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Discurso Direto
António Durval
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Discurso Direto
António Durval
TÍTULO
Discurso Direto
Autor
António Durval
ILUSTRAÇÕES
Anabela Silva – António Durval
1ª edição: Maio de 1997
Editor SOL XXI
ISBN - 972-8183-47-X
2ª Edição (digital) 2023
Edição do Autor
Desenho de capa do Autor
A presente edição segue a grafia do novo Acordo Ortográfico
Reservados todos os direitos. Nos termos do código do Direito de Autor é expressamente
proibida a reprodução total ou parcial desta obra, por quaisquer meios, incluindo a
fotocópia e o tratamento informático sem a Autorização expressa do titular do direito.
http://adurval.wixsite.com/cultura
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Discurso Direto
António Durval
ÍNDICE
10 - PRÓLOGO
17 - UM CONVITE PARA O "AGORA"
54 - QUATRO UTOPIAS, NA CIDADE, AO ENTARDECER
81 - ONDE ESTÁ O LEITOR? NO CENTRO DO UNIVERSO!
101 - VIAGEM TELÚRICA
132 - DO ALTO DA COLINA
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Discurso Direto
António Durval
António Durval
Discurso Direto
POESIA E PROSA TENDENCIALMENTE FILOSÓFICA
E INTERATIVA
1997-2023
ENSAIO
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À minha esposa e meus filhos
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António Durval
Escrevi, molhando no Azul de vez em quando!
Certos acontecimentos ou a descrição de lugares tem um apreciável
grau de veracidade. Porém, a nível das personagens que pontualmente
forem surgindo, qualquer semelhança com a realidade será pura
coincidência.
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Discurso Direto
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Sem o adejar dos pássaros,
é triste o espaço onde mora o vento.
Sem o voo dos insetos,
é triste o adejar dos pássaros.
Sem o pólen das flores,
o voo dos insetos é triste.
Sem flores e sem árvores,
não há pólen no espaço onde mora o vento.
Sem Amor,
não há árvores, nem há flores.
Sem Amor,
o poema do espaço onde mora o vento, não existe!
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A NOVA EDIÇÃO
Este foi o primeiro livro que publiquei em 1997 e até 2023
passaram-se 26 anos. Por isso entendi escrever este texto com algumas
considerações a propósito da sua nova publicação. A primeira edição
representou um enorme esforço apesar das muitas ajudas que na altura me
foram prestadas. Lancei-o na Junta de Freguesia de São Mamede de
Infesta e fiz algumas sessões de esclarecimento.
Apesar do êxito inicial achei que este livro merecia voltar a ser lido.
Numerosos Leitores que o leram enviaram o seu aplauso, mas achei que
merecia mais um novo esforço projetando-o para o grande público que
usa os atuais meios modernos de informática.
"Discurso Direto" é um livro interessante e que merecia, sem
dúvida, ser mais conhecido dando continuidade aos bons resultados
iniciais. Resolvi, por isso, editá-lo novamente devidamente corrigido e
apresentá-lo de forma adequada.
Espero que possa ser publicado noutras latitudes e assim muitos o
poderão ler até porque se ajusta, perfeitamente, aos tempos atuais que
vivemos de "pandemia", uma ameaça latente de guerra, e outros perigos
que possivelmente teremos de enfrentar.
Um abraço a todos do António Durval
Site: “https://adurval.wixsite.com/cultura”
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Discurso Direto
António Durval
PRÓLOGO
Um
singular acaso iluminou a confusão de papéis que iam
crescendo no fundo da gaveta e, nesse dia, aconteceu revelação. Havia ali
algum sentido, indícios de filão, de mensagem subliminar à espera de ser
descodificada. O aliciante de tal empreendimento depressa esbarrou com a
dimensão do desafio a superar. Juntar, em íntimo convívio, géneros
literários diferentes não seria tarefa fácil. Venceu a constatação de que um
primeiro livro também pode ser o último. Venceu o instinto, a vontade de
não deixar no subsolo algo que, eventualmente, poderia ser útil à
comunidade. Venceu a perspetiva de conteúdo, aliada e não refém da
procura da forma.
"Discurso Direto" não nasceu normalmente, como qualquer livro
que se preze. Durante anos, balançou entre a esperança de nascer e a
ameaça de abortar. Paulatinamente, foram sendo superadas as dificuldades
inerentes a uma tardia estreia literária. Acabou por vir à tona o eventual
interesse, para os potenciais Leitores, do testemunho vivencial de uma
ínfima parte, consciente da sua mesclagem ao Todo Universal. Foi essa
conjuntura que incentivou a publicação dum livro, onde voam diálogos e
narrativas, que, planando livremente, poderão levar-nos a outras terras e
outras gentes.
Nas suas páginas, textos em prosa cruzam em bando o firmamento
sem aparente plano de voo. Poemas pairam no Azul, como brancas
nuvens, atraindo o olhar para cima. De repente e sem aviso, tanto se pode
vestir a bata do analista como pegar na candeia do filósofo e, logo a
seguir, regressar ao "universo" do bilhete de identidade. Às vezes, poderá
assemelhar-se a esboço de manual. Não um manual que recomende fazer
isto ou aquilo, "xis" minutos ao deitar, visando causas e garantindo
efeitos. Somente uma ilusão de manual, que logo se esvai na esquina do
parágrafo seguinte.
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Discurso Direto
António Durval
Sob a batuta do aleatório, do imprevisível, "Discurso Direto"
poderá transportar-nos através do espaço infinito, procurando com o
pensamento outros irmãos, detetando com a intuição outros sentires.
Vestirá o hábito do monge, ou os andrajos do asceta e poderá, em êxtase,
cruzar o Tempo e assistir ao drama universal do Gólgota. Iremos saltar
fronteiras, percorrer espaços, calcular probabilidades, sem nunca se
cristalizar uma definição, nem se fechar a porta ao eterno fluir da atração
pelo insondável maravilhoso. Esse desafio incentivou, finalmente, a
publicação deste livro. Expectantes, iremos encetar, espero bem, um
curioso ensaio de diálogo em "Discurso Direto".
António Durval
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Discurso Direto
António Durval
Chegam acenos,
Intrigantes acenos,
do espaço azul.
Parecem sorrisos,
meigos sorrisos,
emoldurados de luz.
Chegam acenos,
peregrinos acenos,
do distante horizonte.
E fico a cismar,
longo tempo a cismar,
para além do ocaso.
Chegam acenos,
coloridos acenos,
do lado do sonho.
E fico acordado,
em sofrida vigília,
tentando decifrar.
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Discurso Direto
António Durval
Chegam acenos,
penetrantes acenos,
cavalgando o olhar.
E fico suspenso,
precariamente suspenso,
em abismos insondáveis.
chegam acenos,
persistentes acenos,
para os lados de "mim".
E fico dividido,
dolorosamente dividido,
entre a festa e a dúvida.
Chegam acenos,
chegam acenos.
Parecem sorrisos,
meigos sorrisos,
emoldurados de luz.
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Discurso Direto
António Durval
Um Ovo no Azul
O Ponto de interrogação
vestiu-se de calcário
fino, duro, consistente,
e rolou, rolou no Azul,
alegre e solto,
rumo ao eternamente.
Na hora certa,
partiu a casca,
espreitou, saiu.
A custo aprendeu
que não voltaria
a rolar no Azul
indiferente.
Teimoso insistiu.
Tentou a ilusão,
tentou o engano,
mas só dor sentiu.
Para voltar,
reconheceu com emoção,
tinha de mudar,
ser Ponto de Afirmação!
Ganhar asas… E voar!
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UM CONVITE PARA O "AGORA"
Abriu há momentos a página e já de seguida irá ler a palavra,
"Palavra!"
Não se trata duma qualquer manifestação de vidência. Acabamos
simplesmente de desembarcar numa "estação", construída em granito raro,
proveniente das jazidas do Nexo. Encontramo-nos, agora, numa
plataforma mentalmente visível das diferentes coordenadas espaciais e
temporais que separam os nossos seres. Um referencial sem volume, sem
peso, mas virtualmente concreto, graças à energia mental necessária para
o imaginar. Daqui, abarcamos uma verdade tão ampla como afirmar:
Agora, precisamente, agora, o coração do Leitor pulsou!
A infinita caminhada à procura da Verdade exige marcos de
orientação, que sejam referenciais sólidos e credíveis. É preferível que
esses "marcos" se reduzam a partículas de coerência que se estruturam em
montanhas de incerteza
Pequenos pontos de luz, brilhando no firmamento, guiaram os
primeiros navegadores portugueses através de desconhecidos oceanos, à
descoberta de novas terras. Hoje, sabemos que essas luzinhas inquietas
são estrelas, outros imensos sóis, iluminando possíveis sistemas
planetários, alguns deles, quem sabe, berços de vida inteligente. Atraídos
pelo maravilhoso, imaginamos, à luz do atual conhecimento, esses
mundos com suas hipotéticas civilizações, suas estranhas paisagens, seus
incomensuráveis vazios.
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Discurso Direto
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Apesar desse fascínio, não resistimos a regressar, a breve trecho, à
realidade cujo solo pisamos. A luta pela sobrevivência, funcionando como
força de gravidade, coloca-nos novamente na órbita dos sentidos.
Voltamos a recordar o nosso percurso coletivo, desde os primeiros registos
arqueológicos até hoje. Assumimos a vivência do Agora, com os seus
dramas e consolos, seus fracassos e êxitos, seus pecados e suas virtudes.
Gostaríamos de conhecer a trajetória da evolução futura do homem.
Mas o aparecimento acelerado de novos reagentes no "caldo" da
civilização humana tende a aumentar a imprevisibilidade do sentido e
direção do percurso. Será que o homem constrói o seu caminho ao mesmo
tempo que avança?
Julgo que continuam válidas as leis de causa e efeito e que as
mesmas poderão continuar a aplicar-se à Teoria da Evolução. Assim, o
homem colhe hoje o que semeou ontem e colherá amanhã o que semear
hoje. Como avaliar se estamos ou não a evoluir e a caminhar rumo a um
futuro sem abismos fatais? Que medida padrão, ou que sistema de
orientação, deveremos usar?
Dispomos de meios tecnológicos cada vez mais avançados ao
serviço da ciência e da comunicação. De novas e mais poderosas
ferramentas cibernéticas que nos ajudam a calcular probabilidades e a
definir coordenadas, até em cenários de caos. Poderemos utilizá-las para
aumentar o nosso conhecimento sobre o Cosmos, e difundi-lo com
amplitude. Contudo, nunca deveremos esquecer que será sempre o
homem, reduzido à nudez da sua realidade natural, a tomar as decisões
fundamentais. No momento crucial da escolha, não terá significado a
"muleta" das super-máquinas cibernéticas de inteligência artificial. Terá
de contar com a valência de todas as suas capacidades sensoriais e
espirituais e com o legado cultural dos seus antepassados. Será sempre
ele, e só ele, a dar o passo em frente.
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Discurso Direto
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O ver, o ouvir, o tatear, são faculdades sensoriais comuns à
generalidade dos animais e apontadas à sobrevivência biológica do
indivíduo e da espécie. A extrema complexidade e dimensão dos
problemas, que temos de enfrentar, exigem um grau superior de
sensibilidade que complementa e reforça a acuidade dos nossos sentidos.
Um invisual, apesar de estar desfalcado de um órgão sensorial
importante, pode conseguir viver com dignidade e integrar-se numa
sociedade civilizada. Para superar com sucesso a falta da visão, além do
natural reforço da capacidade sensorial restante, terá de desenvolver uma
atitude mental, que o eleve a um patamar ou dimensão espiritual, onde
podem ser ativados os sentidos próprios desse nível. A Intuição poderá ser
um exemplo de um atributo sensorial do nosso espírito ao comportar-se,
subjetivamente, como bússola interior.
A Imaginação é igualmente uma poderosa capacidade mental do ser
humano. Complementada com a intuição, será possível antever e visionar
as colheitas de perigos, abismos ou holocaustos, associados às nossas
sementeiras de erros.
É importante preservar e desenvolver essas capacidades do nosso
foro sensível. Teremos de evitar o excesso de artificialismo e a inação dos
nossos atributos a nível físico, mental e espiritual. O abandono
progressivo de atividades tradicionais, onde um saudável esforço físico
era sempre conjugado com a criatividade imaginativa (atividades
artesanais) e o decréscimo acentuado do hábito da leitura, a favor dum
consumo exponencial de enlatados de imagens, são exemplos de
tendências preocupantes que marcam o final do século XX.
Os atos de escrever e de ler um livro representam duas importantes
vertentes da denominada "comunicação literária". Através da linguagem,
falada ou escrita, podemos transmitir qualquer forma de emoção estética,
independentemente da classificação artística da mensagem a transmitir.
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Escrever um livro é, de certo modo, a preparação de uma viagem no
tempo. O escritor concebe o viajante, organiza a viagem e prepara a
logística. O viajante será a mensagem escrita; o destino a mente dos seus
eventuais Leitores, situados algures no futuro.
Ler será o desembarque de ma mensagem vinda do passado, numa
"estação" em cuja tabuleta identificativa está inscrito o nome do Leitor.
Quando o escritor concebe e organiza a mensagem conta,
legitimamente, vir a obter algum resultado, algum efeito. Espera que a
mensagem seja entendível e, sequentemente, estimule algum tipo de
reação (feedback). Na consagrada "fórmula de Lasswell", que resume os
princípios básicos da comunicação, o resultado do ato de enviar uma
mensagem surge como objetivo final:
"Quem? O quê? A quem? Que meios? Que resultado?"
Concordamos com Jean Guitton:
"– Comunicar sem objetivo é monologar e o monólogo conduz ao
manicómio".
Como medir ou avaliar o resultado, ou o grau de reação, que uma
mensagem literária irá provocar nos seus eventuais Leitores?
Se esse futuro se situar dentro da esperança de vida do Autor, será
possível uma relativa avaliação desse efeito (a recetividade dos editores, a
opinião dos críticos literários, o número de edições, etc.). Se a mensagem
merecer algum grau de interesse, quando o livro ocupar o seu lugar na
prateleira do esquecimento, algo poderá prevalecer no subconsciente do
Leitor. Um remanescente anímico, ativador positivo do processo natural
de auto-análise, ou de sensibilização ética, poderão ser exemplos. Este
efeito não será obviamente mensurável, mas representa o tipo clássico de
reação que realmente conta.
Desejável seria o escritor vir a ser contactado por Leitores, que, por
escrito ou verbalmente, opinassem acerca dos temas e ideias contidos no
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livro. Neste caso, estaríamos na presença de um resultado ou efeito de
retomo mais palpável ("efeito boomerang"), dum esboço rudimentar
daquilo a que me atrevo a chamar: "comunicação literária interativa".
Estou já a convidá-lo a transpor a "linha" que limita a sua condição
de Leitor, como é entendida universalmente, e penetrar numa dimensão
onde o protagonismo será o apelo constante.
Através duma descontraída conversa, "mano a mano", iremos
provar que o ato de ler contém um manancial quase infinito de recursos,
sendo um deles a possibilidade da participação ativa do Leitor.
Nada mais, nada menos!
Se aceitar o convite, felicito-o desde já pela sua coragem. Agradeço
a sua companhia ao longo da "trajetória" que iremos seguir até onde a
imaginação nos levar. Podemos ir longe, com essa capacidade que
permitiu aos nossos ancestrais fabricar o primeiro machado de sílex. A
mesma que um dia nos levará até às estrelas!
O deleite que, legitimamente, se espera do ato de ler (ou de um
saudável bate-papo) poderá ser influenciado pelas condições ambientais,
que caracterizam o espaço onde isso irá ocorrer.
Uma cadeira confortável, um ambiente sereno e aprazível, poderão
integrar o topo da lista dessas condições. Na sua ausência, o poder de
concentração e de imaginação poderá recriá-las e acabar por atingir o
objetivo pretendido.
Para se estabelecer o ambicionado diálogo e tornar possível a
sugerida participação, o prezado Leitor terá de viajar até ao agora em que
esta prosa assomou à luz do dia.
Por favor, aperte o "cinto de segurança" e acione o dique da sua
imaginação:
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Discurso Direto
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"Neste momento estou a ouvir o sinal horário das treze, emitido por
uma emissora de rádio, através da pequena telefonia colocada no
parapeito da janela do meu quarta Está no ar o noticiário e ouço
perfeitamente o locutor de serviço a referir-se às ações de protesto do
Greenpeace, tentando impedir que o recém eleito Presidente da França,
Jaques Chiraq, avance com o recomeço das experiências atómicas no
atol de Moruroa, no Pacífico".
No calendário, colocado na parede por cima da escrivaninha, está
assinalado com um marcador magnético o dia 5 de Julho de 1995. Lá
fora o sol espreita timidamente por entre as nuvens que teimam em pintar
de cinzento um verão, até agora pouco convincente. De vez em quando,
chega aos meus ouvidos o som de um carro que passa na rua (no meu
"agora" os denominados automóveis ainda fazem ruído em andamento e
utilizam combustíveis poluentes).
Enquanto isso, os meus dedos vão deslizando pelo teclado do
pequeno computador portátil, qual operador de morse, tentando
contactar alguém através dum aparente telégrafo sem fios.
Conseguiu, com uma parte subtil do seu ser – a energia do seu
pensamento imaginativo – viajar até ao momento em que estas palavras
vão surgindo no monitor de plasma. Talvez possamos agora tentar o
contacto. A expectativa é grande. O imprevisível espreita. O repto lançado
é de respeito. Uma cuidada preparação psicológica e uma atitude de
confiança e descontração poderão ajudar.
Avancemos, pois, comedidamente e passo a passo.
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António Durval
Contacto
Ao largo do Inconsciente
toma forma, é nascente,
um ponto de luz,
uma promessa de Sol.
Em redor,
o marulhar humano
e ambiental de um café.
O estertor citadino
de uma sociedade
a caminhar para um fim.
A aparência de vida
num cenário luzente,
sem significado para mim.
O rosto-compreensão
depressa se ajusta
à compreensão do rosto.
Agora,
anonimamente,
dois seres compartilham
a mesma mesa,
o mesmo atentado
aos preconceitos.
Cá dentro
a cíclica tendência,
a propensão para o radical,
magra condescendência,
só cego ideal.
Pássaro cansado
pousando no ramo.
Em redor,
o vazio retrocede,
novos horizontes
se revelam,
e do inicial estertor
resta somente
doce e fonético rumor,
murmúrio de fontes.
Fecho os olhos devagar,
abro a "janela" e chamo.
Desperto ou a dormir,
a chorar ou a rir,
quem procuro virá.
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Discurso Direto
António Durval
- Olá!
Autor: – Olá? Está alguém a comunicar?
– Sim! Olá!
Autor: – "Eureka"!
Um aplauso para o primeiro "Olá" vindo do meu futuro! E uma
saudação amiga para o Leitor que o enviou!
Leitor: – Retribuo, com o desejo sincero de muita inspiração para
concluíres o livro.
Autor: – (surpreendido) – Já estamos a dialogar? A surpresa é
mesmo grande. Não sei explicar o que está acontecendo...
Leitor: – Depois de tanto cuidado na preparação, ainda duvidas do
resultado? A seu tempo iremos clarificar o que for possível. Para já aceito
o teu convite. Estou pronto para o tal "bate papo".
Autor: – (continua surpreso) Se é assim, aproveitemos os ventos
favoráveis! Mesmo uma conversa descontraída deverá começar por uma
"ponta", seja qual seja. Pode o prezado Leitor puxar a conversa para um
tema que mais lhe interesse, que ache mais oportuno desenvolver neste
momento.
Leitor: – Oh! Não! Desculpa lá mas, começo por sugerir que se
eliminem do nosso diálogo os "senhores", os "vocês", os "caros", os
"prezados" e todas essas formas de tratamento que só distanciam. Para um
diálogo desta natureza todo e qualquer ornamento de vénias gestuais ou
verbais é dispensável. É peso morto! Para vencermos o tempo e o espaço
que nos separam, teremos de nos aproximar, de ser diretos. Terá de
acontecer um contacto alma a alma. Se não criarmos, de início, esse
clima, julgo que será difícil atingirmos o resultado pretendido. Esses
estilos clássicos de tratamento passarão um dia a relíquias de museu.
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Discurso Direto
António Durval
Além disso, nunca o respeito e a amizade foram incompatíveis com a
simplificação do trato.
Autor: – (hesitante) – Está, está bem! Totalmente de acordo
consigo. Perdão! Contigo, Leitora ou Leitor. Acho mesmo uma ótima
ideia. Aliás, pensando bem, nem poderia ser de outro modo!
Leitor: – Combinado! Não me tratas por "você", nem por "senhora"
ou "senhor", nem "prezado Leitor”. Nada disso! Derrubemos à partida
essa barreira. De acordo? Basta-nos a certeza de que estamos a dar tudo
por tudo para a sintonia, apesar da aparente incongruência de,
provavelmente, ainda não ter nascido no tempo em que escreves estas
linhas, ou já não existires fisicamente, no momento em que leio este teu
livro.
Autor: – É admissível o que dizes. Mesmo assim, julgo que
podemos ultrapassar a barreira do tempo e atingir o conhecimento mútuo.
O primeiro estádio para o despertar de sentimentos, tais conto a amizade.
Leitor: – Estás a lembrar-me que ainda sou um desconhecido. Que
não me apresentei. Podes acreditar que não estava esquecido desse
pormenor. No entanto, julgo que é pertinente uma explicação prévia
acerca de circunstâncias que determinam uma apresentação diferente da
que seria de esperar. Antes de aceitar o teu convite, pensei maduramente
na melhor forma de tornar credível e realizável este contacto. Concluí que,
para isso, deveria assumir o papel de representante ou intérprete dos
Leitores, cujos pensamentos estão a convergir para o teu "agora". Para o
momento em que escreves estas linhas. Só assim será possível evitar o
caos de ideias e mensagens confluindo simultaneamente. Se ninguém
assumir esse papel de intermediário, ficarás debaixo da saída de uma
espécie de funil jorrando uma torrente indecifrável de imagens,
pensamentos e vocábulos, vindos de todos os Leitores que se encontram a
ler este livro, ao longo das margens do teu futuro.
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Discurso Direto
António Durval
A partir do momento em que aceitei o teu convite, assumi o
essencial da história coletiva de todos eles. Os nomes próprios que
figuram nos seus bilhetes de identidade poderão ser: Isabel, Rui, Maria,
António, Luísa ou Xavier. Porém, eu sou o "ator" que representa e encarna
a mesclagem humana de todos eles.
Nestas circunstâncias, o nome, assim como o sexo, a altura, ou a
cor dos olhos, perdem significado. Poderás continuar a chamar-me,
simplesmente, "Leitor".
Assumo voluntariamente as diversas particularidades compatíveis
de todos aqueles que, um dia, se tenham embrenhado na leitura deste livro
com espírito aberto. Que tenham sido atraídos pelo fascínio de um novo
tipo de aventura. E, sobretudo, que estejam, consciente ou
inconscientemente, em sintonia com o Grande Projeto da Criação, e que
seus pensamentos e atos se harmonizem com o grande Corpo de que
fazemos parte.
Autor: – Balanço entre a admiração pura e a sensação do cientista
distraído, que começa a recear ter desencadeado algo que terá dificuldade
em compreender.
Leitor: – Não! Não penses que sou uma espécie de aberração, ou
ser alienígena, com poderes estranhos e suspeitos. Afinal, todos os
humanos são, em grande parte, o produto de uma diversidade de fatores,
desde a cultura que herdaram, até à quotidiana influência do convívio em
sociedade. Não existe sobre a Terra alguém que seja uni produto cem por
cento desligado da realidade que o cerca; a menos que tenha acabado de
chegar de outra galáxia. Pela primeira vez desviei-me do fio da conversa,
mas, no essencial, está feita a minha apresentação.
Autor: – Porventura solicitei o teu bilhete de identidade? Somente
estava desprevenido quanto às surpresas que surgiram nestes últimos
parágrafos e começo a interrogar-me acerca do que estará para vir.
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Discurso Direto
António Durval
A tua apresentação surpreendeu-me. Sempre pensei que o ego era
tão inviolável como a mais infinitesimal partícula atómica. Agora
propões-te assumir a soma, a mesclagem, de vários egos? Com franqueza.
Leitor: – Não! Não está em causa o meu ego. Corno não está em
causa a inviolabilidade do "Eu" do ator, que encarna no palco diversos
personagens.
Autor: – la jurar que, na vida real, a tua profissão é mesmo a de
ator de teatro. Tantas vezes falas em representar, em encarnar...
Leitor: – "Nem confirmo, nem desminto". Posso, porém, revelar
que gosto muito de teatro. Aliás, uma arte imortal por excelência.
Autor: – Boa. Interessava-me apenas saber se tens parentes,
amigos, ou até inimigos; se tens convicções religiosas, ideológicas,
políticas; se praticas desporto, se és adepto do Porto, do Benfica, do
Salgueiros, etc. Mas acima de tudo se tens um "Eu", plenamente único e
inconfundível. Se és, como toda a gente, um "CENTRO UNIVERSAL DE
CONSCIÊNCIA", conceito que prova o infinito respeito que nutro por ti.
Leitor: – Sim! Julgo que possuo tudo aquilo que caracteriza, no
essencial, qualquer ser humano que se preze, independentemente da raça,
nacionalidade ou do clube desportivo de que se é adepto. Mas, como já
disse, para viabilizar o nosso diálogo, prescindi dos meus atributos
pessoais. Desta forma, julgo que será possível evitar o tal afunilamento
caótico de mensagens. Será possível abrir o leque dos Leitores
participantes, desde que estejam sintonizados com um conceito
universalista de amor e fraternidade.
Autor: – Desde que...? Gostava que me explicasses esse "desde
que", o porquê dessa condição, essa exigência.
Leitor: – Ficaria espantado se não colocasses essa questão.
Vejamos:
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Discurso Direto
António Durval
Se tomarmos como exemplo o tipo de comunicação que se pode
estabelecer entre um ladrão e um polícia, e se nos abstrairmos das sempre
possíveis exceções, poderemos afirmar que essa comunicação, regra geral,
deixará muito a desejar. O mesmo já não poderemos dizer quanto à
comunicação entre namorados ou entre verdadeiros amigos. Os Leitores
deste livro formam seguramente um conjunto de pessoas muito
heterogéneo, quer em termos de localização espacial e temporal, quer em
termos de categoria social, posicionamento ideológico, religioso etc.
Logo, teremos de encontrar um outro elo de ligação, verdadeiramente
unificador e abrangente.
Esse elo poderá ser uma atitude sincera de vivência quotidiana de
harmonia com os outros, ou uma mentalidade aberta e descomplexada,
que interprete as diferenças não como muros intransponíveis, mas como
complementos da diversidade que caracteriza a grande unidade natural.
Essa atitude integra o referido conceito universalista de Amor e
Fraternidade, que não constitui uma exigência em termos humanos, mas a
lei natural das coisas.
Autor: – Muito bem! Mas a realidade é muito diferente desse belo
ideal, dessa ainda utopia. As diferenças têm, na maioria dos casos,
contribuído para o antagonismo, o racismo, a marginalização, a
perseguição, a guerra. Vejo ainda muita dificuldade para a concretização
da tal unidade na diferença.
Leitor: – A diferença, longe de ser obstáculo à concretização da
"Grande Unidade", é a sua condição essencial. Qual o mérito em
aproximar, fraternalmente, pessoas isentas de especiais diferenças entre
si? Se procurarmos bem, acabaremos, possivelmente, por descobrir a
expressão matemática que justifica a diversidade universal, a sua lei, a sua
lógica.
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Discurso Direto
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A evolução não se faz com meios termos. Ou se avança, ou se
retrocede. Se quisermos subir mais um degrau na escala evolutiva, temos
mesmo de entender o porquê da diferença.
Enquanto continuarmos a atropelar a diferença do outro com a
nossa diferença, jamais poderemos adquirir os valores fundamentais, que
só se conseguem com o exercido sincero da fraternidade na diversidade.
Enquanto não passarmos neste teste, qualquer avanço será ilusório.
A diferença não só está certa como é absolutamente necessária. Sem
ela, seríamos defraudados dum exercício fundamental ao nosso
"crescimento". Sem ela, jamais colheríamos os frutos de uma experiência
vivencial, que tem de ser feita para completarmos a nossa preparação, face
aos desafios do futuro.
Autor: – Estou a seguir o teu raciocínio com interesse. Lembro que
tudo isto veio a propósito da tua apresentação e daquele "desde que".
Leitor: – Desculpa. Desviei-me do assunto central, mas foi com
boa intenção.
Autor: – Fizeste bem! Aliás, um "bate papo " é o mesmo que tirar
cerejas de um saco. Limitei-me a lembrar o assunto a que deveríamos
regressar, quando a oportunidade surgir.
Leitor: – Este molho de cerejas estava quase digerido. Faltava só
dizer algo sobre a eficácia da comunicação humana. A meu ver, essa
eficácia está diretamente dependente da capacidade de se lidar com a
diferença: Se a diferença não constitui obstáculo ao diálogo fraterno,
então o contacto será possível. Caso contrário...
Autor: – Caso contrário, pior que o silêncio, teremos o chamado
diálogo de surdos! Não é assim? Parece-me que já percebi o teu "desde
que". Se estiveres de acordo, será a altura de "mudarmos a agulha". Já
agora, agradeço que sejas tu a escolher o tema seguinte.
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Discurso Direto
António Durval
Leitor: – Se assim o queres... Olha! Proponho, exatamente, que
abordemos mais em profundidade o acontecimento que estamos a viver,
ou seja, este diálogo impossível...
Considero uma atitude acertada qualquer tentativa de se encontrar
uma explicação racional para tudo o que acontece connosco e à nossa
volta. Se este evento fosse submetido a um confronto dialético
prolongado, acabaríamos por desembocar no clássico entroncamento de
incógnitas até agora insolúveis:
Quem somos nós? Qual o nosso destino?
Autor: – Então, no teu “agora” ainda se faz essa pergunta?
Leitor: – É verdade! Ainda se faz! Por vezes parece que estamos
perto de descobrir algo, mas logo a seguir surgem novas incógnitas, novos
desafios, e nunca se chega à luz plena.
Autor: – Enquanto estava a seguir o teu raciocínio, surgiu na minha
mente uma pequena luz...
Leitor: – Não me digas que encontraste a resposta?
Autor: – Não! Não encontrei. Mas um breve "flash" intuitivo
revelou-me um ângulo do problema que ainda não tinha topado. Se é tão
difícil saber quem somos e qual a nossa missão, então, a espécie humana e
o seu destino é algo de muito importante. A medida da dificuldade
corresponde, regra geral, ao grau de transcendência.
Não fiquemos, pois, desmotivados, desalentados. Essa dificuldade
pode ser já um esboço do seu conteúdo. Um vislumbre da anatomia de
uma resposta.
Leitor: – Interessante! A "incógnita" a interrogar-se sobre si
mesmo. Talvez um dia, possamos aproximar-nos da solução.
Autor: – Enquanto não a encontramos, a atitude sensata será
continuarmos a formular outras perguntas:
Aos Impossíveis também se ajusta a Teoria da Relatividade?
30
Discurso Direto
António Durval
Um Impossível só é real em determinado contexto ou estádio
evolutivo?
A propósito, vou focar um exemplo de uma quase impossibilidade,
mas que é realizada pelo homem há milénios. Como faz parte do nosso
quotidiano, o seu sortilégio passa despercebido. A maravilha que pretendo
citar é muito menos sofisticada que um televisor, computador, satélite
artificial, ou um transplante de coração. Trata-se, muito simplesmente, do
evento que tornou possível a uma pedra ou ao barro da Mesopotâmia
transmitirem mensagens dirigidas aos séculos futuros. Sem transístores,
sem "chips", nem antenas. Só materiais inertes e uns símbolos
representados por sulcos neles gravados, numa aparente desordem
sequencial.
Milhares de anos antes de H. G. Wells escrever a sua "Máquina do
Tempo", os nossos longínquos antepassados realizaram um aparente
impossível. Enviaram-nos o seu pensamento, as suas ideias, o registo da
sua forma de sentir e de viver. A cada passo uma nova "Pedra de Roseta"
abre mais uma janela sobre os maravilhosos mistérios da História da
Humanidade. Através desses registos, o pensamento dos homens do
passado emerge, surpreendentemente vivo, ao Presente.
Leitor: – Poderia acrescentar: mesmo quando não foi possível
traduzir totalmente os escritos desses nossos ancestrais, prevaleceu
sempre uma subtil e latente mensagem:
Com muito pouco se pode ir muito longe!
De facto, urna pedra e uns sulcos podem fazer viajar uma ideia, um
pensamento, uma intenção, durante séculos, talvez até à Eternidade.
Autor: – Num mundo onde tudo se transforma a cada momento,
onde tudo tende a evoluir rumo a um infinito, será difícil admitir que
muitos dos impossíveis de hoje poderão ser realidades rotineiras amanhã ?
É sabido que muitos "impossíveis" de ontem fazem parte das
31
Discurso Direto
António Durval
possibilidades de que hoje usufruímos. Muitos impossíveis continuam e
continuarão como tal durante muito tempo. Outros ainda, talvez nunca
deixem de o ser.
Analisemos, por exemplo, a possibilidade do homem comunicar à
distância, sem o recurso a qualquer meio artificial, ou mesmo sem a
utilização dos seus normais sentidos. Estou a referir-me à comunicação
através do pensamento, vulgarmente conhecida por "telepatia".
Leitor: – Cultivo em relação a esse, como a outros assuntos
similares, uma atitude de curiosidade e até de estudo. Não caio, porém, no
comodismo de me agarrar a qualquer teoria, por muito respeitável que
seja, sem reflexão e espírito crítico. Reconheço, porém, que é uma
possibilidade apaixonante.
Autor: – Ainda bem! Sou também avesso à especulação gratuita.
No entanto, não posso deixar de abordar um tema, só pelo facto de ter
sido muito explorado e pouco estudado com seriedade.
Leitor: – Esse tema tem merecido, no meu tempo, algum estudo de
especialistas e investigadores que garantem:
A telepatia é um facto comprovado.
Autor: – É fácil encontrar, em revistas ou semanários, relatos de
casos vividos de transmissão de pensamento. É fácil vender o
sensacionalismo dessas histórias, que até poderão conter algo de verdade,
mas, como já referi, pouca abordagem séria e científica.
A melhor definição que li sobre telepatia foi a afirmação de que se
trata de "uma comunicação interior, por dentro do ser". Uma
comunicação onde intervêm o espírito, a alma e fatores anímicos muito
fortes, como o amor e a amizade, associados a circunstâncias de grande
tensão dramática, ou, pelo contrário, a um estado de apurado relaxamento
físico e mental.
Na Enciclopédia Luso-Brasileira podemos ler:
32
Discurso Direto
António Durval
"Impressão subjetiva num indivíduo determinada por outro
indivíduo, por facto ou coisa, que se situam à distância" ou ainda: "Os
fenómenos considerados resultantes de manifestações telepáticas
espontâneas, são em número infinito e ocorreram sempre em todos os
tempos, sem distinção de raças, de credos ou de povos."
É também conhecida a grande afinidade existente entre os gémeos,
de tal forma que parecem por vezes comunicar através da mente.
Não iremos naturalmente aprofundar muito mais este assunto, até
porque tal objetivo não caberia no espaço deste livro. Só pretendo referir
que essa possibilidade está em aberto e que poderá constituir uma etapa
possível da evolução humana. (1)
Leitor:– Espera. Só mais um pouco. Acontece também que há
pessoas que conseguem receber imagens de acontecimentos que só irão
ter lugar num futuro próximo ou distante.
Autor: – Nesses casos, não se aplica o termo "telepatia" mas sim o
de "premonição”, "clarividência", etc. Há quem afirme, que telepatia e
premonição são efeitos diferentes de uma mesma causa.
Sintetizando, até ao meu agora, o nosso conhecimento sobre este
ainda "fenómeno" cabe numa mão fechada. As provas limitam-se a ténues
registos ocasionais, que tanto se podem classificar como meras
coincidências, como o aflorar tímido de capacidades humanas ainda mal
conhecidas. No meu tempo, a chamada telepatia é terreno onde a
especulação e a investigação séria ainda poderão coabitar longamente.
Leitor: – No entanto, é conhecida a existência de grupos de pessoas
________________
(1) - No Jornal de Notícias (de 16/04/96), num artigo do Dr. J. Pinto da Costa (Prof.
catedrático e diretor do Instituto de Medicina Legal do Porto) intitulado 'AURA", abordase a possível relação entre o "campo magnético de carga elevada que envolve e penetra o
corpo humano", a Aura, e a faculdade de transmissão extra-sensorial do pensamento.
33
Discurso Direto
António Durval
que se dedicam ao estudo e investigação discreta destas e doutras questões
similares. Esses grupos por vezes assumem uma característica de grande
secretismo. Parece que procuram guardar segredos importantes nesta
matéria, de que se sentem fiéis guardiães. Sabes alguma coisa sobre isto?
Autor: – Como princípio geral, entendo que todo o conhecimento
indispensável ao progresso global do homem não deve, seja a que título
for, estar sujeito a qualquer tipo de condicionalismos ou a ser produto de
exploração, seja de quem for. Poderão existir conhecimentos, que exigem
a quem os detém uma segura preparação a todos os níveis, começando
pela formação deontológica e espiritual. Trata-se de salvaguardar o bom
uso desse saber, e impedir eventuais imprevistos incontroláveis. Seria
impensável, por exemplo, colocar um iletrado a fazer experiências num
reator atómico.
Em muitas áreas das chamadas ciências psíquicas (ou
sobrenaturais) compreende-se a necessidade de um certo grau de discrição
e, sobretudo, de uma preparação exigente e adequada. Porém, o supersecretismo de alguns grupos poderá estar em contradição com o conceito
de Corpo Humanidade e de Fraternidade Universal.
Estou convencido de que os verdadeiramente interessados na
evolução global do homem saberão escolher o momento de trazer à luz,
pedagogicamente e sem qualquer interesse de domínio ou de
manipulação, os conhecimentos que eventualmente guardem. Se esse
momento fosse olvidado, não o seria seguramente pela Natureza. Uma
fonte viva, quando tapada durante demasiado tempo, brotará noutras
saídas que, entretanto, a sua incontida força acabará por abrir.
Leitor: – E se, nessas novas saídas, surgisse igualmente a tentação
da apropriação, da ocultação e usufruto, para proveito restrito, desse
manancial originalmente destinado a toda a humanidade?
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Discurso Direto
António Durval
Autor: – Se todas as saídas se tapassem novamente, o processo
acabaria por se repetir tantas vezes quantas as necessárias. Se algumas
fontes ficassem abertas, aí, a água fluiria livremente com maior
intensidade. Julgo que isto é óbvio.
Leitor: – Ou muito me engano ou acabaste de dar exemplos de
dedução intuitiva. Para além das possíveis capacidades humanas já
referidas, existem outras, como a intuição e a imaginação, tão rotineiras
na vida do homem, como o respirar, o caminhar ou o pensar. São de facto
bem visíveis os efeitos da ação dessas capacidades. Basta dizer que todos
os eventos construídos ou realizados pelo homem começaram em
primeiro lugar por existir na sua imaginação, e que muitos problemas
difíceis foram resolvidos com a ajuda da intuição.
A nível dos efeitos existe uma grande diferença entre a intuição e a
Imaginação, por um lado, e a telepatia por outro. Mas a nível das causas,
pouca diferença existe, já que, em qualquer dos casos, o nosso
conhecimento se limita, por analogia, à visão da ponta dum icebergue.
Autor: – Se o Homem do Futuro vier a revelar novas e até
insuspeitadas capacidades, é fácil admitir que todas revelarão um
parentesco com as ancestrais capacidades humanas do intuir ou do
imaginar. Será sensato admitir que o seu aprofundamento poderá facilitar
o despertar de outros, (e mais evoluídos), sentidos no Homem. Como diz
Fernando Pessoa:-"Deus quer, o homem sonha, a obra nasce!"
Pena é que a Imaginação não esteja a ser objeto da atenção que
merece, já que representa uma das mais importantes alavancas da
evolução humana.
Max Heindel, filósofo dinamarquês Rosa-cruz, afirma: "Atualmente, existe forte tendência para considerar a faculdade da
Imaginação de modo superficial, quando é um dos fatores mais
importantes da nossa civilização – Se os inventores não tivessem
35
Discurso Direto
António Durval
imaginação, capaz de formar imagens mentais, os melhoramentos nunca
se teriam convertido em realidades concretas."
Leitor: – Será acertado fazer-se agora uma tentativa de síntese:
Constata-se que possuímos capacidades que estão longe de ser utilizadas e
conhecidas em toda a sua extensão, como será o caso da Intuição e da
Imaginação. Afloramos igualmente a possibilidade de, numa perspetiva
evolucionista natural, podermos vir a despertar outras eventuais
capacidades psíquicas latentes tais como a telepatia e a premonição.
Autor: – Certo! Julgo que é altura de mudarmos de tema. Que dizes
se falarmos agora, por exemplo, na problemática das novas tecnologias da
informação, da cibernética e por aí fora?
Leitor: – Tudo bem! Começas tu, ou começo eu?
Autor:– Agradeço que sejas tu a arrancar.
Leitor: – Se assim o queres. Ora deixa cá ver. Ah! Em determinado
momento, (umas páginas atrás), classificaste de "muleta" as denominadas
"super-máquinas de inteligência artificial". Sinceramente, fiquei chocado
com essa classificação. No meu tempo, e julgo que também no teu, essas
máquinas tornaram-se tão correntes e úteis, que já nada se faz sem elas. A
meu ver, e apesar de alguns desvios iniciais que foram sendo corrigidos,
essas tecnologias da informação merecem o aplauso geral. Qual o motivo
dessa tua opinião pouco favorável?
Autor: - Se esses novos meios merecem o teu aplauso, folgo em
saber isso. No meu agora, porém, teimam ainda em perfilar-se incógnitas
e dúvidas.
No caso específico das ciências cibernéticas, existe alguma
contradição entre os meios cada vez mais poderosos de informação e o
reflexo dessas tecnologias, a nível da capacidade criativa e imaginativa do
homem moderno. Muitos utilizadores de meios informáticos, pelo facto
de acionarem com destreza meia dúzia de teclas, ficam convencidos que
36
Discurso Direto
António Durval
foram protagonistas dum processo de criação artística. Limitaram-se,
contudo, a dar instruções a um computador para uma impressora registar,
no papel, uma criação artística previamente elaborada por outros. Este
exemplo ilustra um dos muitos equívocos, que tendem a instalar-se a nível
do cidadão comum, apanhado sem qualquer tipo de formação, no advento
das novas tecnologias.
Leitor: – Desculpa interromper-te. Parece-me que estás a ser
pessimista. A meu ver, o problema não está nessas novas tecnologias, mas
no bom ou mau uso que se faz delas. Na qualidade e quantidade de
informação e formação que se coloca à disposição das pessoas. Aliás, este
problema é extensível a quase tudo o que o homem faz.
Autor:– Gostaria mais de ser rotulado de realista. Reconheço
existirem méritos e virtudes nas novas tecnologias da informação,
apoiadas ou não na cibernética. Mas deixa-me ainda por algum tempo
encarnar um papel de crítico, mas, construtivo.
Leitor: – Há sempre espaço e tempo para uma boa intenção...
Autor:– Então aí vai: ao insistirmos hoje no aumento exponencial
das capacidades das "máquinas inteligentes", não estaremos a retardar o
florescer de capacidades humanas ainda adormecidas e necessárias à sua
evolução? Será que o conhecimento de nós mesmos passa pela construção
do protótipo do homem artificial, réplica e imagem do próprio homem?
São questões que entroncam, julgo eu, no tema que estamos a tratar.
Leitor: – O homem, como qualquer outro ser da natureza, está
sujeito às leis da evolução. Mas, por incrível que pareça, nem sempre lhe
basta o raciocínio, os conceitos de lógica e até de moral, para subir mais
um degrau na escada evolutiva.
Normalmente, só aprendemos experimentando, ou melhor, errando.
Será por vezes uma aprendizagem dramática, dolorosa, mas a lei natural
da evolução acabará sempre por se cumprir. A construção do homem
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Discurso Direto
António Durval
artificial poderá ser uma dessas experiências, mas o erro só será
verdadeiramente perigoso, se não se traduzir, mais cedo ou mais tarde, em
aprendizagem, que se refletirá no apuramento do seu raciocínio, dos seus
conceitos de lógica e até de moral.
Autor: – Mas julgo que existe um limite para a recaída nos mesmos
erros e para o grau de lentidão dessa aprendizagem. Para além desse
limite, poderão surgir sintomas perigosos de desagregação a nível da
sociedade. A nível da própria Natureza, poderá formar-se um processo de
rejeição.
Leitor: – Gostava que concretizasses melhor.
Autor: – Vejamos: a ausência de uma consciencialização, de que
cada um é uma parte de um Todo, dá abertura à permanência de uma
mentalidade antagónica, desfasada e afastada de qualquer ideal de
fraternidade. Um corpo, por maior e complexo que seja, pode morrer, se
algumas das suas minúsculas células orgânicas se comportarem como
"agentes cancerígenos". O efeito multiplicador desses agentes é, quase
sempre, nefasto, quer num corpo orgânico natural, quer num corpo social.
Um indicador seguro da evolução humana será a avaliação do grau de
fraternidade existente entre as pessoas; do grau de harmonia que prevaleça
nas relações humanas.
Leitor: – Desculpa. mas nunca a harmonia e a estabilidade
absolutas. Uma situação dessas seria igualmente duvidosa. Sem alguma
agitação, não poderá existir movimento. E evolução é também
movimento.
Autor: – Eu diria que existirá uma proporcionalidade direta entre a
necessidade de agitação, de instabilidade, e o grau de consciencialização
que se preconiza. Seria trágico, realmente, que a humanidade se
cristalizasse, se calcificasse, numa altura em que não tivesse atingido a
meta real da sua razão de existir. Teoricamente, essa meta situar-se-á no
38
Discurso Direto
António Durval
infinito. Logo, também se deverá situar no infinito a absoluta paz e a
absoluta harmonia.
No entanto, já lá vão vinte séculos desde o momento em que Jesus
nos ensinou a grande verdade de que somos todos irmãos. Temos de
reconhecer que, só muito localizado e pontualmente, tal objetivo se vai
concretizando.
O caminho que teremos de percorrer, para atingir essas metas
absolutas, é tão infinitamente longo que creio ser muito mais sensato
visarmos pequenas etapas de cada vez.
Leitor: – Etapas de aprendizagem do respeito pela diferença e pela
diversidade, que já focámos. A humanidade só será um todo, se cada
pessoa viver em plenitude de liberdade e de dignidade. Se cada indivíduo
encontrar a felicidade na relação harmoniosa e fraterna com a sua
comunidade.
Já agora, poderás apontar alguns fatores que poderão travar essa
consciencialização que preconizas?
Autor: – Ora bem - a primazia do egoísmo; a decadência do
espírito associativo; tudo aquilo que possa adormecer ou aniquilar o
contacto do homem com a realidade do tecido natural e social do mundo
concreto a que pertence, criando-se, em sua substituição, mundos
artificiais, ilusórios.
Leitor: – Agradeço que exemplifiques.
Autor: – Olha! Por exemplo: – Envenenar a humanidade com a
ilusão mais perversa de prazer, agrilhoando à toxicodependência, de
forma quase definitiva, todos aqueles que, distraídos ou desinformados,
tiveram a infeliz sorte de ser apanhados na rede do tráfico, será um
exemplo bem gritante. Mas os vendedores de sonhos envenenados não
param aí. Já se esboçam novas e sofisticadas dependências, com
garantidos efeitos de retrocesso. Que me dizes por exemplo ao chamado
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Discurso Direto
António Durval
"sexo virtual", cujo anúncio dos seus primeiros passos já foi dado no meu
Agora? Decerto que vai aparecer muito boa gente a defender esta nova
"diversão" cibernética e a tentar fazer "bom dinheiro" com ela. Vão dizer
que será uma forma eficaz de evitar a sida. Que até não será pecado, pois
tal eventualidade não foi prevista nas escrituras. Que será uma forma de
combater o excesso de natalidade, sem o espectro do aborto, etc. Só não
dirão que essa prática será uma forma perversa de evitar que a grande
comunidade humana se consolide, ou se realize.
Leitor: – Porquê ?
Autor: – Porque, no meu entender, desviar o homem da sua
vivência com a Mãe Natureza, criando em alternativa a dependência de
mundos artificiais, é sonegar a realização de uma das razões fundamentais
do existir: A consciencialização individual da profunda interdependência e
unidade com os outros, com o “Todo Humanidade”, com o “Todo
Natureza.”
Leitor: – Ou muito me engano, ou acabas de descobrir alguns
pecados novos. Teremos de atualizar brevemente os catecismos de quase
todas as religiões. A “infidelidade cibernética” passará a ser tão perniciosa
conto a “clássica infidelidade”, ou mais ainda. Não achas que estes novos
pecados, afinal, são os mesmos de antigamente, com outras roupagens,
outro visual?
Autor: – Vamos por partes: Eu não falei em pecados, mas ainda
bem que tocaste nesse aspeto:
Em primeiro lugar, não está minimamente em causa o meu respeito
pela fé e crença de cada um. Se alguém, com base na sua fé, na sua crença
e moral religiosas se harmoniza com o grande “Projeto da Criação”, que
naturalmente contempla o conceito de Fraternidade Universal, é óbvio que
esse facto será muito positivo. Creio que seria ainda mais positivo se essa
harmonização começasse por ser obtida a um nível menos elevado. Se o
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Discurso Direto
António Durval
nosso comportamento social no quotidiano não for caracterizado pela
harmonia, pelo respeito e até pelo amor para com o nosso próximo, seja
ele a pessoa ou a comunidade; seja ele, o animal, a árvore ou a floresta,
então, julgo que pouco significado terão os nossos sentimentos ao nível do
espiritual e do religioso.
Para mim, o pecado começa na vida, bem terrena e real, dos seres
humanos. Os seus perniciosos efeitos fazem-se sentir, na realidade
concreta em que vivemos, quer o "pecador" acredite ou não no
sobrenatural.
Eu creio sinceramente no sobrenatural como extensão e
prolongamento subliminar do natural. Não concebo a possibilidade de se
preterir o natural a favor do sobrenatural, como não concebo que se
exterminem as espécies animais ou vegetais com o pretexto de favorecer o
homem.
Leitor: – Sinceramente, também não compreendo a tendência que
ainda prevalece de se separar radicalmente o natural do sobrenatural.
Parece que, para alguns, Deus utilizou dois pesos e duas medidas no ato
global da Criação. Julgo que continuamos a ter dificuldade em entender
que o diferente quer dizer complementar e não qualidade e mérito
inferiores.
A nossa intuição referencia o binómio: Mundo Natural e Mundo
Sobrenatural, como fazendo parte do mesmo gesto divino de criação.
Veio tudo isto a propósito dos novos perigos, ou pecados, que temos
de enfrentar no Presente e no Futuro cibernético.
Autor: – Exato. Aliás, julgo que a humanidade de hoje, para
reencontrar o correto ritmo evolutivo, vai ter que referendar esses novos
perigos e tomar medidas de grande auto disciplina, para os evitar. Por
curioso que pareça, mesmo aqueles que se dizem agnósticos terão de
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Discurso Direto
António Durval
encarar e referenciar esses novos perigos de forma análoga à ancestral
atitude do místico perante o clássico pecado.
Leitor: - Sei que o assunto está longe de estar esgotado, mas muito
antes de chegarmos às soluções, teremos"que saber equacionar
devidamente os problemas que nos afetam e isso também depende do
nosso grau de evolução.
Para encerrarmos este último tema, gostaria que abordasses ainda
uma outra questão de natureza diferente:
Referiste a criação artística processada em computador. Gostaria de
saber o que pensas da relação da Arte com a informática em particular e
com a cibernética em geral.
Autor: – Mais uma partida das tuas! Como também gosto dos
desafios, vamos lá tentar. Interrompe, sempre que julgues necessário.
Toda a Arte se destina a ser captada e assimilada por alguém
sensível à mensagem estética implícita. Para isso, o homem serve-se dos
seus especializados sentidos para captar o complexo de sensações visuais,
auditivas, etc., que integram essa mensagem. Isto é válido para todas as
formas de arte, quer utilizem ou não meios ou suportes cibernéticos.
Gostaria, em primeiro lugar, de definir a Arte como um belo ato de
criação!
42
Discurso Direto
António Durval
TELA
Um poema,
uma vontade,
reflexos longínquos,
dedos apertando,
fortemente
a paleta.
A textura
do vazio
agita-se
na tela,
fremente
de desejo.
Carícias
de marta,
sulcos verdes,
excitação,
clímax,
girândola
ascendente,
arco-íris.
43
Na janela
para o infinito,
desponta
a aurora
do sonho,
o parto
iminente
da cor.
E
o novo ser
grita,
aos olhos
do mundo,
carente
de amor.
Discurso Direto
António Durval
A Arte, corno produto da ação criativa do homem, só poderá existir,
verdadeiramente, desde que se dirija à contemplação e à assimilação, de
alguém minimamente impressionável por ela, não importa quando.
Immanuel Kant na sua "Critica da Faculdade do Juízo" escreveu sobre o
interesse empírico pelo belo:
"...Um homem abandonado numa ilha deserta não adornaria para
si só, nem a sua choupana, nem a si próprio, nem procuraria flores, e
muito menos as plantaria para se enfeitar com elas; mas só em sociedade
lhe ocorre ser só simplesmente homem, mas também um homem fino à
sua maneira (o começo da civilização) pois como tal se ajuíza aquele que
é inclinado e apto a comunicar o seu prazer a outros e ao qual um objeto
não satisfaz, se não pode sentir o comprazimento no mesmo em
comunidade com os outros..."
Contemplar e assimilar a Arte não será propriamente um ato de
criação. Mas será recriação e recreação na verdadeira aceção dos termos.
Este facto, só por si, revela a importância cultural da sua divulgação.
Os novos meios informáticos emprestam à Arte uma enorme e
quase inesgotável plasticidade. Através deles, a criatividade liberta-se das
limitações técnicas, associadas aos clássicos suportes (a tela, o bronze, a
pedra, o papel, etc.), e poderá exprimir essa libertação. No entanto,
devemos estar atentos a outros aspetos menos positivos.
Utilizar, exclusivamente, meios cibernéticos na expressão artística,
seria, a meu ver, um erro, já que, à sua inegável plasticidade, se contrapõe
uma estreita e arriscada dependência de uma estrutura muito complexa e,
como tal, precária. Um dia, um cataclismo ou mesmo urna guerra,
poderão provocar uma rutura irreparável nessa estrutura.
44
Discurso Direto
António Durval
Então, a arte das gerações futuras correrá o sério risco de retroceder
dramaticamente.
Espero, sinceramente, que nunca se abandone a capacidade de
trabalhar artesanalmente o óleo, a pedra ou o mármore. Apesar do
confinamento da sua plasticidade, o homem sempre conseguiu atingir,
através deles, a expressão do sublime e realizar obras primas.
Leitor:– Mas a arte computorizada poderá substituir o cinzel do
escultor ao "pantografar", para a pedra ou para o mármore, formas e
volumes de conteúdo artístico. Não te admires que em breve existam
máquinas imitando na perfeição os efeitos de cor, ou as texturas
produzidas pelo pincel ou espátula de um consagrado pintor.
Autor: – Ao contornarmos as dificuldades associadas ao domínio
da plasticidade dos materiais clássicos, substituindo as nossas mãos por
braços mecânicos com comandados cibernéticos, julgo que estamos a
enveredar por um caminho de perda progressiva de qualidades humanas.
Admito que esse recurso possa ser utilizado em situações de produção
industrial. Mas, no tocante à criação da obra de arte, entendo que nunca
deveríamos abandonar e esquecer o domínio das tecnologias assentes na
intervenção direta dessa maravilha que é a mão do homem.
Leitor: – Deves ter razão. Enquanto prevalecer a atração pelo fácil,
pelo rentável, será difícil voltarmos ao primado da mão. Esperemos,
porém, que, pelo menos, subsistam sempre alguns heroicos resistentes.
Lembraste bem! A divulgação industrial de arte - o grafismo de
uma revista de banda desenhada. Um cartaz para fins publicitários. A
produção de um filme com efeitos especiais, etc.
Para mim, estas novas tecnologias têm méritos inegáveis, ao
facilitarem (e democratizarem) a divulgação da própria arte clássica,
ancestralmente confinada aos palácios senhoriais ou aos museus.
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Discurso Direto
António Durval
Confesso que não acho que estas novas formas de arte possam intervir
negativamente na evolução humana!
Autor: – Não pretendo menosprezar ou ignorar o importante papel
dos novos meios de comunicação na difusão da Cultura, da Arte e do
Conhecimento em geral. Graças a esses meios, estamos a assistir, em todo
o planeta, a uma mutação importantíssima, cujos sintomas começam a
revelar-se no alargamento da consciencialização da Aldeia Global a que
todos pertencemos.
Não seria uma tremenda contradição da minha parte, só ver
malefícios nas novas tecnologias da informação e utilizar um programa
informático, de processamento de texto, na elaboração deste livro? Ou, ser
um assíduo telespectador de programas de índole cultural de bom nível,
infelizmente pouco abundantes?
Leitor: – Estou mais descansado. Cheguei a pensar que eras
inimigo irredutível das "novas tecnologias da informação".
Quando uma nova aplicação tecnológica se reflete negativamente
no desenvolvimento das nossas capacidades, sejam elas mentais,
espirituais ou físicas, é evidente que deve soar o sinal de alarme na Nave
Terra e iniciar-se um tempo de reflexão e a sequente correção de
trajetória.
Autor: – Claro. Mas as novidades tecnológicas cibernéticas, com
forte incidência nos media, normalmente são desenvolvidas no seio de
sofisticados laboratórios de investigação de grandes empresas
multinacionais. A preocupação dessas empresas é lançar no mercado
produtos cada vez mais atrativos, mais sugestivos, mais comercializáveis.
Trata-se afinal de competir, de conquistar o mercado. Por vezes essas
empresas vão ao ponto de intervir diretamente na promoção da novidade,
criando verdadeiras modas ou até "eras tecnológicas":
A era dos "long plays". A moda dos "walkmans". A era das cassetes,
46
Discurso Direto
António Durval
dos "CDS", dos vídeos. A era da televisão via satélite, da televisão por
cabo. A era dos microcomputadores, da Internet; da realidade virtual. A
moda disto, a era daquilo e do que já vem a caminho.
Trata-se de criar nos mass media novos hábitos, de novas
necessidades. Muitas pessoas ficam mesmo convencidas que a sua
realização pessoal depende das "performances" da máquina que adquiriu,
ou da máquina que pretenderia adquirir, mas que não está ao alcance das
suas possibilidades económicas. Acontece mesmo que muita gente entra
em depressão, porque só tem hipótese de ver e admirar essas maravilhas,
através dos vidros das montras.
Leitor: – Mas, afinal, as assimetrias económicas fazem parte da
realidade da vida. Da sobrevivência. Em todo o tipo de sociedades e
sistemas políticos, existem os que têm mais e os que têm menos e, pior
ainda, não existe uma justa proporcionalidade com grau de merecimento
de cada um.
Autor: – Se vamos entrar nesse campo, então digo-te: mesmo para
uma abordagem superficial, não chegaria este livro.
Leitor: – Entendo que, pelo menos, devíamos fazer uma tentativa
de conclusão, mesmo sabendo, à partida, que nada é definitivo nesta vida.
Autor: – Seja! Aí vai - julgo que se aplicam às novidades
tecnológicas em geral e às cibernéticas em particular, as ancestrais leis de
causa e efeito, associadas à lei dos contrários. Sempre que surge no
horizonte uma novidade desse tipo, cujas potencialidades façam prever
amplas aplicações e vantagens para a sociedade humana, logo se perfilam
lado a lado duas vontades antagónicas – uns, avaliam as implicações
positivas e negativas que essa inovação possa refletir em todas as
vertentes sociais, ambientais e até espirituais e tentam informar a
sociedade acerca da forma mais correta, útil e saudável de utilizar-se o
evento, ou alertar para os seus eventuais perigos – outros, arrancam a toda
47
Discurso Direto
António Durval
a velocidade, tentando o controlo absoluto do evento, tendo o lucro como
único objetivo. Para isso, não têm relutância em recorrer a todos os
estratagemas e atropelos, ao engodo, ao truque.
Leitor: – Não achas, que a segunda e antipática atitude, afinal, foi a
que sempre determinou a sobrevivência dos nossos comuns ancestrais nos
difíceis tempos das cavernas, em que tinham de lutar tendo corno única lei
a "Lei da Selva"?
Autor: – Os ditames do "salve-se quem puder", em determinadas
ocasiões e contextos, poderão ter sido fatores de sobrevivência. No
entanto, julgo que o espírito de cooperação e de associação, mesmo
quando limitado ao circulo restrito da tribo, foi sempre o fator de
sobrevivência mais determinante.
Leitor: – Desculpa. Julgo que essa conjuntura se mantém ainda
hoje, mas com uma diferença: o circulo da tribo tende a expandir-se até à
dimensão da terra.
Autor: - Exato. E podemos até perspetivar um futuro onde esse
círculo se alargue à espiral galáctica... Ao universo. Mas regressemos ao
chão da nossa rua! Todos nós herdamos geneticamente esse instinto de
sobrevivência. Ainda o possuímos, em maior ou menor grau e julgo que
ainda precisaremos dele durante muito tempo. Estamos ainda longe do
produto acabado. A criação do Homem não terminou ainda. Quis Deus
que nós participássemos também nesse processo. Só assim se poderá
subscrever a revelação bíblica da Criação – "À Sua Imagem e
semelhança"! O Homem seria uma fraude, se não participasse na sua
própria evolução, no seu próprio enriquecimento e aperfeiçoamento físico
e espiritual. Deus não quererá que seus filhos sejam como máquinas préprogramadas e insensíveis. Um produto acabado, no reino biológico, é um
produto sem alma, sem futuro.
48
Discurso Direto
António Durval
Teremos de continuar a nossa ascensão, palmo a palmo. Teremos de
prosseguir uma evolução que altera os contextos, obrigando a novas
atitudes, novos comportamentos para a ancestral luta pela sobrevivência.
Hoje, a antiga "lei da Selva" já não se aplica, pelo simples facto da
"Selva" ter mudado radicalmente. A "selva" atual é o produto da nossa
insensatez, acumulada ao longo dos séculos. É o "carma" que ainda não
sabemos controlar para benefício de todos.
A nossa sobrevivência depende, muito mais, da educação para a
cooperação e fraternidade. Depende, muito mais, da consciencialização
para a interdependência ecológica, para a justiça e a paz universais. Cada
vez mais, teremos de saber utilizar a inteligência e os sentimentos, para
afastarmos definitivamente o espectro do holocausto, engendrado pelos
velhos instintos, ainda dominantes.
Leitor: – Concordo! O "Sermão da Montanha" continuará a ressoar
com plena nitidez, hoje e amanhã, apesar de ter sido proferido, pela
primeira vez, num tempo em que seria impossível prever que, dois mil
anos depois, continuaria plenamente atual.
Autor: – Chamam-me! Reclamam a minha presença na sala de
jantar, no piso inferior.
"– O lanche está na mesa! Não demores"
Tenho pena de interromper o nosso diálogo, precisamente na altura
em que esta experiência começava a aquecer.
A minha mulher não gosta muito de esperar. Prometo que
voltaremos ao nosso "bate papo".
49
Discurso Direto
António Durval
Hoje, voltei a não ser.
Recapitulei amores perdidos
e não recordei os achados.
Hoje, distraí-me na calma insegura
das noites sem Lua
e assisti ao parto de palavras ocas.
Hoje, quebrei algumas esquinas
de ruas direitas.
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Discurso Direto
António Durval
A esse fenómeno,
tão assustador,
repelido como
coisa absurda.
A esse fenómeno,
chamado Verdade.
A esses doidos,
que o procuram,
com ansiedade.
A esses tresloucados,
fanáticos do Amor,
da Fraternidade!
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Discurso Direto
António Durval
Hoje,
o encontro
é com a nostalgia
suspensa do nevoeiro
que dissolve a outra margem.
Hoje,
escuto a fala das pedras
lavradas por mãos,
no pó, já esquecidas.
Hoje,
mergulho na torrente,
na atmosfera - digital
da cidade,
procurando as raízes,
a motivação original,
a identidade.
52
Discurso Direto
António Durval
53
Discurso Direto
António Durval
QUATRO UTOPIAS, NA CIDADE,
AO ENTARDECER
(Quando o Palladium era "Palladium")
Aqui, a Luísa, moça desinibida de dezanove anos, refletindo
maturidade e alegria de viver, aluna brilhante de filosofia, conseguiu
desencaminhar-me para um encontro com dois amigos que só conheço
pela descrição entusiástica dos seus ideais vanguardistas.
Tirou-me da amenidade da Igreja dos Congregados e está a fazerme subir Santo António, com este calor. Se tivesse de andar de batina,
seria muito pior, mas este cabeção quase me abafa. Felizmente, ela parece
não dar por nada…
Quando me convidou, falou mais uma vez das ideias do Rui e do
Octávio. Procuram uma filosofia abrangente que responda melhor aos
problemas do homem de hoje. Possuem conceitos diferentes, mas
complementares; utópicos, mas bem intencionados. Os jovens de hoje
surpreendem-me! Querem saber. Querem certezas, ou pelo menos não se
contentam com ideias feitas. Esta tendência já vem de longe. No meu
tempo, já se adivinhava. Reconheço! O mundo começa a ser diferente!
Para o bem ou para o mal, apesar das mordaças e das vendas que o
sistema teima em manter.
Oh, Senhor! Qual a melhor atitude? Remar, remar contra uma
maré que jamais será detida? Ou juntar-me a ela e tentar compreender? A
maior parte dos meus irmãos padres prefere remar! É certo que uma
evolução, para ser segura e consistente, deverá vingar no teste da
incompreensão e até da declarada resistência. Alguém terá de
desempenhar o antipático papel reativo. Tu, Meu Deus! Colocas dentro do
carro que tenta avançar. Lá sabes porquê!
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Discurso Direto
António Durval
O Rui deve ser uma espécie de poeta e místico, sob a capa de um
vulgar desenhador de publicidade.
Deixa ver se me lembro do resto... Ah! Não pôde ir além dum curso
de desenho e pintura da Escola de Artes Decorativas Soares dos Reis.
Cedo teve de assumir a sua sobrevivência e a de sua mãe, viúva. Lê
muito. Tem veia de escritor, de filósofo, de poeta, e vocação para as artes
plásticas. Adicionando a sua peculiar capacidade de síntese, com a qual
faz as suas análises por vezes desconcertantes sobre o homem e sua
missão na Terra, teremos um esboço aproximado deste jovem idealista.
É católico (a mãe é católica convicta), porém, preconiza o diálogo
com outras crenças, praticando e defendendo o ecumenismo. Diz ele:
"– Todas as religiões se voltam para o mesmo Deus, apesar de O
referenciarem e adorarem de forma diferente! A minha perspetiva
ecuménica implica, em primeiro lugar, que cada um aprenda a respeitar as
convicções e credos do seu semelhante, ou seja, aprenda a construir a
Fraternidade Universal com a argamassa mais representativa da Obra da
Criação – a Diversidade e a Diferença ..."
Porém, apesar de crítico, nunca pôs em causa a religião que os seus
pais lhe transmitiram:
"– Cada um, dentro do seu credo de origem, pode contribuir para a
progressão a caminho da identidade com o Todo. Não preciso de deixar de
ser católico para me relacionar com a diversidade cósmica, que é a
característica mais vincada da Criação Divina. Para ser coerente com a
doutrina de Cristo, tenho de amar o meu próprio inimigo. Logo, é muito
mais fácil ver um irmão naquele que invoca o mesmo Pai Celeste, mesmo
que de forma diferente. Por amor a esse meu irmão, tenho de o desafiar a
ter a mesma atitude perante a minha fé, as minhas convicções."
Agora, lembro-me. A Luísa também referiu outras afirmações dele,
mais ou menos como esta:
55
Discurso Direto
António Durval
"O homem só pode aspirar a uma maior aproximação de Deus e,
consequentemente, a uma maior perfeição, se, em primeiro lugar, porfiar
no conhecimento de si próprio, como recomenda Sócrates, e, ao mesmo
tempo, realizar a missão que lhe está naturalmente destinada.
Neste momento, a humanidade é ainda um embrião nas primeiras
semanas de crescimento. É patente a indefinição quanto à sua anatomia
futura. Esta fase é particularmente crítica, pois não se sabe ainda se vai
abortar, ou desenvolver-se normalmente e cumprir o seu destino.
Enquanto não toma consciência de si mesmo como parte dum
'Corpo', manter-se-ão latentes no horizonte diversas ameaças de aborto,
desde o atómico ao alimentar e económico, passando pelos cataclismos
provocados direta ou indiretamente pelos seus desaforos de lesa
Natureza".
– Meu caro Rui! Devemos ter Fé! Se o nosso destino dependesse só
de nós, as asneiras que cometemos, a todo o momento, já teriam
provocado a extinção da nossa espécie! Cristo está connosco e guiará os
nossos passos na adversidade, ou mesmo quando caímos na insensatez. É
evidente que também temos de acordar, de corresponder! Aí, estamos de
acordo!
Ah! Também afirma que a unidade desse Corpo depende do
cimento de uma forte componente espiritual. Inspirou-se no conceito de
"Corpo de Deus" celebrado pela Igreja e pregado, aos primeiros cristãos,
por São Paulo. Utopia e idealismo não lhe faltam, graças a Deus! Este
nosso amigo vai-me obrigar a uma cuidada atenção. Ainda bem!
O Octávio, que estuda engenharia e mora em Gaia, tem predileção
pelo insólito. É um estudioso dos fenómenos inexplicáveis. Vai da
parapsicologia à ufologia, passando pela religião e pela ciência. Diz que o
seu gosto pelo insólito se deve ao facto de ter sido testemunha (?) de
algumas ocorrências estranhas! Que, a partir daí, não pôde deixar de se
interrogar sobre a explicação das mesmas.
56
Discurso Direto
António Durval
A Luísa afirma que ele e outros amigos estão a pensar formar um
grupo, para se dedicarem à catalogação e estudo de casos insólitos. Só não
o fizeram ainda, devido às cautelas necessárias... enfim, à "lei da rolha"
que manieta esta sociedade.
Senhor! Imagina! Existem jovens que se interessam, não em jogar o
carolo ou em seduzir pequenas à saída das fábricas, mas a colecionar
factos esquisitos, para os quais não têm qualquer explicação. Que
maravilha!
Tem ideias curiosas sobre os chamados discos voadores e,
nalgumas afirmações, aproxima-se dos conceitos defendidos pelo Rui,
apesar de os visualizar de uma perspetiva diferente.
Estou mesmo curioso por conhecer pessoalmente esses amigos da
Luísa.
Que lugar ocupa ela no meio de tudo isto?
Para já, funciona como elemento catalisador, interessando-se por
provocar um diálogo descontraído e frutuoso. Gosta de aplicar os seus
conhecimentos de filosofia. Cita com facilidade e discernimento
Aristóteles, Platão, São Tomás, Descartes, Nietzsche, Marx, Kant, etc.
Enfim, tem sido um elemento importante nesta conjuntura. Com a
agravante de agora também meter nisto o seu professor de Línguas
Latinas.
Ah! Ela vai dizer algo.
– Padre Júlio, desculpe a maçada que lhe estou a dar. Espero que vá
gostar dos meus amigos e, naturalmente, da conversa que iremos ter.
Parece que adivinhou os meus pensamentos!
– Ora! Não tem mal, Luísa. É certo que talvez fosse melhor
falarmos nos Congregados. Mas também vou muitas vezes ao Magestic,
mesmo ao lado do Palladium. Não faz diferença, o calor é que aperta um
pouco!
Que maçada! Não o devia ter dito. Às vezes, vezes demais, distraiome! Ela vai pensar que vou "pelos cabelos" encontrar-me com os seus
amigos. Afinal, o encontro até promete! – Ah! Mas ela vai voltar...
– Padre, este calor é fora de tempo. Até parece que já chegou o
57
Discurso Direto
António Durval
Verão. No primeiro andar do Palladium sentimo-nos bem! Eu costumo ir
para lá estudar com outros colegas. Uma das características desse café é o
seu amplo espaço. Arranja-se com facilidade um recanto sossegado, onde
se pode estudar ou conversar com alguma discrição. Só a partir de uma
certa hora da noite é que, dizem, o ambiente começa a degradar-se. Se é
verdade o que dizem, será o reflexo da formação e mentalidade das
pessoas. Procuram a felicidade no caminho errado.
– A discrição, Luísa, não sei se é possível nas catacumbas de uma
Igreja, quanto mais num café! O ambiente depende de nós, da nossa
mentalidade cívica, do nosso amor ao próximo!
Não a quero assustar com o medo de certos papões, que também
existem. Afinal, não vamos fazer nada de mal, mas o padre Penacova teve
problemas com a Pide um dia destes, precisamente devido a uma reunião,
que lhes "cheirou a esturro".
– Já que falamos de discrição, vou fazer uma indiscrição.
– Estou ouvindo.
–Sabe porque preferimos reunir no burburinho de um café?
Precisamente porque no meio da multidão passamos mais despercebidos.
Parece que ainda não fomos formalmente proibidos de nos sentarmos à
mesa de um café, mas, reconheço, nunca se está livre de um dissabor!
Como diz o padre Júlio nas suas homilias: - "Uma consciência tranquila é
imune ao medo!
Afinal, ela conhece os tais papões. Talvez seja melhor assim. A
propósito do Padre Penacova, amanhã, às oito e meia, tenho de estar no
átrio da Faculdade de Ciências.
– Chegamos, Padre Júlio! Entre, entre. Aproveite! Cuidado com a
porta giratória.
Cá estamos! Isto é um mundo.
Curioso! O artista de café, que às vezes vejo no Magestic, está
também aqui a fazer as suas caricaturas no tampo da mesa.
58
Discurso Direto
António Durval
A Luísa quase me empurra. Pergunto:
– Sabes onde estão os teus amigos?
–Sei! Estão no primeiro andar. Subimos pela escada à esquerda,
logo a seguir ao balcão do café.
Recapitulemos: a Luísa convidou-me para uma reunião com uns
amigos. O Rui e o Octávio. Ou muito me engano ou este Octávio é sério
candidato a namorado da Luísa. Os seus olhos parecem iluminar-se
quando fala dele. Eles encontram-se frequentemente e abordam assuntos
de vária ordem, desde a filosofia à religião, passando pela ciência e até
pela política?
Porquê este arrepio sempre que penso em política?
Vamos lá ver o que sai. Gostavam de conhecer a minha opinião
sobre assuntos filosóficos, teológicos, etc. Ah! já me esquecia. O Octávio
parece que vai questionar-me sobre uma referência do Bispo do Porto,
numa das suas homilias, à rosa e à cruz. Será que eu saberei elucidá-lo
devidamente? Aliás, ele não esconde a sua admiração pelo bispo do Porto.
Curiosamente a Luísa também.
É bom estar com os jovens. E melhor ainda ser convidado por eles.
Terei a oportunidade de os prevenir sobre os perigos que os espreitam. O
Espírito Santo chega com mais nitidez e força aos jovens. A sua intuição,
clara e objetiva, é a prova disso. Os jovens têm a linha de comunicação
menos impedida pelos detritos da falta de generosidade, e do
escamoteamento da integridade e da ética. O pecado velho entope os
"canais do espírito" de forma mais radical. Não é Deus que se afasta; é o
homem que se torna opaco à sua luz!
Cá estamos na grande sala de jogos. Isto é grande! Não me lembro
de ter subido, alguma vez, até cá acima. Muito espaço e uma ampla vista
59
Discurso Direto
António Durval
panorâmica para a grande nave do café, ocupando todo o rés do chão.
Ela puxa-me o braço e indica uma mesa do lado de lá do varandim.
– São aqueles... Padre! Já deram por nós!
Um deles sorriu, de forma particularmente expressiva, na direção
de Luísa. É esse, sem dúvida, o tal Octávio!
Hoje sinto-me ansioso, agitado! Descontrai-te!
Vou ver as horas, já deve ser tarde. São cinco e vinte. Tenho de ir
andando. É uma estopada ir da Ribeira até à Praça, de "calcantes". O
melhor será apanhar um elétrico.
– Mãe! Já vou sair! Talvez não venha jantar. Não te preocupes
comigo.
– Z!... X?... J!... T?
Não percebi, mas é a receita do costume:
“– Rui, já vais? Tem cuidado contigo! Não venhas muito tarde"
– Tudo bem! Até logo! – Deixa ver se levo tudo: carteira, bloco de
apontamentos, lapiseira, dinheiro, passe do elétrico. Hei! Estou todo
despenteado. Faz jeito este bengaleiro com espelho, à saída.
Afinal o que é que vou dizer aos outros? Ora bem: ao padre quero
colocar-lhe a questão crucial, o clássico "conhece-te a ti mesmo", em
versão mais moderna.
60
Discurso Direto
António Durval
Porra! O pente arranha! Está mesmo a precisar de reforma.
Finalmente a caminho! Encantas-me, Douro! És sempre bonito! Vejo-te
todos os dias e nunca me canso da tua paisagem, dos teus "rabelos",
navegando mansamente a caminho da Régua. Gosto de ver o cinzento da
ponte, puxando para o rio as duas margens. Parece que a Ponte de D. Luís
esteve sempre ali, que nasceu com o rio. O sol poente ilumina toda a
paisagem. Ah! Douro! Douro! Se soubesses como se vive aqui por
debaixo destes arcos - os dramas, a miséria... Talvez saibas!
A reunião do Paladium pode ser importante. Sinto uma tremenda
expectativa...
Já vejo o Palácio da Bolsa e o Mercado Ferreira Borges. Lá está o
Infante a apontar o horizonte do mar. Gosto daquela sua incansável
atitude. Além! Sempre mais além! É isso! Temos de prosseguir na grande
caminhada!
Vem aí um elétrico. E vai mesmo para a Praça. Faço sinal e já estou
entrando, no meu jeito especial. Os lugares estão quase todos cheios,
menos os laterais. Os da coxia. Vou aproveitar sento-me aqui mesmo ao
lado desta mulher idosa.
Não! Não se trata de uma mulher idosa! As rugas pronunciadas, o
seu ar profundamente abatido, é que a fazem parecer mais velha. Não é
idade. É o espelho, o reflexo de uma vida atribulada. Ela olhou-me. Mas
que estranho aquele olhar! Que angústia. Não posso suportar. É melhor,
suavemente olhar para outro lado. Não sou capaz de a enfrentar…
Parecia um apelo profundo, como de um náufrago. Há ali uma
infinita tristeza. Aquele olhar revelou-me, num ápice, uma vida inteira de
sofrimento. E ela sabe-o. Tem consciência de que merecia outro destino.
Ela sabe que não foi criada para aquela situação.
Parece que entrei num filme neorrealista. Afinal, aquela mulher faz
parte de mim! Não posso esconder-me ou ignorar a sua existência. Eu
61
Discurso Direto
António Durval
sou! Eu existo, também, naquela mulher!
Olho novamente para ela. Procuro os seus olhos. Corresponde e
pareceu-me que esboçou um leve sorriso. Agora levanta-se e dirige-se
para a saída. Não sei porquê, mas nunca vou esquecer esta mulher!
Mais uma paragem. Saio também. Cá estou na Praça da Liberdade.
Defronte, olha-me com altivez a águia do Café Imperial.
Gosto da minha cidade. Da cidade onde nasci, por vezes sombria e
triste. Mas a vida também é assim; alterna o cinzento, com a colorida e
radiosa esperança.
Ora bem! O melhor caminho... Vou por Sampaio Bruno, Sá da
Bandeira... e depois é só subir Passos Manuel. Acho que vou chegar a
horas! Ainda dá para ver que peça vai no Teatro Sá da Bandeira. A mãe
precisa de se distrair.
Não me sai da mente a visão daquela mulher... Pobre muito pobre,
mas, dir-se-ia, algo culta. Roupa extremamente simples, remendada mas
limpa, muito limpa... É isso! Aquela mulher tinha alguma cultura! Talvez,
no seu passado, tenha vivido bem. As suas roupas de tons cinzentos,
revelam que deve ter enviuvado. Talvez seja essa a razão da sua dor e
infortúnio. Num ápice, com o olhar, revelou-me todo o seu drama, todo o
seu universo vivencial. Gostava sinceramente de voltar a encontrá-la.
Olha! o Sá da Bandeira! No próximo sábado estreia a peça (...) vou
falar à mãe. Tenho que a trazer cá, mas vai custar convencê-la. Se
convidar também a Dona Rosa, ela acabará por vir. Vou tentar! Talvez ela
gostasse mais de ir ao cinema. Pouco passa das cinco e meia, ainda dá
tempo para espreitar os quadros do Coliseu...
Aquela sensação que eu tive. Identifiquei-me plenamente com a
mulher de cinzento. Estranho! Muito estranho! Estamos profundamente
ligados uns aos outros. Uma ligação tão grande como as células que
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Discurso Direto
António Durval
constituem um corpo. Só que, sejamos realistas, esse corpo ainda está
numa fase muito primitiva, muito grosseira. O progresso mede-se ainda
pela capacidade de se construírem automóveis, barcos, aviões,
sofisticados mecanismos, etc. No entanto, o verdadeiro progresso terá de
ser avaliado pelo grau de fraternidade existente entre todos os seres
humanos. Pela capacidade de nos reconhecermos verdadeiramente como
irmãos no nosso relacionamento social e quotidiano.
"Rui! Lá estás tu com as tuas utopias, com o teu idealismo” - dirão
eles lá no encontro do café Palladium”.
Claro que vou usar os meus argumentos. No mundo em que
vivemos, só há duas alternativas: ou construímos essa fraternidade
começando, evidentemente, por uma consciencialização da nossa
identidade coletiva, logo a partir da instrução primária, ou andamos
sempre em guerra, sempre a aniquilarmo-nos, sempre a violentar-nos, até
nada restar.
E se lhes falar daquele meu exemplo preferido?
“– Imaginem vocês que a vossa mão direita, sem mais nem para
quê, embirra com o vosso nariz (a pretexto de ser curto ou comprido,
tanto faz...) e começa a esmurrá-lo violentamente. Logo, a vossa mão
esquerda, a pretexto de socorrer o nariz, toma uma faca e desata a golpear
a mão direita. Esta, ao ver-se assim atacada, mune-se de um machado e...
zás! Corta alguns dedos à mão esquerda. Entretanto o nariz pede auxílio
aos dentes e estes desatam à dentada à mão direita. Depois o pé esquerdo
entra na escalada e começa a dar caneladas na perna direita. O pé direito
reage com um embuste: oferece uma atraente bola de futebol ao pé
esquerdo, coloca-a na marca para o grande pontapé da estreia, mas,
manhosamente, não avisa que a bola é de pedra.
Em pouco tempo, imperam fraturas, edemas, lacerações. Em pouco
tempo, o caos e a destruição tomam conta daquele corpo!
63
Discurso Direto
António Durval
Imaginem, meus caros amigos, o espanto, a perplexidade, digamos
até, a infinita vergonha que irão ter todas aquelas respeitáveis entidades
anatómicas, quando descobrirem que fazem parte íntima do mesmo corpo!
É caso para se dizer: – Quanto mais depressa se envergonharem, melhor!”
Estou com curiosidade de ver a reação do reverendo a estas ideias.
Talvez se limite a achar graça. Ou talvez, quem sabe, não ache graça
nenhuma.
Cá está o café Palladium! Mas ainda é cedo. Vou dar um salto ao
Coliseu. É perto e bom caminho.
Já vejo os cartazes: No Olímpia vai...("..."). Este não me agrada. No
Coliseu... Ah! Já consegui ler. Vai o filme ("...") com o ator ("…").
Não é filme que interesse à mãe, mas, como é no Coliseu – ela adora o
Coliseu – talvez acabe por vir.
Bom! Ela que escolha: o Coliseu, o Sá da Bandeira, ou fica, mais
uma vez, para a próxima…
Já agora vou aproveitar para dar uma vista de olhos nos quadros.
– Oh, senhor! Hoje não quer comprar nenhum livro? Tenho aqui
novidades para si da coleção que você gosta! Da Coleção Argonauta.
Olhe! –"O Dia das Trífides", este livro está esgotado. Guardei-o para si!
Simpática esta miúda. É pena o outro estar sempre enlaçado nela, aqui
mesmo, nas escadas do Coliseu, mas qual é o problema?
– Agora, não! Estou com pressa. Guarde-me, por favor, o livro. Eu
passo por cá mais logo! Vamos lá para o nosso encontro!
Agora reparo, a fachada do Palladium ostenta outro enorme cartaz
do filme que vai no Coliseu. Só falta mesmo convencer a mãe!
64
Discurso Direto
António Durval
O autocarro não sai do sítio. A esta hora anda-se mais depressa a
pé. Ainda nem sequer chegou à Ponte de D. Luís. Não é tarde, mas com
este andamento vou chegar a meio da reunião! Que maçada!
Irei falar da experiência vivida no sábado passado? Não sei... Sou
capaz de criar um clima de pouca credibilidade e prejudicial ao debate que
gostaria de provocar em torno de outros temas que interessa abordar.
Vamos ver! Na altura se verá...
A Luísa (querida Luísa) é mesmo um encanto. Não descansou
enquanto não convenceu o reverendo, seu professor de línguas latinas,
para se reunir connosco – e logo no Palladium.
Ah! Aquele dia em que a conheci. Tão longínquo e tão próximo.
Lá estava ela, em bicos de pés, esticando-se em cima do escabelo
enquanto ia dedilhando os ficheiros dos arquivos da Biblioteca Municipal
de São Lázaro. Lá estava ela, atenta aos títulos das fichas que passavam
rapidamente pelos seus lindos olhos castanhos. Lá estava ela, saltando do
ficheiro onomástico para o decimal e do decimal para o didascálico.
Providencial ideia aquela de ir consultar, nesse dia e àquela hora, os
ficheiros da Biblioteca Pública:
Manual, manual de construção de um telescópio artesanal. Nada,
não encontro nada. Manual do Astrónomo Amador, vamos lá a ver.
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Discurso Direto
António Durval
Maluquice a minha! Então não vês, mesmo aqui ao teu lado, uma "estrela"
em carne e osso?"
Depois, funcionou o meu incurável espírito de escuteiro. Oferecer
os meus préstimos para ajudá-la a encontrar a obra que tão afanosamente
procurava, foi um instante. Ainda me lembro: era um livro sobre Filosofia
Tomista. Hesitou, sorriu e, de repente, mais afoita:
"– Agradeço-lhe, mas parece que o livro que eu procuro não existe
nesta biblioteca. Mas já agora… se quiser tentar…"
Solícito, palmilhei todos os caminhos de consulta que ela já
percorrera. Naturalmente, o resultado foi nulo. Com um sabor a desaire na
boca, confirmei o que ela já sabia: havia dois livros sobre esse tema, mas
nenhum deles era o que Luísa procurava.
Aquele episódio, aparentemente inglório, foi o começo de uma
relação frutuosa (ou amorosa?), que tem evoluído ao longo dos meses e
promete não ter fim.
Ela é mesmo uma pessoa interessante!
Finalmente já estou a atravessar a ponte. Vejo daqui os arcos da
Ribeira. Por cima daquele, à esquerda, mora o Rui. A estas horas, já deve
estar no Palladium.
Posso respirar um pouco. O autocarro chegou ao fim da carreira.
Desço aqui, na Praça da Liberdade.
Agora vou direto a Passos Manuel, "a toda a brida". O que me
poderá dizer um padre sobre discos voares? Ou melhor: sobre a hipótese
da existência de vida noutros planetas?
Bom! Se eu fosse padre era capaz de responder que essas hipóteses,
em primeiro lugar, se situam exatamente no campo das hipóteses. Talvez
dissesse que era uma possibilidade a ter em conta, mas que, de momento,
os seres humanos em geral e a religião em particular, tinham outras
preocupações em agenda.
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Discurso Direto
António Durval
A Luísa contou-lhe que eu vi um disco voador, quando tinha
dezasseis anos, e que, a partir daí, fiquei apanhado pelo dito fenómeno.
Confesso. Seria indiferente ao problema se, porventura, não
testemunhasse esse acontecimento numa bela noite de Maio! Foi uma
experiência, simplesmente, inesquecível e perturbante. Que seria aquilo?
Tenho conversado muito com a Luísa sobre este terna. A princípio
ela não apanhou a onda. Ouvia-me com a paciência de uma verdadeira
amiga que se esforça por dialogar. Ultimamente, parece que se deu um
"clique". Principalmente a partir do momento que lhe levei o inquérito
remetido pelos meus amigos do insólito.
As suas respostas foram mesmo um espanto:
– Pergunta nº 4: – O que lhe desperta mais interesse no estudo do
insólito? Resposta da Luísa:
– A possibilidade de fornecer elementos para o estudo e
conhecimento de mim mesma e da sociedade humana a que pertenço!
Pergunta nº 5: – E o que lhe desperta menos interesse nesse estudo?
Resposta da Luísa:
– "A tendência para um rápido fabrico de hipóteses e para estudo
quase exclusivo das vertentes físicas do fenómeno, ignorando-se a sua
interação com o observador em particular, e com o homem em geral". O
Insólito deveria produzir interesse e estudo em duas direções distintas,
mas complementares: – Interesse e estudo pelo fenómeno em si. –
Interesse e estudo pelo facto de existir um ser, chamado homem, que
observa e reage ao fenómeno com interesse e estudo.
Sempre a divagar, já estou a chegar a Passos Manuel. Bolas! O
sinal vermelho! Já não bastava o atraso do autocarro? Eles já devem estar
à minha espera há mais de dez minutos.
O trânsito ascendente de Sá da Bandeira continua parado à minha
direita. Da esquerda não vem nada. Vou-me escapar.
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Discurso Direto
António Durval
Alto! Alto lá! Disfarça o gesto. Então não vias ali mesmo à tua
frente o homem do capacete branco? Aguarda! O civismo é muito lindo!
Pela hora, já me devem estar a roer na pele. Este encontro, para
mim muito especial, merecia toda a pontualidade.
Aqui, sente-se o pulso à cidade. Pelas ruas empedradas, flúi uma
corrente de vida humana. Que motivações impelem estes "glóbulos" numa
roda-viva? Haverá alguma motivação igual à do "glóbulo" chamado
Octávio Freitas? Haverá por aqui alguém apressado, como eu, para chegar
a uma reunião de amigos, que vão discutir utopias à mesa de um café?
Deve ser quase impossível encontrar duas motivações iguais no meio
desta multidão.
Irei contar ao padre as minhas experiências a nível do paranormal,
ou a tal observação do disco voador? O padre vai-me excomungar pela
certa!
A Luísa é minha cúmplice neste sarilho. Mas que o encontro é
aliciante, lá isso é! Revelou-me que o seu professor era um padre
diferente, aberto ao diálogo e sem temas tabu. Estou ansioso por conhecêlo. Talvez o questione sobre o significado da "rosa" e da "cruz" referidas
pelo Bispo do Porto numa das suas célebres homilias.
Estou mesmo a ver o padre a sorrir uma dúvida condescendente,
quando lhe falar da minha convicção na existência de outras vidas ou
civilizações no Cosmos.
Que fantástico! Que sensação, seria a de contactar um ser
extraterrestre! Um representante de um universo psíquico e biológico
totalmente desconhecido. Esse ser representaria toda uma evolução e
trajetória de Vida, diferente da nossa, biliões de anos a partir do primeiro
organismo vivo que surgiu no seu distante planeta. Ele refletiria a síntese
da civilização que representa. O produto de uma evolução por vezes
difícil e dolorosa, mas finalmente triunfante e sobrevivente. Uma
68
Discurso Direto
António Durval
civilização com as suas cidades, as suas ruas, onde, quem sabe, o tráfego
das cidades seja suave, ordenado, ecológico...
"- Piiiiiii. Piiiiiiii. Piiiiiii. " (?) Uf! O apito do sinaleiro acordou-me.
O homenzinho verde já brilha. Posso finalmente atravessar.
Cá vou eu, feito cavaleiro medieval e em plena liça. Acelero na
direção do adversário, esquivo-me para a esquerda, estaco, furo pela
direita e eis-me do outro lado, ileso. Agora, toca a subir Passos Manuel. A
corrente é forte no sentido contrário. Avanço com dificuldade. É melhor
descer o passeio e ladear, ladear, o rio humano. Agora sim! Cá vou levado
por estas duas pernas de montanhês citadino, enquanto sinto na pele o
arrepio das tangencias dos seres de quatro rodas.
Irei mesmo falar dos hipotéticos seres extraterrestres? Porque razão
temos quase sempre a tendência para imaginar um ser extraterrestre, como
sendo um monstro horrendo? Nos filmes, ou nos livros de ficção
científica, esses hipotéticos seres são, geralmente, caracterizados como
terríveis inimigos, que nos querem destruir ou escravizar. Um ser que
consiga fazer uma viagem interestelar, penso que estará tão avançado, será
tão evoluído, que não deve precisar nem cobiçar absolutamente nada de
nós! Poderá ter as suas razões para vir até cá. Mas não será para colocar
aqui um padrão dos descobrimentos ou montar uma alfândega.
O Rui é de opinião que se trata de uma espécie de reação instintiva
que ainda não controlamos. Para nós tudo o que é diferente é suspeito. É o
inimigo! Um dia, ele esboçou uma curiosa hipótese, aplicando aos
extraterrestres o conceito de "Corpo", tanto do seu agrado. Disse ele:
"Estou convencido de que a identificação de todos os seres humanos com
o Corpo - Humanidade será uma meta a atingir, ou um caminho a
percorrer analogamente por todas as humanidades ou civilizações
existentes no cosmos. É fácil admitir que o simples facto de um
69
Discurso Direto
António Durval
extraterrestre conseguir chegar ao nosso planeta, seja uma consequência
de uma grande aproximação à realização do "Corpo" no seu mundo.
Depois dessa meta, logo outra se perfila: a maturação do Corpo Galáctico
a caminho do Corpo Universal."
Passei agora junto da entrada do Ateneu Comercial. Falta pouco!
Olá! No caudal vem uma flor a boiar, como um nenúfar à tona. Que
fragrância, que harmonia! Oh! Perdão, cavalheiro, desculpe, foi sem... Já
lá vai! Nem pestanejou.
Enfim, cá estamos no Café!
Gosto deste sussurro, desta barulheira familiar do costume. Parece
que vi a silhueta da Rui, lá em cima, junto da balaustrada. É ele! Deve
estar chateado por esperar. Curioso, parece estar sozinho…
Já estou cá em cima. O Rui, como sempre distraído, não me viu.
Sorrateiramente, por detrás, vou dar-lhe uma palmada!
Gosto deste fim de tarde quente e luminoso. A cidade, hoje, revela
uma faceta peculiar: o sortilégio dos reflexos do sol poente nos vidros das
janelas e nas claraboias, que emergem da manta retalhada dos telhados,
estendida pela encosta até à Batalha.
Atravesso aqui, do Passeio das Cardosas para a Praça da Liberdade.
Mais um pouco e estou na Igreja dos Congregados. Espero encontrar o
70
Discurso Direto
António Durval
Padre Júlio. E se ele não vem? Não deu a certeza, apesar de ter revelado
interesse no encontro. Achei curiosa a série de perguntas que ele me fez
acerca do Rui e do Octávio. Era bom que fosse ao Palladium. Notei-lhe
uma certa hesitação. O facto de não dar a certeza. Será que tem algum
problema com a hierarquia? Ou receia a PIDE?
A semana passada, no intervalo das aulas, quando eu e a Clarisse o
encontrámos no bar da faculdade, confidenciou-nos que tinha feito uma
descoberta curiosa: alguém o teria classificado de padre progressista. Ora,
pelos vistos, ele é alérgico a esse tipo de classificações:
"– Desejo somente ser padre e nada mais. Estou longe de ser um
padre exemplar mas, se tentasse com mais afinco imitar o Mestre,
acabariam por me rotular, talvez, de comunista. Logo, esses "ditos" não
me afetam."
Só há uma forma de saber se ele vai: é chegar até à sacristia.
Este silêncio! Esta soturnidade, na nave da igreja, convida ao
recolhimento. Um verdadeiro oásis para o espírito, onde, por momentos,
podemos encher o coração de Paz e fazer uma ligação com o Divino.
Ah! Está ali o velho sacristão. Vou perguntar.
– Viva, senhor Álvaro! O padre Júlio está?
– Não, menina, ainda não chegou! Mas não deve demorar. Ele
disse-me que vinha cá hoje ao fim da tarde. Espere um pouco, na salinha.
Ele veio! Que bom! Ainda esperei um bom bocado. Quase
desesperava, mas já vamos a caminho. Isso é o que interessa. Vinha
afogueado. Cumprimentou-me e só disse:
"– Vamos já, Luísa. Espera um pouquinho!"
Noto que ele está um pouco cansado. E agora será pior, pois
estamos a subir Santo António.*
________________
* Atualmente é 31 de Janeiro
71
Discurso Direto
António Durval
– Padre Júlio, desculpe a maçada que lhe estou a dar. Espero que vá
gostar dos meus amigos e, naturalmente, da conversa que iremos ter.
– Ora!, Não tem mal, Luísa. É certo que talvez fosse melhor
falarmos nos Congregados. Mas também vou muitas vezes ao Magestic,
mesmo ao lado do Palladium.
– Não faz diferença, o calor é que aperta um pouco!
Ele vai muitas vezes ao Magestic. Estou mais habituada ao
Paladium. Gosto dos grandes espaços, mas reconheço que o Magestic é
também um café com muita história. Estes locais perfeitamente
identificados com a vida da cidade do Porto, deveriam ser preservados
para as gerações vindouras. Fazem parte da nossa identidade cultural.
Espero que o Padre goste do café Palladium. e depois desta maçada e
deste calor.
– Padre, este calor é fora de tempo. Até parece que já chegou o
Verão. No primeiro andar do Palladium sentimo-nos bem! Eu costumo ir
para lá estudar com outros colegas. Uma das características desse café é o
seu amplo espaço. Arranja-se com facilidade um recanto sossegado, onde
se pode estudar ou conversar com alguma discrição. Só a partir de uma
certa hora da noite é que, dizem, o ambiente começa a degradar-se.
Não vou falar na PIDE. Se eu lhe contasse o que estão a fazer ao
jornal editado por um grupo de jovens e onde o Rui é colaborador. então
ele...
“– A discrição, Luísa, não sei se é possível nas catacumbas de uma
Igreja, quanto mais num café! O ambiente depende de nós, da nossa
mentalidade cívica, do nosso amor ao próximo!”
Chegamos a Santa Catarina, e sempre a conversar. Agora é só mais
um saltinho e estamos no café. Tenho de estar alerta. Ocuparemos uma
mesa onde não esteja mesmo ninguém por perto. Já sei como vai ser: o
72
Discurso Direto
António Durval
Rui vai entrar pela filosofia e política adentro. Quando se entusiasma,
ouve-se a mais de dez metros. Parece que já estou a ouvi-lo:
“– Na medida em que cada um, dentro da esfera da sua ação,
contribuir para a unidade e harmonia entre as "células" que lhe estão mais
próximas, também esse Corpo Global refletirá o resultado positivo e
negativo desse processo." Ou então:
"– O socialismo marxista do Leste é uma experiência que está a ser
testada por uma boa parte da humanidade. Esta experiência políticoideológica é uma consequência explicada pela lei de causa e efeito, ou
seja, surgiu imposta revolucionariamente como reação natural a uma
intolerável situação social, calamitosa, discricionária e injusta. No
entanto, julgo que estará longe de constituir a última fórmula salvadora.
Aliás, estou convencido de que só uma consciencialização cívica e ética,
entendida e processada livremente a nível íntimo de cada indivíduo,
poderá ser o suporte de uma revolução verdadeiramente transformadora.
Além disso, a construção da fraternidade coletiva poderá ser também
associada à cultura, à mentalidade e à educação cívica de um povo. Nunca
será o reflexo de uma coação ou de uma imposição. Nada acontece por
acaso. Há sempre uma razão, uma causa, um objetivo. É uma experiência
que está a decorrer. Apesar de tudo, sempre iremos aprender algo, como já
aprendemos com outras experiências realizadas no ontem, e
continuaremos a aprender no hoje e no amanhã.
Até as ideologias anarquistas serão necessárias no "caldo de
cultura", donde sairá o homem do futuro. Entretanto, as leis da evolução
humana tenderão sempre a selecionar, ou a modificar, os sistemas
políticos que impeçam a dignidade individual. É assim: derrubando
frustrações e erguendo esperanças que iremos construindo a Fraternidade.
Historicamente, esse processo tem sido doloroso, sobretudo quando se
desenvolve num contexto político, que não permita a mudança ou o teste
73
Discurso Direto
António Durval
pacífico de experiências. Onde não exista a imprescindível liberdade
democrática." Ou ainda:
"– Sou pela Democracia. Estou convencido de que, mais dia menos
dia, o nosso país acabará por ser democrático. Vai ser obrigado a isso ou,
então, perde definitivamente o comboio. Uma democracia de verdade!
Um sistema político onde os cidadãos possam escolher livremente o estilo
de governo e seus líderes. Quando digo escolher livremente, quero dizer
que as pessoas devem ter também acesso a uma instrução, a uma cultura,
capaz de formar uma opinião verdadeiramente livre."
Estou a ver o Octávio a entrar em debate, dizendo mais ou menos a
mesma coisa, mas de forma diferente. O pai trouxe-lhe de Inglaterra
algumas revistas sobre política, o que o habilita a falar sobre a já longa
experiência democrática inglesa. Acho-lhe graça quando faz extrapolações
para hipotéticos estilos de Democracias, que o homem poderá vir a
experimentar:
“– No futuro, os líderes políticos devem ser escolhidos pela sua
competência e honestidade. Deveria instituir-se, oficialmente, um curso de
formação de líderes políticos, cujo acesso exigisse, entre outras condições,
um irrepreensível currículo, a nível da honestidade e competência, e a
prova inequívoca de obras já realizadas em prol da comunidade. Eu, para
ser engenheiro civil, uma profissão que lida essencialmente com cálculos
de resistência de materiais, tenho de tirar um curso de vários anos. E um
político que vai liderar pessoas, cujo comportamento, a meu ver, é
infinitamente mais complexo, não necessita de conhecer minimamente a
natureza do "solo" onde pretende atuar?"
– Como vai conciliar essa exigência com o livre sufrágio universal,
base do sistema democrático?
“– Minha cara amiga! O que precisamos, para já, é que a
Democracia seja instaurada. Precisamos terminar com a Guerra Colonial e
74
Discurso Direto
António Durval
instituir uma constituição democrática. Depois temos de seguir o caminho
dos outros países democráticos: cometer muitos erros para irmos
aprendendo, até chegarmos aos calcanhares dos que vão à nossa frente.
Quanto mais tarde isso acontecer, pior.”
Cá estamos no café!
– Chegamos, Padre Júlio! Entre, entre. Aproveite! Cuidado com a
porta giratória.
“– Sabes onde estão os teus amigos?”
– Sei! Estão no primeiro andar. Subimos pela escada à esquerda,
logo a seguir ao balcão do café.
Como de costume o café está animado! Uf! Estou a ficar cansada!
Finalmente, chegamos ao cimo das escadas! Lá está ele, o Octávio ali, ao
lado do Rui!
– São aqueles Padre! Já deram por nós!
O vaivém constante dos que entram e saem mantinha em rotação
quase permanente as duas portas giratórias da entrada principal do café
Palladium. Rui Sá entrou por uma dessas portas aproveitando ágil uma
aberta, providencialmente sincronizada com o seu passo. Atravessou,
decidido, a grande nave central do rés-do-chão e subiu, na mesma
passada, as puídas escadas de acesso ao primeiro andar onde se localizava
a grande sala de jogos de bilhar. Mal aí desembocou, os seus olhos
75
Discurso Direto
António Durval
procuraram de imediato o local pré-combinado do encontro. Foi o
primeiro a chegar. Com algum desapontamento, procurou uma mesa
vazia, junto ao grosso varandim de madeira, que limitava a grande
abertura retangular, onde se devassava amplamente o piso inferior. Daí, o
olhar dominava toda a enorme nave do café. Defronte, um pequeno grupo
de jovens, debruçados no outro lado do varandim, fazia a cobertura
completa dos centros de interesse erótico, que iam referenciando lá em
baixo. Rui Sá manteve-se distraído com os seus pensamentos durante
alguns minutos. Uma viril palmada no ombro fez voltar-se. Octávio,
exibindo um sorriso em forma de cumprimento, perguntou:
– Só estamos nós? E pensava eu que era o último!
Puxou de uma cadeira e, enquanto se sentava, o Rui retorquiu:
– Ena! Por onde entraste? Estava aqui a olhar para baixo e não te vi
chegar.
– É natural. Entrei pela porta do lado, pela Rua de Passos Manuel.
Com certeza estavas a olhar para a entrada principal, que dá para Sta.
Catarina, e não me viste.
– Bom! Agora, era preciso que chegassem os outros. Retorquiu o
Rui, voltando a olhar lá para baixo, dando agora também atenção à porta
de acesso a Passos Manuel.
Durante quase um minuto, mantiveram-se em expectante vigilância,
até que foram inquiridos, por um empregado do café, acerca do que
desejavam tomar. Rui sugeriu-lhe que voltasse quando chegassem mais
duas pessoas. Depois do empregado se retirar, o Octávio propôs:
– Olha! Já agora. E se fossemos falando sobre o objetivo deste
encontro? Confesso que tenho dúvidas, se devo ou não devo, falar de
certos temas, por exemplo…
– Não sei se vale a pena, Octávio. O Reverendo Júlio e a Luísa
76
Discurso Direto
António Durval
acabaram de entrar pela porta principal e dentro de momentos estarão
aqui.
Lá em baixo, fervilhava o ambiente característico das grandes
confluências humanas, marca inconfundível da vida imersa da urbe antiga
que se chama Cidade do Porto. As formas circulares das mesas de vidro
espreitavam por entre a pequena multidão sentada, revelando com
dificuldade a sua disposição retilínea. Ali, duas morenas-loiras, de perna
alçada, alardeando suas minis e uma descontração teatral de pseudo–
esquecimento, retorquiam, com sorriso fácil, às murmuradas interpelações
de dois jovens, que com elas partilhavam uma das mesas centrais.
Em redor, gente que "cuca" o que está e o que vai. Gente que lê ou
estuda. Que escrevinha, ou emborca, em goles rápidos e
coreográficamente iguais, a bebida que mandou vir. Gente que conversa e
ri. Cigarros esquecidos. Olhos vagos a trespassar espirais caprichosas.
Paisagem castanha, violada de quando em vez pela mancha alva de um
empregado, deambulando num imaginário labirinto, fazendo planar, com
destreza, por cima das cabeças, bandejas saturadas de bebidas. Amálgama
de vozes humanas. Choques e entrechoques, metálicos e cristalinos, de
talheres e copos. Simbiose multifacetada de ruídos e reflexos, onde, por
vezes, se distingue o som metálico de moedas tilintando. Sussurro
monocórdico, só com a interferência sonora do limpo bater das bolas de
bilhar, rolando ao longe, nas grandes mesas de pano verde.
77
Discurso Direto
António Durval
Na Serra do Pilar, junto ao mosteiro, dois namorados enlaçados
olhavam na direção da barra do Douro, como que hipnotizados pela
beleza do crepúsculo. Mais adiante, outro casal empurrava um carrinho de
bebé, em passo lento e descontraído. O carrilhão do mosteiro bateu as sete
badaladas do fim de tarde, enquanto a sua cúpula era lambida pelas
últimas carícias de um ocaso primaveril. Lá em baixo, a Ponte D. Luís
cumpria a sua tarefa de cordão umbilical entre duas margens.
O céu azul ia já escurecendo para os lados de nascente, quando um
meteorito deu o primeiro sinal de que, em breve, a Via Láctea iria entrar
em cena.
78
Discurso Direto
António Durval
Como definir
esta desfocagem
permanente?
No afastamento
raia a manhã no prado verde.
Na aproximação
gela-se na aridez do deserto.
Como acabara
este esboço interminável,
sempre a safar,
sempre a riscar,
sempre procurando
no espaço infinito
o Universo que trago
cá dentro?
79
Discurso Direto
António Durval
Universo – convencimento,
Universo – miragem
daquilo que julgo,
mas que não é.
Universo – realidade,
Universo – contraste
daquilo que é,
mas que não julgo.
Universo – engano
onde o sonho
passou brincando.
80
Discurso Direto
António Durval
ONDE ESTÁ O Leitor?
NO CENTRO DO UNIVERSO!
Leitor: – No primeiro capítulo, estive para te interromper acerca
dum conceito aflorado por ti. Na altura não me atrevi a "cortar o fio à
meada." Refiro-me à expressão: "Centro Universal de Consciência".
Gostava que me explicasses o que significa para ti esse conceito e
se te inspirastes nalguma corrente de pensamento filosófico.
Autor: – Realmente utilizei a expressão "Centro Universal de
Consciência". É legítima a tua curiosidade e vou tentar satisfazê-la.
Começo pela questão da corrente filosófica – nunca foi minha
intenção transformar este descontraído "bate papo" numa abordagem,
mais ou menos erudita, mais ou menos académica, de temas ou conceitos
filosóficos. Não está em causa, obviamente, o profundo respeito e
admiração que tenho pela Filosofia e pela plêiade de insignes pensadores
que desde Aristóteles ou Platão, passando por São Tomás de Aquino,
Kant, Russell, Teilhard de Chardin ou Agostinho da Silva, registaram, de
forma objetiva e clara, as deduções do seu pensamento sobre as imensas e
transcendentes questões do ser e do existir.
Durante esta nossa conversa é natural que surjam expressões que,
eventualmente, poderão lembrar conceitos filosóficos consagrados em
manuais ou obras de cariz filosófico.
Convidei-te para uma conversa informal. E conversar é também,
em grande medida, um ato cultural por excelência, refletindo, mesmo que
81
Discurso Direto
António Durval
inconscientemente, o produto da assimilação dos métodos de raciocínio e
o pensamento que os Mestres nos legaram. Numa palavra: conversar, no
estilo que adotamos, é também, de certa maneira, filosofar. Tudo quanto
dissermos estará, à partida, influenciado pela cultura da sociedade onde
estamos inseridos e pela marca indelével do pensamento desses filósofos
que nos precederam. Se porventura sair daqui algo que se assemelhe à
clássica, ou mesmo moderna, filosofia não será intencional. Se algo
semelhante já emergiu, ou vá emergir nestas páginas, será sempre uma
filosofia do tipo, digamos, "naífe".
Leitor: – Julgo que entendi. Já agora um aplauso para a citação do
nome de Agostinho da Silva. Mas também aplaudiria se referisses o nome
de António Aleixo.
Autor: – António Aleixo? Tens toda a razão! Ainda bem que
lembraste esse ímpar poeta e filósofo popular, autor de quadras como esta:
Eu não tenho vistas largas
"
Nem grande sabedoria
mas dão-me as horas amargas
lições de filosofia"
Continuaremos a filosofar, sem pretensiosismos, tomando como
modelo inspirador o nosso grande António Aleixo. Prosseguiremos as
nossas abordagens, conciliando o atrevimento de penetrar num terreno
ancestralmente reservado a predestinados, com um contemplativo
assombro e profunda humildade.
82
Discurso Direto
António Durval
Iremos, pois, com os pés assentes no "saber de experiência feito",
conversar em tomo do conceito subjacente ao termo "Centro Universal de
Consciência", que empreguei no primeiro capítulo.
Como primeiro passo, proponho um pequeno exercício de
introspeção: Vamos supor que preferes fazer este exercício quando
caminhares por uma rua da povoação onde vives ou trabalhas. Não
interessa qual o teu destino. Só importa que, em determinado momento,
desligues os automatismos naturais, que intervém inconscientemente
durante uma marcha, e tomes consciência de todo o movimento dos teus
membros inferiores e superiores e da tua respiração. Depois, observa
atentamente tudo o que te rodeia. Constamos, por exemplo, que os
estímulos visuais, emanados da realidade exterior, entram por uma espécie
de ampla "janela", de contornos difusos. Que essas sensações sejam
recebidas, entendidas e registadas, algures, no interior de ti mesmo. Com
um pouco mais de atenção, verificaremos uma ténue e diluída mancha
rosada na base inferior dessa "janela", que depressa são identificadas
como sendo a silhueta, desfocada, do teu nariz. Procura identificar quem
recebe, quem entende e quem regista esses estímulos. Notamos que és tu
mesmo, o teu Eu, que está lá no "centro" para onde convergem todas essas
mensagens, sinais e sensações. Também tomarás consciência de que esse
Eu não poderá ocupar o "centro" de outro Eu, e que o "vice-versa"
também é verdade. Numa palavra, descobrirás que és uma
"Individualidade". D. António Ferreira Gomes* na sua mensagem de
Natal de 1956, referiu a propósito do "Eu":
_______________
* Bispo do Porto de 1952 a 1982, bem conhecido pela sua verticalidade, coerência e
independência em relação ao poder governativo de então, facto que lhe valeu o exílio.
Faleceu no ano de 1989.
83
Discurso Direto
António Durval
"O Mérito da filosofia de hoje é decerto ter voltado ao carácter
único de cada um: que nós somos o nosso Eu e que este se nos torna
consciente por si mesmo, não pelo Absoluto ou pelo Inconsciente, pelo
Coletivo, pela massa ou pela raça, ou qualquer outra expressão de
panteísmo. O Eu é um ser e o seu próprio modo de ser, a sua consciência
psicológica e exigência de consciência moral, não um momento, uma
aparência ou modo de ser de qualquer ideia em evolução, duma raça ou
dum partido ou do Estado, nem sequer um modo de ser do próprio Deus.
Este é o sentido do valor da pessoa - ser por si e em si."
Sentirás também que o teu corpo funciona como intermediário entre
o mundo exterior e o teu Eu.
Grosseiramente, poderíamos afirmar que o teu corpo é uma
máquina biológica, onde o Eu despertou ao longo dos anos para a
realidade do mundo exterior. Além disso, através dos sensores biológicos
do corpo, permite-te interagir com esse mundo. Não sei se até aqui fui
suficientemente claro. Agradeço que me interrompas se, por ventura,
desejares rever ou até contestar algum raciocínio até agora produzido.
Leitor: – Ao ler-te, recordei alguns textos sobre temática yoga que
li em tempos. Existe alguma semelhança. Mas, valha a verdade, creio que
fizeste uma abordagem diferente. Uma abordagem "terra a terra".
Acho, porém, que não estará ainda bem definida e explicada a tal
expressão: "Centro Universal de Consciência."
Autor: – Ótimo! Se uma abordagem "terra a terra" ajudar, então,
essa será a nossa linguagem de trabalho. Ainda mal comecei a desmontar
a tal expressão denominada "Centro Universal de Consciência."
84
Discurso Direto
António Durval
Vamos avançar mais um pouco – recorro novamente, "terra a
terra", a um exercício. Quando puderes, isola-te no silêncio do teu quarto
e estende-te descontraidamente no leito ou num sofá. Respira
pausadamente, sem esforço, cerrando lentamente os olhos, de forma a
sentires uma sensação de paz a tomar conta de ti. Depois,
progressivamente, deves assumir urna atitude de plena lucidez, abarcando
conscientemente toda a realidade que te cerca, ou melhor, que te afeta
objetiva ou subjetivamente. Subtilmente, ver-te-ás no centro do teu
Universo Interior, consubstanciado no enorme conjunto de recordações,
experiências e sensações, que acumulaste, desde o primeiro segundo da
tua conceção genética até à última fração de tempo que acabastes de viver.
Toda a tua vida, com os seus problemas, virtudes e defeitos e a
recordação dos teus familiares, amigos, ou mesmo adversários, forma um
imenso firmamento de constelações, que gira em torno do teu Eu, o
"Centro" dessa imensa "esfera celeste". Já Kant, na sua obra "Críticas da
Razão ", afirmava :
"...Não é o objeto que está no centro e o observador à volta, mas o
observador que está no centro e os objetos à volta..."
Podes escolher a "constelação" que desejares visitar. Aquele
episódio da tua vida, aquela situação que te marcou de algum modo, ou
visualizar cenários possíveis de situações que prevejam venham a ocorrer
num futuro próximo ou longínquo. Basta que o pincel da tua Imaginação
volte a colorir e a dar vida às tuas recordações, ou a dar forma aos teus
anseios.
Ali, reconhecerás a queda abaixo da figueira, quando, aos nove
anos, roubavas figos na quintal do vizinho; a tua primeira experiência
sexual quando tinhas 11 anos; o toque que deste num automóvel, quando,
85
Discurso Direto
António Durval
há cerca de dois meses, ias a sair com o teu carro, do parque de
estacionamento.
Acolá, o problema profissional que não há forma de tomar o rumo
que desejas; a saúde dum familiar que está em perigo; a resposta que terás
de dar, em breve, a um pedido. Mais além, as tuas preocupações de
carácter mais transcendente, como o religioso, o filosófico ou o
ideológico; as interrogações sobre o "de onde vim?" "Quem sou?" "Para
onde vou?" ; a antevisão do último alento de vida terrena.
Leitor: – Estava a gostar de te ouvir, ou melhor, de te ler, mas não
resisto a colocar-te uma questão: se bem entendi, esse Universo Interior,
que todos nós possuímos e em cujo centro se encontra o nosso Eu, é
diferente e único de pessoa para pessoa. Não é assim?
Autor: – Isso mesmo!
Leitor: – Então, como é enquadrado nesse universo Interior o
conhecimento e as sensações reais que temos do universo físico exterior?
Que eu saiba, esse universo exterior é igual para todos.
Autor: – Em primeiro lugar, entendo que o Universo Exterior não é
percebido e entendido da mesma forma por todos. Tu, por exemplo, tens a
tua perceção pessoal da realidade do microcosmos e do macrocosmos.
Essa realidade está refletida na abóbada do teu Universo Interior,
exatamente com a medida e qualidade do grau de sensibilidade dos teus
sentidos e da tua capacidade de a entenderes, ou de a imaginares. Por sua
vez, essa capacidade depende, diretamente, do teu grau de instrução e de
cultura.
Se, por hipótese, a tua conceção do Universo se tivesse cristalizado
na ideia prevalecente, séculos atrás, de que a Terra era plana ou de que o
Sol girava em seu redor, então, o teu Universo Interior refletiria,
cabalmente, qualquer uma dessas tuas conceções do Universo Exterior.
86
Discurso Direto
António Durval
Na fase evolutiva do meu Agora não existe na sociedade um nível
cultural sem assimetrias e desigualdades. O grau de cultura das pessoas
depende não só da sua qualidade de vida (e esta, infelizmente, não é igual
para todos) mas sobretudo da sede de saber que depende de muitos outros
fatores de ordem vivencial e individual. Interessa referir que os Universos
Interiores refletem, também, essas diferenças e desfocagens.
À medida que um cidadão, animado de uma positiva curiosidade
de saber, for atualizando o seu conhecimento acerca do Cosmos, também
o seu Universo Interior irá assumir essas novas dimensões, características
e qualidades. Porém, mesmo aqueles que se situam já na vanguarda do
conhecimento e da cultura, não possuem uma conceção acabada de toda a
realidade que o cerca. Possuem somente um "bilhete" para assistir, num
lugar central, ao filme das constantes mutações do conhecimento humano
acerca do Cosmos.
A conceção científica do Universo está de facto a alterar-se
profundamente a todo o momento. Qualquer cidadão de mediana cultura,
e possuidor de alguma curiosidade, pode ter acesso fácil a uma
informação, superficial mas relativamente atualizada, sobre o evoluir das
fronteiras do conhecimento científico.
Esse conhecimento está a ser veiculado e incrementado, também
pelos media, facto que constitui exemplo duma utilização positiva dos
novos meios de informação. Um conhecimento mais aprofundado destas
questões poderá ser obtido, também com relativa facilidade, através de
bons artigos publicados, periódica ou ocasionalmente, na imprensa –
atrevo-me a citar como bom exemplo, os artigos do Dr. José Fernando
Monteiro publicados quinzenalmente, aos sábados, no Jornal de Notícias,
para além de boas obras de Autores nacionais (infelizmente ainda raros) e
de numerosas traduções estrangeiras.
87
Discurso Direto
António Durval
Assim, começa a ser corrente encontrar pessoas que já têm uma
ideia, por exemplo, das teorias do "Big Bang" e da "Expansão do
Universo".
Mesmo que essas teorias não sejam muito propícias a uma
assimilação fácil e clara, o Universo Interior dessas pessoas começa a
refletir esse novo conhecimento, essa nova visualização do Cosmos.
Leitor: – Sintetizando, poderemos afirmar, julgo eu, que cada ser
humano possui um Universo Interior tão específico, tão particular como a
sua "impressão digital". Existem imensas características ou variáveis que
definem, quer o carácter individual, quer a conceção que cada um tem da
realidade que o cerca, ou da realidade que imagina existir para além do
seu mundo percetível.
Se ficarmos por aí, pode-se vir a admitir que, afinal, os seres
humanos estão acorrentados à inamovível contingência de estarem sempre
sujeitos a uma escala de valores diferenciada, que reflete o seu grau de
instrução e cultura, a sua categoria social, a sua situação económica, etc.
Ora, isso não se ajusta ao princípio de que todos somos irmãos e filhos do
mesmo Deus.
Como vamos então conciliar estas duas realidades, aparentemente
antagónicas?
Autor: – Essa é uma boa pergunta. Acabaste de dar um exemplo
flagrante das virtualidades do diálogo. Em primeiro lugar, podemos
abordar essa questão pela vertente do conceito de justiça. No momento em
que cada ser humano vem ao mundo terá culpa de nascer num lar pobre,
onde não terá possibilidades de adquirir uma instrução mínima? Terá
culpa de herdar geneticamente taras e doenças dos seus progenitores? Terá
culpa de ser baixo ou alto, ou propenso ao álcool ou ao crime? Como se
compreende, essas e muitas outras contingências vão marcar a anatomia
qualitativa e espacial do Universo Interior de cada um.
88
Discurso Direto
António Durval
Leitor: – Eu diria mais: no exato momento do ato da procriação, ou
melhor, um bilionésimo de segundo antes da perfuração do óvulo
feminino pelo espermatozóide vencedor da grande corrida, o ainda
"projeto" de ser humano corresponde potencialmente a um ser perfeito.
Um ser ainda não marcado pela herança genética dos seus progenitores,
que, por arrastamento, inclui a de todos os seus ancestrais até chegar ao
protozoário, primeiro protagonista de vida terrena. Depois de se consumar
a fecundação, começa a sua viagem rumo a uma realidade marcada pelos
traumas de uma evolução coletiva difícil e pelo ferrete hereditário,
condições económicas e educacionais do seu lar e características sociais
da própria sociedade onde vai emergir.
Autor: – Um terrível dilema esse. Mas, cada ser humano que nasce,
é também uma promessa de luz e de esperança. Aos poucos, por maiores e
intransponíveis que pareçam os males que marcam a sociedade humana,
essa "Luz" irá desbravar mais caminho, rumo à transformação da Terra
numa verdadeira estrela do espírito.
Leitor: – Voltando ao tema do Universo Interior e a propósito da
relativamente recente teoria do "Big-Bang", gostaria de te colocar uma
questão, relacionada com uma das muitas dúvidas que possuo. Além
disso, esta questão tem algo a ver com o tal "Centro", que estamos a
escalpelizar – será que, neste momento evolutivo, o Universo terá um
centro? Será que esse hipotético centro é o lugar, o micro ponto, onde
inicialmente aconteceu o referido "Big Bang"?
Autor: – Registo a mesma dificuldade. Mas não fiques
dececionado; parece-me que ainda ninguém tem a resposta certa.
Naturalmente, um astrónomo talvez te pudesse responder muito melhor a
essa questão. Tendemos a conceber o Universo (o microcosmos e o
macrocosmos) como um exemplo de infinito. Logo é pressuposto (?) que
não terá fim e não é possível determinar o centro de algo que não tem fim.
89
Discurso Direto
António Durval
Pela mesma razão, qualquer ponto geográfico do Universo se poderia
considerar como sendo um centro!
Cautela – uma infinidade de "centros" é radicalmente diferente do
geocentrismo de Ptolomeu. Nada de confusões.
Leitor: – Parece ter existido, de facto, um momento, um micro
espaço, em que tudo começou, a partir do nada absoluto ou quase
absoluto. Uma explosão, um "Big Bang", cuja expansão ainda continua.
Autor: – Julgo que não será assim tão simples. Lembra-te que
também não é nada fácil definir um centro numa realidade caracterizada
por urna ausência absoluta de espaço, a não ser que, no momento zero do
"Big Bang", só existisse centro. Um centro de nada, contendo tudo!
Por muito tempo ainda, continuaremos às voltas com estas questões
singulares do universo, onde habita o grão de poeira que é a nossa galáxia,
e onde, por sua vez, orbita a partícula infinitesimal, que denominamos de
sistema solar.
Em contrapartida, o centro do nosso já referido Universo Interior,
mesmo reconhecendo que não é mensurável, ou suscetível de se traduzir
numa fórmula matemática, acaba por ser mais entendível, mais acessível à
nossa compreensão intuitiva. Talvez um dia a matemática também integre
o referencial "Eu".
Através do exercício de relaxamento, anteriormente proposto,
poderás tomar consciência, ou identificar a perceção desse "Centro
Universal de Consciência". Ao referenciares a projeção de todas as
sensações e conhecimentos que marcaram a tua existência até ao
momento instantâneo que define o chamado Presente, o teu "Eu" é o
espetador central de um filme, de uma superprodução, cujo título de
cartaz é o teu nome de batismo. Verificamos que és o espetador por
excelência! O único! Mesmo no centro de um imenso cinerama.
90
Discurso Direto
António Durval
Nesse firmamento, nessa esfera celeste interior, está também a tua
conceção, o teu conhecimento de todo o Universo Exterior. Daí, eu ter
utilizado a expressão "Centro Universal de Consciência".
Todos os seres humanos poderão, com mais ou menos dificuldade,
referenciar ou descobrir o seu Centro Universal de Consciência. Diria
mesmo: todo o ser vivo possui, em potência, esse centro, que será mais ou
menos consciencializado na medida do seu grau de evolução.
Julgo que já te forneci muito material para contestares, completares,
ou mesmo recusares linearmente.
Leitor: – Entendi que não devia interromper essas tuas entusiásticas
deduções. Ocorre-me, porém, fazer um comentário – não achas que a
imagem que traçaste poderá desresponsabilizar o Eu de cada um, em
relação à sua conduta para com os outros, a sociedade em geral?
Autor: – Antes pelo contrário - a visão do "filme cinerama" da tua
própria vida poderá ser profundamente pedagógica. Obrigar-te-á a fazer,
de forma altamente introspetiva, o auto-julgamento, a tua autocrítica
plena! Ficarás a saber se gostas do teu desempenho como ator principal.
Se não estás enganado no guião escolhido. Através dessa visão poderás
orientar-te no sentido de melhorar significativamente as sequências
seguintes desse filme.
Leitor: – Essa autocrítica poderá contemplar também o nosso estilo
de relacionamento e de intervenção no chamado Universo Exterior?
Autor: – Acabaste de colocar a questão crucial da Ecologia.
De facto, existe uma interação permanente entre o nosso "Universo
Interior" e o "Universo Exterior". Essa interação nem sempre é
equilibrada, nem sempre é pacífica. Se o nosso "Universo Interior" se
caracterizar pela convicção ou visão de que o Cosmos é um terreno onde
temos de exercer o nosso domínio, ou um animal que temos de domar,
91
Discurso Direto
António Durval
julgo que nessa eventualidade, estaremos a afastar-nos da sintonia ideal.
Da perfeita harmonia entre as duas realidades.
Hoje, conhecemos, infelizmente, o resultado desse trágico
entendimento do Cosmos: ar poluído, rios sem vida, florestas queimadas,
a desertificação, o efeito de estufa, o mercúrio galopante no mar, o buraco
no ozono, etc., etc. No entanto, essa trágica realidade é o espelho do que
se passa no "Universo Interior" de muitos seres humanos, que, usufruindo
de poder, não o utilizam para o bem comum. Para esses, o Outro não
existe. Para esses, só eles existem e os seus interesses imediatos. Tudo o
resto é coutada para conspurcar e destruir.
Leitor: – Este estilo de conversa informal revela-se de facto
interessante. E lá vêm mais umas tantas cerejas, encadeadas, a sair do
saco.
Ainda bem que referiste o Outro. Ia mesmo solicitar que
abordássemos a realidade crucial do Outro, do Nós, do Eles.
Desculpa, mas continuo a pensar que o conceito de "Centro
Universal de Consciência" poderá levar a admitir que só existe um Eu (o
próprio), sendo tudo o resto, (incluindo os outros Eus), reduzido a simples
sensações e nada mais.
Autor: – Agora tenho a certeza de que o nosso diálogo vai ser
mesmo interessante. Essa solidão, no centro do Universo Interior de cada
um, entendo que é só aparente. Para mim, a realidade do Outro é tão
importante como a realidade do Eu. É na simplicidade que devemos tentar
encontrar explicações para muitas questões aparentemente complicadas.
Afinal o que é o Outro? Eu faço a pergunta porque também sou o Outro.
Eu, para os meus outros, sou o Outro. Em relação, por exemplo, a ti,
Leitor, eu sou um Outro. O vice-versa, naturalmente, também é verdade.
Temos de concordar que existe uma absoluta paridade entre o Eu e o
Outro, ou o seu plural Outros.
92
Discurso Direto
António Durval
Leitor: – Desculpa interromper-te. Quando visiono o meu Universo
Interior, o Outro surge nesse firmamento como uma espécie de estrela,
que gira nesse firmamento em tomo no meu "centro". Não posso por isso
pensar que na realidade só eu existo e o resto são sensações, aparências,
que chegam de algures?
Autor: – Vamos ver se consigo expor o meu ponto de vista: É
excelente essa visão simbólica do outro, representado no firmamento do
nosso Universo Interior, como sendo uma estrela. Porém, não nos
podemos esquecer que o nosso Eu é também uma estrela presente no
firmamento dos Outros. Assim, quando afirmamos que o nosso Eu está no
centro do nosso Universo Interior, teremos, sempre, de acrescentar:
“E no firmamento do Universo Interior dos Outros".
Leitor: – Mas, como se poderá aplicar esse princípio, no caso, por
exemplo, de um náufrago que vai dar à costa de uma ilha deserta e vive lá
sozinho até ao fim da sua vida?
Autor: – Repara: o Outro está sempre presente no firmamento do
Universo Interior desse Robinson Crusoe. Se não está presente no
relacionamento direto, estará presente na recordação. Além disso, o lugar
do Outro também poderá ser ocupado diretamente por um animal, planta,
ou algo que tenha originado nele algum grau de empatia.
Leitor: – Julgo que, até aqui, conseguimos aguentar razoavelmente
os embates. Há pouco, porém, surgiu, de chofre, um estranho ponto de
interrogação na minha mente. Tão estranho e desajustado que hesito em
atirá-lo para a mesa.
Autor: – Apresenta a questão. É para isso que chegamos aqui,
depois de ultrapassarmos o tempo e o espaço. Venha lá esse ponto de
interrogação.
Leitor: – Vais-me desculpar pelo derrotismo implícito.
93
Discurso Direto
António Durval
Que utilidade prática terão estas análises, estas deduções, este,
como dizes, "filosofar naífe", que temos vindo a digerir? Alguém, algum
dia se irá beneficiar deste nosso devaneio? Ou estaremos só a gastar
tempo e papel?
Autor:– Conseguiste surpreender-me, mais uma vez. Compreendo
a tua intenção e louvo-a mesmo. É necessário nunca perder de vista uma
aplicação, minimamente realizável na vida real, das ideias produzidas!
Esta questão aplica-se também aos milhões de livros que já se
escreveram, desde que se inventou a escrita, e aos que se irão escrever.
Muitos desses livros apontaram soluções, sugeriram éticas, deram
conselhos, sempre com a melhor das intenções, sempre esperando
contribuir para a felicidade humana. No entanto, não se poderá dizer que,
mil novecentos e noventa e seis anos depois de Cristo, tenhamos
conseguido realizar mesmo um esboço do almejado Paraíso Terreno.
Quererá isto dizer que nada valeu a pena? Qual seria o panorama
deste mundo, sem essas tentativas, essas ansiedades, mesmo que utópicas?
É vulgar dizer-se: "para colher é necessário semear". Mas, se a
semente é importante, o campo onde ela cai é fundamental. Não admira: é
desse campo que vai brotar a semente e o resultado da próxima colheita.
O importante é existir uma vontade, uma pressão anímica interior que tem
de sair, que tem de se exprimir sob a forma de um livro, de uma tela, de
uma escultura, de uma mensagem ou gesto criativo. Se reprimirmos a
força que faz germinar a semente, então sim, a colheita ficará
comprometida, adiada.
Mil novecentos e noventa e seis anos depois de Cristo* não se
conseguiu realizar mesmo um esboço do Paraíso Terreno. Mas não achas
_____________
* Para a atual edição seriam cerca de dois mil e vinte e três anos.
94
Discurso Direto
António Durval
conseguiu realizar mesmo um esboço do Paraíso Terreno. Mas não achas
que esse facto confirma a transcendência da semente, que nessa remota
época foi lançada à terra? Repara: hoje, o seu objetivo fundamental, ou
seja a realização da fraternidade na terra, o Corpo de Deus, não é ainda
percetível. Ou seja: o "campo" ainda não está preparado para essa semente
germinar em plenitude. Será possível que, dois mil anos atrás, o "campo"
estivesse preparado para germinar essa semente? Mesmo quem se
posicione numa atitude religiosamente neutral, terá de concordar que a
mensagem que culminou no Gólgota não se ajusta minimamente à lógica
de qualquer calculo de probabilidades.
Leitor: – Tocaste num assunto muito importante. A mensagem:
"Ama o teu próximo como a ti mesmo" contém em si uma profunda
filosofia de vida, mas ainda hoje não é entendida. Aparentemente não
aponta nada de impossível, nada de transcendente. Nada que não se
entenda facilmente. Não diz que devemos dar a volta à Terra ou ir à Lua.
Só diz que devemos amar os nossos familiares, os nossos vizinhos, os
nossos amigos, os nossos colegas de trabalho, todas as pessoas com quem
nos cruzamos ou relacionamos no nosso dia a dia. Enfim, o nosso
próximo, o "Outro".
Autor: – De acordo. De facto, como foi possível ter surgido, dois
mil anos atrás Alguém com essa mensagem clara e simples, de tão
profundo significado e, afinal, para nós ainda tão difícil de realizar?
Se todas as "pedras" estiverem bem unidas umas às outras, toda a
parede estará sólida. Tão simples e ainda tão difícil.
Leitor: – Já agora, não me poderás dizer se, para além da tua
parede, não poderíamos adotar também a analogia com a força de atração
dos átomos entre si?
Autor: – Admito que as forças que atuam a nível do infinitamente
pequeno têm uma decisiva importância na consistência e forma de todo o
95
Discurso Direto
António Durval
Universo. A força de atração entre os átomos será excelente para
descrever, por analogia, a importância da coesão, o grau de fraternidade,
entre as pessoas. Entre o Eu e os Outros. Cometem-se frequentemente
graves atentados à pessoa humana, quer em atos violentos, quer através do
embuste e da mentira, ditados muitas vezes pela ânsia de poder e de
domínio. Ao cometerem-se essas arbitrariedades, estamos a provocar, a
nível anímico, uma verdadeira cisão atómica, que poderá colocar em
causa a solidez de todo o conjunto, adiando mais uma etapa a caminho da
realização do Corpo.
Repara: a unidade e interdependência entre o Eu e o Outro é tão
radical e inseparável, que o próprio Corpo-Humanidade não existiria sem
a junção de um Eu com um Outro: a união sexual de um homem com uma
mulher. Possuímos, (incluindo todos os outros seres vivos) características
anatómicas vocacionadas para o relacionamento do Eu com os Outros.
Para quê os nossos órgãos da fala? E os da audição? Os olhos, as mãos, os
órgãos reprodutores?
Leitor: – Antes de encerrarmos este tema, gostaria de conhecer o
que pensas sobre o enquadramento de tudo quanto foi dito até aqui. A tua
visão de conjunto abarcando todos os Eus, todos os Outros, todos os Nós,
todos os Eles.
Autor: – De facto, a visão de conjunto, do Eu, do Outro, do Nós e
do Eles, é muito importante. Trata-se de um exercício de síntese, quase
impossível, mas deve ser tentado. Sabemos que ficaremos sempre aquém
da verdade. O simples esforço da tentativa será sempre útil. Abordamos a
inter-relação entre o Eu e o Outro a partir da visualização íntima do
Universo Interior de cada um. Se fossemos capazes de visualizar
mentalmente o conjunto de todos os seres vivos, transportando os seus
Universos Interiores e os seus "centros", veríamos um espetáculo
96
Discurso Direto
António Durval
surpreendente. Essa visualização teria de ser independente da realidade
espacial exterior. A proximidade ou afastamento entre a imensidade
existente de Universos Interiores seria medida, não em distâncias, mas em
intensidade de sentimentos de atração ou de repulsa. Quanto mais
afinidade ou Amor, mais próximos. Quanto mais estranhos ou desamor,
mais afastados.
Teríamos também de visualizar mentalmente os interesses ou
características comuns a um determinado conjunto de Universos
Interiores – a família, a roda de amigos, o grupo de futebol, a associação
de bairro, seriam exemplos de pequenos conjuntos inter-relacionados e,
por sua vez, inseridos em conjuntos muito mais amplos como: a religião,
o partido, a nacionalidade etc. Finalmente, todos estes grandes conjuntos
evoluíram em tomo de um ponto central, que seria uma espécie de lugar
geométrico onde se cruzam todas as características comuns aos Universos
Interiores da Humanidade e de todos os reinos da Natureza. Um ponto só
percebido e referendado graças a um profundo esforço de
consciencialização.
Leitor: – Afinal, acabaste de descrever algo parecido com uma
visão do nosso Universo Exterior, ou melhor uma visão da nossa galáxia.
Tanto quanto eu sei, na nossa galáxia, existem milhões de estrelas,
agrupadas em sistemas solares, que, por sua vez, formam conjuntos a que
chamamos constelações, que, por sua vez, evoluem em tomo do seu
centro.
Autor: – Como já referi, penso que o conjunto de todos os
Universos Interiores não é para ser visualizado em termos espaciais, mas
em termos, digamos, sentimentais. O resultado será idêntico, mas a
motivação será diferente.
Avançando para a conclusão deste tema, direi que também existe
alguma analogia entre esta visão de conjunto e o efeito ótico que, partindo
97
Discurso Direto
António Durval
de uma situação de desfocagem de um ponto luminoso, evolui para a
focagem. Por vezes, no cinema, assistimos ao aproveitamento desses
efeitos. Aparecem, primeiramente, diversas fontes de luz difusa,
independentes mas desfocadas, em volta das quais se percebe um halo
luminoso. Curioso é o efeito de focagem lenta - à medida que o halo se
reduz e o difuso se aproxima do nítido, também todas essas fontes de luz
se aproximam, até à sua completa justaposição. No final, o efeito ótico
resume-se a um só ponto luminoso, brilhando com extrema nitidez, no
centro do ecrã!
Leitor: – E, hoje, é ainda a desfocagem que caracteriza a nossa
humanidade. Pouco a pouco, cada uma dessas centelhas, irá tornar-se mais
nítida, mais perfeita. Então, a força de atração do Amor Universal
provocará a justaposição no Centro.
98
Discurso Direto
António Durval
A alguém
que sonha
o meu sonho
e o teu
e joga ao pião
com a Eternidade.
A alguém
que pensa
o teu pensamento
e o meu
e vê pelos olhos tristes
do irmão que passa.
A alguém
que está no Centro
de ti e de mim
e das humanidades
daquém e dalém Espaço.
A alguém
que é a razão oculta da semente
levada pelo vento,
que é mar e estrela cadente,
berço e lar
da nossa alma.
A ti, também,
que és Infinito
e ainda não o sabes.
A ti, meu amor,
estendo os braços,
e o Impossível
será abraço.
99
Discurso Direto
António Durval
Como é bela a natureza quando namora.
Como é poderosa e fantástica quando se irrita.
Destrói-se a si mesma a toda a hora,
e a toda a hora se renova e purifica.
100
Discurso Direto
António Durval
VIAGEM TELÚRICA
Autor: – São Pedro do Sul é na Beira Alta e a pouco mais de cem
quilómetros do Porto. Obviamente, estou a formular um convite para,
mais uma vez, tornares assento na nave espaço-temporal da tua
imaginação e viajares até à aprazível povoação deste concelho, famosa
pelas suas termas e onde me encontro em tratamento e repouso.
Encontras-te já no interior do pequeno quarto que aluguei nesta
casa branca, semi-isolada, situada ao fundo de uma quintinha da encosta
do Vale do Vouga, a menos de um quilómetro da moderna estância das
Termas de São Pedro do Sul. O "Jornal de Notícias", comprado hoje de
manhã e abandonado desleixadamente em cima da cama, tem a data de
quinta-feira, 18 de Abril de 1996. No relógio de pulso são 15 horas e 28
minutos.
Os meus dedos percorrem o teclado do pequeno computador
portátil, instalado numa mesa de campismo, entalada entre a cama e uma
janela à direita, onde se vislumbra o verde da encosta. A persiana corrida
coa os raios do sol criando condições apropriadas para o trabalho de
processamento de texto que está a decorrer.
Ficaste a conhecer, sumariamente, as minhas coordenadas espaciais
e temporais.
101
Discurso Direto
António Durval
Agora reparo. Está quase a chegar a hora dos meus tratamentos.
Seria para mim um grande prazer contar com a tua companhia. Além
disso, mereces um pouco de descontração. Só tenho pena de que não
possas partilhar este ar puro e as puríssimas águas termais.
Leitor: – Não estava a contar com uma visita guiada a umas
termas. Deve ser interessante. Quanto ao ar puro e às famosas águas,
bom... contento-me, para já, com os efeitos positivos de uma boa autosugestão. Terei sempre a oportunidade de, um dia, experimentar ao vivo.
Autor: – Ótimo! É só desligar o portátil, meter no meu saco os
apetrechos termais, enfiar os sapatos e cá vamos a caminho da porta de
saída localizada na grande sala de estar dotada de panorâmicas janelas e
destinada ao lazer e convívio dos eventuais hóspedes. O mobiliário consta
de dois sofás, um maple, um aparelho de televisão, uma grande mesa de
pinho e respetivos cadeirões e, para quando o frio apertar, temos ali uma
ampla lareira, ao centro da parede, à direita.
Já vou a descer as escadas exteriores do andar da casa. Estamos
agora a atravessar o grande pátio, que existe defronte, coberto por uma
ramada, onde começam já a despontar folhas e rebentos. Promessas de
boa sombra para Junho e de bom vinho lá para os fins de Setembro.
Cruzamos, agora, por alguns automóveis aí estacionados pertencentes a
outros hóspedes da casa.
Como de costume a esta hora, não se vê ninguém. Os outros dois
hóspedes já foram para os tratamentos e a gente da casa foi trabalhar para
algures. Cá vamos pelo largo passeio, mesmo em frente, também coberto
de videiras, ladeado à nossa esquerda pela habitação dos donos e
terminando junto de uma espécie de oficina e duas garagens. Logo a
seguir, o caminho inflete para a direita e passa a ser em terra batida. Curva
para a esquerda e sobe até mais acima. Vou agora um pouco mais devagar,
devido à ascensão.
102
Discurso Direto
António Durval
Não resisto em admirar, com mais atenção, a paisagem envolvente.
Paro. Lá em baixo, à direita, vê-se o Vouga, bem emoldurado pela
vegetação da margem. Mais ao longe, do outro lado do rio e logo a seguir
à estrada que vai para Vouzela, vê-se um aglomerado de construções.
Algumas destacam-se pela sua dimensão e estilo moderno. São os hotéis
de construção recente, dominando a textura da urbanização turística
envolvente.
À esquerda, a encosta, ascendente, salpicada de construções, quase
todas destinadas à ocupação turístico-termal. Mais para cima, a paisagem
terrestre termina no verde escuro dos pinheiros, roçando um azul
puríssimo, onde uma nuvem alva levita em paz.
Depois deste panorâmico espraiar, reiniciemos o resto da subida. O
caminho, agora ladeado por algumas oliveiras, desemboca numa espécie
de calçada à antiga portuguesa, já do domínio público. Apesar de não
existir nenhum portão, é patente que chegamos ao fim da propriedade. A
calçada desce muito acentuadamente para a nossa direita. É por aí que
vamos seguir, com um certo cuidado devido à inclinação.
Estamos já no fim da calçada. Ao meu lado direito situa-se a
estação local dos correios e, logo a seguir, o posto de turismo. Em frente,
a ponte que atravessa o rio Vouga e dá ligação, à esquerda, para as termas
e, à direita, à estrada que vai para Vouzela.
Leitor: – E se desses uma espreitadela no posto de turismo?
Autor: – Boa ideia. É só entrar. Franqueada a porta, encontramonos, agora, numa pequena sala de receção, decorada sobriamente. A
direita, unia mesa baixa, onde se espalham alguns folhetos turísticos,
rodeada por uma cadeira e um banco corrido, tudo em pinho envernizado.
Do lado esquerdo, existe um pequeno balcão, pintado de verde, com
vitrina. Na parede, mesmo defronte da entrada, um apreciável mapa que é
103
Discurso Direto
António Durval
amplo trabalho gráfico, artesanal, onde se representam sumariamente as
zonas de interesse turístico da região.
Leitor: – Desculpa a minha incurável curiosidade. Já agora
proponho uma vista de olhos mais detalhada a esse mapa.
Autor: – É para já! Logo ao primeiro relance, uma linha azul,
sinuosa, atraiu a minha atenção. É o traçado do Rio Vouga. Os
aglomerados populacionais da Vila de São Pedro do Sul e das Termas,
assim corno todas as freguesias e lugares do concelho, estão também
representadas graficamente.
Na parte superior do mapa, dominando todo o conjunto, destaca-se
em letras gordas um nome: "Serra da Gralheira".
Por detrás do balcão existe uma porta entreaberta, donde flúi o
matraquear suave de teclas duma máquina de escrever. Espreito para o
interior. Adivinha-se um pequeno escritório. Ah! Enquadrei agora o perfil
do funcionário de meia idade, já meu conhecido. É o responsável pelo
posto de turismo. Está de facto dactilografando. Já deu pela minha
presença, levanta-se da cadeira, dirige-se para o balcão, enquanto me fita
com olhar interrogador. Vou começar naturalmente por cumprimentá-lo...
– Boa tarde. Julgo que já me conhece. Há anos que venho cá para as
Termas. Agradecia a possibilidade de me arranjar um prospeto atualizado
com os locais de interesse turístico e arqueológico da zona.
– Um prospeto? Ah! Sim Senhor! Temos este que, por sinal, foi
publicado este ano.
Abre a vitrina do balcão e retira dum maço um prospeto com fotos
e mapas da zona.
– É o que temos por agora.
– Quanto custa?
104
Discurso Direto
António Durval
Não é nada.
– Obrigado. Já agora, agradecia que me informasse acerca da
antiguidade desta ponte, aqui em frente.
– Sim, é muito antiga. O primeiro arco, do lado de lá, é o que resta
de uma ponte romana, construída há mais de dois mil anos. Os outros
cinco arcos são mais recentes. Foram construídos no século passado, mas
não sei ao certo. Têm seguramente mais de cem anos!
– Quer dizer que esse arco romano será do tempo das termas
romanas, cujas ruínas se vem ao lado da velha igreja, do outro lado do
rio?
– Presumo que sim. Aliás, para além dessas ruínas, existem por aí
restos, empedrados, de caminhos e estradas romanas. Além disso, existe
também a chamada "Pedra Escrita de Serrazes". Essa sim, é que é mesmo
antiga. Dizem que tem mais de seis mil anos!
– Seis mil anos? Uma pedra com alguma escrita antiga gravada?
– Sim, uma pedra grande com uns sulcos, uns desenhos gravados,
mas que ninguém sabe o que significam.
– Tenho que ver isso! Pode dizer-me onde fica essa preciosidade?
– Fica a Norte de Serrazes. Está aí assinalada num mapa do
prospeto que lhe dei.
–
Já vamos a atravessar a velhinha ponte de pedra, que é, ainda, a
ligação fulcral entre as duas margens e suporte de um trânsito apreciável
de pessoas e veículos.
Cheguei ao meio da ponte. Não resisto a uma paragem para
contemplar melhor a panorâmica envolvente que daqui se divisa.
A montante, destaca-se, na margem direita, o belo e novo edifício
das termas, em cimento armado e de linhas modernas. Logo a seguir,
percebem-se as ruínas das termas medievais e romanas. Do lado esquerdo,
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Discurso Direto
António Durval
vêm-se algumas instalações turísticas, como o Hotel Vouga, um "Pub" e
um parque público de estacionamento, com equipamento de lazer. Tudo
isto muito bem emoldurado por frondosas árvores, que envolvem de
fresca sombra os arruamentos marginais, onde passeiam grupos de
pessoas, enquanto outras preferem descansar nos bancos de jardim por aí
existentes. Logo a seguir às termas, vê-se um açude, que permite a
passagem de peões de um lado para o outro do rio. Mais acima, vejo as
linhas paralelas da estrutura da ponte de madeira, construída há pouco
tempo, destinada à travessia de peões.* Patos nadam em pequenos grupos,
desenhando curiosas trajetórias junto à margem próxima. Mais perto, e
fixo num afloramento rochoso que forma uma espécie de ilha, onde se
apoiam alguns arcos da ponte, vejo um letreiro onde se lê: "Estes patos
foram oferecidos às crianças das Termas".
A jusante, a paisagem é menos urbana, mas não é menos bela. Vêse, ao meu lado esquerdo, a estrada que vai para Vouzela, ladeada de um
correr de casas, onde se divisa algum comércio. Do lado direito,
pontificam a vegetação marginal, campos, as casas e seus alpendres, das
quintas espalhadas pela encosta.
Vou mirar agora o tal arco romano da ponte.
Alto lá! Cautela. Um camião vem a curvar, ronceiramente, do lado
da estrada que vem de Vouzela, e em rota demasiadamente tangencial. Uf!
Todo o cuidado é pouco. Basta reparar nas mazelas e marcas ainda
recentes no resguardo da ponte. ** Agora sim. Vamos lá espreitar o tal
arco romano. É de facto diferente dos outros, mas continua a desempenhar
bem a sua missão.
_______________
* Atualmente essa ponte foi substituída por uma outra construida em ferro.
** Agora foi construído um passadiço lateral que protege as pessoas que utilizam a ponte.
106
Discurso Direto
António Durval
Acabamos de atravessar a ponte. Logo à esquerda a velha
mercearia, onde tudo se vende e com a mais antiga cabine local de
telefone público. Dobrada a esquina, temos uma casa grande, em pedra, de
janelas sobranceiras à estrada, que se dirige para os lados do novo centro
termal, do Inatel, do parque de campismo, ou do complexo turístico do
Gerós, dois quilómetros mais adiante.
Atravesso agora essa estrada é já estou desembocando no aprazível
e cuidado Largo das Termas.
Este largo, pavimentado a cubos de quartzo branco, possui algumas
árvores de porte médio, alguns bancos de jardim, um chafariz em forma
de taça, de cujo rebordo circular esguicham jatos finos de água quente,
mesmo ao lado de dois recentes orelhões dos telefones públicos. À minha
frente (lado Nascente) está a fachada das termas antigas: um edifício do
fim do século passado, de traça agradável, onde predomina o branco da
cal, com janelas e portas emolduradas de pedra lisa. Estende-se a toda a
largura do largo, possuindo um corpo central mais elevado de dois pisos.
Estas termas foram inauguradas em 1894 pela Rainha D. Amélia, cuja
esfinge, em estuque branco, se pode ver numa parede do grande hall de
entrada. Atualmente, as antigas instalações termais estão desativadas,
funcionando aqui alguns serviços de apoio às novas termas, ou seja, a pré
inscrição e as consultas médicas dos aquistas.* Do lado direito temos o
"Quiosque das Termas" e a sua esplanada de mesas e cadeiras brancas. Aí,
algumas pessoas leem o jornal, enquanto um pequeno grupo conversa
animadamente, numa mesa ao centro. Logo a seguir, um correr de
edifícios antigos restaurados, onde também predomina o branco e a pedra.
Aí, localizam-se uma agência bancária, dois estabelecimentos de artesãos
__________
* Em 2023 já funcionavam novamente.
107
Discurso Direto
António Durval
com escaparates de bilhetes postais e outros artigos à porta, um pequeno
"pub" e, logo a seguir, separado por uma rampa ascendente que desagua
no largo em seculares degraus de pedra rematados por um velho
fontanário de vaporosa água termal, vemos aquele edifício antigo,
também recuperado, que faz esquina com a estrada que vai para Vouzela.
Aí, localiza-se um recém inaugurado restaurante de qualidade,
precisamente onde era a saudosa e típica loja-adega do Sr. José, paradeiro
de muitos termalistas, entre os quais me incluo, que apreciavam as suas
iscas, as suas sandes de fígado, as sopas, os seus vinhos e, naturalmente,
os preços.
Leitor: – Agradeço a tua descrição do local onde te encontras. Sinto
que estou realmente aí contigo nesse aprazível largo e nesse teu momento.
Mas julgo que está a faltar qualquer coisa. Falta mais paisagem humana.
Não haverá mais ninguém para além dessas pessoas sentadas na esplanada
do quiosque?
Autor: – Tens razão. Toda a paisagem só tem sentido se existir
alguém que a contemple e a usufrua. Que se integre sensorialmente nela.
Existe, de facto, um fluir calmo. Um vai, e vem, quase permanente de
pessoas. A maior parte delas são aquistas que se dirigem para os lados das
termas, ou regressam, bem aconchegadas nos seus roupões e com grandes
toalhas protegendo os ombros e a cabeça do ar exterior. Esses retornam
paulatinamente aos quartos das pensões ou hotéis onde estão hospedados.
Por vezes vê-se também uma ou outra empregada duma pensão
próxima, caminhando ligeira e bem identificada pela sua bata de trabalho
de cor azul.
Aqui, mesmo à minha frente, sentada num banco de jardim que
contorna uma árvore do largo, uma mulher de idade, caracteristicamente
aldeã, de lenço preto envolvendo um rosto bem enrugado e curtido por
uma vida de trabalhos, olha inexpressivamente para os lados da ponte.
108
Discurso Direto
António Durval
Talvez aguarde alguém, ou simplesmente esteja à espera da hora da
consulta médica.
Sento-me no mesmo banco, ao seu lado. Procuro nos bolsos um
caderno de apontamentos e uma lapiseira e começo a escrever o essencial
deste texto.
Mais tarde, quando regressar ao Porto, irei trabalhar melhor estes
apontamentos. Dar-lhes a forma.
Leitor: – Ainda vais trabalhar o texto mais tarde, noutro tempo,
noutro local? Como consegues dar credibilidade e unidade a este nosso
diálogo?
Autor: – Nessa altura só irei trabalhar a forma. O que interessa é o
conteúdo e, esse, já existe neste meu “agora”. Mais tarde, quando estiver a
rever e a passar a limpo estes rascunhados apontamentos, também será
fácil regressar mentalmente a este momento e tudo dará certo. Já o
dissemos: "– Nada é impossível à imaginação humana!"
Leitor: – E também uma boa dose de fé.
Autor: – Acreditar nalguma coisa não é só importante para a nosso
contacto. É a condição natural para levarmos a bom porto a nossa
experiência do existir. Nesse imenso oceano, precisamos sempre de uma
estrela, dum sol, duma bússola.
Agora reparo. Começo a estar um pouco atrasado para iniciar os
tratamentos. Mais uma vez, vem daí comigo!
Leitor: – Não precisas de pedir. Não tenho asas mas, para onde
fores, também irei.
Autor: – Depois de ter atravessado a grande nave envidraçada do
hall da entrada do edifício das termas, dirijo-me para as escadas de acesso
ao piso superior, onde se localiza a sala dos "narizes", como é aqui
conhecida. Pela hora, com certeza, já terei de aguardar a minha vez.
109
Discurso Direto
António Durval
Abro a porta de vidro que dá acesso à sala. Estou com sorte. Não há
fila de espera. Alguns postos de tratamento estão ainda vagos.
Coloco o meu saco no cabide cromado do bengaleiro tubular.
Muno-me da prescrição médica, da senha de tratamento e dos apetrechos
necessários (tubos de irrigação e pulverização, máscara de aspiração;
inalador cerâmico e o toalhete de plástico) e dirijo-me à monitora de bata
branca, de meia idade, simpática e já minha conhecida:
– Bom dia! Cá estou mais uma vez!
– Bom dia! Bem disposto?
– Obrigado! Não tenho tempo para a indisposição! Além disso,
hoje, venho muito bem acompanhado. (diacho! Parece que cometi um
erro, não achas?)
– Vem acompanhado?
Olha agora em redor
– Quem traz hoje consigo?
– Trago um amigo, ou melhor, trago muitos amigos e amigas...
Coloco a mão direita sobre o meu peito:
– Aqui!
– Ah! Compreendo! Saudades da família.
Indica agora uma cadeira num posto, ainda livre de irrigação nasal:
– Por favor dê-me a senha e sente-se naquele lugar... Ali.
Sentei-me. Aguardo que ela prepare o posto de irrigação nasal.
Acabou agora de encher o reservatório de água termal, devidamente
temperada e salinada. Monta a cânula de irrigação no tubo de borracha e
entrega-mo:
– Veja se está bem temperada.
Coloco na narina esquerda a cânula de plástico e abro a pequena
torneira acoplada. Sinto a água a correr para o interior das fossas nasais e
a sair pela narina direita. A temperatura está boa.
110
Discurso Direto
–
António Durval
Está ótimo! Obrigado.
Estou na terceira fase desta sessão de tratamento. Já fiz a irrigação
nasal, a pulverização à boca e garganta e agora terei pela minha frente
mais quinze minutos de aspiração com máscara. Corno sou "cliente
antigo", ocupei voluntariamente este lugar que estava vago.
Como também já sei como se procede não espero que a monitora
venha regular o débito da pulverização e nível de vapor. É só colocar a
máscara no bocal do suporte cerâmico fixo ao tampo de mármore e
regular convenientemente o manipulo lateral.
– Já está!
Reparo que, ao meu lado direito, está sentada uma jovem trajando
um fato de treino branco. Está de olhos fechados, muito concentrada no
seu tratamento e na música que lhe chega aos ouvidos através de um par
de auscultadores, cuja mola-suporte abraça os seus lindos cabelos
doirados. Bom, nada de distrações, vamos ao que interessa: ao tratamento,
propriamente dito.
Leitor: – Por mim está à vontade. Não precisas de conter qualquer
comentário que entendas livremente fazer. Só são válidas a sinceridade e a
verdade. O tempo da censura e do preconceito já acabou.
Autor: – Nunca coloquei isso em causa. É por isso mesmo que não
tenho nada mais a dizer acerca da jovem que está aqui ao meu lado. Acho
somente que merecia o interesse de um pintor ou fotógrafo que registasse
a sua beleza, a sua pose descontraída, a sua harmonia. O belo é para se
apreciar; para se contemplar, para se amar. Nunca para se adulterar,
conspurcar, amarfanhar, destabilizar.
Leitor: – Já entendi. Respeitemos o que merece respeito e
cultivemos o prazer puro pelo Belo! Podes prosseguir.
111
Discurso Direto
António Durval
Autor: – Sinto urna sensação de paz e calma profundas a tomar
conta de mim. É o efeito relaxante destas águas. É chegado o momento de
iniciarmos a nossa "Viagem Telúrica".
Leitor: – A nossa "Viagem Telúrica"? Queres dizer que também
vou contigo?
Autor: – Não estou a entender. Ainda há pouco dizias: "– para onde
fores, também irei." Além disso um convite só pode ter uma leitura, uma
interpretação. Não percamos tempo, descontrai-te o mais que puderes.
Sente a paz, o profundo efeito relaxante destas águas maravilhosas. Vem
daí!
Leitor: – Começo a sentir - essa paz. Começo a estar pronto para te
acompanhar.
Autor: – Ótimo! Regulo agora o manípulo que controla o fluxo da
pulverização vaporosa que chega ao bocal de aspiração. Consegui o fluxo
adequado. Sinto o afago dos milhares de gotículas da água sulfurosa
batendo nas mucosas da garganta e do nariz. Fecho os olhos e
descontraio-me ainda mais. É agora que entra a Imaginação...
Sou agora uma gotícula de água. Impelido pela força da
imaginação, vou percorrer, contra a corrente, a trajetória inversa desde a
minha garganta até às profundezas da Terra.
Estou já a ver o interior da tubagem de paredes lisas por onde flui,
continua e rapidamente, uma corrente límpida de água muito quente.
Depois de evoluir através de muitas retas, curvas e ângulos retos, reparo
que o "túnel" cilíndrico se alargou consideravelmente e que as suas
paredes adquiriram uma textura diferente.
O percurso é longo e a progressão parece mais difícil, face ao
aumento da pressão da água e da sua temperatura.
112
Discurso Direto
António Durval
O cenário mudou radicalmente. Já não há paredes lisas nem
continuidade cilíndrica. Agora é o caos formidável das formas fractais
duma abertura natural na rocha. É a entrada da fonte termal, donde
emerge, empurrada pela ira de Vulcano, esta energia telúrica, aquosa,
imparável. Iniciamos verdadeiramente a viagem.
Prossigo através dos meandros da falha rochosa e escaldante. A
água passa por mim em borbotões ascendentes.
A luz do Sol não chega aqui. Temos de recorrer a mais um atributo
da nossa imaginação para ver nesse quente e quase absoluto negrume.
Sem vacilar, vamos penetrando cada vez mais no interior da Terra. A
temperatura vai aumentando à medida que se processa a descida. Tento
divisar a textura da parede de rocha, suas cores, suas formas,
incrivelmente variadas e suavizadas por milhões de anos de íntimo
convívio com a corrente sulfurosa.
Encontro-me já a uma enorme profundidade. O calor agora é
mesmo infernal. Grandes massas de água fervem violentamente em
cavernas, transformadas em autênticas caldeiras naturais. Oh! Maravilha.
Leitor: – Que foi? Que está a acontecer?
Autor: – Por favor não me interrompas. Já não estou a imaginar. A
minha mente já não gera imagens com material imaginativo próprio.
Sinto-me lá nas profundezas. Recebo uma imagem exterior a mim mesmo.
Chegou de repente, sem aviso, como uma emissão dum "flash"
instantâneo. Vou tentar descrever. Vejo o teto côncavo de uma caverna. Aí,
salientam-se numerosas formas semi-esféricas esbranquiçadas, ou
nódulos, duma substância mineral, que não sei identificar. Estes são
continuamente batidos pelo vapor e pelas convulsões violentas da água
fervente. Não encontro as palavras certas para descrever a sensação deste
momento. Só me ocorre esta palavra – maravilha!
113
Discurso Direto
António Durval
Agora a "visão" começa a diluir-se lentamente. Resta-me o consolo
de poder revê-la, mentalmente, sempre que o deseje. Jamais se apagará da
minha memória.
Continuo a sentir uma grande sensação de Paz. Começo, porém, a
pensar no regresso.
Lentamente, deixo-me empurrar pela água ascendente. A breve
trecho, começo a fazer o percurso inverso. A ascensão é cada vez mais
rápida. Agora é mesmo estonteante.
Curioso! Ouço ao longe uma música muito bela – parece
acompanhar-me. Mas... Conheço esta música! É, sem dúvida, uma
composição de J. Sebastião Bach. Não poderia desejar melhor
complemento para esta viagem de regresso. A surpresa e o encantamento
são enormes. Que estará a acontecer? Quem enviou esta música neste
momento crucial?
Abro os olhos. Estou novamente no meu posto de tratamento. Mas
deixei de ouvir a música... Não! Ainda a oiço! Mais longínqua, é certo,
mais distante, mas ainda a oiço!
Olho à minha volta... Ah! Os meus olhos acabaram de pousar nos
auscultadores da minha loira vizinha. Sim! Não há dúvida. É dali que flui
a etérea música de Bach.
Leitor: – Então, estando tu mais perto, ouves a música mais
distante, menos percetível?
Autor: – É realmente curioso, mas há uma explicação: o aumento
da acuidade dos nossos sentidos, quando se atinge um nível elevado de
descontração, de relaxe.
Leitor: – Depois desta nossa "viagem telúrica" ocorre--me colocarte a seguinte questão: a interdependência entre o Homem e a Terra é
óbvia, mas ainda não possuímos uma consciencialização plena dessa
114
Discurso Direto
António Durval
realidade. O nosso corpo é inteiramente constituído por substâncias que
provém, direta ou indiretamente, da biosfera terrena, que, por sua vez,
depende dos materiais e substâncias da crusta, hidrosfera e atmosfera
terrestres. A maior parte dessas substâncias passa por uma fase prévia de
transformação biológica antes de ser assimilada pelo nosso corpo. Não
nos alimentamos de granito, de barro, ou de lousa e muito menos de
pirites de ferro ou de diamantes. Todas as substâncias dos alimentos que
chegam à nossa boca fizeram previamente parte de seres viventes, quer
vegetais, quer animais. Até o vital oxigénio é processado na fotossíntese
das folhas das plantas.
Autor: – Curioso! Já ouvi ou li algo muito semelhante, há muito
tempo. Já sei! Vieram-me à memória palavras de D. António Ferreira
Gomes, Bispo do Porto que numa das suas brilhantes intervenções, teceu
as seguintes considerações, que se ajustam como uma luva ao que
acabaste de afirmar:
"...O homem, cada homem, é uma vontade, uma liberdade, uma
personalidade a emergir duma matéria, dum determinismo, duma prisão
corpórea. Poderíamos dizer que o homem é uma alma que se alimenta de
terra. É esta a hierarquia, a ordem e a finalidade da Criação: o mineral
torna-se vida na planta, a vida torna-se conhecimento no animal e o
conhecimento torna-se consciência no homem, e todo este processo
ascensional é feito de ação e reação, de mortificação de morte: morre o
cristal para ser vida no vegetal, morre o vegetal para ser conhecimento
no animal, morre o animal para alimentar o homem, a consciência." *
___________________
* Excerto do seu livro "Endireitai as Veredas do Senhor" (intervenção por ocasião do
centenário do bispo D. António Barroso)
115
Discurso Direto
António Durval
Antes que me esqueça, desejava colocar-te uma questão que me
ocorreu: podemos, então, afirmar que uma alimentação basicamente
composta de vegetais nos aproxima mais da Mãe Terra. As substâncias
nutritivas de origem vegetal percorrem um caminho muito mais curto
entre o mineral inerte e o nosso corpo, não é verdade?
Leitor: – Sim. Gostei do excerto da homilia desse bispo notável. A
sua visão da íntima correlação do concreto natural com realidade
espiritual do homem é, de facto, exemplar.
Aplaudo o teu raciocínio em prol duma alimentação rica em
vegetais. Talvez esteja nessa circunstância a justificação dos benefícios
para a saúde, associada ao consumo de vegetais, tão recomendado pelos
naturalistas.
Mas, dizia eu...
Autor: – Dizias que não nos alimentamos diretamente de granito,
de ferro, de diamantes, mas das suas transformações biológicas. Também
quero lembrar-te que ainda estamos na sala dos "narizes", aqui nas Termas
de S. Pedro do Sul.
Leitor: – Descansa. Não me esqueci.
Autor: - Aliás, informo-te de que cheguei ao fim desta fase do meu
tratamento. Esperam-me trinta minutos "obrigatórios" de repouso.
Vamos sentar-nos ali, numa cadeira do hall, onde, naturalmente,
continuaremos o nosso diálogo.
Leitor: – Ótimo! Então, vou prosseguir:
Existe uma situação em que a relação do corpo humano com a Mãe
Terra é ainda mais direta do que alimentação com vegetais, ou seja,
aproxima-se de urna relação autotrófica. Refiro-me exatamente aos
tratamentos com água termal. Nesses tratamentos o contacto, íntimo e
116
Discurso Direto
António Durval
longo, do nosso corpo com essas águas, que brotam virginalmente das
profundezas da Terra, permite uma assimilação direta de minerais, que
provêm das proximidades do manto terrestre. Neste tratamento o nosso
corpo relaciona-se com a realidade física e primitiva da Terra, muito
próxima da pureza que existe no Sol.
Autor: – Sim! Permite essa relação direta, apesar de
necessariamente muito suave e distribuída ao longo de um dilatado
período de tempo. Trata-se de um tipo de relação muito diferente da
alimentação, seja ela à base de produtos vegetais ou animais, cujos efeitos
de assimilação e de transferência de energia são quase imediatos. O
relacionamento termal não visa a alimentação do nosso corpo, mas um
resultado positivo e duradouro, a nível da sua saúde e da sua purificação
global.
Aqui, no hall de repouso, vários aquistas esperam como eu, que
termine o período de pausa, prescrito pelo médico. Uns conversam, outros
leem, outros simplesmente dormitam.
Ali, à minha frente, um jovem de fato de treino cinzento e boné
desportivo na cabeça lê uma revista que não consigo identificar. No
entanto, diviso, na página voltada para o meu lado, uma bela foto, a cores,
do planeta Terra. Noto perfeitamente as manchas azuis dos oceanos, as
convulsões espiraladas das nuvens e superfícies frontais e as manchas
castanhas e pardas dos continentes. Trata-se de uma foto de boa resolução,
tirada naturalmente dum satélite artificial, tripulado ou não.
No meu tempo é vulgar verem-se fotos ou mesmo filmes da Terra
em corpo inteiro. Quando olhamos para uma dessas fotos a maioria das
117
Discurso Direto
António Durval
vezes não nos apercebemos ou não nos lembrámos de que naquela "bola",
predominantemente azul, algo de incrivelmente complexo está a acontecer
a todo o momento. De facto, àquela distância, são radicalmente invisíveis
os biliões de seres que constituem a humanidade, assim como toda a
espécie de seres vivos que existem à superfície dos continentes, ou na
profundidade dos oceanos. Invisíveis serão igualmente os dramas e as
convulsões sociais ou políticas, que estão a ocorrer a todo o momento na
pele finíssima daquela espécie de ser esférico. O mesmo já não se poderá
dizer de certas manchas, estranhas, que alastraram em zonas, onde a cor
verde era a predominante.
Leitor: – Desculpa interromper-te, mas ocorreu-me agora uma ideia
correlacionada, que gostava de expôr – o avanço das ciências
astronómicas permitiu perspetivar uma teoria, com uma apreciável
probabilidade de certeza, acerca da formação do nosso planeta, há biliões
de anos atrás. É quase certo que a Terra se formou a partir do
arrefecimento lento de massas ígneas, que se foram solidificando e
orbitando em redor do Sol. Poderíamos espraiar em longas considerações
sobre o que se passou anteriormente, ou seja, a previsível fase dum
preliminar estado gasoso do material terrestre. Porém, para o que pretendo
demonstrar, basta-nos a convicção de que o nosso planeta natal, um dia,
foi constituído por essas massas ígneas, ou seja, por materiais em estado
de fusão. Naturalmente, já viste metal em fusão, ou algum filmedocumentário de uma erupção vulcânica, mostrando um rio de lava a
escorrer pela vertente de uma montanha. Quando observas uma dessas
situações, não te ocorre que foi a partir de uma situação idêntica que
nasceu toda a realidade que tu conheces? Ou seja, não pensas que a
civilização humana e a vida natural em que ela se processa advém do "
barro bíblico" fonte simbólica da Vida?
118
Discurso Direto
António Durval
Não compreendo muito bem por que razão os cientistas, referindose a certos planetas, quer do nosso sistema solar, quer de outros sistemas
continuam a afirmar que nos planetas "X" ou "Y", provavelmente, não há
vida. Para mim, o correto seria afirmar que, no nosso tempo esses planetas
provavelmente, ainda não possuem "vida manifestada". Quanto à "vida
latente", essa, existe, mesmo nos gases da fornalha solar.
Autor: – Interessante até onde nos podem levar as consequências
da nossa viagem telúrica de há pouco. Interessante a lógica e a ligação
intima de tudo isto.
Proponho que regressemos à pele deste planeta que é a nossa casa.
Regressemos à Mãe que um dia germinou o protozoário, que continha os
genes de todos os seres que povoam e constituem a sua pele viva.
Regressemos ao ser a quem alguém denominou um dia de "Maia", e que
luta desesperadamente para que as células, destinadas a ser a consciência
dum Todo, descubram a sua missão e seu destino transcendente.
Regressemos ao hall de repouso da sala dos "narizes".
Leitor: – Já que regressamos à Terra, proponho agora uma pequena
viagem ao microcosmos que é o corpo humano. Uma realidade que é, em
última análise, o propósito que anima toda essa gente a procurar o lenitivo
depurador dessas puríssimas águas.
Como já dissemos, o nosso corpo é constituído por materiais que,
direta ou indiretamente, provêm do nosso planeta. Se fosse possível
filmar, o complexo processo que integra a alimentação, assimilação,
rejeição, e a sua transformação em células, assim como, o ciclo de vida e
morte destas, e se depois projetássemos, em escassos minutos, a filmagem
119
Discurso Direto
António Durval
efetuada hora a hora, dia a dia, ao longo de toda a vida desse corpo,
veríamos um espetáculo extremamente curioso e fantástico.
Autor: – Suponho que veríamos algo de parecido com certos
efeitos especiais, que por vezes o cinema ou a televisão apresentam, como
a projeção acelerada do trânsito do centro de uma cidade moderna, onde
as ruas, à noite, mais parecem rios caudalosos de luz e, de dia, águas
revoltas a escorrerem vertiginosamente por entre os edifícios.
Leitor: – Isso mesmo! Suponhamos que um realizador
cinematográfico aplicava essa técnica de filmagem para o objetivo que
referi. Que veríamos?
Atribuindo a esse corpo uma certa transparência, para
visualizarmos o que se passa também no seu interior, e retirando tudo o
que seja cenário envolvente, exceto a curvatura do planeta Terra, creio que
assistiríamos a algo como isto:
Começaríamos por ver uma espécie de forma ovoide, turbulenta,
recebendo uma intensa corrente de materiais partindo de diversos pontos
da curvatura da terra. Após muitas mudanças de trajetória, aspeto e cor,
vê-la-íamos convergir para um ponto situado na parte superior do dito
"ovo".
Autor: – Entendi perfeitamente. Essa corrente é a visualização
acelerada das substâncias alimentares, partindo da sua primeira origem, a
– Terra – e terminando na entrada bocal desse corpo. Só não entendo a
razão do corpo ser representado por uma forma ovoide.
Leitor: – Se imaginares o movimento vertiginoso dos braços e das
pernas de um corpo humano, verás algo parecido com um ovo.
Autor: – Não percas mais tempo, já entendi.
Leitor: – Enquanto essa corrente flui, continuamente e em
velocidade, da superfície terrestre para a entrada bocal, outra corrente
idêntica se estabelece, do interior do "ovo" para o exterior, através da
120
Discurso Direto
António Durval
saída retal. Assim, fecha-se um ciclo de transferência contínua de
materiais entre a Terra e o corpo e vice-versa. Será um espetáculo curioso,
fantasmagórico, irreal, mas representa, aceleradamente, o que se passa.
À medida que o tempo for decorrendo, veremos o pequeno "ovo"
crescer até se estabilizar no tamanho adulto. Depois, poderemos começar
a notar algum decréscimo da intensidade dessa corrente. A aparência
ovoide passará a ser mais imprecisa, podendo até alternar com a visão
momentânea da forma humana real.
Autor: – Desculpa! Vamos lá a ver se estou a entender: toda essa
sequência do filme diz respeito ao crescimento do corpo até à fase adulta.
Depois, quando a velhice se aproxima, o movimento é cada vez menor e
até poderão ocorrer longos períodos de doença, ou seja, de imobilidade.
Daí que o ovo aparente se deforme e, por momentos, possamos ver o
corpo real. Certo?
Leitor: – Certíssimo!
Até que, em determinada fase, não há mais "ovo", mas só corpo,
bem estendido e imóvel, e situado, agora, ligeiramente abaixo da
curvatura da Terra.
Autor: – E se o filme continuar, veremos esse corpo a diluir-se
continuamente na cor castanha da terra até, desaparecer totalmente.
Leitor: – Aí fecha-se o ciclo!
Autor: – Não! Fecha-se um ciclo! Porque, logo outro se inicia ao
lado.
Leitor: – Melhor ainda: – Outros, muitos outros, se iniciam e
muitos outros terminam, em toda a circunferência da Terra.
Autor: – Naquele globo azul, cuja foto ainda estou a ver na revista
que o jovem lê. Passa-se qualquer coisa.
121
Discurso Direto
António Durval
Autor: – Deixei, há cerca de quinze minutos, o meu carro
estacionado na estrada que vai para o lugar do Freixo, a norte de Serrazes.
Acabei de percorrer, sozinho e a pé, um relativamente longo e luxuriante
caminho florestal, com meandros quase labirínticos, ladeado de arbustos
de médio porte, cujos ramos, por vezes, tive de afastar para o lado, para
poder avançar. Foi interessante essa caminhada, onde nem faltou uma
agradável pré-sugestão de aventura e mistério.
Antes de vir, o tempo ameaçava chuva. Providencialmente, cerca
das dezasseis horas melhorou. Foi então que resolvi satisfazer a minha
secreta e incontida curiosidade, até porque este era o meu último dia de
permanência nas Termas de São Pedro do Sul.
E a famosa pedra está ali, finalmente, defronte de mim!
Coberta por um alpendre de proteção, lá está ela, com os seus dois
metros e tal de altura, brotando do solo numa forma arredondada, e
possuindo uma face quase plana e vertical. Um verdadeiro rosto que
parece querer comunicar comigo.
Leitor: – Não sei se é abuso da minha parte mas, já agora, podias
descrever sumariamente essas gravuras?
Autor: – Tenho pena de não possuir conhecimentos arqueológicos.
Gostaria muito de, para além da descrição que me pedes, poder transmitir
algum tipo de interpretação ou de informação complementar acerca
daqueles sinais. Limitar-me-ei, contudo, a utilizar as ferramentas que a
Natureza me deu, ou seja: os olhos, a mente, a intuição e, talvez, uma
pitadinha de imaginação:
Sobressaem, ao meu lado direito, três conjuntos de círculos, com
diâmetro máximo de cerca de trinta centímetros. Cada conjunto possui
três círculos interiores concêntricos. Do conjunto mais à direita saem três
formas parecidas com gotas levemente circulares, caindo ou destacandose desse conjunto. Do espaço existente entre os outros conjuntos de
122
Discurso Direto
António Durval
círculos, pende algo semelhante a uma escada de corda. Todo o espaço à
esquerda e na parte superior da referida face é preenchido por linhas que
se cruzam, fazendo lembrar uma rede irregular. Parte dessa rede desce, no
lado esquerdo, quase até ao sopé da rocha.
Leitor: – Sugeriste semelhanças como "gotas", "escada de corda",
"rede", mas, provavelmente, quem um dia gravou esses sinais, poderia ter
a intenção de representar algo muito diferente.
Autor: – Não sei se alguém já decifrou o significado concreto
destas gravuras, ou mesmo se, algum dia, o poderemos fazer com
precisão. Não me vou, porém, preocupar com isso.
Continuo a olhar. Sinto uma sensação estranha, quase subliminar,
de que não é primeira vez que vejo esta pedra, estas gravuras. Mas
quando? em que circunstâncias?
Impelido por uma motivação instintiva, aproximo-me daquela
"face" escrita. Os meus braços abrem-se num amplexo, tentando abarcar
toda a pedra. As minhas mãos e meus dedos tateiam, lenta e suavemente
aqueles sulcos.
É tão familiar, tão familiar, como se a mensagem escrita existisse
dentro de mim desde que nasci.
Sinto agora uma espécie de vertigem, uma sonolência...
Que está a acontecer? Tudo rodopia à minha volta.
Resta-me sentar aqui no chão, encostado à pedra escrita.
Não ouço os pássaros, está a escurecer.
Estou tão longe de tudo. Longe, longe.
123
Discurso Direto
António Durval
(INTERREGNO)
Leitor: – Que te aconteceu? Onde estás?!
Onde estás? Responde! Acorda!
Autor: – O quê? Ah!
– Que estou a fazer aqui, meio tombado, junto à pedra?
Uf! Parece que adormeci!
Leitor: – Adormeceste? Curioso...
Autor: – Imagina. Adormeci mesmo! Agora me lembro. Tive
também um sonho!
Leitor: – Um sonho?
Autor: – Sim, um sonho, e muito estranho!
Leitor: – Conta lá o que te aconteceu.
Autor: – Se te contar, de certeza que não acreditas. Foi tão
fantástico, tão maravilhoso! Tão real!
Leitor: – Estou "em pulgas"... Desembucha!
Autor: – Imagina que já sei quem fez estas gravuras. Quem, com
persistência e teimosia, pegou num estilete de sílex e começou
pacientemente a gravar estes sinais na rocha. É como te digo. Quer
acredites ou não, acabei de conhecer pessoalmente o autor destas gravuras
e a motivação da sua mensagem.
Leitor: – É curioso, eu... Continua a narrar o teu sonho.
Autor: – Não foi um sonho. Estive mesmo aqui, naquela época,
seis mil anos atrás.
124
Discurso Direto
António Durval
Leitor: – E viste o artista que desenhou na pedra essas gravuras?
Viste-lhe o rosto? Inquiriste-o acerca do significado destes sinais? Da sua
mensagem?
Autor: – Não! Não lhe vi o rosto. Só vi as suas mãos rudes,
rasgando a pedra com um duro estilete. Havia força e determinação
naqueles gestos precisos, ritmados. A determinação necessária para
arremessar uma mensagem, um grito, até aos confins dos tempos.
Leitor: – Só lhe viste as mãos e conheceste-o?
Autor: – Sim! Conheci-o. Eram as minhas próprias mãos! Era eu
quem estava ali, animado de uma enorme força interior, transmitindo a
mensagem que há muito estava dentro de mim. Essa mensagem tinha de
ser enviada. Tinha de partir para o seu destino. Essa mensagem era a razão
principal da minha vida e de todo o clã a que eu pertencia. A nossa luta
pela sobrevivência, num meio difícil e por vezes hostil, tinha como razão
de ser aquela mensagem. Ao rasgar na pedra estes sinais, acendi um farol
perpétuo nas margens do tempo. Um farol que ficou a assinalar a nossa
passagem, o nosso rastro existencial.
Leitor: – Foste tu quem gravou aqueles sinais há seis mil anos? E
estás agora a receber a tua própria mensagem?
Autor: – É verdade. Eu bem dizia que não ias acreditar!
Leitor: – Estás enganado! Acredito.
Autor: – Acreditas?
Leitor: – Enquanto narravas o teu sonho emergiu à minha memória
a recordação dum sonho que também tive em tempos. Na altura não soube
minimamente decifrar o seu significado. Agora, porém, fez-se uma luz
plena!
Autor: – Curioso. Também sonhaste?
Leitor: – Não foi bem um sonho. Seria mais correto dizer que
também estive aqui neste sítio, há seis mil anos.
125
Discurso Direto
António Durval
Autor: – Não acicates mais a minha ansiosa curiosidade. Conta,
conta como foi...
Leitor: – As minhas rudes mãos, impelidas por uma incontida força
anímica, escavaram na pedra, com segurança e firmeza, um sulco curvo,
em forma de gota.
Agora sei! Era uma lágrima de esperança!
126
Discurso Direto
António Durval
Naquele dia,
falei,
falámos,
dos sonhos,
das esperanças,
das penas sofridas,
dos mundos a construir,
das barreiras a transpor
e da Paz esquecida.
Falei,
falámos,
e descobrimos que chegamos
por trilhos diferentes,
desiguais vivências,
por outras alegrias
e tristezas
temperados.
E descobrimos também:
a fadiga,
a ânsia de contar
como lhe resistimos;
e o prazer,
da troca irmã
do ser
que o tempo esculpiu em nós.
Aconteceu!
Gastam-se milhões
em telescópios,
antenas, radares, foguetões,
à procura de um solitário bip-bip,
127
Discurso Direto
António Durval
inteligente,
na ânsia de um contacto,
de uma prova real,
concludente,
doutros sentires,
no espaço sideral.
Naquele dia,
dois mundos entraram em vibração,
em sintonia,
dois universos se conjugaram,
se comunicaram,
sem eletrónica,
sem tecnologia.
Aconteceu Mar
nos olhos luz
naquele dia!
128
Discurso Direto
António Durval
A Noite
As estrelas eram seus olhos.
A Lua prateada o sorriso.
A brisa suave, sussurrando nas folhas,
finos dedos, ensaiando carícias.
Tentação, disfarçada de noite.
Disponibilidade espontânea e pura,
abraçando o seu manto,
a alma ávida de encontro.
Enquanto as estrelas revolviam
as entranhas incandescentes
num aceno cintilante,
perdi-me nos seus braços,
o insondável espaço,
e baloucei, num beijo interminável,
nos seus argênteos lábios.
O tempo parou.
Foi uma Eternidade;
completa, correspondida, total,
num instante Universal!
129
Discurso Direto
António Durval
Momento
Lázaro o chamaram,
Lázaro foi,
naquela aventura,
no Azul,
na Paz,
no mistério.
Lázaro na noite,
Lázaro na sombra,
Lázaro à espera
do momento Eternidade,
do momento Luz,
do silêncio palavra,
que trespassa as fronteiras
desta realidade.
E no momento,
no momento preciso,
a floresta aquietou,
os grilos calaram,
o pirilampo piscou,
e Lázaro, suspenso
na sombra da noite,
o medo esqueceu.
E no momento,
no momento preciso,
as estrelas vieram,
lá do alto,
com muito Amor,
falar do Universo,
do pirilampo
e da flor.
130
Discurso Direto
António Durval
131
Discurso Direto
António Durval
Desenho de Anabela Maria
DO ALTO DA COLINA
Dezoito
horas e trinta. Iniciam-se os gestos do ritual, que
regularmente vai acontecendo aos domingos à tarde - um "kispo" que se
veste; binóculos a tiracolo; lanterna no bolso; senhas para o autocarro; um
132
Discurso Direto
António Durval
bloco de apontamentos, uma esferográfica, um beijo, um até logo e a
caminho, para mais uma peregrinação ao "sítio".
Ao aproximar-se da paragem, defronte da Igreja Matriz de São
Mamede de Infesta, a nostalgia do Azul dilui-se com a euforia da
aventura. O "encontro" começa já a esboçar-se.
O autocarro, quando chega, vem cheio. Quando parte, mais cheio
vai.
A princípio sente-se contrafeito no aperto. Receia também dar nas
vistas. A diferença dos propósitos é tão abissal. E depois, a caixa dos
binóculos a tiracolo. Não, possui nem um gesto ou olhar de estranheza.
Uns seguem descontraídos, no seu tagarelar destravado. Outros, imersos
nos seus problemas, vão calados e distantes. Outros ainda dormitam.
Todos balanceiam, amarrados, ao ritmo descompassado do andamento e
dos solavancos provocados pelas mazelas da estrada. As faces quase se
tocam, tal o aperto. São rostos humanos, expressivos, de mulheres, de
homens, de crianças, de jovens, ou de velhos. O autocarro 61 transporta
para Valongo uma amostragem real da humanidade.
O seu inconsciente capta um mundo de impressões subjetivas,
numa espécie de "flash" psíquico. Sente a alegria ou a amargura que
emana daqueles rostos. Capta a maneira essencial de ser de cada um. E os
olhos? Ah!... Os olhos! Revelam um universo insondável, nus,
sinteticamente, definidor da pessoa.
Apercebe-se da grande unidade que cimenta a diversidade de
sentimentos, preocupações e experiências de vida que o rodeiam. A
viagem de autocarro é sempre uma nova lição. Um renovado rito de
preparação para o "encontro".
O autocarro vai avançando, ficando cada vez mais perto do seu
destino, cada vez mais vazio e silencioso. Imagina-se pairando por cima,
vendo-o avançar através do tracejado de néon, que ladeia a estrada.
133
Discurso Direto
António Durval
A Formiga ficou já para trás e o autocarro começa a subir o Monte
de Valongo. Levanta-se e toca a campainha para sair na próxima paragem.
O autocarro para. Ele aguarda que a porta se abra e sai mergulhando no
silêncio da estrada deserta. A escassa iluminação pública permite-lhe ver
melhor o firmamento: a cúpula do templo que, mais uma vez, irá ser o seu
local de recolhimento.
Inicia a marcha pela berma da estrada. Acelera o passo, pois tem
ainda de percorrer duas centenas de metros, no sentido inverso do trajeto
do autocarro. Sabe que deve reduzir ao mínimo as probabilidades de
algum encontro indesejável. De longe a longe, um carro passa rente e
segue até deixar de se ouvir o seu sussurro motorizado. Imagina a
surpresa dos condutores quando se apercebem da sua presença.
"– Que andará aquele tipo a fazer neste deserto a esta hora?"
Sem abrandar a marcha cadenciada, chega finalmente ao local
onde irá sair da estrada. À sua esquerda, a parede agreste do talude
desapareceu e o terreno da encosta da colina desce suavemente até à
berma da estrada. Aí, no meio da penumbra, é ligeiramente percetível o
início do pedregoso carreiro que o levará até ao cimo. Nem precisa de
acender a lanterna. Conhece todos os altos e baixos do trilho e vai
avançando, calmamente, mergulhado na segurança da escuridão que o
envolve. Além disso, tem ainda de percorrer cerca de quinhentos metros,
sempre em ascensão, antes de chegar ao cume. Por vezes, o mato
atravessa-se e dificulta a progressão, mas tudo isso é resolvido com alguns
pequenos arranhões. Quando chegar ao seu destino, será plenamente
recompensado.
Acabou de sair da zona de mato. A partir de agora, a subida é mais
íngreme, mas em terreno aberto. Mato rasteiro, urzes, leitugas e erva
serpão, bordejam o caminho. Finalmente chegou ao cimo, bem definido
pelo marco geodésico implantado no alto.
134
Discurso Direto
António Durval
Uma sensação de imensa paz e plenitude fé-lo abrir os braços, num
gesto de saudação ao magnífico esplendor que dali se vê em todas as
direções. No Céu o firmamento, límpido e coalhado de estrelas, era visível
em toda a sua máxima extensão. A terra dir-se-ia um espelho desse mesmo
firmamento, tal a profusão de luzes urbanas que se estendiam como um
tapete, desde o sopé da colina, em todas as direções:
A sul, os milhares de luzes da cidade do Porto, estendendo-se até às
altaneiras margens do Douro, recortadas a negro, mais ao longe. A Poente,
um tapete de brilhantes, até roçar o horizonte do mar.
Nesse tapete notou um aglomerado mais denso de luzes, para os
lados de Matosinhos. Para confirmar a sua suspeita, tirou os binóculos da
caixa e focou-os naquela direção. Não!... Não havia dúvida! Aquelas eram
as luzes da Avenida do Conde, onde entrara no autocarro, cerca de uma
hora antes.
A norte, viam-se distantes, as nuvens de luzes de Ermesinde e, a
nascente, muito mais perto, lá no fundo, as de Valongo.
Circundou lentamente o marco geodésico, quase sempre de cabeça
erguida, olhando contemplativamente o firmamento. Lá estava a Via
láctea, com o seu polvilhado de luz. Lá estava a Ursa Menor com a Estrela
Polar, a Ursa Maior, e, mais a poente, o brilhante planeta Vénus. É altura
de se acomodar.
Há três sítios diferentes com algumas condições para se sentar em
recolhimento e registar os pensamentos que eventualmente surjam. Um
desses sítios é no cimo do próprio marco geodésico, encostado ao seu
cone superior de cimento, de forma a ficar protegido da aragem fria. É
para lá que se dirige.
Nessa altura, repara em algo estranho, uma pequena sombra
encostada ao sopé do marco. Pela primeira vez utiliza a lanterna para ver
melhor. Entalada entre duas pedras, está uma pequena cruz, formada por
135
Discurso Direto
António Durval
dois galhos de árvore amarrados com um cordel. Em cima das pedras há
fuligem e vestígios de cera derretida. Alguém estivera ali, anteriormente,
procedendo a qualquer ritual. Alguém conhecia também aquele sítio e o
seu sortilégio.
Imaginara que um dia talvez encontrasse, lá em cima, alguém
animado de propósitos idênticos aos seus. Seria um encontro importante:
um verdadeiro "encontro imediato do primeiro grau".
Olhou mais uma vez o firmamento e, quase sem querer, a oração ao
"Pai" fez vibrar suavemente os seus lábios. Sem qualquer hesitação,
colocou na plataforma os binóculos, a caixa e a lanterna. Depois, firmouse com as mãos, fez balanço, e com algum esforço conseguiu erguer-se até
lá acima.
Perfeitamente acomodado e encostado ao tronco de cone do marco
geodésico, que o protegia do vento leste, mergulhou em liberdade naquele
azul escuro, semeado de estrelas e de bloco de apontamentos e
esferográfica na mão, ficou aguardando...
136
Discurso Direto
António Durval
Ondas
O som chega em ondas.
Em ondas chega a luz
também.
Há ondas no Mar,
nos rios e nos lagos,
e há quem diga,
que a Vida chega em ondas
do Além.
Fortes,
absolutas,
imprevisíveis,
são as ondas do Amor.
Saí da civilização como quem estica o pescoço para fora da janela
da carruagem e tenta divisar a extensão do comboio.
Saí, por umas horas, do corpo social de que faço parte integrante.
Ao longe, a anatomia do seu vulto estendido até se perder de vista. Parece
calmo e adormecido. Mas isso não é real. É só ilusão:
A distribuição, quase caótica, das luzes da iluminação pública faz
adivinhar o serpenteado irregular das ruas dos aglomerados populacionais.
Eu sei que, por debaixo desse tapete luminoso e apesar deste quase
absoluto silêncio, existe uma corrente complexa de vida, por vezes
eufórica e palpitante, por vezes bloqueada e dramaticamente difícil.
137
Discurso Direto
António Durval
Ali, há sofrimento e alegria, há luta e desleixo, há ódio, mas
também palpita o amor.
Camas, muitas camas, irão ser agitadas, no início. da madrugada,
com ais de prazer. Noutras, porém, reinará a dor e a agonia. Mais além,
atrás de matos, junto de bermas de estradas, sombras furtivas vendem o
corpo para sobreviver. Vejo ruas sujas de seringas e de toda a espécie de
lixo. Vejo ilhas de barracas, com oito pessoas dormindo no mesmo quarto
e onde a esperança tem a cor da noite. Mais além, jovens, totalmente
perdidos para a sociedade, deambulando como mortos vivos pelos cantos
de escusas ruas, apanhados na teia, manipulada por monstros bem
alimentados e confortavelmente refastelados em anónimos sofás, e acima
de qualquer suspeita.
Vejo altares silenciosos ornados de flores e iluminados pela cera de
promessas íntimas. Mais além, berços embalados por sorrisos de mães
venturosas. Ali, jovens roendo as unhas de stress, colados aos ecrãs de
televisores. Acolá, outros em grupo, estudam, sentados à mesa dos cafés
preparando-se para mais um teste que vão ter no dia seguinte. Vejo
condutores, conduzindo os seus carros, com pressa de chegar a casa. Vejo
o movimento das urgências dos hospitais, o pisca pisca, azul das luzes de
emergência das ambulâncias. Ouço o retinir constante dos telefones das
salas de observações.
– Cinco, dois, sete, um, cinco, um...
Pii, Pii, Pii, Pii.
– Cinco, dois, sete, um, cinco, um...
- São João!
– Por favor, desejava saber se deu entrada nesse hospital um
senhor...
– Um momento. Vou ligar a chamada à secretaria da urgência.
138
Discurso Direto
António Durval
Vejo cafés, quase vazios a esta hora. Empregados, encostados ao
balcão, com o pano de limpar as mesas pendendo do braço, olham
distraídos a televisão, enquanto aguardam a chegada dos costumeiros
clientes. Um diretor de empresa, reunido no escritório com o seu staff,
acerta a última estratégia de "marketing" para relançar a empresa.
Desempregados chegam a casa cabisbaixos, depois de mais uma ronda
pelas hipóteses anunciadas nos jornais. Numa sala de espera de um
consultório, várias pessoas aguardam, há horas, o momento de serem
atendidas.
Vejo o grande Corpo da Humanidade, formado de biliões de
células. Um corpo ainda em gestação e inconsciente de si mesmo, e
apercebo-me dos efeitos do seu "metabolismo", ainda anárquico e
grosseiro.
Rios de vinho encaminham-se para incontáveis bocas. Toneladas de
comida são digeridas, paredes meias com estômagos mal alimentados.
Milhares de metros cúbicos de água são consumidos em cada segundo.
Milhares de toneladas de trigo, de carne, de vegetais, de frutos, de açúcar,
de folhas de tabaco, são gastos em cada segundo. Milhares de troncos de
árvores, de toneladas de pirites de minérios diversos, milhares de metros
cúbicos de ar, são conspurcados a todo o momento no planeta Terra.
Milhares de animais são exterminados em cada segundo. Centenas ou até
milhares de pessoas morrem agora mesmo, vítimas da violência, da fome,
ou do desleixo cúmplice de todos. Milhares, milhões de toneladas a
transformaram-se em lixo neste preciso instante.
Toneladas de papel de jornal estão a entrar nas grandes rotativas,
com as últimas notícias do mundo. Um mundo, apesar de tudo, a despertar
para a Esperança e para a sua auto-identificação com o Todo.
139
Discurso Direto
António Durval
"Grande Porto"
Sinto um nó.
Um nó que aperta.
Um nó que esgana.
Sinto o calafrio dos cabeçalhos
da impressa focagem
desta cinzenta realidade.
Os punhos fechados,
a raiva, do dia a dia desencanto,
as mãos encalhadas
nestes olhos marejados.
Sinto esta estranheza
este perpétuo cismar,
buscando o entendimento,
o motivo que sustente,
a explicação que aguente
tão pouco amar:
É a solidão-deserto
desta passiva sociedade,
onde ninguém protesta
ninguém reclama,
o verde das folhas,
o cristalino das águas,
a transparência do ar.
a ruína tóxica
dos rios e das fontes,
o desportivo extermínio
dos animais,
140
Discurso Direto
António Durval
no mar, nos prados,
nas planícies e nos montes.
É o sorriso imponência,
a descontração
dum insensível senhor,
de perna alçada,
atirando o cigarro,
a cinza indiferença
aos gemidos
que chegam do corredor.
São os buracos negros,
sorventes,
cercados de pestanas,
do mixordeiro,
do especulador,
onde redemoinha o dinheiro
e se materializa o engano,
o embrulho,
o estertor.
Porque ainda é tempo de engordar,
de roer, de falsificar, de conspurcar,
de mal querer.
Tempo de vender o lixo,
a mentira, a aparência.
Porque ainda é tempo de vender
a consciência.
São as forjadas falências,
forjando desemprego.
São os capitais exportados,
141
Discurso Direto
António Durval
importando miséria.
É o tráfico, a prostituição,
é o tédio, a inação.
Sinto um nó.
Um nó que aperta.
Um nó que esgana.
Mas também sinto
a solidariedade dos perseguidos,
dos explorados, os gritos de angústia,
dos milhões e milhões de maltratados,
gritos, que no silêncio dos séculos
atravessaram o espaço,
trespassaram o Universo de lés a lés,
e despertaram ecos de luz
que virão iluminar-nos!
A melhor atitude de gratidão para com o Pai é evoluirmos em
harmonia com a sua Obra - a Natureza - e um dia caminharmos, pelo
nosso pé, ao seu encontro.
Se te é difícil acreditar em Deus, começa por acreditar em ti!
142
Discurso Direto
António Durval
Sim! A Fé significa o primeiro passo para a Salvação. Mas, se não
dermos os passos seguintes, ficaremos sempre a menos de metade do
Caminho.
As obras são o teste da Fé na vida quotidiana. Sem construção
Fraterna, a fé e as utopias murcharão depressa e não haverá a fecundação
das sementes da Esperança.
O teste da Paz e da Serenidade, dentro de cada um, é a Paz e
Serenidade que sentimos em relação aos outros.
A serenidade autêntica assenta no diálogo, no intercâmbio de ideias
e de experiências, no saudável relacionamento e convívio, na efetiva e
desinteressada entreajuda.
A Paz verdadeira é oposta à esterilidade. Dela brotará sempre o
fruto da obra.
Que a nossa disponibilidade e cooperação nunca sejam isco ou
armadilha para o domínio, individual ou sectário, do "Outro", sob
qualquer forma objetiva ou subjetiva.
Assim é a Natureza: berço e casa do homem e o próprio homem.
É certo afirmar que destruir a Natureza é destruir o homem e não
corresponder ao Amor Divino do seu Criador.
Se correspondermos a esse Amor só com cânticos, rituais, palavras
e mais palavras, e não cultivarmos uma atitude permanente de respeito e
harmonia em relação à Obra, então, comportamos como o sedutor que
murmura belas palavras ao ouvido de uma mulher, só para obter os seus
favores para uma noite.
143
Discurso Direto
António Durval
Num mundo de antagonismo, impõe-se a aprendizagem e prática
do diálogo, para se dar a mutação necessária do antagonismo em
diversidade complementar.
O homem evolui perdendo e ganhando! Perdeu instinto e ganhou
consciência, mas acabou por ficar desprotegido e mais vulnerável que no
princípio dos tempos, em que corria pelas ravinas coberto de pelos.
Se usar somente os atributos da "consciência", do raciocínio
cerebral, enquadrando as incógnitas através dos conhecimentos
científicos, terá dificuldade em evitar e reconhecer os labirintos sem saída
que a cada passo surgem no caminho.
Se usar só o instinto animal corre o risco de retornar ao estado
selvagem.
Não tem, pois, alternativa. Hoje, para sobreviver, terá de saber
conjugar o instinto intuitivo com o raciocínio consciente.
Os homens têm de afinar o seu recetor natural, a Intuição, para
captar cada vez mais nitidamente o sinal que indica o rumo correto em
direção ao futuro.
144
Discurso Direto
António Durval
Não sabemos de onde vem a Intuição. Que rosa dos ventos
determina a sua direção e sentido. Mas, pela certa, vem de algures, de
Alguém. Pelo menos é essa a sensação que fica.
Como é sempre avisada e sábia e nos aconselha o melhor caminho,
teremos igualmente de admitir que esse Alguém possui uma infinita
sabedoria e nos ama.
O "farol" do Espírito está sempre a emitir. Os "recetores" é que,
muitas vezes, ficam desativados pela falta de uso, ou, pior ainda, pela sua
incorreta utilização.
Agora compreendo
Depois,
quando tudo está atónito,
a olhar.. a olhar...
Cada um
embrulha a "Fraternidade" para si!
como é difícil a Fraternidade.
Agitamos a palavra,
atirámo-la ao espaço
numa girândola de mil cores.
As associações de pessoas em tomo de interesses coletivos, tais
como o recreio, a cultura ou o desporto, são muito importantes como
núcleos de ensaio para a gestação do Grande Corpo, que temos em
conjunto de realizar. Aí, nesses pequenos núcleos, aprendemos,
voluntariamente, os rudimentos da convivência e relacionamento
coletivos. Aprendemos a conjugar a tolerância com a ética, a amizade
com a autodisciplina e a vivência direta da gestão democrática. Aí,
145
Discurso Direto
António Durval
teremos de aprender a soletrar a palavra intercâmbio e a abrir as portas à
convivência harmoniosa com outros grupos. A cooperação e a associação
são as alavancas fundamentais na construção da civilização do futuro.
A
porta está aberta, mas cuidado! Se entrar, pode vir a ser
apanhado na rede do sonho.
Isto porque, cá para nós, que ninguém nos ouve... acontecem lá
dentro, factos muito estranhos e singulares. Transformam coisas,
conspiram depois do jantar, e tudo às claras, sem biombos.
A magia gestual de muitas mãos, simples mas determinadas, vão
transformando o sonho em realidade. Além disso, imagine!, parece que
incentivam as pessoas a ler, a gostar da música, da poesia, do teatro, da
pintura e outras artes mais.
Não diga nada, mas parece que também transformam o impossível
numa palavra sem sentido. E mais! Graças a essa magia revolucionária e
subversiva, ali, "a cultura já tem telhado".
Sabe? Lá dentro, entre dois dedos de conversa, planeia-se e
conspira-se para a instauração da República das Flores:
A flor do associativismo. A flor da criatividade artística. A flor da
Amizade e da Fraternidade, e outras que tais.
Graças ao que aqui acontece, precisamente nas barbas da rotina oca
de uma sociedade distraída e anestesiada, a esperança abre caminho para
um futuro diferente e mais humano.
Tenha cuidado, amigo! Ouça o que eu lhe digo: Quem entrar no
"Flor" jamais sairá o mesmo!
146
Discurso Direto
António Durval
A Fábrica e o Cosmos
Os seres metálicos
zumbiam incessantemente,
vomitando,
numa sequência matemática,
"rilhotos" fumegantes,
algebricamente iguais,
constantemente,
constantemente.
O ar,
ainda há pouco
da clorofila saído,
às garras do fumo ia perecendo,
inocentemente,
inocentemente.
Vibrações
agitam a compasso
o paralelepípedo de vidro.
Dentro,
três bípedes,
de estrutura ósseo-calcária,
recoberta de milhões de células,
esperam
a hora do regresso,
do regresso ao calcário mineral.
No espaço infinito,
o planeta azul
gira, gira, sem pensar
que o seu pó
já pensa, já pensa,
mas ainda não sabe amar.
147
Discurso Direto
António Durval
Tempo de Natal
Mesmo antes de surgir no calendário a folha encimada com a lavra
Dezembro, já antes uns dias de tal facto suceder, adivinha-se a
aproximação de uma quadra, que a tradição, amassada e esculpida em
perpétua luz por muitas gerações, ainda ilumina o tempo de hoje, com
todo o esplendor espiritual do Solstício de Inverno.
Todos sabem o nome dessa quadra. Mas, se por fatalidade alguém o
desconhecesse, bastaria apurar o ouvido para logo escutar o bater dos
corações, banhados pelo antegozo da noite feliz: – "O Natal está à porta!"
Bastaria o dom da sensibilidade para descobrir, no ar e nas coisas, a
expectativa envolvendo tudo e refletida nos olhos de quem passa. Nesses
olhos é patente o calor nostálgico das recordações do Natal passado, que é
o selo da ansiedade com se espera o que há-de vir:
À memória surgem imagens nítidas do bacalhau cozido, que não
sobrou, das rabanadas sem ovo, de morrer por mais, e do presépio junto
da árvore enfeitada, donde caíram duas bolas de cristal prateado, mal
seguras, que foram polvilhar de reflexos e cintilações o caminho dos
pastores.
Recordar as noites de Natal é agarrar seguramente o fio que une
toda a nossa existência. É ativar o nosso código secreto, que mostra
refletida num espelho de verdade, a nossa vida:
"Como foi triste esse Natal! Todos nós olhávamos para aquela
cadeira vazia, tristes, calados. Só os soluços da nossa mãe se ouviam e as
lágrimas que caprichosas teimavam em sair, mesclam-se no molho das
rabanadas."
E mais além aqueloutro, com saudade, murmurará:
148
Discurso Direto
António Durval
"– Na mesa não faltava nada. Sobre ela circulavam travessas com
iguarias, que enchiam os nossos olhos de prazer. Os sons dos vinhos,
caindo nas taças, teciam o fundo musical da felicidade reinante. Agora,
desses tempos, nada resta."
Nesta quadra, a alegria instintiva das coisas é bem patente aos
nossos olhos. A chuva ou o frio estão impregnados de poesia.
O poeta que, solitário, caminhe através do silêncio da noite, pisando
as pedras frias e húmidas da calçada, encontrará dilúvios de inspiração na
própria intempérie que o fustiga. Ao divisar ao longe a luz de um
candeeiro público, filtrada por miríades de gotas cristalinas, dançando
com o vento, exclamará: "Eis a Luz! Eis a Luz! E caminhará mais
depressa e escorregará no lajedo. Quando se levantar, olhará em redor e
não verá mais a lâmpada, mas uma estrela brilhando num céu de azul
imaculado. Olhará para si e verá um pastor de sandálias rotas, pés doridos
e roupas cobertas de poeira. Sentirá sobre os seus ombros o peso do anho
recém-nascido e dará conta dum sentimento inefável brotando do seu
peito, enquanto nos seus olhos brilhará uma luz clara, que é o reflexo
dessa estrela, guiando-o do céu pelo caminho que ia palmilhando sempre.
Se, de repente, uma voz ríspida o acordou do seu sonho:
"– Ó bêbado, vê como caminhas!"
Acordará do seu sonho, mas não sentirá cólera na sua alma, porque
recordará a mensagem:
"– Glória a Deus nas alturas e Paz na Terra aos homens de boa
vontade!" É assim este tempo de Natal, época propícia ao encontro do
homem com o seu destino. Pausa para a meditação e escolha de novos
rumos.
Até que um dia...
Todos os dias sejam Natal!
149
Discurso Direto
António Durval
Neste Natal,
quero ser uma flor no teu regaço,
quero projetar-me,
voar no espaço,
quero ir contigo ver o Jesus Menino.
Neste Natal,
quero entender
porque brilha tanto
a luz do teu afeto,
quando viajo ao negrume
do Mundo.
Um mundo onde não se nasce
mas se é enviado.
Um mundo onde não se morre
mas se é chamado.
Neste Natal,
quero saborear o aconchego
do regresso,
quero dilatar num átomo
a Fraternidade
reduzir ao Universo
este abraço.
150
Discurso Direto
António Durval
Margarida
Gostarias de partir na Noite de São João. A noite das fogueiras e do
sortilégio do Solstício de Verão. De partir, leve, cavalgando um balão que
sobe, sobe lentamente, para o infinito. Gostarias de atirar lá de cima rosas,
trevos e erva cidreira aos foliões correndo, e dançando, lá em baixo, nas
ruas da cidade. Com o teu sorriso trocista, irias acenando, acenando:
"– Adeus, Amigos. Adeus, Gaivotas. Adeus, Mar. Adeus, Sol!
Adeus, rapaziada."
A Fraternidade Cósmica, precisou de ti mais cedo noutras paragens,
noutras dimensões. Outras missões esperavam por ti no Transcendente.
Por isso partiste no dia de Santo. António. O primeiro dia dos três santos
mais amados do povo. Todos os teus dias foram dias de construção do
grande Corpo-Humanidade. O rastro luminoso da tua passagem e da tua
Amizade jamais se apagará. Um dia, de mãos dadas com todos os Irmãos,
saltaremos as fogueiras do destino e cantaremos os teus belos poemas:
"E de repente vi a sombra
e era eu.
Vi o Reflexo-Luz
e era eu.
Vi o Mestre
e era eu.
Vi o Caminho por onde vim
e de repente compreendi
que sou o Tudo,
que sou o Nada,
que sigo magneticamente a estrela
que me aproxima de ... Mim! "
Margarida Rosa
151
Discurso Direto
António Durval
As mulheres deverão ocupar o seu lugar de pleno direito ao lado
dos homens. Enquanto isso não acontecer, o grande "Corpo" estará
sempre desfalcado. Estará sempre adiado.
Enquanto isso não acontecer, não estará realizada a igualdade na
diferença, não estará consagrado na prática o pleno direito na diversidade.
Enquanto isso não acontecer, a Humanidade não atingirá a maturidade
imprescindível à sua entrada na iniciação cósmica.
Corre, corre, mulher!
Corre, corre, ansiedade,
Mulher-Inquietude.
Corre, corre, teimosia,
Amor, juventude.
Vai!
Desmonta,
espinho a espinho,
lágrima a lágrima,
a escuridão.
Constrói,
pétala a pétala,
sorriso a sorriso,
o despertar.
Abre as cortinas ao mundo,
que o Azul está a chegar.
152
Discurso Direto
António Durval
Corre, corre, Liberdade,
abre caminhos,
continua, avança,
a centelha de teus olhos
chama-se Esperança.
Corre, corre, não pares,
os olhos da humanidade
estão voltados para ti.
Repara:
Aquelas mãos crispadas
arrancaram as grades,
um choro abrandou ali.
Corre, corre, amplexo,
Mulher-construção,
que o teu querer,
frutificará um dia,
que o teu amar
não será em vão.
Corre, corre, mulher!
Somos mais que irmãos! Somos o mesmo "Ser".
153
Discurso Direto
António Durval
As nuvens passam vaporosas, quase imateriais, impelidas pelo
vento por cima de montanhas rochosas, áridas, firmes, maciças. Por isso,
um dia, a montanha será planície fértil e verdejante. O mesmo acontecerá
ao homem, sob a ação do vento do espírito.
O
"Grande Corpo Vida", que existe na Terra, poderia ser
representado simbolicamente por uma pirâmide egípcia:
A vida inerte ou mineral; a vida vegetal; a vida animal e a vida
subtil ou espiritual, seriam as suas quatro faces, todas elas emergindo
duma base comum: o incomensurável universo a que chamamos
microcosmos. As quatro faces tocam-se e fundem-se no vértice aflorando
no Universo Exterior: o incomensurável Macrocosmos. Nesse vértice
deverá posicionar-se a consciência objetiva de toda a estrutura do "Grande
Corpo Vida".
Incomensurável será a responsabilidade do ser, que, por força da
sua trajetória evolutiva está vocacionado para recetáculo dessa
consciência e, como tal, predestinado a velar pelo equilíbrio e harmonia
desse Grande Corpo.
Autor: – Tens razão. Poderá até existir no "papel" uma constituição
verdadeiramente democrática e, no entanto, não estarmos perante uma
verdadeira democracia. Se, por exemplo, não existir uma forte educação
cívica de base, para a vivência em democracia, o sistema estará minado
logo à partida. Poderá até existir no "papel" a Liberdade, mas ninguém
saberá o que fazer com ela. O espaço permitido de liberdade será
rapidamente açambarcado pelo oportunismo e pelo videirismo. Depressa a
154
Discurso Direto
António Durval
Liberdade será usada para oprimir e amordaçar a Liberdade.
Leitor:
– Só pretendia saber como se poderão corrigir os desvios aos princípios,
quando se instalou já a ideia de que eles são bons para encaixilhar e
colocar na parede e de que a realidade será sempre como é, sempre muito
distante.
Autor: – A resposta está na boca do Povo:
– "Água mole em pedra dura, tanto dá até que fura!"
Primeiro ternos de conquistar e defender a liberdade. Depois, usar a
Liberdade para denunciar o erro e a incoerência de princípios. Como o
disse Mário Soares, utilizemos o nosso "direito à indignação". Sempre
que seja necessário, constantemente, até que os princípios saiam do
"caixilho" e façam parte do nosso quotidiano.
Já era tempo de se acabar com a ideia de que a Democracia é um
regime onde impera a libertinagem, o descontrolo, o caos.
Uma das qualidades da Democracia é precisamente a de possibilitar
a correção atempada de desvios comprovadamente prejudiciais aos
cidadãos e à sociedade. Se isso eventualmente não acontece, é porque algo
está errado nessa democracia. A Democracia só é “Democracia”, se
permitir a participação construtiva na rua, na família, na associação, na
empresa, na autarquia, na Assembleia da República.
Leitor: – Já agora, gostava que dissertasses sobre a ditadura...
Autor: – Bom! Para mim, a ditadura instala-se e vive alimentandose do medo. A democracia instala-se com a coragem e vive com a
coragem de utilizar corretamente a liberdade conquistada.
A semente do Corpo Universal já existia no momento do "Big
Bang". Esse "projeto", essa "ideia", continuou a existir em cada momento
temporal seguinte.
155
Discurso Direto
António Durval
Compete a cada consciência, que emerge da matéria, em
determinado tempo e espaço, contribuir para a realização desse projeto.
Mas isso só será possível se essa consciência despertar no Eu e descobrir
a sua íntima relação com o Todo. Só depois poderá contribuir
verdadeiramente para a realização desse grande projeto, onde cada um é
uma ideia parcelar, mas fundamental e insubstituível. Está ao nosso
alcance contribuir para que essa imensa estrutura se consolide em cada
ser, em cada lar, em cada rua, ou associação. Em cada cidade, floresta ou
rio. Em cada país, nação, continente ou mar. Em cada planeta, sistema
solar ou galáxia. Em cada, em cada...
Autor: – Muitas vezes inquirimos se existe vida para além da
Morte.
Leitor: – A meu ver, a existência de vida para além da Morte é tão
impossível e problemática corno a existência de vida na realidade que
conhecemos, e que designamos por Vida Terrena. A nossa consciência do
existir só é percebida num momento infinitesimal de tempo, a que damos
o nome de Presente. O Presente, instantaneamente, passa a Passado e logo
é ocupado pelo momento que se situa imediatamente a seguir: o Futuro.
Do centésimo de segundo que acabamos de viver só nos resta a sua
memória. A existência no centésimo de segundo que iremos viver
seguidamente é para nós ainda uma incógnita. Verdadeiramente, só
existimos no milionésimo de segundo que medeia esses dois tempos.
Através dum delicado e complexo processo de retenção e junção na
memória das sucessivas impressões sensoriais vividas durante um lapso
de tempo, a maravilha que é o nosso cérebro consegue ligar os sucessivos
presentes e transmitir à nossa consciência uma sensação de continuidade.
Autor: – Se bem entendo, parece que estás querendo dizer que
chamada Vida Terrena, ou a consciência que possuímos dela, só existe de
156
Discurso Direto
António Durval
facto nessa pequeníssima "fresta" do tempo a que chamamos Presente?
Tão pequeníssima e infinitesimal que quase não existe ?
Leitor: – Quase! Dizes bem. – Quase!
Para mim, o chamado Presente só existe o tempo suficiente para
termos a perceção da realidade chamada Vida Terrena. Exatamente o
suficiente para permitir aos nossos seres a possibilidade de outras
vivências e de outras vidas nesta ou noutras realidades, noutras
dimensões.
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Discurso Direto
António Durval
Carta aos jovens do " Ano 3001"
Escrevo-vos esta carta, quando faltam menos de 4 anos para as gerações
do meu tempo atingirem o ano 2000. Os átomos que irão formar os vossos genes
e corpos já existem no meu século, mesclados na Natureza. Estão nos campos,
nas árvores, nas pedras e nos animais, que hoje queimamos e destruímos a toda
a hora. Estão no ar e na água, que conspurcamos a todo momento.
A essência e o projeto dos vossos seres corre já nas veias das mulheres e
homens da minha geração. Essa essência e esse "projeto" são a garantia da
nossa continuidade, no Futuro.
Nada podeis fazer para preservar o mundo que ireis encontrar; quando a
vossa consciência emergir e referenciar a luz do mesmo Sol, que nos aquece e dá
vida. Existis, assim, no meu tempo, indefesos e totalmente à mercê da nossa
insensatez. Quando descobri esta verdade fiquei angustiado. É que existe um
limite, um prazo, para a tomada de consciência da tremenda responsabilidade
que cabe à minha geração. Que mundo vamos legar aos vindouros? Será que
nesse milénio ainda é possível respirar? Será que nesse mundo ainda palpita a
Vida? E, se ainda houver vida humana, será que ela terá alguma hipótese de
dignidade e de esperança? Tal como quem acorda com o estrondo da derrocada
do seu quarto, eu fiquei, assim, angustiado. Angustiado, porque, no meu tempo,
ainda não se ensina nas escolas a relação do homem com o seu meio. A relação
com o seu vizinho. A relação com a Vida do Planeta. A relação da Parte com o
Todo.
Dois mil anos depois do Gólgota, não sabemos estar em sintonia com a
Divina Obra, nem sabemos onde está o verdadeiro pecado, apesar da mensagem
que nos chegou ser bem clara: " - Amai-vos uns aos outros".
Procedemos como filhos descuidados e inconscientes. Rodopiamos à volta
das pernas do Pai, enquanto desprezamos e delapidamos a sua magnífica Obra.
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Discurso Direto
António Durval
Uma obra em criação permanente e na qual nos está destinada uma importante
missão.
Jovens do ano 3001
Esta carta é o reflexo do testemunho de muitos jovens, mulheres e homens
do meu tempo. Felizmente, uma parte da humanidade está a despertar. Uns
derrubam barreiras e abanam sistemas caducos e fechados. Outros organizam-se
e agem, tentando consciencializar; corrigir erros e endireitar caminhos. Outros
ainda estão a reagir à tentativa traiçoeira de os acorrentar a venenos destinados
a adormecer o seu espírito inquieto e altruísta.
Estamos a descobrir o imenso "Corpo" de que fazemos parte. E queremos
que ele viva em plenitude.
Apesar de tudo, neste fim de milénio, ainda há espaço para a Esperança.
Estou convicto de que, no ano 3001 haverá jovens, de corpo e alma, que possam
ler e entender esta mensagem.
António Durval
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Discurso Direto
António Durval
EDIÇÕES SOL XXI
POESIA
35 textos para Paulo Cid - Vários Autores
Decomposição - A Casa - Orlando Neves
Mar de que Futuro - Orlando Neves
Livro de Horas e Eternidades - Luísa de Andrade Leite
Sentido Inverso - Marianela de Vasconcelos
O Cajado do Peregrino - Ulisses Duarte
Caderno de Encargos - Renato de Caldevilla
Leme de Luz - José do Carmo Francisco
As Tarefas Transparentes - Conceição Paulino
Trovas da Infância na Aldeia - (2' edição) - Orlando Neves
Vilancetes para o Meu Presépio - Ulisses Duarte
Desilusão Otimista - Alexandre Castanheira
Loca Obscura - Orlando Neves
Organon para a Decifração da Poesia - Orlando Neves
Vivências - Maria de Lurdes Brandão
Réquie por uma Flor - Luísa de Andrade Leite
O Luar da Espera - Conceição Paulino
Noite Branca - Mendes de Carvalho
Ribeiro, teu indício - Maria Virgínia Monteiro
Sexta Incisão - J. O. Travanca - Rêgo
Noites de Sevilha - Fernando Cabrita
Poesia - Orlando Neves
O tríptico da paixão e do tempo - Albano Estrela
Segredos Novos - José Junça
Valsas e Trigo - Maria Domingues
A Terna Indiferença do Mundo - Luís Claudio Ribeiro
Crepúsculo das Noites Breves - João Maria Nabais
Loas à Lua - Paulo Brito e Abreu
O Ser e o Nada - João Marcos
O Campo Além do Muro é Verde - Lavínia Machado
Ilha - Luísa Fonseca
Paralelismos - Margarida Gama de Oliveira
Horas Largas - Caetano Teixeira de Aragão
Falar Mulher - Conceição Paulino
Morte Minuciosa - (3' edição) - Orlando Neves
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Discurso Direto
António Durval
FICÇÃO
O Menino de Vidro - Infantil - Luisa de Andrade Leite
Histórias Tradicionais da República de Cabo Verde - Margarida Gama Oliveira
Fragmentos - Jacinto Anica
O Ser Único e os outros - Luísa de Andrade Leite
Sonhos no Zimbro - Gabriel Raimundo
Estórias para Brancos e Negros - Gabriel Raimundo
Os Sapatos Amarelos de Salto Alto - Maria Domingues
Maria Benedita - Vasco Riobom
Tempos do Tempo - Bárbara Cunha
ENSAIO
Trinta Anos de Teatro - Orlando Neves
Discurso Direto - António Durval
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Discurso Direto
António Durval
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