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Tempo de Laiusar

2009, Revista de Psicanálise Stylus

Tempo de Laiusar Antonio Quinet Estamos em tempos de Pai real. A figura representativa do Pai simbólico, aquele que une o desejo com a lei, que barra o gozo devastador da Mãe, o pai normativizador que protege e apazigua, esse pai está desaparecendo na aletosfera espessa produzida pela fumaça do desmatamento da subjetividade no mundo contemporâneo. De nada adianta lamentar o declínio da autoridade paterna, acusar o pai de humilhado, impotente e desdentado e receber o que todos já sabem que quem é o escravo da família é o papai. A figura paterna que tem emergido de seu obscuro anonimato é o Pai real, “o grande fodedor”1, como diz Lacan, o pai sacana fora da lei, gozador, que trata os filhos como objeto. Temos como exemplos recentes o austríaco Joseph Fritzl, mantendo em carceragem sua filha por 18 anos, nela engendrando seus próprios filhos; e o pai violento, possuído por uma ignorância feroz, como o pai de Izabela, que auxiliado pela madrasta num ato insano a atirou pela janela abaixo. Nossa sociedade contemporânea parece viver o mito de Totem e Tabu às avessas: o desmoronamento da Lei simbólica deixa aberto o caminho para o retorno do cadáver vivificado do pai morto, o Urvater, figuração do Pai real, como pai gozador da horda primitiva, tirânico abusador e assassino. O assassinato do pai e sua substituição simbólica por um totem fizeram Freud dizer que no início era o ato – no início da civilização era o ato. Nesses tempos de barbárie contemporânea o que faz aparição não é o ato dos filhos impondo a Lei e sim os atos desmedidos do Pai real que faz a sua lei – lei do gozo – fora de qualquer Lei do campo do Outro. Retomemos o mito de Édipo à luz do pai real e de Totem e Tabu. Quem é o pai de Édipo? Na verdade, ele teve dois pais: o pai biológico Laio, rei de Tebas, que ele não conheceu e sem saber o matou; e Pólibo, que o criou em Corinto. Mas é Laio, que aparece como Pai real cuja desmedida constitui a Até, a desgraça, a maldição dos Labdácidos e que será transmitida e paga por três gerações: o próprio Laio, Édipo e seus filhos Etéocles, Polinice, Antígona e Ismênia. Laio é filho de Lábdaco, rei de Tebas e quando este é assassinado, ele é levado aos 2 anos de idade para a Frígia sendo recebido pelo rei Pélops que o adota. Laio tem também dois pais. Pélops tem um filho, Crísipo, o qual, ao chegar na adolescência, é entregue a Stylus São Paulo nº 18 p. 1-192 abril 2009 1 Lacan. O Seminário, livro 7 (1959-60/1991, p. 368). 25 2 Lacan. O Seminário: RSI (1974-1975, lição de 17 de dezembro de 1974). 3Ibid 26 Laio para educá-lo. Este se apaixona pelo menino e o rapta e Pélops lança, então, a maldição: “se tiveres um filho ele te matará e toda tua descendência desgraçada será”. Daí vem a maldição e toda a história cujo desdobramento está na peça de Sófocles. A desmedida de Laio não foi ter tido relações com Crísipo, pois a relação pedagógica erastes-erômenos era aceita como uma relação pedófila normal de amante-amado, professor-aluno na qual o saber não é transmitido sem Eros. A hybris de Laio foi tê-lo sequestrado e com isso ter rompido as leis da hospitalidade e traído aquele que o acolhera. A maldição de Pélops para Laio é o que o faz furar os pés de seu filho Édipo e mandar matá-lo. Na minha interpretação, Édipo não quis saber do crime do pai e nem de sua tentativa de assassinato. Ele, em sua investigação, foi até o ponto em que descobre que matou o pai e que a mulher com quem está é sua mãe. Mas não vai além disso, pois não quis saber da maldição herdada e da desmedida paterna. Se compararmos o desenvolvimento trágico da investigação de Édipo sobre sua origem, como o fazem Freud e Lacan, com o percurso de uma análise podemos dizer com Lacan que se Édipo tivesse tido tempo de laiousar ele talvez não tivesse tido o desfecho que teve. Lacan introduz esse comentário sobre a peça de Sófocles Édipo Rei no seminário RSI quando aponta que o furo do simbólico, correspondente ao recalque originário, é a morte. A peste, diz Lacan, é isso: a morte é para todos. “É preciso que a peste se propague em Tebas para que esse ‘todos’ cesse de ser de puro simbólico e passe a ser imaginável. É preciso que cada um se sinta concernido pela presença da peste”2. Esta é, portanto, o real do furo do simbólico imaginarizado – peste que é o desdobramento da calamidade provocada pela Esfinge, outra figura da morte e da Até, desgraça, dos Labdácidas. Édipo, continua Lacan, só matou o pai por não ter se dado o tempo de Laiusar. Se o tivesse feito, o tempo que fosse preciso, teria sido o tempo de uma análise, pois era para isso que ele estava na estrada.3 Laiuser em francês é derivado de lalue, que significa discurso, fala, peroração no jargão das Escolas. User em francês significa utilizar e também gastar, usar até acabar como uma sola de sapato que o tempo na psicanálise II de tanto se usar vai gastando e acaba. Na análise é preciso tempo para usar e gastar o pai real. Tempo para se ir para além do desejo de salvar o pai, defrontar-se com seu crime e vencer a ordem de ignorância feroz. Passando do mito à estrutura: é preciso tempo para se haver com o impossível do furo do simbólico lá onde jaz o gozo do pai real imaginarizado, uma vez que pai real e pai imaginário tendem a se imiscuir um no outro. É o pai que aparece como abusador e criminoso na histeria e na neurose obsessiva cujo gozo se sintomatiza no filho. É o pai de tal paciente do hospital que a espancava quando ainda bebê ela chorava e que hoje seu sintoma é um choro sem fim e sem razão; ou o pai militar que colaborou com a ditadura militar de tal outra analisante que faz de seu corpo um palco de torturas, ou o pai fiscal do imposto de renda de um obsessivo que se enriqueceu ilicitamente deixando para o filho a dívida do eterno desemprego. O neurótico prefere salvar o pai a se deparar com sua canalhice; ele prefere sofrer com seu sintoma a saber do crime do pai e suas consequências. Prefere, como Édipo, se sentir culpado de seus atos a desvelar a desmedida do gozo paterno. Deparar-se com o real do pai é confrontar-se com a consequência da falta radical do Outro, ou seja, o gozo mortífero para além do desamparo. E para isso é preciso Laio-usar – gastar o Laio de cada um. A posição do pai real, segundo Lacan4, está articulada em Freud como um impossível e não é surpreendente, diz ele, que encontremos sem cessar o pai imaginário. É uma dependência necessária, estrutural. É o que vemos na figura do fantasma do pai: o espectro do cadáver vivo, como o pai do Homem dos ratos que apesar de morto lhe aparece vivo no meio da noite, e o pai de Hamlet, que além de aparecer, tem fala. O espectro é o habitante dessa zona entre-duasmortes, campo de gozo, do Hades ao inferno, onde penam as almas pecadoras e criminosas à espera da segunda morte. “Sou o espírito de teu pai e vivo errante noite e dia até que a podridão de meus crimes seja queimada e purificada” – diz o pai de Hamlet no início da peça. As mitologias criaram esse habitat para o pai real. Mas quem queima é o filho. Ele arde por causa dos pecados do pai, como diz Lacan.5 Pai, não vês que estou queimando por causa de teus pecados? E o espectro do pai de Hamlet lhe diz que “a menor de minhas Stylus São Paulo nº 18 p. 1-192 abril 2009 4 Lacan. O Seminário, livro 17: O avesso da psicanálise (1969-70/1992). 5 Lacan. O Seminário, livro 11: Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise (1964/1990). 27 6 Strauss. Trèfle: Bulletin de L’association Freud Avec Lacan (1999, p. 48). 7 O Seminário, livro 17, op. cit., p. 159. 8 Lacan. Télévision (1974, p. 35). 28 faltas angustiaria tua alma, gelaria teu jovem sangue e teus olhos saltariam das órbitas como os astros de suas esferas...” Os crimes do pai são de um real que não cessa de não se dizer para o filho e, no entanto, insiste e se tornam um sintoma do filho – como a dívida do pai do homem dos ratos e o gozo oral do pai de Dora. O espectro recobre, mascara, vela e também desvela o pai real ou o real do Pai. O espectro é a encenação da articulação entre o pai real e o pai imaginário. É o que se encontra, como diz Marc Strauss6, na fantasia de Bate-se numa criança em que as cenas veem ao sujeito petrificar, cristalizar um excesso como um ciframento primeiro, uma representação do inominável do gozo. Não importa se é efetivamente do gozo do Pai que se trata ou do gozo imaginarizado do Pai e sim do dispositivo que o sujeito emprega para endossar um gozo que se apresenta a ele como exterior, vindo do Outro. O pai do crime não é o pai da lei, o Nome-do-Pai. O pai estuprador, ladrão, assassino, são figuras do pai imaginário que dá forma à hybris do pai: o gozo desmedido. A desmedida do pai com seu real é aquilo que o filho, com força, não quer saber. O homem é como Édipo, filho de Laio – ele não quis saber da desmedida paterna. No lugar do pai real existe, diz Lacan7, a ordem de uma ignorância feroz. Há uma interdição: “Está excluído que se analise o pai real, diz Lacan em Televisão, o melhor que se pode é o manto de Noé, quando o pai é imaginário”8. Um dia Noé se embriagou e ficou nu em sua tenda. Um de seus filhos, Chan, o viu e foi chamar os outros dois que, ao chegar, taparam os olhos e o cobriram com um manto para esconder a nudez paterna e saíram de costas. Estes se salvaram e toda a descendência de Chan foi amaldiçoada. O que Noé fazia nu na tenda, jamais saberemos, mas sem dúvida era algo da ordem de um gozo que filho algum poderia em tempo algum ver ou saber. Toda nudez do pai será castigada... no filho. O pai que mata o filho é abordado por Lacan a partir do sacrifício de Isaac por seu pai Abraão, comentado por Kierkegaard descrito em Temor e tremor em que descreve quatro variações do mito que se diversificam a partir do ponto em que Deus diz a Abraão: “sacrifica teu filho, mate-o”. É na primeira que ele descreve a tenta- o tempo na psicanálise II tiva de filicídio. Abraão agarrou Isaac pelo peito, jogou-o no chão e gritou: “Estúpido! Crês tu que sou um pai? Não, não sou teu pai. Sou um idólatra! Crês que estou obedecendo a um mandato divino? Não. Faço isso somente porque me dá vontade e porque me inunda de prazer!”. Abraão aparece como o pai real que diria: “Vou te matar por puro gozo!”. “Então Isaac exclamou, angustiado: ‘Deus de Abraão, tende piedade de mim! Sê meu pai, já não tenho outro neste mundo!’. Abraão se dirigiu a Ele, dizendo: Senhor onipotente, receba minha humilde ação de agradecimento, pois é mil vezes melhor que meu filho acredite que sou um monstro do que perca a fé em ti”9. O pai monstro, capaz de matar o filho nem que seja por amor a Deus, é o que é transmitido ao filho como seu pecado. É a propósito dessa passagem de Kierkegaard que Lacan diz no Seminário XI que o que se herda é o pecado do pai. Isaac herda o crime do pai de ter desejado matá-lo. Eis a herança de Isaac e também a de Édipo. Diferentemente de Abraão, que no mito judaico-cristão recebe a ordem de Deus de matar o filho predileto como prova de seu amor, Laio ele mesmo decide matar seu filho Édipo para evitar que este o mate segundo a maldição oracular, fura-lhe então os pés e o entrega a um pastor para ser jogado no lixão do monte Citéron. O Urvater de Totem e tabu, Noé com sua nudez, o Deus de Abraão, Yavé, com sua ignorância feroz e Laio são figuras imaginarizadas e míticas do pai real. Édipo carrega em seu nome e em seu corpo a marca do crime do pai. A ferida causada por seu pai ao furar-lhe os tornozelos para pendurá-lo como um animal e expô-lo, e o edema que ocasionou foi o que lhe deu o apelido de Óidipous, de oiden, edema nos pés. O apelido virou nome próprio e a ferida deixou-lhe coxo. Seu pé carrega um saber (oida) sobre o crime do pai do qual Édipo não quis saber. A esfinge, como aponta Jean-Pierre Vernant, enunciava o enigma dos pés e equivocava com seu nome: “tetrapous, dipous, tripous” disse ela para Óidipous que ao dizer o homem como resposta suprimiu, como diz Lacan10, o suspense da verdade. A verdade sobre a castração e o gozo de Laio – o pai real se manifesta em Édipo como aquele que determina a Até família dos Labdácidos do qual ele e sua descendência são herdeiros e também se manifesta como ignorância feroz: mandamento superegoico de não-saber. Eis Stylus São Paulo nº 18 p. 1-192 abril 2009 9 Kierkegaard. Temor e tremor (2004, p. 22). 10 O Seminário, livro 17, op. cit., p. 113. 29 porque para além do desejo de saber que o impulsiona a querer investigar sua origem, Édipo é possuído pela paixão da ignorância. Aliás, não será a força dessa paixão que faz Lacan dizer que finalmente não existe desejo de saber algum? O que Édipo ignora é que seu nome é uma letra que cifra um gozo, o gozo do Outro paterno: o “x” da função do synthoma, ou seja, uma escrita do gozo do Inconsciente. Óidipous, Pé Inchado é o signo do gozo do Pai que desejou matá-lo e do qual ele não quis saber; Óidipous, Pé-que-sabe é a letra que confere a marca do saber do real, saber do crime do pai da origem da Até dos Labdácidas – móvel do filicídio que faz de Édipo o objeto rejeitado pelo Outro – é o selo de seu ser de dejeto. Rejeitado pelos pais e, no final da peça de Sófocles, ao se apagar como sujeito, pelo Outro social, que representa Tebas. Óidipous não acredita em seu ser de synthoma, não acredita que ele seja capaz de um dizer, pois ele não quer saber que se trata aí de uma cifra do gozo. Eis porque erra em sua ignorância e fica escravizado pelo gozo do Pai, servo do destino. Édipo está preso à ignoerrância. O crime do pai real, como gozo desmedido, é transmitido como erro trágico que o filho carrega como óidipous com seu sintoma no pé. Por um lado encontramos a herança da castração que se transmite de pai para filho: Lábdaco, o manco; Laio, o torto; e Édipo, pé inchado. Por outro lado, há a transmissão da maldição que Édipo herda como lote do gozo do pai inscrito em seu nome e seu corpo. Essa letra é o nome do gozo do pai real. O nome que condensa o gozo inscrito no enigma da Esfinge que Óidipous não ouviu. O tempo da análise é o tempo de Laiusar: tempo de laio-ousar – tempo de ter a ousadia de se confrontar com o crime e o gozo desmedido e ectópico do sujeito, que ele localiza no lugar do vazio do Outro – lugar topológico da desmedida do Pai real. É preciso tempo de peroração para o sujeito gastá-lo o suficiente para que se revele o que é: um nada esvaziado de gozo. O tempo de Laiusar é o tempo de olhar para os pés, ouvir os pés e pensar com os pés. 30 o tempo na psicanálise II Referências bibliográficas KIERKEGAARD, S. Temor e tremor. São Paulo: Abril Cultural, 2004. LACAN, J. O Seminário, livro 7: a ética da psicanálise (1959-60). Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1991. LACAN, J. O Seminário, livro 11: os quatro conceitos fundamentais da psicanálise (1964). Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1990. LACAN, J. O Seminário, livro 17: o avesso da psicanálise (19691970). Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1992. LACAN, J. Télévision. Paris: Seuil, 1974. LACAN, J. O Seminário: RSI (1974-1975): lição de 17 de dezembro de 1974. Inédito. STRAUSS, M. Les issues du transfert. In Trèfle: Bulletin de L'association Freud Avec Lacan. França, vol.1, n.2 1999. Resumo O artigo inicia com a discussão da emergência, na contemporaneidade, da figura do pai real, articulada ao desmoronamento da Lei simbólica. Em seguida, analisa o mito de Édipo à luz do pai real, para destacar, na passagem do mito à estrutura, a função do gozo do pai na produção de sintomas do neurótico. O neurótico, assim, é aquele que prefere salvar o pai e nada saber dos crimes deste. O artigo conclui afirmando que o tempo da análise é o tempo de laiousar, tempo que Édipo não se deu por não levar a investigação de sua origem até os crimes de Laio, seu pai. É preciso tempo para se confrontar com o gozo desmedido do sujeito, para gastá-lo o suficiente até que se revele o que é: um nada esvaziado de gozo. Stylus São Paulo nº 18 p. 1-192 abril 2009 31 Palavras-chave Pai real, mito de Édipo, tempo da análise. Abstract The article begins with a discussion about the appearance, nowadays, of the real father-figure, bound to the downfall of the symbolic Law. Next, it analyzes the Oedipus myth seen through the prism of the real father, in order to point out, at the passage from myth to structure, the function of the father’s jouissance in producing the neurotic’s symptoms. Thus the neurotic is the one who prefers to save the father and know nothing of his crimes. The article ends with the affirmation that the duration of the analysis corresponds to the time to dare-laios, the time Oedipus did not give himself, the time to trace the investigation of his background to his origins in Laio, his father’s, crimes. It takes time to behold the subject’s boundless jouissance, to let it waste enough to show itself for what it is: nothing, emptied of jouissance. Key words Real father, Oedipus myth, duration of the analysis. Recebido 28/04/2009 Aprovado 01/07/2009 32 o tempo na psicanálise II