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A Experiência da Consciência

2021, Antítesis

Resumo: O presente artigo é uma interpretação da Introdução da Fenomenologia do Espírito à luz dos conceitos de bestimmte Negation (negação determinada), Umkehrung des Bewußtseins (reversão da consciência) e Aufhebung (conservação e superação). Busca-se, com isso, demonstrar como estes são os conceitos motrizes da experiência da consciência (Erfahrung des Bewußtseins) tal como Hegel a formula e expõe na Introdução. Assim, o objetivo é demonstrar como essa experiência nos indica uma nova maneira de pensar a temporalidade própria à consciência, isto é, ao contrário do que nos sugerem as imagens lineares do caminho a ser percorrido pela consciência, a experiência que a consciência realiza sobre seu objeto é um olhar para trás que cria seus pressupostos e os transformam em seu verdadeiro fim. Trata-se, portanto, de compreendermos como o caminho para a ciência é ele mesmo ciência e que a Introdução da Fenomenologia já é seu verdadeiro começo. Ou seja, não há uma introdução à ciência porque não existe uma ciência a ser introduzida a menos que já se esteja nela, e estar nela significa experienciá-la.

artículos A Experiência da Consciência: uma interpretação da Introdução da Fenomenologia do Espírito The Experience of Consciousness: an Interpretation of the Introduction to the Phenomenology of Spirit PEDrO SILVa MaUaD Universidade de São Paulo https://doi.org/10.15366/antitesis2021.2.003 Recibido: 2/11/21 Aceptado: 3/12/21 Resumo: O presente artigo é uma interpretação da Introdução da Fenomenologia do Espírito à luz dos conceitos de bestimmte Negation (negação determinada), Umkehrung des Bewußtseins (reversão da consciência) e Aufhebung (conservação e superação). Busca-se, com isso, demonstrar como estes são os conceitos motrizes da experiência da consciência (Erfahrung des Bewußtseins) tal como Hegel a formula e expõe na Introdução. Assim, o objetivo é demonstrar como essa experiência nos indica uma nova maneira de pensar a temporalidade própria à consciência, isto é, ao contrário do que nos sugerem as imagens lineares do caminho a ser percorrido pela consciência, a experiência que a consciência realiza sobre seu objeto é um olhar para trás que cria seus pressupostos e os transformam em seu verdadeiro fim. Trata-se, portanto, de compreendermos como o caminho para a ciência é ele mesmo ciência e que a Introdução da Fenomenologia já é seu verdadeiro começo. Ou seja, não há uma introdução à ciência porque não existe uma ciência a ser introduzida a menos que já se esteja nela, e estar nela significa experienciá-la. Palavras-chaves: Consciência; Experiência; Negação determinada; Aufhebung; Espírito. Abstract: This article is an interpretation of the Introduction to the Phenomenology of Spirit in light of the concepts of bestimmte Negation (determinate negation), Umkehrung des Bewußtseins (reversal of the consciousness) and Aufhebung (conservation and overcoming). The aim is to demonstrate how such concepts are the driving concepts of the experience of consciousness (Erfahrung des Bewusstseins) as Hegel formulates and exposes it in the Introduction. Thus, the objective is to demonstrate how this experience shows us a new way of thinking about the temporality of consciousness, i. e., in contrast to the linear images of the path to be taken by consciousness, the experience that consciousness carries out about its object is a backwards look that creates your presuppositions and turns them into your true end. Therefore, it is about understanding how the path to science is itself science and that the Introduction to Phenomenology is its true beginning. In other words, there is no introduction to science because there is no science to be introduced unless you are already in it, and being in it means experiencing it. Keywords: Consciousness; Experience; Determinate negation; Aufhebung; Spirit. 66 1. A consciência na Fenomenologia do Espírito N a Fenomenologia do Espírito1 a consciência é situada em seu momento histórico. Trata-se, para Hegel, de uma consciência denominada natural2: é a consciência que na modernidade histórica é cindida de seu objeto e identifica imediatamente seu saber à verdade, uma consciência que desconhece as mediações presentes no que se supõe como imediato. Por isso, será sua capacidade de identificar as mediações atuantes no imediato o que justamente irá desnaturaliza-la. Ao mesmo tempo, é uma consciência já imersa no elemento da filosofia moderna, que tem como paradigma a representação natural. Portanto, ela possui alto nível de reflexividade e capacidade crítica3; em suma, é a consciência inaugurada pela filosofia desde Descartes até Kant. Desse modo, se a crítica hegeliana presente na Introdução da FE tem como alvo essa consciência natural, é porque ela tem como fim uma forma mais avançada de consciência trazida pelo presente histórico de Hegel, isto é, a expansão napoleônica e sua institucionalização da modernidade4. Em outras palavras, a crítica à consciência natural e seu comportamento representativo com vistas a essa nova consciência histórica, tal como realizada por Hegel, 1 2 3 4 Devido ao grande número de referências à Fenomenologia do Espírito, desse ponto em diante iremos referi-la de forma abreviada, usaremos a sigla FE. Como definido por Marcos Nobre: «A consciência natural se caracteriza não por ser detentora de um saber determinado, mas por uma atitude, por um comportamento: por tomar o imediato sempre como verdadeiro. Comportando-se assim, a consciência natural não apenas confunde ‘verdade’ e ‘imediatidade’ como também resiste ativamente a toda evidência da presença da mediação, opõe-se a todo indício de que o mediado seja momento do não mediado, do imediato». NoBrE, M., Como Nasce o Novo, Editora Todavia, São Paulo, 2018, p. 151. Idem. «Não é difícil ver que nosso tempo é um tempo de nascimento e trânsito para uma nova época. o espírito rompeu com o mundo de seu ser-aí e de seu representar, que até hoje durou; está a ponto de submergi-lo no passado, e se entrega à tarefa de sua transformação». HEgEL, g. W. F., Fenomenologia do Espírito, Editora Vozes, São Paulo, 2016, p. 28. artículos 67 PEDRO SILVA MAUAD é precisamente a superação da consciência sensível, individual e representativa pela forma do seu saber de si, que é, justamente, o saber do Espírito tal como apresentado no itinerário da FE. É preciso que se tome a consciência como ponto de partida do processo, mas como um ponto de partida que é ele mesmo o resultado, um produto constituído por sua própria história. É a própria consciência que tem de se apoderar de sua história, ela tem de conhecer a si mesma para poder conhecer efetivamente. Para termos uma ideia mais precisa do que Hegel entende por consciência natural e sua forma de representar no contexto do século XIX, vejamos o que ele comenta a respeito da filosofia de dois dos seus principais interlocutores nesse âmbito, Kant e Fichte: A filosofia kantiana pode ser considerada, com todo o rigor, a filosofia que apreendeu o espírito como consciência e que contém só e unicamente as determinações da fenomenologia, e não da filosofia do espírito. Ela considera [o] Eu como relação a algo que está além, que se chama, na sua determinação abstrata, a coisa em si, e só segundo essa finitude apreende tanto a inteligência como a vontade. Se no conceito da faculdade de julgar reflexiva tal filosofia chega na verdade à ideia do espírito, à ‘subjetobjetividade’ [subjekt-objektivität], a um entendimento intuitivo etc., como também à ideia da natureza, essa ideia mesma é de novo rebaixada a um fenômeno, isto é, a uma máxima subjetiva. Por isso pode-se ver como [sendo] um sentido correto dessa filosofia o que foi entendido por Reinhold como uma teoria da consciência, sob o nome de faculdade de representação. A filosofia de Fichte tem o mesmo ponto de vista, e o não-Eu é determinado como objeto do Eu, só na consciência; ele permanece como choque infinito, isto é, como coisa-em-si. As duas filosofias mostram, portanto, que elas nem chegam ao conceito nem ao espírito tal como é em-si e para-si, mas só como é em relação a um Outro5. O problema principal, como podemos ver, encontra-se na representação que faz o entendimento, rebaixando a ideia ao fenômeno, à uma máxima subjetiva. A representação, portanto, é a forma do saber da consciência natural, ela é própria da modernidade, e sua principal consequência é a cisão entre conhecer e absoluto6. É assim que entramos, agora, na Introdução da FE. 5 6 68 HEgEL, g. W. F., Enciclopédia das Ciências Filosóficas 1830. A Filosofia do Espírito, Editora Loyola, São Paulo, 2011, p. 185. Segundo Nobre: A representação natural, embora seja ela também marcada por esse comportamento próprio à consciência natural, possui um saber determinado, constitui-se como uma posição determinada de saber, que não se caracteriza unicamente por seu comportamento avesso à mediação. A representação natural é própria de uma consciência moderna, marcada pela cisão entre ‘conhecer’ e ‘absoluto’ NoBrE, M., Como Nasce o Novo, op. cit., p. 151. artículos A EXPERIÊNCIA DA CONSCIÊNCIA: UMA INTERPRETAÇÃO DA INTRODUÇÃO … 2. Introdução da Fenomenologia do Espírito A consciência apresentada nos quatro primeiros parágrafos da Introdução é a consciência do paradigma moderno das filosofias da representação, que Hegel chama de representação natural. É a consciência inaugurada por Descartes7, com a qual entramos realmente numa filosofia autônoma e que se sabe, enquanto autoconsciência, ser um momento essencial do verdadeiro. Aqui podemos dizer que estamos em casa e, como marinheiro depois de uma longa viagem, bradar terra à vista. Neste período novo, o princípio é o pensar, o pensar que procede de si mesmo. Essa terra, dirá Heidegger em seu comentário à Introdução8, «em que a filosofia se vem sentindo em casa desde então é a incondicionada certeza de si do saber»9. No entanto, segundo essa representação natural, a filosofia, antes de abordar a Coisa mesma, necessita primeiro pôr-se de acordo sobre o conhecer. Esse cuidado, alerta Hegel no primeiro parágrafo, chega até o ponto de transformar-se na convicção de que o conhecer e o absoluto são separados por uma linha divisória. Ou seja, trata-se de um conhecimento exterior àquilo que se visa conhecer, de tal modo que deveria haver uma forma de representação unicamente adequada ao conhecer absoluto, isto é, o conhecer como instrumento e meio para que se acesse o absoluto - como pensava Descartes. Por outro lado, não se poderia interferir nesse meio, de tal modo que ele fosse passivo, e seria o absoluto que chegaria até nós, mas não enquanto aquilo que ele é em-si, e sim como é através desse meio - como pensava Kant. «Nos dois casos, usamos um meio que produz imediatamente o contrário de seu fim; melhor dito, o contra-senso está antes em recorrermos em geral a um meio»10. Com isso Hegel buscava expor o fundo ontológico da filosofia moderna, o meio encontrado por essa para atingir o fim que ela mesma se colocou, o de produzir uma filosofia sem pressupostos, ou seja, isenta de dogmatismos. Além disso, por ser uma filosofia em que a separação entre sujeito [que conhece] e objeto [conhecido] opera de modo fundamental e estabelece os contornos do que se considera verdadeiramente conhecer algo, as determinações para que algo como um ‘instrumento’ ou ‘meio’ possa ser pensado já são dadas de antemão. Com isso em vista, podemos afirmar, seguindo Ludwig Siep11, que o mote principal da FE é ultrapassar as dicotomias de seu tempo e reconciliar, a seu modo, as cisões surgidas em sua época entre filosofia, ciência e religião. Para Hegel, o pensamento filosófico e os avanços científicos confirmavam a crença 7 Heidegger vai atribuir ao subjectum, ou cogito de Descartes, o fundamento da metafísica moderna que se estendeu, segundo ele, até Hegel e também a Nietzsche. 8 HEIDEggEr, M., «o conceito de experiência em Hegel». In: Caminhos de Floresta, Fundação Calouste gulbenkian, Lisboa, 2014, pp. 139 a 240. 9 HEIDEggEr, M., «o conceito de experiência em Hegel», op. cit., p. 155. 10 HEgEL, g. W. F., Fenomenologia do Espírito, op. cit., p. 69. 11 SIEP, L., Hegel’s Phenomenology of Spirit, Cambridge University Press, New York, 2014, p. 1-11. artículos 69 PEDRO SILVA MAUAD religiosa em um saber absoluto; no entanto, é um absoluto que se revela no próprio mundo, isto é, de forma imanente12. Como parte desse fundo ontológico da filosofia moderna, portanto, também se encontra o problema da cisão entre a fé e o conhecimento. Como podemos ler em escritos anteriores a FE, como por exemplo Fé e Saber, em que Hegel, ao analisar a situação em que se encontrava a razão após o Iluminismo e a filosofia de Kant e, consequentemente, também a fé, diz: A vitória gloriosa que a razão esclarecida obteve diante daquilo que ela, de acordo com a limitação de sua compreensão religiosa, considera contraposto a si mesma como fé é, examinada cuidadosamente, nenhuma outra senão a de que ela não permaneceu razão, nem o positivo, contra o qual lutava, permaneceu religião; tampouco quer dizer que ela, vencedora, permaneceu razão, e o nascimento que paira triunfante sobre esse cadáver, enquanto o filho em comum da paz que a ambos unifica, tem em si tão pouco de razão quanto de fé autêntica (HEGEL, 2007, págs. 19 - 20). Esse filho em comum de que fala Hegel é o estado do pensamento, digamos assim, que ele tem como alvo e objeto. É essa paz que a ambos unifica que Hegel visa perturbar, dissolver e superar13. É valioso, nesse sentido, o que diz Lebrun sobre a inversão que Hegel realiza no modo de se pensar o cristianismo: O que Hegel chama Espírito14 não se manifesta na maneira pela qual se manifesta o sensível. Muito mais que isso: é a Erscheinung sensível que deve ser compreendida em função da Offenbarung divina, e não o inverso (como sempre foi). Tal é a convicção que inverte a interpretação do cristianismo. Não há, na origem, ‘sujeito’ próximo ou distante de Deus: o que chamamos ‘sujeito’ é somente a testemunha que surge quando o divino, desdobrando-se em ‘ser-para-outro’, suscita um olhar do qual, em seguida, ele 12 Nas palavras de Siep: «A Fenomenologia é igualmente uma tentativa de mostrar que os insights filosóficos e científicos da modernidade na verdade confirmam a crença religiosa de que um saber absoluto (divino) revela a si mesmo no mundo». SIEP, L., Hegel’s Phenomenology of Spirit, op. cit., p. 4. 13 «o verdadeiro é assim o delírio báquico, onde não há membro que não esteja ébrio; e porque cada membro, ao separar-se, também imediatamente se dissolve, esse delírio é ao mesmo tempo repouso translúcido e simples. Perante o tribunal desse movimento não se sustem nem as figuras singulares do espírito, nem os pensamentos determinados; pois aí tanto são momentos positivos necessários; quanto são negativos e evanescentes». HEgEL, g. W. F., Fenomenologia do Espírito, op. cit., p. 46. 14 Poderíamos acrescentar, nesse caso, ao conceito de Espírito (geist) também os conceitos de verdade (das Wahre), sujeito (Subject) e Deus (got), tal como eles são apresentados no Prefácio da FE, como portadores de um mesmo sentido, assim como manifestos pela experiência. 70 artículos A EXPERIÊNCIA DA CONSCIÊNCIA: UMA INTERPRETAÇÃO DA INTRODUÇÃO … se furtará. Assim, a representação concebida como simples episódio do divino deixa de ser o referencial em relação ao qual este último sempre fora interpretado, e o ‘sujeito’ deve reconhecer que, no curso dessa história de que ingenuamente se acreditava o espectador, ele é somente o protagonista necessário para o divino, quando este se imediatiza e merece ser posto, efemeramente, como objeto de uma representação chamada ‘Deus’15. Como podemos ler, já não se parte de um sensível previamente dado para que se alcance algum nível de manifestação do divino. O sensível já é a revelação do divino, em outras palavras, Jesus é Deus por ser humano. Com a inversão dessa maneira de proceder, a representação deixa de ser o elemento no qual é possível reconhecer alguma verdade do que está sendo representado. Tudo se passa como se o homem, a natureza e Deus fossem, segundo Siep, «as mesmas coisas só que em diferentes estágios de desenvolvimento ou diferentes níveis de complexidade. O conceito adequado para esse lugar comum é Espírito»16. Não por outro motivo Hegel afirma, como vimos, que as duas principais filosofias que lhe eram contemporâneas, a de Kant e a de Fichte, não chegam ao conceito nem ao espírito tal como é em-si e para-si, mas só como é em relação a um Outro. Elas pressupõem «representações sobre o conhecer como instrumento e meio e também uma diferença entre nós mesmos e esse conhecer, mas sobretudo, que o absoluto esteja de um lado e o conhecer de outro lado - para si e separado do absoluto - e mesmo assim seja algo real»17. Real, certamente, só que inalcançável para a consciência. Nesse momento, percebe-se que o problema não está no absoluto e muito menos na possibilidade de pensá-lo, mas numa posição de saber, de um comportamento da consciência moderna que age e pensa nos limites da representação natural, que ainda não foi capaz de rever radicalmente seus pressupostos fundamentais. Assim, do segundo parágrafo da Introdução em diante, como bem observado por Heidegger, Hegel iguala sua filosofia à ciência e não usa mais o nome filosofia, somente ciência18. Para ele faltava, de acordo com seu 15 LEBrUN, g., A Paciência do conceito – Ensaio sobre o discurso hegeliano, Editora UNESP, São Paulo, 2000, p. 43. 16 SIEP, L., Hegel’s Phenomenology of Spirit, op. cit., p. 9. 17 HEgEL, g. W. F., Fenomenologia do Espírito, op. cit., p. 70. 18 o que hoje consideramos ser Ciência, no sentido do paradigma moderno de ciência, como por exemplo, a Física, a Química e a Biologia eram, por Hegel, denominadas ciências empíricas [empirische Wissenschaften], particulares [besonderen Wissenschaften] entre outras denominações semelhantes, e foram apresentadas em sua Filosofia da Natureza: a Mecânica, que analisa espaço e tempo, matéria e movimento; a Física, que estuda corpos, gravidade, som, calor, processo químico, etc.; e a Física orgânica, que examina a natureza geológica, vegetal e animal. Por outro lado, Ciência [Wissenschaft] para ele era um sistema do conhecimento, uma totalidade, em que não só as ciências naturais estariam inclusas, mas também e principalmente a filosofia - que por vezes era denominada ciência especulativa [spekulativen Wissenschaft]. artículos 71 PEDRO SILVA MAUAD diagnóstico de época, a filosofia ser elevada a condição de ciência, e como ele mesmo afirma em uma carta de 1822, endereçada a Duboc: «Propus-me trabalhar na elevação da filosofia à ciência e os meus trabalhos até agora, decerto em parte imperfeitos, em parte inacabados, têm apenas este fim»19. Também podemos ler afirmações semelhantes a essa no prefácio da FE 20, e que justificam o fato de Hegel substituir, muitas vezes, o termo filosofia pelo de ciência: «Penso, aliás, que tudo que há de excelente na filosofia de nosso tempo coloca seu próprio valor na cientificidade; (...) só pela cientificidade a filosofia se faz valer»21. Daí porque a FE tenha sido chamada, num primeiro momento, de Ciência da experiência da consciência. A experiência que faz a consciência apresentada nas páginas da FE é a mudança de comportamento que eleva a filosofia moderna, e consequentemente também a consciência, à cientificidade. No entanto, pontua Hegel, a ciência é ela mesma uma aparência [fenômeno]: seu entrar em cena não é ainda a ciência realizada e desenvolvida em sua verdade. Não importa tanto, então, os termos que se usa, os nomes e conceitos para representar o que se entende por verdade, absoluto, conhecer e etc., se ainda se mantém refém do esquema lógico da representação. Melhor seria, segundo Hegel, «rejeitar tudo isso como representações contingentes e arbitrárias», e ter como equívocos os usos «de termos como o absoluto, o conhecer, e também o objetivo e o subjetivo e inúmeros outros cuja significação é dada como geralmente conhecida»22. A verdade de um conceito só pode 19 20 21 22 72 Melhor dizendo, a Ciência era o próprio sistema filosófico de Hegel, e teve sua expressão acabada na Enciclopédia das Ciências Filosóficas em suas três partes: Lógica, Natureza e Espírito. Entretanto, longe de significar uma subordinação dessas ciências à filosofia, Hegel pretendia traçar seus pontos de convergência a partir de suas diferenças, pois ele entendia que cada uma, ao seu modo, complementava a outra, como podemos ler em passagens como esta: «A relação da ciência especulativa [spekulativen Wissenschaft] com as outras ciências [den anderen Wissenschaften] só existe enquanto a ciência especulativa não deixa, como de lado, o conteúdo empírico das outras, mas o reconhece e utiliza; e igualmente reconhece o universal dessas ciências - as leis, os gêneros, etc, - e o utiliza para seu próprio conteúdo; mas também, além disso, nessas categorias introduz e faz valer outras. A diferença refere-se, nessa medida, somente a essa mudança das categorias». HEgEL, g. W. F., Enciclopédia das Ciências Filosóficas 1830. A Ciência da Lógica, op. cit., 2011. FErrEIrA, M., «Introdução», HEgEL g. W. F., Prefácios (tradução, introdução e notas de Manuel J. Carmo Ferreira), Imprensa Nacional – Casa da Moeda, Lisboa, 1990, p. 75 «Quando enfim o rigor do conceito tiver penetrado no âmago da coisa, então tal conhecimento e apreciação terão o lugar que lhes corresponde. A verdadeira figura, em que a verdade existe, só pode ser o sistema científico [wissenschaftliche System]. Colaborar para que a filosofia se aproxime da forma de ciência [daß die Philosophie der Form der Wissenschaft näherkomme] – da meta em que deixe de chamar-se amor ao saber para ser saber efetivo – é isto o que me proponho. reside na natureza do saber a necessidade interior de que seja ciência [Wissenschaft sei]. [...] é o tempo da elevação da filosofia à condição de ciência [{Ist die zeit von} die Erhebung der Philosophie zur Wissenschaft]». HEgEL, g. W. F., Fenomenologia do Espírito, op. cit., p. 27. HEgEL, g. W. F., Fenomenologia do Espírito, op. cit., p. 66. Ibid., p. 71. artículos A EXPERIÊNCIA DA CONSCIÊNCIA: UMA INTERPRETAÇÃO DA INTRODUÇÃO … advir da apresentação23 do movimento desse conceito, ela nunca é somente pressuposta, ela tem que criar, pôr e demonstrar seus próprios pressupostos, de modo que a única maneira da ciência libertar-se de sua aparência dependente da representação, é voltando-se contra ela24, o que não deixa de ser, ao mesmo tempo, se voltar contra si mesma. Ou seja, é por meio do trabalho do negativo, atravessando suas próprias contradições, que a filosofia conseguirá alcançar seu conceito concreto ao invés de permanecer nas abstrações representativas. Em outras palavras, com Hegel há sempre motivos para se desconfiar daquilo que é pura e simplesmente algo enquanto (als) imediatamente dado. A verdade, ele nos mostra, não pode ser expressa enquanto um princípio, mas sim como a totalidade dinâmica de todas as proposições que se engendram umas às outras por meio de relações contraditórias (Ciência da Lógica). Só faz sentido falarmos em termos de verdade, se essa verdade atravessou um movimento que encara suas próprias contradições e se depura à medida em que se nega, até que alcance o conceito de si mesma (Fenomenologia do Espírito). Contudo, como a FE, prossegue Hegel no §5 da Introdução, tem por objeto exclusivamente o saber fenomenal, não se mostra ainda como ciência livre, movendo-se em sua forma peculiar. É possível porém tomá-la, desse ponto de vista, como o caminho da consciência natural que abre passagem rumo ao saber verdadeiro. Ou como o caminho da alma, que percorre a série de suas figuras como estações que lhe são preestabelecidas por sua natureza, para que se possa purificar rumo ao espírito, e através dessa experiência completa de si mesma alcançar o conhecimento do que ela é em si mesma25. É a consciência natural enquanto locus da representação e expressão do seu momento histórico-filosófico, portanto, que realizará o caminho da FE através da experiência completa de si mesma - experiência de superação de cada uma de suas figuras -, até que ela supere seu saber fenomenal e adentre no elemento da ciência livre (Lógica). No entanto, não há por trás desse saber 23 é o caso, aqui, da distinção entre Vorstellung (representação) e Darstellung (apresentação) na filosofia de Hegel. No final do quarto parágrafo da Introdução Hegel afirma: «Aus diesem grunde soll hier die Darstellung des erscheinenden Wissens vorgenommen werden». Marca-se, com isso, a diferença entre representar (Vorstellung) e expor, apresentar (Darstellung). Como comenta Nobre, «a necessidade de substituir a representação pela apresentação corresponde à necessidade de substituir a metáfora do ‘instrumento’ (ou ‘meio’) pela metáfora do ‘caminho’, ainda que em sentido diferente daquele que lhe é atribuído por Kant». NoBrE, M., Como Nasce o Novo, op. cit., p. 145. 24 «Mas a ciência deve libertar-se dessa aparência, e só pode fazê-lo voltando-se contra ela». HEgEL, g. W. F., Fenomenologia do Espírito, op. cit., p. 71. 25 Ibid., p. 72. artículos 73 PEDRO SILVA MAUAD nenhum outro que seja o saber verdadeiro, por mais que a expressão ‘saber fenomenal’ possa dar a entender isso. Nem mesmo há oposição entre esse saber fenomênico e um outro ao qual a apresentação dos movimentos da consciência conduziria. «O aparecer do saber que aparece é a verdade do saber. A apresentação do saber que aparece no seu aparecer é ela mesma ciência. No momento em que a apresentação começa, ela já é a ciência»26. O que falta não é encontrar algum suposto saber além daquilo que os olhos podem ver, mas que a própria consciência se torne consciente da negatividade que põe em movimento todo saber; é ser consciente de que somente ultrapassará suas limitações enquanto consciência natural ao realizar a experiência da negatividade que lhe é inerente. Não é em busca de um Outro saber que a consciência percorre o caminho da ciência, pois esse é justamente o comportamento que a constitui enquanto consciência natural, o eixo motriz da experiência da consciência está no fato de que ela confronta sua apreensão do mundo com as regras de leitura que ela mesma se colocou para apreender o mundo. Isso implica que ela reelabore o que é conhecido, como é conhecido e quem conhece até o ponto em que um novo olhar seja possível sobre seu objeto - que já será um novo objeto -, até o ponto em que por já estar imersa na experiência, já não se comporte mais como consciência natural e representativa, pois a apresentação levada a cabo na FE «não serve de modo algum de guia ao representar natural no museu das figuras da consciência, para, no fim da visita, o levar ao saber absoluto por uma porta especial»27. Como o caminho rumo à ciência é ele mesmo ciência, quem o realiza já é uma consciência científica. Ao olhar para trás, essa consciência verá que seu ainda-não científico, é na verdade um sempre-já, sem que seja possível precisar o momento em que a mudança ocorreu. Por isso é a alma quem também o realiza, na medida em que ela é o emblema do movimento negativo do espírito, expressão da diferença que afeta e perturba a consciência em relação ao seu objeto, de uma desigualdade entre o eu e o objeto que pode ser vista, segundo Hegel, como a falta [Mangel] de ambos, que também é, concomitantemente, a alma ou o movente dos mesmos. Ou seja, o que falta à consciência natural é experienciar a sua própria falta inerente, seu elemento negativo, assim como a falta e negatividade do objeto. Como muito bem ponderado por Losurdo, «a negatividade não é apenas uma atividade do sujeito, mas é inerente, em primeiro lugar, à própria objetividade. Se o negativo ‘aparece’ como desigualdade do Eu em relação ao objeto, ele é também a desigualdade da Matéria em relação a si mesma»28. Desse modo, podemos dizer, o segundo bloco de parágrafos da Introdução, que vai do §5 ao §8, marca a passagem da consciência natural para a consciência filosófica. Tanto é 26 HEIDEggEr, M., «o conceito de experiência em Hegel», op. cit., p. 171. 27 Idem. 28 LoSUrDo, D., Hegel e a liberdade dos modernos, Editora Boitempo, São Paulo, 2019, pp. 67-68. 74 artículos A EXPERIÊNCIA DA CONSCIÊNCIA: UMA INTERPRETAÇÃO DA INTRODUÇÃO … assim que esse caminho, do ponto de vista da consciência natural, tem para ela uma significação negativa, é a perda de si mesma. «Por isso esse caminho pode ser considerado o caminho da dúvida [Zweifel] ou, com mais propriedade, caminho de desespero [Veizweilflung]»29. Essa dúvida ou desespero é, na verdade, a penetração consciente na inverdade do saber fenomenal; a medida que a consciência torna-se consciente dessa inverdade, ela se desnaturaliza, passa a compreender as mediações que existem no imediato. Esse é o motivo da consciência natural ser caracterizada como aquela que pressupõe um nexo entre verdade e imediaticidade. Daí também não podermos tomar essa caracterização do caminho enquanto desespero como mero recurso retórico por parte de Hegel, o desespero é real, tão real que desloca a consciência de sua posição natural, e mais ainda, o processo da dúvida é tão profundo que afeta e altera o próprio objeto da dúvida. Hegel compreendeu muito bem como as posições de saber da consciência são mais do que postulados e enunciações teóricas, como se saber fosse mera questão de optar entre diferentes representações da realidade, escolhendo aquela que melhor se adequa ao sujeito da consciência, aquela que melhor o representa. À revelia desse comportamento da consciência natural e, até mesmo, da representação natural, que é a forma mais avançada da consciência natural, toda posição de saber da consciência «é uma atitude em relação ao todo da experiência, pressupõe sempre, no limite, a pretensão de se justificar como uma forma de vida»30; e ao fazer isso, acaba por constituir ela mesma uma forma de vida: a experiência realizada pela consciência é determinante para a vida da consciência, é ela que constitui o modo de aparecimento da própria realidade, isto é, do seu objeto. Mas representar a realidade que aparece, tal como faz a consciência natural, não é, ainda, um saber real, um saber que apresenta (Darstellung) o objeto em sua totalidade - o que aparece no seu aparecer - , mas apenas constitui um modo de realidade, é um «saber que em toda a parte representa o ente não enquanto tal, mas sim que, no seu representar, depende unicamente do ente»31. Por isso não é ainda um saber real, absoluto. Há, portanto, uma contraposição entre real e natural, de modo que uma realidade natural (Realität) não é a realidade do real, isto é, a efetividade (Wirklichkeit), mas tão somente uma representação e um modo de saber que ainda confunde imediaticidade com verdade, com a sua verdade. Sendo assim, esse saber natural somente se atém ao que é seu, é refém de sua própria opinião (das Meinen), conforma-se em uma espécie de subjetivismo que funda sua legitimidade na referência imediata do dado à subjetividade32. 29 30 31 32 HEgEL, g. W. F., Fenomenologia do Espírito, op. cit., p. 72. NoBrE, M., Como Nasce o Novo, op. cit., p. 162. HEIDEggEr, M., «o conceito de experiência em Hegel», op. cit., p. 175. Idem. artículos 75 PEDRO SILVA MAUAD Esta crença em seu próprio opinar constitui o fundamento da representação em que se move a consciência natural33. No entanto, pondera Hegel, Seguir sua própria opinião é, em todo o caso, bem melhor do que abandonar-se à autoridade; mas com a mudança do crer na autoridade para o acreditar na própria convicção, não fica necessariamente mudado o conteúdo mesmo; nem a verdade, introduzida em lugar do erro. A diferença entre apoiar-se em uma autoridade alheia, e firmar-se na própria convicção - no sistema do Visar e do preconceito - está apenas na vaidade que reside nessa segunda maneira34. Entre um cego obedecer do pensamento em relação à autoridade e a certeza subjetiva de algo, o conteúdo de ambas essas posições permanece o mesmo, e por isso melhor seria, segundo Hegel, a posição cética, pois ela incide sobre todo o âmbito da consciência fenomenal e «torna o espírito capaz de examinar o que é verdade, enquanto leva a um desespero, a respeito de representações, pensamentos e opiniões pretensamente naturais»35. A posição cética, então, tem a vantagem de limpar o terreno, por assim dizer, de desvencilhar-se das representações que enchem e embaraçam a consciência. Contudo, ela acaba por ver no resultado de suas negações somente o puro nada, abstraindo que esse nada é determinadamente o nada daquilo de que resulta. Essa posição não consegue ir além desse nada indeterminado, sua única operação é jogar no vazio as representações que lhe são apresentadas. Dessa maneira, não compreende que esse nada é ele mesmo um resultado e que, assim, é determinado e tem um conteúdo. O resultado, portanto, só é apreendido em sua verdade, quando apreendido como negação determinada (bestimmte Negation); e dessa maneira já não é tanto um resultado quanto é um processo que se produz por si mesmo através da série completa das figuras da consciência: «a série completa das formas da consciência não-real resultará mediante a necessidade do processo e de sua concatenação mesma»36. Isto é, a série completa das formas da consciência natural, não-real, que são apresentadas na FE, resultam da própria necessidade do processo que passa de uma à outra e de sua concatenação (Zusammenhang), do nexo que se estabelece nessa passagem de uma figura a outra figura, da capacidade de «compreender (begreifen) o porquê do ‘prosseguir’, da ‘progressão’ (fortgehen, Fortgang) e o porquê da passagem»37. Sua necessidade se revela como sendo sua própria concatenação, pois a completude de suas formas não reais quer dizer que a 33 34 35 36 37 76 Ibid., p. 177. HEgEL, g. W. F., Fenomenologia do Espírito, op. cit., p. 73. Idem. Idem. NoBrE, M., Como Nasce o Novo, op. cit., p. 165. artículos A EXPERIÊNCIA DA CONSCIÊNCIA: UMA INTERPRETAÇÃO DA INTRODUÇÃO … consciência rememorou seu processo de formação, que ela, retroativamente, reconstituiu a concatenação de suas representações e determinações como sua própria história, sabendo identificar tanto seus momentos de verdade quanto os limites presentes em cada uma de suas formas não-reais, tornando-se, desse modo, apta para ir aleḿ de si mesma. Mas o que exatamente Hegel chama de negação determinada? Dito de modo direto, é o processo em que se realiza a Aufhebung, o conservar-superar de determinado conteúdo, como já vimos em atuação ao tratarmos da passagem da natureza ao espírito, por exemplo. A negação determinada faz parte do método dialético e é seu momento mais importante. Ela é o nervo da dialética. No contexto da Introdução, é ela quem supera a negação cética, que só tem o puro nada como resultado, e determina um novo conteúdo posto pelo próprio processo de negação, «o que surge desse movimento, apreendido como resultado, é o negativo determinado e portanto é igualmente um conteúdo positivo»38. Ela também é o cerne da experiência da consciência, pois é através da experiência dessa negação determinada que a consciência realiza a passagem entre uma forma e outra; tal passagem se dá sempre que determinado saber sobre o objeto falha. Como comenta Terje Sparby em seu estudo sobre o conceito de negação determinada39: The experience that consciousness undergoes is a negative experience, which, by skepticism, is understood so as to mean that its result is nothing. Our endeavors of knowing the world and ourselves end up as failed projects. However, as Hegel indicates, the failure is not insignificant, but rather brings us to a new and truer form of consciousness, or to whatever the process leads to in the end (i.e. the result must not be a form or Gestalt of consciousness). This transition from failure to truth is mediated by the determinate negation40. Ou seja, com a negação determinada a consciência concebe todos os seus momentos anteriores como a verdade do seu resultado; retroativamente ela 38 HEgEL, g. W. F., Fenomenologia do Espírito, op. cit., p. 54. 39 Terje Sparby sustenta em seu estudo que: «this negation – the positive, true result of skepticism, representing a transition to a new form with a content of its own – is a methodical «tool» that marks a definite break with the earlier Jena-conception of a philosophical system». SPArBY, T., Hegel’s Conception of the Determinate Negation, Brill, 2015, p. 127. Heidegger também insiste no caráter determinado da negação no movimento dialético da consciência em suas figuras, ele diz: «A negação da figura precedente que se realiza no processo não é um negar vazio. Nem segundo a direção do grau ‘suprassumido’ (aufgehoben) é este deixado de lado e abandonado, nem tampouco a negação vai em direção do processo para o vazio indeterminado. A negação no processo e com isso sua essência, é negação determinada». HEIDEggEr, M., «Dilucidación de la ‘Introducción’ de la ‘Fenomenología del Espíritu». In: Hegel, Prometeo Libros, Buenos Aires, p. 19. 40 SPArBY, T., Hegel’s Conception of the Determinate Negation, op. cit., p. 115. artículos 77 PEDRO SILVA MAUAD estabelece o nexo entre o saber positivo e a negação cética, retirando de cada um a sua verdade, conservando e superando-os de forma imanente a partir de uma nova determinação que ela mesma dá ao seu objeto, enxergando seu conteúdo positivo na própria negatividade41: a falha transforma-se em verdade. Portanto, podemos afirmar junto a Sparby que as características da negação determinada na FE são: o resultado negativo do ceticismo concebido em sua verdade; uma negação com conteúdo determinado; uma nova forma e uma transição através da qual será estabelecida a integralidade das formas de consciência42. Nesta altura da Introdução, o conceito de negação determinada nos mostra que entre duas opiniões opostas, que até são razoáveis, mas ao mesmo tempo são insustentáveis, o nada que delas resulta não é o fim do processo, mas sim um ponto de transição para uma nova determinação. Entretanto, dirá Hegel no §8, «o saber tem sua meta fixada tão necessariamente quanto a série do processo. A meta está ali onde o saber não necessita ir além de si mesmo, onde a si mesmo se encontra, onde o conceito corresponde ao objeto e o objeto ao conceito»43. Não só o processo é necessário, mas também a meta do saber, isto é, atingir o ponto em que o conceito corresponde ao objeto e o objeto ao conceito. Por isso mesmo o processo é irresistível, ele não pode ser detido e não se satisfaz com nenhuma de suas figuras44. 41 Também no Prefácio Hegel define, com outras palavras, esse momento da Introdução: «na atitude raciocinante, dois aspectos devem ser ressaltados - aspectos segundo os quais o pensamento conceitual é o seu oposto. De uma parte, o procedimento raciocinante se comporta negativamente em relação ao conteúdo aprendido; sabe refutá-lo e reduzi-lo a nada. Essa intelecção de que o conteúdo não é assim é algo puramente negativo é o ponto terminal que a si mesmo não ultrapassa rumo a novo conteúdo, mas para ter de novo um conteúdo, deve arranjar outra coisa, seja donde for. E a reflexão no Eu vazio, a vaidade do seu saber. Essa vaidade não exprime apenas que esse conteúdo é vão, mas também que é vã essa intelecção, por ser o negativo que não enxerga em si o positivo. Por conseguinte, uma vez que não ganha como conteúdo sua negatividade, essa reflexão, em geral, não está na Coisa, mas passa sempre além dela; desse modo, com a afirmação do vazio, se afigura estar sempre mais avançada que uma intelecção rica-de-conteúdo. Ao contrário, como já foi mostrado, no pensar conceitual o negativo pertence ao conteúdo mesmo e - seja como seu movimento imanente e sua determinação, seja como sua totalidade - é o positivo. o que surge desse movimento, apreendido como resultado, é o negativo determinado e portanto é igualmente um conteúdo positivo». HEgEL, g. W. F., Fenomenologia do Espírito, op. cit., p. 54. 42 «In Phg the determinate negation is the conceptual tool that makes this integration possible. The specific characteristics of the determinate negation in Phg are, as we have seen, that it is (a) the negative result of skepticism conceived in is truth, (b) a negation with content or determinateness, (c) a new form, and (d) a transition through which the completeness of the shapes of consciousness will be established». SPArBY, T., Hegel’s Conception of the Determinate Negation, op. cit., p. 130. 43 HEgEL, g. W. F., Fenomenologia do Espírito, op. cit., p. 74. 44 Podemos lembrar aqui do Prefácio, quando Hegel diz que a seriedade do conceito penetra na profundidade da Coisa. Der Ernst des Begriffs, a seriedade do conceito, mas que pode ser também a Anstrengung des Begriffs, o trabalho esforçado do conceito, ou ainda a Geduld des Begriffs, a paciência do conceito, todas essas expressões podem ser tomadas, nas palavras de Manuel Ferreira, como representativas da «tensão que informa a consciência finita entre a finitude e o 78 artículos A EXPERIÊNCIA DA CONSCIÊNCIA: UMA INTERPRETAÇÃO DA INTRODUÇÃO … Como já vimos anteriormente, aquilo que move todo esse processo é a desigualdade entre a consciência e seu objeto, a falta que em ambos constitui a diferença, o negativo. Esse movimento, por sua vez, se realiza em função daquilo que o arrebata, isto é, como define Heidegger, «a realidade do real, a qual só é na medida em que aparece a si na sua verdade»45. Seria o caso de dizer que todo o processo começa com o seu fim, pois aquilo que o arrebata é seu próprio fim. Novamente é Heidegger quem diz, Na sua inquietação, a consciência é ela mesma o fixar prévio do fim. (...) a progressão na marcha histórica da história da formação da consciência não é impulsionada para frente a partir da respectiva figura da consciência e para o ainda indeterminado, ela é sim atraída a partir do fim já fixado46. Isso quer dizer que no itinerário da consciência apresentado ao longo da FE, é o saber absoluto quem a conduz, de tal modo que ele é «o círculo que pressupõe seu fim como sua meta, que o tem como princípio, e que só é efetivo mediante sua atualização e seu fim»47. É ele quem arranca a consciência de seu saber natural para o saber real. E a consciência natural, enquanto postura da consciência, se dissipa, tem nesse processo a sua morte. Mas a consciência em geral, por outro lado, «é para si mesma o seu conceito; por isso é imediatamente o ir-além do limitado, e - já que este limite lhe pertence - é o ir além de si mesma»48. Somente o que está restrito a uma vida natural não pode ir além de seu ser-aí imediato, e como a consciência é para si mesma seu conceito, ela é capaz, tal como o espírito, de encarar diretamente o negativo e se demorar junto dele, pois a violência que ela sofre vem dela mesma, e ao suportá-la vai além de si, com seu sacrifício ela ganha sua ressurreição para si mesma49. Do contrário, ressalta ainda Hegel, a angústia perante a verdade pode até fazer a consciência recuar e tentar salvar o que está para ser perdido, manter-se, desse modo, no comportamento da consciência natural, que sente a violência e fica com medo de sua própria subsistência, mas mesmo assim já não encontrará nenhum descanso, visto que sua inquietação inerente perturbará a sua inércia. O fato é que não é o percurso do processo que passa da consciência natural para a real, mas é a 45 46 47 48 49 absoluto, o rompimento que a passagem da consciência natural à consciência verdadeira exige e que se efetua através de uma contestação do saber imediato (o mundo da intuição, da imaginação, da vontade sensível), do saber formal do entendimento, prisioneiro de suas próprias contradições, e atingindo então o saber verdadeiro ou o conceito». FErrEIrA, M., «Introdução», op. cit., nota 19, p. 75. HEIDEggEr, M., «o conceito de experiência em Hegel», op. cit., p. 188. Idem. HEgEL, g. W. F., Fenomenologia do Espírito, op. cit., pp. 32-33. Ibid., p. 74. HEIDEggEr, M., «o conceito de experiência em Hegel», op. cit., p. 189. artículos 79 PEDRO SILVA MAUAD própria consciência que avança de uma figura para outra. «A progressão é uma marcha, cujo movimento é determinado a partir do fim, quer dizer, a partir da violência da vontade do absoluto»50. Esse fim, o absoluto, precisa ser entendido enquanto um objetivo ou alvo, não como um ‘final’, e ele indica que a consciência atingiu um novo patamar, porque agora ela tem consciência de que quer atingir a compreensão de si mesma, assim, ela já se compreende como espírito. O que temos, então, com o final do §8 é a integração de duas posições antagônicas; é a passagem do ainda-não da consciência natural ao sempre-já da consciência filosófica, que dessa parte do texto em diante será tratada, abreviadamente, como consciência sem adjetivação, isto é, consciência que contém em si as oposições e, por isso mesmo, já as superou, de forma que não fica mais refém da cisão e consegue, assim, se compreender como espírito. Em outras palavras, é a consciência que alcançou um nível de desenvolvimento no qual as amarras que ela mesma se colocou devido a uma compreensão limitada da modernidade finalmente se tornaram visíveis. Dessa forma se encerra o segundo movimento do texto da Introdução, demonstrando o modo e a necessidade do processo; e o terceiro se inicia, no §9, fazendo referência ao método do desenvolvimento. Hegel recoloca o problema do padrão de medida que já havia sido criticado no primeiro movimento do texto. A apresentação que faz a FE do «procedimento da ciência em relação ao saber fenomenal e como investigação e exame da realidade do conhecer, não se pode efetuar sem um certo pressuposto colocado na base como padrão de medida»51. Entretanto, como também já vimos, o padrão de medida não pode ser externo à consciência, já que ele não é o conhecer enquanto um instrumento. Ainda assim, a investigação científica do saber fenomenal e da realidade do conhecer - que a FE se propõe a ser necessita de um padrão de medida para ser seu critério. Ora, como o absoluto não se dá a conhecer por nenhum critério que lhe é exterior, a apresentação encontra-se em contradição52. Um recuo será preciso para que esse obstáculo possa ser superado: faz-se necessário recordar as determinações abstratas do saber e da verdade tais como ocorrem na consciência (§10), isto é, as determinações do saber e da verdade tais como são estabelecidas por qualquer tipo de consciência natural. A abstração é uma das operações por excelência da representação. Esse esforço de recordar requisitado por Hegel nesse momento do texto, nos mostra que não somente o texto da introdução foi escrito para uma consciência moderna, como também que o ponto de vista moderno da representação natural é que determina e organiza as próprias figuras do percurso fenomenológico em sua sequência. Isso quer dizer, segundo Nobre, que essa sequência tem uma estrutura lógica 50 Ibid., p. 192. 51 HEgEL, g. W. F., Fenomenologia do Espírito, op. cit., p. 75. 52 Não se trata da contradição no sentido mais elaborado que tem essa noção na FE, a contradição aqui se aproxima do ‘contrassenso’ da representação natural, encontrado no §1 do texto. 80 artículos A EXPERIÊNCIA DA CONSCIÊNCIA: UMA INTERPRETAÇÃO DA INTRODUÇÃO … e não cronológica, e que ela é derivada da «necessidade de proceder a uma reconstrução da consciência filosófica moderna»53. A consciência moderna em seu modo de representar, nos recorda Hegel, «distingue algo de si e ao mesmo tempo se relaciona com ele», isso quer dizer, o que é distinguido é posto como algo para a consciência que, então, com ele se relaciona. A clássica relação de tipo ‘sujeito-objeto’. «O aspecto determinado desse relacionar-se - ou do ser de algo para uma consciência - é o saber», continua Hegel. Porém, a consciência diferencia esse algo de um ser-em-si que é tomado como a verdade, e a parte que se relaciona com o saber da consciência é também diferenciada desse ser-em-si. Ou seja, o saber é o movimento da consciência em direção ao objeto, e a verdade é o objeto em sua autonomia exterior à consciência54. Dessa forma, nosso autor conclui afirmando que, sendo o objeto da FE o saber fenomenal, importa tomar suas determinações como se apresentam e elas se apresentam como foram apreendidas. Tomá-las tal como se apresentam implica tomá-las de forma imediata, sem recair, no entanto, na ilusão de que a imediatez é livre de mediações. Por isso Hegel insiste em dizer que elas se apresentam como foram apreendidas, portanto, já mediadas. Nobre tece um ótimo comentário sobre isso: o que a apresentação fenomenológica recebe é o imediato em sua inteireza e não apenas em sua imediatez, quer dizer, recebe de maneira imediata o que se oferece como imediato juntamente com tudo o que ele traz com ele: com todas as determinações que permitem reconstruir a sua gênese, vale dizer, com todas as determinações que permitem reconstruí-lo como, de fato, mediado55. Mas se a verdade é o ser-em-si e o saber desse ser para a consciência, sempre que tentarmos atingir a verdade, apenas alcançaremos o nosso saber dela, ou seja, o ser para nós seria o critério da verdade: «o Em-si do saber resultante dessa investigação seria, antes, seu ser para nós: o que afirmássemos como sua essência não seria sua verdade, mas sim nosso saber sobre ele»56. 53 NoBrE, M., Como Nasce o Novo, op. cit., p. 188. 54 Heidegger tece um interessante comentário sobre esse ponto: «na consciência, algo é diferenciado dela e por ela. é como se fosse ela mesma, por si mesma, algo para outro. Mas o que é separado nesta distinção (o objeto para o sujeito no sujeito) permanece, pelo diferenciar, justamente referido àquilo que distingue. A consciência separa, representando, algo de si, acrescenta, porém, a si, o separado. A consciência é em si mesma um diferenciar que o não é, é ambígua na sua essência. Este ambíguo é a essência do representar. é por causa da ambiguidade que ambas as determinações, o saber e a verdade, o ‘ser para’ e o ‘ser em si’, ocorrem imediatamente em todo o domínio da consciência, de tal modo que elas mesmas são ambíguas». HEIDEggEr, M., «o conceito de experiência em Hegel», op. cit., p. 197. 55 NoBrE, M., Como Nasce o Novo, op. cit., p. 191. 56 HEgEL, g. W. F., Fenomenologia do Espírito, op. cit., p. 76. artículos 81 PEDRO SILVA MAUAD O padrão de medida, assim, estaria em nós, não no objeto. Como sair dessa aparente aporia? O §12 nos dá uma solução. A consciência, afirma Hegel, tem por natureza e fornece, em si mesma, sua própria medida, o objeto é a própria consciência e a investigação se revela como uma comparação de si consigo mesma. «Há na consciência um para um Outro, isto é, a consciência tem nela a determinidade do momento do saber», por outro lado e simultaneamente, «esse Outro não é somente para ela, mas é também fora dessa relação, ou seja, é em si: o momento da verdade»57. É deste modo que a consciência tem nela mesma58 o padrão de medida de seu saber, e toda diferença entre saber e verdade, real e não real passa a ser uma diferenciação (Unterschied) realizada pela própria consciência, não mais uma distinção dada e pressuposta como necessária 59. Colocar-se a si mesma como padrão de medida e ter por objeto nada aleḿ de si e de seu próprio saber, é essa a essência da consciência.60 É desta forma,, então, que o autor faz a famosa comparação da Introdução entre saber, conceito e objeto: Se chamarmos o saber, conceito; e se a essência ou o verdadeiro chamarmos essente ou objeto, então o exame consiste em ver se o conceito corresponde ao objeto. Mas chamando a essência ou o Em-si do objeto, conceito, e ao contrário, entendendo por objeto o conceito enquanto objeto - a saber como é para um Outro - então o exame consiste em ver se o objeto corresponde ao seu conceito. Bem se vê que as duas coisas são o mesmo: o essencial, no entanto, é manter firmemente durante o curso todo da investigação que os dois momentos, conceito e objeto, ser-para-um-Outro e ser-em-simesmo, incidem no interior do saber que investigamos61. 57 Idem. 58 Heidegger atentamente comenta que «se a consciência desse o seu critério a si mesma, então, pensando rigorosamente, isso significaria: que a consciência se dá o critério para si mesma. Habitualmente, porém, a consciência não faz propriamente caso do que em verdade é. Por outro lado, a verdade não advém à consciência de um lado qualquer. Ela mesma é já, para si mesma, o seu conceito. é por isso que tem o seu critério nele. é por isso que coloca ela mesma o critério à disposição dele mesmo. o ‘nela mesma’ significa, duplamente, que a consciência tem o critério residente na sua essência. Mas aquilo que nela reside, e não noutra coisa qualquer, isso não se o dá diretamente a si mesma. Ela dá o critério nela mesma. Dá-o e, apesar disso, simultaneamente, não o dá». HEIDEggEr, M., «o conceito de experiência em Hegel», op. cit., p. 198. Marcos Nobre também comenta o seguinte: «‘o em si’ marca o momento ‘para nós’ da investigação. Desse modo, se a consciência tivesse ‘em si mesma’ a medida, ela já conteria também o para si em sua formulação autêntica, ou seja, o para si se apresentaria como é verdadeiramente, como para si. Se fosse assim, encontraríamos já a consciência tal como emerge ao final do processo: como em si e para si». NoBrE, M., Como Nasce o Novo, op. cit., p.196. 59 Ibid., p. 195. 60 Ibid., p. 196. 61 HEgEL, g. W. F., Fenomenologia do Espírito, op. cit., p. 76. 82 artículos A EXPERIÊNCIA DA CONSCIÊNCIA: UMA INTERPRETAÇÃO DA INTRODUÇÃO … Como podemos ver, não faz muita diferença62 se tomamos o objeto ou o saber pelo conceito63, desde que compreendamos que tanto o objeto quanto o conceito incidem no próprio saber, e a consciência traz nela mesma ambos os momentos essenciais desse saber, ela é para si mesma o seu conceito, assim, por isso pode dispensar todos os padrões de medida que lhe são exteriores e nós podemos abandonar «nossos achados e pensamentos, pois deixando-os de lado é que conseguiremos considerar a Coisa como é em si e para si»64. Tudo isso nos mostra que o momento da verdade é imanente65 à consciência, portanto, que Hegel buscava livrar o pensamento de todas as amarras da representação natural. Diante disso, conclui-se no §13, que a consciência realiza ela própria o exame, pois contém as condições para tal nela mesma, de modo que, nós, os filósofos, somos poupados da fadiga da comparação entre o conceito e o objeto, e do próprio exame. Só nos resta o puro observar. No entanto, a forma pela qual este exame é realizado pela consciência ainda precisa ser mostrada. A consciência, então, «por um lado, é consciência do objeto; por outro, consciência de si mesma: é consciência do que é verdadeiro para ela, e consciência de seu saber da verdade»66. O objeto, por sua vez, parece ser para a consciência somente aquilo que nele ela conhece, permanecendo, desse modo, oculto o objeto em-si: «a consciência não pode chegar por detrás do objeto, [para ver] como ele é». Contudo, para Hegel, como a consciência já tem o saber sobre o objeto, já está dado tanto o em-si do objeto quanto o objeto para a consciência na forma de 62 Não faz tanta diferença, mas nem por isso não deixa de fazer, como atentamente pontuado por Heidegger, «de fato, tudo vai dar ao mesmo. Mas, nem por isso é de modo algum igual, nem, portanto, é indiferente como fazemos uso das designações de conceito e objeto». HEIDEggEr, M., «o conceito de experiência em Hegel», op. cit., p. 200. 63 Como lembra Heidegger, nesse momento, «a palavra conceito é tomada no sentido da lógica tradicional». Idem. 64 HEgEL, g. W. F., Fenomenologia do Espírito, op. cit., p. 76. 65 Há uma informativa passagem no comentário de Jean Hyppolite sobre a FE em que se compara a posição hegeliana e kantiana no que diz respeito a transcendência e a imanência da consciência: «se definimos a verdade como o acordo do sujeito e do objeto, perguntamo-nos como esse acordo é constatável, já que a representação não pode sair dela mesma para justificar sua conformidade a seu objeto. Entretanto, se o objeto não é posto para além da representação, a verdade perde sua significação transcendente para a consciência e, se esta transcendência é mantida absolutamente, a representação é radicalmente separada de seu objeto. Imanência do objeto em relação à consciência comum e transcendência radical tornam igualmente impossível a própria posição do problema da verdade. Mas, para Kant, o que constituía a objetividade do objeto era imanente, não, por certo, em relação à consciência comum, mas em relação à consciência transcendental. Deste modo, o objeto era transcendente em relação à consciência comum ou finita, mas imanente em relação à consciência transcendental. ora, toda consciência comum é também consciência transcendental, toda consciência transcendental é também necessariamente consciência comum; a primeira só se realiza na segunda. o que quer dizer que a consciência comum se ultrapassa a ela mesma; ela se transcende e se torna consciência transcendental». HYPPoLITE, J., Gênese e Estrutura da Fenomenologia do Espírito de Hegel, Discurso editorial, São Paulo, p. 32. 66 HEgEL, g. W. F., Fenomenologia do Espírito, op. cit., p. 77. artículos 83 PEDRO SILVA MAUAD seu saber sobre ele; mas como neste saber esses dois momentos não se correspondem, permanecendo cindidos entre si, a consciência necessita mudar seu saber para que ele se adeque ao objeto. «Porém, na mudança do saber, de fato se muda também para ele o objeto, pois o saber presente era essencialmente um saber do objeto; junto com o saber, o objeto se torna também um outro, pois pertencia essencialmente a esse saber»67. Assim se revela - vem a ser (Werden) para a consciência que o em-si do objeto era na verdade em-si somente para ela, isto é, não era em-si de forma independente do saber da consciência, mas somente para ela mesma que o em-si se colocava como realidade do objeto. Por esse motivo a consciência, para superar essa limitação, precisará ir além de si mesma, precisará «ir além dos limites que a prendem a uma concepção de conhecer que defronta um sujeito e um objeto», que desconsidera que no conhecer há um todo social e histórico que o determina e lhe atribui sentido. Essa superação quer dizer abrir mão desse ponto de vista limitado da representação natural e alcançar o ponto de vista do espírito, pois somente esse ponto de vista confere sentido pleno à consciência e à experiência que ela realiza. 3. A Experiência da Consciência Todo esse movimento da consciência que está sendo apresentado na Introdução é dialético e a consciência o realiza em si mesma. Dito de outro modo, esse movimento é uma aufheben das figuras da consciência, de forma que elas são suprimidas e superadas pela própria consciência ao mesmo tempo em que são reunidas retroativamente em um encadeamento lógico. A consciência realiza uma aufheben «tanto em seu saber como em seu objeto, enquanto dele surge o novo objeto verdadeiro para a consciência»68. Assim é que temos, então, o que Hegel conceitua como experiência da consciência. Mas ela não é a mesma do sentido tradicional da palavra, na verdade, o conceito de experiência hegeliano é distinto do conceito de experiência da tradição metafísica, tal como Heidegger demonstra em seu texto Elucidação da Introdução da Fenomenologia do Espírito de Hegel: Aristóteles e Kant69 concordam que a ‘experiência’ e a εμπειρια se referem ao ente acessível imediatamente no cotidiano. Ao contrário, o que 67 Idem. 68 Idem. 69 Heidegger também diz em outro comentário sobre A Fenomenologia do Espírito de Hegel, indo nas raízes kantianas do conceito de experiência tal como estava dado na época de Hegel, que «conocemos la expresión como término técnico, por ejemplo, de la Crítica de la razón pura de Kant. Una de las formulaciones del problema de la Crítica es la pregunta por la posibilidad de la experiencia. Experiencia significa aquí el todo del conocimiento teórico del ente presente ante la mano (naturaleza) (...) Pero cuando Hegel caracteriza a la «Fenomenología del espíritu como 84 artículos A EXPERIÊNCIA DA CONSCIÊNCIA: UMA INTERPRETAÇÃO DA INTRODUÇÃO … Hegel denomina ‘experiência’ não se refere ao ente perceptível no cotidiano, nem em geral ao ente, nem tampouco é a experiência tomada estritamente como um ‘conhecimento’ no sentido de um processo apenas representativo do homem70. A experiência realizada pela consciência na FE é uma experiência do positivo como negativo, da falha no percurso como a própria verdade do processo, da imediatez como algo sempre mediado e que, por isso, a consciência faz a experiência de si mesma. Na medida em que a consciência a si mesma se experimenta, ela é sujeito dessa experiência, pois o que ela experimenta é a necessidade da sua própria essência71 ser espírito. O saber que se realiza nessa experiência é o saber absoluto, que se sabe a si mesmo como espírito, ou seja, não como substância, mas como sujeito72. Saber de si enquanto espírito e, portanto, sujeito, significa saber de si como, e Hegel não poderia dar melhor definição, a negatividade pura e simples, e justamente por isso é o fracionamento do simples ou a duplicação oponente, que é de novo a negação dessa diversidade indiferente e de seu oposto. Só essa igualdade reinstaurando-se, ou só a reflexão em si mesmo no seu ser-Outro, é que são o verdadeiro; e não uma unidade originária enquanto tal, ou uma unidade imediata enquanto tal. O verdadeiro é o vir-a-ser de si mesmo, o círculo que pressupõe seu fim como sua meta, que o tem como princípio, e que só é efetivo mediante sua atualização e seu fim73. Essa seria, em suma, a totalidade da experiência realizada pela consciência. A experiência que revela à consciência que sua verdade é ser sujeito, espírito. Mas tal revelação não se dá ao fim do processo, ao contrário, seu fim é pressuposto como sua meta, e por isso mesmo é que somente ao se refazer (wiederherstellen) em sua igualdade consigo mesma, após ter se auto diferenciado, é que efetiva sua verdade. A experiência é um olhar para trás que cria seus pressupostos e os transformam em seu verdadeiro fim, como Hegel vai dizer mais tarde na Enciclopédia das ciências filosóficas, «a plena realização do fim infinito é 70 71 72 73 ciencia de la experiencia de la conciencia hay que reparar en que: 1. La experiencia no está tomada en sentido kantiano. 2. La Fenomenología, como la ciencia, en ningún caso es saber de, es decir, sobre la experiencia, tampoco y cuando comprendemos la expresión al modo hegeliano». HEIDEggEr, M., La Fenomenología del Espíritu de Hegel. Curso del semestre de invierno, Friburgo, 1930 – 31 (trad. Manuel E. Vázquez e Klaus Wrehde), Alianza Editorial, Madrid, 1992. HEIDEggEr, M., «Dilucidación de la ‘Introducción’ de la ‘Fenomenología del Espíritu», op. cit., p. 31. HEIDEggEr, M., La Fenomenología del Espíritu de Hegel, op. cit., p. 40. HEgEL, g. W. F., Fenomenologia do Espírito, op. cit., p. 32. Ibid., p. 40. artículos 85 PEDRO SILVA MAUAD somente suprassumir a ilusão de que o fim não foi ainda realizado»74. Daí tiramos as consequências de duas características fundamentais da filosofia de Hegel: sua absoluta imanência e o reconhecimento do que aparece (fenômeno) como sua própria essência. A essência do aparecer que, como disse Heidegger, é a própria experiência. Não se chega a lugar algum no qual já não se estava antes. Quando a consciência realiza sua experiência ela se transforma e essa transformação é que determina a verdade do objeto, que já é um novo objeto. Não realizamos esse fim ao atingi-lo, «mas provando que já o atingimos, mesmo que o caminho para sua realização esteja oculto de nossas vistas»75. O fim realiza o seu meio, o novo objeto é a determinação verdadeira do antigo. Nas palavras de Zizek76, a reconciliação realizada pela síntese no processo dialético «não é uma ultrapassagem ou suspensão (ainda que dialética) da cisão em algum plano superior, mas sim uma reversão retroativa, que significa que nunca houve cisão alguma - a síntese anula retroativamente essa cisão». Ou como o próprio Hegel afirma no final do §14 da Introdução, «esse novo objeto contém o aniquilamento [nadidade] do primeiro; é a experiência feita sobre ele». É dizer, a consciência só realiza plenamente a experiência quando experimenta a novidade do objeto ao mudar seu olhar sobre ele. Por conta disso, a metáfora do caminho já não é mais suficiente por si mesma, é uma metáfora limitada para expressar em toda a sua extensão e complexidade o movimento dialético da consciência cujos elementos não podem ser fixados. É uma ilusão «acreditar que uma realização se torne inteligível ao ser descrita como o culminar de uma série de acontecimentos»77. Daí a necessidade de acrescentar a ideia de um ‘transcurso’ (Verlauf), para pontuar e ressaltar o fluxo mesmo de um movimento não-linear cujo sentido é dado pelo conceito de experiência. Na metáfora do caminho o movimento é expresso como simplesmente linear e progressivo, como se fosse apenas questão de seguir em frente e em a cada nova figura, acrescentar um novo saber até alcançar o absoluto, que seria então uma mera adição de todas as figuras anteriores somada ao conteúdo do absoluto. Como se tivesse algo para ser encontrado no absoluto que já não estivesse presente anteriormente. Contudo, 74 HEgEL, g. W. F., Enciclopédia das ciências filosóficas: A ciência da lógica, op. cit., p. 347. 75 zIzEK, S., Menos que nada. Hegel e a sombra do materialismo dialético, Editora Boitempo, São Paulo, 2013, p. 42. 76 Slavoj zizek tem uma interessante interpretação sobre a retroatividade em Hegel: «a principal implicação filosófica da retroatividade hegeliana é que ela solapa o reino do princípio da razão suficiente: esse princípio só é válido na condição de causalidade linear, quando a soma das causas passadas determina um evento futuro - retroatividade significa que o conjunto de razões (passadas, dadas) nunca é completo e ‘suficiente’, posto que as razões passadas são retroativamente ativadas pelo que é, dentro da ordem linear, seu efeito». Ibid., p. 54. 77 LEBrUN, g., O Avesso da Dialética - Hegel à luz de Nietzsche, Companhia das Letras, São Paulo, 1988, p. 221. 86 artículos A EXPERIÊNCIA DA CONSCIÊNCIA: UMA INTERPRETAÇÃO DA INTRODUÇÃO … como já foi visto, não é disso que se trata. Há, na verdade, uma circularidade que só se explica, em termos temporais, vista de trás pra frente; é o fim que determina o começo. Como pontuado por Heidegger, a consciência tem como essência fundamental «ser já algo que, simultaneamente, ainda não é», ela «já está-presente no ainda-não»78, ou seja, a consciência sempre já é espírito, seu fim sempre já determinou seu começo, e a experiência que ela faz é justamente essa passagem do ainda-não ao sempre-já. A causa é suprimida e superada no efeito, o meio no fim realizado, e, por isso, a experiência contém a verdade tanto do objeto quanto da consciência, isto é, ser espírito que se sabe enquanto tal. Dessa mudança nada advém a não ser o que já era. Tal conceito de experiência é completamente anti-intuitivo e Hegel sabia perfeitamente disso. Por esse motivo ele inicia o §15 reconhecendo que na apresentação desse transcurso (an dieser Darstellung des Verlaufs) há um momento que aparenta não corresponder ao que se entende por experiência: justamente o momento em que a experiência se consuma, o momento da negação determinada, da Aufhebung, momento em que o novo objeto surge, em que acontece «a transição do primeiro objeto e do seu saber ao outro objeto no qual se diz que a experiência foi feita»79. Se engana quem pensa que nessa experiência o que obtemos é o saber do objeto em-si; é antes o contraŕio, nós fazemos a experiência da inverdade de nosso primeiro conceito, isto é, do objeto em-si em um outro objeto, que encontramos de modo um tanto casual e extrínseco. Não se ganha nada na experiência porque sua verdadeira riqueza é nos mostrar a inverdade do que acreditávamos, mas como essa inverdade não é um puro nada, a encontramos em um outro objeto, um «novo objeto como vindo-a-ser mediante uma reversão da consciência mesma». Essa reversão (Umkehrung) de que fala Hegel é o núcleo da experiência. Ela dá forma ao caráter dialético do movimento, pois é no momento em que ela ocorre que o novo objeto se mostra como vindo-a-ser (geworden); ela é, por isso, o momento chave da Aufhebung no âmbito da consciência. No entanto, essa consideração sobre a reversão, Hegel alerta, só faz sentido ‘para nós’, porque a consciência que examinamos na FE a reversão acontece sem que ela saiba. É desse modo que, para a consciência, o ainda-não se transforma, retroativamente pela reversão, em sempre-já: quando o que se apresentava primeiro à consciência como objeto, para ela se rebaixa a saber do objeto - e o Em-si se torna um ser-para-a-consciência do Em-si, - esse é o novo objeto, e com ele surge também uma nova figura da consciência, para a qual a essência é algo outro do que era para a figura precedente. É essa situação que conduz a série completa das figuras 78 HEIDEggEr, M., «o conceito de experiência em Hegel», op. cit., p. 211. 79 HEgEL, g. W. F., Fenomenologia do Espírito, op. cit., p. 78. artículos 87 PEDRO SILVA MAUAD da consciência em sua necessidade. Só essa necessidade mesma - ou a gênese do novo objeto - se apresenta à consciência sem que ela saiba como lhe acontece. Para nós, é como se isso lhe transcorresse por trás das costas80. Do ponto de vista da consciência essa reversão retroativa lhe é oculta, mesmo que seja ela [a consciência] o sujeito da experiência. Ter ciência da reversão exige realizar o percurso da FE em sua totalidade, por isso apenas nós, os filósofos - não mais reféns da representação natural -, conseguimos constatar esse momento da reversão. Com isso, diz Hegel, nós compreendemos o [aspecto] formal, ou seu surgir puro como movimento e vir-a-ser, enquanto que a consciência apenas compreende o que surge como objeto. A perspectiva formal do para-nós é a cientificidade almejada por Hegel na FE: a gênese do novo objeto. Em outras palavras, demonstrar, da perspectiva do processo em sua necessidade, o objeto como vindo-a-ser na reversão da consciência, isto é, na experiência. Tanto é assim que, como mais uma vez bem observado por Heidegger81, Hegel sintetiza em apenas uma frase o resultado produzido pelo movimento dos §§ 14 e 15: «é por essa necessidade que o caminho para a ciência já é ciência ele mesmo, e portanto, segundo seu conteúdo, é ciência da experiência da consciência»82. Essa frase, podemos dizer, sintetiza toda crítica à representação natural, ela é o clímax da crítica a uma noção de conhecer representada como ‘instrumento’ ou ‘meio’. Em suma, a reversão inverte a consciência natural e seu comportamento representativo. Ela expressa e determina a morte dessa consciência. A necessidade de todo esse processo somente se mostra no fim, mas justamente de modo que esse fim revele que ele também é o começo. A consciência é seu próprio objeto, e enquanto tal, só pode ser considerado cientificamente se for considerado sob o aspecto da experiência. O caminho não-linear da consciência tem sua necessidade na experiência da consciência sobre si mesma. Se a consciência natural fazia a experiência de si no objeto sem saber e, portanto, se mantinha na representação e nos limites do conceito tradicional de experiência, a consciência filosófica superou a inverdade dessa forma de saber, a irrealidade desse tipo de objeto, e realizou a experiência científica de si como movimento e vir-a-ser. No último parágrafo Hegel é categórico: «A experiência que a consciência faz sobre si mesma não pode abranger nela, segundo seu conceito, nada menos que o sistema completo da consciência ou o reino total da verdade do espírito»83. A consciência faz assim a experiência de sua essência, que nada mais é do que o absoluto, o reino total da verdade do espírito. Os momentos desse todo, por sua vez, são figuras da consciência, pois têm, segundo 80 81 82 83 88 Ibid., p. 79. HEIDEggEr, M., «o conceito de experiência em Hegel», op. cit., p. 223. HEgEL, g. W. F., Fenomenologia do Espírito, op. cit., p. 79. Idem. artículos A EXPERIÊNCIA DA CONSCIÊNCIA: UMA INTERPRETAÇÃO DA INTRODUÇÃO … Hegel, a determinidade peculiar de não serem abstratos ou puros, mas sim de serem e estarem em relação com a consciência mesma da qual são figuras. Por tudo isso, a consciência, na FE, atinge um ponto onde se despoja de sua falsa aparência, como se estivesse à reboque de algo outro, estranho a ela. Deslocando os termos da representação natural, ela iguala sua aparência a sua verdadeira essência, de modo que passa a coincidir, em sua exposição, com a ciência autêntica do espírito. «E, finalmente, ao apreender sua verdadeira essência, a consciência mesma designará a natureza do próprio saber absoluto»84. Como o caminho para a ciência é ele mesmo ciência, essa Introdução85 à FE, como disse Heidegger, já é seu verdadeiro começo. Ou seja, não há uma introdução à ciência porque, dado o que vimos, não pode haver: não existe uma ciência a ser introduzida a menos que já se esteja nela, e estar nela já significa experienciá-la. Da mesma maneira, não pode haver um final definitivo, conclusivo, pois o verdadeiro «não se esgota em seu fim, mas em sua atualização; nem o resultado é o todo efetivo, mas sim o resultado junto com o seu vir-a-ser»86. Se quisermos manter a metáfora do caminho como uma imagem adequada à FE, melhor seria pensarmos no traçado desse caminho semelhante à uma fita de Moebios87, que tem sua topologia de tal forma que se partirmos de determinado ponto e irmos caminhando em frente, chegaremos exatamente no ponto em que partirmos, só que do seu lado oposto. O resultado a que se chega é o mesmo que o começo porque, como disse Hegel no Prefácio, o começo já é o fim88: a transformação ocorre na consciência, em sua forma de compreender a si mesma e o mundo, a mudança em seu olhar gerada pela experiência de si mesma é o essencial, e é essa verdade científica que a FE ambiciona revelar. 84 Idem. 85 Segundo Heidegger, «o título ‘Introdução’ não se encontra na edição original de 1807. Só no índice introduzido posteriormente nesta edição é que o trecho que se segue ao prefácio foi aposto com o título ‘Introdução’, provavelmente em função da dificuldade resultante da necessidade de um índice. Pois de acordo com o conteúdo, o trecho não é nenhuma introdução, razão pela qual só depois de a obra estar terminada é que o muito mais extenso Prefácio foi redigido como preparação». HEIDEggEr, M., «o conceito de experiência em Hegel», op. cit., p. 236. 86 HEgEL, g. W. F., Fenomenologia do Espírito, op. cit., p. 24. 87 Uma fita de Moebios ou faixa de Moebios é um espaço topológico obtido pela colagem das duas extremidades de uma fita, após efetuar meia volta em uma delas. Deve o seu nome a August Ferdinand Möbius, que a estudou em 1858. Möbius estudou este objeto tendo em vista a obtenção de um prêmio da Academia de Paris sobre a teoria geométrica dos poliedros (Wikipédia). 88 HEgEL, F. W. georg. Fenomenologia do Espírito. op. cit., p. 34. artículos 89 PEDRO SILVA MAUAD Bibliografia FERREIRA, M., «Introdução», HEGEL G. W. F., Prefácios (tradução, introdução e notas de Manuel J. Carmo Ferreira), Imprensa Nacional – Casa da Moeda, Lisboa, 1990. HEGEL, F. W. Georg. 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