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Estesia e experiência do sentido

O texto é uma abordagem da estesia como condição de apreender as qualidades sensíveis emanadas das configurações das coisas do mundo e dos artefatos culturais. Os processos de apreensão e o do sentir são descritos pelos efeitos de sentido que tocam o corpo do sujeito, que vive uma experiência significante. Tratada como um percurso cognitivo, a apreensão se dá a partir da figuratividade, tela do parecer. Ela é formada por operações de tradução do mundo natural em mundos de linguagens. A plasticidade da expressão e aquela do conteúdo articulam as impressões sensíveis do sentido que tocam o corpo do sujeito e os somas indicam a direcionalidade do sentido. O sujeito vive a correlação existente entre figuratividade e narratividade. Nas interações discursivas que são comandadas por procedimentos enunciativos, a produção do sentido é feita por passagens do sujeito estésico, somático e cognitivo.

CASA, Vol.8 n.2, dezembro de 2010 Cadernos de Semiótica Aplicada Vol. 8.n.2, dezembro de 2010 ESTESIA E EXPERIÊNCIA DO SENTIDO ESTHÉSIS ET L’EXPERIENCE DU SENS Ana Claudia de OLIVEIRA1 PUC – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo RESUMO: O texto é uma abordagem da estesia como condição de apreender as qualidades sensíveis emanadas das configurações das coisas do mundo e dos artefatos culturais. Os processos de apreensão e o do sentir são descritos pelos efeitos de sentido que tocam o corpo do sujeito, que vive uma experiência significante. Tratada como um percurso cognitivo, a apreensão se dá a partir da figuratividade, tela do parecer. Ela é formada por operações de tradução do mundo natural em mundos de linguagens. A plasticidade da expressão e aquela do conteúdo articulam as impressões sensíveis do sentido que tocam o corpo do sujeito e os somas indicam a direcionalidade do sentido. O sujeito vive a correlação existente entre figuratividade e narratividade. Nas interações discursivas que são comandadas por procedimentos enunciativos, a produção do sentido é feita por passagens do sujeito estésico, somático e cognitivo. PALAVRAS-CHAVE: Estesia; Somaticidade; Experiência; Cognição; Figuratividade; Narratividade. RESUMÉ: Le texte est une approche de l‟esthésis comme condition d‟appréhension des qualitées sensibles des configurations des choses du monde et des artefacts culturels. Les processus d‟appréhension et du sentir sont décrits par les effects du sens qui touchent le corps du sujet qui vit une expérience signifiante. Traitée comme un parcours cognitif, l‟appréhension se donne à partir de la figurativité - l’écran du paraître. Celle-ci est formée par des opérations de traduction du monde naturel dans les mondes de languages. La plasticité de l‟expression et celle du contenu articulent les impressions du sens qui touchent le corps du sujet en indiquant la directionalitée du sens. Le sujet vit cette expérience dans une succession des états transformés par les actions, fait qui montre la corrélation existant entre figurativité et narrativité. Dans les interactions discursives qui sont conduites par le processus enonciatif, la production du sens est faite par des passages du sujet esthésique, somatique et cognitif. MOTS CLÉES: Esthésis; Somaticité; Expérience; Cognition; Figurativité; Narrativité. 1 É professora titular da PUC-SP na qual atua na Pós-Graduação em Comunicação e Semiótica e é codiretora do Centro de Pesquisas Sociossemióticas (CPS). 1 http://seer.fclar.unesp.br/casa CASA, Vol.8 n.2, dezembro de 2010 A um tempo passado de 15 anos do “corpo e sentido”e a construção do desapego processada nesses 15 anos com Anne – manifestação de puro amor. Preliminar I: figuratividade e narratividade A problemática da significação no âmbito da apreensão do sentido tem sido cada vez mais atual nos estudos semióticos. Nessa rota, retomo minha caminhada dos anos 90, quando, a partir do legado do livro Da imperfeição (1987), de Algirdas Julien Greimas, tratei os mecanismos de elaboração do sentido e sua trajetória do inteligível ao sensível com preocupações de dar conta dos processamentos da estesia. Considerando-a uma dimensão inerente à presença dos objetos, coisas, seres no mundo, a estesia é a condição de sentir as qualidades sensíveis emanadas do que existe e que exala a sua configuração para essa ser capturada, sentida e processada fazendo sentido para o outro. Em quaisquer das irrupções do descontínuo no contínuo, na escapatória minimal ou na fratura catastrófica, o impulso que age sobre o sujeito, mais especificamente sobre o seu corpo como uma totalidade de sentidos apreendidos, produz tipos de ações que incidem sobre a sensibilidade e o estado em que o sujeito e o mundo se encontram. Essa afirmação nos conduz a observar que a noção de narratividade, definida enquanto sucessão de estados e transformações, está inteiramente articulada à de figuratividade estabelecendo entre a semântica do nível discursivo e a do nível narrativo correlações que nos ajudam compreender o ato de produção do sentido. Enquanto a mostração das qualidades sensíveis de um dado mundo recortado se faz apreensão por uma força estésica proposicional dessa totalidade, os feixes de figuras da expressão que as articulam são marcados pelos meios usados pelo enunciador para conformar as figuras do conteúdo ao enunciatário. Nesse procedimento direcional da criação, observa-se que o processamento da captura é delineado por uma sucessão de estados do sujeito e do outro sujeito da apreensão que assinalam passagens por uma dinâmica de transformações propiciadoras de orientações da captura sensível, da articulação relacional entre essas partes minimais até, enfim, atingir a totalização da configuração que pode ter reconhecimento por seu contorno e forma. Assim a apreensão da figuratividade de um ser do mundo origina uma sequência de estado e transformação da narratividade que o sujeito operador dessa apreensão experimenta no percurso de seu fazer relacional que se correlaciona ao percurso do que se mostra a ele. Entendida como a articulação tradutória de elementos dos sistemas de qualquer linguagem, a figuratividade é arranjada a partir de regras regedoras das relações possíveis que o enunciador manuseia para configurar um arranjo sintagmático, que foi definido por Greimas (2002), “como tela do parecer cuja virtude consiste em entreabrir, em deixar entrever, graças ou por causa de sua imperfeição, como uma possibilidade de além (do) sentido” (p.74). Um dado mundo de tradução imperfeita, essa tela do parecer sempre desencadeia novas tentativas tradutórias, a imperfeição é postulada como característica criadora dos mundos de linguagens. Uma fotografia, uma pintura, um filme, uma dança, um conto, uma fábula, uma cestaria, entre tantos mais artefatos, são a produção resultante que tem o poder de singularizar os tipos de cultura que são estabelecidos pelos distintos modos de interação entre sensibilidade e ambientação do mundo que marcam os agrupamentos sociais. As interações com o mundo são plasmadas por vetores e direções que o manuseio enunciativo de recursos da linguagem socializada afirma os tipos de interação entre os sujeitos − um enunciador voltado para outro, 2 http://seer.fclar.unesp.br/casa CASA, Vol.8 n.2, dezembro de 2010 um enunciatário, seleciona e arranja, de certo modo, a sua composição imperfeita que deixa depreender os mecanismos dessa criação. Os arranjos das materialidades significantes são resultantes dos procedimentos enunciativos que incidem sobre o sujeito e o seu aparato sensório relacional integrativo. Esse opera comandando a captação das impulsões do modelado que vai produzindo a significação no ato mesmo de sentir o sentido. Em Semântica estrutural (1966), Greimas afirmava que a percepção já é significação, e o interesse da semiótica alocado na abordagem dos mecanismos de significar está voltado para o processamento do sensível. De uma totalidade pictórica manufaturada com pincéis e tinta a óleo sobre um retábulo de quatro partes ambientado originalmente no altar central da capela do hospital dos Antoninos, que abrigava doentes graves, o políptico de Matthias Grünewald2 foi a cena escolhida para que eu desenvolvesse como uma produção pictórica para significar atinge o seu público a partir dos meios plásticos e figurativos de sua realização discursiva que são captados, produzindo, com seus sentidos, uma afetação do sujeito que as sente. Figura 1: Políptico de Matthias Grünewald (1470-1528), conhecido como Retábulo de Isenheim, foi executado entre 1512-1516 e era a pintura do altar da capela do Convento do Hospital dos Antoninos. Na parte central, a pintura de uma cruxificação; na parte inferior, a pintura da descida da cruz; na lateral esquerda, a pintura de São Sebastião e, na da direita, a pintura do patrono dos Antoninos. 2 OLIVEIRA, A. C. de. “Sentidos do corpo ou corpo sentido?” In: ASSIS SILVA, Ignacio (Org). Corpo e sentido. A escuta do sensível. São Paulo, EDUNESP, 2006, p. 220-246. 3 http://seer.fclar.unesp.br/casa CASA, Vol.8 n.2, dezembro de 2010 Figura 2: A instalação atual do retábulo em Colmar, no Museu de Unterlinden. Com intensificação das linhas, das cores vivas, do tratamento da luz, o tema do sofrimento é posto em cena e singularizado nas quatro pinturas do denominado retábulo do tipo em transformação, por suas possibilidades de abertura e fechamento das telas, o que permite vários arranjos entre as pinturas, e pode, inclusive, só expor a imagem central. Uma presença divina emana de cada uma, unificando-se na ambiência com tudo o mais do seu entorno, que é organizado a fim de animar o estado de espírito daquele que sofre, quer esse seja o filho de Deus, Jesus Cristo, na sua crucificação pintura, quer seja qualquer doente na sua crucificação em vida, que é um sujeito enunciatário posicionado na esfera de ação do recinto religioso. A interação montada é entre sujeitos que estão sofrendo e são postos partilhando os seus corpos abalados que resistem à prova por seus estados d‟alma animados pela fé no pai celestial. Sobre a narratividade dos estados de alma e de ânimo do doente, é que a figuratividade de Grünewald incide como força transformadora. A crueldade do sentir a dor exalando das figuras do conteúdo e das figuras da expressão do Cristo moribundo na cruz, ao ser processada pelo doente enunciatário, opera uma minimização da dor própria na medida em que o que sofre é deslocado dela para acompanhar a dor vivida por Cristo em detrimento do seu sofrimento. Um argumento de exemplaridade que comove o corpo e a alma daquele aí posto a orar por seu querer, sua volição que o move até a capela do hospital, essa figuratividade promove uma afetação no estado do doente. A narratividade do persistir superando o mal da dor na ambientação da capela converte-se em uma espécie de medicação do espírito cuja posologia é administrada aos pacientes nas doses de suas orações, de sua fé. Situavam-se, pois, na dependência do ato de orar do paciente, os efeitos benéficos dessa medicação figurativa, que emana forças atuantes sobre os estados de alma e de ânimo em passagens de um estado a outro, registrando, nessa sequência narrativa, tanto um 4 http://seer.fclar.unesp.br/casa CASA, Vol.8 n.2, dezembro de 2010 regime de fusão de um eu sofredor com o Cristo− que resiste à dor da crucificação − quanto um regime de união dos sofredores reunidos em oração, que possibilitam suplantar a dor por obra de Deus pai todo-poderoso. Essas possibilidades dos corpos na experiência de suas crucificações −“corpos contaminados de sentidos e sentidos contaminando corpos, contaminação do sentir, contaminação dos sentidos pelos sentidos que percebem, sentindo significação” (OLIVEIRA, 2006, p.345) − apresentei no artigo “Sentidos do corpo ou corpo sentido?”, no colóquio Corpo e sentido. A escuta do sensível, que Ignacio Assis Silva organizou em 1995, em Araraquara. O evento e seu registro em uma coletânea podem ser considerados uma abertura multidisciplinar para o tratamento do lugar do corpo com os seus mecanismos de sensibilidade na construção da significação. Preliminar II: corpo e sentido Para esse tributo ao mestre que animou a semiótica vivamente no interior do Estado de São Paulo, projetando essa região como um importante polo de pesquisa semiótica no mundo, repreendo a pesquisa do sentido no seu processamento a partir da sensibilização do corpo. No seu atuar de distintos modos, o corpo opera apreendendo e sentindo o sentido que é sentido graças à condição estésica. Definida como a condição de processamento do estético, um componente constituinte de todo e qualquer arranjo de linguagem, a estesia é um processamento do corpo que sente as qualidades que sobre ele operam impressivamente. Quanto maior o grau de esteticidade, maior é a ação impressiva e a ação desse corpo operador que, sem automatismo para processar o manifesto por um plano da expressão, capta e sente as impulsões que produzem uma experiência do que é sentido para ser significado. Assim é que o tipo de homologação entre plano da expressão e plano do conteúdo é um fator decisivo na construção da significação. Quanto mais semissimbólica tanto mais envolve o corpo e dele requer uma participação direta e vivencial na construção do plano do conteúdo manifesto pelo plano da expressão. Esse eixo investigativo prosseguiu de 1996 a 1999, animado pelas discussões do atelier Semiótica e experiência estética do Centro de Pesquisas Sociossemióticas – CPS3, quando um pequeno grupo de jovens pesquisadores se ocupava comigo dos mecanismos da descrição do sentir nas formas de arrebatamento que atingem sensivelmente o sujeito em seu corpo. As minhas lembranças desse percurso coletivo que resultaram em teses, dissertações e livros devem-se à atuação de Ignacio Assis Silva como animador desse grupo de trabalho e de sua exigência ortodoxa na utilização da teoria semiótica, aliada a um grande rigor metodológico. Talvez essa sua exigência fosse defendida mais agudamente, pois o que tratávamos envolvia o conceito de figuratividade nas operações discursivas, mecanismos de enunciação, apreensão e de sentir e as operações de conversão do plano da expressão em plano do conteúdo que lhe eram muito caras. A situação de ânimo em que o sujeito tocado se encontra é posta em relação tanto com a sua disponibilidade efetiva, para sorver, com os seus sentidos, as impulsões significantes das orientações do sentido de um arranjo significante, quanto do próprio arranjo com as suas condições de sensibilização do corpo que as sente e que pode estar em um estado de dormência ou automatismo no seu fazer processual do sentido, ou em um estado de 3 As referências são os trabalhos dos dois ateliers que se dedicaram à abordagem de Semiótica e experiência estética e eram constituídos de pós-graduandos do PEPG em Comunicação e semiótica da PUC-SP, a saber: Lincoln Guimarães Dias, Yvana Fechine; meus orientandos de mestrado, Nancy Bettz e Gisela Benatti; de doutorado, Anamélia Bueno Buoro, Elisa de Souza, Lauer Alves Nunes, Lúcia Fonseca, Luiz Edegar Costa, Moema Rebouças e Vicente Martinez; e a supervisão de pósdoutorado de Lucimar Bello. 5 http://seer.fclar.unesp.br/casa CASA, Vol.8 n.2, dezembro de 2010 disponibilidade e abertura. A reunião dessas circunstâncias distintas promove os estados de apreensão em que o arrebatamento maior ou menor pode advir para o sujeito e, em qualquer uma de suas manifestações, o acontecimento move o sujeito a sentir com maior ou menor intensidade. Essa produção da conversão do plano da expressão em plano do conteúdo está marcada ainda por uma duração diferenciada que distancia o uso prático das linguagens do seu uso artístico. A cognição é uma construção semiótica sensível e inteligível. Nos processamentos do corpo para a sua elaboração, esses dois polos estão integrados por uma dinâmica e não separados. Em específico, meu trabalho investigativo abordava a irrupção do sentido em uma interação em que o objeto era desconhecido do sujeito sensiente e se fazia apreender e tornar-se cognição que permite o reconhecimento em uma singular ocorrência vivida. De outro lado, esse objeto recém-conhecido, com os mecanismos de sua produção do sentido, ao ser submetido a um deslocamento e receber outra contextualização geográfica e social que a situação primeira, somente é passível de reconhecimento a partir de nova experiência do que é sentido. Na preparação de um texto para o III Colóquio do Centro de Pesquisas Sociossemióticas do ano 1998, tratava da apreensão sensível do mar tal como foi vivida por Anne, minha filha, que tinha então uns vinte meses quando entrou nessas águas. Foi em uma viagem à Barra do Una, litoral paulista, que a ambiência marítima a encantou, deixando-lhe fortes impressões de seu primeiro contato com a imensidão das águas do que saberia depois ser a do oceano Atlântico. Observado de uma angulação triangular da praia, no ponto em que essa é cortada por um riacho que ali deságua, a vista extraordinária4 do choque das águas foi vivida pela menina a partir das temperaturas diversas das duas correntes aquáticas, a fria oceânica, a quente ribeirinha e ainda a mistura quente-fria, só sentida na imersão mesma do pequeno corpo instalado na ocorrência em que a cor esverdeada do mar se tornava amarronzada pelo sombreamento cromático dessa tonalidade da areia grossa da praia, que produzia uma suavização da luminosidade atmosférica. As bolhas embranquecidas da espuma, que se avolumavam umas sobre as outras nas ondas quando quebradas gritantes, desequilibravam os pés apoiados na área movediça, promovendo as muitas quedas do corpo e sua instabilidade. Os mergulhos na água e a cabeça, de novo fora dela, com o reerguer do corpo, faziam a boca, o olho e o nariz sentir uma água doce e outra salgada, penetrando de fora para dentro de seu corpo. A umidade pegajosa do ar, o cheiro da maresia, o vento ininterrupto que passava de uma sonoridade de brisa mansa a uivos que ecoavam na Mata Atlântica adentro, isso tudo se tornava gosto salgado do poderoso mar que engolia a doçura tímida do ribeirão. O corpo pequenino ia e vinha, caía e se reerguia, no desequilíbrio entre a frágil verticalidade humana e a instável horizontalidade oceânica variável com a intensidade da onda, do vento, da maré. No seu cinetismo, a presença do corpo operava com os seus mecanismos de sentir, de interagir, de enunciar e apreendia sentidos somáticos que significavam o sujeito no seu embate corpo a corpo desbravando o oceano. Se a menina da posição de sujeito passou a ocupar a de objeto das emoções produzidas pelo oceano sujeito, é preciso notar que, mesmo se esse, sem dúvida, a ressignificou na duração da interação, não o fez a ponto de promover a sua transformação em mero objeto. Na depreensão de uma série de passagens entre os estados, a saber, de um desequilíbrio e apavoramento, nos momentos iniciais, aos de descoberta dos encantamentos marítimos que, em ato, foram-lhe ensinados, na e pela experiência do sentido, a atingir o seu aprazimento. Há, nesse processamento, uma 4 Termo cunhado por Jacques Geninasca, do qual tomo emprestado também os termos impressão, impressivo que são empregados e sistematizados no seu artigo “O olhar estético”, na tradução para o português de A.C. de Oliveira In: OLIVEIRA, A.C. de (Ed.). Semiótica plástica. São Paulo, Hacker-CPS editores, 2004. 6 http://seer.fclar.unesp.br/casa CASA, Vol.8 n.2, dezembro de 2010 transitividade entre as duas presenças corpóreas desproporcionais, que acabam se afinando no convívio, o que torna essa reciprocidade reflexiva uma possibilidade de um novo advento. Entre Anne e o Atlântico, havia uma soberana regência do mar que lhe transladou os seus atributos por meio da dimensão estésica que a fez apreender, por impressões, esse outro excessivo. Voluptuoso e, sobretudo, inebriante, ao ser rompida a estranheza do desconhecido, essas águas despertam na pequena o querer nelas permanecer com o seu corpo frágil, que logo descobriria, no e pelo contato com o mar, um jeito de estar no e com o gigante. E esse mar permaneceu, muito tempo depois da interação, com a menina nos seus olhos avermelhados que arderam; nas orelhas, engolfado no canal auditivo, ensurdecendo-a e assustando-a com os murmúrios das quebradas de ondas ininterruptas; nas narinas de onde não parava de escorrer; na boca salgada, promovendo secura e sede; no corpo dolente após a grande excitação que a fez adormecer sobressaltada. Dias e dias depois da visita, a menina rabiscava ainda essa convulsão vivida em linhas que iam e voltavam, nos traçados assimétricos de curvas nas cores verde, azul, marrom, amarelo, branco que alçavam voo para o azulado do céu para retornar multicoloridas, até findarem mansamente em um ponto de parada, surpreendentemente, para tudo recomeçar. O acontecimento sensível continuaria ainda em elaboração cognitiva nas páginas de papel sulfite esparramadas pela casa inteira quase um mês depois, quando fomos as duas com os nossos cadernos de notas visitar uma exposição de arte contemporânea, que ocorria em São Paulo, no SESC Pompéia, de autoria de Fabrizio Plessi, denominada O deposito dell’arte. Sem qualquer projeto programado, eu levava Anne, de novo, à descoberta do mar. Figura 3: Os desenhos das montagens de Plessi são expostos e eles mostram o detalhamento extremo da obra conceitual. Segundo o artista, os desenhos são as anotações de seu processo de sua criação do qual ele afirma ter início com as suas viagens. Plessi relata que, durante as viagens, “anoto e escrevo sobre emoções e sensações. Depois, desenho. E é nesse momento que a obra começa a se concretizar”. O inserir os desenhos na montagem atesta como eles vão além da conceitualização da obra sendo já a obra. 7 http://seer.fclar.unesp.br/casa CASA, Vol.8 n.2, dezembro de 2010 Figuras 4, 5 e 6 Detalhes da curadoria de Solange Farkas, no 12 VídeoBrasil, realizado em setembro de 1998, em São Paulo, no SESC Pompéia. Os grandes containers propiciam a ambiência sem luminosidade para o artista compor as suas doze localidades do mundo. Separadas as localidades, elas configuram uma totalidade reunida pela obra, que a visitação reconstrói a significação. Figura 7: Videoinstalação Deposito Dell'Arte – Dover, de Fabrizio Plessi, é a maior das doze caixas. Na angulação que nos faz apreender a escuridão da sala, os blocos de televisores ligados são mostrados como o complexo urbano de Dover, resultante de uma figuratividade inusitada com o uso de um grande ventilador (visível na lateral esquerda do desenho na Figura 1) e 26 monitores de TV de 29‟. 8 http://seer.fclar.unesp.br/casa CASA, Vol.8 n.2, dezembro de 2010 Em grandes caixas, encontrava-se cada uma das doze obras apresentadas, todas nomeadas com nomes de cidades espalhadas no mundo. O ambiente era escuro e fechado, tanto pelas caixas como por cortinas escuras que separavam as caixas, lugares urbanos do mundo, que estavam ali postos em um discurso que indicava ao visitante uma orientação de percurso passo a passo, de uma a outra caixa segundo a sua disposição em sequência específica. Essa ambientação modificava, então, todo o habitual grande ambiente do Sesc em que encontramos normalmente a sua vastidão aberta e clara. Cada caixa significava um lugar em que se adentrava e tinha, na sua nomeação, a chave para articular a expressão plástica própria da localidade. Uma das caixas, a maior de todas da exposição, a que recebia o nome de Dover, era concebida como reconstrução dessa cidade à beira mar, só que a materialidade das suas partes constituintes era feita por uma seleção de meios eletroeletrônicos de nossa era multimidiática. Vinte e seis monitores de TV 29‟ ligados emitiam a luminosidade azulada tão característica da imagem televisual e produziam o seu chiado indicativo. Como blocos compactos, esses tinham a sua tela voltada para o alto, o que azulava todo o espaço sobre as cabeças com essa luminosidade televisual característica, que se expandia pela espacialidade criando uma ambiência da presença uniformizante dessa mídia que comandava a temporalidade vivida por tantos atores, mostrando a sua presença massiva, uma vez que delineava a figuratividade urbana. Uma distribuição de televisores formava conglomerados de prédios absolutamente iguais, que eram separados por zonas livres cimentadas como ruas de um projeto urbano, em que o vento circulava em rajadas e ouvia-se, o tempo inteiro, a forte sonoridade do motor do ventilador misturada à do chiado televisual. O visitante andava entre ruas e prédios com essas rajadas sonoras que afetavam o seu corpo, enquanto sentia o vento e as quebradas das ondas uivando nos penhascos e se expandindo pela urbanidade. Percebia, assim articulando esses materiais inusitados, a montagem que o reenviava a uma cidade oceânica. A operação de tradução em linguagens de uma dada cidade, ela mesma formada por meios e produtos de linguagens, estava me desafiando na minha elaboração cognitiva e indagava qual era a especificidade dessa cidade que a tornava a Dover do título do Deposito dell’Arte quando, mesmo com esses significantes heterogêneos e inusitados, a menina se pôs assombrada a se agitar reconhecendo: “Mar! Mar!” e partiu ao seu encontro a correr pelos quatro cantos da caixa. Seu corpo movente saltitava ,e ela aparecia e desaparecia entre os blocos de televisores na sua busca. A agitação se interrompia e, parada, ela se punha a observar onde as ondas quebravam ruidosas. O seu marasmo perturbava a sua busca de reconhecimento. As impressões de sentido advindas da exploração isotópica em sua articulação global propunham correlações semissimbólicas com a figura significante do mundo percebido, mas transformavam a caixa em outro mar. Entre as duas semióticas, a do mundo natural e a da manifestação discursiva do enunciador para o enunciatário, postas em interação discursiva na obra de Plessi, colocou-se, para mim, uma instigação maior que era: Como se dava a operação do crivo cultural de leitura do mundo que opera o reconhecimento das formas figurativas do mar na caixa? Como aí operam as passagens entre as estesias e as somaticidades do corpo na produção do sentido? A sonoridade, o vento sobre a pele, a cromaticidade e a temperatura ambiente eram produzidos por esse circuito de condução de uma energia acústica e luminosa dos televisores, que fazem som e luz transformarem-se em sinais. Na instalação performática, havia uma impressão referencial da presença marítima, e o mar eletrônico de Plessi era mar 9 http://seer.fclar.unesp.br/casa CASA, Vol.8 n.2, dezembro de 2010 como aquele mar de Barra do Una. O sujeito estésico, no entanto, estava posicionado em um mar seco, nessas águas eletrônicas, e esse estranhamento era inquietante na medida em que o impelia à depreensão de outro modo de estar no mar plessiano. A presença que se fazia mar instalou em ato uma copresença na interação corpo a corpo com a menina. Sujeito estésico, somático, cognitivo Por pressuposição, o sujeito estésico que apreende as impressões impressivas elabora um fazer resultante das afetações sensoriais, o que o torna correlato ao sujeito somático. O sentir e o fazer estão em relação e fazem advir o sujeito cognitivo com um poder e saber que é a possibilidade de reconhecer o sentido sentido na produção da significação. A operação de reconhecimento é o par correlato da operação de apreensão sensível. O sentir e o fazer são, por sua vez, correlatos à reflexão. Na volta do sujeito para si próprio, são elaboradas a apreciação e avaliação das impressões impressivas que o afetam. Dar conta da categoria semântica somático-pragmática correlata à categoria cognitiva permite aceder à categoria semântica do sensível. O que tanto a instalação do retábulo de Grünewald quanto a instalação de Plessi permitem destacar é que toda passagem tradutória de um estado do mundo com a sua linguagem natural a um estado de mundo de linguagens também é processada por dispositivos transmissores dessa organização particular do enunciador ao enunciatário. No seu significar, está engendrada a sensibilidade do sujeito sensiente (o doente, o visitante, a menina, nos casos mencionados) que realiza conversões das qualidades com uma fisicalidade que produzem vibrações de sinais cujas impressões energéticas as fazem ser captadas justamente por suas ondas elétricas, acústicas, por exemplo, que são transformadas em impressões condutoras de sentido. Esse processamento de impressão e captação pode ser sistematizado a partir dos procedimentos de embreagem e debreagem entre os tipos de sujeito que entram ou se retiram da apreensão. Em ato, o sujeito estésico capta as impressões que o afetam, elaborando-as, o que implica que, para o sujeito somático passar a sujeito cognitivo, entra em cena o operar do sujeito estésico, que é então a condição de fazer ser o sentido. Essas operações são, portanto, do escopo da enunciação que plasma o corpo operador nas construções de sentido. A totalidade significante que imprime, em sinais, as qualidades da Dover cidade beira-mar, assim como as qualidades de Deus na sua presença no mundo, produz ambientação para tipos de interação discursiva5 que propiciam tipos de experiência dessas formas de presença. Nos arranjos semissimbólicos em que a duração do processamento requer maior envolvimento do sujeito, que percebe e sente em razão do plano da expressão não ter um uso convencionalizado de acordo com regras socializadas, para rearticular a sua montagem em sua materialidade formatada por um uso particular, o sujeito é levado com o corpo todo para perceber o que o desarma das convenções e o posiciona em abertura para sentir. Os efeitos de sentido patêmicos do que sente o conduzem a entrever o sentido. Essa experiência do sentido é, pois, de copresença estésica dos corpos da tela e da instalação e o corpo do sujeito, o enunciatário, que é instalado na interação discursiva pelo enunciador da obra. Nessa interação dos dois sujeitos corpo a corpo, ocorre uma transição plena da sensorialidade no mundo articulado da linguagem processada e a do sujeito estésico que executa a sua performance de sentir processando a construção patêmica. O percurso da narratividade vai transformando os estados na medida mesma em que a direcionalidade 5 Sobre essa conceituação e seu desenvolvimento, consultar: OLIVEIRA, A. C. de. “Discurso midiático como experiência do sentido”. Compós, Gt Epistemologia da Comunicação, 2010. Disponível para consulta na biblioteca do site. 10 http://seer.fclar.unesp.br/casa CASA, Vol.8 n.2, dezembro de 2010 teleológica do sentido atua, o que nos faz sentir os ecos da proposição de Greimas: “os humores do sujeito reencontram, então, a imanência do sensível”. (2002, p. 74) A operação dos dados da apreensão pelas operações do corpo, um compósito de alma e de ânimo, e toda a descrição de sua processualidade quer em textos artísticos, quer nas práticas cotidianas permitiram a Greimas a descrição do fenômeno dos efeitos de sentido, mostrando a figuratividade como a abertura para o além sentido. Como esclarecendo uma velha questão da busca inaugural de Semântica estrutural, Greimas explica: “tudo ocorre como se nossa leitura socializada se projetasse à frente e as vestisse, transformando-as em imagens, interpretando as atitudes e os gestos, inscrevendo as paixões nos rostos, conferindo graça aos movimentos.” (2002, p. 73) A semiótica trata, assim, não da “natureza” da sensibilização, nem muito menos das experiências individuais do corpo e da alma, mas de seu tornar fatos da cultura. Segundo Greimas, “não somente nossa “alma”, mas também nosso „corpo‟ se encontram culturalizados e relativizados no interior de uma cultura.” (1994, p.28) Nossa abordagem postulou que há um percurso narrativo do sensível estruturante da narratividade de seu processamento que opera em correlação com as operações discursivas tanto em termos de enunciação quanto de figuratividade. Com a sua plasticidade, o figurativizar materializa as escolhas de formantes e de regras de sua articulação em sintagmas que são determinados pelas escolhas do enunciador e processados nos arranjos da expressão com uma esteticidade determinante do seu ser apreensível, que nos mostra os dispositivos modalizantes que os organizam e, ao mesmo tempo, permitem-nos determinar os dispositivos próprios dessa cultura que a singulariza de outras. A vocação semiótica é de aceder ao geral, atitude que lhe permite estar continuamente construindo modelos, por vocação, mais abrangentes. A sociedade da visibilidade total em que estamos imersos pode ser definida enquanto nosso mundo concreto, cuja materialidade o torna apreensível por suas qualidades significantes. Não se trata, nesse contexto, de apreender como o mundo engendra uma configuração dele mesmo, mas de compreender como a percepção com as suas apreensões põem-se em coextensividade ao mundo, conformam uma totalidade de sentido que opera por atos limites que delineiam os sintagmas de partes analisáveis desse todo. Nossa apreensão é, então, de zonas diminutas que a extensão do nosso corpo com as suas extensões têm competência de abarcar e dar conta de sua eficácia comunicacional. Operações de subtração são processadas seletivamente pelo corpo que se define em sua mobilidade ininterrupta para apreender por contrastes. O que vive é móvel e a estaticidade são uma interrupção de sua continuidade. Assim, é no movimento que o sentido pode ser discernido por atos de captura do sujeito dos traços de perceptibilidade que se mostram atuantes na interação de contato como foi mostrado com a movimentação de captura, afetação e construção da significação, tanto no fazer de Anne em Deposito dell’arte quanto dos doentes (de alma, de corpo) no retábulo de Grünewald. O sujeito processa as apreensões que são sentidas e, em concomitância ao seu ato de sentir, desenrola-se o processamento significante em sentidos que assumem aí direções, indicações que o encaminham no desenrolar da processualidade do sentido. Em Les formes d’empreintes (1986), Jean-Marie Floch desenvolve que são esses traços pegadas que configuram as formas sensíveis do parecer que temos acesso nas aparições de recortes do mundo que nos tocam e tomam conta de nossa apreensão. Nesse irromper do descontínuo que o faz experimentar transformações, o sujeito se desenquadra do seu estado estabelecido no contínuo de sua existência que, entre outras ocorrências, valoriza seu existir no mundo. O ser no mundo é, pois, configurado nos e por esses encontros e desencontros existenciais. Em situação de vulnerabilidade, o sujeito experimenta esses tipos de contato que o abrem com a 11 http://seer.fclar.unesp.br/casa CASA, Vol.8 n.2, dezembro de 2010 sua competência estésica para uma experiência do incomensurável. A estesia na experiência do sentido é continuadamente um sentido sentido que significa o sujeito, o mundo, as produções de linguagens, as culturas. Referências bibliográficas ASSIS SILVA, Ignacio (Org.). Corpo e sentido. A escuta do sensível. São Paulo: EDUNESP, 1996. CALVES, Bruno . Grünewald et le retable d'Isenheim : regards nouveaux sur un chefd'œuvre, Historiens & géographes, n° 410, avril-mai, 2010, p.65-71. FAGONE, Vittorio. 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