relataram o que entenderam e após dialogamos
sobre outras deficiências, como a surdez, deficiência mental, deficiência
física, síndrome de down e autismo. Os alunos contaram situações que
vivenciam em suas famílias e entre amigos; todos assistiam aos relatos com
muito interesse. Eles perceberam com essa troca de experiências que todos
nós somos diferentes e precisamos respeitar todos os seres humanos. Eles
realizaram desenhos sobre o que tínhamos trabalhado na sala de aula.
Aluno(a): Raphael Vieira Medeiros
Título do trabalho: A justiça ao alcance de todos
Resumo:
O Juizado Especial Cível foi idealizado como forma de inclusão ao
judiciário para as pessoas de baixa renda, tornando assim acessível o ingresso
para a população carente, que até então era excluída desse processo. Dessa
forma, a criação do juizado foi norteada a partir de critérios para tornar
mais simples esse acesso ao judiciário. Por esta razão, foram estabelecidos
os princípios norteadores do Juizado Especial Cível, que são: oralidade,
simplicidade, informalidade, economia processual e celeridade. Outro fator
importante se refere ao seu ingresso, que é gratuito, com o intuito de, sempre
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......
que possível, buscar a conciliação entre as partes. Muito embora haja esta
gratuidade, a mesma preponderará até a sentença de primeiro grau. Após,
o indivíduo deverá comprovar ausência de provimentos para interposição
de recurso. O valor da causa da ação não pode ultrapassar 40 saláriosmínimos. Nas causas de até 20 salários-mínimos, não há a necessidade de
contratação de advogado. As ações que tramitam no Juizado são aquelas que
geram danos de ordem patrimonial e/ou moral, seja por cobrança devida ou
indevida de dívida, por acidente de trânsito, por compra de um produto com
defeito, entre outras. Entretanto, não podem ingressar no Juizado Especial
Cível as causas de natureza alimentar, falimentar, fiscal e de interesse da
Fazenda Pública, e também as relativas a acidentes de trabalho e ao estado
e capacidade das pessoas. Diante de tais características, o Juizado Especial
Cível destina-se, portanto, a tornar a justiça acessível a todos, sendo que
a melhor forma de inclusão é primeiramente ouvir, para assim identificar
qualquer desequilíbrio e somente a partir disso buscar uma solução para
restaurar um equilíbrio social.
Aluno(a): Roberta Borges Morch
Escola: Escola Municipal de Ensino Fundamental Aurialicia Chaxim Bez
Título do trabalho: Projeto Bolsa Amarela: menino pode? E
menina não pode?
Resumo:
O livro A bolsa amarela conta uma história atraente e sugestiva, mas
também mostra a realidade de muitas famílias com problemas financeiros e
muitos filhos. A leitura possibilita a criança a criar fantasias e assim permite
melhorar o convívio social e afetivo na família, dada a diversidade de
personagens e suas situações cotidianas. O livro abre espaços para a criança
expressar seus sentimentos, frustrações, alegrias, esperanças, etc., e mostra
situações do cotidiano nas quais discussões sobre a diversidade de gênero
aparecem muitas vezes de forma machista. Foram analisadas e discutidas
falas do livro. Esse projeto ajudou a trabalhar com a turma a questão de
gênero: o que é coisa de menino ou de menina? Será que menina pode fazer
de tudo ou só o menino? Esse trabalho foi importante, pois havia meninas
que gostavam de jogar bola e os meninos não deixavam. Hoje, todos jogam
futebol em times mistos. Algumas falas das crianças eram bem significativas
(podendo virar mais tarde preconceito), porém hoje elas já se conscientizam
de que a mulher pode “ser o chefe da casa”.
Aluno(a): Silvana Silva da Silveira
Escola: Escola Municipal de Ensino Fundamental Vanessa Ceconet
Título do trabalho: Os pequenos dando o exemplo
Resumo:
Mesmo nos dias atuais, com o acentuado trabalho realizado em prol
do término do preconceito e com leis sendo sancionadas para proteger os
grupos que sofrem com a desigualdade social, é comum, ainda, atitudes
preconceituosas sendo observadas como normais. A escola é o cenário social
onde vivenciamos as mais diferentes situações de práticas de marcadores
sociais da diferença, sendo o racismo muito comum. Na escola onde
trabalho, presenciei um aluno do primeiro ano do ensino fundamental negarse a sentar ao lado de um colega da mesma turma, negro. Relatei o fato à
professora titular da turma, que me disse já ter percebido algumas atitudes
semelhantes em sala de aula. Para minha intervenção, planejei atividades
visando motivar os pequenos através do lúdico e incentivar o respeito pelas
diferenças. Iniciei com a apresentação do vídeo O cabelo de Zedi. Este pequeno
filme mostra a insatisfação de um menino negro com seu cabelo. A segunda
parte do trabalho foi realizada com a apresentação de slides contando a
história O segredo da caixa vermelha. Dentro da caixa havia um espelho e foi
possível desenvolver a identidade social/pessoal e o conceito de que todos
são diferentes. A terceira atividade foi com o livro Menina bonita do laço de
fita. Acharam muita graça a cada história que a menina usava para justificar
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a sua cor pretinha. Os alunos demonstraram interesse em falar sobre o
assunto; todos queriam relatar o seu entendimento. Uma intervenção bemsucedida de um conflito no âmbito escolar depende de um trabalho diário e
constante. Cabe à escola, formadora de opiniões, oportunizar momentos de
reflexão, compreensão e diálogo para que os alunos possam expressar o que
pensam, respeitando a opinião do outro.
Aluno(a): Vivian Castilhos Pires
Escola: Colégio Municipal de Ensino Básico Dulce Moraes
Título do trabalho: Deficiências
Resumo:
Esse tema que escolhi foi para conscientizar os alunos de que existem
pessoas com deficiência também na escola e que todos possuem os mesmo
direito e deveres perante a sociedade, a fim de possibilitar a integração
e socialização de todas as crianças sem distinção de etnia, deficiências,
gêneros, etc., em um mesmo âmbito escolar. Com os alunos, trabalhei os
vídeos Cuerdas e Meu tênis, abordei a existência de vários tipos de deficiência
e fizemos debates explicando que devemos respeitar as diferenças. Os alunos
obtiveram ótimos resultados durante a aula; cada um fez seu relato sobre
os vídeos que assistiu, suas ideias e dúvidas e também muitas críticas com
relação ao preconceito. Cuerdas conta a história de Maria, uma menina que
vive em um orfanato e que criou uma ligação muito especial com um colega
de classe que tem paralisia cerebral. Igualdade, solidariedade, amizade e
amor, sentimentos que muitas vezes não são encarados com a seriedade
com que deveriam. Meu tênis mostra como nós nunca estamos satisfeitos
com o que temos e às vezes julgamos o próximo precipitadamente, sem
saber os problemas que as outras pessoas também enfrentam, apesar das
aparências. Nós, educadores, precisamos nos engajar na questão social e
política, percebendo as possibilidades da ação social e cultural na luta pela
transformação das estruturas opressivas das sociedades classista.
SOBRE AUTORAS E AUTORES
Alessandra Maria Bohm
Mestre em Educação pelo Programa de Pós-Graduação em Educação da
UFRGS, Bacharel em Psicopedagogia Clínica e Institucional pela Pontifícia
Universidade Católica do Rio Grande do Sul/PUCRS.
Amilton Gustavo da Silva Passos
Licenciado em Biologia pela UFS, Doutorando em Educação no
Programa de Pós-Graduação em Educação da UFRGS, linha de pesquisa
Educação, Sexualidade e Relações de Gênero.
Cláudio Nunes
Doutor em Educação, Mestre em Ciências do Movimento Humano,
assessor técnico da Área Técnica DST/AIDS e Hepatites Virais da Secretaria
Municipal de Saúde/Porto Alegre. Currículo on-line disponível em: <http://
lattes.cnpq.br/691999408598556>.
Denise Dourado Dora
Ouvidora-Geral da Defensoria Pública do Estado (DPE) do Rio Grande
do Sul, para o biênio 2015-2017. Integrante da Ong Themis Gênero e
Justiça.
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Elisa Girotti Celmer
Doutoranda em Sociologia pela UFRGS. Mestre em Ciências Criminais
pela PUCRS. Bacharel em Direito pela FURG. Professora Assistente
da Universidade Federal do Rio Grande/FURG. E-mail para contato:
[email protected].
Fabiane Simioni
Doutora em Direito (UFRGS), professora e pesquisadora na
Universidade Federal do Rio Grande (FURG). Pesquisadora vinculada à
Rede de Estudos Avançados em Direitos Humanos, do Instituto LatinoAmericano de Estudos Avançados (ILEA/UFRGS).
Fernando Seffner (Organizador)
Professor do Programa de Pós-Graduação em Educação da UFRGS
e coordenador da Rede de Estudos Avançados em Direitos Humanos:
diferenças culturais e gramáticas do reconhecimento do Instituto LatinoAmericano de Estudos Avançados ILEA/UFRGS.
Paula Pinhal de Carlos
Professora permanente do Mestrado em Direito e professora
colaboradora do Programa de Pós-graduação em Memória Social e Bens
Culturais do UNILASALLE. Professora da graduação em Direito do
Uniritter. Doutora em Ciências Humanas pela UFSC e Mestra em Direito e
Bacharela em Ciências Jurídicas e Sociais pela UNISINOS.
Paulo César Carbonari
Doutor em filosofia (UNISINOS), professor de filosofia no Instituto
Berthier (IFIBE, Passo Fundo, RS), membro do Grupo de Estudo e Pesquisa
sobre Educação em Direitos Humanos, presidente do Conselho Estadual de
Direitos Humanos do Rio Grande do Sul.
Renan Bulsing dos Santos (Organizador)
Graduado em Ciências Jurídicas e Sociais pela Universidade Federal
de Santa Maria, bacharel em Ciências Sociais e mestre em Antropologia
Social pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Um dos fundadores
da Rede de Estudos Avançados em Direitos Humanos do Instituto LatinoAmericano de Estudos Avançados (ILEA) da Universidade Federal do Rio
Grande do Sul.
Rochele Fellini Fachinetto (Organizadora)
Professora Adjunta do Departamento de Sociologia e do Programa de
Pós-Graduação em Sociologia da UFRGS e coordenadora da edição 2014
do Curso Educação em Direitos Humanos em regime EAD ofertado em
parceria com Ministério da Educação/Secretaria de Educação Continuada,
Alfabetização, Diversidade e Inclusão/UFRGS. Mestre e Doutora em
Sociologia pela UFRGS. Pesquisadora do Grupo de Pesquisa Violência e
Cidadania/UFRGS.
Rúbia Aparecida Cidade Borges
Professora de Geografia na Secretaria de Educação de Porto Alegre,
educadora selecionada ao Prêmio Educador Nota 10 da Fundação Victor
Civita em 2014.
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