Arte: o fazer como forma de conhecimento
Autor(es): Olaio, António
Publicado por: Editorial do Departamento de Arquitectura
URL URI:http://hdl.handle.net/10316.2/37484
persistente:
DOI: DOI:http://dx.doi.org/10.14195/0874-6168_5_4
Accessed : 20-May-2020 17:33:15
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texto ant6nio olaio
Arte: o Faze r coma Fo rma de
conhecimento
> ~ bastante engra~ado o facto de Duchamp, sendo frequentemente associado ao
afastamento da ideia de arte enquanto manufactura, ter definido arte enquanto
faze r e fazer quase que com as maos.
> Duchamp, com a defini~ao de arte enquanto fazer , nesta aparente redu~ao da
ideia de arte ao artefacto, numa atitude que podera aparentar ser um gesto de
puro niilismo, de pura dessacraliza~ao e banaliza~ao da arte, mais nao estara
do que situar a arte ao nivel, na familia, dos artificios (da ponta de si lex
ao supermercado?).
Duchamp, aqui, mais uma vez revel a a sua estrategia de reflexao sobre arte,
no sentido da melhor forma, da forma mais limpida de abordar a arte, que e
parecer que nao se lhe da grande importancia. No sentido de uma indiferen~a.
ou melhor de uma indi ferencia~ao da arte em rela~ao a todas as coisas.
> O facto da arte poder se r , assim, encarada como artefacto, como uma cadeira
ou um copo, gera uma forma de abordagem que pode ser extremamente
significante .
> Desta forma, na rela~ao entre a concep~ao de um objecto e a sua manufactura,
poderemos considerar um crescente grau de sofistica~ao na forma como os
conceitos se relacionam com o objecto produzido. Desde a satisfa~ao de uma
fun~ao primaria, a um grau de sofistica~ao tal que a pr6pria ideia de fun~ao
se complexifica ao ponto de, como nas obras de arte, parecer nao servir
para nada.
> Mas, de facto, mesmo a pr6pria sobrevivencia nao depende s6 da satisfac;ao das
necessidades primarias.
> E a arte e imagem de uma forma mais complexa da ideia de necessidade.
Esta definic;ao de arte enquanto meramente fazer, pela sua extrema
simplicidade, parece ter a intenc;ao de afastar a arte das concepc;oes mais
obscuras e, quantas vezes essas concepc;oes poderao ser intencionalmente
obscuras, come sea arte fosse uma especie de misterio insondavel.
> Na relac;ao da arte com a inteligencia, este encarar da arte come algo de
obscure, se, por um lade, pode induzir a concepc;oes de exaltac;ao romantica,
tambem, para conforto de uma sociedade dominada pela racionalidade mais
linear, pode levar a encarar os artistas come aqueles que nao pensam,
na exaltac;ao do que chamam sentimento. Ea ideia tao popular de genie criador
mai s parece ser si n6ni mo de aquel e que faz sem pensar , eel ebrando- se muitas
vezes a intuic;ao artistica como sea intuic;ao fosse fruto de seres que
satisfariam uma ideia estupidamente nostalgica do ser primitive, come se o
artista fosse uma especie de born selvagem (ainda me lembro dos tao celebrados
Novas Selvagens nos anos 80, onde a apreciac;ao da sua obra sublinhava, da
forma mais redutora, um regresso a pintura, come se a pintura tratasse de
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tintas e, sobretudo, seas pinceladas fossem largas e evidentes, numa ideia Cl
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de expressionismo que mais nao seria, no simplismo do discurso de entao de (IJ
alguns criticos de arte, do que uma mimesis de uma certa
imagem de expressao).
De facto, o que chamamos intui~ao , mais nao sera que um pensamento mais
rapido e complexo, tao rapido e complexo que nao e sequer perceptivel pela
lenta racionalidade.
> OS proceSSOS da intui~ao Sao tao ageis que, que quando a racionalidade OS
procura entender, eles ja aconteceram.
Tera talvez sido este pensamento complexo e agil que permitiu a Einstein a
cria~ao da teoria da relatividade que, certamente, nao teria sido possivel
meramente nos mecanismos de uma estrita racionalidade. Sera certamente a
intui~ao um dos principais motores do conhecimento, isto porque somos bem
mais inteligentes do que somos.
> O aparente disparate do final da frase anterior , deixara eventualmente de o
parecer se considerarmos os mecanismos em jogo no ensino das artes .
Grande parte da actividade de ensinar art e nao sera, propriamente, e em
rigor, ensinar .
> Parece-me ser, pela rela~ao que tenho com os alunos nas aulas das disciplinas
de desenho deste curso de arquitectura, sobretudo nos aspectos do desenho que
se situam para alem da representa~ao, principalmente revelar e desenvolver
aspectos menos exercitados das suas capacidades intelectuais.
> A actividade artistica, e considero a resposta a exercicios das disciplinas
de desenho uma manifesta~ao da pratica artistica, e uma forma de revelar
aspectos da percep~ao e conhecimento do mundo que, infelizmente, muitas vezes
e recalcada por uma racionalidade dominadora. E distingo aqui racionalidade
de razao, usando a palavra racionalidade para denominar esta especie de
doen~a que nos faz tomar por um verdadeiro conhecimento a utilitaria e
pragmatica simplifica~ao da realidade de que muitas vezes a razao se serve
para ser operativa.
> E a confusao chega ao cumulo de confundirmos a complexidade da realidade com
esta redu~ao a uma linearidade utilitarista, como se pretendessemos
substituir o espa~o, nem sequer por um plano, conformando- nos a substitui - lo
por uma linha.
Pois, quanta mais linear mais livre estaria de
qualquer ambiguidade.
0 que e um terrivel disparate!
0 que e, de facto, um facto e que a
objectividade ea coisa mais ambigua que ha.
> Isto ao ponto de dar o nome de objectividade aos pensarnentos mais lineares .
> E quanta mai s li near, mais objective seria o pensamento .
> Pois, quanta mais linear mais liv re estaria de qualquer ambiguidade.
> 0 que e um terrivel disparate!
> 0 que e, de facto, um facto e que a objectividade e a coisa mais ambigua que
ha.
> Bern mais ambfgua que a subjectividade, enquanto subjectividade que
percepciona, que filtra, pela dinamica da percep~ao, a objectividade,
e a conforma aos dados empiricos do sujeito e, fatalmente,
ao conhecimento de uma linguagem que a procura traduzir (e nao sei se
pensar em portugues e o mesmo que pensar em alemao, mas suspeito que
devem haver algumas diferen~as: certamente, a Torre de Babel ainda
tera vindo complicar mais as coisas).
> Se conseguissemos conceber a objectividade pura, certamente
deparariarnos com a ambiguidade na sua manifesta~ao absoluta.
Mas, de facto, como s6 conhecemos o mundo conforme o vemos,
a unica objectividade a que poderemos aceder ea nossa
subjectividade, quando a subjectividade e usada para
percepcionar a subjectividade.
> ou melhor, por outras palavras, quando a subjectividade e o
objecto de percep~ao.
> Assim, esta unica verdadeira forma de aceder a uma
objectividade nao passara de um puro acto de introspec~ao.
> Quando (dado o contexto desta revista) um arquitecto reflecte
sabre uma cidade, reflecte sobretudo sabre as rela~oes dos
dados que o seu cerebra possui com a percep~ao que tern sabre a
cidade, estando aqui perante, ao mesmo tempo, um acto filos6fico
(mesmo quando a fi losofia tern o fazer como finalidade) e um acto
i ntrospectivo.
> sendo eu artista plastico e professor de desenho no curso de
arquitectura da universidade de coimbra, encaro as duas actividades
como sendo indissociaveis.
> Tanto o que fa~o como artista quanta os exercicios que proponho aos
alunos (sobretudo no 2° ano, onde os rudimentos instrumentais ja
deverao estar dominados) encaro como parte de uma investiga~ao,
pois encaro a fun~ao de artista plastica como algo que nao se esgota na
autoria de obras de arte, sendo estas sobretudo concretiza~oes,
ou mesmo, residues de toda uma rela~ao com a frui~ao estetica.
, Nao foi s6 pela procura de um desenvolvimento instrumental que, no ultimo ano
lectivo, propus como exercicio de desenho aos alunos do 2° ano trabalhos que
partiam dos desenhos de representa~ao do esqueleto que eles tinham feito,
para a cria~ao de novas composi~oes.
, A partir da estrutura do esqueleto humano, os alunos, passando por fases de
estiliza~ao onde anulavam a acidentalidade da caligrafia, criavam
composi~oes onde as metamorfoses que o desenho original sofria eram motivadas
por uma rela~ao com o suporte (na ideia de inter- rela~ao que compoe o
conceito de composi~ao).
, Mas nao foi a pura atitude formalista que conduziu os processos de
composi~ao, porque a ideia de esqueleto estava sempre presente, na plena
ambiguidade de sugerir multiplas ideias, como: estrutura, corpo, individuo,
constru~ao, material de constru~ao, montagem, desmontagem, remontagem,
lego.
> Perante a surpresa agradavel dos trabalhos que surgiram decidimos fazer uma
exposi~ao, ou melhor os trabalhos deci diram pornos, n6s nao fizemos mais do
que lhes obedecer.
, E, coma sintese das rela~oes que os desenhos sugeriam, chamamos a exposi~ao:
A capela dos ossos, ou se os ossos fossem lego .
~ Capela, pela rela~ao destes ossos metamorfoseados com a ideia de edifica~ao,
lego pela no~ao aqui provada da arte coma campo de possibilidades .
> oe facto, a criatividade em arte, ea arte acontece quando um objecto
ultrapassa a sua objectualidade (mesmo quando a objectualidade e um dos
ingredient es de uma obra de arte) para a gesta~ao de um espa~o, de um campo
de possibilidades.
• Quando Ilya Kabakov cria O homem que voou para o espa~o do seu apartamento
cria uma instala~ao que simula a possibilidade de, com os meios mais
rudimentares, e tendo-se a si pr6prio e ao seu quarto, ao seu espa~o mais
infimo, um homem conseguir conquistar o espa~o.
Para alem da for~a que as viagens espaciais teriam no imaginario sovietico,
Kabakov, aqui, parece sublinhar a ideia de arte como processo de concep~ao,
mesmo na rudimentaridade dos meios fisicos (nao propriamente na
rudimentaridade dos meios mentais), de abertura de um campo de
possibilidades.
De um quartinho para o Espa~o. ou melhor da rela~ao entre a inteligencia do
artista e os elementos do seu espa~o. mesmo que infirno, para a sua amplia~ao
para um campo de infinitas possibilidades, tao vasto que nem sequer a ideia
de dimensao fara sentido (e nem mesmo a ideia de vasto).
Por outro lado, Anthony Gormley cria esculturas/corpos ou, melhor,
esculturas que parecem ser representa~ao de moldes de um corpo. De um corpo
sem identidade, na maximiza~ao da seu sentido simb6lico .
Os corpos/moldes das esculturas de Antony Gormley parecem confinar a
existencia do individuo ao espa~o mais infirno, como se o espa~o de vida de um
individuo nao fosse mais do que o espa~o dado pelos limites do seu corpo.
Mas em Gormley um corpo e encarado tambem pelo seu caracter de representa~ao. 0
u
um corpo representando um individuo. ~
E, aqui. na rela~ao de um individuo com o mundo, o corpo podera ser
~epresenta~ao deste espa~o concentracionario que reside na condi~ao de se ser
um individuo .
Encarando o corpo como representa~ao da ideia de individuo e, nessa condi~ao,
sendo os seus ossos l ego, um individuo e imagem de todas as constru~oes
poss1veis. ·