A diversidade cultural
como princípio educativo
NataliNo Neves da silva*
Se a cultura não é um dado, uma herança que se transmite
imutável de geração em geração, é porque ela é uma produção
histórica, isto é, uma construção que se inscreve na história mais
precisamente na história das relações dos grupos sociais entre
si. Para analisar um sistema cultural, é então necessário analisar
a situação sócio-histórica que o produz como ele é.
Georges Balandier
Resumo
Neste artigo, reflete-se, de maneira geral, sobre algumas possibilidades teóricas
e práticas de abordagem da diversidade cultural e, em específico, sobre a diversidade étnico-racial relacionada com as situações de aprendizagem no âmbito da
educação escolar. O que se ensina, assim como a seleção do que é ensinado, não
se dá de forma neutra nem desvinculada de certas concepções sociais e políticas.
A aprendizagem cultural transmitida por meio da educação escolar suscita, então,
muitas indagações e provocações e, ao mesmo tempo, merece ser concebida
como uma fronteira de disputa de quais saberes sociais, históricos, políticos e
culturais devem fazer parte do conhecimento dito universal da humanidade. Como
princípio educativo, a diversidade cultural leva-nos a rever constantemente os
valores políticos, sociais e culturais de compreensão do outro. Lançar mão desse
princípio significa, ao mesmo tempo, entender o saber e a cultura como parte da
produção sócio-histórica de determinada sociedade e também problematizar os
ditos valores sociais e culturais universais.
Palavras-chave: Diversidade cultural. Relações raciais e educação. Pedagogia
interétnica.
*
Pedagogo. Mestre e doutorando em Educação na Faculdade de Educação da UFMG. Professor do curso de Pedagogia
da Faculdade de Ciências Humanas Sociais e da Saúde da Universidade Fumec, Universidade do Estado de Minas Gerais
(Uemg). Membro do Programa Ações Afirmativas na UFMG e do Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre Educação e
Relações Étnico-Raciais (Neper) da Uemg.
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Natalino Neves da Silva
Um início de conversa
1
Touraine (1999) explica
que, para que um movimento se forme, não
basta que se oponha
a uma dominação; é
preciso que reivindique
em nome de um atributo
positivo. Nas lutas contemporâneas, o que é
mais visível e mais forte
é sua vontade de ruptura, de recusa, de denúncia. Esses movimentos
de revolta levantam-se
contra o insuportável, o
intolerável.
A reflexão em torno da cultura como construção sócio-histórica
tem feito parte dos principais debates da educação. O tema ganha
notoriedade, também, nos diversos espaços sociais, acadêmicos,
midiáticos, dentre outros. Percebe-se que um discurso de tolerância é confrontado com outro que diz respeito à afirmação dos
direitos civis, sociais, políticos e identitários de reconhecimento e
de respeito ao direito à diferença.
Neste artigo, são abordadas, de maneira geral, algumas possibilidades teóricas e práticas de abordagem da diversidade cultural
e, em específico, a diversidade étnico-racial relacionada às situações de aprendizagem no âmbito da educação escolar. Do ponto
de vista teórico, conceber a diversidade cultural como princípio
educativo exige certos cuidados necessários. O alerta diz respeito,
sobretudo, à utilização da diversidade como “tranquilizante”, ou
seja, que apresenta como “objetivo [...] anular ou atenuar os conflitos culturais e seus efeitos, “[criando] portanto, a falsa ideia de
uma equivalência dentro da cultura e entre as culturas”. (SKLIAR,
2003, p. 205)
A abordagem da diversidade cultural na escola se realiza, portanto, a partir do encontro de nossos valores simbólicos, sociais,
econômicos, culturais e do outro, (criança, adolescente, jovem,
adulto e idoso), o diferente. Por fazer parte de uma construção
sócio-histórica imersa na cultura, tratando-se especificamente
da diversidade étnico-racial, torna-se cada vez mais necessária a
revisão de determinados padrões éticos, estéticos e formativos.
A reflexão sobre as relações raciais e a educação não é recente
no País (ROSEMBERG, 1980; PINTO, 1987; GONÇALVES; SILVA,
2000) e trata-se do resultado das lutas sociais, históricas e políticas
dos movimentos sociais1, em específico o movimento negro. Nas
últimas décadas, o acúmulo de estudos sobre as desigualdades
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A diversidade cultural como princípio educativo
raciais tem provocado a elaboração de políticas públicas específicas, debates na sociedade civil, a produção de materiais didáticos
pedagógicos e a formação docente inicial e continuada, etc.
Refletir sobre as relações raciais na instituição escolar instiganos a problematizar a noção de saber e de cultura2. Da mesma
forma que a cultura, o saber relaciona-se com a situação sóciohistórica, cultural e política de produção. Sob o ponto de vista
do saber e da cultura, somos desafiados a aprender com e na
diferença a mediante o respeito e o reconhecimento do Outro.
Nessa direção, é possível indagar: Em que medida a realização do trabalho pedagógico voltado para a diversidade cultural
contribui para o processo de aprendizagem? Essa questão nos
desafia a lidar com a diversidade cultural como princípio educativo, isto é, o entendimento de que o desenvolvimento da prática
pedagógica envolve atores sociais e culturais com identificação
étnico-raciais, de gênero, de orientação sexual, de deficiências,
dentre outros, diferentes.
Lançar o olhar em direção ao reconhecimento das diferenças e
dos vários aspectos das desigualdades (sociais, raciais, econômicas, culturais, etc.) leva-nos a rever determinados valores morais
e sociais que foram sedimentados e aprendidos no âmbito da
cultura. A diversidade cultural como principio educativo extrapola
a noção de identidade nacional e se concretiza por meio das
experiências e vivências sociais e culturais que envolvem os indivíduos na sociedade.
2
Cf. FOUCAULT (2010),
FORQUIN (1993),
GEERTZ (1989), HALL
(2001), LARAIA (2002),
WHITE (2009), dentre
outros.
Educação e cultura: saber,
poder e identidade
Na história da humanidade, não poucos foram os esforços
intelectuais, teóricos e científicos dedicados a evidenciar a função social da educação. Da prática social formal, não formal e
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informal, à formação harmônica do homem para a vida da polis;
bem como à incorporação nas cadeias produtivas de produção
a partir da estruturação do conhecimento por meio de “grades”
(disciplinas) curriculares. Fato é que a educação está intrinsecamente relacionada com a ação social e cultural de nos tornamos
humanos bem como sujeitos sociais. Como bem afirma Brandão
(2002, p. 141),
somos seres humanos, o que aprendemos na e da cultura de
quem somos e de que participamos. Algo que cerca e enreda e
vai da língua que falamos ao amor que praticamos, e da comida
que comemos à filosofia de vida com que atribuímos sentidos
ao mundo, à fala, ao amor, à comida, ao saber, à educação e
a nós próprios.
Considerar que “toda a educação é cultura”, torna-se possível,
portanto, à medida que a aprendizagem de sistemas simbólicos,
sócio-históricos e culturais ocorre por meio das relações dos atores
sociais, o que se dá por meio da educação. Cabe, então, indagar:
educação ou “educações”? Da mesma forma que o entendimento
de educação é pluralizado, também o é o de cultura. A compreensão e a riqueza dessa pluralidade nos conduzem a refletir sobre
a instituição escolar de maneira geral e, em específico, sobre a
cultura e a educação escolar.
No limite deste texto, é possível identificar que na modernidade
a escola, assim como a cultura e a educação escolar, exerce
uma função central na experiência formativa dos indivíduos. É
delegado à escola um papel cada vez mais decisivo, de tal modo
que a função da escola não se restringe à instrução formal, mas
envolve ao mesmo tempo, também, a formação pessoal, social
e do mundo do trabalho. Sem adentrar o acalorado debate entre
o ensino (“transmissão de conteúdo”) e a aprendizagem (“possibilidade polissêmica de descobertas”) que se insere no contexto nacional e internacional de avaliação sistêmica, propomos
compreender que a educação escolar “constitui uma entre outras
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modalidades de articulação de processos de realização de uma
cultura” (BRANDÃO, 2002, p. 138).
Sob a perspectiva da diversidade cultural como princípio educativo interessa-nos ater sobre quais são os valores sociais e culturais
que engendram o currículo formal da educação escolar. Afinal,
é função da escola, por meio da prática educativa, transmitir as
várias contribuições sociais, econômicas e culturais dos diferentes
grupos étnico-raciais que compõem nossa sociedade.
Se a relação entre cultura e educação produz aprendizagens,
que aspectos da cultura afro-brasileira têm sido abordados na
educação escolar? O que se verifica, muitas vezes, é a invisibilidade da história de lutas, enfrentamentos e resistências das
ditas “minorias” na educação escolar. Aprender os valores sóciohistóricos e culturais por meio da prática pedagógica faz parte
das reivindicações históricas do movimento negro em prol da
educação democrática.
O que se ensina, assim como a seleção do que é ensinado,
não se dá de forma neutra nem desvinculada de certas concepções sociais e políticas. A aprendizagem cultural, transmitida pela
educação escolar, suscita muitas indagações e provocações e,
ao mesmo tempo, merece ser concebida como uma fronteira de
disputa de quais saberes sociais e culturais devem fazer parte do
conhecimento dito universal da humanidade.
Impulsionadas pelas reivindicações que há vários anos vêm
sendo realizadas pelos movimentos sociais, em especial o movimento negro, acumula-se o número de produções teóricas
acadêmicas sobre relações raciais e educação no Brasil. Nesse
sentido, apresenta-se, também, como função da educação escolar
o aprendizado sobre a história e cultura africana e afro-brasileira,
a superação de opiniões preconceituosas sobre os negros, a
denúncia do racismo e da discriminação racial. Ou seja, valores
sociais e culturais também são aprendidos! A esse respeito,
Gomes (2007, p. 32) esclarece:
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A cultura é aprendida. Poderíamos dizer que ela não é uma
‘herança inexorável’ dos indivíduos, senão são os próprios que
devem realizar percursos de inserção (aprendizagem) na cultura
de seu grupo. Um ser humano que não tenha essa possibilidade,
isto é, alguém que não cresça em contato com uma qualquer cultura, dentro de um grupo humano, sozinho não reinventa a cultura
do seu grupo e nem inventa a sua própria – posto que se trata de
algo da ordem do social e do coletivo. (Grifos da autora)
A centralidade da ética e dos valores sociais, políticos, econômicos, culturais na formação do sujeito é o princípio básico que deve
nortear a relação educação/cultura. Noções como direito, cidadania,
construção da identidade, respeito à diferença, equidade de oportunidades, etc. têm sido ressignificadas e integram o princípio educativo
de uma pedagogia da diferença no enfrentamento e no combate às
desigualdades. Desse modo, é possível afirmar que os movimentos
sociais ainda têm se constituído uma matriz formadora capaz de
renovar o pensamento e a prática educacional brasileira por meio
das experiências e lutas democráticas pela emancipação.
A capacidade de manter vivo o questionamento em torno do
saber, poder e identidade que são produzidos na e pela cultura
no interior da sociedade e difundida nas mais diversas maneiras
(educação escolar é uma delas) nos desafia. Como bem nos adverte Foucault (1979, p. 149-150), “nada mudará a sociedade se os
mecanismos de poder que funcionam fora, abaixo e ao lado dos
aparelhos de Estado a um nível muito mais elementar, cotidiano,
não forem modificados”.
Práticas pedagógicas das
relações raciais na escola
O desenvolvimento de projetos educativos que visem trabalhar
as relações raciais na escola nos desafia a reinterpretar os saberes
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A diversidade cultural como princípio educativo
e valores sociais e culturais que foram sócio-histórico e culturalmente
aprendidos. Os estudos realizados na área revelam que as principais
dificuldades na realização do trabalho da diversidade étnico-racial
referem-se à existência do mito da democracia racial3, à insuficiente
formação acadêmica docente e, ainda, à indiferença por parte dos
3
O mito pode ser entendido como uma corrente
ideológica que pretende
negar a desigualdade
racial entre brancos e
negros no Brasil. Se seguirmos a lógica desse
mito de que todas as
raças e/ou etnias existentes no País estão em
pé de igualdade sociorracial, conforme argumenta
Gomes (2005), podemos
ser levados a pensar que
as desiguais posições
sociais, econômicas,
educacionais, etc., hierárquicas, devem-se a
uma incapacidade inerente aos grupos raciais
que estão em desvantagem, como os negros e
os indígenas.
4
A Lei n. 10.639 (alterada
para n. 11.645/2008,
que inclui a “História e
Cultura Afro-brasileira e
Indígena”) sancionada
pelo então Presidente
Luiz Inácio Lula da Silva
em 9 de janeiro de 2003,
é considerada uma medida de ação afirmativa.
Após a sanção da Lei n.
10.639/03, o Conselho
Nacional de Educação
aprovou a Resolução n.
1, de 17/3/2004, que
institui as Diretrizes Curriculares Nacionais para
a Educação das Relações
Étnico-Raciais e para
o ensino da História e
Cultura Afro-brasileira
e Africana. As diretrizes
constituem um documento legal para as escolas da educação básica,
além de orientarem o
desenvolvimento de
práticas pedagógicas.
gestores e das políticas educacionais em abordar o tema.
Fruto das lutas do movimento negro em prol da educação
pública de qualidade, a Lei n. 10.639/2003 (BRASIL, 2003) altera
o artigo 26 da Lei n. 9.394/1996 (Lei de Diretrizes e Bases da
Educação Nacional (BRASIL, 1996)4 e torna obrigatória a inclusão
do ensino da História da África e da Cultura Afro-Brasileira nos
currículos dos estabelecimentos de ensino públicos e particulares
da educação básica.
O texto da lei é claro quanto aos objetivos de valorização social e
cultural do povo brasileiro, negro e indígena. Estabelece também,
no calendário escolar, o dia 20 de novembro, como “Dia Nacional
da Consciência Negra”.
§ 1º O conteúdo programático a que se refere este artigo incluirá
diversos aspectos da história e da cultura que caracterizam a
formação da população brasileira, a partir desses dois grupos
étnicos, tais como o estudo da história da África e dos africanos,
a luta dos negros e dos povos indígenas no Brasil, a cultura
negra e indígena brasileira e o negro e o índio na formação da
sociedade nacional, resgatando as suas contribuições nas áreas
social, econômica e política, pertinentes à história do Brasil.
§ 2º Os conteúdos referentes à história e cultura afro-brasileira
e dos povos indígenas brasileiros serão ministrados no âmbito
de todo o currículo escolar, em especial nas áreas de educação
artística e de literatura e história brasileiras. (BRASIL, 2003)
A Lei n. 10.639/2003, as Diretrizes Curriculares Nacionais para
a Educação das Relações Étnico-Raciais e o Plano Nacional de
Implementação das Diretrizes Curriculares Nacionais (BRASIL,
2009) têm impulsionado as instituições escolares da educação
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Natalino Neves da Silva
5
Em 2009, tive a oportunidade de atuar
como pesquisador
na pesquisa nacional
“Práticas Pedagógicas
de trabalho com relações étnico-raciais na
escola na perspectiva
da Lei n. 10.639/03”,
coordenada pela professora doutora Nilma Lino
Gomes, proposta pelo
Ministério da Educação
por meio da Secretaria
de Educação Continuada, Alfabetização e
Diversidade (Secad)
e a Organização das
Nações Unidas para a
Educação, a Ciência e
a Cultura (Unesco), em
parceria com o Programa Ações Afirmativas,
na UFMG. A pesquisa
visava mapear, investigar, sistematizar e publicizar (já está prevista a
publicação do livro que
contém os resultados
da pesquisa) as escolas
da educação básica que
realizam práticas pedagógicas no âmbito das
relações étnico-raciais
na perspectiva da Lei n.
10.639.
básica para o desenvolvimento de projetos educativos que buscam valorizar as dimensões da cultura negra nos diversos âmbitos
sociais, históricos, econômicos, educacionais e culturais.
Embora se reconheça que ainda há muito que fazer, pesquisas
sobre o trabalho com a diversidade étnico-racial na escola5 têm
revelado que existem experiências bastante significativas sendo
desenvolvidas nas escolas de Educação Básica em todo Brasil.
A elaboração e a implementação de instrumentos normativos
legais citados vinculam-se à garantia do direito à educação e mais:
ao direito à diferença. Contudo, a efetivação das políticas públicas
se dá, no cotidiano da vida social, de forma abrangente e complexa.
Portanto, podemos nos questionar: em que medida a realização de
práticas pedagógicas voltadas para as relações raciais na escola
contribui para o processo de constituição da cidadania brasileira?
A esse respeito, o texto contido nas Diretrizes diz:
A relevância do estudo de temas decorrentes da história e cultura
afro-brasileira e africana não se restringe à população negra, ao
contrário, dizem respeito a todos os brasileiros, uma vez que
devem educar-se enquanto cidadãos atuantes no seio de uma
sociedade multicultural e pluriétnica, capazes de construir uma
nação democrática. É importante destacar que não se trata de
mudar um foco etnocêntrico marcadamente de raiz européia
por um africano, mas de ampliar o foco dos currículos escolares
para a diversidade cultural, racial, social e econômica brasileira. Nesta perspectiva, cabe às escolas incluir no contexto dos
estudos e atividades, que proporciona diariamente, também
as contribuições histórico-culturais dos povos indígenas e dos
descendentes de asiáticos, além das de raiz africana e européia.
(BRASIL, 2004, p. 16-17)
Os recentes estudos sobre a história da educação do negro no
Brasil evidenciam, ao contrário de uma historiografia “generalista
e estereotipada”, diferentes peculiaridades sobre a trajetória social e histórica da escolarização do negro brasileiro. A presença
significativa de afrodescendentes nas escolas mineiras do século
XIX é uma delas, porém Fonseca (2005, p. 110), explica que
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o fato de encontrarmos um número significativo de afrodescendentes nas escolas não nos encaminha para a constatação
de um caráter democrático e nem tampouco para a ausência
de preconceito nos espaços escolares da sociedade mineira
oitocentista.
Parece que os achados históricos de pesquisa aliam-se à
necessidade de “ampliar o foco dos currículos escolares para a
diversidade cultural, racial, social e econômica brasileira” expresso
no texto das diretrizes, uma vez que o autor conclui:
Podemos dizer que o século XIX deu início a uma tradição que
se tornou a marca da educação: práticas pedagógicas com
um caráter fortemente disciplinar, que visava a infundir comportamentos tidos como adequados e desqualificar os sujeitos
portadores de uma cultura diferenciada do modelo europeu,
que se pretendia atingir. A experiência mineira aponta para o
fato de que [o] caráter eurocêntrico da escola não se justifica
pura e simplesmente por ter sido ela um espaço privilegiado
dos brancos; ao contrário, nela circulava um outro grupo que
era portador de uma cultura tida ‘perigosa’, a qual buscava-se
combater. (FONSECA, 2005, p. 110)
O entendimento da diversidade cultural como princípio educativo
nos instiga, portanto, à aprendizagem de valores sociais e culturais
do outro, não de forma hierárquica, mas dialógica e relacional.
Da mesma forma, provoca-nos ir além da noção de “inclusão”
de novos conteúdos na realização das práticas pedagógicas na
educação escolar e nos desafia a repensar as relações étnicoraciais, sociais, econômicas, políticas, pedagógicas e culturais na
sociedade de maneira sensível, investigativa e responsável.
Nesse sentido, é possível nos indagarmos: Será que o modelo
eurocêntrico continua sendo adotado hoje? Quais são as possibilidades de realização de práticas pedagógicas das relações
raciais na escola? Baseando-se em uma situação vivida em minha
experiência profissional, reflito sobre a primeira questão:
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Em meio a acalorada discussão realizada em sala de aula no
curso de Pedagogia, sobre os personagens, as imagens e as
manifestações culturais que os(as) estudantes cotidianamente
utilizam na Educação Infantil, uma aluna diz: ‘Branca de Neve,
Cinderela e Chapeuzinho Vermelho, todos contos de fadas
clássicos, professor!’ Ao se questionar a sua compreensão
de ‘clássicos’, ela responde: ‘Helo! Professor! São as histórias
universais que são passadas de geração em geração. Aquelas
que aprendemos em nossa infância e continuamos a transmitir
para as nossas crianças’.
Podemos verificar que, ainda hoje, os contos de fada constituem
uma prática social e cultural bastante utilizada na formação das
crianças da Educação Infantil. Sem adentrar a antiga discussão
em torno do uso ou não dos contos de fadas, interessa-nos aqui
refletir sobre sua função no processo de socialização das crianças,
como descreve Vincent, Lahire e Thin (2001, p. 17-18):
Qualquer modo de socialização, qualquer forma de relações
sociais, implica ao mesmo tempo na apropriação de saberes
(constituídos ou não como tais, isto é, como saberes objetivados,
explícitos, sistematizados, codificados) e na ‘aprendizagem’ de
relações de poder.
A adoção dos “clássicos” contos de fadas à luz do processo de
socialização instiga-nos a refletir sobre a constituição ética, moral
e estética das crianças das relações de poder transmitidas na escola. Numa sociedade multicultural e pluriétnica, garantir o acesso
apenas aos “clássicos” contos de fadas significa um reducionismo
eurocêntrico de cultura. Desenvolver práticas pedagógicas que
tenham como princípio educativo a diversidade cultural, porém, é
um desafio à possibilidade de ampliação dos referenciais formativos dos sujeitos de aprendizagens.
No tocante à história e à cultura africana e afro-brasileira, há
disponível hoje uma consistente produção literária, acadêmica e
midiática que pode servir de fonte de estudo individual e coletivo
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A diversidade cultural como princípio educativo
dos profissionais da educação. A inclusão de personagens negros,
assim como de outros grupos étnico-raciais no processo de socialização, além de permitir a ampliação dos referenciais formativos,
simbólicos e culturais, possibilita a valorização da autoestima e a
afirmação identitária das crianças negras.
Inúmeras são as possibilidades de realização de práticas pedagógicas das relações raciais na escola. O projeto Identifique-se,
desenvolvido na Unidade Municipal de Educação Infantil Carlos
Prates (Umei Carlos Prates), em Belo Horizonte é uma delas e compõe o quadro de análise de experiências de práticas pedagógicas
das relações raciais. Essa é a única escola da Prefeitura de Belo
Horizonte (PBH) que funciona no período das 7 às 22 horas, com
turmas de crianças até seis anos. Além dessa peculiaridade, a escola
atende, prioritariamente, filhos(as) dos associados da Associação
dos Catadores de Papel, Papelão e Materiais Reaproveitáveis
(Asmare), além das crianças da comunidade na qual está inserida.
O projeto Identifique-se oportuniza às crianças vivenciar elementos da cultura afro-brasileira de maneira a valorizar a identidade
de origem das famílias atendidas, considerando, principalmente
que das 80 crianças atendidas pela UMEI, a maioria é negra.
(VIANA; MITERRAND, p. 2009)
A valorização da cultura afro-brasileira aparece aqui como elemento estruturante do projeto, que visa desenvolver o trabalho
com práticas pedagógicas das relações raciais na perspectiva da
Lei n. 10.639/2003. Elementos culturais afro-brasileiros, como a
dança, a música, a religião, as tradições, as festas, e a contribuição intelectual, econômica, política e literária auxiliam no desenvolvimento
dessas práticas educativas. Ressignificar o conhecimento sobre a
história e a cultura afro-brasileira e africana significa, portanto, uma
tomada de consciência sobre a existência de outros referenciais que
constituem os saberes e valores sociais e culturais da sociedade.
O projeto Identifique-se foi realizado com a turma Faz-de-Conta,
formada por crianças de dois a três anos de idade, e organizado
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Natalino Neves da Silva
em cinco blocos: Auto-Imagem, África na Literatura, Heranças Africanas, África na Resistência. O trabalho foi desenvolvido em várias
etapas. A primeira foi a preparação do espaço da sala de aula para
as histórias infantis, deixando marcas tais como retalhos de pano,
uma pena de galinha, um botão de roupa, bonecas, panelinhas
e uma caixa toda enfeitada contendo o livro Bruna e a GalinhaD’Angola, de Gercilga de Almeida. [...] Era época de páscoa e
elas descobriram que o coelho não bota ovo. Para elas, então, é
a galinha d’angola que bota ovos. Ovos de chocolate! Sendo os
coelhinhos os ajudantes dela na entrega dos ovos de chocolate.
Por isso, para as crianças, a galinha d’angola é a GALINHA ESPECIAL. Diante do desafio de lançar um livro que contemplasse
todas as crianças, juntamente com elas, foi decidido que o livro
deveria ser grande, do tamanho da folha de cartolina – é a maior
folha de papel que elas conhecem. [...] Hoje as crianças falam
da África com naturalidade e propriedade, pois receberam várias
informações, dentre elas: aprenderam brincadeiras, saborearam
alimentos, conheceram animais, e vivenciaram que o negro também é lindo! (VIANA; MITERRAND, 2009, p. 7)
O projeto desenvolvido na Umei Carlos Prates revela aspectos
importantes sobre o desenvolvimento de práticas pedagógicas
das relações raciais na escola. Chama atenção a faixa etária das
crianças com as quais o trabalho foi desenvolvido. Tratar a história
e a cultura afro-brasileira e africana, desde a Educação Infantil,
como princípio educativo contribui no processo de formação
de cidadãos e cidadãs conhecedores do legado sócio-histórico,
político e cultural dos povos negros no País.
Além disso, o projeto Identifique-se adotou outras referências
formativas no processo de socialização de crianças além dos “clássicos” contos de fadas. Selecionar livros e outros materiais pedagógicos com abordagens diversificadas e positivas é importante para
que a criança se perceba e se reconheça como sujeito social.
Há tempos que os contos de fadas funcionam como um recurso
de socialização de crianças; contudo, a inclusão de novos referenciais que não se limitem aos eurocêntricos é capaz de produzir
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A diversidade cultural como princípio educativo
resultados bastante interessantes, como os observados no projeto.
Nesse sentido, Silva (2011, p. 34) explica:
O professor, ao contar história e discutir com os alunos, está
promovendo sua socialização e desenvolvendo seu senso de
moralidade, sem entregar para [criança] prontos, conceitos e
saberes que ela precisa construir. O objetivo não é ‘transmitir o
valor’ ou ‘encontrar a resposta certa’, mas ensinar a criança a
pensar. Só assim ela será socializada.
Finalmente, as práticas pedagógicas desenvolvidas conseguiram atingir resultados relevantes na vida social, intelectual,
política e cultural das crianças. O registro das experiências
vivenciadas por elas e suas professoras é um deles. Ademais,
o contato com a história e a cultura afro-brasileira e africana
possibilitou a superação de certos “preconceitos”, pois se constata que “hoje as crianças falam da África com naturalidade e
propriedade, pois receberam várias informações”. (VIANA; MITERRAND, p. 2009)
A valorização social, cultural, identitária e política da cultura afrobrasileira e africana realizada por meio das práticas pedagógicas
com as crianças da Educação Infantil (re)afirma a importância
do trabalho da diversidade étnico-racial na escola. Com efeito, a
abordagem da diversidade étnico-racial vincula-se a uma perspectiva complexa que caminha em direção à criação e recriação das
práticas pedagógicas que se dão com base na relação educativa
instituída entre os sujeitos de aprendizagens.
Conclusão
Como princípio educativo, a diversidade cultural leva-nos a,
constantemente, rever os valores políticos, sociais e culturais
de compreensão do outro. Lançar mão desse princípio significa,
ao mesmo tempo, entender o saber e a cultura como parte da
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produção sócio-histórica de determinada sociedade e também
problematizar os ditos valores sociais e culturais universais.
O entendimento de que “toda educação é cultura”, desafia-nos
a compreender a noção do saber, poder e identidade que têm sido
transmitidos e produzidos na instituição escolar. Assim, a realização de práticas pedagógicas que têm na diversidade étnico-racial
seu princípio educativo passa necessariamente pela revisão e (re)
construção dos valores sócio-históricos, políticos e culturais das
relações raciais na sociedade.
A assertiva de que se “aprende a cultura” alinha-se à necessidade de ensinar e aprender a história e a cultura afro-brasileira e
africana, bem como “a luta dos negros e dos povos indígenas no
Brasil, a cultura negra e indígena brasileira e o negro e o índio na
formação da sociedade nacional”. (BRASIL, 2005, p. 3)
A aprendizagem da e com a diversidade exige-nos, então, uma
postura ética, moral, estética e educativa diante do outro. Garantir
aos sujeitos de aprendizagens o acesso à história de lutas, resistências e conquistas dos povos negros no Brasil por meio das
práticas pedagógicas pode ser um bom começo...
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A diversidade cultural como princípio educativo
CULTURAL DIVERSITY AS A PRINCIPLE OF EDUCATION
Abstract
This paper reflects on some theoretical and practical possibilities of approaching
cultural diversity and, more specifically, ethnic and racial diversity in learning
situations at school. Whatever is taught or selected to be taught is not the result
of a neutral process detached from social and political conceptions. Cultural learning in the school environment not only raises questions and challenges, but also
should be conceived of as a front of conflict in which social, historical, political,
and cultural knowledge makes up part of the so-called universals of humanity. As
an educational principle, cultural diversity makes us constantly review the political, social, and cultural values we rely on to understand the other. To adopt this
principle also means to understand knowledge and culture as part of the social
and historical production of a given society as well as to problematize the so-called
social and cultural universals.
Keywords: Cultural diversity. Racial relations and education. Inter-ethnic pedagogy.
LA DIVERSITÉ CULTURELLE COMME PRINCIPE ÉDUCATIF
Résumé
L’article réfléchit plus généralement sur certains aspects théoriques et pratiques
de l’approche véhiculée par la diversité culturelle et discute plus spécifiquement
la diversité ethno-raciale associée aux situations d’apprentissage dans le champ
de l’éducation scolaire. Le choix de ce qui doit être enseigné ne se fait pas dans
la neutralité, il n’est pas non plus dissocié de certaines conceptions sociales et
politiques. L’apprentissage culturel transmis par l’éducation scolaire suscite plusieurs questions et défis; ainsi cet apprentissage doit d’être conçu comme une
sorte de croisement où a lieu le débat des nombreux savoirs sociaux, historiques,
politiques et culturaux qui forment le savoir universel de l’humanité. Comme principe éducatif, la diversité culturelle nous amène à réviser constamment les valeurs
politiques, sociales et culturelles liées à la compréhension de l’autre. Se servir de
ce principe signifie à la fois considérer le savoir et la culture en tant que parties
intégrantes de la production socio-historique d’une société donnée et mettre en
question lesdites valeurs sociales et culturelles universelles.
Mots-clés: Diversité culturelle. Rapports raciaux et éducation. Pédagogie interethnique.
Recebido em 26/10/2011
Aprovado em 13/11/2011
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