Editorial Cinema de Preto #03:
‘OCASO da LEI PAULO GUSTAVO no
ABISMO do APARTAID BRASILEIRO’
sentados: Paulo Moura, Abdias Nascimento, Luiz Carlos Saldanha, Danddara; de pé: Delanir Cerqueira, Paulo
Braga, Edinho, Carlão, Carlos Moura, Elizabeth Nascimento; foto de Cris Isidoro; chez Nascimentos, Rio, 2004.
A diversidade no audiovisual brasileiro é Cronicamente Inviável. (...) À Direita, o
controle de Jornais, TVs, e major Film Studios por bancos, e grupos poderosos do
mercado financeiro torna-se cada vez mais explícito. Desse modo, o Capital pauta
discursos objetivos e subjetivos das coletividades à sua imagem e semelhança,
marginalizando diversidades e dissonâncias.
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Queridos talentos do Núcleo Criativo CINEMA DE PRETO. A Lei Paulo Gustavo foi
adiada em todo País. O Dinheiro da RioFilme não entrou nem tem previsão de
pagamento. Temos que suspender o cronograma de trabalho por tempo indeterminado.
Quando o dinheiro chegar, faremos a divisão conforme combinado. Para isso,
precisamos dos contratos assinados. (Flay e Pãteani ainda não enviaram!) Depois a
gente vê que jeito se dá para entregar aquilo que o Edital exige. Ninguém tá nem aí pra
qualidade dos roteiros. Só a gente é que liga pra isso. Na verdade, o CINEMA e a
ARTE não são importantes para os Governos. Direita ou Esquerda... tanto faz. No
fundo, só a grana e a manutenção dos privilégios de ricos e poderosos interessa aos
burocratas de pele clara, que ficam sentados no ar-condicionado enquanto nossas
comunidades pretas e morenas pegam fogo, são arrasadas por enchentes, violências e
outras barbaridades. As vidas dos artistas indígenas e pretxs de origem humilde,
também não têm valor nenhum para eles. A maior parte do dinheiro dessa Lei Paulo
Gustavo vai para os grandes produtores de cinema e audiovisual, brancos, homens, e
heterossexuais em sua esmagadora maioria. Praticamente todos os editais do
Audiovisual são assim... Na hora de atrasar o dinheiro, eles colocam a massa de
artistas pobres no mesmo saco dos ricos. Quando o dinheiro chegar, poucas grandes
empresas receberão milhões. Grupos como o nosso, com 6 cineastas indígenas e pretxs,
mais uma penca de prestadores de serviço nas quebradas e aldeias, que esperam essa
verba pra tirar o pé da lama... terão que compartilhar 120 mil reais e ainda lamber os
beiços. Afinal, para que os poucos prêmios de milhões sejam possíveis, milhares de
artistas ficaram na pista a ver navios. Muito triste tudo isso. Triste e ordinário. Essa é a
história do Apartaid brasileiro desde a invasão de Cabral com seus marinheiros
tarados e fedorentos, em abril de 1500. Os brancos seguem hábeis em arrancar toda
riqueza que conseguem carregar, para acumular fortuna e gastar na Europa e EUA.
Enquanto isso a gente da terra vive de-déu-em-déu, com fé em Deus, lutando para não
perder o juízo. Fiquem com Deus. Se cuidem. Nosso Hub enviará um comunicado
oficial pro MINC, RIOFILME, e SECEC-RJ com cópia pra todos. Na sequência
publicaremos esse mesmo texto online, em mais um Editorial.
A transcrição acima reproduz parte de uma mensagem interna do Núcleo Criativo
CINEMA DE PRETO aos cineastas associados, comunicando o adiamento do projeto
de Série ficcional TOPOFILIA: poéticas do amor ambiental por tempo indeterminado.
O conflito de classes subjacente se repete em todo Brasil, espelhando uma realidade que
resite à mudança, e que está estruturalmente entranhada no Estado e na Sociedade.
Antes de desenvolver nossa crítica sobre o tema, é necessário destacar que nossa
orientação política é de Centro-Esquerda, mais para a praia da social democracia.
Qualquer intercessão com a ancestralidade tucana terá sido mera (e infeliz)
coincidência. Nossa opção pelo Centro, em vez da Esquerda-Esquerda, se deve ao fato
óbvio de que todo cineasta periférico quer ser reconhecido individualmente, ter chances
de produzir obras de qualidade, licenciar por uma boa nota, e comprar uma casa – como
fez Danddara nos EUA, em 2002, com seu Gurufim na Mangueira [1]. Ressalvas
feitas, a experiência acumulada pelo Núcleo CINEMA DE PRETO demonstra que, no
contexto da Economia Criativa ou, mais especificamente, no que tange o acesso às
verbas públicas de fomento à cadeia de produção de Longas e Séries, o Apartaid
brasileiro opera igualmente em governos de Esquerda e de Direita.
A diferença se dá, sobretudo, na quantidade de oportunidades e verbas oferecidas
aos excluídos, e no peso da inclusão para as políticas públicas da Cultura. Em governos
de Direita, a Cultura decresce em relevância e a cartilha neoliberal, de favorecer os
“mais aptos” para que se consolidem no topo da cadeia alimentar, é estendido ao show
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business sem maiores particularidades. À Direita, o controle de Jornais, TVs, e major
Film Studios por bancos, e grupos poderosos do mercado financeiro, torna-se cada vez
mais explícito. Desse modo, o Capital pauta discursos objetivos e subjetivos das
coletividades à sua imagem e semelhança, marginalizando diversidades e dissonâncias.
E qual seria a imagem e semelhança do capitalismo ocidental, se não a face altiva do
macho branco que, supostamente, vem, vê e vence por “mérito” próprio?À Esquerda,
artistas têm mais liberdade e a arte tem mais valor. Mas a concentração de renda, e a
segregação estrutural de raça e gênero permanecem, basicamente, as mesmas.
Dizemos isso não para demonizar as pessoas brancas que se encontram hoje (e
sempre) em posição de comando, com o poder de selecionar uns poucos felizardos da
massa de excluídos para sentarem-se à mesa do banquete de verbas públicas do
audiovisual. Mas para estabelecer uma linha de raciocínio capaz de demonstrar a que
ponto nossos hábitos automáticos se sobrepõe a qualquer boa vontade direcionada à
justiça social, política ou filosófica, por mais sincera que seja. Desde que o Movimento
CINEMA DE PRETO foi fundado, em 2003, no set de filmagens da cinebiografia
inacabada de ABDIAS NASCIMENTO, tentamos inúmeras vezes acessar recursos nos
editais do audiovisual, do MINC, SECEC-RJ e RIOFILME. Fundada em 2007, para
viabilizar a conclusão daquele filme, a produtora NOSSO CLAN AUDIOVISUAL
submeteu 8 propostas no FSA com equipes técnicas que ostentavam 2 indicados ao
Oscar: LUIZ CARLOS SALDANHA, e PAULO LINS que, em 2016, apoiaram a
criação do Núcleo Criativo CINEMA DE PRETO, numa nova etapa do nosso ativismo
artístico-político para a diversidade e democratização do Cinema Brasileiro, iniciado lá
em 2003. O ressentimento e desconfiança acumulados nessa travessia se dissiparam no
encontro de capacitação que a RIOFILME promoveu na Escola FIRJAN, em dezembro
de 2023. Havia naquela “aula de prestação de contas”, uma vontade muito evidente da
equipe ali presente de transformar o Cinema Carioca, trazendo mais interlocutores para
o debate. A evolução das regras da prestação de contas também era, em si mesma, uma
prova concreta desse empenho em busca de um ideal de simplicidade e acessibilidade.
A alegria de termos sido, enfim, contemplados com uma migalha que pudesse ser
compartilhada com todo o Grupo e viabilizar a continuidade do nosso trabalho,
sobrepôs-se às velhas mágoas. E nos dedicamos a fazer o nosso melhor, para otimizar
os magros (e preciosos) recursos que nos seriam destinados. Todavia, como no clássico
Orfeu do Carnaval...
A felicidade do pobre parece
A grande ilusão do carnaval
A gente trabalha o ano inteiro
Por um momento de sonho
Pra vestir a fantasia de Rei
Ou de Princesa ou Jardineira
Pra tudo se acabar na quarta-feira!
Nossos talentos criativos ociosos ficam, destarte, atrelados ao imperativo da
denúncia, incapazes de escapar do loop de pegadinhas e sabotagens anunciadas.
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A diversidade no Audiovisual brasileiro é Cronicamente Inviável. O mesmo se
aplica à diversidade nos espaços de poder. A Branquitude aparelhada nos mecanismos
históricos de pilhagem da riqueza coletiva, fruição do trabalho precarizado, e
manipulação das regras do jogo (dos juros às leis que saem do forno conforme o apetite
do freguês) administra com êxito seu domínio secular. Se os novos tempos clamam pelo
fim da discriminação de raça e gênero, e pela redução das escandalosas desigualdades
entre poucos muito-ricos e multidões de miseráveis, instituições de representatividade
étnica como a FUNAI (até ontem, liderada exclusivamente por antropólogos brancos), o
IPEAFRO, e até Casas de Candomblé são instrumentalizadas para a manutenção do
estado de coisas vigente, com as classes sociais racializadas e uma visível distinção
entre a cara da pobreza, a cara do privilégio, e a cara dos que têm, ou não, a chance de
“vencer por mérito próprio”. O mérito tem peso zero na equação que define a
viabilidade de uma carreira autoral no Cinema. O estudo, esforço, e persistência não
definem nada. O ocaso da LPG ilustra bem esse fenômeno. Nosso Hub CINEMA DE
PRETO concorreu em 11 editais, na RIOFILME e na SECEC-RJ, e mais 1 edital na
Secretaria Municipal de Cultura de São Luiz. Ganhamos 3 no Rio e 1 no Maranhão.
Com a confirmação das verbas a receber, levantamos 10 mil reais para nos habilitarmos
a assinar os contratos, sacudindo a poeira da inatividade. Previstos para 12/2023, os
editais foram suspensos sem previsão de pagamento dos prêmios. Acontece que 2
cineastas do Hub sobrevivem de Bolsa Família. Pois é... Não satisfeitos de sermos todos
pretxs e indígenas, somos também humildes, sem lastro, parentes importantes, ou
apadrinhamento de major players. O que acontecerá conosco, e com os outros grupos de
artistas pobres, que apostaram na LPG como uma oportunidade real de ter seu mérito
reconhecido e recomeçar? É claro que, mesmo para privilegiados a carreira no Cinema é
muito difícil. Mas pessoas “como nós” simplesmente não deveriam se meter nisso.
Chega a parecer ridículo. Porque o modus operandi do Apartaid brasileiro é um
pano de fundo muito evidente em todos os processos de financiamento público. Esse
tipo de pedalada é comum, especialmente com as verbas da Cultura, sempre as
primeiras a serem retidas e contingenciadas. Tão comum que nenhum pobre, preto ou
indígena avulso, deveria se meter a besta, e se dar ao luxo de querer entrar nesse
mercado sem um produtor branco e poderoso que o avalize e, no frigir dos ovos, seja o
dono dos direitos patrimoniais de suas obras. Como o sambista, em Rio Zona Norte,
magistralmente interpretado por Grande Otelo, que luta para ganhar algum dinheiro e
notoriedade com sua arte, mas após perder seu tempo numa festa de bacana onde
ninguém tem a real intenção de ajudá-lo, acaba vendendo o Samba para um
“comprositor” estabelecido no mercado fonográfico. O verdadeiro criador ganha uns
trocados e sequer tem o seu nome associado à canção que estoura na voz de Ângela
Maria. É duro dizer mas, guardadas as devidas proporções, no que esse tipo de dinâmica
difere do “escravo de ganho”, que vendia suas habilidades e ofícios para enriquecer um
Sinhozinho branco?
A tranquilidade com que os prazos são indefinidamente suspensos é agravada
pela falta de respostas. A RIOFILME até que se esforça para dar alguma satisfação
educada; a SECEC-RJ ignora solenemente os nossos questionamentos. Diante desse
quadro, o projeto TOPOFILIA, que teria atividades em fevereiro de 2024 em
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comunidades Hunikuin, Guajajara, Kariu Kariri, e Tupinambá – foi abortado e não se
sabe como será possível retomar. A saúde financeira e fiscal da NOSSO CLAN está
ameaçada, bem como a sobrevivência dos cineastas mais carentes do Grupo, colocando
em risco 18 meses de trabalho e esforços de vários artistas até agora não remunerados.
Nenhum órgão público responsável pela execução da Lei Paulo Gustavo parece se
importar. Mas a situação ainda pode piorar. Segundo a amarga experiência que vivemos
na Cultura Paulista sob Sá Leitão, durante a Lei Aldir Blanc 01, os comunicados
seguiam direto para o DOE e não havia uma atenção individualizada do Estado para
com os contemplados. No caos da Pandemia, vários grupos periféricos sem contatos
pessoais nos bastidores da SEC-SP foram sumariamente eliminados. Estávamos entre
eles. Não raro, a turma do gargarejo, que fica na primeira fila da suplência aguardando
para abocanhar os prêmios desses desvalidos, é composta por proponentes com acesso
privilegiado, alguns dos quais chegam a ser premiados todos os anos.
..........
Embora seja um padrão da administração pública (municipal, estadual e federal)
tratar desta forma casual as verbas da Cultura, a displicência com que se empurra, há 14
meses, a tramitação e distribuição da “verba emergencial” da Lei Paulo Gustavo
destinada a socorrer artistas em situação crítica, gera enorme indignação. Sabemos que
o Governo Lula 3 é uma salvação para as Artes e a Democracia. Sabemos que o atual
Governo Federal está pressionado entre as chantagens do Centrão e a ameaça fascista.
Apoiamos o Governo Lula e a gestão de Margareth Menezes no MINC. Mas, verdade
seja dita: nenhum único centavo dos editais da Cultura chegou a qualquer um dos
membros do Hub CINEMA DE PRETO. Além dos 12 Editais da LPG, concorremos
em mais 5 editais federais. Da nossa perspectiva, a ineficácia na distribuição e
democratização do acesso a verbas é inegável. Tentamos colaborar com o MINC, desde
janeiro de 2023. Mas nossa iniciativa de participação popular não avançou muito além
de alguma interação com a Inteligência Artificial da plataforma FALA.BR.
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Além de indícios claros de desvio de finalidade na aplicação da LPG, e alguns
sinais de possível corrupção, há várias implicações políticas a serem observadas.
Segundo alegou o Departamento de Fomento da RIOFILME, “a LPG está atrasada em
todo o Brasil. E o atraso se deve à paralisação do TESOURO, que não libera
pagamentos desde 04/01”. Essa explicação lança no ar a suspeita sobre o TESOURO
NACIONAL, indicando que a UNIÃO seria responsável pela pouca vergonha na
distribuição dessa “verba emergencial da cultura” à classe artística vulnerabilizada pela
Pandemia. Se isto é fato, a hipocrisia do Governo Federal seria gritante. Porque
propagandear a LPG atraindo os artistas de todo o País para depois puxar a cenoura,
como se faz para mover uma carroça tracionada por burros, sem aviso prévio e sem
previsão de pagamento – é uma crueldade e um erro político grosseiro. Por que isso vai
gerar revolta em todos os Estados e Municípios da federação aonde haja cineastas
periféricos que suaram muito a camisa para alcançar a linha de chegada dos Editais.
Por outro lado, se quem está pedalando com o dinheiro da LPG são Estados e
Municípios, então o Governo Federal pode estar tomando bola nas costas de inimigos
políticos (mal) disfarçados. No caso do estado do Rio de Janeiro, e da Capital,
considerando que o Governo Castro é parceiro de Bolsonaro, e que o atual Presidente da
RIOFILME é egresso das Organizações GLOBO – principal parceria estratégica da
atual gestão do Audiovisual Carioca, – nos parece plausível o movimento de represar o
pagamento e depositar a insatisfação resultante na conta do MINC. Todavia, essa lógica
não se aplica à cena maranhense, onde o problema é ainda mais complexo. Na cidade de
São Luiz, onde o resultado final do Edital de Cinema foi publicado em 11/2023, o
pagamento agendado para o mês seguinte teve adiamento anunciado no começo de
dezembro, indefinidamente. No Estado do Maranhão, o quadro é pior. A Secretaria
Estadual de Cultura anunciou que “aplicará a LPG até o fim de 2024”, sem qualquer
indicação de data ou compromisso com a finalidade “emergencial” de verbas
autorizadas pelo Congresso em 12/2022. Na Lei Aldir Blanc 01, as Secretarias de
Cultura, do Maranhão e da Capital, distribuíram verbas sem assegurar acesso
democrático a todos. Somente as Empresas acessaram verbas do Cinema, excluindo-se
as MEI. Pessoas físicas só tiveram acesso a verbas simbólicas. Houve sobra de recursos,
que foram distribuídos num Edital relâmpago em que poucos privilegiados teriam
abocanhado 100 mil reais cada um para entregar apenas poucas páginas de argumento
de roteiro. Na LPG, o MINC avançou muito nas regras para promover a democratização
do acesso às verbas públicas da Cultura. Mas se há brechas que permitam a aplicação de
uma Lei de socorro emergencial (que tramita desde 2022) até o fim de 2024... então
alguma coisa está muito errada. Contudo, uma eventual má gestão das verbas da LPG
no Maranhão não terá sido motivada pela mesma razão que explicaria um suposto uso
político da LPG no Rio. Afinal, até onde sabemos, Flávio Dino fez seu sucessor no
comando daquele Estado, que continua aliado de Lula. Se comprovada, a má gestão das
verbas da LPG pelo Maranhão e por São Luiz seria, possivelmente, “mera” corrupção.
Toda essa explanação nos ajuda a demonstrar a engrenagem do Apartaid
brasileiro em plena ação. A sabotagem de artistas e empreendedores periféricos no Setor
Audiovisual começa no berço. E se reproduz, automaticamente, em diferentes níveis.
Todavia, o foco da segregação é o bloqueio do acesso às verbas públicas de fomento.
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Claro que esse bloqueio se dá em todos os setores da economia. Mas aqui “O assunto é
Cinema! O assunto é Cinema! O assunto é: CINEMA!” Ave, Glauber, sagrado maldito,
eterna inspiração. Ferramentas como Artigo 3º, Condecine Remessa, e financiamento
automático são vedadas ao comum dos mortais. Em 2010, a NOSSO CLAN obteve uma
carta de interesse do Canal TBS – Muito Divertido, para a Série OS HIPÓCRITAS, um
dos muitos projetos nossos rejeitados pela RIOFILME. Conversamos pessoalmente com
o Vice-Presidente do Grupo Warner para a América Latina. Inquirido sobre o
Condecine Remessa, ele revelou que essa verba estaria “previamente comprometida
com os grandes produtores brasileiros”. Os integrantes desse núcleo duro de (poucos)
grandes produtores que compartilham o Mercado são, basicamente, os mesmos grupos
(e famílias) que formataram o Sistema Ancine com parlamentares da Esquerda,
definindo uma tributação exclusiva para alimentar o Setor com a taxação de lucros das
Empresas internacionais, consolidada no primeiro governo Lula. Fomos observadores
em reuniões privadas de grandes cineastas “da antiga”, e encontros públicos da ABD,
entre 2000 e 2001 no Rio, quando essas discussões estavam muito acesas. Segundo
idealizadores do Sistema Ancine, a “porta de entrada” da plebe ao Olimpo do cinema
pátrio seriam os Editais do MINC e de órgãos Municipais e Estaduais de fomento
direto. É nessa briga que o Apartaid opera com suas ferramentas mais sutis e eficazes.
Filmado e lançado em 2000, Gurufim na Mangueira, filme de estreia de
Danddara, foi submetido 3 vezes no mesmo edital de incentivo à produção da SAV.
Após 2 fracassos, a autora inconformada resolveu testar o mesmo projeto com outra
identidade, submetendo-o em nome da produtora Mônica Behague. De algum modo, a
mulher branca de sobrenome francês (ou argelino, segundo Marc Beauchamps) foi
aceita pelas bancas examinadoras da SAV onde a autora negra foi rejeitada. Esse tipo de
“coincidência” é uma constante no Cinema Nacional. Mesmo para contar histórias
pretas, indígenas, e periféricas cineastas brancos têm mais sucesso no acesso a verbas e
todo tipo de contrato lucrativo na vida comercial de suas obras. Em favelas famosas
como Vidigal, e Santa Marta, o Núcleo Audiovisual Nós do Morro foi (ou é?)
viabilizado pela liderança do branco Gutti Fraga, originalmente externo à comunidade,
enquanto o Núcleo Audiovisual Atitude foi liderado pelo gaucho, branco, Robespierre
Ávila. Nos anos 2000, quem apareceu em destaque, posando em fotos na passarela da
Rocinha, em matéria sobre “cinema periférico” no jornal O Globo, foi o produtor Cavi
Borges – um branco que, em 2018, chegou a figurar entre os cineastas pretos na vinheta
de abertura do XI Encontro de Cinema Zózimo Bulbul. Cidade de Deus, drama da
periferia afro-carioca, catapultou o paulistano Fernando Meirelles, branco, ao panteão
das estrelas internacionais. Ninguém questiona o “mérito” ou talento desses cineastas.
Mas o fato de que cineastas pretos dessas mesmas comunidades, por uma série de
motivos, não chegaram nem perto das oportunidades de realizar feitos semelhantes,
mesmo que fosse para contar suas próprias histórias, também não se pode questionar.
Entre os cineastas indígenas, Vincent Carelli, franco-brasileiro, branco,
responsável pelo VIDEO NAS ALDEIAS, atuou como dono do cinema originário
nacional, controlando por mais de 2 décadas toda a produção audiovisual dos povos
indígenas brasileiros, das verbas à distribuição, passando pela capacitação de talentos.
De novo, ninguém discute a contribuição de Carelli na introdução do audiovisual como
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ferramenta de autoexpressão de cineastas indígenas. Mas a exclusão desses mesmos
indígenas é, até hoje, uma realidade que não pode ser negada, tampouco tolerada.
Graciela Guarany, cineasta que integrou a primeira formação do CINEMA DE PRETO
em 2016, fundou recentemente, no interior de Pernambuco, a primeira empresa
produtora gerida por uma realizadora indígena. Ganhou um prêmio de grande prestígio
(e alto valor) em Edital da LPG. E tem sido desqualificada por produtores da cena
cinematográfica de Recife, mundialmente reconhecida por sua estética arrojada como
vanguarda do cinema brasileiro. Como se vê, mesmo entre os artistas mais avançados,
de Esquerda, demolidores de preconceitos e caretices, a chaga inconsciente do Apartaid
brasileiro marca presença. Quando se trata de conviver com a democratização, de raça e
gênero, no acesso aos bilionários recursos públicos disponíveis para o Audiovisual, o
racismo contra a mulher indígena baseada numa aldeia no interior de Pernambuco,
mostra sua cara, irmanando capitalistas, comunistas, evangélicos, e maconheiros.
Esse diagnóstico é importante porque, sem reconhecer o problema, é mais difícil
mudar essa realidade. Na situação que vivemos, o caminho possível é só um: mudar, e
mudar de verdade. A experiência do Hub, na luta histórica pela autoimagem do Negro
no Cinema, remonta ao set de filmagens de Black Orpheus, onde ABDIAS observava a
performance de LÉA GARCIA e, antes disso, ao palco do Teatro Municipal onde o
TEATRO EXPERIMENTAL DO NEGRO encenava a tragédia que encantou Camus.
still frame de Cinema de preto, curta-manifesto, 2004
Depois, ABDIAS passa pela Atlântida, em O Homem do Sputinik [1959] e pelo
Cinema Novo, no curta Escola de Samba Alegria de Viver [1962], onde conhece LUIZ
CARLOS SALDANHA e NÉLSON CAVAQUINHO. No doc Fala, Mangueira! ele
ensaia uma narrativa em primeira pessoa, ainda sob a direção de um cineasta branco.
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Seria apenas em CEN: Cinema Experimental do Negro, aos 89 anos, que faria sua
primeira e única experiência de autoimagem no Cinema, em parceria com Danddara, a
cineasta negra pioneira com quem fundou um Movimento artístico-político com a
ambição descarada de transformar o Cinema Brasileiro, e realizou o curta-manifesto
Cinema de preto [2004]. No set desse longa doc que fizemos sobre sua vida e obra, com
fotografia de Luiz Carlos Saldanha e trilha de Paulo Moura, – cuja conclusão tem sido
adiada há 20 anos pelo (mau e) velho racismo estrutural brasileiro – Abdias destacou
para a equipe fundamentos do seu Quilombismo, e a história real dos quilombos, como
herança afro-ameríndia que define, em grande parte, a identidade nacional.
As questões que nos afligem estão postas, com maior ou menor precisão.
Solucionar o impasse em torno do pagamento das “verbas emergenciais” da Lei Paulo
Gustavo aos artistas, e prestar esclarecimentos às dúvidas que pairam a esse respeito,
são respostas que os órgãos públicos gestores da Cultura, na União, Estados, e
Municípios devem à Sociedade. Conforme o andar da carruagem, e as explicações que
emergirem, o caso pode ensejar ação por danos morais coletivos por parte de entidades
representativas de artistas periféricos organizados em todo País.
Naturalmente, torcemos pelo melhor.
Seguimos.
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Audiovisual & Diversidade
[1] Gurufim na Mangueira, ficção, 26 min, 35mm, 1:85, Dolby SRD, cor, Brasil 2000.
Sob o título internacional A Funeral at the Samba school, foi licenciado para a
HBO/USA no biênio 2003/2004.
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