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Tese Cap.4 - Da teoria pliniana da imagem: abordagens e limites.

2019

https://doi.org/10.47749/T/UNICAMP.2019.1091679

O capítulo 4 consiste em reconstituir a fortuna crítica daquilo que se convencionou chamar a “teoria pliniana da imagem” (H.N.35.2-15) para oferecer uma contribuição a mais para esta querela – rumo a uma alternativa de interpretação que expressasse os resultados das investigações dos capítulos anteriores. De modo que revisamos os mais significativos estudos sobre as várias nuances relacionadas à produção e culto da "imago" romana, investigamos as noções de naturalismo, realismo e verismo que comumente servem de caracterização desta produção artística, e destacamos que a diferença sutil entre a imago e o uultus (vulto) que nela se expressa. Com isso explicamos uma diferença fundamental entre a "similitudo naturae" pliniana e a "imitazione della natura" vasariana, e também o sentido caminhante ou vagante dessa forma de história da arte. Da maneira como melhor pudemos, no último capítulo ainda apresentamos como o estado atual da História da Arte deve ser capaz de estabelecer novos parâmetros de releitura do conjunto das anedotas de Plínio, e como também uma releitura dessas mesmas anedotas pode ser capaz de estabelecer novas possibilidades para o atual estado da História da Arte. Na sua primeira parte revisitamos o problema da formação da nossa disciplina segundo a perspectiva do seu fim, conforme o trabalho de Hans Belting (O Fim da História da Arte). Ao fazê-lo ressaltando o descarte da H.N., indicamos que para essa disciplina se constituir como uma epistemologia fechada (um juízo acadêmico) ela precisou manter do lado de fora, necessariamente, toda epistemologia aberta e principalmente a da história da arte da H.N. Daí o sentido último não só da Paradoxografia que intitula a tese, mas também de “História Natural da História da Arte”.

252 CAPÍTULO 4 – Da teoria pliniana da imagem: abordagens e limites. 4.1 – Considerações Finais: a interlocução inelutável da morte artística, segundo Plínio, com O Fim da História da Arte, de Hans Seria a função psíquica das imagens fazer-nos considerar – na compulsão de repetição – nossas diferentes mortes? Seria a função originária das imagens começar pelo fim? (DIDI-HUBERMAN: 2010, p.249) Um nome; uma estima; um pesar; data e local da despedida. O papel-jornal nos ensinava que algumas palavras cercadas por uma borda preta, cheirando ainda à tinta, é o bastante para dar conta de um morto. Epitáfio em lápide de enrolar peixe. Mas isso não é o bastante para dar conta do morrer. Para isso é preciso todo um epílogo, a lógica de um sentido ou de um algo que sobrevenha às ações sem confundir-se nelas. Enciclopédia sobre um mundo que já não existe. Não obstante, todo o tempo se faz confundir, no conteúdo, com obras verídicas e, no aspecto formal, com textos de enciclopédias convencionais. Por sua inventividade e rigor termina enfim exercendo inacreditável influência sobre a maneira como vemos e vivemos na realidade. Mais do que isso, termina por determinar os elementos da realidade, mesmo que só produzindo objetos perdidos. Casos extravagantes, elementos contraditórios, coisas fantasiosas e explicações desconcertantes. E então descartada, inabilitada, quando seus poderes já não têm porquê. Enfim, foi assim que apenas três anos depois da publicação de nossa epígrafe ele sobreveio: O Fim da História da Arte.272 Agora, já contamos uma geração inteira desde o evento. A relação entre a arte ou a história da arte e o fim não é de forma alguma uma novidade, seja na formação da disciplina da história da arte, seja na filosofia da arte – especialmente alemã.273 O insólito do livro de Hans Belting, no entanto, se encontra no modo como sua narração do abismo ultrapassa estágios de luto sem dar chances de retorno; já incapaz de impressionar e sem nenhum sinal de extravagância (2012, p. 11). Por isso é preciso atentar para o acontecimento que ele compreende, espera, e encarna. 272 BELTING, Hans. O fim da história da arte. São Paulo: Cosac Naify, 2012. Evidentemente, relação que de forma alguma o autor subtrai. Ao contrário, vale-se dela para desenhar com precisão geométrica a organicidade do gesto inaugural de Vasari até o prognóstico mortal de Hegel. Em linhas gerais, questão de conceito. De diferentes e intercambiáveis maneiras, o problema de como o mundo pode ser objeto de conhecimento e lugar de prova para o sujeito pessoal estruturou a historiografia da arte como disciplina ao mesmo tempo em que a tornava mais um passo a ser superado na progressão da ciência do espírito. Curiosamente, como sugeria Foucault, isso envolveu a passagem da vida enquanto objeto de uma arte para tornar-se o correlato de uma prova de conhecimento do mundo. (ibid: pp. 589-591) 273 253 A história da arte era um enquadramento de outro tipo, que fora escolhido para ver em perspectiva o acontecimento artístico. Por isso, o fim da história da arte é o fim de uma narrativa: ou porque a narrativa se transformou ou porque não há mais nada a narrar no sentido entendido até então. (ibidem: p. 46) Resultado de mais de uma década de reflexões teóricas, históricas, críticas e docentes, O Fim diagnostica a perspectiva definitiva de um abismo histórico que se fazia plenamente apresentado entre a história da arte institucionalizada e as obras de arte em produção, tendo por ponto de gravidade desse diagnóstico uma crise da narratividade. O que ele compreende, em linhas muito gerais, é que as obras produzidas atualmente pareceriam estabelecer uma cisão de tal ordem com as obras produzidas anteriormente que se faz impossível a narrativa até então vigente, com seu modelo e estrutura, enquadrar em um todo coerente o conjunto das obras de arte. Não é que a história da arte de até então fosse incapaz de lidar com diferentes obras. Na verdade, como o próprio Belting argumenta e destaca, desde Vasari essa historiografia se sustentava individualmente segundo uma continuidade que tinha por critério ideal a convergências das diferentes séries de obras através de alguns tantos mecanismos ou conceitos. Mais do que força inventiva de Vasari ou inteligência da sua empresa, toda uma cognição da História da arte residia em grande parte na sua capacidade de identificar na série das obras anticas algo da série nova e divergente das obras modernas, abstraindo um juízo acadêmico que transcendia esses ciclos individuados de produção artística. Assim, criou-se um plano anterior sobre o qual as obras e artistas se davam a ocorrer comportando diferentes períodos, movimentos, gêneros e aspectos culturais. Fornecia um novo valor ao seu mundo em face do valor novo dessa História da Arte que se fundava, sustentando uma teleologia histórica, uma ordem da ideia e a noção agregadora e definidora do disegno. Tratava-se, em suma, de um plano historiográfico infinito que por simples entropia se apresentava numa ordem limitada e finita de obras e artistas.274 (…) não era minha intenção fazer uma nota sobre os artistas e um, digamos, inventário de suas obras; (…) porque isso eu poderia fazer com uma simples tabela, sem inserir em lugar nenhum os meus juízos a respeito. (…) pois saibam que a história é realmente o espelho da vida humana. (VASARI: 2011, p.169) 274 “A equivalência entre um ciclo antigo da arte e um moderno era pura ficção, embora oferecesse, por assim dizer, a prova histórica de que a norma da arte já fora descoberta na Antiguidade e podia, por isso, ser redescoberta agora. O classicismo era a realização visível de uma norma estética derivada de nenhuma outra, mas estabelecida absolutamente.” (ibid: pp. 224-225) 254 Evidencia-se, portanto, que a questão d’O Fim é outra mais complexa que a simples contrariedade entre as séries de obras de até então e as produções contemporâneas. Pois não se trata de negar à série atual de produção os critérios e valores de artistas e obras de arte. Antes, é pela sua garantia que se compreende sua terminalidade. Através das várias séries de contrariedade com que o plano da História da Arte se desenvolveu foi também crescente sua autoconsciência. Enfim, esta série final faz todo o processo desembocar num tipo de conhecimento absoluto em que a própria consciência cognitiva dessa historiografia percebe-se a si mesma como tal e nos seus limites. Todo o jogo metonímico desse plano desemboca na constatação da sua própria consciência de ser uma parte de um todo ainda maior. Daí a conjunção da contrariedade das obras produzidas com a impossibilidade daquela historiografia. Logo, não se trata da impossibilidade de escrever história da arte; mas a impossibilidade das histórias já escritas e do que venha a ser escrito junto a elas. A sequência de períodos e estilos bem determinados e abrangentes se esfacelou, seus gêneros foram extenuados, e a noção de obra se esgarçou tanto que seus limites se perderam. Isto é, a própria narrativa da história da arte, que se acreditava um processo de construção tijolo a tijolo ao longo dos séculos, ocasionou um tipo de implosão através de si mesma tendo como decorrência imediata o seu próprio fim. Antes do morrer em si, a cessação das atividades úteis ou valoráveis. Preparo para o desaparecimento pessoal. Por isso, o fim em vez da morte: xeque-mate (cf. ANDRADE PEREIRA: 2011). Causa ou efeito, Belting advoga que tudo aquilo o que poderia ter sido escrito sobre a arte já o foi de alguma maneira, nos restando apenas a alternativa literária, e mesmo antinarrativa, do epílogo como tropo. “Não é importante o que os epílogos designam, se o fim da história, o fim da modernidade ou o fim da pintura. O importante é somente a necessidade de epílogos que caracteriza uma época. Onde não se descobre nada de novo e o velho não é mais o velho, sempre se supõe o epílogo” (BELTING: 2012, p. 25-26). Por mais que se possa discutir o como, o onde, o quando, O Fim já é um acontecimento certo. Daí a sua espera em forma de livro. O quadro que ele apresenta está dividido em duas partes: a primeira sobre o drama de sua situação atual, os elementos de sua terminalidade; a segunda quanto ao como se desenvolveu até ali, os elementos de seu encaminhamento para este ponto. Cada parte se compõe de uma série de onze capítulos. Assim dividido, como em espelho, o livro estabelece uma significativa simetria entre as novas colocações do autor (Parte I) e as complementações ao seu ensaio de dez anos antes (Parte II) – quando ainda havia o sinal de interrogação após o título (O Fim da História da Arte?). Nesse sentido, o próprio processo cognitivo de 255 organização textual de O Fim é ilustrativo. Pois, a despeito das aparências e também das simetrias, o novo ensaio não é uma resposta nem uma continuação do primeiro. Na verdade, é o primeiro que não é mais o mesmo, mas algo totalmente revisado pelo novo contexto.275 O jogo metonímico dá lugar ao oximoro (falso paradoxo),276 talvez o secreto tropo preferido dessa historiografia morrediça. Figura em que se combinam palavras de sentido oposto mas que, por força do contexto, reforçam uma expressão em vez de excluírem-se mutuamente. Sob a regência de uma ideia totalizante uma das palavras altera seu sentido para reforçar o da outra, eliminando a contradição em favor de um aguçamento; como quem ignora a inversão imagética do espelho para não apenas se identificar mas se retocar nele, se ajeitar e se realçar através de sua versão contrária.277 Se se procura uma história da arte que tenha ocorrido, então se encontra antes uma história da arte que foi escrita, mas que consiste apenas em projetos que permaneceram sem sequência. É como um labirinto de espelhos em que não se encontra mais a saída. (ibid, p.314) Nesse terminal aguçamento é que somos levados a ver a inegável contradição das imagens refletidas, sem saída. Em outras palavras, a convergência das séries (Parte I e Parte II, ou a história da arte e as obras de arte) teria enfim evidenciando sua falta de sentido, suscitando mais do que puro rompimento a necessidade de ser ultrapassada. O que se espera é que diante desse abismo narrativo se inverta a atenção para o contexto maior. Enquadramento puro do próprio enquadramento. Hans vai afivelando o cinturão. Uma definitiva “alteração de imagem” (ibid, p.11) – como um Jano cujos rostos se voltam um para o outro em vez da posição tradicional de olharem para fora.278 Hoje não é mais preciso quebrar o espelho contido na história da arte, já que não se possui mais a cultura para todas as épocas. (BELTING: 2012, p. 329). Frases curtas ou bastante objetivas, em textos e capítulos também curtos e objetivos. Mas sem pressa. Mais do que não dar espaços a sentimentalismos, personifica o discurso 275 “O texto antigo não foi apenas completamente reescrito, mas também ampliado com um novo capítulo em que as teses anteriores são desenvolvidas.” (ibid: p. 18-19) 276 O próprio autor, no entanto, assegurava já que era preciso reconhecer “traços decididamente paradoxais” comportados na coexistência da ciência da arte e da vanguarda (ibid: p. 19). 277 “A equivalência entre um ciclo antigo da arte e um moderno era pura ficção, embora oferecesse, por assim dizer, a prova histórica de que a norma da arte já fora descoberta na Antiguidade e podia, por isso, ser redescoberta agora. O classicismo era a realização visível de uma norma estética derivada de nenhuma outra, mas estabelecida absolutamente.” (ibid: pp. 224-225) 278 Conforme a obra de Peter Greenaway que “guarda a entrada” (ibid: p.21) do corpo do livro (ibid: p.7) e pelo qual “chegamos finalmente à solução do enigma” (ibid: p. 333). Ou ainda na justificativa que ele apresenta para a reprodução da obra de Kosuth no livro a partir de uma declarada cópia (ibid: p. 56). 256 obstruído, interditado, esvaziado de seu desenvolver anterior.279 Apenas o ritmo apropriado à inutilidade narrativa. O epílogo é o assunto do primeiro capítulo da Parte I, exigindo que o corpo do livro “inicie” na própria impossibilidade de um qualquer discursar sobre arte. A efetividade desse gesto de “abertura em fecho” evidencia o quanto esse não é mais um livro de história da arte. O epílogo marca a historiografia que ainda persistiria em suas proposições, mas já não alcançaria as obras e/ou artistas – toda tese se veria invalidada de antemão (ibid: p. 25). Nesse jogo livresco de espelho sem saída, o capítulo que reflete inversamente este é o último da Parte II: “Os livros de Próspero”. Tomando como seu “interlocutor imaginário” a adaptação cinematográfica de Peter Greenaway (Prospero’s Books) da última peça de Shakespeare (A Tempestade, famosa entre outras coisas por seu epílogo), a conclusão lógica não é a representação da história da arte que subsiste por trás dos seus enquadramentos restritivos e limitantes, mas sim a da história da arte apenas e puramente nos seus enquadramentos mesmos, através dos quais já entramos e precisaremos sair. É pela leitura dos volumes da enciclopédia mágica do protagonista (Próspero) que tudo imediatamente ganha vida e toda a ação artística se desenrola.280 Detalhe fundamental é que esses livros poderosos, elementos relativamente secundários na peça original, foram reinventados por Greenaway como estrutura mesmo de toda a ação. Na verdade, mais do que isso, o cineasta criou a arte de todos esses livros especialmente para a produção cinematográfica, e a sua câmera trabalha fundamentalmente na superfície, nos enquadramentos e nas direções desses livros explorando seus elementos artísticos largamente. Até que no fim, ao tempo do epílogo, “os livros são queimados ou jogados ao mar, até que Próspero entra à nossa frente diante de uma cortina de palco, desencantado e como um simples ator, e fala o epílogo de Shakespeare” (ibid: p.336).281 (…) libertai-me de minhas amarras Com a ajuda de vossas mãos. 279 Exatamente conforme aos sintomas descritos do estágio de depressão envolvido no luto. No filme de forma muitíssimo mais agravada do que na peça original. Próspero não apenas realiza passes de mágica e comanda o enredo através dos seus livros encantados, mas ele mesmo pronuncia todas as falas e executa artificialmente todas as ações. 281 O epílogo que marcou a despedida oficial do grande dramaturgo, reinventor da vida. Mas que não é a conclusão da peça. É a visão posterior a ela que termina de apresentar a suposição tão cara à Shakespeare do mundo como palco, do real como teatral. Por isso, esse é um dos mais famosos da literatura, pois é o epílogo de uma história da arte à parte que é o universo do maior dramaturgo de todos os tempos – reconhecido por seu expediente e admirável habilidade de enquadrar e desenquadrar tramas das mais diversas fontes vertendo-as em obras completamente novas e singulares: “a maneira de Will (...) Ele põe a Boêmia à beira-mar e faz Ulisses citar Aristóteles.” (JOYCE: 2011, p.231) A Tempestade é ela em si mesma uma peça, antes de tudo, sobre as inversões de ordem em inúmeros jogos de apropriações e desapropriações desde a cena inicial com o contramestre gritando e dando ordens aos nobres, passando pelo projeto político de Gonzalo, pelas tramas de Sebastian e Antônio contra o rei, e também as de Caliban e dos marinheiros bêbados, bem como as do próprio Próspero em vários níveis. E entre todas essas há o jogo principal de inversões entre o real e o encantado e o artístico. 280 257 Que vosso gentil alento desfralde minhas velas. Do contrário, falhará meu projeto, Que não era outro senão agradar. Agora falta-me espíritos para comandar, Arte para encantar. E meu fim é o desespero (…) É quando, finalmente, o livro supõe indicar o espaço dessa alteração de imagem de olho no contexto maior, um chamado etnológico por uma antropologia da imagem. É preciso entender a estrutura e o contexto desse abismo.282 Já não mais um livro de História da Arte, mas o anúncio e a espera do seu fim. Mas também quando é preciso entender como O Fim encarna o seu acontecer. Nesse sentido, dois pontos nos parecem decisivos. O primeiro é que retraçando d’As Vidas até Prospero enquanto percurso cognitivo dessa crise narrativa o objetivo dessa historiografia se tornou nada menos que a descoberta do seu sentido de vida. Desde Vasari e Winckelmann, passando por Hegel e De Quincey, alcançando Kosuth e Greenaway, a História da Arte aparece então como uma espécie de ego de aproximadamente quinhentos anos de existência que, finalmente, depois de negações, raivas e muita barganha ultrapassa com retidão esses estágios envolvidos no luto por sua própria terminalidade. 283 Irrefutável ortotanásia. Todavia, se é assim, poderíamos alegar que em lugar da aceitação ele ainda experimenta a depressão. Não uma depressão reativa, como reflexo da absoluta falta de esperança, mas sim aquela de outra natureza: quando é uma ferramenta de preparo para a perda inevitável das coisas que se ama e quando são sem necessidade ou até mesmo contraindicados os encorajamentos e as tranquilizações positivantes ou otimistas (cf. KÜBLER-ROSS: 2014, p. 99). E não é graças à narratividade por epílogo – também nós já precisamos discutir longamente uma “lógica do sobrevir” – e sim pelos sintomas do seu epilogar que assim consideramos. Dessarte, o que caracteriza um tal estágio é que não se pensa na morte em si, mas na inutilidade da vida até então vivida. Esse é o significado do que de grande se perdeu, e essa é a marca do seu elemento preparatório para o desaparecimento. O ego próspero que antes da morte precisa enxergar-se ator e libertar-se de sua atuação, de seus enquadramentos poderosos que não fizeram mais do que conduzi-lo até este ponto terminal sem retorno. Enfim, o problema habita agora na negatividade que passa a caracterizar a disjunção entre as séries heterogêneas, na sua impossibilidade de identificação que demandará a 282 Algumas de suas características levantadas por Belting sendo a cultura de massa; a arte multimídia; toda uma nova geografia junto à questão das minorias; a problemática na divisão ocidente e oriente; etc. 283 Conforme o já clássico digrama descrito pela Dr. Kübler-Ross dos estágios de pacientes terminais. On Death & Dying. Scribner: New York, 2014. 258 preparação de uma síntese conceitual nova para dar conta dessa grande perda que por todo lado se faz notar. Mas não era esse, o caminho em busca de uma totalidade constituinte dos diferentes planos de consciência, o próprio “caminho da desesperação”? (cf. HEGEL: 1988, p. 66.) E então chegamos ao seu segundo ponto decisivo. Porque, nesse sentido, em vez de alcançar a fase de contemplação e compreensão da própria fantasia que viveu (cf. KÜBLERROSS: 2014, p. 145) parece que esse vídeo-epílogo como lição artística na verdade reprime uma realidade bem mais devastadora impedindo-o de atingir seu estágio de aceitação, impedindo-nos da contemplação e encarnação de uma kalotanásia.284 Assim como a palavra fim evita por todo o livro a palavra morte, a saída pela enciclopédia inconfundivelmente fictícia do Próspero do filme de Greenaway parece recalcar aquela espécie de pesadelo recorrente que desde a sua formação assombra este ego historiográfico: os últimos livros da enciclopédia do mundo antigo, a História Natural, de Plínio, o Velho. Porque o fato realmente perturbador não é nem tanto a miríade de paralelos possíveis entre essas “enciclopédias” (a de Próspero e a de Plínio), mas sim que a historiografia da H.N. tenha encarnado o sentido dessa negatividade histórica ao longo de toda a formação dessa ciência própria. A começar, esse conjunto livresco não nos assegura sequer que nele encontremos o ponto originário dessa literatura especializada. Sabemos que não se trata do primeiríssimo trabalho escrito de história da arte, mas tão somente o mais antigo a resistir no tempo. Ou nem isso. Apenas o texto em que se deixam entrever as fontes originais ou os estágios preliminares plenamente realizados.285 A crítica filológica da H.N. de fins do século XIX teve a competência de apurar, recortar e determinar as diferentes fontes originárias de Plínio no seu próprio texto e ainda avaliar as correntes diversas a que cada uma delas se relacionava e que o polígrafo teria ignorado completamente. Assim, após detalhada revisão dos últimos livros da H.N. junto ao conhecimento adquirido e computado das fontes antigas bem como os trabalhos de filologia e crítica de sua época, ela pôde concluir, sem qualquer constrangimento, que a única contribuição pessoal de Plínio para esta pseudo história da arte foram “ocasionais flashes de retórica” conciliando informações gregas e o gosto romano.286 “Bela morte”. Conforme contraposição da medicina paliativa proposta em QUINTANA: 2016, pos. 452. Suas próprias fontes nos atestam. Duris de Samos, Xenócrates de Sicione e Antígono de Caristo são, possivelmente, os três mais importantes autores gregos a orientar, ainda que indiretamente, o texto de história da arte de Plínio, seja nas questões técnicas seja nas questões biográficas. Mas ainda havia outros tantos trabalhos na Antiguidade, dentre eles os dos mais famosos artistas, como o Cânone de Policleto, e os tratados de Apeles, Apolodoro e Pasiteles. 286 As oitenta e poucas páginas que compõem a introdução de Sellers estão assim divididas entre essas fontes, e em ordem de antiguidade (a estima do valor de cada autor se mede no total de páginas dedicadas): 20 para Xenócrates de Sícion; 10 para Antígono de Caristo; 22 para Duris de Samos; 6 para a literatura epigramática; 3 284 285 259 Ou ainda em outras palavras, ele menos teria escrito uma história da arte do que encarnado o seu morrer, corrompendo os vibrantes trabalhos originais e imiscuindo-os às demais e mais ínfimas coisas do mundo em um canto ou extremidade de sua inventariante empresa onívora. Paralelamente, essa dita história da arte que tem a assinatura de Plínio já não é para nós (modernos) senão uma distância, a mais longínqua distância que temos de algo como uma história da arte – pelo menos, nossa mais antiga referência ocidental. Se esses livros (33 a 37 da H.N.) serviram de agon decisivo para Vasari e de livro de cabeceira para Winckelmann, foi precisamente para serem descartados como ponto de partida para uma disciplina acadêmica moderna que personificasse a individualidade e a totalidade desse saber. Logo, a H.N. não como estágio antigo, mas como estado anterior das coisas. Por falta de uma cultura estética própria e distinta das demais ciências e disciplinas, e por ausência de uma real contemplação das obras – que uma vez perdidas para sempre não fazem mais do que retornar, repetidamente, ao seu estado de matéria bruta e inanimada. Não por acaso Vasari repete Plínio ao começar sua historiografia renascentista pela revisão dos materiais artísticos. E Winckelmann foi quem pôde literalmente resgatar obras antigas do meio das camadas de sedimentos.287 Antes de tudo (de toda a tese) é necessário compreender esses livros paradoxalmente: como a última das histórias da arte antes da História da Arte. Dessarte, para nos voltarmos para essa dita “história da arte pliniana” é irrecusável começarmos pelo fim; afinal, já não se trata de perguntar somente o porquê de ainda voltarmos a Plínio, mas também o porquê de ainda voltarmos à história da arte. Não em busca de um outro modelo, de uma alternativa ou saída original. Não, certamente, para virtualizar o atual estado dessa historiografia em fins relançando-o a um início ou origem diferente. Ao contrário. Antes, para atualizar as possibilidades de nossas questões contemporâneas propriamente historiográficas. Por isso mesmo, não se trata de salvação através de uma novidade, mas apenas de trazer à experiência um campo de possibilidades desfeitas. De quando antes de ser história da arte ela não estava apenas relacionada a uma antropologia, mas ao limite de todos os campos de saber humanos. É no trauma desse negativo de história da arte que vislumbramos a possibilidade de atingirmos o derradeiro estágio de aceitação do inelutável; “quando a televisão fica desligada”, “quando se está perto de fechar seus olhos para sempre” (KÜBBLER-ROSS: 2014, p. 124). para Heliodoro de Atenas; 5 para Pasiteles de Atenas; 3 para Varrão; 6 para Muciano; e, finalmente, 3 para Plínio, o Velho. 287 Além, é claro, do célebre poema de Michelangelo sobre o ofício artístico de fazer sair da pedra bruta uma vida. 260 É certo que Plínio também é bastante econômico nas palavras e na comunicação verbal como um todo de sua história da arte. E embora até tenha seus momentos e movimentos de contentamento, também não é uma escrita festiva ou risonha. Mas o é de um jeito totalmente diferente de Belting, encontrando para si uma comunicação não verbal. Silêncios, gestos e passeios. Sobretudo passeios; não exatamente por lugares ou coisas, mas pelas disposições que eles manifestam. Nos encontramos em um paradoxo literário que se fez histórico: afinal, ao registrar as notícias dessas obras de arte, para todo sempre perdidas visualmente, para todo sempre guardadas textualmente, Plínio as salvou do oblívio ou fundou a nossa perda? Como já apresentamos e insistimos, é certo que sem suas narrativas nada, ou quase nada, saberíamos dessas obras. Bem como seria simplesmente infantil minimizar as ressonâncias dessas narrativas por toda a história da arte ocidental. Ao mesmo tempo e exatamente por essas ressonâncias, pelas buscas arqueológicas, pelas releituras e remakes…; por tudo isso, elas não instalaram uma perda original, um vazio primeiro? Não é isso uma via de mão dupla que instala uma salvaguarda ao mesmo tempo em que instala uma perda irreparável que do contrário nem saberíamos ter existido? E que, ademais, apontará sempre no horizonte como elemento final de toda teleologia historiográfica: a temida entropia que tarde ou cedo trará a perda sem volta de todas as obras ou o retorno desse ego ao seu antigo estado inconsciente, quando estava perdido e impessoalizado em meio aos demais saberes e ciências? Parafraseando Morte por Saudade, somos tentados a dizer que a História da Arte “foge da plinitude” (VILA-MATAS: 2012, p.19).288 Nesse sentido, ainda que leiamos com algum entusiasmo as páginas de Plínio apreendendo uma vitalidade outra, como em um mundo outro dos mortos, não há lugar para a tentação, de leitura bíblica, de um paraíso perdido da história da arte. O lugar etéreo onde habitam as artes puras, ideais, intangíveis por nós na sua perfeição. Nem na H.N. o encontramos, nem nas recorrências que imaginamos nos frontispícios da obra de Vasari (ressurreição dos mortos no Juízo Final) e da obra de Winckelmann (voo divino em glória olímpica): o primeiro as relega à espera do seu juízo crítico acadêmico; por exclusão, o segundo pinta essa historiografia em cores titânicas e desordeiras, instáveis, confusas. 289 Sem caráter cristão ou pejorativo, portanto, melhor são os seus ecos enquanto inferno da arte – seja Segundo conto de Suicídios Exemplares. Nele, a frase “Você foge da plenitude” é dita ao narrador por um jovem marcado por uma estranha sequência familiar de suicídios. Mas ao fim essa sequência é transformada em saudade: em vez do suicídio o desejo por aquilo que não foi e por aquilo que sempre está por vir a ser. 289 Dizendo da arte helenística, houve quem resumisse assim esse período categorizado como da morte da arte: “A escultura não anseia sequer reencontrar qualquer coisa do paraíso perdido na divina ironia para a qual não foi feita, (…) A arte se afastou de sua finalidade religiosa. Os deuses desertaram a alma dos artistas para habitar o coração dos estoicos, que os acolhem sem dizer palavra.” (apud: CALOSSE: 2017, p. 62) 288 261 no disfarce hercúleo para salvar artistas (ARISTÓFANES: 2004, p. 193) ou na busca enlouquecida pela obra “inencontrável” (BALZAC: 2012, pp. 21-22).290 Isto é, onde tudo se encontra no morrer – irremediavelmente perdido e conservado – mas, principalmente, interrelacionado fora dos limites temporais e espaciais, e independentes de suas causalidades. Em vez de uma boa imagem como salvação ou essência ideativa das obras, apenas as próprias evanescências em si perdendo e fazendo passagens entre si. E, contudo, sem constrangimentos de nenhuma natureza, sem pathos. Porém, aqui e ali, de tempo em tempo, assombrando outros artistas e outras obras do mundo dos vivos. Portanto, sem busca de caráter essencialista a reencontrar alguma verdade ou algo de verdadeiro e perdido, nada como aquele moderno “mito do achado crítico” de Barthes (2009, p. 99): pois a H.N. não é um vasto cofre de objetos perdidos, e muito menos sua história da arte. Nos cabe, assim, o pensar da sua perdição, o porquê e o como essas obras se encaminharam para essa artesania do seu morrer. O que a crítica filológica do século XIX nos faz crer é que de um processo de desenvolvimento linear da literatura de arte só recebemos a notícia derradeira de quando ele já se encontrava em franca decadência. A compilação pliniana seria o resultado, então, de uma síntese empobrecida desse desenvolvimento, tendo eliminado os pontos divergentes em favor da unidade do andamento enciclopédico que se impunha. Narração em língua morta bem como desprovida do ânimo de suas matérias, das imagens visuais de suas obras. “Esta é a pura verdade: a moleza [desidia] pôs a perder as artes, e, já que faltam os retratos das almas [animorum imagines], descuram-se também o dos corpos [corporum]” (35.5). O problema da questão então é que ela não retorna como lembrança ou sonho, mas assumindo a forma de experiências novas (ressonâncias, revisões, remakes…); não só o acontecimento textual de fazer nada mais que as suas ausências, mas também o de aparecer dissimulando-se.291 Sempre se insinuando modernamente, sempre lançada de volta para o invisível na Antiguidade. História da arte cadavérica desprovida do ânimo de suas obras. Estado inanimado das coisas, pura entropia. Razão pela qual esses livros passaram de um 290 No primeiro texto, As Rãs, o deus Dioniso desesperado pela morte dos grandes tragediógrafos se trasveste de Hércules para ir até os reinos de Hades a fim de encontrar e trazer de volta ao menos um deles. Chegando lá, depara-se com um grande evento cercado pelas maiores figuras já mortas de todas as áreas em que acontece um concurso artístico entre Ésquilo e Eurípedes. No entanto, as peças não são reencenadas, mas se entrecruzam seus pontos relevantes passando de uma explosão de lição artística a outra. No segundo texto, A Obra-prima Ignorada, o pintor que é ele mesmo a “imagem completa da natureza artística, essa natureza louca” busca desesperadamente pelo modelo vivo perfeito para terminar sua grande obra e indica que só o poderá encontrar nos infernos da arte. Poder-se-ia imaginar que o conto o desmente, vez que enfim ele encontrará a sua modelo no seu próprio mundo. Porém, vale atentar no resultado final o elemento de sua tragédia: a encarnação desse inferno. Para ter o retrato “mais vivo de todos” tudo deve perecer: a modelo, o pintor, e a própria representação. 291 “No núcleo dessa dialética, sabemos, Freud colocará a operação constitutiva – negativa e estrutural ao mesmo tempo – do recalque.” (DIDI-HUBERMAN: 2010, p.230) 262 registro de obras evanescidas, na Antiguidade romana, a um negativo de historiografia, ao estado de coisas de que a vida historiográfica da arte precisou se afastar para se constituir. Mas que, não obstante, “se esforça por retornar através dos tortuosos caminhos ao longo dos quais seu desenvolvimento conduz” (FREUD: 2015, pos. 77441). E, por tudo isso, nos parece, enfim, bastante aceitável seguir com a terminologia freudiana292 para reconhecer como de diferentes formas a questão é que a H.N. esteve insistindo nessa moderna história da arte, um tipo de forma intensiva para esse ego bem constituído até em suas discordâncias, como uma pulsão de morte (compulsão de repetição), como uma experiência muito antiga que se negou ao prazer e da qual ainda não aprendemos sua lição derradeira (ibid: pos.77167).293 Certamente, já questão de recepção. Para a qual talvez valha ainda aquela instituída certa arte interpretativa de descobrir, apontar e induzir um ego a abandonar suas resistências. Seria preciso, segundo o procedimento classicamente recomendado, fazer essa nossa moderna história da arte reexperimentar alguma parte de sua vida esquecida em negatividade, mas também cuidando para que este ego retenha algum grau de alheamento (ibid: pos. 7710677122). Questão de teatro, faz ouvir Próspero, e de deslocamento. De fato, o Livro 35 é aberto com uma digressão dos assuntos dos metais para a arte da pintura, qualificada “arte nobre outrora” quando “enobrecia aqueles que eram dignos de legar à posteridade” (HN.35.2). Todavia, se bem detectaram o quadro geral, Sellers e os seus passaram despercebidos pelos seus sintomas. Porque por mais que ela tenha motivações filológicas e históricas para suas conclusões, para suas repartições do texto da H.N., por mais que Plínio não tenha estudado as pinturas que narra, ou talvez nem mesmo tenha lido os originais gregos dos tratados de arte,294 ainda assim na exata medida dessa grande acuidade ocular Sellers fechou os olhos à relevância dessa retórica para a reunião de todas essas obras na forma mesma com que elas nos chegaram – pelo seu não-visto. Mesmo que se limitasse a conciliar as informações gregas e o gosto romano essa retórica não expressa nenhuma tarefa simples.295 Na verdade, uma tarefa outra e, 292 Ela mesma já tão discutida e rebatida, conforme comentaremos mais detalhadamente adiante. Parece então que um instinto é um impulso, inerente à vida orgânica, a restaurar um estado anterior de coisas, impulso que a entidade viva foi obrigada a abandonar sob a pressão de forças perturbadoras externas, ou seja, é uma espécie de elasticidade orgânica, ou, para dizê-lo de outro modo, a expressão da inércia inerente à vida orgânica. (ibid: pos.77415) No momento, porém, é tentador perseguir até sua conclusão lógica a hipótese de que todos os instintos tendem à restauração de um estado anterior de coisas. (ibid: pos. 77431) 294 “they are there [no Índice da H.N.] simply because Pliny had found them quoted by the Roman authors from whom he habitually drew – in this case by Varro, who, in turn, had presumably taken his own information on the subject from a single writer in whose pages the others were already cited” (ibid, p. xv) Doody chama de teoria da estratificação: Plínio teria lido apenas Varrão, que por sua vez apenas Pasiteles, que por sua vez Antígonos, e este sim teria combinado os trabalhos de Xenócrates e Duris. (DOODY: 2010, p.157) 295 “Sellers excludes Pliny’s rhetorical diatribes on the moral questions art raises and most of the miraculous stories he provides, in favour of a neater and more pristine art-historical narrative. Modern art historians have a 293 263 naturalmente, anterior ao princípio que regerá os desejos de nosso moderno ego historiográfico. Sem qualquer ironia, tudo o que Sellers e outros puderam ver é essa invisibilidade. Pois, assumindo um paralogismo histórico, descartaram a força do paradoxo e consideraram imprópria e antitética a correlação que a retórica pliniana faz entre a potentia artis e a artis morientis. Por todo lado, no entanto, o que encontramos nesses últimos livros da H.N. não é o poder da arte apesar da sua morte, mas positivamente o poder da arte na e pela sua morte. Essa morte da arte exibida em primeiro plano lado a lado com o poder artístico, trazendo o não-visto para o lugar do visível e do invisível nessa historiografia eles não puderam ver. E o esforço do século passado em resolver essa dinâmica acabou por se limitar a tentativa de garantir alguma visualidade para esta invisibilidade através de variegadas taumaturgias em vestígios arqueológicos, históricos e mesmo teóricos. Mas esta é a última das histórias da arte antes da história da arte porque não teme e porque quer o seu morrer, quer encarná-lo. Perde as obras para poder escrever. Escreve para poder perder as obras. Faz do morrer empoderamento artístico. E nessa tentação infernal, no entre desse paradoxo, vislumbramos então a possibilidade do seu acontecimento singular para nossa historiografia. Como lugar em que somos levados a ver a ausência de uma presença pela qual esperamos e que lá não está (sem pleonasmo), sempre sumindo/aparecendo. É mais fácil de entendê-lo quanto ao caso das pinturas do Livro 35: posto que em lugar da écfrase ou descrição formalista a enciclopédia antiga opta por narrativas anedóticas em que as pinturas só nos são dadas a ver nas suas ausências. Porém, assim vamos muito depressa como quem tem medo de não chegar ao fim. Por hora, é importante insistirmos na própria questão historiográfica enquanto caminhamos para as obras. Esse passo, o passo desse capítulo, não é outro que o de desfazer o próspero deslocamento teatral para dar lugar a uma caminhada, caminhada contente e sem rumo no sentido do seu morrer. Para esse passo, o passo desse capítulo, de desfazer o próspero deslocamento teatral será, enfim, preciso reexaminar a dita teoria pliniana da imagem considerando uma pista dada sobre a noção extraviante a reprimir o todo daquele acontecimento: a lógica do retrato naturalista na H.N. (MARQUES: 2008, pp. 64-66). broader horizon of interests than Sellers choices allow for” (ibidem, p.135) Porém, o decisivo é que se tratava de um programa da história da arte: “When Eugenie Sellers set out to produce a compilation of Plinian art history, her project was to produce an edition of a Classical text, whose historical information would be of use in understanding the past rather than in solving the scientific problems of the present. (...) was designed to be used by a specialist audience, and to be understood less in terms of the Natural History than the discourse of contemporary art history” (ibid, p.152-153) 264 Let death be what takes us, not lack of imagination. (B.J. Miller)296 4.2 – Noção extraviante: a interlocução histórica de um naturalismo alheio à História Natural. 4. Realmente, a pintura de retratos [imaginum quidem pictura], pela qual se perpetuavam através dos tempos representações extremamente realistas [maxime similes], ficou totalmente fora de moda. Ergueram-se medalhões de bronze, semblantes de prata, sem que se distingam com clareza os traços individuais; substituem-se as cabeças das estátuas e, a respeito, espalham-se, há tempo, pilhérias até em versos mordazes. Todas as pessoas chegam a preferir que se olhe o material empregado a serem conhecidas através dele. E enquanto isso, cobrem-se as galerias de quadros antigos e cultuam-se os retratos de estrangeiros, pensando as pessoas que para a própria glória conta apenas o preço das obras, que um herdeiro irá fazer em pedaços ou a que o laço de um ladrão irá dar sumiço. 5. É por isso que, por não serem representações vivas de ninguém [nullius efiigie vivente], deixam eles para a posteridade retratos do seu dinheiro [imagines pecuniae], não de si próprios. Essas mesmas pessoas adornam com retratos de atletas suas palestras e salas de exercícios, carregam pelas alcovas bustos de Epicuro e circulam com eles. No aniversário dele fazem sacrifícios e, a cada mês, guardam no vigésimo dia da lua, o feriado que chamam ícadas: exatamente esses que nem mesmo em vida desejam ser conhecidos. Esta é a pura verdade: a moleza pés a perder as artes, e, já que faltam os retratos das almas [animorum imagines], descuram-se também os dos corpos. 6. Outras eram as coisas que se tinham para ver nos átrios dos nossos antepassados [maiores]; não estátuas de artistas estrangeiros, nem bronzes ou mármores, mas fisionomias, impressas em cera [expressi cera vultus], eram dispostas em nichos individuais para serem retratos [ut essent imagines] que formariam nos cortejos dos funerais gentilícios, e sempre que morria alguém, comparecia toda a gente que um dia tinha sido daquela família. A árvore genealógica, com suas ramificações, descia até os retratos que eram pintados. (PLÍNIO: 1996, p. 318) A observação da dita teoria pliniana da imagem exige ou convoca muitas considerações aos seus termos. Dir-se-ia considerações intermináveis, cujo propósito em geral não é outro senão o de satisfazer uma só noção ora mais ora menos prestigiada mas sempre admitida nos manuais de crítica: o naturalismo da arte antiga, especialmente romana – e de quebra da sua historiografia, cujo fato de estar inserida em uma enciclopédia de história What really matters at the end of life. (18’44’’) In: https://www.youtube.com/watch?v=apbSsILLh28. Acessado em 02/03/2017. 296 265 natural só faz agravar. Termos que, nesse sentido, fazem sistema precisamente a partir do “dito” que tão bem diz de si na contrariedade histórica com a escritura, e tudo o que ela envolve, bem como da dificuldade de sua identificação. Porque, sobretudo, o que torna tão difícil de vê-la é o mesmo que torna crítico não vê-la. Em outras palavras, esse dizer desdobra por si a nossa responsabilidade por sobre o texto do Livro 35, e em especial nesses quatorze parágrafos que o abrem – parágrafos desde sempre antes da história da arte e desde sempre depois dela. A começar por “imagem”, um termo técnico nesses primeiros parágrafos do Livro 35 (2-14) para “retrato”. Porém, não era nem exatamente uma confecção artística, nem correspondia ao nosso vocabulário de imagem enquanto representação visual em geral, seja mental ou de qualquer tipo de suporte. Como reforça Carey, o termo era ele mesmo de amplo significado, mas com uma coincidência importante no seu uso retórico que Plínio, com certeza, não teria deixado passar: enquanto retratos dos ancestrais e também como as imagens mentais utilizadas no amparo da memória (2003, pp. 154-155). Mas, em resumo, a imago era o que de alguma maneira deveria equivaler a uma expressão extremamente fidedigna e completa de uma coisa qualquer, sendo entendida aqui de acordo com uma tradicional produção de máscara de cera através de um molde de gesso formado pelo contato direto com o rosto de um dos maiores, isto é, um ancestral membro da nobreza aristocrática romana. Essa produção era um elemento ritual da romanitas, parte decisiva tanto de certa subjetivação familiar (essas máscaras tinham um espaço próprio de exibição nas casas e correspondiam aos arquivos de família) quanto das possibilidades de relações entre as diferentes famílias ou, em um sentido mais amplo, até mesmo do conjunto social dessa aristocracia. Portanto, trata-se de imago antes de qualquer história do retrato, isto é, antes do que nós entenderíamos como gênero artístico de representação. Como de resto pictura, termo que no texto não se confunde com imago, também não tem ainda caráter representativo como na noção de quadro, mas apenas seu entendimento como a matéria colorante – precisamente usada nos trabalhos sobre as máscaras de cera. Logo, o mais correto seria dizer os retratos artísticos (e de resto toda a produção artística nos diferentes gêneros e meios, tendo em vista que a dita teoria fundamentará toda essa historiografia enciclopédica) é que virão a acompanhar essa noção imagética e não o contrário. Em seguida, é preciso reconhecer que não se tratará de um mito fundador, nem para a pintura nem para a arte em geral, ainda que certo sabor mítico atravesse suas narrativas. 297 Faz 297 De fato, é revelador a lembrança de que dentre todas as Musas não houve espaço para uma específica das artes figurativas (cf. BANDINELLI: 2000a, p. 463). Mais tarde, todavia, foram tentados em diferentes 266 parte desse gênero literário enciclopédico essa cuidadosa confusão entre o conteúdo exótico e o discernimento pedagógico. Daí tentativa de saída por “teoria”, palavra que advém de um termo que só tardiamente aparece no vocabulário grego. Segundo Bruno Snell, desde as épicas homéricas havia grande número de verbos que exprimiam o ato de ver. No entanto, todos eles se caracterizavam por descrever sua ação conforme uma relação íntima com o ser envolvido nela, isto é, transmitindo ao sentido visual certas impressões de uma atitude a acompanhar ou mesmo a definir o próprio ato de ver (2012, pp. 2-5).298 Assim, θεωρεîν (theoreîn) surge como um dos substitutos dessa variedade de vocábulos manifestando uma transformação na lógica visual, passando de modos particulares de ver aos entendimentos da visão como função. Curiosamente, ela não era na origem um verbo, mas deriva já de um substantivo bem definido: θεωρóσ (theorós), “ser espectador”; portanto, uma função isenta da participação na ação e, ao que tudo indica, já envolvida no vocabulário teatral. É assim que ela se desenvolverá para se referir a uma forma do ver e significar, então, “ficar olhando”, “observar”, sem ênfase em qualquer sentimento que acompanhasse a função do ver ou o fato de que se vê um determinado objeto. Snell dirá que esse novo verbo, exprimindo exatamente o que nas formas primitivas havia ficado em segundo plano, indica uma intensificação da “verdadeira e autêntica função do ver” (ibidem). Não há dúvidas, portanto, da carga e da importância que essa palavra terá para a história do pensamento, mesmo ressalvando as diferenças que historicamente ela tenha adquirido. Em paralelo, porém, é óbvio o quanto é estranho atribuir à introdução do Livro 35 o sentido de uma teoria. Já não apenas pelos motivos de nossa ignorância visual, mas exatamente porque nele não encontramos essa intensificação proclamada, senão “flashes de retórica” certamente mais preocupados em garantir o andamento da narrativa do que em teorizar, isto é, em estabelecer ou organizar metodicamente regras de um conhecimento sistematizado. Ao contrário, nos é apresentado um modo de ver e em um sentido bastante prático, e até mesmo étnico. Todavia, o sistema desses termos só se completa por aquilo que a identifica por “pliniana”. Em primeiro lugar, justamente, por tudo aquilo que já introduzimos seria muito momentos culturais e históricos algumas fundações nesse sentido; por exemplo, o caso de Pigmalião para a escultura tal qual o caso de Orfeu para a música. Mas não para a pintura, que parece ter sido uma arte, surpreendentemente, isenta de mito fundador (cf. LICHTENSTEIN: 2007, p.17). Quanto ao mítico, quase todas as anedotas, em algum momento, encarnaram esse sabor: desde o mito de Apeles até mesmo o da origem da pintura. A diferença, no entanto, é que neles não se encontrará jamais a forma do condensamento de um dogma ou fé, mas o contrário, o registro de uma fabulação, ou mesmo de uma mentira. Sobre isso voltaremos adiante. 298 Nesse sentido, alguns dos numerosos exemplos assinalados por Snell no seu trabalho de linguística são: δέρκεσθαι, “ter um determinado olhar” ou “olhar com um olhar particular”; παπταινειν, “olhar em torno procurando alguma coisa com olhar circunspecto ou com apreensão”; λεύσσω, “olhar alguma coisa que brilha” e também “olhar ao longe”; `όσσεσθαι, “ter alguma coisa diante dos olhos, em particular, algo de ameaçador diante dos olhos” (ao que logo se chegará ao significado de “pressentir”); ou ainda θεâσται, “ver escancarando a boca”. 267 mais dificultoso ou controverso assegurar a esse trecho a chance de uma teoria de Plínio da imagem. Afinal, além da aversão do polígrafo pela figura profissional do filósofo havia ainda todas as questões envolvidas na legitimidade de sua autoria. Qualquer esforço nesse sentido teria que saber conjugar ou reverter a marca do apócrifo no texto e a insegurança das fontes a caracterizar uma pseudoautoridade. E, na verdade, a solução antecipada da tradição historiográfica foi simplesmente desconsiderar a hipótese dessa teoria. Não parece haver nada de aleatório que mesmo no século XX, por exemplo, Panofsky não tenha dedicado uma só linha para essa possibilidade na H.N. ao mesmo tempo que negava considerações ao trabalho de Pseudo Longino – coerentemente, seguindo a regência da Idea esses trabalhos marcados por suas apropriações das escolas helenísticas de filosofia (estoicismo e epicurismo) não tinham como ter lugar. Contudo, e ainda mais interessante, é que no esforço contemporâneo de reformar essa desconsideração, justamente conferindo a noção de uma imprevista teoria, precisamente na análise da relevância e do sentido de imago, insinuou-se uma tremenda necessidade com ares de pura naturalidade de uma identificação autoral que, sem melhor candidatura para eleger, posou sobre o termo “pliniana”. Mas é o caráter dessa inevitabilidade tão singela, sem rastros de coação, que precisamos sublinhar. Porque tanto o que estrutura quanto o que resulta é a noção reconhecida do retrato naturalista: a) a imago como cópia exata de um modelo prévio, diga-se de uma coisa da natureza (rerum natura), mas especificamente de um corpo humano conhecido; b) compreendida na função autêntica e verdadeira do ver numa teoria, com um bem definido sujeito que olha claramente um também bem definido objeto; c) a identificação de um sujeito anterior naquilo que se vê ou, inclusive em seu sentido jurídico, um alguém fielmente representado, presentificado. Tudo muito bem confirmado pelos manuais de história da arte, quase sempre a afirmar o caráter destacado do naturalismo realista da arte romana em comparação, por exemplo, com a estatuária grega. O que chega a fazer graça, porém, é que se tem uma coisa flagrantemente exposta no texto do Livro 35 é o seu descompasso para com esse naturalismo. Do estrito ponto de vista histórico, o texto constata a morte da arte no mesmo período que reconhecemos como o mais “naturalista” da arte romana – o século I. Não foram poucos os comentadores que estranharam, portanto, a afirmação pliniana.299 Naturalmente, bem menos estranharam a noção do próprio naturalismo. E, na verdade, o que aconteceu foi o apagamento da extravagância da falta de fundamento da historiografia pliniana em favor e através do 299 Didi-Huberman faz um bom resumo desse espanto, lembrando ainda como J.-M. Croisille, na esteira de S. Ferri, observou "a estranheza das palavras de Plínio em um momento em que existia uma tradição aparentemente vivaz do retrato verista" (2008, p.98). 268 fundamento extraviante de outra historiografia: o dito “naturalismo”, ou ainda chamado por realismo ou, finalmente, verismo – relação que por si mesma insinua uma epistemologia (surpreendentemente) estranha ao polígrafo: a episteme da imitatio, confundindo o real, o natural e o verdadeiro. O professor L. Marques resumiu bem a qualidade do problema: Tais conceitos [naturalismo, realismo, verismo] foram aplicados pelos estudiosos à retratística helenística e à retratística republicana romana, mas também a certos momentos da retratística imperial, entre os quais os mais proverbiais seriam o período flaviano e o dos anos 235-253, inaugurado pelo principado de Maximino de Trácia (235-238). Como é sabido, muita tinta correu em torno da questão das eventuais raízes helenísticas e etruscas do “realismo” romano, e não é necessário, para nossos propósitos, resumir os termos da discussão, iniciada no século XIX. Baste aqui insistir no fato de que tal debate parece muito mais tributário de nossa moderna concepção de retratística do que do testemunho das fontes. (2008, pp.64-65) Duas são as fontes que ele relaciona: Horácio300 e Plínio. Não chega, contudo, a surpreender que sendo eles dois escritores vinculados a preceitos das escolas helenísticas de filosofia (epicurismo e estoicismo, respectivamente), configurem os testemunhos justamente contrários a este suposto realismo extremo.301 Como registra Marques, a maior surpresa para esta formulação historiográfica é ainda hoje o testemunho de Plínio, contemporâneo da idade mais “realista” ou “naturalista” ou “verista” da retratística romana. O que nos leva de volta ao entrave criado na leitura ipsis litteris da teoria pliniana da imagem, no Livro 35, vez que: Nos livros 34, 36 e 37 de seu Naturalis Historia, podem-se encontrar mais de trinta menções a retratos esculpidos, e em parte alguma tais retratos são abordados com auxílio de adjetivos como similis ou verus ou qualquer outro assimilável à noção platônica de “icástico”. Em Plínio, tais adjetivos, gregos ou latinos, simplesmente não se aplicam à retratística. Eles são empregados na Naturalis Historia tão somente para louvar a representação de coisas e animais, (…) A única menção a “retratos pintados extremamente semelhantes” encontra-se no livro 35, mas, além de se referir à pintura e a retratos privados de pósteros, seu contexto é claro: não se trata de louvar um êxito técnico ou artístico, mas um valor moral que se perde nas brumas do tempo (ibid, 2008, p. 65) A noção é extraviante porque é como numa “fórmula mágica” (o que Plínio dá testemunho de repudiar e o que seus detratores em geral indicam nele mesmo) que o 300 ibid, 2005, p. 56; ou De arte poetica liber, 32-35. As razões já expusemos longamente nesta Tese, no seu Capítulo 2. Por exemplo, a situação apresentada por Horário seria muito melhor defendida pela argumentação platônica em Leis (primazia da identificação fiel do modelo e maior cuidado pelas proporções de cada parte do que o interesse na ilusão proporcional do todo), do que pelos preceitos da cultura da simplicidade inspirados por Epicuro – perfeitamente destacada pelo próprio prof. Marques; e terrivelmente desconceituada ao tempo de Plínio e então por ele mesmo difamada (H.N.35.5). 301 269 naturalismo vem a resolver as incertezas do texto pliniano, em particular, e da arte romana, em geral. Pois, deu-se de modo a entender com segurança que tudo partisse dela porque, por aplicação, tudo trazia para ela (as peças encontradas, a comparação com as obras de outros povos, o sistema político e a vida social, etc). Entretanto, antes de ser um começo era um puro ponto de chegada. A partir de uma presumida ideia ou noção (de realismo, verismo, ou naturalismo), em meio a elementos diversos se elege um como priorizado (algo de anterior e de comum para os demais) para que entorno dele tudo o mais ganhe sentido e se valore conforme sua relação para com o priorizado: “era isso que isto queria dizer”. Isso não só exprime o caráter histórico do extravio dessa noção, mas principalmente é o que antes de mais nada define o próprio verismo/realismo/naturalismo em questão: a garantia do modelo corporal imitado como o elemento priorizado e privilegiado, enquanto uma totalidade precoce à própria obra. Deslocamento teatral: “era isso que isto representava”. É daí e assim que se introduz uma ausência, uma falta ao nosso desejo agora configurado pelo interesse da confirmação visual desse elemento que lá não está. Por isso mesmo, para desfazer o entrave desta leitura,302 temos sim que voltar à questão das eventuais raízes ou origens do suposto “naturalismo” romano. E não apenas nos seus problemas formais e de cunho eminentemente artísticos, mas também nos seus problemas históricos e propriamente teóricos. São como que os dois lados ou metades da máscara conjugados, o positivo e o negativo, o visível e o invisível. Todavia, partindo de direções opostas essas abordagens que se contradizem entre si terminam por propiciar uma dupla amarração, fazendo o mesmo continuar de uma forma ou de outra: a duplicação ou repetição pura e simples de uma semelhança, fosse pelo aprendizado visual das obras anteriores, fosse pela interpretação impelida pelo Renascimento. 4.3 – Morte da origem: as leituras revisionárias e fortes de Didi-Huberman, Corbier, Ritcher, Jackson e Rose. Na segunda versão de sua biografia de Michelangelo (1568), Giorgio Vasari relata um episódio da adolescência do grande artista em que ele teria corrigido o desenho de seu mestre, Ghirlandaio, tomando uma “pena mais grossa” e redesenhando por sobre uma das figuras de lineamentos mais finos.303 Em sentido oposto e em meio às anedotas que compõem a história 302 Problema evidentemente diferente daquele tratado por Marques no texto citado. Cf. VASARI, 2006: Cresceva la virtù e la persona di Michelagnolo di maniera che Domenico stupiva, vedendolo fare alcune cose fuor d’ordine di giovane, perché gli pareva che non solo vincesse gli altri discepoli, dei quali aveva egli numero grande, ma ch’e’ paragonasse molte volte le cose fatte da lui come maestro. Avvengaché uno de’ giovani che imparava con Domenico, avendo ritratto alcune femine di penna, vestite, dalle 303 270 da pintura no Livro 35, vimos em detalhe no capítulo anterior a notícia da famosa disputa entre Apeles e Protógenes pela excelência artística tendo por critério o esforço por fazer a “linha mais fina” ou tenuíssima (H.N.35.81-83). Para além dos comentários que se fizeram típicos ao trecho vasariano, houve quem admitisse espanto porque “O paralelismo entre os dois relatos salta aos olhos e é curioso que não tenha sido explicitado pelos estudiosos contemporâneos” (MARQUES, in: RAGAZZI, MENESES & QUÍRICO: 2017, p.7).304 De fato, é inegável a estranheza, porém, por tudo o quanto temos pretendido, menos pela desconsideração a Plínio e mais pela pouca atenção aos subliminares propósitos da retórica vasariana. Por ora, contudo, deixemos os elementos que compõem esse paralelismo. Aos nossos propósitos urgentes parece mais revelador a maniera mesma com que Vasari estabelece seu texto: também redesenhando a anedota com pena mais grossa, cobrindo o texto pliniano que fica sem qualquer menção direta, e reorganizando as linhas antigas. Sem destruir a filigrana anterior, sem uso de borracha para apagamento, há um esvaziamento dessas linhas finas. Questão mais de ecografia do que de palimpsesto, onde é dado a ver o negativo como superfície do invisível. Logo, não são estas que sonoramente ecoam em Vasari, mas, certamente, são as linhas mais grossas que ecoam muito largamente por sobre as mais antigas. Estas se tornam, assim, esboços: fase anterior, estágio antigo, sem a devida vida ainda. Carente da semelhança, mas já reservado a ela – ao realismo, verismo ou naturalismo. Paradoxalmente, portanto, o mais surpreendente é o não-comparecimento desse paralelismo quando se pensa a anedota e a teoria pliniana. Dentre os mais recentes esforços de leitura do início do Livro 35 segundo uma teoria pliniana da imagem, há um da autoria de Didi-Huberman que se destaca no sentido destas considerações. É certo que, a partir de sua própria constelação de questões quanto à temporalidade na história da arte, o trabalho não é exatamente sobre Plínio e sim sobre possibilidades historiográficas contempladas apenas parcialmente quando não marginalizadas. A H.N. figura como notícia ou meta-vestígio pré-histórico para uma arqueologia do anacronismo. Mas é por aí que o seu texto sobre o Livro 35 empreende o esforço absolutamente louvável de descartar a possibilidade da negligência acadêmica como justificativa para o obscurecimento ou encobrimento da historiografia pliniana. Em certa cose del Grillandaio, Michelagnolo prese quella carta e con penna più grossa ridintornò una di quelle femmine di nuovi lineamenti, nella maniera che arebbe avuto a stare perché istessi perfettamente: che è cosa mirabile a vedere la diferenza delle due maniere, e la bontà e giudizio d’un giovanetto così animoso e fiero che gli bastasse l’animo correggere le cose del suo maestro. 304 Ainda segundo Marques, para além dos comentários que tipificavam essa anedota como mais uma das fábulas da infância do herói, um segundo tipo detectou “no episódio o momento de emergência da diferenza delle due maniere, isto é, o contraste entre o estilo linear e melódico do último Quatrocentos de que Ghirlandaio é um expoente e a nova plasticidade michelangiana.” (ibid: p.5) 271 medida se trata de um problema ideológico, porém, de forma muito mais objetiva, de um problema epistemológico. Em outras palavras, o teórico francês identificou grande parte da dificuldade da leitura de Plínio devido a força com que a revisão vasariana continua a fixá-la – diga-se, revisão marcada fortemente por desdobramentos do neoplatonismo no seu meio.305 Esses dois começos fazem sistema. De um lado, o próprio Renascimento vasariano apresentou-se como uma repetição do "nascimento" romano da história da arte que Plínio encarnava para todos. A História natural jamais deixou de servir de modelo espontâneo aos discursos sobre a arte pictórica ou escultural; o vocabulário vasariano apresentou-se, com frequência, como uma tradução literal das noções plinianas; enfim, o moderno vasariano apresentou-se explicitamente como uma ressurreição do antico romano, para além dessa "era sombria", vecchia, imposta pela Idade Média aos olhos do historiador florentino. Mas, por outro lado – ultrapassando um certo ponto de evidência em que a leitura desses textos se mantém habitualmente –, o Renascimento vasariano terá igualmente procedido sub-repticiamente a uma inversão do "nascimento" da história da arte segundo Plínio. Por permanecer despercebido, esse último ponto merece ser desenvolvido: a tradição humanista proveniente dos meios acadêmicos dos séculos 16 e, em seguida, do 17, determinou toda a concepção profunda que, ainda hoje, se tem da "imagem", da "semelhança", da "arte" em geral. O legado vasariano também nos faz, com frequência, ler – e traduzir, como iremos constatar – as palavras de Plínio de acordo com uma ordem de inteligibilidade que, no caso em questão, contraria inteiramente o sentido das proposições contidas na História Natural a respeito das artes figurativas. (DIDI-HUBERMAN: 2015, pp.72-73) Em resumo, esse ensaio se torna imprescindível aqui não exatamente porque devolva a retórica pliniana ao seu próprio rumor, ou porque também registra o diálogo real e direto com aquele que antes de qualquer outro viu na H.N. uma questão crítica (mesmo que fosse para refutá-la), mas principalmente porque Didi-Huberman configura e concentra a dicotomia e a revisão a um ponto específico e decisivo entre os dois autores. “A mais fundamental, a mais evidente, e também a mais impensada das relações que constituem a própria existência de uma imagem: a relação de semelhança.” (ibid, 2010, p.71) É assim que, como só poderia ser “a título de esboço” (p.74), Didi-Huberman passa rapidamente ao traçado de “linhas divisórias” para uma literal retratação dos limites epistêmicos diferentes entre eles, bem como dos seus envolvimentos, entrelaçamentos e sobreposições. Isto é, exame de raios-X (radiação de natureza semelhante à da luz, porém invisível aos olhos) com a diferença de concentrar o interesse nos sintomas do próprio exame em vez dos sintomas do corpo vivente. Procura pelas 305 Além do próprio Panofsky, em obra já citada, informações específicas e aprofundadas: CHENEY: 2013. 272 linhas finas, anteriores e perdidas, por entre uma imagem em negativo da vitalidade plástica do projeto e da retórica de Vasari.306 A primeira linha divisória é, previsível e necessariamente, a das ordens a que respondem cada qual dessas histórias da arte: a ordem da ideia, em Vasari, e a ordem da matéria, em Plínio (ibid, p.75). Não é preciso enfatizar que na H.N. a história da arte apresenta-se como digressão proveitosa ao grande tema da mineralogia. Mais importante é lembrar que, n’As Vidas, os materiais não chegam a introduzir o real assunto da obra, mas servem justa e inversamente de preâmbulo, de informação preliminar e estritamente técnica. Delimitam assim a diferença entre o inanimado e o animado, do puro trabalho manual e artesanal em comparação com a intelectualidade artística representada pelas biografias, elas mesmas definidas pelos ânimos que emprestaram às respectivas obras. Após essa “linha divisória mãe” seguem-se outras fazendo sistema. O seu raciocínio concentra-se então no problema da temporalidade como encaminhamento lógico para as distinções de modalidades históricas. Ainda que cíclica, em Vasari ela seria já inapelavelmente triunfalista e teleológica; ao passo que em Plínio, ainda que não restem dúvidas quanto ao papel central e decisivo que Apeles exerce no Livro 35, não é possível falar de um mesmo direcionamento.307 Antes de tudo porque não há o suporte metafísico da ordem da ideia sobre o qual se possam fazer sucederem os eventos, especialmente conforme uma direção previamente dada ou estabelecida. Justamente, uma das maiores dificuldades latentes da leitura do texto pliniano segundo uma história da arte moderna é não conseguirmos apreender o “sobre o quê” se dão essas anedotas todas. Não são os seus erros (que de fato existem) históricos ou cronológicos que criam a atmosfera de confusão, certa aleatoriedade e imprecisão, e nem mesmo a provável reunião desajeitada de múltiplas fontes, mas sim essa falta de suporte metafísico: pois, tal qual se pretende com uma ordem dos materiais, só há narrativa sobre os diferentes objetos sem plano comum. Numa comparação falha porém razoável, seria como pensar a historiografia vasariana como vários corredores saindo do mesmo ponto em direção a um ponto de chegada predeterminado e por sobre uma mesma 306 Didi-Huberman escreve literalmente “inversão sub-reptícia”, portanto, não um palimpsesto ou encobrimento qualquer, mas como o efeito mistificador que um paciente pode lançar sobre um exame levando a erros e confusões perigosos. Ademais, ao admitir de início que “os dois começos fazem sistema” implica imediatamente certa relação de organicidade entre os dois corpus literários. O que se tornará ainda mais evidente pelos comentários que se seguem. 307 Ibid: p. 76: O esquema vasariano é bem conhecido: trata-se de uma Idade de Ouro (antico) que, para além do eclipse medieval, "ressuscita a boa arte" (de acordo com o sentido mais óbvio da palavra rinascita), abrindo literalmente a Idade Moderna (moderno) e, com ela, a compreensão histórica específica da evolução pictural em três grandes períodos, que fornecem o plano geral da própria Vidas. A história vasariana, ainda que cíclica, é orientada por seus propósitos fundamentais, triunfalista e teleológico. Seu ponto de chegada, como se sabe, leva o nome próprio de Michelangelo. Nada disso se encontra em Plínio (…). 273 pista de corrida (talvez até em linha reta). Só um chegará ao ponto final, depois do que teremos, praticamente, que recomeçar tudo de novo – teoria orgânica das idades. Mas a pista em comum dá garantias para que possamos julgar e contar as velocidades médias de cada qual, comparar acertadamente seus melhores e piores momentos em relações uns com os outros, e até mesmo auferir as qualidades mais destacadas de todos eles. Pela ordem pliniana da matéria tudo se altera radicalmente nessa inventiva corrida, pois, não havendo pista prévia de suporte para os diferentes substantivos relacionados é impossível a sua própria lógica de páreo. Constituídos por termos que não existem, esses substantivos são apenas pelas relações que mantêm uns com os outros. Só são possíveis narrativas sobre as velocidades de cada objeto em um dado instante, sem velocidade média, sem comparação para com o ponto de saída ou de chegada. Na verdade, não há como sequer garantir que todos sigam a mesma direção – não há direção mensurável – apenas que todos praticam aproximadamente o mesmo exercício segundo as relações que os constituem. Algo como uma corrida maluca do tipo de Alice (cf. CARROLL: 2015, pp. 32-33); não por acaso, igualmente seca, estéril, e sem explicação a não ser o próprio fazê-lo.308 De forma mais objetiva, Didi-Huberman salienta a temporalidade cindida, dilacerada que se expressa nesse início de Livro 35: “é no cerne mesmo de tal rasgo que aparecem as palavras pictura e imago, como se essas palavras – o propósito de toda a questão – devessem ser entendidas de outra forma, segundo dois tempos heterogêneos.” (ibid: p. 76) Com o que voltamos, vez mais, aos temas da anterioridade e da morte. Afinal, esses são 14 parágrafos antes da história da arte posto que só no parágrafo quinze se coloca o problema relacionado aos inícios da pintura – que, ainda assim, “é obscuro e não faz parte no plano desta obra” (H.N.35.15; ibid: p. 319). Em outras palavras, segundo este teórico os primeiros parágrafos seriam a reivindicação de uma origem romana para as noções de imagem e de pintura fora do determinismo histórico posicionado entre egípcios e gregos. Ao que uma genealogia se oporia à teleologia; a semelhança segundo uma relação ou vinculação original em lugar da projeção rumo à mais alta vitalidade plástica numa representação.309 308 Comparação sem o despropósito que possa aparentar. Em vistas do já sustentado, especialmente no Capítulo 2, ressalta-se a questão que percorre de Platão a Descartes, passando por Vasari, do interesse fundante no desenho em contraposição ao propriamente pictórico e sua decorrência em um plano único de apoio como organização de um sistema de coordenadas – um plano, se dirá mais tarde, cartesiano. De outro lado, junto a todos os questionamentos antigos referentes ao decadentismo e à retórica da morte da arte relacionada a uma ou diferentes substituições do desenho como seu fundamento encontramos o pensar da falta do plano prévio de coordenadas. (cf. BANDINELLI: 2000a, pp. 461-513) O que nos estoicos se observará, em paralelo aos exemplos artísticos da H.N., em algo que só podemos admitir como antecipação ou proto investigação do cálculo diferencial moderno. (cf. WHITE: 1982; e DELEUZE: 2015, p.53 e p.127) 309 Vale lembrar que de nossa parte já expusemos nossa posição no fim do capítulo anterior, considerando como um problema originário em vez de genético, tendo por sentido último a invenção da filha de Butades. Sobre o 274 A questão da temporalidade justifica então sua proeminência naquele ensaio porque é nela, mais até do que na questão entre ideia e matéria, que o teórico reconhecerá o anjo exterminador pintado pelo vasarianismo contra a plinitude, isto é, condicionando a leitura do Livro 35 ao desejo por uma entrada autorizada para o seu sentido histórico moderno. Dessarte, o estranho fenômeno que sucede é que é ao ressuscitar que arte se torna objeto de uma história para Vasari; mas qual arte ressuscita? Certamente, não a arte de Polignoto, de Zêuxis ou de Apeles. Esta será antes de tudo superada como estágio antigo. Notadamente, será a arte do período de Plínio (a arte de retratos do século I) a soerguida do fundo das trevas. Todavia, para o polígrafo romano a arte se torna substância histórica precisamente porque morreu, porque na sua contemporaneidade já não existe mais. Esse encontro agendado por Vasari em que um falta e o outro chega atrasado poderíamos tentar traduzir numa fórmula tal como “a ressurreição matou o morrer”. Ora, a arte que ressuscita não é a arte que morreu – nunca é: a ressurreição pelo Juízo (seja o da religiosidade bíblica, seja o do academicismo estético) implica uma nova origem, com liberdade em relação à ordem da matéria e por isso mesmo imune à dor e não mais perecível.310 Somando a força revisionária de Vasari às confirmações históricas e arqueológicas de um amplo florescimento de um “gênero” de retratos no séc. I, concluiu-se ou pela cegueira ou pela ignorância do comentário de Plínio. Contudo, se em geral e historicamente, a “solução” apresentada para o problema foi reconduzi-lo como oximoro, Didi-Huberman o pensará como o paradoxo que ele é, sinalizando a bifurcação que há no caminho teleológico: o que morre é a origem da arte (ibid, p.78). Ora, tal qual a argumentação de Belting, é óbvio que a morte compreendida no Livro 35 não se tratava de uma impossibilidade de fazer objetos artísticos ou da perda absoluta e repentina deles – como também já o vimos. Contudo, diferentemente de Plínio, Belting identifica O Fim da História da Arte no esforço mesmo de não deslegitimar, pura e simplesmente, as produções contemporâneas como não artísticas. Ainda de acordo com a ordem dos materiais, o caso pliniano não se configuraria na mesma lógica de ultrapassagem inelutável de O Fim, mas quase segundo um critério de compossibilidade. Em outras palavras, as obras de arte formariam entre elas uma continuidade de singularidades convergentes a uma série como síntese de mundo. Cada obra, então, traria consigo a história quê ainda voltaremos adiante, mas adiantando que o próprio teórico francês parece confundir uma e outra coisa: na sequência ele mesmo admite que se tratava de um problema de origem, de morte da origem da arte. 310 Cf. o “livro da revelação”: E vi os mortos, grandes e pequenos, que estavam diante de Deus, e abriram-se os livros; e abriu-se outro livro, que é o da vida. E os mortos foram julgados pelas coisas que estavam escritas nos livros, segundo suas obras. (Ap. 20:12) “(…) E Deus limpará de seus olhos toda a lágrima; e não haverá mais morte, nem luto, nem lamento, nem dor; porque já as primeiras coisas são passadas. E o que estava assentado sobre o trono disse: Eis que faço novas todas as coisas. E disse-me: Escreve; porque estas palavras são verdadeiras e fiéis. (Ap. 21:4-5) 275 da arte como seu mundo, mas exprimindo apenas certo número das singularidades deste mundo – resultado direto das convergências das singularidades exprimidas no conjunto de suas obras. Onde houvesse divergência começava um outro mundo, incompossível com aquele. Logo, o que é mortífero para esse mundo historiográfico pliniano não é senão, curiosamente, a retratística do século I, mas porque ela devém de um mundo incompossível com a moralidade apregoada por Plínio. Não por menos ele acusará, com sua conhecida carga moralizante, essa cisão como resultado da apropriação ou conveniência para com vícios importadas do oriente e de Cartago – desde sempre mundos outros e cheio de perigos no imaginário dos povos do mediterrâneo (H.N.33.148 e 150).311 Ao passo que uma noção de semelhança romana legitimar a produção grega, e até mesmo egípcia, lhe soava natural. Mas isso é nos antecipar e correr. A questão repousa ainda na dificuldade da tradução de imaginum pictura. Conforme se entrevê naquele episódio citado da biografia de Michelangelo, é no conceito mesmo de desenho (disegno) que a ordem da ideia se suporta e pensa todo objeto artístico ou figurativo: um puro trabalho mental que se encarna nos materiais ou que se desvela por entre eles – o que pela também recém-citada anedota pliniana não pode ser o caso na H.N., pois a disputa não se dava nos termos de um desenho, mas na materialidade do próprio traço sem encarnar ou desvelar o que quer que fosse.312 Ao disegno corresponde a imitação ótica, à distância, do indivíduo retratado. Pressupõe para si o gênero artístico entendido pelas suas atividades apropriadas e ancorado em um juízo de gosto. E termina por configurar uma cultura estética na qual a história da arte só pode ser pretendida como uma disciplina. Em contrapartida, a imago é então o conceito que fundamenta essa outra ordem, a ordem antiga: um processo de impressão que suporia a duplicação do rosto por contato direto. Portanto, em contraste com a ordem da ideia, à imago não corresponderia uma ilusão factícia de uma presença visível, mas, exatamente por ser um contato direto (tátil) da matéria (gesso) 311 Ainda quanto a Cartago, observar no trecho 35.14 certa elipse explicativa daquilo que pôs a morrer a arte. Por ora, é importante destacar que aquilo que reafirma a questão propriamente antropológica dessa configuração não tem que ver com nenhuma ingenuidade como a de negar talento artístico a estrangeiros ou de depreciar pura e simplesmente obras cujo modelo não fosse romano; o que se poderia pensar numa leitura estrita do saliente contraponto entre externorum artifices e expressi cera vultis (35.6). Antes, é um problema de invasão de valores morais e psicológicos alheios a conformação da romanitas. Por isso mesmo é que se trata, antes de tudo, menos de reivindicar uma artesania tradicional dentre os romanos como a única de verdadeiro valor artístico, e mais de estabelecer um valor original romano para o reconhecimento e a seleção das grandes obras de arte entre todos os povos. Afinal, o papel retórico desses primeiros parágrafos não é outro senão o de encaminhar a história da arte da pintura que conta com Polignoto, Zêuxis, Apeles, etc. 312 “che è cosa mirabile a vedere la diferenza delle due maniere” (ibidem); “quando o vimos antes, nada mais continha num campo espaçoso do que linhas que fugiam da visão; em meio a obras extraordinárias de muitos artistas, o quadro era igual ao vazio” (ibidem). 276 com a matéria (rosto), ela não requer nenhuma ideia e o que ela produz, por aderência, seria o que Didi-Huberman chamou de “imagem-matriz”. Imagens criadas sempre conforme uma matriz a garantir a semelhança exata e a reprodução isenta de corrupção visual ou natural. A retórica da morte da arte situa-se, enfim, nas máscaras de cera dedicadas ao culto mortuário dos maiores – processo artístico considerado pelo polígrafo como fundamental à natureza artística e visto de forma histórica (não apenas por Plínio, mas por historiadores modernos) como constituinte do próprio ethos romano (ROSE: 2008, e já no sentido dessa perda de identidade em SLATER: 1996). Portanto, sentencia Didi-Huberman, antes de qualquer sentido propriamente artístico, ela está compreendida segundo um gênero jurídico, enquanto suporte ritual que diz respeito a um direito privado;313 estabelecida segundo um culto genealógico que admitiria certa historiografia artística somente por esta antropologia da semelhança. O que todas essas linhas sistematizam quando juntas é “aquilo que separa radicalmente” um projeto do outro: enquanto Vasari inaugura um regime epistêmico fechado do discurso sobre a arte (um regime segundo o qual a história da arte se constitui como o saber "específico" e "autônomo" dos objetos figurativos), o texto pliniano oferece, ao contrário, a arborescência enciclopédica de um regime epistêmico aberto, no qual os objetos figurativos são apenas uma manifestação, dentre outras, da arte humana. Aquilo que Plínio entende por "artes" (artes) é coextensivo a toda a História natural, por conseguinte, a noção estética da "arte" não faz parte de sua primeira definição. Há "arte" cada vez que o homem utiliza, instrumentaliza, imita ou ultrapassa a natureza. (DIDI-HUBERMAN: 2015, p.73) Assim, é preciso fazer claro: desde sempre – desde que a História da Arte se constituiu como uma subjetividade própria, como um ego de aproximadamente 500 anos – o que assombra na H.N. não é o moralismo de Plínio, nem os seus erros ou seus possíveis juízos estéticos… tudo isso existe e está passível de críticas, porém “assombrosa” é a falta ou ausência de identidade pessoal da sua historiografia da arte. Justamente, por ter parido ninguém é que não é possível postular para Plínio nenhuma paternidade na mesma medida em que se postula para Vasari ou Winckelmann – o que de resto o livra, ao menos, de qualquer complexo edípico (isto é, nem é preciso aceitar a autoridade do pai nem querer “matá-lo”).314 Pois, imersa em meio ao mundo enciclopédico sua historiografia não tem consciência de si, senão como, no máximo, um apêndice ou suplemento residual aos seus objetos que às vezes se faz notar. A arte da pintura ou da escultura, tal qual as artes da medicina (sem dúvida a mais 313 314 É nesse sentido que o trabalho de Sorcha Carey sobre a teoria da imago se debruça mais. (2006, pp.138-177) Curiosamente, aquilo mesmo que imputa o estabelecimento de distância para com a figura providente. 277 destacada na H.N.) ou navegação ou agricultura entre tantas outras, tem sentido apenas e sempre por sua relação para com o mundo enciclopédico (romano), isto é, o mundo das matérias e formas naturais assim como o mundo jurídico e social estabelecido. Ela está legitimada, antropologicamente, pela lei comum e supõe para si uma similitude natural (similitudo naturae). Atente-se: indiferenciada entre o ser história da arte e o não-ser. E para ter toda a dimensão desse horror e assombro basta atentar mais uma vez para o choque apurado quando da publicação de O Fim, que longe de reencaminhar a história da arte de volta a sua relação para com o todo do mundo, em meio a todas as suas ciências e conhecimentos e objetos, “apenas” reivindicou sua ultrapassagem para uma antropologia específica. A delimitação de uma linha fronteiriça, de um “escudo protetor”, para resistir aos estímulos todos do mundo exterior era, para Freud, o elemento constituinte da sensibilidade do organismo vivo – “uma função quase mais importante do que a recepção deles” (ibid: pos.77264).315 É esse o papel que cumpre, na crítica vasariana de Plínio, a configuração de um novo regime, fechado em si: a arte, enquanto imitação da natureza, “se torna um privilégio das artes liberais praticadas fora da lei comum por alguns acadêmicos, cuja liberdade conquistada se deve, compreende-se rapidamente, ao seu estatuto de mundanos, de cortesãos” (ibid: p.74). Não mais História Natural, mas Vidas, contadas em biografias em sequência ao invés da reunião de substantivos em anedotas. A arte descobrirá para si a sua existência no mesmo movimento de apartar-se do resto do mundo; na conjugação da recepção de seus estímulos externos com as excitações que recebe desde o seu interior (“tentáculos que estão sempre efetuando avanços experimentais no sentido do mundo externo, e então retirando-se dele”; ibid: pos. 77275). Por aí podemos admitir uma explicação para como a ordem da ideia vem a suportar a noção definitiva da imitação da natureza vasariana (imitazione della natura), à distância, projetiva e introjetiva, e envolvida na realização dos desejos.316 “Através de sua morte a camada exterior salvou todas as camadas mais profundas de um destino semelhante” (ibid: pos. 77259). Nesse sentido, os órgãos dos sentidos teriam a dupla função de: aparelhos para recepção de certos efeitos específicos de estimulação, mas que também incluem disposições especiais para maior proteção contra quantidades excessivas de estimulação e para a exclusão de tipos inapropriados de estímulos (ibid: pos. 77270). 316 Sobre esse ponto, em particular, é muito interessante lembrar a denúncia crítica que fazia John Berger à constituição ideológica da história da arte da pintura óleo: “In the average European oil painting of the nude the principal protagonist is never painted. He is the spectator in front of the picture and he is presumed to be a man. Everything is addressed to him. Everything must appear to be the result of his being there. It is for him that the figures have assumed their nudity. But he, by definition, is a stranger – with his clothes still on.” (2008, pos. 57) Ou ainda: “Oil paintings often depict things. Things which in reality are buyable. To have a thing painted and put on a canvas is not unlike buying it and putting it in your house. If you buy a painting you buy also the look of the thing it represents.” (2008, pos. 76) 315 278 Mas, uma vez bem manifestado o assombro, a “diferença radical” de concepção mais até do que de projetos, estará bem compreendida a natureza mesma dos objetos historiográficos plinianos? Em outras palavras, teremos os compreendido tal qual eles se apresentam (ou seja, não-vistos), ou conforme as nossas bem formadas projeções naturalistas? Afinal, nesse ponto as coisas ficam realmente confusas, quando todos os lados parecem indicar a mesma noção chave de “natureza”, seja para o modelo vivo, seja para o modelo mortuário. Assim como está já assentada e incontroversa a diferença entre a mimese platônica e a mimese aristotélica, bem como há muito tempo já se reconhece a diferença fundamental entre a própria mimese grega e a imitatio latina;317 é preciso apontar a diferença entre a imitazione della natura e a similitudo naturae. O ponto em comum é a posição da arte a partir da natureza mais no seu sentido existencial do que no sentido essencial que pressupunham Platão e Aristóteles, porém ainda assim a mesma natureza: não diretamente de suas Ideias ou ações, mas nas suas coisas, seus corpos. A diferença, portanto, estaria no fato talvez surpreendente de não encontrarmos na H.N. a corriqueira ou objetiva intenção de copiar a natureza. O que apenas significa dizer ou repetir que nela o fundamento dessa relação com a natureza é outro que não a imitação ótica do retratado. A similitudo naturae, portanto, não copiaria ou reproduziria a natureza, mas a operaria naturalmente, similarmente. Se algo se copia da natureza é o seu procedimento, não sua essência ou seus objetos. Logo, mais do que cópia ou imitação somos instigados a falar em duplicação do rosto retratado ao mesmo tempo com que temos que tentar eduzir a discriminação pliniana aos retratos do século I. Necessariamente, portanto, somos obrigados a reparar que a noção extraviante do naturalismo não se deve apenas a extrapolação histórica de um estilo. Descuidada de plano ou determinação ideológica prévia e perdida em meio a um regime epistêmico aberto, duas noções insistem para operar a seleção e o registro dos substantivos dessa historiografia: a dignitas e a luxuria. Cabem a essas “noções obsedantes” (ibid: p.85) justificar – no sentido mesmo do seu gênero jurídico, de sua lei comum – os objetos que exprimem singularidades compossíveis ao seu mundo, a sua antropologia. De maneira muito rasteira, seria possível dizer que a dignitas opera nas obras que exprimem as singularidades de um mundo, o mundo da H.N. e valorado pelo polígrafo moralmente, enquanto que a luxuria opera nas obras que não comungam destes valores e, consequentemente, dos mesmos objetos. No entanto, para entender a rejeição da teoria pliniana a retratística do século I, cumpre já observar que os objetos ou substantivos 317 Cf. HEIDEGGER: 1991, p.169 e 197. Também COSTA LIMA: 2012, pos. 105-116. 279 incompossíveis não correspondem diretamente a uma contradição daqueles, mas, antes, é por exprimirem singularidades de outro mundo que estabelecem a contradição. Portanto, evidentemente, nem Plínio se confunde ou se cega para esta produção retratística sua contemporânea, nem o problema tem qualquer coisa que ver com a incapacidade de Plínio em reconhecer atributos ou qualidades artísticas a essa produção. O problema dessa historiografia cindida é que entre o “modelo romano virtuoso” e o “modelo romano não virtuoso” está implicada uma correspondência – imperialista até o âmago – da impossibilidade do mundo em que o romano é virtuoso com o mundo em que ele não o é. É por isso que a luxuria decorre não apenas de importação da Ásia e de Cartago, mas daquilo que os romanos foram se tornando pelas suas conquistas.318 Plínio, como todos os outros – e como Vasari o fará mais tarde – define a arte humana como uma imitação da natureza. Mas esse tipo de definição nunca vem desacompanhado, é evidente, da mediação de um ponto de vista cultural, de uma ética, até mesmo de uma política. (ibid, 2010, p. 85) … há para Plínio dois tipos de semelhança: legítima é a semelhança por geração (uma maneira de expressar sua lei natural) ou por transmissão (uma maneira de expressar sua instituição jurídica). Ilegítima é a semelhança por permutação, que desregra tanto a lei natural quanto a instituição jurídica. O primeiro tipo de semelhança institui imagens-matrizes que são os moldes de gesso de onde são "engendrados", por contato direto, por impressão, essas máscaras de cera pintada que fazem a "honra" (honos) de toda família romana nobre. O segundo tipo de semelhança faz proliferar imagens factícias, simulacros, em cuja rede a semelhança torna-se um puro e simples valor de troca, de substituição, de inversão, de perversão. (ibid, 2010, p.91) Nesse sentido, duas explicações foram constituídas historicamente para essa similitude, para essa duplicação natural. Didi-Huberman, pela noção de imagem-matriz, segue pela via negativa. Não se trata, é claro, de pejorar sua alternativa, mas sim de indicar a direção que ela toma para a máscara de cera, ou seja, a do negativo de gesso da máscara mortuária (seu exemplo relacionado é proveniente de El-Jem; época imperial romana. Tunísia, Museu do Bardo). Pois, não se trata de coincidência que, depois ou na sequência desta ecografia ou raio-X, seja pela explanação minuciosa da luxuria que por efeito contrário ele tentará definir a dignitas, pelo ceroma chegar à cera. Questão de “contraponto exato”. O que é a luxuria? Do ponto de vista moral, é a luxúria (o vício ligado ao excesso); do ponto de vista estético, é a luxuosidade (abundância 318 Embora em aspecto moral mais do que cultural, o sentido é semelhante aquele observado por Horácio quanto a conquista dos gregos. (Epístolas, Livro II.1.156-157) A diferença, evidentemente, situa-se na positividade e na negatividade de cada qual das avaliações textuais. 280 excessiva); do ponto de vista estrutural, é o dispêndio improdutivo, o excesso ou a transgressão enquanto tais. (...) todas essas palavras são convocadas, no início do livro XXXV, como um contraponto exato da imago, ou melhor, como uma expressão da decadência e do esquecimento a que as "dignas" noções de imagem e de semelhança foram relegadas pelos romanos da época de Plínio. (ibid: p.85) As três luxuriae das quais ele trata fazem, inclusive, sistema e, quando uma delas é evocada na História natural, as duas outras não demoram a ser convocadas (ibidem: p.87).319 Não é difícil de intuir o que seria a luxúria indicada se mantivermos em mente a quem a sua enciclopédia se recomendava e endereçava (fazendeiros, artesãos e estudantes; Praef.6) bem como o seu propósito conforme uma disciplina, romana, de sapientia pautada numa certa virtude do saber para uma vida simples em comunidade, nem recolhida aos saberes técnicos do homem do campo nem atirada às alturas abstratas das verdades filosóficas. Logo, se a dignitas responde a esses valores enciclopédicos ajudando a formar aqueles a quem ela se endereça, a luxuria se caracteriza por um progressivo refinamento das necessidades básicas da humanidade até o ponto em que envolve um prazer crescente desligado de qualquer funcionalidade. Se seguimos a narrativa desses primeiros parágrafos do Livro 35 somos guiados por todo um encadeamento lógico dessas luxúrias. A primária não poderia ser outra que não a luxúria das matérias: o arrastar das entranhas da terra para dentro dos quartos, as pinturas falsas de pedras, escudos de bronze, efígies de prata… “por não serem representações vivas de ninguém, deixam eles para a posteridade retratos do seu dinheiro, não de si próprios” (35.5). Passamos então à luxuria dos corpos apresentada junto a uma reprimenda ao epicurismo sem qualquer sutileza. A questão em si é que é sutil. Por um lado, do ponto de vista estritamente filosófico a crítica pliniana à escola rival é bastante baixa, atentando pouco ou nada para a lógica de Epicuro, quando não a confundindo com puro hedonismo.320 Todavia, ela se ancora em um bem assentado ponto de vista social, refletindo os excessos verídicos de seus contemporâneos epicuristas que substituíam os argumentos filosóficos por interpretações vulgares. O que está em jogo aqui é o excesso sexual caracterizado nas práticas orgiásticas, e refletido nos bustos de Epicuro que circulavam pelos quartos de dormir e na 319 A partir do que se apurou com razão certo esquema que terminará sendo fatal para a caricatura tradicional do polígrafo como obtuso moralista. Muito mais do que caracterizou a moralidade da crítica platônica, ou daquela reconhecida n’As Rãs, de Aristófanes. Nesse sentido, o ensaio de Didi-Huberman é, sobretudo, precioso por avançar e demonstrar como esse moralismo é estrutural e não exterior à concepção artística. 320 Conforme esclarecido no Capítulo 2, largamente dedicado a estas nuances. 281 ornamentação com retratos de atletas nos espaços de exercícios físicos.321 Mais do que isso, com a ceroma, uma mistura de cera e óleo que era espalhada sobre o corpo para a realização de exercícios físicos em geral. O elemento ficou célebre especialmente em seu uso por gladiadores – supostamente porque deixava os membros mais aptos paras lutas e os lutadores menos vulneráveis a serem agarrados ou presos pelos adversários.322 De toda forma devia ter apelos estéticos junto ao público – o que talvez tenha ocasionado certo mercado, presumivelmente com usos terapêuticos, místicos, ou afrodisíacos. O fato é que, sutilmente, Plínio emprega o termo na caracterização de contraponto direto à dignitas envolvida no uso “correto ou puro” da cera na produção ritualística da imago. “Esta é a pura verdade: a moleza [desidia] pôs a perder as artes, e, já que faltam os retratos das almas, descuram-se também os dos corpos.” (35.5), como se a cera tivesse se dissolvido em favor de um uso indigno, um excesso corporal em lugar de uma afirmação de caráter psicológico. Enfim, a derradeira luxuria é então a das próprias semelhanças: “diz respeito às relações entre a forma dos corpos e as matérias enformadas, figuradas, pelo trabalho humano.” (ibid: 2015, p.86) A falta de discernimento dos traços individuais, a permuta de cabeças de estátuas,323 e a exposição dos materiais quase que por si mesmos alcançam por último a crítica do próprio modelo de produção imagética. Cada um dos seus elementos formativos é então contraposto (cf. CORBIER: 2007, p.75.): estátuas (signa) contra máscara anímica e individual (vultus); o trabalho de fora e à distância (externorum artificum) contra a expressão direta e sensível (expressi); e os materiais custosos provenientes das profundezas da terra (aera aut marmorea) contra o material comumente utilizado no contexto doméstico (cera).324 Nessa trilha, por fim, o teórico francês enquadra a teoria pliniana da imagem conforme uma problemática que a antropologia contemporânea reconheceria como fundamental. Escalando nomes do estruturalismo da ordem de grandeza de Maurice Godelier e Claude Uma questão histórica e até mesmo arquitetônica envolvida é que no mundo grego as “palestras” correspondiam a um ambiente funcional e específico, incluído junto aos ginásios; no mundo romano esses espaços eram, via de regra, associados à termas. Havia, portanto, palestras particulares (conforme os testemunhos de Varrão, Cícero e Vitrúvio). Há também confirmação arqueológica para as representações de atletas em ambientes de ginástica. Cf. PLÍNIO: 1988, pp.297 e 299, nota 5.1. 322 Outra pesquisa indica que talvez não passasse de confusão, pois a ceroma corresponderia a camada de detritos no solo da luta formada pela mistura de diferentes materiais. Cf. REINMUTH: 1967. 323 O que de fato não era nada surpreendente no período: as cabeças eram moldadas conforme nosso entendimento de verismo e os corpos eram praticamente modelos abstratos, quase como manequins genéricos. 324 (…) um conjunto de práticas que Vasari, bem mais tarde, deverá reivindicar para a própria instituição de uma consciência histórica da arte: o reemprego e a montagem modernas dos fragmentos arqueológicos, a constituição de museus, cujas "paredes das pinacotecas estão cobertas de quadros antigos", a importância cada vez maior de um mercado de antiguidades em que obras de arte viajam e são trocadas – os desenhos dos mestres, no caso do próprio Vasari – num movimento que enforma, finalmente, toda a prática do connoisseurship e do historiador de arte. (ibid: 2015, p.87) 321 282 Levi-Strauss ele participa a imago na interrogação daquilo que, enquanto elemento estrutural, em uma sociedade não se troca. Nos termos da própria antropologia de Godelier, ela corresponderia a “pontos de ancoragem” capazes de fundar e permitir as próprias relações de troca ao mesmo tempo em que as limitam, “levantando-se como marcos”. É certo que, para Plínio, o Velho, a imago constituía esse "limite" na sociedade romana de tradição republicana. Ela era essa âncora jurídica capaz de proibir a semelhança de ser trocada e de prescrever sistematicamente as modalidades para que ela pudesse ser transmitida genealogicamente. (ibid: 2015, p. 89) Os sintomas conclusivos do quadro textual da teoria são apreendidos em dois verbos latinos. Ao culto digno das semelhanças ou imagens ancestrais corresponde tradere, de acordo com os sentidos todos implicados a noção latina de traditio (tradição); já envolvido nas circunstâncias da morte da semelhança é que surge permutare, e o teórico percorrerá no conjunto enciclopédico os exemplos que manifestam que os valores da permutatio (permutação) são os mesmos enredados na luxuria. Em suma: A impressão surge, nesse caso, como o modelo indispensável e intransponível de um enxerto legítimo da semelhança: o contato direto com o rosto, a função matricial do molde negativo garantem que cada rebento – cada tiragem positiva – será, de fato, o "filho" legítimo, legitimamente semelhante, do rosto que ele "exprime" (expressi cera uultus). É dessa forma que cada filha pertencente a uma família nobre, ao se casar e deixar a casa paterna, está habilitada a fazer novas imagens e a incluí-las na árvore genealógica de sua nova casa. O modelo técnico da impressão revela aqui toda a sua eficácia simbólica: de um lado, o molde realizado diretamente sobre o rosto garante metonimicamente a presença única e inamovível do referente da representação; de outro, a tiragem em positivo garante a possibilidade de uma multiplicação indefinida, que responde a todas as combinações possíveis de alianças matrimoniais. Por estar sempre lá (na família) e por estar sempre disponível para ser transmitida em outra parte (nas famílias de aliança), a imago romana responde de fato a essa dupla função antropológica – função aparentemente paradoxal – de limitar a troca simbólica mesmo encarnando sua própria possibilidade. Tal seria, sem dúvida, sua fundamental eficácia jurídica: instituir a semelhança como ritual de duplicação tátil – e não como retórica da representação ótica – da origem. (ibid: 2015, pp. 94-95) À vista disso, parece bastante clara a marca da compossibilidade nessa morte da origem em um regime epistemológico aberto, isto é, a extinção de um ponto estrutural limite nesse discursar enciclopédico. Curiosamente, na direção oposta, ou seja, na análise estilística do modelo da arte romana antiga (o elemento positivo da formação das máscaras) 283 encontramos uma construção bibliográfica de resultados muito similares mesmo quando imbuídos da força revisionária de Vasari. Houve e ainda há, de fato, grande celeuma quanto as origens estilísticas desse apuro naturalista em meio aos romanos. Longe de nós tentarmos aqui apontar qualquer resultado conclusivo a ela, nem sequer nos interessa, na verdade, participar da celeuma. Francamente, é apenas instrutivo resumi-la em linhas gerais para nos voltarmos a nosso real objeto de pesquisa. Pois, o interessante é que mesmo entre as diferentes leituras realizadas há sempre a busca da fonte positiva, do ponto estável de origem até mesmo quando é sugerido como composição de mais de um ponto. Isto é, ainda que sem relação com o estruturalismo, toda uma corrente de análise de estilo teve por fundo o interesse naquilo que estruturasse, positivamente, o naturalismo da arte romana. Nesse sentido, portanto, assim como o ponto de vista filológico e historiográfico fazia corresponder perfeitamente o negativo da máscara de cera ao representado, numa duplicação, agora o ponto de vista do exame formal da documentação artística existente admite por antecipação que o modelo positivo da máscara corresponde perfeitamente à sua representação. Por seu propósito mesmo, esse ponto de vista na direção oposta ao do teórico francês não se assenta no texto pliniano, mas tampouco o ignora. Na verdade, o instrumentaliza dentre uma ampla bibliografia a referendar notas dos exames formais. Aquela ilustrativa ecografia volta a ser então pensada conforme os sintomas das partes do organismo vivo. E o conjunto das respostas obtidas é extremamente interessante.325 Há a linha baseada na retratística do helenismo grego, tendo a seu favor uma explicação histórica e artística concreta para o necessário apuro técnico que estaria envolvido na produção dos artefatos desse naturalismo extremo, mas que não chega a ser de todo convincente em suas explicações sociais e culturais quanto ao porquê os mesmos artistas gregos teriam realizado uma forte guinada estilística trabalhando para os novos senhores romanos.326 Outra linha atenta para a retratística de determinados períodos da arte egípcia, explicando potencialmente melhor aquela passagem estilística através do envolvimento da produtividade helênica junto a certos governos do Egito e do contato e recepção romana destes elementos.327 Todavia, na esteira desse esforço foi bem apontado certa inadequação dos 325 Na sequência, recapitularemos o resumo apresentado conforme JACKSON: 1987, pp. 32-34. A título de exemplo o chamado “Retrato do cidadão contemplativo”, do Museu Nacional de Atenas; mas, como veremos, principalmente os diversos retratos e bustos de filósofos, como o atribuído à Carnéades, do Museu Glyptothek de Munique. 327 Em duas modalidades: a retratística de estilo realista, porém mais genérico ou tipológico do que individualizado, identificados em diferentes nuances entre o 3° milênio a.C. até o período ptolemaico; e casos 326 284 retratos romanos a esses possíveis modelos, exigentes de realismo físico mas despreocupados de aspectos morais. Outra linha então manifestou elementos da produção etrusca ou itálica para bem justificar esse elemento, definido como “estudo psicológico”, que parece inteiramente original da arte romana dos retratos. Isto é, ela compreenderia esse grau de expressividade tão característico dessa retratística.328 Admitindo então os valores e as fragilidades de cada qual, seria preciso talvez compor essas linhas de exame formal a partir ainda de um elemento mais original: dessarte foi proposta uma linha muito impressionante qualificada como a “tese racial”, segundo a qual o fator mais importante para esse estilo naturalista seria o próprio verismo dos rostos dos romanos (RICHTER: 1955, p.46). Desta podem-se destacar também problemas o quanto se queira (inclusive de ordem ideológica), mas devemos observar o quanto ela, sem dúvida, segue o encadeamento lógico destas análises formais, tornando-se na prática o seu ponto estrutural culminante e ecoando muito estranhamente a antropologia genealógica da semelhança da H.N. De tudo posto, o que nos importa é que o elemento que quase sempre justifica ou organiza a apropriação ou desapropriação dessas possíveis raízes é a máscara de cera. Ora como elemento fundador, ora como elemento de manutenção entre as diferentes inovações e incorporações estilísticas.329 É a partir deste tipo de entendimento que a historiografia tentou compreender que aquilo que Plínio advogava através das imagines correspondia tanto ao realismo tardo-republicano, já terminado, quanto ao realismo do período flaviano, em pleno vigor quando da escrita da H.N. Todavia, já está bastante claro que Plínio escrevia sobre um tipo muito específico de produção artística que definitivamente não correspondia ao estilo vigente em seu próprio tempo, e que não necessariamente correspondia à estatuária republicana que conhecemos. O polígrafo escrevia, literalmente, sobre o não-visto desse naturalismo, aquilo que continua não visto por nós – aqui bem entendido pelas máscaras de cera, que a despeito de todos os esforços, negativos e positivos, seguem não vistas e esse é o indicativo decisivo desta pesquisa, o seu próprio objeto de estudo ao considerá-las elementochave no encaminhamento retórico dessa dita história da arte. Porque é preciso ter sempre em mente que não se trata, nesses primeiros trechos do Livro 35, de legitimar um artefato tradicional da sociedade romana como símbolo ou arte acima das demais. Antes, sua preocupação é de fazer andar todo o seu agenciamento de artistas e obras. mais isolados de retratística concentrada diretamente na individualidade do modelo, como o fenômeno do período de Akenaton, e o retrato de Mentuemhat. 328 Talvez o melhor exemplo seja o conjunto de esculturas do sarcófago de Volterra, datado do séc. II a.C. 329 RITCHER: 1955, pp. 39-46; JACKSON: 1987, pp. 32-47; ROSE: 2008, pp.97-131. 285 E, nesse sentido, seja pelo viés negativo (do invisível) seja pelo viés positivo (do visível) a máscara de cera permanece intangível em sua questão de visibilidade. As duas direções contrárias terminaram por estabelecer o mesmo e identificar os dois lados da máscara. De um lado, Richter, por exemplo, optando pelo rosto do modelo romano como a possibilidade determinante da origem de tal naturalismo, viu-se obrigada a desacreditar as máscaras de cera senão como eco dessa expressividade inata e desprovida de qualquer questão nela mesma. De outro lado, ao ilustrar sua análise pelo molde de gesso e pela atenção aos elementos da luxuria, Didi-Huberman parece ter negligenciado involuntariamente a importância da própria ordem dos materiais para a centralidade do argumento. É certo que ele com brilho próprio identifica na ceroma a perversa mistura da cera com elementos outros, com corporeidades excessivas que contrariam a própria dignitas. Porém, ele não traça nenhum comentário em particular ao que determinaria o destaque digno da cera em lugar de qualquer outro material. Assim, se a análise do teórico francês é de grande acuidade por libertar a formulação teórica em Plínio do vasarianismo, ela ainda nos parece por demais cartesiana quando sua argumentação enxerga a arte da H.N. como imitação de uma dignidade modelarmente manifestada como resultado filial a partir do pai. O mesmo valendo para a importância do conjunto destes exames formais. Porque nesse ponto ambas as direções assemelham-se à célebre meditação sobre o pedaço de cera,330 na qual Descartes de forma alguma se interessa por aquilo que permanece na cera ou por qualquer propriedade sua, mas apenas em mostrar como o seu Eu cogitante fundamenta o juízo de designação a partir do qual o que quer que seja a cera é identificado (Segunda Meditação (11-13). in: DESCARTES: 2011). Isto é, a cera (na volatilidade de sua forma) apenas como manifestação enunciativa da designação dada por um sujeito anterior a ela. É preciso, pois, que eu concorde que não poderia mesmo conceber pela imaginação o que é essa cera e que somente meu entendimento é quem o concebe; digo este pedaço de cera em particular, pois para a cera em geral é ainda mais evidente. Ora, qual é esta cera que não pode ser concebida senão pelo entendimento ou pelo espírito? Certamente é a mesma que vejo, que toco, que imagino e a mesma que conhecia desde o começo. Mas o que é de notar é que sua percepção, ou a ação pela qual é percebida, não é uma visão, nem um tatear, nem uma imaginação, e jamais o foi, embora assim o parecesse anteriormente, mas somente uma inspeção do espírito (ibid: pos. 345349). (…) se julgo que a cera é ou existe pelo fato de eu a ver, sem dúvida segue-se bem mais evidentemente que eu próprio sou, ou que existo 330 Segunda Meditação (11-13). in: DESCARTES: 2011. 286 pelo fato de eu a ver. Pois pode acontecer que aquilo que vejo não seja, de fato, certo; pode também dar-se que eu não tenha olhos para ver coisa alguma; mas não pode ocorrer, quando vejo ou (coisa que não mais distingo) quando penso ver, que eu, que penso, não seja alguma coisa. Do mesmo modo, se julgo que a cera existe, pelo fato de que a toco, seguir-se-á ainda a mesma coisa, ou seja, que eu sou; e se o julgo porque minha imaginação disso me persuade, ou por qualquer outra causa que seja, concluirei sempre a mesma coisa. E o que notei aqui a respeito da cera pode aplicar-se a todas as outras coisas que me são exteriores e que se encontram fora de mim. (ibid: pos. 364-369) De igual maneira, a máscara de cera não seria nada mais que uma tal inspeção: no exame formal de uma subjetividade modelar do romano retratado (individual), e no exame filológico de um limite estrutural da romanidade (trans ou supraindividual). As máscaras se tornam então símbolos numa talvez história natural dos artistas e obras lendários ou mitológicos; a caracterização e identificação do ponto estrutural fixo por entre as várias representações possíveis. Os dois lados da máscara seriam gêmeos iguais (repetidos, mas diferentes), e cada qual destes lados assume em si uma tal gemelidade como paradigma, quer no ponto de vista positivo ou negativo. Contudo, se desde o último Levi-Strauss até a mais recente antropologia há de se pensar uma assimetria autopropulsiva encarnada no mito dos gêmeos desiguais (“diferentes, mas repetidos”; cf. VIVEIROS DE CASTRO: 2015, pp. 233263), Plínio nos oferece um fato memorável ainda mais raro, um mito menor, quando o assunto enciclopédico chega à similitude: gêmeos não gêmeos. O traficante de escravos Toranio vendeu a Antônio, depois que ele se tornou um dos triunviratos, dois rapazes excepcionalmente bonitos, que eram tão idênticos que ele os considerava gêmeos, embora um fosse nativo da Ásia e o outro de um distrito ao norte do Alpes. Mais tarde, o discurso dos meninos revelou a fraude, e um protesto foi feito ao traficante pelo irado Antônio, que reclamava especialmente da grande quantia do preço (ele os comprara por 200.000 sestércios); mas o astucioso negociante respondeu que a coisa protestada era justamente a causa de ele ter cobrado tanto, porque não havia nada notável na semelhança entre qualquer par de irmãos gêmeos, ao passo que (ele disse) encontrar nativos de raças diferentes tão precisamente iguais na aparência era algo acima de qualquer avaliação; e isso produziu em Antônio um sentimento de admiração tão conveniente que o grande infligidor de bandido, que acabara de estar numa fúria de ameaças e abusos, considerou que nenhuma outra propriedade que possuía era mais adequada a sua posição! (trad. livre; H.N.7.56)331 “toranius mango antonio iam triumviro eximios forma pueros, alterum in asia genitum, alterum trans alpis, ut geminos vendidit: tanta unitas erat. postquam deinde sermone puerorum detecta fraude a furente increpitus antonio est, inter alia magnitudinem preti conquerente (nam ducentis erat mercatus sestertiis), respondit versutus ingenii mango, id ipsum se tanti vendidisse, quoniam non esset mira similitudo in ullis eodem utero editis; 331 287 Logo, como introduzimos anteriormente a respeito da relação desse “momento cartesiano” e o não visto da arte antiga, é preciso vez mais fazer a pergunta de David Jackson: tendo em vista a importância genealógica de seu culto e, portanto, o desejo inegável de preservação, por que “cera” é especificamente mencionada em vez de terracota ou qualquer outro material igualmente maleável e menos suscetível ao estrago do calor? (JACKSON: 1987, p. 45) E concordando com sua decisiva pertinência para o processo da similitudo naturae, é ainda preciso atentar para a simetria de sua resposta com a sentença de morte pliniana: having lost its magical contact, now lost its physical form (ibidem).332 Pois é na cera que habita o tropo pliniano mais estranho, o tropo do não-visto. 4.4 – Máscaras de cera, ou o sem fundo dos vultos: uma revisão alternativa através da interlocução com o estoicismo antigo. A essa altura, de uma coisa estamos certos: não há morte sem modelo. 333 Vimos vários desses modelos e, não obstante, todos se faziam ou eram feitos pressupostos à experiência do morrer e a experiência da cera. Iam da documentação existente à caça do seu modelo original de semelhança. Se procurarmos dentro da própria enciclopédia antiga uma possível chave de leitura para esse uso e correspondência da cera à dignitas não encontraremos nenhuma anedota explicativa, nenhuma magia peculiar ou fabulosa que justifique seu uso ou pressuposto exclusivo de dignidade. Tudo o que encontramos reafirmado através de variadas passagens, especialmente nos livros de medicina, é o interesse e valoração contrária ao que se narra na meditação de Descartes: por seus milhares de usos para a vida (H.N.11.4), por sua incontável variabilidade na interação com o mundo da enciclopédia. E no que diz respeito ao seu emprego e cotidianidade doméstica figura enquanto contraposição apiária às propriedades divinas e imortais do mel (H.N.11.4 e 11.12). Mas essa procura ela mesma seria querer mais um modelo pressuposto, prévio ao trabalho artístico, ao seu operativo. Por isso, até aqui as máscaras de cera foram sobretudo o que nós pensamos ver, independentemente de ter visto ou não visto. Espécie de espectro ou assombração ocasionado pelo luto – vendo vir o que não se diversarum quidem gentium natales tam concordi figura reperire super omnem esse taxationem; adeoque tempestivam admirationem intulit, ut ille proscriptor animus, modo et contumelia furens, non aliud in censu magis ex fortuna sua duceret.” 332 “tendo perdido seu contato mágico, agora perde sua forma física” (trad. livre). Na H.N.: “…já que faltam os retratos das almas, descuram-se também o dos corpos” (ibid, 1996, p. 318). “…quoniam animorum imagines non sunt, negleguntur etiam corporum” (H.N.35.5). 333 “O que, então, morre nessa morte da arte? Nada além do que a origem da arte.” (DIDI-HUBERMAN: 2015, p.78) E, claro, cf. DELEUZE & GUATTARI: 2004,pp 244-248. 288 esperava ver ali. Melhor será pensar em não ver,334 isto é, fazendo ver a ausência de alguma coisa pelo qual esperamos. O único evidente é que Plínio rechaça fazer explicar ou garantir o que é e o que não é pintura através de uma gênese, mítica ou histórica: esta ele só menciona em sobrevoo após toda a sua “dita teoria” (35.15), aquela ele lança para o fim já menos como gênese e mais como destino original (35.151). Enfim, para decodificarmos essa relação (cera/dignitas) é preciso fugirmos daquilo que Corbier acertadamente intitulou de “moderna caçada por imagens”, que insiste em ler a H.N. como documento em vez de literatura (ibid, 2008, p.70), que insiste em procurar por objetos para meditar. O que também não significa simplesmente admitir essas máscaras como mais uma obra invisível a ser entregue à historiografia de cripta: nem como na invisibilidade da imagem do irmão do imperador Caracala (banida em damnatio memoriae), nem, em hipótese mais absurda, como algum tipo de ideia platônica de uma obra de arte. Mas apenas não vista como todas as demais obras de arte da H.N. – porque é delas que se trata, vez que Plínio não pretende assinalar somente as máscaras de cera como arte, mas como operativo das grandes obras que ele apresentará na sequência, e o porquê e o como ele as abordará. O ponto é que a cera uultus nunca foi realizada para ser visível nem invisível, mas para ser experimentada. Portanto, interessa agora um outro tipo de passeio, o exercício disparatado de imaginarmos à meditação cartesiana pela própria cera: do operativo modelar até a sua experiência e logo de volta da experiência a ela como modelo de subjetividade. Porque o curioso é que no princípio dessas Meditações, antes do descarte ele ainda está mais para o informe da cera do que para re-natus.335 Então deixemos que também a História da Arte possa dar folga de si e, só por esse instante, substitua o jogo com os objetos do seu próprio pensamento pelo jogo efetuado do pensamento sobre sua própria subjetividade, trocando suas tentativas de pensar com intensidade particular, de deixar o próprio pensamento se desenvolver com ordens mais regradas a partir da coisa que se pensa, por um experimento de si na coisa em que se pensa. Sendo assim, em nada admira que ao se perguntar sobre esse procedimento de feitura das máscaras de cera C. B. Rose tenha se aproximado (ou nos aproximado) mais do que os demais comentadores em compreender a relação entre a cera e a dignitas. Porque embora o 334 Com nossos cumprimentos à J. Derrida (in: 2012, pp. 63-89). Renatus Cartesius, nome latino de Renê Descartes, literalmente “renascido, ressuscitado”. Isto é, aqui a narrativa ainda parte de ceticismos e transformações para só depois se convencer e afirmar a si mesmo; portanto, conforme insistia Hadot e confirmava Foucault, segundo uma meditatio muito semelhante à dos antigos e bem diferente daquilo que caracterizará o método. “…quando Descartes faz "meditações", e escreve as Meditações no século XVII, é bem neste sentido. (…) de modo algum é um exercício sobre o pensamento e seu conteúdo. É um exercício pelo qual o sujeito se põe, pelo pensamento em uma determinada situação. Deslocamento do sujeito com relação ao que ele é por efeito do pensamento” (FOUCAULT: 2006, p.430) 335 289 processo não tenha em si nada de mágico ou obscuro, ou algo discrepante do que em geral se imagina, a arte de alguns de seus detalhes é bastante decisiva. Como ele detalha, a cera não podia ser aplicada diretamente sobre a pele do retratado, e era feita através de um molde de gesso da face – exatamente como indicava Didi-Huberman – que tinha também todo um modo de preparo. Mas, uma dúvida que bibliograficamente se intrometia nessa história era quanto ao cuidado dessa manufatura de cera em vistas do uso ritualístico já descrito. Isto é, já que eram feitas como máscaras e não como bustos, como elas poderiam funcionar nas cerimônias fúnebres? Como elas eram “vestidas” pelos familiares? (cf. H.N.35.6) A dúvida era justificável porque além de falta de recurso visual havia registros que pareciam divergentes – vez que Políbio sugere que elas cobriam toda a cabeça de quem usava, como nas peças dramáticas, enquanto Plínio claramente insinua que elas se atinham ao rosto do retratado.336 Porém, é simples a solução que conjuga as duas alegações decisivas para a virada de sentido do quadro pliniano, para a sua bifurcação. Pois, uma vez pronto o molde de gesso, era pincelada uma camada de cera derretida no interior dele, seguida imediatamente por um pedaço de pano que serviria de suporte da máscara, sendo este seguido por outra camada de cera (ibid: 2008, p.113-114). Se encontrando por entre os vazios mínimos da textura do pano, a cera derretida então fluía de um lado a outro se temperando e combinando, formando uma superfície integral e suficientemente estável para ser exposta, guardada e usada ritualisticamente. Assim, o resultado final dessa dupla pincelada era a cera uultus. Esse operativo garantia duas necessidades: por um lado, a célebre dita verossimilhança em todos os níveis (retratado e retrato); por outro lado, a praticidade do uso da máscara. Vez que o pano deveria ser maior do que o molde facial ele possibilitava que as máscaras do rosto tivessem cordas instaladas para prendê-las na cabeça – ao mesmo tempo representando só a face, como sugere Plínio, e cobrindo toda a cabeça, como indica Políbio. Mas o grande diferencial que o operativo revela é bem mais sutil, embora intimamente relacionado ao seu uso. Dir-se-ia mesmo que mais do que diferencial, é um operativo diferenciante. Um ponto de vista diferenciante como efeito de superfície. Pois a máscara de cera enquanto operativo, e no seu próprio processo, deixa claro que, especificamente, o resultado é um duplo sentido em positivo-negativo ao mesmo tempo. Afinal, fica não cabendo nessa descrição a nossa imaginação simples de uma perfeita simetria entre o verso e o inverso da exatidão de uma (única) superfície. A descrição instala um vão entre os dois lados, uma “The term Polybius uses for mask, prosopon, might connote a covering for the whole head in the manner of a theatrical mask, but is more likely to suggest to the reader a face or countenance than a head. Pliny avoids the term mask in preference for vultus, which clearly denotes a facial covering.” (JACKSON: 1987, p.34) 336 290 abertura na exata proporção dos pontos singulares que articulam os dois lados numa repetição graças à diferença. Essas máscaras, esses “vultos”, eram resultados direto de uma disjunção afirmativa: dois lados heterogêneos, a rigor sem a proveniência da mesma origem modelar (agora há o gesso e o pano), tornavam-se gêmeos idênticos através de pontos singulares – mais de passagem do que de contato.337 Não queremos com isso afirmar que os lados envolvidos eram absolutamente discrepantes; na verdade, se mais ou menos agora isso se faz irrelevante. O fato é que já não se trata de variação ou igualdade, mas de como elas são experimentadas como encarnação da máxima similitude na H.N. Pois, assim como na obra de Anedota, a filha de Butades (35.151), as imagines não são feitas de fato por contato direto senão com uma diferença infinitesimal que é o suficiente para que não sejam nem iguais nem desiguais aos retratados, apenas não-iguais. A anedota dos “gêmeos que não eram gêmeos” é o encerramento de um assunto muito peculiar no Livro 7, o livro da antropologia da H.N.: são o que há de maior estima no que se refere a questão, de imensa reputatio, da similitude (H.N.7.51-56). Depois de elencar vários filhos e filhas muito diferentes dos pais, Plínio tenta neste tópico explicar a razão das infindáveis fisionomias humanas (até irrepetíveis, segundo ele). Diferente do pressuposto pelo teórico francês, ela não é uma questão pura e simples de transmissão direta e física. Ou, pelo menos, não é essa transmissão que está em jogo na seleção dos exemplos e no endereçamento da questão. Ao contrário, ela inclui “um grande número de influências por circunstâncias fortuitas”: olhares, sons e impressões sensitivas recebidas no momento da concepção. Mais do que isso, acreditava-se que mesmo pensamentos que de repente atravessassem [transvolo] a mente dos pais eram capazes de engendrar similitudes ou compor características (7.52). Dois aspectos, então, são decisivos a destacar. O primeiro é que a questão da similitude não está encaminhada a partir da igualdade para a diferença, mas o inverso. Ou seja, não se exemplificam as semelhanças físicas para explanar as diferenças possíveis entre pais e filhos; é partindo das constatadas diferenças (maiores ou menores) que se engendra a explicação do mesmo. O segundo é que, consequentemente, a similitude é o encontro do fora com o dentro, das transmissões genéticas e físicas com os transvolos dos olhares e pensamentos. Ela é o acontecimento de um pensar não-visto, um puro resultado transvalorado – ou simplesmente “traduzido”. Não diz respeito ao rosto exclusivamente, mas ao vulto dele que faz coincidir o heterogêneo, o dentro e o fora, em pontos singulares, como rastros dos seus traços. O caso dos 337 E caso se queira admitir que, provavelmente, em último grau o gesso de certa forma terminasse por determinar o resultado também da pincelada por sobre o pano, com o mesmo rigor precisamos admitir que o pano e as pressões da segunda pincelada de cera também resultavam em possíveis alterações da modelagem da primeira pincelada por sobre o molde de gesso. De tal maneira que a solução é admitir que formavam sistema. 291 gêmeos que não eram gêmeos se explicaria, na H.N., por uma identificação absoluta dos pensamentos que os configuravam, independentemente de qualquer origem em comum (genética, cultural ou linguística). Da mesma forma, se explica porque nos últimos livros da enciclopédia a similitude em seus termos só era empregada para se referir a representação de animais, tendo como única exceção o caso das máscaras de cera (cf. o destaque certeiro em MARQUES: 2008, p. 65). a razão pela qual há mais diferenças no homem do que em todos os outros animais é que sua rapidez de pensamento e rapidez de mente e variedade de caráter mental imprimem uma grande diversidade de padrões, enquanto as mentes dos outros animais são lentas e semelhantes para todos, conforme a espécia própria de cada um. (trad. livre; H.N.7.52)338 Sobretudo, o que fica esclarecido pelos dois aspectos é que a similitude não é algo da ordem do previsível nem algo que se anteponha à própria experiência. Assim como só depois do nascimento se poderá saber com quem ou com o quê se assemelha o novo rosto e a partir da abertura de um jogo puro (isto é, sem regras) de correspondências imprevistas, só depois da máscara de cera pronta é que se poderá afirmar a natureza da semelhança entre o retrato e o retratado – exatamente como no jogo aberto pelo espelho paradoxográfico. A questão da similitude é sempre a de um não-visto que não só extravasa qualquer cópia física (visível) como também não se restringe a nenhum pressuposto moral (invisível), mas acontece singularmente, a cada vez recriado ao encontro com o mundo. A maxima similitudine não tem valor, moral ou formal, em que possa ser de antemão reconhecida. Ela acontece enquanto expressa o visível da forma e o invisível da significação. E, diferente do espectro, o uultus é aquilo que não vemos no que vemos senão por sua ausência. Ponto cego a delimitar em filigrana os limites do visível e do invisível, ele mesmo só acontecendo nesse operativo. O eco ciceroniano não poderia ser mais claro quando ele não só discrimina os animais do ser humano precisamente pela falta de uultus como explica que não se trata de questão de representação mais de expressão [expressas] e afirma que embora os gregos já reconhecem o valor do uultus eles não tinham nome para ele (De Legibus I.9).339 De forma objetiva, diz Cícero, o uultus é a expressão que acontece entre o visível das linhas do rosto [speciem oris] e o invisível dos pensamentos ou, ainda melhor, do modo ou maneira de ser [penitus reconditos mores]. “ideoque plures in homine quam in ceteris omnibus animalibus differentiae quoniam velocitas cogitationum animique celeritas et ingeni varietas multiformes notas inprimunt, cum ceteris animaiitibus inmobiles sint animi et similes omnibus singulisque in suo cuique genere.” 339 O que é interessante de lembrar que, na direção oposta, Plínio informa que os romanos entendiam o valor da simetria, mas não tinham palavra para ela (H.N.34.65). 338 292 “Uma máscara não é aquilo que ela representa, mas sobretudo aquilo que ela transforma, isto é, que ela escolheu não representar” (LEVI-STRAUSS, apud: VIVEIROS DE CASTRO: 2015, p. 245) Assim, a máscara é o “limite” sim, mas de um jeito todo diferente, diferenciante, daquele que Didi-Huberman emprega. A dignitas da cera não é um “até onde”, o ponto máximo ou mínimo, do que se pode trocar socialmente. Ela é o processo, o operativo de delimitação de possibilidades, o limite mesmo entre o dentro e o fora, entre o visível e o invisível – e, em última instância, entre o que é e o que não é. Em outras palavras, ela correspondia especificamente ao operativo do não-visto em delinear os limites da visibilidade. Como já demonstrado por Didi-Huberman ao lembrar o seu regime epistêmico aberto, ou por Corbier ao sublinhar que a crítica de arte é posta em segundo plano por Plínio em favor dos procedimentos operativos, devemos agora procurar por esse não-visto na experiência das máscaras de cera em vez de escarafunchar por suas imagens. Precisamos então passar do modelo para a experiência para vê-lo se fundando nela mesma. Pois, o que segue obscuro é a intimidade da dignitas e a cera, e quais as implicações epistêmicas para a similitudo naturae. Na verdade, a primeira afirmação que encontramos sobre a pintura no Livro 35 é “… arte quondam nobili (…) et alios nobilitante, quos esset dignata posteris tradere” (H.N.35.2), que nossa tradução se apressa em versar como “… arte nobre outrora (…) e que tornava célebres as pessoas que ela achava dignas de legar à posteridade” (ibid, 1996, p.318). Longe de nós apontar qualquer erro, apenas algumas imprecisões mínimas e naturais ao esforço de tradução visando o grande público. Do ponto de vista histórico é preciso salientar que, embora a teoria da imago dê a entender que se tratava de uma possibilidade artística aberta a todos os romanos – e romanas –, ela reflete em muito a lógica aristocrática e patriarcal da romanitas, especialmente republicana. Porque, objetivamente, no que se refere stricto sensu à produção das imagines, não era a arte nem o artista em si (a arte pela arte) quem decidia ou julgava o que era digno de legar à posteridade. Não havia ainda como o ser, admitindo o seu culto genealógico e a antropologia correspondente ao seu regime epistêmico aberto. Assim, é evidente, só havia imagines de homens ou, na verdade, de alguns homens muito específicos, selecionados em meio à aristocracia do regime. Sem qualquer intento de diminuir ou relativizar o elitismo desse procedimento340 é preciso investigar a episteme social e política que o garantia a fim não só de demarcar a experiência da dignitas bem como de manifestar como esse modelar escapa a esse elitismo específico para fundamentar todas as demais abordagens artísticas da H.N. – inclusive aquelas 340 Ao contrário, conforme revisão no Capítulo 3. 293 que contrariam ou que simplesmente não têm nenhum envolvimento com a romanitas (sendo, no geral, as célebres pinturas gregas o melhor exemplo). Duas interpretações críticas que estão elas mesmas entrelaçadas (porque ambas dão sinal de um lado e de outro, e porque cada qual parece o verso da outra) nos parecem capitais para entender o desafio historiográfico decorrente disto que estamos indicando por cartesianismo. Em primeiro lugar, as máscaras de cera só eram produzidas para quem tivesse ocupado ao menos a posição de edil, cargo importante e bastante seletivo que marcava o possível início de uma carreira pública mais exuberante (ROSE: 2008, p.113).341 O que, portanto, manifesta que somente famílias relevantes na aristocracia do regime tendiam a conservar imagines (o próprio Plínio jamais teve esse direito). Contudo, por lógica simples indica também que, se marcavam esse momento social específico, elas jamais corresponderam ao retrato puro do rosto e menos ainda do fim de vida do aristocrata. Identificar as máscaras de cera simplesmente às máscaras mortuárias e seus desdobramentos mais conhecidos na produção de estátuas ou bustos é um erro flagrante, porque desconsidera que aquilo que está em jogo não é nunca para Plínio e sua H.N. um estilo, mas um procedimento, um operativo artístico enquanto operativo de um mundo. Ao descuidarmos deste ponto, tentamos identificar esse não-visto às propriedades convenientes daquilo que nos acostumamos a ver: retratos de uma aristocracia masculina com sinais de idade avançada (linhas incisivas através do rosto), rara insinuação de cabelos, e o tamanho por vezes exagerado de orelhas, lábios espessos, e narizes aquilinos protuberantes em contraste com bochechas cadavéricas.342 A reprodução ou duplicação de indivíduos bem formados, homens que valorizavam a moral, o caráter e o serviço ao estado acima dos ideais clássicos de beleza (ROSE: 2008, p. 102). Vez mais, na ausência das máscaras de cera o invisível se tornou o substrato metafísico do visível. E, se a diferença não residia no procedimento artístico mas na substância subjetiva (como na tese racial, mas de resto em todo conjunto do exame formal e até mesmo na antropologia estrutural), sendo o modelo e o moldelar iguais, o resultado também seria igual fosse nas estátuas fosse nas máscaras. Portanto, a partir do visível da documentação artística existente dessa estatuária inferiu-se rapidamente a etapa preliminar, quase arquetípica, na cera vultus. É incontroverso no próprio texto pliniano a relação dessas máscaras com o morrer, e nós mesmos temos reafirmado ao longo de todo esse capítulo as manifestações dessa relação no 341 O edil era, basicamente, responsável pela manutenção e supervisão da construção de prédios públicos, além de organizador dos festivais. Mais tarde, como Júlio César (44 a.C.), surgem os edis cuja tarefa especial eram supervisionar os suprimentos da cidade. No período mais antigo só havia dois para cada magistratura. 342 Conforme se observa em obras como: a Máscara Mortuária em terracota (séc. I a.C.) do Museu do Louvre (S484); mas ainda melhor nos vários retratos de desconhecidos datados da mesma época (como o Patrizio Torlonia), ou ainda nos personagens da famosa estela identificada ao senador Lucius Vibius. 294 que tange em geral essa história da arte de Plínio. Porém, estaria realmente na H.N. o organizar essa morte da arte tendo por fundamento artístico o já morto, enrijecido e fixo? Nos parece que a resposta não pode caber inteiramente nesse modelar e que, nesse sentido, a argumentação de Rose é não só eficaz como categórica: Como Harriet Flower observou, a descrição de Políbio deixa claro que as máscaras tinham a intenção de transmitir a aparência do homem morto quando ele estava vivo. Não há indícios de que as imagines eram máscaras mortuárias produzidas após o rigor mortis ter sido estabelecido, nem é surpreendente que elas tenham sido moldadas em vida: cada imago destinava-se a celebrar o sucesso político alcançado por um homem durante o auge de sua vida, e tais realizações seriam mais difíceis de encapsular em uma imagem que copiava um rosto sem vida e desintegrado de um cadáver. (trad. livre; ibid: p. 115)343 Uma vez que as imagines eram, com efeito, prêmios cívico-artísticos por ter alcançado um posto, ele deduz que elas eram produzidas assim que possível tendo um romano se dignificado para tal.344 Por consequência, provavelmente as imagines eram produzidas próximas à idade média com que se alcançava o cargo, isto é, antes mesmo dos quarenta anos de idade. O que, diga-se, não significava propriamente juventude no âmbito romano, mas alta vitalidade social entre os jovens, que não chegariam à idade adulta, e os maiores, que já tinham passado por todas as posições políticas e familiares (filho, pai, avô…). Ainda assim, é óbvio que as máscaras teriam assimilado traços e aparências relativamente jovens, na maioria dos casos sem os sinais evidentes e já mencionados de velhice, e característicos das máscaras mortuárias, e das estátuas produzidas por extensão. O que reforça que os “vultos de cera” eram realizados não só em vida, como eram reconhecimento de um estado de vitalidade “As Harriet Flower has noted, Polybius's description makes it clear that the masks were intended to convey what the deceased man looked like when he was alive. There is no indication that imagines were death masks produced after rigor mortis had set in, nor is it surprising that they were cast from life: each imago was intended to celebrate the political success achieved by a man during the prime of his life, and such accomplishments would be harder to encapsulate in an image that copied a lifeless and disintegrating face of a corpse.” Em nota, ele ainda lembra que é certo que ocasionalmente foram feitas máscaras mortuárias, porém nenhuma delas antes do século I e quase metade das conhecidas foram encontradas no norte da África. Portanto, sem evidência concreta que elas tenham desempenhado papel significativo nos rituais fúnebres de Roma ou mesmo que elas fossem sinônimos das imagines. O que nos parece, por tudo já esclarecido, crucial na necessidade de revisão da teoria do ensaio de Didi-Huberman – não por acaso, ilustrado por uma máscara mortuária de fora da Itália, Tunísia, e apenas datada como “período imperial romano”. 344 The imagines were, in effect, rewards for having reached the office of aedile, or praetor if the aedileship was skipped, and it stands to reason that they were produced as soon as they possibly could be. It would be much more difficult to understand a delay in their production, especially considering the competitive political climate of the middle and late republic. There was also the danger that adverse fortune would strike the officeholder at a later date, such as death in war or a fatal accident, which would prevent the production of an accurate mask. Making it at the earliest opportunity would be the most logical and safest solution. (ibid, 2008, p.114) 343 295 exuberante.345 Na verdade, temos notícia inclusive de dois casos que indicam, fortemente, que elas eram produzidas com o modelo não só ainda vivo como até mesmo muito longe da morte e relativamente cedo na carreira pública de alguém. São eles os de Calpurnius Piso e de Marcus Scribonius Libo Drusus: ambos suicidaram durante julgamentos que terminariam por banir suas máscaras de cera (apud: ROSE: 2008, pp. 114-115). Conforme insiste não só Jackson como também Corbier (2007: p.72), em uma leitura diligente essa diferença se fará explícita no próprio texto de Plínio quando justifica a sentença de que “a moleza pôs a perder as artes, e, já que faltam os retratos das almas, descuram-se também o dos corpos.” (ibid, 1996, p.318; 35.5) Segundo uma interpretação moralizante – nossa – a alteração dos valores morais e éticos, e consequentemente dos gostos estéticos, teria impulsionado essa morte da arte compreendida na descaracterização dos retratos naturalistas em favor de modelos luxuriosos (menos austeros ou até carrancudos) e artistas estrangeiros. Todavia, considerando que é em argumento a essa sentença pliniana que aqueles pares de oposição346 são narrados por justificativa, teremos que rever nossa leitura apressada que além de tudo confirma o paradoxo formado a partir da historiografia vasariana: pois havia em atividade naquele período uma arte, senão o próprio exemplo máximo, plenamente naturalista. Mais do que isso: em primeiro lugar, conforme as notícias que temos de Nero e de Vespasiano347 tudo indica que a técnica em si da máscara de cera continuou a ser realizada mesmo no tempo de vida de Plínio, ainda que em paralelo e em menosprezo diante das produções em materiais mais nobres; em segundo lugar, como bem aponta Jackson, o próprio Plínio registra (35.153) que Lísipo e seu irmão Lisístrato já faziam moldes de cera diretamente do rosto do modelo no séc IV a.C. sem que isso jamais tenha gerado por si mesmo uma revolução estilística de tipo verista. Portanto, a morte da arte nunca se tratou de uma impossibilidade técnica e muito menos estilística (teríamos que dizer o mesmo sobre o seu nascimento), mas de uma incompossibilidade de mundo compreendida em algo que se deixava revelar e acontecer na cera – e que é perdido independentemente da continuidade do uso dela. Nesse sentido, assumindo que as máscaras além do processo objetivo também recebiam retoques dos artistas, Corbier qualifica que a obra em cera ia “muito além do 345 Jackson, que também reafirma que as imagines eram dos homens em vida, parece ainda admitir sua produção se dava a partir da máscara mortuária porém com necessárias adaptações e interessantes intervenções por parte do artista. (ibid: p.35-36) 346 Em espelhamento, ele opõe as signa aos vultus (estátuas x máscaras), os materiais envolvidos (bronzes e mármores x cera), e os procedimentos artísticos dos externorum artificum ao expressi (artistas de fora x impressão sem distância tátil). 347 Respectivamente: SUETÔNIO: Nero, 21.3, e DION CÁSSIO: 63.9.5; e SUETÔNIO: Vespasiano, 19. 296 naturalismo” e exprimia a “imagem da alma”.348 Bem entendida, a sentença pliniana podia ser traduzida como: por não querer revelar a alma, não revelam nem mesmo o corpo (ibid: p.74). Portanto, não retrato de corpos, mas daquilo mesmo que, animando, define os corpos, daquilo que em se perdendo faz perder também os próprios corpos – e faz perder a própria materialidade da cera. Ao invés da representação estática da efetiva morte, as máscaras de cera correspondiam a relação entre aquilo mesmo que anima a vida individualmente e certa experiência do morrer. Pois, é preciso esclarecer definitivamente: assim como as imagines não eram máscaras mortuárias – a imagem do morto – também não eram “máscaras viveiros”, carregando a imagem dos viventes, testemunho ou testamento. Por isso, a segunda interpretação crítica a refazer é sobre como Plínio pôde dizer sem embaraço que as máscaras de cera não eram retratos, mas que podiam servir como tal. Logo, tal qual foi preciso atentar para a distinção de relevo entre pictura e imago seria de bom tom observar no próprio texto a ressalva dessa segunda distinção: Outras eram as coisas que se tinham para ver nos átrios dos nossos antepassados; não estátuas de artistas estrangeiros, nem bronzes ou mármores, mas fisionomias, impressas em cera [expressi cera vultus], eram dispostas em nichos individuais para serem retratos [ut essent imagines] que formariam nos cortejos dos funerais gentilícios, e sempre que morria alguém, comparecia toda a gente que um dia tinha sido daquela família. A árvore genealógica, com suas ramificações, descia até os retratos que eram pintados [imagines pictas]. (H.N.35.6; PLÍNIO: 1996, p. 318) Mesmo tendo em consideração os esclarecimentos quanto ao papel estrito do termo na dita teoria e sua respectiva anterioridade a qualquer gênero artístico por assim dizer, leia-se: o uultus não era exatamente uma imago. Com isso, obviamente, não pretendemos destruir a importante elaboração que o ensaio de Didi-Huberman se esforça por decodificar. O que parece necessário é pensar justamente isso que a despeito dos rigores de análise, que a despeito da nossa vontade de representação, mantêm-se no não-visto e resiste a se fazer imagem. Ademais, ainda que uma não seja a outra elas não deixam de jogar entre si, realizando passagens. O uultus não é exterior à imago, mas opera no exterior da imago. É, de novo, o que fica do lado de fora. Na versão de Didi-Huberman da teoria pliniana a imago funciona como “ponto de ancoragem”, molde estrutural e fixo, “levantando-se como marcos”. 348 Como já indicado, Jackson também admite a necessidade de adaptação artística (ibid: p. 35-36), e considerando a ênfase na vitalidade que deveria ser expressa também Rose consente que elas “provavelmente” eram pintadas para se parecerem mais com a pele (ibid: p.114). Também SCHLOSSER: 2008 p.181. Porém, essa assunção ainda não está totalmente pacificada. É difícil determinar pelas fontes disponíveis se a matéria colorante (propriamente a pictura) era trabalhada no preparo da cera que seria empregada na confecção da máscara ou se era realmente aplicada após o procedimento relatado, isto é, sobre a cera já endurecida. 297 Não por menos elas terminavam por configurar as próprias árvores genealógicas, e demarcar um atributo social e político nas paredes das casas aristocráticas. Isto explica perfeitamente bem a negatividade que marca a luxuria do texto pliniano, na incompossibilidade para com os outros mundos. Todavia, não explica com igual vigor a compossibilidade que se assume de antemão entre o mundo do romano, o do grego, e o do egípcio nessa mesma história da arte. Ou seja, como visto no conjunto dos exames formais, não explica como essa historiografia identifica a romanidade tão organicamente a esses povos, nas suas produções artísticas, e em detrimentos de todos outros. É preciso que o uultus seja esse diferenciante, não-visto, a realizar as passagens entre os limites da identificação e da discriminação. Tanto Plínio quanto também Políbio (6.53.4) são muito específicos neste ponto: as ceras vultus eram empregadas nos rituais funerários da família, sendo literalmente vestidas por familiares (e depois até por atores) durante as procissões.349 Porém, “a servir de retrato” só significa destinado a representar um papel na ordem ideológica da arte. Já foi bastante destacado por comentadores a função da máscara de cera e das imagines na construção, participação e composição da memória familiar, na sua relação mesma e direta com os arquivos de família: esses monimenta eram dispostos na casa junto aos codices, isto é, os arquivos escritos que confirmavam e reforçavam o sentido dos retratos pelo registro oficial dos grandes momentos da parte pública das vidas retratadas.350 Mas talvez fosse proveitoso destacar, filologicamente, o sentido dessa classificação enquanto “monumento” tomando por raiz o verbo latino monere. Significa dizer que experimentar as máscaras, fosse no átrio de casa ou nos rituais fúnebres públicos, não correspondia a interpretação de um papel e sim de “trazê-lo à mente”. Nossa experiência moderna com as quase infinitas fotografias não ajuda muito a entender esse significado se seguirmos pensando nas máscaras como os nossos retratos. Está claro que não se tratava de trazer à mente, como uma fotografia traz à memória por simples e direta visualização, o rosto ou determinada situação que passamos com um ente que já se foi. Isto corresponde a trazer, voluntariamente, aos olhos. Trazer à mente correspondia na prática a experimentações com a memória, com aquilo que ela tem até mesmo de involuntário, como quando ao olharmos uma fotografia ou qualquer outra coisa somos levados, por algum rastro quase secreto nos traços da própria imagem, a pensar em outra coisa diferente, heterogênea em menor ou maior grau, daquilo que está de fato representado. Assim está vinculada a memorabilia com a mirabilia por toda a H.N., como já 349 “… eram dispostas em nichos individuais para serem retratos que formariam nos cortejos dos funerais gentilícios, e sempre que morria alguém, comparecia toda a gente que tinha sido daquela família.” (ibid. 1996, p.318) 350 Cf. CORBIER: pp. 75-75. Ver também Imaging Memory. In: CAREY: 2003, pp. 138-170. 298 explicamos. O regular e constante pode ser entendido e explicado, é previsível, “reconstruível”. O senso comum independe de testemunha. Com o excepcional é diferente porque ele não é entendido aqui como marginal mas, pelo contrário, como o privilegiado e digno de preservação, precisamente porque escapa dos regramentos prévios e das constantes, permitindo por si passagens entre elementos de séries heterogêneas de regramentos. … for Pliny, too, the mirabilia, precisely as such, are memorabilia. More than once, in the course of ancient thought, attention paid to anomaly (as a criterion of interpretation valid for every aspect of life, from linguistic facts to historical or geographical ones) became an attitude of interest in the marvelous, whether as an unexpected change of fortune or in general as a paradoxon worthy of mention. (CONTE: 1994, p.87) Daí o sentido maior da damnatio memoriae para os antigos: menos pela destruição do registro de um criminoso (na verdade os registros seguiriam existindo) do que por aquilo que ele podia trazer à mente e em motivação sempre dupla. Pois, se no retrato se identificava essa aura mágica do trazer à mente, do outro lado não se identificava na mente de quem contemplava o rigor de uma subjetividade já plenamente construída, mas ainda em construção, em permanente relação de pressões e influências. Logo, mais do que tornar invisível um rosto para a memória, a prática consistia em “trazer à mente” a danação por sobre o rosto, por sobre aquelo modo de ser. Desfazendo o giro, se estas máscaras não eram propriamente a imitação de um rosto digno, ainda assim fazia reprodução com máxima similitude, e sem distância, da própria dignitas. Em outras palavras, elas não representavam um rosto importante do regime ou da família, mas marcavam a conquista de uma posição significativa no estado romano. Ou, antes de retratar um rosto ou figura, elas encarnavam o acontecimento de uma res gestae, um gestual e uma gestação das coisas, das coisas públicas e de si junto. Também como noutro capítulo dissemos da gesta dos filósofos ou dos artistas, tratava-se de uma experiência digna e dignificante no trato com o mundo (romano) e que nela mesma se formavam ou atualizavam os traços individuais. Nesse sentido, diante da H.N. poderíamos dizer que de certa forma elas figuravam o uso ou o usuário modelar da enciclopédia, a representação do irrepresentável de uma sapientia no uso digno das coisas e de si. Pois, a dignitas não está nem no rosto do retratado nem na cera propriamente, mas acontece em pontos singulares revelados no encontro dos dois, dignificando assim o próprio encontro. Enfim, ela se dá pelo não-visto das máscaras, é o seu digno acontecimento ao mesmo tempo em que é dado a ver o visível (o rosto do retratado) e o invisível (seu trato com o mundo). Não é o uultus em si mesmo, mas o 299 seu bom resultado expresso e entendido no interior da epistemologia da romanidade antiga em que se situava essa história da arte. Por isso mesmo, o seu contrário não é a luxuria, mas a danação. Agora sim, mais por inversão do que contraposição, podemos apurar a luxuria também enquanto experiência estética. E não se trata de subverter o já exposto por outros revisores tão longamente, de querer uma interpretação especial, mais sofisticada, misteriosa ou esotérica. Trata-se apenas de voltar àquele exame e confirmar suas hipóteses com apenas uma ligeira alteração de ênfase. Sim, as interpretações já estão todas aí, postas, e estão todas corretas. Contudo, na caracterização dos três tipos de luxuria351 em contraposição à ausência de tipificação da dignitas o que precisa ser destacado é o sentido mesmo dessa tipografia organizada. Afinal, em cada qual destas três tipificações luxuriantes o que fala mais alto é sempre e justamente o estabelecimento de um tipo: a definição de um tipo de material nobre e um tipo vulgar; um tipo ou modelo de corpos e de prazeres; e, inclusive, um tipo de rosto ou de personalidade e até de status. Ora, é nesse sentido que devemos entender porque jamais a elaboração pliniana nos leva a um favorecimento da pintura ou da arte em geral fisiognômica.352 Pois, ao contrário, seu interesse pelas singularidades artísticas o levam a comentar rapidamente essa ocorrência (e não sem algum desdém; H.N.11.247 e 35.88), mas, sobretudo, o que ele critica na “nova moda” dos escudos de bronze e dos bustos de prata é a representação fixada em um modelo prévio e previsível, num tipo: Ergueram-se medalhões de bronze, semblantes de prata, sem que se distingam com clareza os tragos individuais [surdo figurarum discrimine]; substituem-se as cabeças das estátuas e, a respeito, espalham-se, há tempo, pilhérias até em versos mordazes (ibid: 1996, p.318; H.N.35.4). O que Plínio nos retrata nesses trechos e, em particular, nos trechos sobre a figura de Nero, são exemplares máximos daquilo que entendemos, modernamente, por consumidores ou por consumismo puro e simples. De um lado, determinados produtos ou artigos preestabelecem em si mesmos valores específicos de status, de reputação e até de dignidade na afirmação de uma identidade pessoal que estimulam desejos irrefreáveis de posse. De outro lado, 351 A lembrar: a dos materiais, a dos corpos, e a das semelhanças. Isto é, a compreensão do rosto conforme preceitos afirmativos entre características corporais e mentais, abrindo a porta a tanto para a formulação de uma ciência esotérica, ou ao menos holística no entendimento atual, bem como práticas médicas. A recusa pliniana a esse tipo de representação está muito bem assegurada tanto por Corbier (ibidem) quanto por L. Marques (ibidem), entre outros. No entanto, quanto a sua relação estoica seria preciso nos demorarmos, tendo em vista que a escola era favorável. Em resumo, a diferença parece ser questão de direção: enquanto a prática grega indicaria interesse por certa verdade interior a ser desocultada, desvelada, o posicionamento romano, particularmente político, indicaria certa verdade interior na aparência externa marcada por suas realizações e que dramatizaria os mores (cf. Christopher Hallet, apud: SQUIRE: 2014, p. 101, nota 30). 352 300 subjetividades são esvaziadas na medida em que assumem e são assumidas pelos valores consumidos ou desejados. Dessarte, elas vão sendo elas mesmas tipificadas e etiquetadas. É só no domínio público, entre aqueles que não se distinguem, que são permitidos os tipos. Nada mais evidente sobre isso do que o tratamento das personagens nas encenações cômicas romanas: saem Édipo, Medeia ou mesmo Sócrates, e entram entre outros o velho avarento, a jovem ingênua, ou a escrava esperta.353 São tipos porque sempre mais ocupados com as coisas alheias ou em lidar com as circunstâncias da realidade prática bem definidas do que em cuidar de si mesmos. De forma que a correspondência entre domínio privado e a necessidade dos traços os mais fidedignos possíveis tem menos que ver com o verismo dos rostos ou com a estrutura social do que com a assimilação daquilo que coincidia com o domínio próprio na Antiguidade. O cuidado de si era um imperativo de vida e da moral antiga anterior ao próprio “conhece-te a ti mesmo”. Diríamos, na mesma medida em que o uultus situa-se no exterior da imago.354 Imperativo que desde Platão, fazendo partir de Sócrates, percorrerá o pensamento antigo até Agostinho, caracterizando aquilo a Hadot definirá por “filosofia como modo de vida”.355 Em resumo, o “ocupar-se consigo mesmo” se caracteriza por ser: a) um certo modo de encarar as coisas, uma atitude (para consigo, para com os outros, para com o mundo); b) uma certa forma de atenção, de olhar, “é preciso converter o olhar dos olhos, do exterior, dos outros, do mundo, etc., para ‘si mesmo’”; c) se configura numa série de práticas, de exercícios, de técnicas (ibid: 2006, pp.14-15). Num primeiro momento da sua organização filosófica ele se caracterizará na lógica de um privilégio estatutário,356 vinculado ao exercício de poder, a insuficiência da educação em geral, logo vinculado também a uma idade estimada e preferencial de preparado (ibid: 2006, pp.47-49).357 Tudo isso, está muito claro, faz eco no modelo escolhido por Plínio junto a todas as explicações que estivemos costurando. Todavia, a H.N. já se situa em outro momento do percurso desse imperativo e de forma inegável articulada às formulações estoicas do período helenístico (“a idade de ouro na história do cuidado de si”). Primeiro, porque se tornou um princípio geral e incondicional que deveria se impor a todos, durante todo o tempo e sem distinção de status. Em segundo lugar, 353 Deve-se observar, por exemplo, a retomada crítica (isto é, sem torná-las tipos cênicos) das grandes personagens individualizadas nas peças trágicas da autoria de Sêneca: Fedra, Hércules, Hécuba… Comparar com as personagens de Plauto. 354 Não é senão no dito “momento cartesiano” que Foucault identificará a motivação da inversão de prioridade e até mesmo do apagamento do preceito do cuidado de si. (ibid: 2006, pp.16-21). 355 Foucault considerará Aristóteles a exceção do pensamento da Antiguidade, o seu “único filósofo” (ibid: 2006, p.22), mas Hadot insistia, com ressalvas, no aristotelismo como também um modo de vida (1999, pp.119-138). 356 “… um princípio sem dúvida bastante corriqueiro, de modo algum filosófico, ligado entretanto (…) a um privilégio político, econômico e social.” (ibid: p.42) 357 Cf. a narrativa platônica no Alcebíades. 301 não é mais uma atividade particular (governar a cidade ou outros), mas uma finalidade em si mesma – uma autofinalização da relação consigo. Em terceiro lugar, “o cuidado de si não mais se determina manifestamente na forma única do conhecimento de si”, mas abarcará um grande conjunto de “práticas de si”. (ibid: 2006, pp.103-106) O resultado será o cuidado de si integrado numa “arte de viver” (techne toû bíou). É nesse sentido que a cera uultus, apesar de toda a sua carga histórica de vinculação à aristocracia republicana romana, será apresentada no interior da H.N. como modelo operativo amplo, geral e aberto tendo por endereçamento declarado “camponeses, artesãos e estudantes desocupados” (Praef.6). Ou seja, mais do que o retrato de um rosto eminente e poderoso, é a figuração de uma prática de si bem realizada. A similitude tão propagada é então bem menos uma exigência formal para com os traços e expressões fidedignas do rosto do retratado e muito mais uma condição da expressão [expressi] do rastro, sempre não-visto, de um modo de ser nos traços de uma representação. Isso é perfeitamente compreendido nos elogios que Plínio tece às representações, em domínio público, daqueles que se distinguiram dentre os demais mas que não chegamos a conhecer a forma efetiva ou autêntica do rosto ou da sua aparência. No caso, por exemplo, observado no trecho sobre as representações de autores célebres e de rosto desconhecido nas bibliotecas (35.9-10),358 as duas experiências defendidas por Plínio em trechos diferentes do Livro 35 (esta e a das imagines) mais se explicam do que se anulam. Porque, a rigor, estão na mesma lógica. O que é recriminado é a presença, e até certo culto (lembrando o aspecto ritualístico das máscaras), dessas figuras célebres em âmbito privado pelo fato maior de eles nada terem feito de distinto naquele ambiente – razão da indignação de Messala (35.8).359 O domínio privado é para o culto e a conservação dos traços formadores de uma família. Sobre o que é preciso atentar para a ironia com que Plínio conclui: roubar retratos de ilustres é uma forma de amor às virtudes configuradas naqueles traços e não amor ao retratado ou à execução técnica. É nesse sentido, inclusive, que Rose propunha como modelo formal para as imagines romanas os próprios retratos helenísticos de filósofos e pensadores, destes que talvez estivessem em exposição nas bibliotecas públicas:360 358 O que levou Carey, por exemplo, a se questionar sobre a própria exigência nas imagines (ibid: p. 146), como se ao fim a capacidade de preservar a imagem de alguém fosse mais importante do que a precisão da imagem por si mesma. Nesse sentido, a autora parece compreender a exigência mais como efeito ou correspondência retórica. 359 “Deste modo, sua casa deve servir como consequência de sua dignidade, e não fazer consistir sua dignidade na casa: o dono honra sua casa e não a casa seu dono.” (CÍCERO: 2004, p.74) 360 Vale mencionar o destaque de Squire do quanto não se deve menosprezar a enorme diferença estética envolvida na supressão do corpo das estátuas helênicas. Na verdade, isso tem correspondência direta e severa com toda uma reavaliação romana do ponto de interesse de identidade. Mesmo à época de Vespasiano, por exemplo, quando os retratos veristas são usualmente “encaixados” em corpos de tamanho natural, a dimensão já é completamente outra – a começar por serem corpos evidentemente divergentes dos rostos e cabeças, feitos a 302 Parece provável que os retratos do homem de mente serviram como uma das fontes primárias para retratos verísticos da aristocracia romana, e a ligação formal é prontamente aparente quando se compara um retrato de filósofo, como o do Crisipo estoico, com um justo retrato verístico padrão do primeiro século a.C.: as linhas faciais, os pés de galinha, as entradas dos cabelos e as bochechas afundadas são os mesmos em ambos. Esta conexão geralmente não foi reconhecida porque as barbas, as vestes e poses sentimentais dos intelectuais gregos foram omitidas dos retratos romanos, mas se alguém remover a barba de Crisipo, não há diferença fundamental entre a sua cabeça e a do retrato verístico romano. (…) A adoção do tipo verístico permitiu essencialmente que os romanos cooptassem a superioridade moral associada às características da idade avançada e simultaneamente se distinguissem das imagens saqueadas de seus oponentes nas guerras concluídas. Em outras palavras, os romanos selecionaram um tipo verístico pela mesma razão que foi usado para representações de filósofos, professores e oradores: o formato transmitia sutilmente uma disposição para a probidade, a piedade e o caráter – na verdade, dignitas. Os romanos não se apresentavam como filósofos, oradores ou videntes diretamente, mas se apropriavam e modificavam uma iconografia ligada à sabedoria e à ética. (trad. livre; ibid: 2008, pp.116-117)361 Portanto, a iconografia do período para os homens propriamente identificados pelo seu cuidado de si. Mas em um grau mais sutil dessas explicações o que segue sendo o impeditivo cartesiano para sua compreensão é a perspectiva de um Eu modelar que denotará a representação imagética. Pois, o que está claro não só na leitura circunscrita da H.N. nem de qualquer escola antiga de filosofia em particular, mas no pensamento da Antiguidade como um todo, é que havia uma radical diferença quanto a esse entendimento. Pois, antes do tempo do referido “momento cartesiano” não havia isso que nós chamamos subjetividade formada. Ou melhor seria dizer que era a subjetividade mesma que estava em vias de formação ou o partir de modelagens tipográficas. (cf. SQUIRE: 2014) Ao que, como já comentado, Plínio demonstra certo horror com as mudanças possíveis entre cabeças e corpos. 361 “It seems likely that portraits of the man of mind served as one of the primary sources for veristic portraits of the Roman aristocracy, and the formal link is readily apparent when one compares a philosopher portrait, such as that of the Stoic Chrysippus, with a fairly standard veristic portrait of the first century B.C.: the facial lines, crow's-feet, receding hair, and sunken cheeks are the same in both. This connection has generally not been recognized because the beards, himations, and seated poses of the Greek intellectuals have been omitted from the Roman portraits, but if one removes Chrysippus's beard, there is no fundamental difference between his head and that of the Roman veristic portrait (...) The adoption of the veristic type essentially enabled the Romans to co-opt the moral superiority associated with the features of advanced age and simultaneously distinguish themselves from the looted images of their opponents in the wars just concluded. In other words, the Romans selected a veristic type for the same reason that it was used for representations of philosophers, teachers, and orators: the format succinctly conveyed a disposition toward probity, piety, and character - in effect, dignitas. The Romans were not presenting themselves as philosophers, orators, or seers directly but appropriating and modifying an iconography linked to wisdom and ethics.” 303 que havia por ser trabalhado.362 Sobretudo, o que caracteriza como fator decisivo o cuidado de si de um lado a outro do seu percurso é nada menos que o não conhecimento de si, a necessidade de se fazer conhecedor e conhecível. Por isso o uultus, anterior à imago, é a encarnação de uma prática de si, de um operativo de subjetivação antes de ser um retrato. O conhecimento de si é que virá a partir daí – no sentido republicano, a partir dos seus feitos de vida. A dignitas só pode ser acompanhada ou mesmo explanada como um vulto, que diferente de um espectro não é aquilo que se pensa ver, mas aquilo pelo que esperamos ver e só vemos na sua ausência, só vemos no não-visto das coisas. O traço que se esconde no seu traço, um rastro apagado. Não tem fundo, princípio organizador, não tem legitimidade prévia. Ela acontece, vem sem ser vista, e na proporção mesma desse não-senso refaz o sentido de tudo operando a configurabilidade das coisas em lugar da figuração de tipos. O vulto era, portanto, um experimento de subjetivação em lugar de tipologia ou genealogia. Do contrário, pela retórica em favor das máscaras de cera no Livro 35 estaremos circunscritos a legitimar todo e qualquer naturalismo antigo e a deslegitimar aquilo que a ele não se assemelhar. Para examinar outra questão de parecença deste tipo, o Sócrates platônico tentaria propor uma definitiva teoria do conhecimento elaborando um cunho de cera na alma cognoscente (Teeteto 192-194) sobre a qual se imprime o selo, ou tipo, da produção do ente. Isso explicaria como é possível tomar o que se sabe pelo que não se sabe. Tratar-se-ia de uma dádiva da deusa da memória, Mnemosine, e teria diferentes tamanhos e substancialidade para diferentes pessoas. A diferença, portanto, entre o conhecimento de uns e de outros corresponderia a limitações dessa natureza material: a cera da alma dos sábios seria profunda e abundante, branda e suficientemente amassada, ocasionando impressões puras e duradouras, e permitindo a estes aprender e recordar tudo facilmente sem jamais vir a confundir as marcas de suas sensações; a dos ignorantes variaria em corrupções materiais, desde impurezas a excessos de umidade ou de secura, acarretando impressões pouco claras ou pouco nítidas, que se fundiam até ficarem irreconhecíveis ou que se amontoavam e ficavam indistintas, tornando-os necessariamente propensos a juízos falsos da realidade. Em resumo: acerca do que nunca se soube nem nunca se percebeu, não é possível, me parece, nem enganar-se nem formar opinião falsa, se for realmente saudável nossa proposição. Mas justamente nas coisas que sabemos e que percebemos é que a opinião vira e s e muda, ficando, a revezes, falsa e verdadeira: quando ela ajusta direta e exatamente a cada objeto o cunho e sua imagem, é verdadeira; será Cf. supracitado: “um ato de conhecimento, em si mesmo e por si mesmo, jamais conseguiria dar acesso à verdade se não fosse preparado, acompanhado, duplicado, consumado por certa transformação do sujeito, não do individuo, mas do próprio sujeito no seu ser de sujeito.” (ibid: 2006, p.21). 362 304 falsa, quando os liga de través e obliquamente. (PLATÃO: 2001, p.114; Teet.194b) Mas, infelizmente, esse resumo nos faz perder muito do que esteve em jogo no diálogo, isto é, toda aquela arte da narrativa em Platão que sempre merece comentário. O jovem (“digno de menção”) Teeteto é apresentado pelo seu mestre, o geômetra Teodoro, como alguém muito parecido à Sócrates. Este então pondera que seria preciso ser um pintor ou entender de pintura para ter o devido conhecimento sobre as semelhanças físicas. Ao que concluiu junto ao jovem que talvez o geômetra pudesse ter percebido uma semelhança anímica. Portanto, para verificar esta possibilidade o jovem deverá se expor para o exame socrático. É nessas circunstâncias que eles começarão por abordar como tema “o que é o conhecimento?”. Já a imaginação da cera, muito adiante na discussão,363 vem para resolver o absurdo de “sabermos e de não sabermos, ao mesmo tempo, aquilo que sabemos”. Trata-se da revisão de um parecer anterior agora admitindo que “é possível tomar o que se sabe pelo que não se sabe”. Teeteto o exemplifica no caso de ver de longe um desconhecido e, conhecendo a Sócrates, tomar um pelo outro, o desconhecido pelo conhecido. Ao que depois da sua explicação, Sócrates poderá distinguir como poderia reconhecer facilmente Teodoro e Teeteto e como os poderia confundir. O importante na resolução é o poder conhecê-los por si mesmo independente das sensações que receba. Tendo boa cera e bem guardado os traços essenciais de quem quer que seja a opinião falsa só ocorrerá por erros sensoriais, como no caso, novamente, de quando olhando de muito longe e sem muita nitidez. Ela se originaria no ajustamento entre sensação e pensamento. Porém, na perseguição das consequências desse raciocínio Sócrates confessará adiante: “agora que me encontro mais perto de nossa definição, passa-se comigo certamente como quem contempla de longe uma pintura: não entendo nada de nada. Enquanto me achava a certa distância, parecia-me exprimir alguma coisa” (ibid: pp. 137-138; 208e). Como vimos, essa era uma crítica recorrente no platonismo, manifestando os enganos induzidos pela arte através das diferentes formas que lhe ocorriam a depender da distância com que se a olhava (Sofista 234b; República 598c). A necessidade de acrescentar uma justificativa à opinião verdadeira devolve os dois aos traços fisionômicos e à impossibilidade de definirem um objeto de conhecimento pelas suas diferenças para com todo o resto. A conclusão derradeira será a de que no caso dessa investigação a maiêutica (arte socrática de parir acompanhando as almas em vez dos corpos) terá parido vento. Contudo, nas entrelinhas fica sugerido outro tipo de conhecimento, aquele próprio às circunstâncias que 363 Nesse ínterim, depois de apresentar sua maiêutica Sócrates seguirá longa investigação contra o relativismo dos sofistas passando pela querela filosófica formada entre os adeptos de Heráclito e de Parmênides. 305 engendraram o diálogo: a semelhança anímica ou essencial. A esterilidade de Teeteto o aproxima do próprio Sócrates364 tal qual os seus respectivos destinos: Sócrates sai do encontro em direção ao seu julgamento mortal, enquanto o livro fora introduzido pela notícia, de muitos anos mais tarde, da iminência da morte de Teeteto.365 Mais tarde, a explicação aristotélica da alma será inspirada por esta elaboração. Ela é incorporal, a forma ou essência de uma criatura e não uma substância distinta do corpo nele. É, porém, a primeira “realização” de um corpo orgânico natural possuído de vida, portanto, em um duplo sentido enquanto potencial e enquanto determinada. Diógenes Laércio (V.33) comparará esses dois “momentos” da alma, primeiro, à cera informe pronta a ser moldada, e, segundo, à figura completada ou estátua pronta. O próprio Aristóteles, contudo, só mencionou a cera para exemplificar a natureza dos sentidos, na mesma medida da lógica de sinete apresentada no Teeteto, mas atentando para o detalhe de que o sinete deixa sua marca aparente sem deixar informado junto às suas propriedades formadoras (De Anima II,1 e 12). Acreditando nas notícias das grandes conquistas artísticas em pintura na Antiguidade e assentindo na percepção da grande desventura que a perda dessas pinturas a nós ocasiona, poderíamos tentar traduzir este drama em um exercício imaginativo: como seria caso tivéssemos perdido todas as obras, por exemplo, de Platão? Todavia, esta seria uma comparação ruim não só pelo absurdo do conteúdo quanto pelo desnecessário. Melhor o nosso exercício ideativo de todos os dias: eis o Ocidente depois de ter perdido todas as obras dos estoicos. Ou ao menos contando apenas com sobrevivências crípticas. Pois também as obras estoicas gregas se perderam por completo sobrevindo apenas nas notícias dos doxógrafos e nos comentários dos pensadores de escolas rivais. E, ao que indicam as acuradas e minuciosas pesquisas do último século, somadas as interlocuções que decisivos nomes da filosofia contemporânea tiveram com o estoicismo, é altamente factível observar o tamanho da importância do que se perdeu.366 Mas, por enquanto, a comparação é meramente histórica, ou 364 No longo trecho em que apresenta a sua arte, Sócrates explica que é preciso ser incapaz de procriar para poder exercê-la. Por isso, ele mesmo nunca tinha nada a oferecer de pronto sendo “estéril em matéria de sabedoria” (150c). 365 O livro começa, muitos anos depois do encontro entre o filósofo e o jovem, em diálogo entre Terpsião e Euclides sobre a volta de um Teeteto entre a vida e morte devido a ferimentos de guerra e de doença que atacou as tropas. Em sua homenagem, Euclides entrega ao amigo a redação que fez: o diálogo platônico que conhecemos. 366 “Todos os escritos dos estóicos do período helenista foram perdidos (…). Mas é preciso notar que, mesmo neste período [época imperial romana], a maior parte dos escritos estoicos desapareceu.” (GOURINAT e BARNES: 2013, pp.28-29). “Se, de um lado, sem a riqueza da doxografia, nada saberíamos sobre o estoicismo, de outro, é notória a dificuldade para discernir o significado de muitas das teses recolhidas” (GAZOLLA: 1999, pp.19-20). “O desaparecimento quase total da literatura helenística não é o sinal de uma época decadente. Ao contrário, trata-se de um tempo excepcional em diversos campos”; “O estoicismo não é, portanto, uma filosofia de consolação para uma época decadente, mas um pensamento maior de um helenismo triunfante que redesenha 306 cartorial. Será preciso apurar ao que nossas motivações metodológicas recorrerem ao estoicismo no sentido mesmo de que “Os primeiros estoicos possibilitam pensar uma nova e paradoxal imagem do pensamento: um pensamento sem imagem.” (FIGUEIREDO & PIMENTEL in: BRÉHIER: 2012, p.12) Para tanto, precisamos recobrar e adensar um ponto as explicações que demos no Capítulo 2. Zenão de Cítio, fundador da escola, tomará de empréstimo (como aliás será comum aos estoicos)367 a fórmula do Teeteto para elaboração de sua própria epistemologia, porém com premissas e resultados bastante diversos daqueles. Assim, segundo os da Stoa, o princípio de sua epistemologia é a impressão que um existente deixa na alma, o que eles denominam uma φαντασία (“phantasia”).368 Mas o quanto essa imagem do sinete e da cera pode ser tomada ao pé da letra foi motivo de disputas entre eles mesmos, de uma maneira que nunca foi possível às outras escolas. Cleantes, o segundo escolarca, ao que parece a tomou por seu valor prima facie,369 isto é, impressão em relevo e profundidade. O que permitia a ele essa alegação era a própria premissa categórica da escola de que “Tudo o que existe é corpo” (sobre o quê não precisamos recapitular). O fato é que, assim sendo, todas as coisas podem deixar impressões na alma como sinete na cera. Todavia, a seguirmos por aí corroboraremos mais o naturalismo das representações defendido por Vasari do aquele que investigamos em Plínio, admitindo que todas as características também qualitativas poderiam ser fielmente impressas em imagem. Logo, o terceiro escolarca e figura mais proeminente da lógica estoica, fez caso da assunção de Cleantes a rebatendo por sua própria literalidade. Afinal, a ser assim haveria uma condição de efeito palimpsesto garantindo a impossibilidade da alma conservar e imaginar múltiplas coisas simultaneamente. Crisipo “diz que tal impressão é como se fosse de uma o mundo e cria um imenso espaço onde sua cultura, sua arte e seu pensamento se oferecem como modelo universal” (DUHOT: 2006, p.17 e 18). “De todas as filosofias antigas, o estoicismo provavelmente foi a mais difundida, mas a de influência menos explícita e menos adequadamente reconhecida no pensamento ocidental.”; “Em décadas recentes, o estoicismo antigo torna-se uma corrente de primeira grandeza nos interesses acadêmicos. Não por coincidência, essa revivescência encontra eco na obra de pensadores bem conhecidos tais como Foucault, MacIntyre e Taylor, e agora temos o intrigante livro de Becker,” (LONG, in: INWOOD (org.), 2006, p. 403 e 404). E ainda poderíamos listar a grande energia que Deleuze dedicou à escola, além de grandes helenistas e historiadores do naipe de E. Behier, V. Goldsmith, e P. Hadot. 367 Gazolla comenta como parece fazer parte do próprio ofício do filósofo estoico arcar com a tradição ao mesmo tempo em que a nega, isto é, tomando tudo de empréstimo para ressignificar tudo (1999, pp.173-180) 368 O termo é de considerável dificuldade para a tradução, ou porque pode depender da diferença de ênfase do seu sentido (por exemplo, entre Cleantes e Crisipo) ou porque na maioria dos casos as tentativas vêm sempre carregadas de significados e conotações modernas ou controvertidas. Assim a tradução pode variar entre “representação”, “impressão”, “aparência” ou “apresentação”. Cf. DINUCCI in: ARRIANO: 2012, pp.70-71, nota 18. Ao acrescentamos a observação de que talvez a tradução mais literal fosse por “aparição”, cf. HANKINSON in: INWOOD: 2006, p.66 nota 1. Aqui optaremos por mantê-la na sua grafia latina a fim de evitar confusões desnecessárias tendo em vista a suscetibilidade do objeto de nossa pesquisa aos possíveis termos de tradução. 369 Como tão astutamente coloca Hankinson (ibid: 68). 307 marca na cera” (GAZOLLA: 1999, p.143), ou seja, sustentando o modelo e princípio zenoniano mas adaptando a fórmula de “impressão” para “alteração da alma” (SEXTUS: M. VII,230). Assim, a imagem muda subitamente do bloco de cera como mero receptáculo para a determinação mesma da forma exterior do ser. A essência do ser como gérmen se desenvolvendo no espaço, e não mais como modelo ideal que o ser se esforçaria em imitar. Isso reafirma a alma como a vitalidade imanente ao corpo, tensionando suas partes até os limites. O conteúdo e o contentor ficam sem distinção. Em jogo o descaso com a causa final em promoção da causa eficiente, isto é, a produção de um produto pelo interesse no próprio obrar e não em função de uma finalidade preexistente a se atualizar.370 Em matéria de história da arte, passando daquele naturalismo objetivo para o aceno de um naturalismo mais expressivo em que se traduzam no visível corporal do retrato da alma a forma das próprias virtudes ou vícios. Seria então essa a pura verdade, e “já que faltam os retratos das almas [animorum imagines], descuram-se também o dos corpos (35.5)”? Não tão rápido. Essa nova imagem – de quase um estudo psicológico, como de formas diferentes propõem Ritcher e Corbier, ou de uma apresentação de uma virtude intelectual, como quer Rose – até se enquadraria bem à imago mas não ao uultus (esse não-visto que se exprime na cera), e certamente não ao trabalho de Crisipo. Sua reformulação está implicada em questões graves com consequências e contribuições maiores para este estudo. Primeiro porque os estoicos defendiam que nem todas as percepções são verdadeiras.371 Havia todo um esquema bem elaborado para o processo epistemológico passando do momento puramente passivo ao puramente ativo do conhecimento. Através da reunião das notícias, Gazolla o resume a quatro movimentos: a) a phantasia, a presença de uma afecção recebida na alma; b) a “compreensão”, ato lógico pelo qual a alma compreende que foi afetada; c) “phantasia compreensiva”, sendo a evidência dessa presença já compreendida como algo existente que afetou a alma; d) assentimento, ato lógico pelo qual a alma afirma a phantasia compreensiva convertendo-a na possibilidade de uma prática consequente (ibid: 1999, p.115). Dessa forma, o desafio crítico para o entendimento dos fatos está no terceiro passo, quando é preciso que a phantasia seja tal que explicite nela que provém de algo existente e que está de acordo com a própria coisa existente. Seria o movimento em 370 Essa é, na verdade, uma desapropriação original da célebre teoria aristotélica das quatro causas (material, formal, eficiente, final). Isso terá muito importantes repercussões éticas para a escola. Cf. GAZOLLA: 1999, p. 92, e pp. 121-123. 371 Distinção grave para com os epicuristas, notórios defensores do contrário (como vimos). Os estoicos mantêm a origem dos pensamentos inteiramente na percepção sensorial, sem ideia inata ou contato com realidade inteligível. Mas, conforme Cícero, a introdução do critério de “phantasia compreensiva” por Zenão foi o bastante para revolucionar a lógica antiga (De Finibus IV,9). 308 que a phantasia se prenderia tenazmente à realidade ou, como Hankinson emenda, não apenas uma phantasia que podemos apreender, mas a phantasia com que podemos apreender a realidade (in: INWOOD: 2006, p. 66). Porém, além disso está o grande diferencial da escola estoica, a dupla faceta372 com que Crisipo concebe a phantasia: uma sensível e corporal (alteração da alma) e outra virtual ou incorporal (a dita compreensão que deve ser afixada à alteração, que descreve e avalia aquilo que a efetuou). Em outras palavras, na phantasia compreensiva se encontra algo de estranho que os estoicos denominavam “o exprimível” (λέκτον)373 – um acontecimento incorporal tal qual o tempo, o lugar e o vazio. Os acontecimentos são perfeitamente reais, porém são incorporais, são os resultados insistentes nos corpos. O exemplo de Bréhier é, nesse sentido, de precisão cirúrgica: As modificações de que falamos são bem diferentes: não são realidades novas, outras propriedades, mas apenas atributos. Assim, quando a navalha corta a carne, o primeiro corpo produz sobre o segundo não uma propriedade nova, mas um atributo novo, o de ser cortado. O atributo, falando propriamente, não designa nenhuma qualidade real; branco e negro, por exemplo, não são atributos, nem em geral qualquer epíteto. O atributo é sempre, ao contrário, expresso por um verbo: isso quer dizer que ele não é um ser, mas uma maneira de ser. (…) Essa maneira de ser encontra-se, de certa forma, no limite, na superfície do ser, e não pode mudar sua natureza (…) Ela é puramente e simplesmente um resultado, um efeito que não pode ser classificado entre os seres. (ibid: p. 32) Vale lembrar: o exprimível só pode ser expresso em um existente, sendo ele o irrepresentável de uma representação. Algo como um vulto a insistir nos limites de uma coisa representada, mas ele mesmo não-visto. Enfim, para além de um traço de caracterização ou de um elemento psicológico da coisa, ele é algo só dado na coisa (e pelo qual a coisa é dada), mas independente dela. Nem interior à, nem exterior à, mas no limite de. Sem embargo, a implicação mais imprescindível é que os estoicos faziam desse processo uma questão de arte. Mais do que recepção sensorial, a phantasia compreensiva (aquela com que é possível apreender a realidade) deve ser “de modo que todas as qualidades peculiares dos objetos representados estejam artisticamente estampadas”, isto é, com a precisão e a atenção à minudência que se espera de um artesão (HANKINSON, in: INWOOD: 2006, p. 67). Na verdade, o “sistema de impressões exercidas conjuntamente” era a própria Cf. DINUCCI: ibidem. “Duplo registro” ou até “duplo lógos”, cf. GAZOLLA, “dois planos de ser”, cf. BRÉHIER: p.34. Bobzein e Brunschwig também reforçam literalmente essa duplicidade estoica em seus respectivos artigos, em INWOOD: 2006. 373 Cf. Sexto (M. VIII.70) e Diócles (apud. Diog. La. VII.63) apud. BRÉHIER: 2012, p.39. 372 309 definição deles de techne (ibid: p.69).374 Todavia, o fato mais relevante da relação estoica para com a arte é, por assim dizer, a centralidade com que as questões de expressão e de representação ocupam a estrutura filosófica da escola. O que resultará numa verdadeira arte filosófica da representação: o uso lógico das phantasiai. Afinal, como assegurará Diogenes da Babilônia: “a sabedoria advém por arte” (cf. WOODWARD: 2009, p. 17). Essa prática filosófico-ética foi levada ao mais alto ponto por Epicteto e Marco Aurélio, podendo ser encontrada repetidas vezes. Tratava-se de fazer uma phantasia percorrer o caminho epistemológico desde o movimento mais passivo até o mais ativo. Ou seja, sair da pura recepção sensorial do que quer que fosse até o assentimento prático, resultado direto da razão filosófica. Um tipo básico de contra-efetuação, não exatamente das aparências, mas das suas “razões” ou, melhor, dos juízos que as acompanham, isto é, contra-efetuação da efetividade primeira de uma phantasia. Enfim, a conduta filosófica deverá se caracterizar pela crítica das representações, para assentir somente ao que é objetivo. Hadot inclusive decodifica certo esquema de organização desse operativo crítico através dos textos de Marco Aurélio fazendo chegar até uma ascendência em Epicteto (2014, pp. 149-173).375 A fórmula prática deste era, em resumo, empregar esse uso lógico para distinguir cristalinamente entre o que está de fato sob nosso encargo e o que não está, portanto, entre aquilo a que nos liberta e aquilo que nos escraviza (ARRIANO: 2012, p.15; Manual I). Ainda nesse tópico, é preciso manifestar que foi através deste projeto filosófico que o termo phantasia ingressou nas meditações dos antigos sobre a estética. Conforme Kyriakou, um conceito muito mais importante e original do que o de “alegoria” com o qual em geral a Stoa é associada (1997, pp.273-274). Na Antiguidade, ele passou a significar, em diversos trabalhos sobre retórica e arte em geral, a habilidade artística de “tornar coisas presentes”, isto é, de tal forma que o espectador, ouvinte ou leitor experimentasse, vividamente, essas coisas: Essa, a rigor, é a explicação noticia por Sexto que os estoicos contrapunham as objeções dos acadêmicos – o que supomos só os confundiam mais. “… asserem que aquele que tem a impressão apreensiva se fixa na diferença objetiva das coisas com a habilidade de um artesão”. (M. VII.252) Deve-se atentar, em todo caso, para o que os estoicos entendem por “diferença objetiva”. “Não pretendo sugerir que a impressão venha a pô-lo como que face a face com a natureza interna e essencial da coisa; afinal de contas, a própria impressão reproduz apenas o que a ‘confronta’. Mas é porque a coisa é a coisa (particular) que é, isto é, por causa de sua individualidade essencial, que ela, para os estoicos, revelará em sua impressão uma única face fenomênica.” (HANKINSON: p.77, nota 14) Questão relativa à ênfase da escola na causa eficiente. “Segundo Frede, o que distingue a impressão cataléptica [compreensiva] não é algum indício interno de infalibilidade por meio de que ela possa ser reconhecida como tal: antes, o que a assinala é um aspecto causal de sua origem causal, em virtude de que ela possui uma força particularmente motivadora.” (ibid: pp.80-81) 375 “Da mesma maneira que dizemos de certos manjares: ‘É um cadáver de peixe. É um cadáver de ave ou de pássaro’. E do falerno: ‘É suco de uva’. Da púrpura: ‘É lã de cordeiro tinta com sangue de marisco’. Do amor físico: ‘É um contato, uma ejaculação e um espasmo’, com tais pensamentos apreendendo as coisas em si mesmas, penetrando-as, vendo-as tais como são, nas outras ocorrências da vida devemos procurar surpreender em seu demérito, despojadas do prestígio que as faz vulneráveis, as coisas que nos parecem mais dignas de fé.” (MARCO AURÉLIO: 2012, p. 54; VI.13) 374 310 fossem emoções, situações, caráteres… Por vezes entendido como “colocar diante dos olhos”, por vezes algo como “trazer à mente” (por exemplo, entre os epicuristas Filodemo e PseudoLongino, e Aristóteles, respectivamente).376 Quintiliano, traduzindo por visiones, a definirá similarmente à écfrase como o feito de ver coisas ausentes, resultando em enargeia (“vivacidade”; Inst.Or. 6.2.29). É preciso examinar isto, ainda que rapidamente, para evitar confusões com o que nos interessa nesse pensar até Plínio. Afinal, nenhuma dessas interpretações pode nos ajudar a entender a cera uultus, posto que, ao contrário do princípio da écfrase, ela nos faz ver em ausência. De fato, os estoicos tomam o termo de Aristóteles, o que só deixa a reinterpretação “tanto mais saliente” (cf. HANKINSON: p.71). No entanto, uma das coisas mais interessantes dessa saliência é que. por ela, eles evocam certa etimologia do termo fazendo-o derivar de φως (“luz”). É nesse sentido que Crisipo declara que a phantasia manifesta ao mesmo tempo o objeto que a produziu e ela própria. O problema, ou antes a graça (conforme um humor tipicamente estoico), está no fato da etimologia ser errônea (cf. GOURINAT: 2013, p.39). Ou seja, não é nunca um problema genético, mas de revisão original. A phantasia estoica precisa estar em conformidade com um existente ao mesmo tempo em que apresenta a si mesma como não-visto dele. De maneira que ela não se encaixa bem com o princípio estético do arrebatamento nem com o da imaginação. A doxografia de Aécio explica em pormenores o rigor da concepção entre adeptos da escola. Toda phantasia precisa de um phantaton, isto é, um impressor, aquilo que causa uma impressão. Seus exemplos são a cor branca ou o frio, “qualquer coisa capaz de afetar a alma” – diga-se, um corporal. Não obstante, eles cuidavam em distingui-la do phantastikon, ou seja, a imaginação. Afecção sem impressor, que portanto não é capaz, por si mesma, de gerar compreensão da realidade. Mesmo Hegel, muitíssimo mais tarde, seguirá nessa linha ao diferenciar a “imaginação puramente passiva” da “imaginação criadora”, nomeada por ele de fantasia.377 Mas, por fim, Aécio contará que não se deve confundir, especialmente, a phantasia com o phantasma: fingimento, ficção ou pura invenção. Esse é entendido como 376 Para tais meandros indicamos o rico trabalho em SHEPPARD: 2014. “Há nesta atividade criadora um dom e um sentido que permitem apreender as formas da realidade, e gravar no espírito, graças a uma visão e a uma audição atentas, as variadas imagens da realidade existente; (…) Não se limita, porém, a fantasia à simples apreensão da realidade exterior e interior, porque a obra de arte não é apenas uma revelação do espírito encarnado em formas exteriores, e deverá, antes de tudo, exprimir a verdade e a racionalidade do real representado. (…) Com isto, não queremos dizer que o artista deva formular em pensamentos filosóficos a verdade das coisas que conjuntamente constitui a base da religião, da filosofia e da arte. O artista não precisa da filosofia, (…)”. (HEGEL: 1996, pp.316-318) Na esteira das considerações do séc. XIX, B. Croce o reafirmará com menos capricho e mais eloquência: “… a fantasia é produtiva, ao passo que a imaginação é parasita, apta para combinações extrínsecas e não para gerar o organismo e a vida.” (1997, p.46) E antes de ambos, Vico já reconhecia que “sempre que quisermos do entendimento extrair coisas espirituais, devemos ser socorridos pela fantasia para as podermos explicar e, tal como os pintores, fingi-las imagens humanas.” (2005, p.237; Livro II.402) 377 311 procedimento epistemológico torto que caracteriza a loucura enquanto patologia. O exemplo não é outro senão da arte dramática, o Orestes de Eurípedes fugindo das Fúrias (apud: SHEPPARD: 2014, pos. 417). O phantasma é uma ocorrência em tudo semelhante à phantasia, mas na qual de certa forma se inverte a relação epistêmica: sem impressor, mas igualmente impressivo, sendo o phantasma quem se exerce por sobre a subjetivação. Não o vulto, mas o espectro. Aquele que pensamos ver e que, uma vez visto, já não podemos deixar de ver.378 Bem, e como então entender a phantasia na questão artística para os da Stoa? A considerar a ausência dos originais dos textos bem como a escassa notícia doxográfica a resposta será, fatalmente, se não imprecisa ao menos apócrifa. O que apenas significa dizer tão plausível e natural quanto a etimologia da própria phantasia. O operativo artístico compreendido na phantasia estoica situa-se a meio caminho, ou melhor, na passagem da efetividade sensorial e da contra-efetuação da razão filosófica. Encontra-se no inefetuável. Nem passivo nem ativo, nem impressão pura nem uso lógico. A arte tão manifestada em tudo isso é o acontecimento mesmo da phantasia dando-se a apreensão do exprimível, do sentido nos seus limites simultaneamente ao que se revela a si mesma. Portanto, posterior a uma afecção qualquer sensorial e anterior ao assentimento filosófico, isto é, a condição de uma prática possível – o que propriamente definirá o conhecimento de um adepto de qualquer filosofia antiga segundo a elaboração sustentada por Hadot como “modo de vida”. Por isso também, equidistante do arrebatamento de uma aparência ou imagem e da explicação filosófica. Com o que devemos voltar às anedotas de cera. O caso agora, em absoluto autoexplicativo, relata uma troça armada para fazer um jovem do Pórtico se trair contradizendo o preceito chave dentre eles de que só é possível dar assentimentos verdadeiros: a ação de Esfero, colega de Crisipo como pupilo de Cleantes, foi espirituosa: tendo sido intimado pelo rei Ptolomeu a comparecer a Alexandria, em sua chegada foi presenteado com um jantar de celebração com pássaros feitos de cera e, quando estendeu as mãos para pegá-los, foi acusado pelo rei de dar assentimento a algo falso. Mas sagazmente replicou que não havia dado assentimento ao argumento de que eram pássaros, mas sim ao de que era razoável que No seu trabalho sobre os estoicos Deleuze o comenta valendo-se também de Laplanche e Pontalis: “A segunda característica do fantasma é sua situação com relação ao eu, ou antes a situação do eu no próprio fantasma. (…) O fantasma originário ‘caracterizar-se-ia por uma ausência de subjetivação paralela à presença do sujeito na cena’; ‘toda repartição do sujeito e do objeto se acha abolida, ‘o sujeito não visa o objeto ou seu signo, ele figura a si mesmo tomado na sequência de imagens…, é representado participando da cena sem que, nas formas mais próximas do fantasma originário, um lugar lhe possa ser atribuído’.” (ibid: 2015 p.219) 378 312 fossem pássaros; (ATENEU, VIII.354e, apud: HANKINSON: p.88)379 A saída de Esfero aponta para mais do que astúcia intelectual e alguma artimanha filosófica. Ela se ancora nos limites de sua epistemologia. Pois, ao fazer estancar o raciocínio antes do assentimento e depois da impressão sensorial, Esfero instrui sobre o ponto de formação do juízo enquanto esquadrinha o sentido da dialética estoica. Por oposição a Aristóteles que a entendia como ciência do geral e do necessário, vimos com a Stoa (ou ao menos o estoicismo mais caro à Plínio) a define como “ciência das coisas verdadeiras e falsas, e daquelas que não são nem uma nem outra”.380 É que por sua própria lógica os fatos incorporais já não são objeto, mas a matéria mesma da dialética. O juízo, verdadeiro ou falso, é um incorporal e, portanto, não tem existência. A lógica se torna um estudo do não-ser, que não se confunde nem com as palavras nem com as coisas. Ele é apenas o verdadeiro, se ele se vincula à coisa, ou o falso, se não tem vinculação. Isso tem desdobramentos extremamente sérios e interessantes, mas que fogem consideravelmente ao nosso tema. O que nos importa, em particular, é como se dá esse momento entre a efetuação sensorial e a contra-efetuação do assentimento. Novamente, os estoicos sustentam aqui uma tese paradoxal: o juízo acontece em um “signo presente que é sempre signo de uma coisa presente”. Como isso é possível? O signo é resultado de uma impressão que o expressa, mas ele mesmo sendo um juízo é um exprimível incorporal, isto é, o sentido daquela impressão – ainda nem verdadeiro nem falso, porque sem assentimento, como bem demonstra Esfero. A sutileza é que devida a essa sua natureza o signo abre-se para aquilo que não está contido na impressão representada. Logo, um fato se torna signo de outro fato heterogêneo, tal como acontece a rigor em proposições de tipo hipotético ou causal: “se uma mulher tem leite, teve filho”, ou ainda “se é dia, está claro”. A questão é que se os fatos são incorporais e, consequentemente, fora da causalidade corporal dos existentes é somente na linguagem que sua quase-causalidade se apoia e se expressa. Portanto, descontando a causalidade “das causas”, ou seja, dos corpos estoicos, é fácil de perceber como o signo de “ser dia” se abre a outro fato que lhe é heterogêneo: “estar claro”. Daí a dupla presença ou dupla face do signo dando a ver não apenas o que não estava representado na sua representação (o invisível no visível) como ainda mais registrando dentre essa disjunção o propriamente não-visto: ele mesmo, o signo, o exprimível incorporal, o irrepresentável da representação, ou inefetuável da contra-efetuação. 379 Em Diógenes Laércio se encontra relato muito próximo a este, indicando que no mais provável ambos derivavam de fonte comum. Nesta outra versão, no entanto, Esfero é presenteado com romãs de cera em vez dos pássaros. (VII.177) 380 Cf. Posidônio, apud: Diog. La. VII 62. É certo que ele reformulava definição de Crisipo (BRÉHIER: p.49) 313 Do mesmo modo que é signo, igualmente é um exprimível. (…) Numa proposição deste gênero: ‘Se há uma cicatriz, houve uma ferida’, a ferida é, sem dúvida, uma coisa passada, e não é a ferida realmente, mas o fato de ter tido uma ferida que é significado; deste fato presente, o signo é este outro fato igualmente presente, o de ter uma cicatriz. (BŔEHIER: 2012, p. 63) Na verdade, um reforço da explicação anterior sobre o acontecimento do “ser cortado” no encontro da navalha com a carne. Mas dessa vez podemos dizer que o brilhantismo das explicações de Bréhier lhe ultrapassa, sem qualquer demérito e conforme o próprio sentido desse estudo do signo. É que, talvez até como o melhor exemplo dessa passagem ao heterogêneo, é quase inevitável que a explicação não nos carregue até uma muito famosa e emocionante cena da Odisseia quando Ulisses voltando a sua terra natal é acolhido por sua antiga ama que o reconhece por sua cicatriz na coxa. Ao ver apreendendo este signo, Euricléia imediata e involuntariamente faz passagem a uma interpolação narrativa do fato de quando o jovem herói sofreu a sua ferida.381 Porém, Homero não o conta como um segundo plano abrindo o presente do encontro às profundezas de um passado recordado. O que acontece é que a narrativa segue em primeiro plano e no tempo presente mesmo com a passagem à interpolação. E isso não é um elemento fortuito em Homero. Auerbach dedicou-lhe todo o primeiro capítulo bem como o próprio encaminhamento do seu Mimesis (2011: pp.1-20), esmiuçando essa cena para nela ver acontecer o que ele chamou “a singularidade do estilo homérico” (ibid: p.5). De maneira que, de volta à anedota de Esfero, podemos com tudo isso concluir o operativo artístico implicado no estoicismo e apreendido no seu sentido de signo. Na ou como a própria passagem entre a efetividade e a contra-efetuação, o artístico é aquilo que por si dá a saber signos operando-os sem cair no arrebatamento ou no assentimento. Significa dizer que sem se deixar tomar de assalto por uma impressão e sem encaminhar um saber filosófico e até mesmo uma conduta de vida, ao artístico cabe dar a pensar o não-visto que liga acontecimentos em vez de coisas e pelo qual a ligação não se faz externa conforme nenhuma lei necessária e constante – como em geral se infere em “é dia, está claro” ou “se a mulher tem leite, teve filho”. A questão realmente estranha é que, nesse fundo sem fundo, a segunda proposição, diferente por sua expressão (nas palavras e nas coisas), é a mesma que a primeira. Repetindo-se na diferença o sentido se faz um e o mesmo, e sem existir própria ou previamente – ele é um puro resultado, ele acontece. “Gêmeos sem serem gêmeos.” “… Ao lar no escuro / Senta-se volto Ulisses, receoso / Que a cicatriz o arcano revelasse. / Ela, o senhor banhando, essa conhece / Marca do alvo colmilho de um javardo, / Quando ao Parnaso visitou seus tios / E avô materno Autólico, entre os homens / No pilhar e jurar manhoso e mestre; / Por Mercúrio assistido, a quem de chibos / E anhos queimava as agradáveis coxas.” (trad. Odirico Mendes: 2005, p.342; Canto XIX.393-467) 381 314 É a isso que Esfero dá assentimento sem assentir nem ao verdadeiro nem ao falso, ou seja, àquilo que fazia razoável o ser de um pássaro (ou de uma romã, conforme a versão escolhida).382 E mais importante, enquanto revela a si mesma como phantasia, isto é, como representação ou impressão apenas. Ainda nesse jogo aberto pelo signo é também inevitável e proveitoso atravessar de Esfero para a celebérrima anedota pliniana do concurso entre Zêuxis e Parrásios (H.N.35.65-66). A palma não é dada à melhor ilusão realista, verista ou naturalista, mas aquele que de maneira mais aguda dá a pensar num signo, operando o não-visto por entre o visto e o invisível: a dupla face da cortina de Parrásio. Se a anedota terminasse no arrebatamento da impressão sensorial nada teria acontecido de artístico, somente alguém seguiria um fantasma qualquer. Mas a anedota também não termina em nenhum saber filosófico, nenhuma descoberta da verdade, apenas a revelação de um operativo artístico: Zêuxis voltando a trabalhar no seu ateliê tentando operar o signo parrasiano corresponde ao aprendizado de um egiptólogo tentando retraduzir, e logo operar, os acontecimentos do mundo – não confundir com as coisas do mundo. “Não há lógos, só há hieróglifos.” (DELEUZE: 2003, p.98) ainda que o sentido [o exprimível, o signo] não seja nunca objeto de representação possível, nem por isso deixa de interferir na representação como o que confere um valor muito especial à relação que ela mantém com seu objeto. Por ela mesma, a representação é abandonada a uma relação somente extrínseca de semelhança ou de similitude. Mas seu caráter interno, pelo qual ele é intrinsecamente “distinta”, “adequada” ou “compreensiva”, provém da maneira segundo a qual ela compreende, segundo a qual ela envolve uma expressão, embora não possa representá-la. (DELEUZE: 2015, p.148) Ora, mas o que queremos com tudo isso para além de uma longa caminhada por paisagens extraordinárias? Pelo óbvio do ridículo, não nos interessa sequer sugerir que as tradicionais produções ritualísticas romanas desde o a perder de vista no tempo estivessem envoltas, emparelhadas ou apenas acenantes ao empreendimento do pensar da Stoa. Como também não cogitamos nenhum esforço no sentido de fazer demonstrar, muito menos de provar, qualquer projeto da parte do próprio Plínio, o Velho, em categorizar de forma erudita uma coisa na outra, ainda que mantenhamos em vista os vínculos um sem número de vezes registrado e comentado entre o polígrafo, o pensamento estoico, e a H.N. Ou ainda que nos recordemos sempre das notícias dos seus trabalhos em retórica e gramática com atenção 382 Pois, recapitulando, sendo os exprimíveis apenas modos ou maneiras de ser sem corresponder a nenhuma nova propriedade ao existente, a definição estoica de um ser não pode ser, evidentemente, entendida como definição de nenhuma essência. A questão é delicada, mas Crisipo a dirá como “a explicação do próprio”. Não uma proposição categórica, mas um “juízo hipotético, que afirma, ademais, a coexistência de fatos, e não de conceitos”. (BRÉHIER: 2012, p. 60-61) 315 específica às figuras da ambiguidade tal qual as preocupações de Crisipo.383 Não obstante, o que queremos é o próprio caminhar em que estivemos, simplesmente reconhecendo que na história da arte da H.N. – e talvez somente nela – o uultus e o signo coincidem em máxima similitude: enquanto apenas “exprimíveis” em vez de representáveis, como aquilo que é apenas expresso na cera em vez de sinais externos (35.6). E ainda que se possa, e se deva, questionar suas possíveis diferenças se torna irresistível pensá-los como gemelidade sem origem comum. De tal forma, que apenas pelo processo mesmo que analisamos das máscaras de cera pliniana e pelo processo mesmo que analisamos da phantasia estoica, nos sentimos autorizados a caminhar. Em outras palavras, autorizados pelo uultus e pelo signo a ligar o fato de um ao fato do outro independente de serem mais ou menos heterogêneos. Não que eu concorde com tudo quanto tenho dito neste ensaio. Disse muitas coisas que desaprovo. O ensaio representa simplesmente certo ponto de vista artístico, e em crítica estética a atitude é tudo. A verdade universal não existe em arte. Uma verdade, em arte, é aquela que também conta com uma contradição verdadeira. E assim como somente na crítica da arte e graças a ela podemos colher a teoria platônica das ideias, do mesmo modo somente na crítica da arte, e por ela, podemos realizar o sistema de Hegel sobre os contrários. As verdades metafísicas são as verdades das máscaras. (WILDE: 1992, p.200) 4.5 – Similitudo Naturae e a história da arte para caminhantes. Dito tudo isso e esclarecida a intimidade da dignitas e da cera, quais as implicações para a similitudo naturae, e dela para com a essa abertura epistêmica que encontramos na história da arte da H.N.? Qual seria então o sentido da similitude que aparece reivindicada nesses parágrafos iniciais do Livro 35? Com efeito, como bem notou Carey, essa questão pliniana melhor se apresenta na aparente ambiguidade com que ele ora exalta Apeles e ora recrimina os outros homens pelo mesmo fato: “desafiar ou provocar a natureza” (2005: pp.107). Todavia, porque negligenciou uma diferença importante no contexto da H.N., Carey enxergou dilema e ambiguidade onde há na verdade dialética e paradoxo. “It is worth remember that Pliny was the author of a (lost) work entitled Dubius sermo, a treatise on the ambiguity of words and phrases, on how to avoid overcome it, which lay undoubtedly in the vein of the Stoic grammatical tradition. (…) Amphibolos is an accurate Greek translation of the Latin term dubius. Among the works by Chrysippus, Diogenes Laertius, VII.193 lists as many as seven books dealing with 'ambiguity' as it occurs in speech, figurative forms, syllogisms, etc. (PAPARAZZO: 2005, p.367) Segundo Conte, esse trabalho “had considerable success. We have a good number of fragments from it, since it was used and cited a great deal by grammarians of the late Empire.” (1999, p.497) E segundo Albretch: “In his lost eight books Dubii sermonis, Pliny (like Varro) reconized the importance of the live linguistic usage as opposed to analogy.” (1996, p. 1269) 383 316 Na primeira vez, Plínio estava começando a discursar sobre as desventuras em se relegar a superfície para escavar as profundidades da terra em busca de metais preciosos. E então faz um juízo para a história da economia antiga: não fossem bastantes a avareza e insanidade da própria busca, os homens ainda aprenderam a inflar os valores até mesmo do ouro e da prata ao desenvolverem novas técnicas de pintura e cinzelagem. É nesse sentido que, luxuriosamente, a humanidade aprendeu a desafiar a natureza, e fez até com que a arte estimulasse o vício (didicit homo naturam provocare. auxere et artem vitiorum inritamenta. H.N.33.4). Na segunda vez, o polígrafo comenta que Apeles desafiou a própria natureza na pintura de um herói nu (pinxit et heroa nudum eaque pictura naturam ipsam provocavit. H.N.35.94). Conforme anotou a Edição Einaudi (1988: p.393), significa que esta obra correspondia a um emblema artístico de Apeles em sentido canônico, semelhante ao que tinha o Doríforo para a arte escultórica de Policleto. A diferença não é que Apeles, sendo o genial pintor, tinha licença para fazer o que era vetado aos demais humanos. Consiste, justamente, em Apeles não confundir a similitudo nem com a mimese nem com a imitazione. O que por sua vez não se restringe a um juízo moral, entre um procedimento avaliado como luxuriante e um operativo considerado dignificante. Antes, em vez de diferença de provocação é diferença do que é que se provoca. Confirmando o que já estivemos expondo longamente nesta tese, a anedota seguinte à supracitada demonstra como o termo provocavit tem uma expressão real: em um concurso de pinturas de cavalos Apeles apela ao juízo dos próprios animais “provocando-os” com as pinturas que concorriam. E os cavalos só reagem à sua pintura (H.N.35.95). Ou seja, as melhores obras de arte (tendo em vista que só a de Apeles teve sucesso) eram capazes de alterar juízos até mesmo de animais, que por sua vez eram capazes de dar assentimento a alterações corporais – tudo conforme já havíamos descrito desde Diógenes da Babilônia. De igual maneira, uma provocação artística luxuriante é preocupante e deve ser condenada. Uma provocação artística dignificante é um incremento harmônico e deve ser louvada. Porém, o que demarca os limites de uma e outra é um detalhe tenuíssimo, mas decisivo. A última provoca a “natureza ela mesma” (naturam ipsam provocavit), enquanto a primeira provoca apenas a “natureza”, isto é, as coisas da natureza (naturam provocare). O detalhe não é fortuito. Na verdade, pode ter sido uma construção crítica própria à escola de Sicião, tendo em vista que em outro trecho o polígrafo conta que quando Lísipo perguntou a Eupompo como fazer para se tornar um grande artista a resposta sucinta do velho mestre foi: “imitando a natureza ela mesma, não um artista” (naturam ipsam imitandam esse, non artificem. H.N.34.61). O mais velho era o fundador da escola, mestre de Pânfilo, por sua 317 vez o mestre de Apeles. O mais novo era o grande escultor contemporâneo de Apeles, e que junto dele formava a dupla artística preferida da corte de Alexandre. Não raro esta lição anedótica foi tomada como o sinal da proposta redefinidora da escola de Sicião, isto é, não mais modelos ideais ou formas mentais, e sim um naturalismo declarado – especialmente quando comparadas as obras remanescentes de Lísipo com as de escultores anteriores, como Fídias. Todavia, uma vez figurando em meio a H.N. a lição nos permite avançar sobre outros matizes possíveis. Porque em outro trecho o próprio Plínio é surpreendentemente enfático ao condenar a intenção de imitar rigorosamente as coisas da natureza. Trata-se do caso, famoso na Antiguidade, do Touro esculpido por Périlo sob a encomenda do tirano Fálaris (H.N.34.89). O que se conta é que desejoso de uma representação ainda mais realista o escultor teria feito da representação do touro um instrumento de tortura, na qual alguém podia ser colocado dentro da obra e, sobre fogo, era levado ao mugir e berrar como qualquer touro existente. Embora a anedota remonte ao tempo de Píndaro e vários autores a tenham comentado, Plínio é o único que culpa e censura mais o artista do que o rei cruel que a encomendou – na verdade, o enciclopedista a narra como se o projeto tivesse sido de autoria de Périlo e só mais tarde exposto ao rei. O que não deixa de ser uma muito significativa mudança de ênfase crítica da crueldade da tirania para o perigo da imitação artística levada ao extremo. Tanto Sêneca [o Velho] quanto Plínio apontam para o potencial de perversão do paradigma naturalista. Mas onde Plínio difere de Sêneca é na mensagem mais ampla sobre naturalismo que sua anedota transmite. Enquanto Plínio condena Périlo por criar um instrumento de tortura, sua preocupação real é menos sobre a crueldade que a busca por um modelo na natureza pode infligir, do que as implicações que a realização bem-sucedida do naturalismo tem para a relação do artista com a natureza. (trad. livre; CAREY: 2005, p.107)384 De maneira que a conclusão moralizante da sua anedota também pode ser interpretada como uma providência artística da Natureza: o escultor pagou a sua crueldade sendo o primeiro a experimentar a tortura no interior do seu “touro” esculpido. No entanto, ao não fazer caso da diferença entre uma e outra natureza, Carey parece presa na forte leitura que Vasari criou para a história da arte até mesmo da H.N. Afinal, a imitazione della natura prevê apenas uma modalidade natural: a das coisas existentes, que um artista empregando o disegno “Both Seneca and Pliny point to the potential perversion of the naturalistic paradigm. But where Pliny differs from Seneca is in the broader message about naturalism that his anecdote conveys. While Pliny condemns Perillus for creating an instrument of torture, his real concern is less about the cruelty which the search for a model in Nature can inflict, than the implications which the successful achievement of naturalism has for the artist’s relationship with Nature.” 384 318 é capaz de imitar em uma ilusão factível a partir de um correto distanciamento ótico. Por essa régua a diferença entre as provocações se reduz ao âmbito puramente moralizante de qual existência será imitada ou com qual finalidade. Como também já dissemos, Didi-Huberman revisa essa leitura vasariana do texto de Plínio. Contudo, ao reconhecer a semelhança como imagem-matriz (através de uma filiação paternal, etc.) nos parece que ainda de modo deveras cartesiano ele afasta a similitudo da ordem da ideia sem afastá-la de fato da mimese. É que, ao contrário do que conclui DidiHuberman, a cera uultus “seria” feita por “contato direto” senão fosse por uma diferença infinitesimal como aquela da obra da Anedota, a filha de Butades (35.151): entre o rosto e a imago há o molde de gesso, entre o molde e a cera há a pincelada, entre os dois lados da máscara há o pano. Portanto, a impressão é e não é o próprio retratado ao mesmo tempo, no mesmo espaço. Como na etimologia estoica da phantasia, outra gêmea sem ser gêmea. Ou como no espelho paradoxográfico que, ao fazer do retratado uma questão, o que devolve é o não-visto do signo irrepresentável. Antes que teoria, o que temos é uma phantasia pliniana da imagem artística. E o que acontece é que a similitudo naturae nem imita os existentes (como na imitazione della natura) nem copia ou reproduz sensivelmente a forma ideativa de coisa alguma (como na mimese), ela simula a própria natureza. Isto é, provoca não as coisas da natureza, mas a própria natureza artística e providencial que nunca se dá como o visto ou como o dado senão afirmando positivamente a relação entre dessemelhantes, segundo a fórmula do “como se”. Na verdade, o próprio Plínio distingue essas modalidades da natureza já na abertura cosmológica da H.N.: O mundo e isso – qualquer outro nome que os homens tenham escolhido para designar o céu cujo teto abobadado circunda o universo, que se acredita ser uma divindade eterna, imensurável, um ser que nunca começou a existir e que nunca perecerá. O que está fora dele não diz respeito aos homens para questionar e não está ao alcance da mente humana para conjecturar. É sagrado, eterno, imensurável, o todo em um tudo, na verdade a própria totalidade, infinito e aparentemente finito, determinado em todas as coisas e aparentemente indeterminado, compõe em si tudo de dentro e de fora, é todas as coisas da natureza e a natureza ela mesma. (trad. livre; H.N.2.1-2)385 O que ele nomeia “as obras da natureza” é suficientemente claro: as coisas todas do mundo natural, os corpos, que na enciclopédia serão largamente manifestados. Já a “natureza “MUNDUM et hoc — quocumque nomine alio caelum appellare libuit cuius circumflexu teguntur cuncta, numen esse credi par est, aeternum, inmensum, neque genitum neque interiturum umquam. huius extera indagare nec interest hominum nec capit humanae coniectura mentis. sacer est, aeternus, inmensus, totus in toto, immo vero ipse totum, finitus et infinito similis, omnium rerum certus et similis incerto, extra intra cuncta conplexus in se, idemque rerum naturae opus et rerum ipsa natura.” 385 319 ela mesma” é um não-dado que acontece na narrativa toda vez que os seres, em si mesmos, não são o bastante para a explicação enciclopédica. É quando as propriedades e qualidades dos seres carecem de comentário de “outra natureza”, quando é necessário fazer razoável as suas maneiras de ser que podem parecer em larga medida como não usuais na H.N. Em trechos assim Plínio invoca com frequência o atributo da natureza ou como providente ou como artista. É essa atribuição natural a responsável por configurar em um todo lógico as estranhezas do mundo natural da H.N. Portanto, não se trata de uma antinomia, mas do paradoxo como tropo pliniano fundamental: duas naturezas em uma. É esse paradoxo que condiciona a linha divisória entre a dignitas e a luxuria para além do simples método adequado ou inadequado de imitação da natureza, e além de valores morais que lhe possam ser coextensivos. Já analisamos esse trecho na última parte do Capítulo 3, e demonstramos como ele é fundamentalmente de inspiração estoica. De modo que só cumpre indicar como neste contexto a lição do velho Eupompo se torna outro quase gêmeo do lema maior dos estoicos: “viver em harmonia com a natureza”. O que, evidentemente, não tinha por conotação viver de acordo com as coisas existentes da natureza, mas sim em conformidade com a razão natural que permeia todas as coisas da natureza. Como explicava Crisipo, viver em virtude equivalia a viver em consonância com o verdadeiro curso da natureza (D.L.VII.87). Ou, ainda segundo D. Laércio, uma razão que sobrevém como artesão dos impulsos (VII.86). Na verdade, seguindo na mesma trilha que estivemos rastreando com Diógenes da Babilônia, Crates de Malo, o som silencioso que sobrevém à obra, e o sentido antes de tudo sonoro da claritas (conforme aparece no comentário da Sêneca sobre Cleantes), A. A. Long argumenta que com esse termo os primeiros estoicos tiveram a intenção deliberada de associar sua filosofia com a arte que melhor representa essa consistência ou concordância natural: a música. Mais do que isso, ele advoga que a antiga música grega poderia até mesmo prover importantes pistas, totalmente negligenciadas, para a interpretação de conceitos básicos da filosofia da escola (1996, p.203).386 Evitando digressarmos mais do que o necessário, em resumo ele demonstra como independente de qualquer interesse em teoria musical os estoicos faziam caso dessa analogia, e a preferiam em lugar da canônica escultórica (pouco afeita à ação corporal no sentido que a escola a pensava): em vez da noção de symmetria escolheram pensar “a harmonia com a natureza” pela noção de symphonia (ibid, p. 223). 386 Todavia, como o próprio pontua, sem nenhum privilégio da música sobre outras artes ou technes de exatidão como a escultura ou a medicina (ibid, p. 207). 320 Como já discorremos no fim do Capítulo 2, encontra-se o mesmo no estudo de Diógenes da Babilônia sobre a música, em particular na sua tese de que os efeitos artísticos são de natureza providencial (WOODWARD: 2009, p.64). Ele não só endossa que a música possa comover a alma, como afirma que ela pode converter uma alma em repouso para o movimento, como também acalmar uma alma transtornada levando-a a uma disposição pela qual a alma se move naturalmente conforme o efeito da melodia (ibid, p.82). Vale lembrar: por um efeito de superfície que a música expressa e que nos toca pelos sentidos, alterando nosso modo de ser e não as nossas propriedades (fazendo Filodemo acusá-lo de “ciência do não-existente”; ibid, p.84). O mais curioso, no entanto, é que este sentido auditivo não escapa de todo da estrutura dessa phantasia pliniana da imagem artística, e justamente no ponto crítico da similitudo. Se recordarmos o arranjo retórico desses primeiros parágrafos do Livro 35, ele começa mencionando como a arte nobre de outrora foi banida em favor do luxo dos materiais caros (mármore e ouro) e mesmo estes foram sendo artificializados – crítica bastante semelhante à do Livro 33 sobre a provocação inflacionária e luxuriosa da natureza. De modo que a pintura de retratos com a máxima similitude [maxime similes] foi substituída por figuras surdas [surdo figurarum discrimine], os medalhões de bronze e os semblantes de prata (H.N.35.4). Ele se referia, exatamente, à substituição da imago (com tudo o quanto temos examinado) pela produção tipográfica de escudos: impressões iconográficas de acordo com temas preestabelecidos e independentes da figura do comprador ou retratado. Portanto, não só abrindo mão do contato “direto” da produção em cera como se valorando quase que exclusivamente pelo valor dos materiais empregados na reprodução técnica. A conclusão pliniana é que incapazes de serem “retratos vivos” [nullius efiigie vivente] o que eles deixam para a posteridade são retratos do seu dinheiro [imagines pecuniae], não de si próprios (H.N.35.5). Por sinal, uma conclusão extremamente rigorosa com sua phantasia: conforme o processo artístico da cera uultus, o que se tem como resultado são imagines apenas do material. E é por isso que o polígrafo sentencia que a moleza pôs a perder as artes, e, já que faltam os retratos das almas, descuram-se também os dos corpos (ibidem). Nesse sentido, chega a ser revelador o estado atual da crítica H.N. sobre a expressão surdo figurarum, porque nela se reproduz facilmente o paradigma do platonismo através de um deslocamento. Em geral, o trecho e o termo são interpretados simplesmente como falta do vigor imitativo cujo sintoma é a mudeza das criações artísticas (incapazes de responder aos questionamentos de um diálogo; Fedro.275). Todavia, seria talvez mais interessante de pensar o trecho na sinestesia calculada por Plínio ao invés da assumida por nós. Algo como: Os 321 desprovidos de (entendi) (movimento), ao escutarem, parecem surdos; um ditado testemunha deles: os presentes estão ausentes (HERÁCLITO: 2007, p.23). Afinal, está claro pelo texto romano que não se tratava da incapacidade da figura de “dizer” a quem representava – na verdade era o oposto, seu defeito era ser cópia exata de modelos prontos, de temas, ao invés das pessoas vivas, “animadas”. O problema da falta de discernimento anímico na representação visual é expresso como dificuldade de escuta das próprias figuras. Se quiséssemos resumir: não sendo próprio da arte nem imitar as formas dos existentes nem copiar formas ideativas, cabia a ela simular a própria vitalidade do representado – o que na lógica estoica da H.N. correspondia a imitar um princípio natural e providente que a tudo permeia de forma corporal mas que nunca se dá ou que nunca é visto como tal. De modo que, provocar a própria natureza deveria corresponder a simulá-la tal qual ela acontece: não dada e não-vista. Como o indeterminado no mais determinado. Essa sim é a linha divisória entre a dignitas e a luxuria da arte pliniana, entre a atribuição e a apropriação dos seres. O artista é exaltado por imitar a natureza ela mesma, o que já não é propriamente imitar nada, mas engendrar no visível uma maneira de ser, um atributo na superfície dos corpos. O que as figuras tipográficas são incapazes de ouvir é essa razão natural, esse ânimo que vivifica os seres de forma imanente e não-vista, e que a partir dos seres dá a acontecer os efeitos de superfície. Neste sentido, sim, estas obras que não são retratos vivos formam “cadeia surda”, como diria Vico. Mas, porque diferente da arte nobre ou da dignitas, são surdas ao silêncio como o som que sobrevém. vidi, vidi ipse, libelle: auriculas asini quis non habet? (Perseu Sat.I, 120)387 De certa forma já o tínhamos anunciado, ou ao menos antecipado, quando expusemos a estética estoica, no Capítulo 2, e quando traçamos a conotação antes de tudo sonora da claritas como efeito artístico, no Capítulo 3. Todavia, quando digressamos sobre como os estoicos, em especial, faziam caso da audição nos concentramos nas suas análises receptivas. Desde Cleantes, ao menos, fica claro que os estoicos admitem a impossibilidade de existir um saber nu, isto é, a expressão mesma da sabedoria sem que esteja expressa em proposições, em linguagem. Logo, se Sêneca admitia que era possível aprender alguma sabedoria com a expressividade de uma obra de arte, “como quem com outro intuito acaba se bronzeando ao passar pelo Sol”, Epicteto faz caso na direção oposta. A audição deve ser ativa a ponto de fazer o outro falar, a ponto de ser ela mesma uma quase-techne (Dis. II.24). Já vimos como Diógenes da Babilônia e principalmente Crates apostam no treino dos ouvidos (e dos olhos), mas é Epicteto quem dirá que são precisos experiência (habilidade adquirida) e prática assídua 387 “Eu vi, meu livro, eu mesmo o vi: Quem está lá que não tenha orelhas de asno?” (trad. livre) 322 (Dis. II.23). O decisivo é então saber ouvir sem se prender na coisa dita e em favor dos elementos que a permitem serem ditas: o silêncio entre o logos do discurso e a léxis da maneira de falar. Nesse sentido, Foucault atesta que os antigos tinham basicamente três meios para atingir ou abordar a sabedoria expressa nas composições com as linguagens: a) o silêncio como elemento ativo e significativo – tema particularmente acentuado e desenvolvido entre os estoicos; b) uma atitude física: a alma deve acolher os sons sem perturbação e o corpo deve permanecer calmo; c) e memorização, de preferência lançando um olhar sobre si mesmo para saber como se está com relação ao que acabou de compreender (2006, pp.410-421). Interessante notar que em um trecho pliniano despretensioso encontramos todos esses três meios reunidos. Quando de volta ao assunto das esculturas, Plínio comenta o quanto é difícil estudar a arte em Roma (a maior reserva de maravilhas) porque para tal é necessário ócio e um profundo silêncio ao redor (H.N.36.27). De modo que temos ali a proposição conjunta do seu empenho catalográfico como elemento de memorização, o ócio como atitude física despreocupada, e o silêncio como ponto crítico contemplativo. Se, ademais, resgatarmos que a H.N. já havia descrito que a natureza ela mesma é capaz de testemunho “silencioso” (2.52), temos então uma bonita cadeia de recorrências desde a obra que deve ser capaz de ouvir o silêncio providencial, passando pelo contemplador que deve atingir ou abordar este silêncio para contemplar a obra como tal, até o silêncio providencial da própria Natureza providente e artística. Por outro lado, longe dessas construções teóricas, é de se perguntar: esse mesmo trecho pode sugerir uma leitura como uma proto-defesa das nossas atuais salas brancas de exposição enquanto ambientes isentos do resto da vida cotidiana e dos seus objetos para uma pura e silenciosa fruição estética da obra de arte? Isso seria um erro histórico e crítico. Porque está muito claro que para Plínio as obras de arte devem ser “públicas” no sentido de estarem em meio à vida e às pessoas. Vide a crítica que Plínio faz à Domus Aurea de Nero como a prisão das pinturas do grande Fâmulo (H.N.35.120). Mas, sobretudo, o público antigo tinha uma relação de intimidade com essas representações que dificilmente podemos apreender, justamente porque estamos acostumados a reconhecê-las como objetos e não mais como operativos de dinâmicas na nossa existência. Além disso, havia de fato certa ambiguidade (senão mesmo anfibologia) entre as coisas naturais e a outra natureza da arte. Quando o polígrafo se encaminha para registrar as obras da cidade de Roma é sintomática certa megalomania: há tantas obras, tão maravilhosas e de tanto tempo, que se as melhores construções fossem todas agrupadas em um só ponto formariam um tipo de torre 323 que nos levaria a pensar que se tratava de outro mundo (H.N.36.101). É preciso acompanhar esse sintoma, porque ele evoca uma relação com a arte pública consideravelmente distinta da nossa experiência moderna. Stewart lembra que, no século VI d.C., Cassiodoro descreveria a população de pedra e de bronze da cidade como equivalente a população criada pela natureza (2003, pp.119-120). A afirmação do ministro-autor supõe o dito naturalismo da estatuária romana, confundindo os habitantes “naturais” e “artificiais” da cidade. Porém, mais do que isso sugere a intensa intimidade, até mesmo social, entre os seres e a arte. Mais de um milênio adiante, também Goethe registrou que na cidade havia, para além dos romanos, uma população de estátuas, porém agora tão apartada do mundo que formava “um outro mundo de ilusão, quase mais potente, e no qual a maioria dos homens vive” (no.186, in: 1908, p.98). Afirmação essa, portanto, que já retrata a descontinuidade natural dessas estátuas no século XIX. Seja como for, por enquanto basta assinalar esse deslimite da quantidade de obras e o sentido da experiência dessa outra Roma dentro de Roma – ela mesma, vale lembrar, a segunda mãe ou natureza providente na H.N. Em particular, esse deslimite da estatuária decorria da noção de ambitio que atuava como estímulo de fundo para a sua produção. No caso de Roma era uma noção central no seu sistema político de competição republicana. Até com certa independência da fidelidade fisionômica, erigir estátuas em locais públicos funcionava como um tipo de propaganda, provas de patrocínio, e status político e social. Stweart até reforça um sentido mais cultural do termo como “solicitação pública de votos” (ibid, p.130). Donde se percebe a diferença de nossa experiência moderna e, especialmente, contemporânea. Nosso deslimite das imagens continua e segue a corrente incessante da autopromoção, contudo o meio se tornou diferente ainda que talvez por motivos mais da ordem orçamentária e do direcionamento de público (por óbvio, com larga escala política, mas não apenas no sistema político, conforme comprovam os usos imagéticos de autopromoção social em redes virtuais de “infinitilhões” de reproduções). O que é o bastante para o historiador inglês ressaltar a aparente ambiguidade com que Plínio parece ora elogiar a prática de erigir estátuas por todo o mundo enquanto a mais civilizada ambitio (34.17), e ora defender a remoção de estátuas de locais públicos como forma de destabilizar a ambitio (34.30). Todavia, como ambiguidade não é sinônimo de contradição é preciso observar como a ambitio habita diferentemente dois trechos distintos. No primeiro trecho, Plínio está noticiando as primeiras obras de estado como forma de honrar alguns de seus cidadãos – sendo a representação dos Tiranicidas destacada como a primeira entre os atenienses. É nesse sentido que ele advoga em favor da ambitio. Exatamente como poucos parágrafos antes ele havia discriminado dois envolvimentos possíveis com a 324 prática de erigir estátuas: a) por amor à glória, isto é, por atenção ao próprio procedimento artístico de fusão dos metais e de representações, o que levava os cidadãos mais proeminentes a procurarem por sua claritas nestas obras; b) a prática por puro amor aos ganhos, como em qualquer outra atividade (H.N.34.5). É nesse segundo sentido que, no Livro 35.5, Plínio dirá de imago do dinheiro (juntando o puro interesse financeiro com a valoração artística apenas pelos materiais empregados). E que, no Livro 34.30, Plínio apoiará a derrubada de estátuas públicas como forma de inibir a ambitio, bem entendida agora como ambição financeira em vez de glória. Tanto o é, que o polígrafo ainda faz a ressalva de que em meio à derrubada de estátuas foram preservadas todas aquelas que tinham sido erigidas por decreto do povo ou do senado (34.30). Porque, no fundo, há um sentido propriamente ambulante da ambitio. Para além do uso social de pedir votos ou fazer publicidade havia um emprego quase providencial de atuar em todas as direções, um duplo sentido literal: “ir para aqui e para ali”, isto é, ir para os dois lados. Em outras palavras, as estátuas com claritas e erigidas por razão popular ou de estado manifestavam uma real e concreta providência dos retratados em favor do público (no caso, romano), providência que poderia por vezes ser reconhecida para além da própria estátua vindo de um lado e de outro dos caminhos até ela. Assim, novamente marcando a diferença entre a dignitas e a luxuria (entre imitar a natureza ela mesma, e imitar as coisas da natureza), a ambitio se dividia entre as obras que davam a caminhar, que abriam os rumos de passagem providencial (34.17) e as obras que atravancavam os caminhos, que se tornavam obstáculos à caminhada livre (34.30). Stewart não deixa passar que a preocupação de Plínio com esse deslimite da quantidade de obras também tem forte viés estoico (2003: p.126). De fato, por tudo o quanto temos apresentado, os estoicos dão grande atenção aos limites e superfícies, e em sua afirmação da unidade corporal cosmológica a noção de deslimite passa a encarnar o próprio absurdo a ser renunciado, como aquilo que ultrapassa todas as circunscrições. Já vimos como isso aparece formando sistema na crítica pliniana dos três tipos de luxuria (dos materiais, dos corpos, e das semelhanças). O que não havíamos mencionado são as três vezes em que o polígrafo se recusa por princípio a seguir um tópico até o final. A primeira vez quando menciona o problema da medição da altura do céu: a recusa não diz respeito a uma suposta infinitude do céu, ao contrário, a censura é à insana quantidade de ócio que seria preciso para determinar esse número – um total desperdício de tempo (H.N.2.85). Outra vez quando está apresentando as gemas preciosas e se recusa a seguir certa luxúria da vaidade grega em atribuir inumeráveis nomes às pedras (H.N.37.195). O último caso é um que já mencionamos no fim do Capítulo 3.1., mas que vale ser lembrado. Logo depois dessas afirmações sobre a 325 ambitio, Plínio se questiona de forma retórica qual o sentido de se propor a estudar a arte tendo em vista o florescimento ad infinitum das estátuas. Entre outras coisas, ele lembra a reportagem de Muciano de que só em Rodes havia 3 mil estátuas, e que, porém, em Roma só o teatro temporário de Scauro continha o mesmo número, e que Lísipo sozinho havia deixado mil e quinhentas obras. A partir dessa última referência, a resposta do polígrafo é que esse estudo pode ser prazeroso se concentrado na excelência artística, conforme a claritas, em vez do número do acervo (H.N.34.35-37). De modo que não se tratava de estudar as estátuas, propriamente, mas de estudar a claritas que em umas tantas obras era possível de ser compreendida.388 Se então quisermos um exemplo desse “cosmopolitismo” envolvido na imitação da natureza ela mesma, envolvido nas obras que Plínio admira, há um trecho muito bonito no mesmo Livro 34. Nele, o autor necessita primeiro de duas estátuas para poder fazer vir a acontecer mais uma vez a benigna providência divina mesmo em um terrível metal: o ferro. Ademais, a arte dos primeiros dias não deixou de providenciar uma função mais humana, mesmo para o ferro. Quando o artista Aristonidas desejou representar a loucura de Athamas cedendo em arrependimento após ele ter lançado seu filho Learco da rocha, ele fez uma mistura de cobre e ferro, a fim de que o rubor da vergonha fosse representado pela ferrugem do ferro reluzindo através da superfície brilhante do cobre; esta estátua ainda está de pé em Rodes. Há também na mesma cidade uma figura de ferro de Hércules, feita por Alcon, motivada pelo deus em seus trabalhos. Também vemos em Roma cálices de ferro dedicados no templo de Marte, o Vingador. A mesma benevolência da natureza limitou o poder do próprio ferro, infligindo-lhe a penalidade da ferrugem, e a mesma providência tornou nada no mundo mais mortal do que aquilo que é mais hostil à mortalidade. (trad. livre; H.N.34.140)389 O valor, ou simplesmente a claritas, do operativo artístico não está na representação moral de Athamas, nem na representação física de Hércules (herói máximo dos estoicos). Não interessa em ponto algum a cópia de suas naturezas enquanto corpos, enquanto coisas da natureza (na verdade, qualquer um que observe o conjunto anteriormente destacado dos Tiranicidas, por exemplo, percebe por um lado a real intenção de individualizar os retratos, 388 Sobre essa questão estoica, Stweart chega a fazer comparativos entre a crítica de Plínio e as de Sêneca, que envolvem a questão do espelho e a condenação das colunas de mármore como luxuriosas (ibidem). 389 “Et ars antiqua ipsa non defuit honorem mitiorem habere ferro quoque. Aristonidas artifex, cum exprimere vellet Athamantis furorem Learcho filio praecipitato residentem paenitentia, aes ferrumque miscuit, ut robigine eius per nitorem aeris relucente exprimeretur verecundiae rubor. hoc signum exstat hodie Rhodi. est in eadem urbe et ferreus Hercules, quem fecit Alcon laborum dei patientia inductus. videmus et Romae scyphos e ferro dicatos in templo Martis Ultoris. obstitit eadem naturae benignitas exigentis ab ferro ipso poenas robigine eademque providentia nihil in rebus mortalius facientis quam quod esset infestissimum mortalitati.” 326 mas, ao mesmo tempo, o quanto eles passam longe de qualquer naturalismo).390 Nesse trecho, também não é o valor do material em si que define o valor artístico – o ferro nem sequer consta como metal estimado na arte. Em jogo está o operativo de arte capaz de providenciar propriamente a natureza da culpa de Athamas, a dos esforços nos trabalhos de Hércules, e sobretudo a natureza do próprio ferro percorrendo-os, entrelaçando-os, estabelecendo vultos de semelhança entre os dessemelhantes. A dignitas que define a artisticidade pliniana não é um valor moral (embora contenha moralidade), mas é uma afirmação cosmológica e por isso mesmo tradicional e não permutável (no sentido antropológico com que Didi-Huberman apresentou). Será sempre luxuriante sendo mero figurar de existentes. Será dignificante só enquanto configurar a existência de forma intensiva. O trecho informa como se primeiro fossem precisos os operativos artísticos para só depois se revelar e se compreender, como o não-dado e o não-visto, a própria natureza providente: fez o ferro o material mais perigoso aos mortais, mas fez ele mesmo extremamente mortal como nós. É nesse limite superficial que se situa a importância decisiva da cera pliniana. Não como retrato enquanto duplicação de um rosto, mas como aquilo que escapa aos corpos e ao mesmo tempo aquilo que os dá sentido: o limite mesmo de um ser, o que o envolve e o que fica do lado de fora. O que no estrito sentido gráfico corresponderia à determinação da sua posição corporal e à indeterminação entre o seu lugar e o seu vazio. Mas no sentido artístico mais amplo correspondia a expressar no mais determinado de uma representação o mais indeterminado da providência natural. É isso o que capta a impressão táctil da cera, exatamente como descreviam os mestres estoicos o processo de conhecimento: menos uma tipografia (fosse das Ideias platônicas, fosse das sensualidades epicuristas), e mais o modo com que uma impressão se dá a ver enquanto impressão, enquanto cera modelada (cf. HANKINSON, in.: INWOOD: 2006, pp. 65-94.). Nesse sentido, destaca-se a acuidade de M. Corbier em observar que toda essa dita teoria pliniana da imagem é redigida na forma narrativa de uma caminhada (2007: pp.69-83). No passo a passo de sua recomposição do texto, ela argumenta que Plínio nos guia por lugares bastante específicos através de alguns termos latinos. De fato, o Livro 35 começa fazendo um recorte perspectivo desde o plano amplo das montanhas e entranhas da terra de onde retiramos o mármore e o ouro, até trazer a narrativa a um close-up em um hipotético quarto de uma tradicional casa romana (35.1-3). Mas, a partir daí, disseca Corbier, voltamos a caminhar em 390 Museu Nacional Arqueológico de Nápoles. Cada vez mais parece claro a incorreção de atribuir ao texto pliniano a defesa pura e simples da cópia o mais fiel possível do modelo, abrindo espaço para o pensar dessas obras como estudos psicológicos. Conforme: MARQUES: 2008, pp. 64-66; CORBIER: 2007, pp.73-74; e mesmo RICHTER: 1955, pp.39-46. 327 sentido contrário (do íntimo da casa para a rua) após a apresentação desse núcleo crítico sobre as figuras surdas, as representações vivas, e a moleza que pôs a perder as artes (35.4-5). Recomeçamos com as máscaras guardadas nos armaria (35.6). O único elemento dessa composição pliniana de que temos uma imagem segura: eram pequenos nichos onde eram guardadas as máscaras, com duas portas e um tímpano que lhes dava a aparência de pequeno templo. A expressão ‘abrir as imagens’, (…) prova que festivais públicos e cerimônias privadas (nascimentos, casamentos, finais de períodos de luto) eram marcados pela abertura dessas portas, o que trazia os ancestrais para dentro da celebração familiar. (trad. livre; ibid, p.74)391 Portanto, as máscaras eram máscaras e apenas serviam “como” retratos, sem confusão de um com o outro (cera uultus singulis disponebantur armariis, ut essent imagines; 35.6). De maneira que vez mais já estamos jogados ao limite entre o dentro e o diante das portas. Estes armários, por sua vez, não ficavam acomodados segundo uma noção abstrata de arquivo. Seguindo com o percurso de Plínio (35.7), eles estariam na Tabulina, mais um local específico, uma sala de arquivos familiares conectada e aberta largamente ao átrio da típica casa romana. Neste espaço eram conservados os arquivos públicos da família: os arquivos em volumes textuais (codices) e as representações ancestrais das máscaras de cera e da árvore genealógica (monimenta). Passeando pelas alas de todo o espaço do átrio o autor nos encaminha em direção às portas da casa. O passo seguinte é ir para o lado de fora para descrever a soleira ou limite enquanto simultaneamente inicia a narração de representações ainda mais excepcionais do que aquelas descritas no interior da casa: os triunfos concedidos pelo estado romano apenas “às mais eminentes almas” e que por lei deviam ficar expostos no corredor de entrada das casas (aliae foris et circa limina animorum ingentium imagines erant adfixis hostium spoliis; 35.7). Conforme Corbier, a fórmula foris et circa limina refere-se ao lugar específico entre o espaço público da rua e o espaço privado que começava na porta da casa, isto é, se tratava precisamente dessa zona de transição, do limite mesmo do dentro e do fora (2007: pp. 76-77). O que nos permite concluir mais uma vez junto com toda a lógica da imago, que a arte na H.N. tem para si uma natureza (talvez até ontológica) liminal. As obras exemplares são aquelas que encarnam a superfície de um rosto, seu processo de feitura é ele mesmo a duplicação superficial em máscara; estas devem habitar o limite da soleira dos seus pequenos 391 “The expression imagines aperire, (…) proves that public festivals and private ceremonies (births, marriage, ends of mourning periods) were marked by the opening of these doors, which brought the ancestors into the family celebration.” 328 armários; por fim, as obras representativas de almas ainda maiores devem habitar limites ainda maiores, a soleira da própria casa, o limite entre o público e o privado. Ora, mas justo agora não devemos parar de caminhar. Pois é por aí, atravessando essas portas todas, que Plínio lembra que as máscaras como máscaras saíam acompanhando as procissões familiares. E por aí é que ele seguirá em direção aos retratos das figuras eminentes de que não conhecemos a fisionomia no interior das bibliotecas públicas. Se é decisivo compreender o sentido liminal da arte, é necessário, igualmente, compreender o sentido caminhante que acompanha a simulação da natureza ela mesma. Em especial, na formatação enciclopédica que assume a narrativa de Plínio. Em um texto que se propõe a fazer circularem as coisas entre si e que tem os operativos artísticos como providenciais dos seus limites, é preciso que esses limites percorram livremente as superfícies todas das coisas. É preciso que a simulação como tal não se restrinja a um objeto, mas que se desdobre por tudo. Sabe-se que o enciclopedismo correspondia à disciplina intelectual dos estoicos como um dos três eixos do trabalho de transformação sobre si (DUHOT, 2006: p.151). Mas, talvez de forma surpreendente, o sentido dessa correspondência é que, na verdade e por antecipação, todo enciclopedismo antigo esteve, direta ou indiretamente, associado ou penetrado por preceitos estoicos (cf. FOUCAULT, 2009: pp.315-316). Pois foram os da Stoa quem insistiram em constituir o pensamento moral, lógico e físico em vigorosa sistematicidade. Foram eles que se colocaram como questão filosófica o flexionar da necessidade de dirigir o olhar para si com a necessidade de percorrer ao mesmo tempo a ordem do mundo. E é por aí que toda literatura enciclopédica da Antiguidade esteve, inelutavelmente, penetrada pela doutrina escola em maior ou menor grau. Apesar da lenda e da representação tradicional que temos do filósofo antigo, em seu bonito livro F. Gros afirma com razão suficiente que somente os cínicos merecem o título de autênticos caminhantes (2010: p.132). Diz mais: com Epicteto toma forma a escola de filosofia em que “o mestre se dirige a um público que deve ser imaginado imóvel e que ele interpela” (ibidem). E, no entanto, Plutarco quando quer denegrir os estoicos afirma que eles não faziam mais do que viver no estrangeiro, entre debates, livros e caminhadas (Das Contradições dos Estoicos.1033c). Isso não contradiz Gros, mas recupera que os estoicos consideravam a si mesmos herdeiros (paradoxais) dos cínicos. A diferença é que mais do que vaguear, vadiar ou zanzar, os estoicos preferiam pôr as coisas – elas mesmas – em caminhada. Daí, entre outras coisas, o lugar de reunião da escola ser o Pórtico, de onde relacionavam a caminhada de quem entrava com a de quem saía. Crisipo, que tinha sido corredor de longas distâncias bem antes de se tornar escolarca da Stoa, comparava a paixão da alma (pathos) com 329 o estado das pernas de quem corre, ao passo que a mente tranquila era comparada com o estado das pernas em caminhada (GILL: 1983, p.139). Enfim, se voltarmos ainda a Epicteto não é nem tanto para tentar justificar seu modelo de escola por sua deficiência física (era coxo, segundo as lendas), mas, ao contrário, para salientar que mesmo assim um dos exercícios espirituais que ministrava a seus alunos era o da caminhada (Discursos III.3.1419). Não se tratava, obviamente, de exercício físico, nem de travessias ou viagens, ir de um ponto a outro. Tratava-se de, durante as caminhadas necessárias do dia a dia ou numa caminhada simplesmente observando as coisas que passam ao nosso redor, que eles se exercitassem em relação a todas as diferentes representações que o mundo oferece. Que fosse feito uso da arte estoica da representação, a saber: contraefetuar os acontecimentos operando na sua superfície, e dando assentimento somente às suas representações compreensivas, aquelas que o evento sustentava por sua própria maneira de caminhar, de dar voltas a si. Quanto à figura de Plínio precisamos fazer os mesmos esclarecimentos. A tomar pelos relatos do seu sobrinho, nem a sua forma física condizia com a prática da caminhada, nem a rotina do polígrafo o permitia. No entanto, não deixa de ser curioso que Plínio destaque a morte repentina como a mais miraculosa e a suprema felicidade da vida, e que então enumere vários casos do ocorrido enquanto alguém calçava seus sapatos (H.N.7.180). E ele mesmo viria a se encaminhar para a sua morte pedindo pelos seus sapatos (poscit soleas; P. JOVEM: I.16). Mais do que isso, da mesma forma como o faz na sua teoria da imagem no Livro 35, ao final do Livro 2 ele propõe conduzir pela mão a mente do leitor para um tipo de tour ou caminhada por aquilo que da realidade lhe interessa, as representações do mundo sublunar (H.N.2.241). Novamente, a caminhada é então um exercício mental pelas representações. Mas então o que significa esse exercício? É claro que nada remotamente parecido a imaginar-se caminhando ou visitando outros lugares mentalmente. Trata-se de percorrer as próprias representações das coisas sempre trazendo o olhar de volta a si. Caminhar então já não é ir de um ponto a outro, de uma posição à outra. É fazer com que um ponto encontre outro diferente dele. É traçar essa mesma diferença não mais como distância ou intervalo em negativo, mas como aquilo mesmo que acontece de original no encontro. Assim, fica muito mais tranquilo entendermos o operativo dessa enciclopédia e do seu polígrafo. Pois, na verdade, o Jovem diz que seu tio lia compulsivamente e que, dentre outras coisas, considerava um desperdício ir andando de um lugar a outro quando podia ser carregado e manter-se lendo. Todavia, com essas leituras não se tratava de mera curiositas, mas de verdadeiras aventuras, de caminhadas literárias. Isto é, não apenas indo de um livro a outro, mas fazendo as representações de cada livro encontrarem-se umas com as outras e experimentando os acontecimentos que então 330 surgiam. Por fim, esse é o sentido da caminhada com que Plínio organiza sua teoria, ou melhor, sua phantasia da imagem, mas também o sentido da estrutura narrativa que sustentará por sua história da arte como um todo. Uma pesquisa científica bem recente comprova essa propriedade peculiar e virtual da caminhada de incrementar o pensamento criativo – entendido como “produção de novidade apropriada” ou simplesmente como aumento e qualificação do pensamento divergente (OPPEZZO & SCHWARTZ, 2014). Dito em português claro: aumento de elaborações a partir de disjunções, a partir do dessemelhante. Peculiar porque tudo indica que só se encontra essa propriedade na caminhada e em mais nenhum outro exercício. Contudo, virtual porque nenhum dos seus componentes ou mesmo a soma deles parece equacionar essa propriedade como resultado. O fato da medição empírica e quantificável de melhoria criativa após uma caminhada não apresentou correlação direta nem com o balançar das pernas nem com a circulação em ambiente exterior. E mesmo respostas mais elaboradas também não se comprovaram: como a hipótese de competição equilibrada entre a atividade mental e física; ou a hipótese de incorporação do pensamento, isto é, um pensar corporificado no exercício. Outra hipótese não testada, mas ainda não descartada, é que a caminhada possa ter alguma estranha relação direta com a memória associativa. Sem qualquer respaldo técnico ou científico no exame em si, mas apenas seguindo com nossas considerações estéticas da Antiguidade, sugeriríamos como possível resposta alternativa a própria divergência dos componentes. Ou seja, considerando um puro acontecimento essa elevação criativa como propriedade emergente e virtual na dinâmica dos componentes. O que não significa puro abstracionismo vazio. Antes, o surgimento do afirmativo da distância entre heterogêneos, entre o positivo e o negativo, entre o dentro e o fora. A caminhada, assim, seria menos a causa da criatividade e mais o momento em que ela acontece, o ponto singular da involuntária associação da memória. Tal qual o zero grau entre as formações da água e do gelo, a caminhada é que seria o resultado de um processo criativo. Como inseparável do acontecimento que nela se passa e não atividade ordinária entre um ponto e outro: não se tem “incremento de novidade apropriada” após ou durante uma caminhada, mas quando se tem um tal incremento já se caminhou de algum modo. Nesse sentido, toda caminhada é não-linear e está longe do equilíbrio, porque ela mesma é um resultado emergente da dinâmica de seus componentes. O mesmo Gros define a caminhada como aquilo que abala a separação entre o “de fora” e o “de dentro” (ibid, p.39). É caminhada quando criativamente fazemos se cruzarem, por exemplo, uma imagem de Athamas, a sua culpa, o material do ferro, o efeito da ferrugem e uma nova naturalidade entre 331 a nossa mortalidade e a do metal que nos ameaça. Assim acontecem os vultos, os signos – como não dados e não-visto por entre os dados, fazendo-os se encaminharem uns aos outros, e abrindo toda a visibilidade. É como em caminhada que se dissipa a linguagem corrente em favor do silêncio ativo. – nesse silêncio, escuta-se então melhor, porque se escuta finalmente o que não se presta de maneira alguma a ser reformulado, recodificado, reformado. (…) As únicas palavras que restam então ao caminhante são palavras de nada, palavras que ele se pega dizendo (“vamos lá, vamos lá, vamos lá”, “é assim mesmo”, “é, pois é”, “pronto, pronto”), palavras comparáveis a guirlandas que a gente pendura nos segundos, palavras à toa, que se diz, mas não é sequer para dizer, e sim para marcar o silêncio com uma vibração adicional, para ouvir-se ressoando. (GROS: 2010, p.68) Sobretudo, concentrando-nos na natureza ambulante que o estudo de arte assume no todo da enciclopédia, chamando de certa forma essa totalidade para si e entrecruzando os mais variados assuntos e livros ao longo dos tópicos do polígrafo romano,… Nesse sentido, se entrevê uma alternativa pliniana para aquele topos da crítica antiga: nem exílio na natureza fora da cidade, nem simples retorno ao ambiente citadino, mas verdadeiro cosmopolitismo a relançar os artistas para o limite, para a passagem entre o fora e o dentro. Mas nenhuma glória artística existe senão para os que pintaram quadros em cavalete. Nesse particular a sabedoria da Antiguidade se mostra digna de muito respeito. Realmente, eles não embelezavam paredes apenas para seus proprietários e nem casas que iriam permanecer em um único lugar, sem condições de serem salvas de incêndios. Protógenes se contentava com um quiosque no seu pequeno jardim. Não havia nenhuma pintura em estuque na casa de Apeles. Ainda não se admitia colorir paredes inteiras; a arte deles todos voltava sua atenção para cidades e o pintor era patrimônio do mundo. (PLÍNIO, 1996: p.330; H.N.35.118)392 Dessarte, o trecho supracitado de Plínio toma contornos bem mais singulares e imprecisos. Pois já não se tratará apenas de inversão do exílio platônico fazendo os artistas darem meia volta da natureza para dentro das cidades (como de resto almejava a paradoxografia de Heráclito, estoico). É para o limite, pois, da cidade e da natureza, que Plínio lança os artistas: como vigias, como os responsáveis em dar a ver a naturalidade de todas as coisas. Alheio às idas e vindas estéticas que acompanhamos por todo o Capítulo 2, um pensar em específico permaneceu quase sempre ele mesmo exilado apesar de suas “Sed nulla gloria artificum est nisi qui tabulas pinxere. eo venerabilior antiquitatis prudentia apparet. non enim parietes excolebant dominis tantum nec domos uno in loco mansuras, quae ex incendiis rapi non possent. casa Protogenes contentus erat in hortulo suo; nulla in Apellis tectoriis pictura erat. nondum libebat parietes totos tinguere; omnium eorum ars urbibus excubabat, pictorque res communis terrarum erat.” 392 332 reconhecidas ressonâncias na nossa disciplina moderna: a alternativa apresentada pela dita história da arte da H.N. Antes um caminhar do que um caminho. Ao fim do discurso sobre a necessidade imperiosa de conservação e memória das obras de arte – necessidade que, de certa forma, caracteriza a própria história da arte de Plínio – destaca-se a inversão do afastamento platônico. A tradução inglesa vai até mais longe, caracterizando mesmo um gesto apotropaico: “their art was on the alert for the benefit of cities…” (PLÍNIO, 1967: p.349). Ou seja, depois de um longo percurso por toda a extensão do mundo natural, desde a cosmologia celeste, a H.N. encaminha o artista de volta para a cidade da mesma forma como ela própria se encaminha para a centralidade de Roma. Ou melhor, os artistas não estão de volta à cidade, mas voltados para ela, no limite entre o fora e o dentro. Eles assumem o que Platão mais temia com sua ontologia das Ideias metafísicas: o duplo sentido. Segundo o paralogismo psicológico do deslocamento, a relação proibitiva não é nunca de causa e efeito (não quero “a”, proíbo “a”), mas semântica entre significante (representação proibitiva), significado (representação deslocada do que não se quer) e o referente (o desejo real como representante recalcado). Pois ao cabo o que se quer com a proibição é tornar o proibido como o desejado (DELEUZE & GUATTARI: 2004, p.120). Como quando, por exemplo, são revogadas as leis que regem o trabalho e o desejo, que antes era de leis ainda mais benéficas ao trabalhador, passa a ser o de recuperar as leis perdidas que nem eram tão benéficas assim. Igualmente, quando se proíbem os artistas na cidade ideal, parece surgir deslocado o desejo de que os artistas fossem aceitos, fossem feitos cidadãos de bem. Quando, na verdade, o desejo de fato era o de livre circularem para dentro e para fora. Como o próprio P. Moreno recorda, em parte Zêuxis, Parrásio, Timantes e outros passam também a serem associados aos sofistas porque são atraídos a Atenas, mas não nunca se demoravam a conduzir uma vida móvel ou cosmopolita pela Grécia e seus domínios periféricos (in: BANDINELLI: 2000b, p.665). Iam e vinham, sem vinculação interna, intrínseca, ideativa de origem com cidadania ou com o poder local. Em outras palavras, é próprio da natureza artística o percorrer a superfície de todas as coisas, entre o dentro e o fora. Portanto, o impróprio é estar restrita a um único sentido. As pinturas de cavalete são, justamente, aquelas que se mantêm no meio-termo, no limite de seu duplo-sentido: as pinturas parietais jamais deixam seus aposentos sem nunca percorrer as coisas do mundo; as pinturas vasculares já se misturam por demais às coisas, se perdendo dentre seus usos, abandonando sua superficialidade impassível. Mas em um sentido ainda mais decisivo, metafísico se quisermos, estava em jogo para Platão a proibição desse duplo-sentido, dessa capacidade de afirmar o ser e o não-ser, o visto e 333 o não-visto, o perto e o longe, o lugar o vazio, tudo o que era absolutamente fatal à ontologia das Ideias e ao mundo representativo dos ícones. Mais do que mudança de direção, o contraste desse desfecho da H.N. de Plínio se faz na mudança de sentido ao reverter a vitalidade de Platão. Este havia relegado a arte a uma depressão clínica ao escolher precisamente a produção de uma cama (kliné) como exemplo de sua argumentação lógica contra a mimese (2000: p.295-296). Todavia, nesse sentido, o verbo latino excubo parece que foi cuidadosamente empregado por Plínio para caracterizar o seu gesto de lançamento em direção à cidade, pois significa “manter vigia, alerta” – provindo de ex-cubo: “saído do repouso, ou do leito” (até mesmo de morte). Nessa nova vitalidade cabe ao artista o retirar as coisas da sua letargia, da sua declinação. Da linguagem corrente e barulhenta rumo ao silêncio providencial dos signos e dos vultos nos operativos artísticos. O que tendo em vista o lema máximo de Plínio – uita uigilia est (H.N., Praef.18) – deixa o artista em ótima posição na H.N. e em posição estratégica em favor da cidade. Conforme mesmo o seu duplo-sentido de caminhada, é da simulação da própria natureza pensar o acontecimento do morrer para operar novas vitalidades.393 E tudo isso, para terminar, por sermos nós mesmos apenas uma imagem, uma imago, essa efígie genealógica e funerária que os romanos dispunham nas paredes de seus atria, em pequenos armários alternadamente abertos e fechados, acima da porta. (DIDIHUBERMAN: 2010, p.225) Ou não. Mais do que imago, para nós é tempo de uultus. Enfim, para dar término a esse capítulo, ele mesmo sem fundo, iremos ainda ao vulto do morrer que percorre essa história da arte antes da História da Arte, passando por uma implicação ética. 4.6 – Aceitação Pensar a luxuria na inversão da dignitas, pelo seu sentido mais estético do que moral, nos permite acompanhar pesquisas recentes que verificaram que a mera exposição a representações de artigos de luxo é capaz de afetar a cognição e a capacidade de tomada de decisões, alterando a forma como fazemos escolhas (CHUA & ZOU: 2009).394 Porém, o mais 393 Por falta de tempo de trabalho e competência técnica ou intelectual para um verdadeiro comentário ou desenvolvimento textual, deixemos apenas anotado que Lacan, dentre outras coisas brilhantes, pensa a pulsão de morte com Sade a partir de uma digressão (2008: pp.251-252), e Deleuze com Guattari a pensaram como síntese disjuntiva de produção, ou superfície de registro (2004: pp.14-21). 394 Dois elementos são importantes de destacar. Em primeiro lugar, nos parece que aquilo que é definido pelo estudo como definitivo para artigos de luxo é absolutamente compatível com o caracterizado pelos estudos sobre a H.N., a saber: refinamentos progressivos de necessidades básicas humanas e aumento de prazer para além de 334 importante aqui é o como e em que sentido. Pois, se aquilo que chamamos experiência estética apresenta ativações cerebrais semelhantes para a observação de obras de arte tanto quanto para uma pessoa por quem nos sentimos atraídos ou o cheiro de um bolo que gostamos muito,395 o que é então particular à exposição ao luxo?396 Em resumo, o que se aferiu é que ela ativa precisamente o conceito de autointeresse. Portanto, afeta a cognição no sentido de uma visão focada do mundo a partir de si, a partir da concretização dos próprios desejos independente do que aconteça ou resulte para os demais.397 Porém, e mais importante, qual si? Nessa resposta reside todo o dilema e nosso trabalho. No contexto dos desdobramentos da crise financeira de 2008, os autores terminam por sugerir que o estudo poderia ajudar a entender o porquê de alguns “atores” [actors] sociais continuarem a manifestar seus interesses pessoais acima dos demais (ibid: p. 10). Com efeito, estes testes behavioristas permitiam concluir na direção de comportamentos etiquetados configurados em papéis sociais bem definidos e roteirizados. Isto é, sem mitigar qualquer culpa e responsabilidade pelos malfeitos desses atores, o estudo propunha a possibilidade de soluções mais eficazes contra os abusos econômicos através de interpretações mais aprofundadas nas motivações pessoais desses comportamentos. De fato, a partir da constatação de que uma visão em túnel é formada pelos próprios ambientes e círculos sociais era razoável compreender que esse entorno de luxo não apenas alterava as capacidades de tomada de decisão junto ao aumento significativo do autointeresse como também convertia os sujeitos envolvidos em encenações sem distinção entre ator e personagem. O curioso é que tudo isso parece ter mais relação com o problema das máscaras de cera em tempos da luxuria do que se supunha. Basta atentarmos para os casos mais proeminentes de que temos notícia dos grandes rituais fúnebres no tempo de Plínio e da sua H.N. Porque se as máscaras continuavam a ser produzidas com igual técnica elas já tinham perdido totalmente o seu sentido dignificante. qualquer funcionalidade. O que, portanto, se aplica desde as pedras nobres empregadas para decorar as paredes dos quartos, e também suas imitações pictóricas, até os próprios retratos sem discriminação e mais preocupados em exibir os ganhos e as riquezas do proprietário; passando ainda pelo próprio caráter orgiástico envolvido na luxúria corporal, o qual se caracterizaria exatamente pelos “refinamentos progressivos” e pelo “prazer além de qualquer funcionalidade”. Em segundo lugar, vale destacar que os experimentos não foram feitos com os próprios artigos de luxo, mas através de representações e fotografias destes (viewed pictures). Os próprios autores comentam que, nessas condições, parte do processo era pedir que os participantes se imaginassem eles mesmos como os protagonistas de cada um dos cenários que os testes propunham. Como veremos isso é elemento decisivo para o entendimento dos resultados, que os autores consideraram “conservadores” supondo que com artigos e premiações reais os resultados seriam ainda mais agravados (ibid: nota 1, p.6). 395 O que não seria antes uma descoberta proustiana, e não só pelo bolo (madeleine) mas também pelos amores? 396 Cf. Claudia Feitosa-Santana, professora doutora em neurociências e comportamento, em: https://youtu.be/8qPFF9wIXUA, acessado em: dez/2017. 397 Novamente, ainda que não necessariamente partindo da motivação de prejudicar os demais. 335 Nero é por si só um resumo de tudo aquilo a que Plínio se opunha e, em especial, por tudo aquilo que Nero representava no seu afã artístico. Na luxuria dos materiais sua Domus Aurea era o exemplo mais absurdo existente (H.N.36.111). Não apenas o ouro empregado que lhe dava nome era causa de espanto ao polígrafo, mas tudo desde o seu tamanho colossal até os seus detalhes decorativos que conjugavam carregamentos de materiais preciosos com as imitações artificiosas. “Quando esse palácio foi terminado, ao consagrá-lo, Nero se contentou em exprimir a sua satisfação, declarando ‘que afinal começava a morar como um homem’.” (SUETÔNIO: 2004, p.300) Também se conta que nunca usou a mesma roupa duas vezes (ibid, p. 299). Na luxuria dos corpos sua loucura tornou-se célebre desde então. Ultrapassando em absoluto os divertimentos orgiásticos398 e os jogos atléticos399 até as trocas e confusões corporais impostas e de ordem física: castrou um jovem e o converteu na sua esposa morta, Popeia Sabina.400 Enfim, no que concerne a luxuria da semelhança dois exemplos que se encontravam na Domus Aurea se destacam: o Colosso de Nero, uma estátua de mais de 30 metros de altura que o representava como o deus Hélio, isto é, misturando o corpo e os atributos do deus com o rosto do imperador;401 e as famosas grotescas que decoravam algumas paredes, justapondo o heterogêneo em vez de estabelecer passagens em pontos singulares. Porém, o caso mais decisivo são suas interpretações teatrais. Sabemos tanto por Suetônio quanto por Dião Cássio, que ao se apresentar ele já não vestia apenas as máscaras teatrais tradicionais, mas também máscaras do seu próprio rosto nas peças em que escolhia interpretar passagens com as quais se identificava pessoalmente ou com trechos de suas fábulas. As personagens que figuram nas duas listas de registro da preferência de Nero (SUETÔNIO: p.293; D. CASSIO: LXVIII.9) são a loucura de Orestes depois de ter 398 Dentre os quais: deflorar uma vestal, cometer incesto, insinuações de zoofilia, e interpretações pessoais de virgens sendo violentadas (ibid, pp. 298 e 299). 399 Ibid: pp. 286-287. Plínio também menciona que durante um espetáculo de gladiadores na terra natal de Nero, Âncio, ao seu gosto e estímulo retratos “veristas” [veris imaginibus] de todos os gladiadores foram dispostos nos pórticos de entrada. (H.N.35.52) 400 Suetônio narra que eles tiveram ritos esponsálicos, com o jovem Esporo paramentado como imperatriz (ibidem). Ele também afirma que Sabina teria morrido enquanto estava grávida do segundo filho com Nero. A causa teriam sido chutes desferidos por Nero na sua barriga em razão de um ataque de fúria durante uma discussão entre eles. (ibid: p. 306) Já Dião Cássio conta que Nero teria pulado sobre sua barriga, mas admite que não tinha certeza da intencionalidade do imperador. Além disso, ele registra os extremos de luxúria empregados no funeral dela (Hist. Rom.LXII.27). Sobre Esporo ele detalha que este tinha uma aparência física muito próxima da de Sabina, e que Nero o teria chamado pelo nome da esposa morta (ibid: LXIII.13). 401 A título de comparação, provavelmente era maior do que o Colosso de Rodes, e teria um tamanho aproximado ao do Cristo Redentor. Plínio chama de uma loucura do seu tempo [nostrae aetatis insaniam] um outro Colosso de Nero, em pintura. Possivelmente, um preparativo ou estudo em tamanho real do Colosso escultórico da autoria de Zenodoro. Plínio diz que depois de pronto ele foi atingido por um raio e destruído pelo fogo (H.N.35.51). Em outra passagem, referente ao luxo crescente das casas romanas até o ápice com a Domus Aurea, o polígrafo vaticina que o fogo é certamente punição sobre nós em decorrência do luxo (36.109-111). 336 assassinado a própria mãe,402 o Édipo Cego,403 e o Hércules tomado em remorsos pelo assassinato da esposa.404 Ambos autores não dizem literalmente se tratarem de cera uultus, porém dois indicativos são muito fortes. O primeiro é a notícia de que durante uma interpretação de Nero no Hércules Furioso405 um soldado invadiu a cena no desejo de socorrer o imperador acorrentado. Cássio diz apenas que o soldado, ao vê-lo em correntes, correu para libertá-lo (LXIII.10). Já Suetônio reforça o realismo preciso da máscara tal qual o rosto do imperador através de um simples detalhe: o soldado estava de guarda na entrada do teatro (ibid), portanto, não estava inteiramente ciente da dramaturgia e não podia ver diferença entre máscara e rosto. O segundo indicativo é que ambos historiadores também registraram que não só Nero usava sua máscara, mas a esposa que estivesse com ele no momento de uma peça também usava uma máscara pessoal. No entanto, independente da consorte o rosto era sempre o de Popeia Sabina, a amada assassinada, o que talvez signifique uma máscara realista realizada logo após a sua morte. Nesse caso, duplamente se revela o quanto o sentido ritualístico das máscaras de cera já havia se corrompido totalmente conforme a régua pliniana. Elas se tornaram tão somente uma representação realista do rosto retratado,406 e se já não eram produzidas em conformidade com um gesto de mundo também não tinha mais sentido retratarem apenas os homens. Mas o grave é que assim Nero se torna o ator absolutamente identificado ao seu personagem, sem distância, tornando a arte questão de identificação pessoal com suas narrativas. Em resumo, ele se torna um ator ocupando a vaga do imperador e atuando como ator. Em vez de ser ele próprio, ele passa a ser uma mera personagem, passa ele a imitar as obras de arte (como quando doura os próprios cabelos como certa estátua). 407 É nessas circunstâncias teatrais que ele revelará por fim que não só pode ser perfeitamente deposto mas, conforme bem frisou Tácito (Histórias I.4), entregando o segredo de que o império é mesmo uma questão de atuação e não de linhagem e que, portanto, um imperador pode ser feito até mesmo fora de Roma. Morrerá vestido de plebeu, em casa de plebeu, 402 “não conseguiu então, nem depois, sufocar os remorsos do seu crime, diversas vezes confessou que o espectro de sua mãe o perseguia com os chicotes e as tochas ardentes das Fúrias.” (SUETÔNIO: 2004, p.304) 403 Como se tivesse lido no Senado a passagem do seu discurso contra Vindex, no qual se lia “que os criminosos seriam punidos e teriam, sem demora, um fim digno de suas culpas”, todos exclamavam: “Tu o farás, Augusto!”. Pode-se observar também que a última peça que cantou em público se intitulava Édipo Exilado e que terminava com o seguinte verso: “Todos me forçam a morrer: esposa, mãe e pai”. (ibid: p. 316) 404 … acreditava imitar também as ações de Hércules (ibid: p. 320). Sobre seu sofrimento pela morte da esposa, Dião Cássio é mais detalhista (LXII.28). 405 Peça trágica de autoria de Sêneca e com teor estoico. 406 Na prática, o sentido propriamente reclamado e renascido por Vasari. 407 A comparação com o imperador e filósofo estoico Marco Aurélio não poderia ser mais esclarecedora. “O seu próprio lugar, a sua própria matéria, a sua própria arte é o quanto lhe basta.” (2001: 84) 337 agradecendo a punhada de um dos seus e repetindo enquanto chorava: “Que grande artista vai morrer comigo!” (ibid: 2004, p. 318). O caso de Vespasiano é todo ele mais indireto. Porque além de tudo o mais que mencionaremos a seguir, ele obviamente não se encaixa naquela vertigem da subjetivação tomada pelos artigos de luxo. Porém, numa outra vertigem que o estudo supracitado não confunde com a luxúria, mas que Plínio sim: a do poder ou dinheiro. A afecção cognitiva que lhe corresponde é a autossuficiência, tendo por consequência a tendência de ignorar os outros enquanto reduz a sua dependência deles. Essa autoconfiança e independência adquiridas ativam uma diminuição mensurável da empatia pelo entorno social – ainda que não necessariamente desenvolvendo antipatia. Militar de carreira, o imperador sem linhagem representou por algum tempo a esperança de mudança radical da relação de poder no Império. O próprio Plínio, em seu Prefácio, dá a entender participar da onda de expectativa em favor da retomada dos valores a que ele consagra sua H.N., os valores da sapientia que caracterizaria o melhor da romanidade. Ele mesmo e sua empresa literária são componentes francamente beneficiados com a mudança política. Já Tácito afirma que Vespasiano era dotado de costume severo, e pelo modo de viver e pela sua educação um “homem dos antigos” (Anais 55.4). Em círculos mais restritos se chegou a imaginar que esse ar fresco de um popular no mais alto cargo poderia, paulatinamente, favorecer a própria república a retornar. Isso acabou se mostrando completamente falso, mas a história desse imaginário é o que nos importa aqui. Pois, no âmbito da representação artística alguns valores republicanos são de fato retomados, porém, como já atestava Plínio, em propósitos bastante modificados. Trata-se, provavelmente, do período mais realista ou verista da arte romana, aquele mesmo que servirá de fundamento arruinado a ser renascido por Vasari segundo uma imitazione della natura. A própria retratística de Vespasiano dá prova desse estilo sem idealismo.408 E os retratos dele feitos pelos historiadores seguem no mesmo sentido. Segundo Suetônio, tinha a constituição física quadrangular (provavelmente, baixo e largo), “semblante de quem está se esforçando”,409 organizava seu dia imperial com simplicidade e recebia a todos, além de ser “escarnecedor” e rude nas conversas (ibid: pp.392-393). Além disso, tinha fama de sovina (ibidem). No entanto, seu contraste com Nero não poderia ser melhor exemplificado pelo encontro entre os dois que marcaria Vespasiano com um exílio: durante 408 Ver, por exemplo, o busto da Carlsberg Glyptotek, de Copenhagen, ou o do Palazzo Massimo alle Terme, de Roma. 409 “… em função disso a frase de um gracejador a quem ele pedia insistentemente uma pilhéria à própria custa: “Eu a farei quando tiveres cessado de aliviar teu ventre” (ibid: p. 392). 338 uma apresentação artística do imperador Nero, ele teria dormido (ibid: 2004, p. 381).410 Dentre suas ações políticas mais célebres no âmbito cultural figura o projeto e construção do grande Coliseu de Roma, local para abrigar e entreter grandes massas populares, em substituição a Domus Aurea, sem dúvida o símbolo mais eloquente da luxúria neroniana e totalmente voltado para os prazeres privados dos convivas do imperador. Todavia, no que se refere em específico ao tema da cera uultus, o fato marcante é que no ritual fúnebre de Vespasiano (o único a que Plínio assistiu em vida) foi um ator profissional e não um familiar quem vestiu a sua máscara (ibid: p. 392). Na leitura de Plínio subentende-se que isso enquanto elemento ritualístico cabia a um familiar (35.6), mas Políbio é ainda mais enfático e direto afirmando que o parente que representaria a máscara no funeral era escolhido por uma semelhança de forma geral com a do morto (6.53). Portanto, algo de igualmente estranho ocorre com Vespasiano, porém de maneira diferente de Nero. Ele não se reconhecia em personagens teatrais, nem de forma alguma jamais sequer se propôs a interpretar um papel ou fazer ele mesmo uma apresentação artística. Vespasiano não se compreendia enquanto ator identificado em um papel, mas enquanto o criador ou o vivenciador de um papel, de uma nova figura pública necessária e que deveria ser desempenhado mesmo após a sua morte. Esses casos fazem sistema. E a estranheza que eles suscitaram em romanos antigos como Plínio dá o tom da dissemelhança reclamada entre a similitudo naturae e esse verismo na direção de uma pseudo imitazione della natura. O naturalismo com Nero serve para confundi-lo com os heróis e os deuses, e introduzir os seus crimes no rol dos terríveis acontecimentos trágicos. Para elevá-lo acima dele, em um avesso de esvaziamento de sua própria subjetivação. O naturalismo com Vespasiano serve sobretudo, como bem redige o biógrafo, para não dissimular nada; ao contrário, para glorificar sua origem humilde (ibid: p.388). Assim, condensando e materializando até positivar sua subjetivação. Aquele toma o teatro como modelo de mundo, este toma o mundo como o modelo para o teatro. Derrotado, aparentemente, por aqueles esforços do seu semblante, ele insistirá em seguir de pé mesmo na hora da morte (ibid: p.395). Ao passo que Nero seguirá inspirando outros a viverem em personagens,411 e até mesmo, depois de morto, a viverem o seu personagem (ibid: p.322). Embora Suetônio registre também que “o talento e as artes foram protegidos por ele” (ibid: p. 391). O jovem Esporo, por exemplo, seguirá como Popea mesmo após a morte de Nero e apesar de sequenciais desventuras. Até quando decidem lançá-lo a interpretar o papel de Prosérpina numa peça durante os jogos. Ele preferirá o suicídio. Mas a questão em vida se faz ainda mais cênica, pois tratava-se da história de um governante no submundo forçando uma jovem a tornar-se sua noiva. Afinal, Esporo/Popea havia presenteado do imperador/marido com um anel de mesmo tema pouco antes dos infortúnios que lhe sobrevieram. Na época, foi 410 411 339 Como dantes, o sentido do naturalismo afirmado pela máscara de cera na H.N. encontra-se a meio caminho destes polos, vez mais como diferenciante dos seus limites. Atentando direto para aquilo que envolvia o realismo das máscaras nos rituais fúnebres, Slater (1996, pp.39-40) concluiu que o ultraje neroniano foi redimensionado justamente porque, de um lado, o tributo perverso à imagem de Sabina tinha por último resultado aquele “trazer à mente” no público a sua própria culpa na morte, e, por outro lado, usar a sua própria máscara era entendido como prenúncio da sua destruição (até mesmo enquanto artista). To wear a mask of oneself is to anticipate one's own death, the transition by which one becomes oneself an item in the ancestral portrait gallery (ibidem).412 Esse apontamento nos parece crucial, senão mesmo mortal. Pois o que ambas as encenações abandonam é, claro, menos o naturalismo e a técnica e mais a sua relação com o morrer. Sua relação com o não-visto. A diferença está no querer e se preparar para a morte como elemento artístico num operativo, ao passo nesse naturalismo teatral o que se quer é se preparar para não morrer, para sobreviver de alguma forma. Se Nero esvazia a morte ao desempenhá-la um sem número de vezes no palco, Vespasiano a preenche de si ao se fazer continuar em atuação profissional mesmo após ter morrido. Sendo uma questão de subjetivação, ou ela se configurará como preenchimento de tipos ou como um próprio tipo “preenchente”. De uma forma e de outra o naturalismo deste período estará amparado no visto. Mas as máscaras de cera enquanto modelo operativo do artístico no mundo da H.N. estão amparadas no não-visto, menos porque deem a ver em ausência a res gestae e mais porque essa res gestae está compreendida por uma experiência com o morrer. Pela fragilidade mesma do material, por sua própria impossibilidade de ser consumada, por seu específico atributo ritualístico, essas máscaras tinham em si a marca do experimental. Sem qualquer intuito de previsão elas exprimiam no rosto do romano ascendente à vida pública os traços do seu nãoser. A bem-dizer elas eram a experiência de amoldar a sua própria morte, de prepará-la, de operá-la, de reconhecer-se nela, e de querê-la. De se fazer para ela no encaminhar-se para ela. Afinal, diz Plínio, a morte é a grande distribuidora de signos [innumerabilia sint mortis signa, salutis securitatisque nulla sunt] (H.N.7.171). Em vez de puro documento (codice), esse monumento não era o registro de um cargo alcançado, mas o registro dos signos de passagem de toda uma vida privada e de toda uma vida pública. Esse vulto encarna em máscaras elas mesmas atiradas ao morrer: passíveis não só da desintegração como da condenação por tomado como sinal de mau agouro. Consequentemente, após a morte de Nero o suicídio de Esporo seguia a encarnar o mesmo rapto, preferindo a ação literal a teatral. 412 “Usar uma máscara de si mesmo é antecipar a própria morte, a transição pela qual alguém se torna um item na galeria de retratos ancestral.” (trad. livre) 340 damnatio. E importa menos perguntar o por quê dessa damnatio memoriae ou especular o uso político devido e indevido de cada caso, do que acompanhar as implicações de seu operativo. Todavia, não queremos com isso de forma alguma analisar e enquadrar o uultus ao modo do ser-para-a-morte conforme proferia Heidegger. E não por nenhuma rejeição ou dificuldade ideológica, muito menos por temor ao anacronismo. Mas por certa incompatibilidade mesmo. É que nesse caso da história da arte da H.N. não temos nenhum quadro torto na parede às nossas costas que possamos, feito Dasein, comprovar a existência da enunciação verdadeira adequada apenas nos virando. Isto é, a fenomenologia existencial não garante aqui nenhuma relação autêntica com a morte, tal qual encarar o uultus não nos garante nenhuma relação autêntica com a imagem.413 Por mais estranho que pareça, o caso é que Plínio nos afirma que a morte não é certa. Na verdade, nada o é senão uma única coisa. Justamente, enquanto sustenta o caráter aberto da mortalidade atacando as crenças e a deificação da fortuna, Plínio conclui declarando que “dentre todas essas coisas apenas uma é certa, a de que nada certo existe” (H.N.2.22-25). De fato, fica difícil imaginar outra afirmação mais abrangente da abertura que organiza a mortalidade humana. Mas, como se não fosse bastante, o polígrafo o pôde exemplificar lembrando o caso do ex-cônsul Aviola: ele “voltou a vida” já na pira funerária e, sendo muito tarde para controlar o fogo, foi “queimado vivo” (H.N.7.173). A retórica pliniana é deveras curiosa evitando algo como “enfim, morreu” ou “morreu novamente”. Fica como se ele “apenas” tivesse deixado-de-viver, como se tivesse perdido a sua morte. Diz que o mesmo aconteceu a Lucio Lamia, e que Gaio Elio Tuberone foi levado da pira de volta a casa. Ao que ele constata sem ironia mas com certo assombro que “o caso do ser humano é tal que não pode confiar nem mesmo na morte” (ibidem). Portanto, não está prevista a “relação existencial autêntica de um indivíduo com sua morte”, como quereria Heidegger. E que fique muito claro, não por nenhuma vida além, nenhuma garantia pós-morte. Plínio não só desacredita histórias com um quê de mortos-vivos e predições, mas refuta categoricamente 413 Antes de sua famosa análise existenciária da morte na Segunda Seção de Ser e Tempo, Heidegger terminou a seção anterior revisando a questão da relação possível entre o ser e o conhecimento da verdade (problema que o Sócrates platônico deixa irresolvido no Teeteto). Em franca revisão do encaminhamento da questão pela ontologia cartesiana, considerada insuficiente, o filósofo alemão dirá que o erro da questão está em pensá-la na relação entre o Dasein e o mundo como cognitiva ou representativa. Sendo a relação existencial, o mundo é o modo de ser do Dasein, modo de estar-aí, e não coisa ou substância que ele faz contato. É para exemplificá-lo que Heidegger supõe o caso de alguém que se vira e comprova a verdade de sua enunciação sobre um quadro ao percebê-lo torto (2012: pp.603-605), isto é, desfazendo qualquer importância representativa do quadro ao mesmo tempo em que afirma o sentido existencial da comprovação em que o enunciado “faz ver” o ente em seu serdescoberto. Essa explicação e exemplo serão importantes para a famosa análise que lhes sucede posto que lança as bases do argumento heideggeriano contra a morte só empiricamente certa (a morte imprópria ou como “deixar-de-viver”) em favor da morte enquanto parte da estrutura existencial do estar-aí (ser-para-a-mortepróprio). 341 outro plano de existência. Ele se vale de grandes momentos de sua retórica para combater e implodir as noções de imortalidade. De um lado, renega completamente a vida após a morte, não só do corpo como dos pensamentos e da alma. A vida eterna é fruto apenas da vaidade humana. O culto de fantasmas é para ele absurdo, e também a transfiguração e o retorno à vida (7.188-190). Tudo isso não passa de ficções infantis.414 Contudo, não se trata de descrença revoltada nem de apenas conteúdo estoico atualizado (como adiante discutiremos), mas de uma exigência, para ele, de que tudo precise retornar ao seu estado de insignificância (propriamente textual) como era anterior ao nascimento. É nesse sentido que ele lamenta que toda essa vaidade tire de vista que a morte é a maior benção (7.190). A questão é que a abertura da morte se torna tão aberta a ponto de até mesmo se tornar incerta. No mundo próprio da H.N., a morte é um vulto de natureza anedótica, isto é, como não-dado dentre as coisas existentes. Se só existe a existência, como alega o polígrafo, a morte é um puro acontecimento, modo ser, que se dá na superfície das coisas. Na verdade, se torna o acontecimento matriz – e já não seria a hora de revermos aquela definição de “imagem-matriz”? Daí a grande distribuidora de signos: aquela que só faz passagens de um modo a outro, de uma proposição à outra heterogênea por meio da morte da significação individual de ambas e da revelação de um signo que as liga. Por essa lógica é mais do que interessante observar que sua antropologia não termina naquele ponto terminal da vida, e exatamente porque a morte se torna um ponto interminável. No espaço aberto pela morte surgem as grandes invenções da vida humana, ou melhor, é nesse espaço que sobrevém aquilo que se fez vir na vida (in vita inuenerit; cf. Livro 1). Segue-se então mais uma lista pliniana passando pela criação de emblemas, a descoberta da farinha, as leis, muros e torres, processos adivinhatórios, jogos esportivos, navegação e, finalmente, instrumentos musicais e a própria da pintura! O trecho é realmente de uma tal inventividade que o polígrafo não se viu constrangido em atribuir a figuras heroicas ou mitológicas a autoria de várias dessas descobertas – portanto, como bem observava Calvino,415 como se tudo isso que ele mesmo desacredita fosse importante e memorável simplesmente por ser já mais um traço das nossas invenções.416 É nessa morte, nesse outro Nem perde a chance de ridicularizar Demócrito: “Similar also is the vanity about preserving men's bodies, and about Democritus's promise of our coming to life again — who did not come to life again himself! Plague take it, what is this mad idea that life is renewed by death?” (ibidem) 415 “Com essa nota desconsolada Plínio poderia concluir seu trabalho, mas prefere acrescentar uma lista de invenções e descobertas, lendárias e históricas. (…) Plínio admite implicitamente que as contribuições do homem à natureza passam também elas a fazer parte da natureza humana. Daí até estabelecer que a verdadeira natureza do homem é a cultura só existe um passo. Mas Plínio, que não conhece generalizações, procura o específico humano em invenções e costumes que possam ser considerados universais.” (2013, p.52) 416 Na verdade, já repetindo um gesto explicativo de Diógenes de Babilônia. (cf. WOODWARD: 2009, pp.57-72) 414 342 morrer, que a humanidade, enfim, alcança sua natureza: uma natureza criada, cultural, naturalmente de outra ordem. Logo, se a morte é ela mesma incerta e também a maior benção, dirá Plínio que a maior felicidade [summa vitae felicitas] é conseguir ou conquistar o morrer em meio aos seus afazeres, isto é, uma morte repentina enquanto se vivia a vida, a qual chamamos “natural” – realça o polígrafo (H.N.7.180). Como não-dado a morte é o que há por fazer. É preciso, pois, nesse sentido querer o morrer, operá-lo. Mas como, se não se pode contar com a fortuna ou com deuses? Como operar o não-dado, como fazer o interminável naturalmente? Como caminhar com passo firme rumo ao que não se deixa atribuir uma direção? (BLANCHOT: 1987, p.103) A maneira que encontramos na H.N. não é outra senão a experiência artística com o não-visto: fazendo a passagem da total indeterminação para o extremo determinado. Sendo ela mesma vulto ou signo, nunca poderá ser consumada ou realizada senão no seu espaço de arte. Caminhando por aí, passamos pelo “fato estranho e digno de memória” de que as obras interrompidas pela morte dos artistas no momento em que eram feitas são, em particular, mais admiráveis do que as obras que eles terminaram (H.N.35.145). Sabemos que a partir do tardo helenismo se afirma certo gosto pelo non finito das obras, paralela a uma produção pictórica um tanto “impressionista”, mas a explicação apresentado pelo polígrafo é de outra natureza. Segundo ele, nestas obras não terminadas, e até mesmo intermináveis, ficam à superfície o que de outra maneira se esconde: os próprios pensamentos envolvidos na obra. Além do que, duas coisas mais precisam ser consideradas. A primeira é que no Prefácio da enciclopédia, enquanto justifica o seu próprio título pouco agradável, Plínio comenta que preferia ser compreendido no sentido daqueles fundadores da pintura e da escultura que assinavam de forma provisória, mesmo suas obrasprimas [absoluta opera] (Praef.26-27). Isto é, com verbos no imperfeito do tipo: “Fazia Apeles” ou “Fazia Policleto”. “Como se a arte deles, segue o enciclopedista, fosse alguma coisa sempre em processo e non finita, de modo que, quando em face de juízos disparatados, o artista pudesse ter deixado uma linha de retratação como se, não tivesse sido interrompido pela morte, ele desejaria retornar para corrigir qualquer defeito. Era um gesto de plena reserva o de assinar toda obra como se fosse a última e como se ao seu término ele tivesse sido afastado pelo destino.” (ibidem, trad. nossa)417 Dessarte, não se tratava apenas de um gosto ou 417 (Trad. nossa a partir das versões em inglês e italiano) No orginal: et ne in totum videar Graecos insectari, ex illis nos velim intellegi pingendi fingendique conditoribus quos in libellis his invenies absoluta opera, et illa quoque quae mirando non satiamur, pendenti titulo inscripsisse, ut Apelles faciebat aut Polyclitus, tamquam inchoata semper arte et inperfecta, ut contra iudiciorum varietates superesset artifici regressus ad veniam, velut 343 moda, mas de um entendimento do sentido do artístico como o interminável que, contudo, devia se apresentar no seu termo (portanto, grafado não pelo infinitivo verbal, mas pelo imperfeito). A segunda é que isso reforça a ideia, que era corrente, de que o artista é alguém que, a despeito do interminável que caracteriza seu projeto, toma toda a vida como constante e infatigável busca pela sua obra. E que, portanto, o momento de sua morte é aquele que constitui o clímax dessa busca. A última obra é assim entendida como a melhor no sentido do registro monumental de uma vida criativa, o registro mais determinado da maior indeterminação. Assim, suprema opera no trecho referido tem um duplo sentido retórico como “a última obra” e como “a mais importante”. Como seu ponto máximo, a morte já não é o desaparecimento pessoal do artista, mas a sua ampliação criativa, o acontecimento da verdade secreta de sua arte. Nesse trecho, dos quatro pintores mencionados só um era tardo helenista (Timomaco), os outros eram do século IV a.C. (Aristides, o Jovem; Nicômaco; e Apeles). Isso pode, por um lado, reforçar a relevância do trabalho em linha que haveria no esboço da parte inacabada para esse sentido de relíquia. Mas, por outro lado, admite que a pintura de diferente estilo, mais colorista em vez de linear, também encontrava reconhecimento nesse non finito.418 De toda forma, o que parece oportuno de comentar é a citação à Apeles de Cós, simplesmente caracterizado na enciclopédia como aquele que “superou a todos os pintores que o precederam e os que o seguiram”; “Sozinho, ele contribuiu para o progresso da pintura mais do que todos os demais, tendo também publicado livros que contém ensinamentos sobre ela.” (ibid: 1996, p. 325; H.N.35.79). Não surpreende então que, no meio de tudo quanto temos percorrido, apenas a sua morte enquanto pintava tenha merecido um comentário à parte nessa história da arte. Segundo o polígrafo (35.91-92), Apeles pintou uma Vênus Anadiômena (“Afrodite saindo do mar”) muito elogiada em versos e honrada mais tarde por imperadores. E quando sua parte inferior ficou danificada, não pôde encontrar ninguém para o restauro, o que serviu para glorificar ainda mais o artista. Plínio então sobrepõe planos temporais e conta que ela terminou se deteriorando totalmente e sendo substituída por – ninguém menos – Nero. Mas, emendaturo quicquid de sideraretur si non esset interceptus. quare plenum verecundiae illud est quod omnia opera tamquam novissima inscripsere et tamquam singulis fato adempti. tria non amphus, ut opinor, absolute traduntur inscripta; Ille fecit (quae suis locis reddam); quo apparuit summam artis securitatem auctori placuisse, et ob id magna invidia fuere omnia ea. 418 Ademais, os temas descritos por Plínio, todos referentes à passagens, poderiam sugerir uma participação propriamente poética da morte nesses quadros inacabados. O melhor exemplo seriam os Dioscuros de Nicômaco se, tendo em visto o mito específico, o pintor tivesse terminado a figura de apenas um dos gêmeos, isto é, os irmãos seguiriam se desencontrando enquanto o quadro reafirmaria a imortalidade de um e a mortalidade do outro. 344 para além dessa, Apeles já havia começado uma segunda obra a fim de superar a primeira. Foi então que a Morte, invejosa, lhe “tirou a mão do quadro” – logo ele, quem tão bem sabia o fazê-lo (35.79) – e não foi possível encontrar ninguém que a pudesse terminar. Portanto, literalmente, a obra suprema de sua carreira era uma obra interminável.419 Embora não tenha a teleologia vasariana, Apeles é sem dúvida alguma o ponto mais relevante da historiografia pliniana – provavelmente, por ser o ponto que mais pontos relaciona em si. Ele é, inclusive, o segundo autor estrangeiro citado na bibliografia do Livro 35. Mas para além das qualificações que em geral o caracterizam (discípulo de Pânfilo, retratista de Alexandre…) dele também é dito que: era quem sabia quando tirar a mão do quadro (manum de tabula, HN.35.79), isto é, quase no mesmo sentido com que a morte precisava intervir em outros artistas; ele também não podia passar um só dia sem exercitar sua arte (o que se tornou proverbial, 35.84); dentre suas obras haviam retratos de pessoas em ponto de morte (35.90); e é dito que ele era capaz de pintar até mesmo o que não se podia pintar (35.96). Em suma, Apeles é, como de resto, o melhor ou mais bem-acabado exemplo da necessidade quase hercúlea envolvida no trabalho artístico, na artesania mesma de não só apreender o signo em uma phantasia, o vulto em uma imagem, mas de fazê-lo apreensível, isto é, operável ou posto em obra. Trata-se de trabalhar simplesmente por trabalhar, sem estar a fim de obter algo posteriormente, sem estar em vistas de. Essa assunção do interminável no exercício do terminável é que religa o artístico ao ofício do estoico antigo que assumia de saída que o sábio não é encontrável. Todavia, por sua lógica singular, sendo ele um inexistente pode acontecer ou incidir como um modo de ser, o que reúne a eficácia pragmática dessa figura para a pedagogia da escola com a necessidade de se exercitar na sua arte, na sua tekhné. “A virtude, ou excelência, estóica não está em atingir o fim mas em exercitar-se para isso. (…) O ‘exercitar-se para’ já é, em si e por si mesmo, um estado que predispõe à virtude.” (GAZOLLA: 1999, p.127) É nesse sentido que Cícero redige aquela passagem tão bela comparando a arte estoica com o arqueiro cujo propósito é, literalmente, “co-linear” o nãovisto a fim de fazer passar por ele o seu fim em vez de querer um ponto de chegada, de obter uma finalidade: … suponhamos que se tenha a intenção de atingir [collineare] um alvo com um dardo ou uma flecha; é nesse sentido que falamos de um termo supremo nos bens. Nessa comparação, o atirador deve fazer tudo para atingir o fim [collineet]; e, no entanto, tudo fazer para 419 Talvez a pintura antiga perdida mais visualmente celebrada, e cultuada. Mais tarde reproduzida muitas outras vezes, sendo a versão de Botticelli, de 1486, a mais destacada. 345 atingi-lo [collineet], eis algo de seu fim supremo; é assim que falamos do soberano bem na vida; alcançar o fim, eis o que há escolher de preferência, mas não a obter. (CÍCERO: De Finibus III.VI.22; apud: ibidem)420 Bom, mas se foi M. Blanchot quem antes já havia notado e examinado, de forma absolutamente brilhante, que “a morte está desde o começo em relação com o movimento, tão difícil de esclarecer, da experiência artística.” (1987, p.121)421 foi ele também quem registrou no mesmo texto o quanto o modelo suicidário tornado exemplar pelos estoicos romanos não dá conta dessa dimensão do morrer (ibid: pp. 97-100). Porque a serenidade estoica expressaria uma “soberania indiferente”, morrendo de costas para a morte em vez de em sua própria vida. A impassibilidade de Arria (o seu exemplo, mas poderia ser qualquer outro como Sêneca, Catão, o Jovem,422 ou Pórcia) sinalizaria já uma ausência em vida caracterizada pela desvinculação das paixões. Há, todavia, muito debate ainda sobre se realmente a doutrina estoica fazia apologia ao suicídio enquanto se dedicava a desfazer os medos envolvidos no imaginário da morte.423 Afinal, não há notícia de que seus filósofos tivessem por norma essa prática. O que é inegável são os próprios suicídios dos seus adeptos romanos e o exame filosófico que a escola lançava sobre o tema. Modelo mais seguro e mais bem desenvolvido O sábio estóico “se identifica” à quase-causa: ele se instala na superfície, sobre a reta que a atravessa, no ponto aleatório que traça ou percorre esta linha. Ele é, assim, como o arqueiro. Todavia, esta relação com o arqueiro não deve ser compreendida sob a espécie de uma metáfora moral da intenção, como Plutarco a isso nos convida dizendo que o sábio estóico é considerado capaz de tudo fazer, não por atingir o fim, mas por ter feito tudo o que dependia dele para atingi-lo. Uma racionalização dessa natureza implica uma interpretação tardia e hostil ao estoicismo. A relação com o arqueiro está mais próxima do Zen: o arqueiro deve atingir ao ponto em que o visado é também o não-visado, isto é, o próprio atirador e em que a flecha desliza sobre sua linha reta criando seu próprio fim, em que a superfície do alvo é também a reta e o ponto, o atirador, o tiro e o atirado. Tal é a vontade estóica oriental, como pro-airesis. Aí o sábio espera o acontecimento. Isto é: ele compreende o acontecimento puro na sua verdade eterna, independentemente de sua efetuação espaço-temporal, como ao mesmo tempo eternamente a vir e sempre já passado segundo a linha do Aion. Mas, também e ao mesmo tempo, em um mesmo lance, ele quer a encarnação, a efetuação do acontecimento puro incorporal em um estado de coisas e em seu próprio corpo, em sua própria carne: tendo se identificado à quase-cause, o sábio quer “corporalizar” seu efeito incorporal, pois que o efeito herda da causa. (DELEUZE: 2015, p. 149) 421 Não que este [artista] faça obra de morte, mas pode-se dizer que está ligado a obra da mesma e estranha maneira que está à morte o homem que a aceita como fim. Isso impõe-se à primeira vista. Ambos [artista e suicida] projetam o que se furta a todo e qualquer projeto, e se têm um caminho não possuem um objetivo, não sabem o que fazem. Ambos querem com firmeza mas, ao que querem, estão unidos por uma exigência que ignora a vontade deles. Ambos tendem para um ponto do qual tem que aproximar-se pela habilidade, o savoir— faire, o trabalho, as certezas do mundo; entretanto, esse ponto nada tem a ver com tais meios, não conhece o mundo, mantêm-se estranho a toda a realização, arruína constantemente toda ação deliberada. (ibid: p.103) 422 Deste, é interessante observar que parece ter sido Plínio o primeiro a lhe caracterizar pelo epíteto “Uticense”, que mais tarde se tornaria corrente (7.62; 7.113. 29.96). Sendo esse tipo de cognome atribuído em geral a generais que tivessem ganho um triunfo, eram títulos dados pelo Senado apenas às vitórias mais importantes ou espetaculares para Roma. O que sugere que Plínio estava, provavelmente, glorificando o gesto fatal de Catão ao se referir a ele dessa forma, como se tivesse sido uma grande vitória sobre César. 423 O que, por sua vez, não deixa dúvidas quanto à inclinação da escola não só em não condenar o suicídio como em admiti-lo filosoficamente. O que é passível de dúvida é se havia promoção ao suicídio, ou mesmo autorização. Cf. LOPES DE OLIVEIRA, Fernanda. A Tanatologia em Epicteto. Dissertação (História). Universidade Federal Fluminense. 2017. 420 346 pela doutrina da escola era, sem dúvida, o exercício da meditação da morte. Na verdade, foi o seu exercício privilegiado. Pois, se a virtude era uma arte a ser trabalhada na busca ou no alinhamento de um acontecimento incorporal, nenhum outro acontecimento poderia ser mais oportuno a esse exercitar do que a morte: necessário mais do que possível, porém imprevisível (portanto, não-dado). Logo, a morte funciona como um tipo de matriz de todo acontecimento e o mais importante a se meditar por uma prática de modo de vida.424 Destacando, contudo e novamente, a grande diferença entre o que os antigos e nós, modernamente, entendemos por meditar: tratava-se “não tanto de pensar na própria coisa, mas de exercitar-se na coisa em que se pensa. O exemplo mais célebre é evidentemente a meditação sobre a morte. (…) é pôr-se a si mesmo, pelo pensamento, na situação de alguém que está morrendo, que vai morrer, ou que está vivendo seus últimos dias.” (FOUCAULT: 2006, p. 429). Meditação que era por si mesmo um fazer a experiência de dois treinamentos visuais. De um lado, o olhar retrospectivo sobre o conjunto da vida. Como um moribundo pessoal, a meditação consistia em um pensamento sobre mim mesmo enquanto estou morrendo. Um julgamento sobre o presente e a valorização do passado. Portanto, o resultado deveria ser a conscientização de uma experiência mais plena do próprio instante presente disponível junto ao aprendizado extraído da vitalidade já experimentada, sem preocupar-se com o porvir. Essa modalidade do olhar está, sim, mais propensa àquelas críticas de Blanchot. Tratava-se de refletir sobre o desaparecimento pessoal e individual para deixar que a subjetividade pudesse gratificar melhor as oportunidades ao mesmo tempo em que aprendia a reconhecer nelas a indiferença. Porém, de outro lado, há uma proposição meditativa ainda mais interessante para nossa discussão. No exercício do último dia elimina-se a morte como porvir através de um olhar instantâneo e em corte afirmando-a aqui e agora mesmo. Trata-se de um “olhar sagital” (ibid: 2006, p.579) que, tal como o arqueiro estoico de que dá notícia Cícero, mira no nãovisto e alcança sem obter. Vivendo tecnicamente um dia qualquer como o último dia, o aprendiz não exerce a intenção de morrer nem faz tudo o que possa para este fim ou previamente a este fim. Antes, o sentido do exercício é compreender o acontecimento, esse acontecimento-matriz, na sua verdade eterna e independente de sua efetuação espaçotemporal. Trata-se, justamente, de viver plenamente o seu dia atingindo o ponto em que o visado dele é também o não-visado e, portanto, é vivendo bem enquanto faz ou se exerce naquilo que se lhe julga melhor a partir da própria meditação que se atingirá a boa morte ainda que não se a obtenha. Trata-se, em última instância, de ao fim do dia, no momento 424 Daí, por exemplo, o seu exercício complementar na praemeditatio malorum. 347 derradeiro, poder dizer (com Blanchot): “eu vivi”.425 É por isso que Hadot destaca que é a “visão da metamorfose universal que conduzirá à meditação sobre a morte” (2016, p.200). Mais do que indiferença pelo porvir gerando nítidas imagens da morte como desaparecimento pessoal é, antes, assumir o morrer como superfície de registro que religa todos os acontecimentos em si, na confusio dos signos independentes da cadeia de significação objetiva e prática. Daí sua visão em instante e em corte, fazendo a experiência pessoal e individualizante retornar, a partir do morrer, ao modelo da intensidade zero da confusio dos acontecimentos na metamorfose universal. Logo, o meditante não só compreende como também quer o morrer, quer a efetuação do acontecimento em um estado de coisas e em seu próprio corpo. O que, enfim, já não tem nada que ver com o desejo de causar a própria morte. Afinal, enquanto acontecimento puro, morrer é o que ele não pode fazer: ou se está sempre morrendo ou já se está morto. Como brinca seriamente Blanchot: suicidar é perder o querer morrer (ibid: p.102). Ele quer o acontecimento, prepara-se para ele, mas, sobretudo, prepara o próprio acontecimento num operativo. É aí, novamente, quando a experiência de se encaminhar ao morrer abre suas relações com a experiência de encaminhar-se à obra de arte. Ou como introduz Deleuze, “é aí que intervém a representação e seu uso” para estoicos (2015, p. 149). Ora, se a meditatio antiga se caracterizava, como dirá Foucault, por ser um exercício sobre a subjetivação em vez de sobre um objeto particular, o que estará em obra e em operação não pode ser outra coisa senão um modo de subjetivação. É isso o que, no avesso do cartesianismo, nunca está terminado e deve estar sempre em busca de atingir, algo de uma personalidade artística. E se isso é passível de ser detectado em variados graus por toda a extensão do pensamento antigo, como discrimina o esforço foucaultiano, é certo que no estoicismo há um paroxismo dessa arte senão até um trabalho que a privilegia.426 Ao revalorizar a ordem do produzir, que o platonismo tinha marginalizado ao ponto mais baixo da sociedade de sua República, os estoicos assentam a sua construção moral e ética na artesania. Atente-se, por exemplo, às palavras estóicas para designar a questão da individuação, conforma recolheu Simplício. Ele diz que as categorias estóicas são: poiá, pôs échon, prós tì pôs échon, idíôs poioún. Todas essas expressões estão assentadas na ordem do fazer demiúrgico, no poieîn. (GAZOLLA: 1999, p. 132) “São propriedades da alma racional: ver-se; reconhecer-se; tonar-se o que quiser ser; saborear os próprios frutos – os frutos das plantas e os produtos animais outros os colhem. Ter atingido objetivo, em qualquer momento que a vida termine. Quando cortada, toda ação fica defeituosa nos bailados, nas comédias e outras representações. Mas a alma, quando quer que seja que a surpreenda a morte, terá sempre cumprido e completado o seu programa, podendo dizer: ‘Tenho tudo quanto me pertence’.” (MARCO AURÉLIO: 2001, p.107. XI.I) 426 O que o próprio Hadot já fazia notar. 425 348 Nesse sentido, Platão oferecia no Banquete uma definição poderosa de poesia: “[ποíησíς] é toda ação que promove a passagem do não ser ao ser, de sorte que todas as atividades, no domínio de qualquer uma das artes, são poéticas. Todos os artífices são poetas.” (2012 pp. 97-99; 205b)427 É o que quer dizer, por exemplo, Marco Aurélio em “tornar-se o que se quiser ser [ἑαυτὴν ὁποίαν ἂν βούληται ποιεῖ]” (ibidem). Mas como? Pela maneira mesma com que os poetas decidem por eles mesmos o que é próprio para cada personagem, pela maneira com que servem (ob-servam, re-servam) falas e ações de acordo com as dignidades de cada personagem [persona dignum]. (CÍCERO: De oficiis, I.97) Essa reposta ciceroniana nos introduz à teoria de Panécio sobre o sábio estoico como ator, que teve grande repercussão e que revela a característica que marcava sua filosofia pela preocupação com as pessoas reais em reais situações em vez de idealizações do sábio e da sabedoria.428 Recapitulando: a natureza providencial nos deu uma dupla personalidade: o papel comum a todos os homens de ser racional, nos distinguindo dos outros papéis animais, e o papel particular a cada um conforme as singularidades de suas constituições corporais. O que de início pode sugerir uma divisão dos trabalhos e aptidões segundo etnias ou definições meramente físicas. Cícero de fato comenta estas possíveis diferenças, como “uns leves e próprios para as corridas, outros, robustos e próprios para a luta” (2004, p. 63; I.107).429 Mas o que não se deve perder de vista em se tratando da física estoica é que tudo é corpo e que os corpos são plenos de razão, isto é, não no sentido de projetados de forma propícia a uma atividade, mas tendo suas partes limitadas e tensionadas por uma alma co-extensiva enquanto vitalidade imanente ao próprio corpo. Dessarte, Cícero avança sua explicação. Cada um deve, pelo cuidado de si, descobrir seu campo de excelência e a ele se conformar. Todas essas exposições nos ensinam que cada um deve cuidar de conhecer seu caráter, tratando de o disciplinar, e que não se deve preocupar com o caráter dos outros, pois apurar seu caráter é sempre melhor. Cada um deve tratar de conhecer o próprio temperamento, apreciando severamente o que ele tem de bom e de ruim. Usemos da 427 Na verdade, uma definição tão brilhante que ajuda a compreender o tanto de empenho Platão dedicaria a questão das artes. Heidegger, sempre ao seu modo tão próprio, traduzia a mesma passagem como “Todo deixarviger o que passa e procede do não-vigente para a vigência é ποíησíς, pro-dução” (2001, p.16) 428 A se observar que há certa incerteza quanto a autoria desta teoria. A referência mais antiga que temos, dentro do estoicismo, parece ser essa referência de Cícero a Panécio, mas ela própria não parece ser criação dele, mantendo na sua história outras fontes em aberto. Sobre isso, deve-se ter em consideração o fato de Panécio ter sido, originalmente, aluno de Crates de Mallos em Pérgamo (cf. GOURINAT & BARNES, 2013: p.26) de quem temos o mais bem-acabado comentário sobre uma “estética estoica” a partir dos fragmentos encontrados de Filodemo Gadara. 429 Também temos notícia de isso pôde ser interpretado em favor do conservadorismo político. De início nas entrelinhas das divergências entre Antipater e Diógenes da Babilônia, depois no caso extremo dos acontecimentos políticos envolvendo os irmãos Graco. (cf. VEILLARD, in: GOURINAT & BARNES, 2013, pp.230-233) 349 mesma precaução e juízo dos comediantes, que escolhem, entre as peças teatrais, não as melhores, mas as que mais lhes convêm. (…) Um comediante trata de ver o que lhe convém no palco, e um homem correto não pode tratar de ver o que lhe convém na vida? (…) Às duas qualidades que já citei, é preciso acrescentar uma terceira, que a riqueza e as circunstancias nos impõem. Há, ainda, uma quarta, totalmente de nossa escolha. O comando dos exércitos, a grandeza, as dignidades, as fortunas, o crédito e as coisas opostas a isso estão sujeitos à fortuna e às ocasiões; mas a personalidade que queremos criar é decorrência da nossa vontade. (…) Iniciemos por procurar saber o que queremos ser e que estilo de vida pretendemos seguir; resolução muito difícil. (ibid: 2004, pp.65-66; I.114-117)430 Isso, então, terminaria por legitimar os usos das máscaras de cera por Nero e Vespasiano? Precisamente, o contrário. É a teoria do sábio como ator que as critica. Marco Aurélio, o imperador estoico, também sugere que as grandes obras foram criadas para nos ajudar a aprender o ofício, e pensa o mundo como “palco maior” sobre o qual as mesmas cenas dramáticas, que nos seduzem no palco menor, nos afligem (XI.6).431 Mas em outro trecho ele declara que se devem evitar as exclamações trágicas (V.28a). Epicteto esclarece mais as coisas. Sermos como atores compreende que: a) temos papéis a interpretar; b) não somos nós quem escolhemos esses papéis; c) nos cabe fazer a melhor atuação conforme a arte apropriada; d) não devemos nos tomar pelas personagens que interpretamos. Assim, cabe à providência natural a escolha dos papéis e a duração da participação de cada um dos atores nela. É ela quem oferece, retira e troca as máscaras, os borzeguins e as vestimentas. Mas cabe a nós tratar o tema dado de “uma bela maneira” (Diatribes, I.29.37-49; apud: DUHOT: 2006, p.122), seja ele qualquer for, e conforme a observação da arte envolvida e requerida. Isto é, sem criar nada, operar na quase-causa dos signos incorporais de maneira a dobrar a causalidade física. Por fim, é preciso saber não se identificar ao personagem, posto que o enredo pode mudar sem que você decida. O sábio deverá saber interpretar o papel de senador tão bem quanto o de mendigo; tão bem o de pai quanto o de filho, o de irmão e o de marido, sem deixar escapar a maneira de ser mesmo na passagem de um para outro. É preciso, com efeito, empenhar-se com habilidade para as coisas exteriores, mas sem a elas aderir, mostrando sua habilidade na sua maneira de tratá-las, não importando a forma como elas se apresentem. É assim que o tecelão não produz a lã, mas a trabalha 430 Daí, naturalmente, prossegue um caso de Hércules como o mais exemplar. Todavia, importantes observações devem ser feitas sobre a tradução empregada quando dá a entender que a personalidade é criação própria e individual. No primeiro trecho talvez o mais correto seria algo do tipo “a personalidade que escolhemos sustentar/suportar”. No segundo, não “o que”, mas “quem queremos ser”. 431 Noutra passagem: “Que resta digno de valor? A meu ver, mover-se ou deter-se segundo a própria constituição, alvo a que também visam as artes e os estudos. Indubitavelmente, a arte se propõe a aplicar sempre, escrupulosamente, cada criatura à obra para a qual foi criada.” (ibid: p. 55; VI.16) 350 com habilidade, qualquer que seja o estado em que ele a tenha recebido. Um Outro te dá tua comida e teus bens, e ele pode retirá-los de ti, como também até teu pequeno corpo. Quanto a ti, o que te resta é trabalhar com a matéria que te foi dada. (EPICTETO: Discursos II.5.15-23; trad. apud: DUHOT: 2006, p.124) Interessante observar, nesse sentido, que aqueles exercícios de exame de consciência prestados antes de dormir com o intuito de “descarregar seu fardo” não eram realizados para se julgar o que se fez, admitindo uma figura de remorso. Se tomarmos os exemplos de Sêneca, as faltas que ele comete ou aponta são todos erros técnicos de atuação, pois não se tratava do que ele tinha de fato feito, mas da direção que ele tinha empregado na sua consciência para a sua atuação. Eram juízos de intensidade, das suas intenções nos resultados das operações. De maneira que, como ressalta Foucault, tratava-se primeiro de um exercício de “reativação de regras fundamentais de ação, dos fins que devemos ter no espírito,” daquilo que concerne à devida arte. Consequentemente, permitindo ao examinador/examinado identificar em que ponto está no domínio da atuação (ibid: 2006, pp.200-202 e 583-589). Daí a imperiosa necessidade de que enquanto ator não haja identificação com a personagem. Na verdade, é como se o sábio fosse ator de um ator desempenhando outros papéis. Conforme a explicação de Cícero/Panécio, se tratava de quatro personas a serem consideradas em cada caso. Eram quatro considerações que deveriam determinar a correção de uma ação, pensadas como quatro diferentes papéis impostos ao agente, que deveria harmonizá-las para encarnar a escolha certa. Ou seguindo a rigor os termos de Epicteto, o que ele desempenha não é bem uma personagem, mas um tema, que se constitui pelos componentes do acontecimento, signo ou vultos liberados dos limites dos indivíduos e das pessoas. O ator fica no instante, enquanto o personagem que ele desempenha espera ou teme no futuro, rememora-se ou se arrepende no passado: é neste sentido que o ator representa. (…) Limitar a efetuação do acontecimento a um presente sem mistura, tornar o instante tanto mais intenso e tenso, tanto mais instantâneo quanto mais ele exprime um futuro e um passado ilimitados, tal é o uso da representação (…) É assim que o sábio estoico não somente compreende e quer o acontecimento, mas o representa e por aí o seleciona e que uma ética do mimo prolonga necessariamente a lógica do sentido [do exprimível]. A partir de um acontecimento puro o mimo dirige e duplica a efetuação, ele mede as misturas com a ajuda de um instante sem mistura e os impede de transbordar. (DELEUZE: 2015, p.150) O que, por sua vez, tem garantido argumento doutrinal porque a individualização não é explicada em termos de essências ou substâncias, mas em termos de uma disposição ou configuração única de relações (DE LACY: 1977, p.171). É nesse sentido que se alcança certa 351 arte da representação. Combina a especificação de diferenças individuais com a sugestão de indiferença, porém longe de estipular um distanciamento no sentido de se exteriorizar: a persona precisamente é o que referencia as características distintivas de um indivíduo e o distingue dos outros. A máscara, o vulto é o sujeito. Foi Diderot quem melhor compreendeu esse paradoxo do sábio estoico pelo influente Paradoxo do Comediante. Sua tese é, em suma, a de que os atores – e de resto todos os artistas, “os grandes imitadores da natureza” – devem ser insensíveis as representações que desempenham e que contemplam porque, precisamente, podem dar o espetáculo enquanto o seguem desfrutando; podem atuar enquanto contemplam: “Nós sentimos; eles observam, estudam e pintam.” (1979, p.360). O que por si mesmo muito lembra a célebre ataraxía que caracterizaria o sábio estoico. Bem entendida, era mais a circunscrição das paixões do que a ausência delas – até mesmo no sentido da filha de Butades. Um empoderamento pela contemplação e compreensão da própria phantasia.432 Segundo Diderot, o talento de um grande ator não está em sentir as paixões das personagens e das cenas, mas sim de expressar “escrupulosamente” os signos dos sentimentos (ibid: p. 362). Mesmo as personagens históricas não passariam de fantasmas sem esses signos. Porém, sobretudo, é o próprio texto em sua narrativa em diálogo sempre fazendo ausentar quem enuncia o paradoxo, o seu sujeito próprio, o que melhor enuncia ou mesmo encarna o paradoxo, esse abismo, como o dom de uma impropriedade (de uma “alienação deliberada e voluntária”) enquanto estrutura mesma da mimese ou da similitude, ou seja, da questão da semelhança. Estrutura que é a matriz lógica do paradoxo: gêmeos desiguais ou gêmeos não gêmeos. Assim, se voltarmos à análise de Didi-Huberman, teremos que rever o sentido de imagem-matriz. Pois, já não cabe nenhum entendimento daquela “estrita filiação” em que um herda genética e genealogicamente os traços dos pais. Vimos no comentário antropológico pliniano como a similitude lhe é pensada, precisamente, pelas suas diferenças nessa herança. De maneira que agora nos vemos em posição de afirmar para além: imagem-matriz não pela relação de marca e sinete, mas como acontecimento matricial do olhar sagital dos exercícios. Imagem-matriz porque independente de sua efetuação espaço-temporal. Aquela que funda, no sem fundo do vulto, a própria relação de semelhança como a relação de parentesco. No sentido mesmo do paradoxo da enunciação, é só pelo discurso do filho que o pai se torna pai, e não o contrário. Por onde não deixa de ser folgado atentar que enquanto Platão, para o discurso de seu Mundo das Ideias no percurso de 432 Há um verdadeiramente longo e antigo esforço em demonstrar como os estoicos não defendiam a eliminação de emoções e de como a sua figura de sábio não era desprovido de sentimentos. Uma acurada revisão da questão encontra-se em GAZOLLA: 1999, pp.135-171. Outro bom resumo com explicação para os ditos “bons afetos” que identificariam o sábio em HUSSON; in: GOURINAT & BARNES (org.): 2013, pp.135-155. 352 sua República, precisou dispensar um pai para fazer o diálogo avançar com o filho, Plínio, para o discurso de seu mundo de pura existência corporal no percurso de sua H.N., precisou se endereçar ao filho para poder entregá-la ao pai.433 Bem, de todo jeito, melhor critério podemos apreender no trecho exato em que Plínio conjuga a potentia artis e a dignitate artis morientis. Novamente em um local público, o Fórum de Augusto, havia uma extraordinária pintura votiva de autoria de Filócares (H.N.35.28). De forma mais exata, o que causava admiração era a maneira como o artista tinha conseguido exprimir toda a similitude entre um pai e um filho justamente por saber lhes guardar as diferenças. Em outras palavras, de modo a fazer passar de um para outro as semelhanças através apenas de signos e não da cópia ou duplicação das fisionomias. O que se esclarece pelo comentário de que os retratados eram, a despeito da obra-prima, dois desconhecidos e, portanto, admitindo de partida o desinteresse, desimportância, ou mesmo qualquer garantia, de uma representação naturalista no sentido do verismo. O que ele havia pintado eram os signos do parentesco. Se os rostos eram realistas não está em questão no registro pliniano, apenas o quanto seus vultos mais se identificavam na medida da diferença reservada. E sendo eles desconhecidos completos, eram esses vultos e signos o que lhes fundava, de fato, o parentesco pela própria arte. Eis a “extraordinária potência da arte”, que agora “agoniza” na proporção inversa desse naturalismo: quando os retratos tinham a potência de se alienar dos retratados fazendo sobrevir seus vultos, seus signos, isto é, quando arte podia dar o morrer aos representados ela vivia; quando tudo o que ela pode fazer é representá-los ela definha. Não é um acaso se a lei da mimese se enuncia, e só pode se enunciar, sob a forma de um paradoxo. Mas também não é um acaso que, ao contrário, a lógica do paradoxo seja sempre uma lógica da semelhança, articulada sobre a separação entre a aparência e a realidade, entre a presença e a ausência, entre o mesmo e o outro ou entre a identidade e a diferença. É a separação que funda (e não cessa de fazer estremecer) a mimese. Em todos os níveis: na cópia ou reprodução, na arte do ator, no mimetismo, no travestimento, n escrita dialógica – a regra é sempre a mesma: quanto mais parecido, mais diferente: o mesmo em sua mesmidade, é ele mesmo outro e, por sua vez, não se pode dizer “ele mesmo”, e assim por diante até o infinito… (LACOUE-LABARTHE: 2000, p.172) No primeiro livro d’A República, Sócrates é convidado a ir à casa de Polemarco. Lá chegando encontra o pai, Céfalo, sentado com uma coroa na cabeça. Este então, com sua autoridade etária, é quem inicia o diálogo com Sócrates sobre a Justiça. Mas, assim que o filósofo faz caso da relação direta entre a justiça e o legal, Céfalo anuncia que precisa se ausentar e deixa seu “herdeiro”, Polemarco, para prosseguir com o diálogo (I.327-331). Já o polígrafo abre o seu prefácio se encomendando ao jovem Tito Flávio, futuro imperador, ao passo que a própria obra era oferecida ao império de Vespasiano, dando a entender que o elogio do filho era o que incrementava a grandeza do pai (Praef.1) 433 353 Temos então todos os elementos necessários para a crítica da teatralização das máscaras de Nero e Vespasiano, isto é, do naturalismo que eles encontraram e empregaram. Sem observar a ressalva do imperador estoico, o primeiro adere ao trágico. No fundo, ele perde a phantasia em lugar do phantasma: já não é ele quem representa, é ele quem é representado. Não lhe é possível jamais se esvaziar de si mesmo como caberia ao ator sábio e insensível, ele só pode ser ele independente do que esteja interpretando e do sentimento que a cena exija. Mantendo absoluta similitude externa, tal naturalismo lhe serve para o disfarçar de si, para tentar poder deixar de ser a si mesmo durante ou ao fim da peça. Mas, sujeito tão tomado de sensibilidades, lhe é sempre impossível. Seria preciso revisar aqui senão as notícias ao menos suas ênfases. Pois, mais parece que não se tratava do erro de um soldado desatento e ignorante o dito despontar para desacorrentar o imperador. Que grande inspiração poética não terá tocado aquele soldado a ponto de ver o não-visto pelo nobre público? Pois, era o próprio imperador sempre quem estava em cena! Quão aliviado não terá se sentido Nero com a ajuda, e quão frustrado com o impedimento da sua continuação. Foi só depois de morto, ou seja, depois que sua máscara voltou ao seu lugar de vulto no tempieto que ele talvez tenha alcançado o que nunca soube sequer procurar: se tornar um signo artístico. Afinal, Suetônio relatou que “vinte anos mais tarde, apareceu um aventureiro dizendo-se Nero” (ibid: p.322). Nero queria de toda forma poder ser outro, mas só encontrava a si. Já Vespasiano parece ter levado tão a sério e tão longe a necessidade de “nada dissimular” que terminou por revelar que a sua representação havia se tornado uma entidade independente, não sendo ele próprio mais do que o seu ator original. O Nero ator quis sem sucesso se esvaziar de si, o Vespasiano não queria de forma alguma se deixar esvaziar, se deixar alienar de sua própria imagem. Daí os sintomas que encontramos na sua avareza, nas representações históricas do seu próprio corpo e, em especial, do seu “rosto de quem está sempre fazendo força”, signo no mais de um significativo intestino preso. Não por menos, morre de disenteria, no momento mesmo em que não pode mais evitar de se esvaziar, de se ausentar. Então ocorre um fato dos mais curiosos da história da economia antiga: logo ele, tão sovina, exige a contratação paga de um ator profissional para encarná-lo no seu funeral. Quando passível de ser substituído em morte por um ator profissional, isto é, que o representa à perfeição, que lhe profira seus discursos fúnebres e participe de todo o ritual como se o próprio, sem tirar nem pôr, ali estivesse, se revela o seu simples ator, mero executor de sua personagem. Por só interpretar uma única personagem, ele mesmo, parecia nem ser ator. Porém, se tratava de um caso mais bem-acabado do que o de Nero. O mesmo naturalismo de similitude externa o impede de 354 deixar de ser quem se lhe afigurou. E, agora, isso mesmo será dado por garantia de ser imperecível. Morrerá o ator, mas o personagem, que é o que se tornou real, continuará. Ele precisava morrer de pé (ibid: p.395). O que a teoria estoica do ator e o Paradoxo do Comediante de Diderot propagavam é que deve haver uma absoluta liberdade no uso das representações.434 Todavia, o que Vespasiano e Nero, ambos, confessam é terem se tornado escravos de um naturalismo representativo, e é a isso que corresponde a luxuria pliniana, a essa perda dos modos de ser como exprimíveis inexistentes e incorporais, portanto, como signos de papéis desempenháveis, enfim, como vultos apenas.435 E se foi Diderot quem melhor compreendeu o paradoxo do sábio estoico, foi ele também quem primeiro registrou os efeitos daquilo que caracteriza a afetação pelos artigos de luxo, no curto ensaio Regrets on Parting with My Old Dressing Gown. Em resumo, ao trocar uma antiga peça de roupa por uma nova, linda e em moda, abre-se uma espiral de acontecimentos à subjetivação do literato. A nova peça lhe causa grande estima ao mesmo tempo em que passa a denunciar a incompatibilidade das demais coisas da sua casa. Logo, para não abrir mão do prazer da peça nova e eliminar a incompatibilidade, Diderot começa a substituir algumas das suas coisas por outras mais novas, ou mais em moda, ou mais afeitas ao seu novo vestuário. Pouco a pouco, essas substituições crescem em progressão até o paroxismo de ter trocado quase tudo, inclusive suas peças de arte, e se endividado sobremaneira. Evocando os cínicos antigos, constata que “I left behind the barrel in which I ruled in order to serve a tyrant”; e mais: “I was the absolute master of my old robe. I have become the slave of the new one”.436 E assim como reivindicamos os efeitos Apeles, Iaia, Anedota e Plínio… atualmente tal experiência ganhou o nome técnico de “Efeito Diderot”, e é identificada largamente na lógica de consumo global.437 Se caracteriza, por um lado, no sentido de que os artigos consumidos são aderentes a identidade do consumidor e complementam uma a outra; por outro lado, a aquisição de um novo artigo é capaz de gerar descompasso com essa complementariedade solicitando, portanto, o consumo conjunto de outros e mais artigos.438 O ponto da questão é que tal mecanismo termina por moldar e tipificar as identidades dos consumidores em vez de servir a “E talvez por não ser nada é que é tudo por excelência, não contrariando jamais sua forma particular as formas estranhas que deve assumir.” (DIDEROT: 1979, p.387) 435 Conforme já indicado mais cedo, um somatório peculiar ao polígrafo do que hoje se separam em afetações cognitivas por artigos de luxo e afetações por artigos financeiros ou de poder. 436 “Deixei para trás o barril em que governava para servir a um tirano”; “Eu era o mestre absoluto do meu antigo manto. Eu me tornei escravo do meu novo” (trad. livre) in: https://www.marxists.org/reference/archive/diderot/1769/regrets.htm; acessado em: 21/11/2017. 437 Cunhado pelo antropologista Grant McCracken, em 1988. 438 O que é fácil de identificar nos oferecimentos de grandes redes de produtos quando os anunciam ou expõem em conjunto e garantindo descontos na compra de peças combinadas. 434 355 sua complementação e aderência. Desfazendo as singularidades em tipos, como já atestava a conclusão de Diderot: “I now have the air of a rich good for nothing. No one knows who I am.” (ibidem).439 Plínio não deixou de observar que desde os gregos a arte ao passo que se fez liberal se tornou negada aos escravos. Pânfilo, grande mestre de Apeles e da escola siciônica, defendia que o artista deveria ser educado em todas as áreas do conhecimento. Em contraposição, por sua influência, todos os rapazes nascidos livres passaram a ter aulas de pintura sobre madeira, o que a colocou no âmbito das ciências liberais. Fato que passou a sustentar o novo status do artista antigo como portador de um saber, e ocasionou na interdição das artes gráficas aos escravos. O polígrafo encerra assegurando que não havia notícia de nenhuma grande obra, em pintura ou escultura, que tivesse sido feita por um escravo (H.N.35.77). Didi-Huberman não deixou isso passar à relação entre a dignidade artística e a lei comum (ibid: p.74). Mas seria possível pensar a arte como ela mesma um signo de liberdade? Segundo o uso lógico das representações que os estoicos advogam, sim. Porém, não de forma direta ou objetiva como no caso do Mabuse de Balzac, que é liberto de uma prisão pintando um quadro. (ibid: p.17) E, obviamente, sem a necessidade de um saber técnico em pintura ou escultura. O exemplo de Epicteto é decisivo. Ele conhecia bem a vida e as condições da escravidão na sua época, nasceu escravo e só foi liberto muito mais tarde. Mas organizava toda sua prática filosófica, pode-se dizer, redefinindo a escravidão e a liberdade: senhor de si é quem tem autoridade sobre o que deseja e não deseja, senão é escravo (Manual 14). Ao que ele, desprovido de quase tudo e mestre de vários dos mais eminentes homens do seu tempo (mais tarde grande influência para o homem mais importante do mundo, o imperador Marco Aurélio), não se cansa de escarnecê-los apontando suas escravidões. Em linhas muito gerais, seguindo os preceitos da escola Epicteto instrui que somente aqueles que trabalham com os incorporais, que por natureza são livres das contingências, podem ser também livres. Ao contrário, aqueles que trabalham em vista do corpo, da propriedade, do cargo e da reputação, de tudo o que não depende de suas ações, estes são escravos. (M.1) Livre é quem, independente das circunstâncias, faz uso lógico das phantasiai, isto é, daquilo mesmo que é nossa obra.440 Grande propagador da teoria do ator, Epicteto faz duas importantes observações no sentido do que aqui estivemos tratando. Por um lado, é preciso não se apaixonar nem se reconhecer no papel em que atua: “caso pareceres ser alguém ‘importante’ “Agora tenho o ar de um bom rico para nada. Ninguém sabe quem eu sou.” (trad. livre) Não são sequer as phantasiai que podemos chamar de nossas, mas apenas a maneira ou modo como lidamos com elas (Manual, 6). Uma definição quase estilística. 439 440 356 para alguns, desconfia de ti mesmo, pois sabe que não é fácil guardar a tua escolha” (ibid: p.25, M.13). Por outro, é decisivo reafirmar que o trabalho está na alternância entre experiência e esvaziamento de subjetivação: “Postura e caráter do homem comum: jamais espera benefício ou dano de si mesmo, mas das coisas exteriores. Postura e caráter do filósofo: espera todo benefício e todo dano de si mesmo.” (p. 59, M.48) Por aí, segue Epicteto, é que ele atinge alguns signos, que lança vulto sobre as coisas. Portanto, o único papel que importa ao estoico é o de “ser livre”: não o de general, cônsul ou prefeito (M.19), mas o papel de poder interpretar papéis e temas.441 Enfim, Epicteto articula uma fórmula: Ao colocar esses objetos do outro lado, tu conquistarás a phantasia: tu não serás arrebatado por ela. Mas em primeiro lugar, não esperes, mas digas, ‘Phantasia, esperes por mim um pouco: deixe-me ver quem tu és, e o que tu és: deixe-me colocá-la em teste. E, em seguida, não permitas que a phantasia te guie porque, se o fizeres, te levarás para onde ela bem quiser. (trad. livre; Discursos II.18)442 Enfim, a arte poderá e deverá ser signo de liberdade contanto que uultus. Em outras palavras, na condição de operar com o que é livre por natureza e fazendo da máscara o seu sujeito. Do contrário, a phantasia vívida traz junto de si um quem tipificado pronto a nos escravizar.443 Ao sábio como ator cabe, conforme os termos, assegurar a dignidade do papel, sabendo empregar as falas e as ações em concordância com a arte. Ser digno será então saber aceitar e querer tudo o quanto venha a acontecer, é poder lançar vulto a todos os acontecimentos. E para isso é decisivo o experimento do morrer enquanto o deixar de significar a si mesmo: esvaziando-se do sensível como ator-sábio ou figurando-se como pura máscara vazia. O método técnico da cera uultus reivindica naturalismo para melhor fazer, como máscara post mortem, o esvaziamento do indivíduo recolhendo apenas o seu vulto, os signos de uma subjetivação. É por isso que a lógica pliniana é, na superfície, a mesma para as pinturas privadas e públicas. A diferença mais grave é que não se tendo conhecimento do 441 Como vimos, Diogenes da Babilônia parece seguir o mesmo sentido nos fragmentos do seu tratado sobre a Música. Esta seria ferramenta artística de suma importância na vida estoica com todos os seus pressupostos, e por isso mesmo recomendada a ser aprendida desde a infância como plano educacional voltado à liberdade. Sem, porém, nenhum sentido objetivo ou prático, como no conto balzaquiano. O objetivo do aprendizado não teria relação com nenhum projeto de fazer artistas, músicos profissionais, apenas o de educar para a liberdade em harmonia com a natureza. (cf. WOODWARD: 2009, p.39) 442 “By placing these objects on the other side you will conquer the appearance: you will not be drawn away by it. But in the first place be not hurried away by the rapidity of the appearance, but say, Appearances, wait for me a little: let me see who you are, and what you are about: let me put you to the test. And then do not allow the appearance to lead you on and draw lively pictures of the things which will follow; for if you do, it will carry you off wherever it pleases.” 443 Sou eu efetivamente – esta é a questão a que estes exercícios devem responder – aquele que pensa estas coisas verdadeiras? E, sendo aquele que pensa estas coisas verdadeiras, sou eu quem age como quem conhece estas coisas verdadeiras? Sou eu o sujeito ético – é isto o que quero dizer com esta expressão – da verdade que conheço? (FOUCAULT: 2006, p.562) 357 rosto exato de um literato ou de um homem público antigo não é preciso nem a técnica nem o culto mortuário posto que, se não há risco de confusão com um indivíduo, o significado pessoal já está esvaziado. Logo, os traços de um Crisipo naturalista o que fazem é exprimir seus pensamentos, os de um Homero seus vigores poéticos, os de Glauco e Aristipo exprimem os vultos de seu parentesco e não dois desconhecidos. É nesse sentido que, diz Blanchot, é preciso partir da profundidade da morte e não das coisas para poder vê-las na sua intimidade, para poder “ver verdadeiramente” (1987, p.153) – diríamos, é preciso ver o não-visto. Conforme a meditação estoica do olhar sagital, ver como se deve é essencialmente morrer. Porque é ver apenas como um modo, só interessado nos signos e nos vultos entre as coisas, em vez de ver como um indivíduo, interessado pelas próprias coisas. À luxuria, por todos os seus tipos e pela tipologia ela mesma, pertencem somente similitudes internas, mais ou menos veristas, mas internas: são incapazes de expressar um sentido, logo, são incapazes de serem experimentadas livremente. Ela falha moralmente no sentido dessa dignidade artística da livre e voluntária aceitação dos acontecimentos. Mas, em particular, falha na aceitação do acontecimento-matriz: o morrer. Nas formas de Blanchot, podemos dizer que: Nero morre infiel a si mesmo, tendo se refugiado no palco por não ter sabido representar jamais, incapaz de poetar seu próprio morrer; Vespasiano morre infiel à morte, desejoso de manter-se a si mesmo até depois da vida (ibid, pp.118-126). Ou na forma de Deleuze, fazendo evocar os exemplos explicativos do signo como cicatriz: se há uma maneira concreta ou poética de viver estoica, é chegar a uma vontade que nos faça o acontecimento, é tornar-se o operador ou a quase-causa do que se produz em nós a ponto de poder dizer: minha ferida existia antes de mim, nasci para encarnála (2015: p. 151). Contudo, está ao fim superada a cisma do suicídio? Vimos, por todos os casos artísticos da H.N., que em momento algum o morrer, o não-visto foi pensado no sentido do suicídio. Nem no de seu contrário como “condenação à morte”, como diria A. Camus, para quem o suicídio era a única questão realmente filosófica.444 Mas como entender a liberalidade com que os estoicos tratavam o tema e a crítica marcante de Blanchot? Vale lembrar como já a história de formação da escola e seu título vultoso a ponto de figurar na nossa vulgata eram acompanhados por uma expressiva lenda em que se estavam intimamente vinculados e vinculavam à arte e à morte. Era a da ida de Zenão ao oráculo 444 Na verdade, nos exemplos que tivemos exclusivos às máscaras de cera, um lado terminou por implicar o outro exatamente. Piso e Drusus foram condenados e suicidas, e suas máscaras destruídas caindo do não-visto ao invisível. 358 obtendo por resposta: “torna-te da cor dos mortos” (D.L.VII.) Como vimos no Capítulo 2, dela decorrem uma série de interpretações envolvendo pinturas, mortes, e o caráter filosófico da escola. Mas, para além disso, em passagens dos três mais importantes estoicos do período imperial encontramos não só a relação entre o sábio ator com a morte, mas com o suicídio. Marco Aurélio em dois momentos comenta que se deve morrer de forma tranquila com a sabedoria do ator que sabe sair do palco sem servilismo e sabendo se despedir, mesmo que não tenha tido tempo de desempenhar todo o seu papel (III.8, e XII.36). Já Sêneca emprega a comparação com o propósito de legitimar o suicídio: Seria uma viagem incompleta se parássemos na metade ou antes do lugar estabelecido? A vida não é incompleta se é honesta. Onde quer que pares, se parares bem, estará completa. (…) Viver não é uma grande coisa; todos os teus escravos vivem, todos os animais também; o verdadeiramente grande é morrer com honestidade, prudência e coragem. (…) Tal como uma fábula, assim é a vida: não interessa pelo que dura, mas por quão bem foi vivida. Não importa onde irás parar. Onde quiseres, para; apenas lhe impõe um bom desfecho. (2014: pp. 72-76; Epis.77) Mas é Epicteto, novamente, o assertivo. Discursando sobre o jogo puro aberto pela atuação sábia no uso das representações ele responde que é preciso seguir jogando enquanto conservar minha “dignidade e relação com o mundo”. O suicídio, explica, é uma “porta aberta”. (Discursos.I.25; apud: DUHOT: 2006, pp.125-126) Assim, o que é preciso observar atentamente é que, sim, os estoicos mantém a porta aberta, mas, não, eles não se encaminham para usá-la. É um dos seus paradoxos. A porta está aberta e a sua espera, nada se interpõe. Porém, saber o uso lógico das representações corresponde precisamente a não ter porque atravessá-la. Só quem não é capaz de representar o papel que lhe foi dado, ou quem não compreendeu que era apenas um papel, precisará da saída. O grande comediante não precisa sair do papel posto que nunca esteve preso nele. O artista ou o sábio não será então alguém que queira ou que possa morrer, no sentido do desaparecimento pessoal, mas, tal qual um Ulisses, será um ninguém polítropo encarnando singularidades que percorrem as coisas. Se o suicídio é porta aberta que não se pode atravessar, a obra é porta por ser feita em que se está já e sempre dos dois lados bifurcados. Corolário do não-visto, a obra-prima mais estimada da Antiguidade era um enorme painel em que não havia, textual e literalmente, nada a ser visto senão umas finíssimas e pequenas linhas coloridas que não tinham relação com o projeto esboçado ou com o preparado da peça. Sobre essa obra, por sinal, é uma das raras vezes em que Plínio declara, formalmente, que ele mesmo tinha estado diante dela e que a obra, ela mesma, já havia se 359 perdido – como se não fosse possível afirmar o visível sem a perda. Ademais, diz ele: “o quadro era similar ao vazio (corporal) [inani similem]445 e por isso mesmo atraía e era mais conhecido que qualquer outra obra” (H.N.35.81-83). Em outras palavras, o quadro que mais se aproximou de expressar puros exprimíveis, puros signos ou vultos. Ora, este não é outro quadro senão aquele que longamente discursamos sobre a superfície perdida, e que mais cedo comparamos sua anedota pliniana com a anedota vasariana da pena più grossa de Michelangelo.446 Em vez de um corpo volumétrico e material expresso em linha, só havia as linhas, umas dentro das outras, umas recortando as outras nas suas próprias superfícies; vultos de duas grandes personalidades pictóricas que só se encontram ali, nas passagens daqueles signos presentes às suas coisas presentes, ligando os heterogêneos e fazendo coincidirem presença e ausência, visível e invisível. É isso o que, não o desenho michelangeano, mas a narrativa vasariana torna espectro. Se no trecho 35.145 Plínio tinha entendido as linhas aparentes – isto é, linhas feito linhas – em um quadro interrompido pela morte como os próprios pensamentos dos artistas, aqui as linhas são os próprios artistas em signos, em vultos. O resultado de encontros entre os dois maiores artistas daquele tempo, Apeles e Protógenes, sem que um tivesse visto o outro senão como ausência e em um signo que não os representava em imagem (HN.35.81-83). Não vidas no sentido vasariano, isto é, biografia de pessoas físicas, gente que comia, bebia, dormia, mas sim personalidades pictóricas: puros vultos, eles mesmos signos de sua arte, apenas “modos pictóricos de ver” ou até modos pictóricos de ser. Passíveis de serem reencontrados em múltiplas variantes. O famoso mitólogo Joseph Campbell falava de uma importante “lição da máscara”: “sempre que um mito foi tomado literalmente, seu sentido foi pervertido; mas também, reciprocamente, (…) sempre que ele foi descartado como mera fraude clerical ou sinal de inteligência inferior, a verdade escapou pela outra porta.” (2011: p.36) Nos interessa pensar enquanto essa porta em que não estamos nem diante nem dentro, apenas na sua superfície, no seu limite mesmo: fazendo todas as passagens, afirmando todos os heterogêneos. Portas que não nos colocam fora de nada nem levam de um lugar a outro, mas que transvolam para variantes da mesma história. Então, caminhemos. Senão contentes ao menos com o sorriso tranquilo. Caminhemos em direção ao morrer da História da Arte. Aceitemos e operemos esse acontecimento, poetemos e moldemos o seu não-ser, a ampliemos até sua morte como sua verdade secreta. Afinal, sua morte já exista antes dela, ela nasceu para encarná-la. Termo que deu origem a “inanição”, tem o sentido de esvaziamento físico ou corporal, chegando mesmo a significar ausência de comida no estômago. Os epicuristas o empregavam para o espaço vazio de matéria. 446 Respectivamente: fim do subcapítulo (3.2) “A História da Superfície”; início do subcapítulo (4.3) “Morte da origem”. 445