Travessias número 01
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Pesquisas em educação, cultura, linguagem e arte.
MACUNAÍMA, A TRAJETÓRIA DE UM HERÓI MODERNO
MACUNAÍMA, THE MODERN HERO TRAJECTORY.
Valter Aparecido Barcala1
RESUMO: O presente artigo tem por objetivo demonstrar o caráter modernista de
Macunaíma, pautando-se mais no filme do cineasta Joaquim Pedro de Andrade, realizado
em 1969, do que no livro de Mário de Andrade escrito em 1928.
PALAVRAS-CHAVE: Cinema. Folclore. Sociedade.
ABSTRACT: This article intends to demonstrate Macunaíma’s modernist character, based
more on Joaquim Pedro Andrade’s film, 1969, than Mario Andrade’s book, written in 1928.
Keyword: Movie, Folklore, Society.
Introdução
Mário de Andrade foi um dos expoentes da Semana de Arte Moderna de 1922,
onde obras inovadoras e vanguardistas que, rompiam com os padrões estéticos, até então
vigentes, foram apresentadas ao público paulistano no Teatro Municipal.(Divalte; 2002,
p.327). Mário de Andrade procurou fazer uma ponte entre a expressão popular e a erudita,
alcançando as classes menos favorecidas através de sua própria produção cultural. Chegar
as massas também era um preocupação do Cinema Novo, principalmente após 1964.
1
Licenciado em História e Pedagogia, Especialista em Metodologias do Ensino e Aprendizagem da
História, pelo Instituto de Educação São Luís, Mestre em Educação, Arte e História da Cultura pela
Universidade Presbiteriana Mackenzie. Professor Titular de Cargo da Rede Estadual de Ensino do Estado de
São Paulo. E-mail:
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O movimento denominado Cinema Novo inicia-se no final dos anos 50, tendo
como meta a produção independente e de baixo custo. O cineasta Nelson Pereira dos
Santos afirmou:
O Cinema Novo representou a descolonização do cinema, como a que
tinha acontecido antes com a literatura. Por isso, há influência da
literatura
nordestina, dos anos 30, de Jorge Amado, Graciliano. E não podemos
esquecer os nossos paulistas, como Oswald e Mário de Andrade. A
música(...) , a pintura brasileira foi a vanguarda da descolonização, que
deu mais essa coisa de reconhecer a verdadeira face do povo brasileiro.
Por exemplo, Di Cavalcante, Pancetti, (...) Portinari.” (Ridenti, 2000, p.
90).
A década de 60 é marcada por profundas transformações, crescente urbanização,
desenvolvimento dos meios de comunicação, transportes, indústria. No plano político, um
modelo ufanista e cerceador dos direitos políticos e constitucionais, principalmente após a
decretação do Ato Institucional n.5, o artigo 5 e 6, do mesmo Ato, decretava:
ART.5
A suspensão dos direitos políticos, com base neste Ato, importa,
simultaneamente, em:
I - cessação de privilégio de foro por prerrogativa de função;
II - suspensão do direito de votar e de ser votado nas eleições sindicais;
III - proibição de atividades ou manifestação sobre assunto de natureza política;
IV - aplicação, quando necessária, das seguintes medidas de segurança:
a)liberdade vigiada;
b) proibição de freqüentar determinados lugares;
c) domicílio determinado.
§ 1º
O ato que decretar a suspensão dos direitos políticos poderá fixar restrições ou
proibições relativamente ao exercício de quaisquer outros direitos públicos ou
privados.
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§ 2º
As medidas de segurança de que trata o item IV deste artigo serão aplicadas pelo
Ministro de Estado da Justiça, defesa a apreciação de seu ato pelo Poder Judiciário.
ART. 6
“Ficam suspensas as garantias constitucionais ou legais de:
vitaliciedade, inamobilidade e estabilidade, bem como a de exercício em funções
por prazo certo.
No plano cultural, o tropicalismo buscava uma linguagem brasileira para expressar
os problemas brasileiros.
Alguns autores ousaram sugerir traduções políticas para o tropicalismo:
segundo Roberto Schwarz, em texto produzido no calor da agitação
política e cultural dos anos 60, o tropicalismo seria, em sua proposição de
entrelaçamento estético entre o moderno e o arcaico, uma expressão
ambígua entre crítica e integração ao que significou politicamente a
instauração da ditadura militar, também ela articuladora do moderno e do
arcaico. (Ridente, 2000, p. 280)
Dentro deste panorama, o Movimento Modernista de 1922, e os modernistas são
revisitados. Randal Johnson afirma,
Há muitos paralelos entre o modernismo e o cinema novo. Ambos os
movimentos foram reações contra o código dominante nas suas
respectivas áreas de significação: o modernismo, contra o parnasianismo
e sua linguagem bacharelesca, artificial e idealizante que espelhava a
ideologia da estrutura de classe arcaica da sociedade brasileira; o cinema
novo, contra a chanchada e os filmes sérios produzidos em São Paulo,
especialmente os da Vera Cruz, os quais refletiam, ambos, uma visão
colonizada, idealizada e inconseqüente da realidade brasileira.”(Ridenti,
op.cit., p. 23-25)
O filme Macunaíma de Joaquim Pedro é uma alegoria do Brasil moderno, um
Brasil cheio de crises.
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Os filmes do Cinema Novo, em sua primeira fase (final dos anos 50 início dos anos
60), foram feitos para um público intelectualizado, falhando no ponto de vista comercial.
Segundo Glauber Rocha:
O Cinema Novo descreveu, poetizou, discursou, exercitou os temas da
fome: personagens comendo terra, personagens comendo raízes,
personagens roubando para comer, personagens matando para comer,
personagens feios, sujos, descarnados, morando em casas sujas, feias,
escuras.
O cinema enquanto instrumento de conscientização política e social foi levado com
rigor pelo Cinema Novo.
Em sua primeira fase, o Cinema Novo concentrou-se na temática rural, abordando
principalmente a miséria dos camponeses nordestinos. Filmes como Vidas Secas (1964), de
Nelson Pereira dos Santos, Deus e o Diabo Na Terra do Sol (1964), de Glauber Rocha, são
expoentes desta fase, assim como o filme de Eduardo Coutinho, Cabra Marcado para Morrer
de 1964, mas só foi concluído em 1984.
Em sua Segunda Fase, pós Golpe de 64, o Cinema Novo toma como foco principal
a classe média urbana e as incertezas políticas e sociais.
Desta Fase, entre muitos exemplos citamos os filmes; O desafio (1965), de Paulo
César Saraceni, O Bravo Guerreiro (1969), de Gustavo Dahl, Macunaíma (1969), de Joaquim
Pedro de Andrade, Terra em Transe (1967) de Glauber Rocha, este apontado como o mais
significativo do período.
O filme de Joaquim Pedro de Andrade, Macunaíma, é uma alegoria2 do Brasil que
despontava.
2. O filme
O mito é um dispositivo utilizado pelos antigos, para contar os fatos acontecidos em
relação sua vivência cotidiana, utilizando-s da linguagem simbólica.
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Diferente dos heróis da mitologia clássica, em que o nascimento é difícil ou cheio de
presságios, Macunaíma nasce fácil, já homem formado.
Os heróis provinham do relacionamento de deuses com as mulheres comuns, tinham
determinados poderes, como Hércules, detentor de grande força, ou Aquiles com sua
invulnerabilidade. Não se conhece a paternidade de Macunaíma, talvez a própria terra.
Macunaíma é a representação do brasileiro que já nasce sem infância, abandonado a
própria sorte, aprendendo no dia-a-dia a heróica tarefa de sobreviver, órfão de pai, que na
simbologia familiar é a representação de autoridade. Em sua trajetória Macunaíma
destituído de limites e das noções de direito e dever para com seus semelhantes, cria uma
noção particular e egocêntrica da própria vida.
Como todo herói Macunaíma tinha seus poderes.
A moça carregou o piá nas costas e foi até o pé de aninga na beira
do rio. A água parara pra inventar um ponteio de gozo nas folhas do
javari. O longe estava bonito com muitos biguás e biguatingas
avoando na entrada do furo. A moça botou Macunaíma na praia
porém ele principiou choramingando, que tinha muita formiga!... e
pediu pra Sofará que o levasse até o derrame do morro lá dentro do
mato, a moça fez. Mas assim que deitou o curumim nas tiriricas,
tajás e trapoerabas da serrapilheira, ele botou corpo num átimo e
ficou um príncipe lindo. Andaram por lá muito.²
O poder de Macunaíma é o da adaptabilidade, ele se adapta ao meio para sobreviver
e sanar suas vontades, sejam elas quais forem.
(...) a fome bateu no mucambo. Caça, ninguém não pegava caça mais,
nem algum tatu-galinha aparecia!... Macunaíma estava muito contrariado
por causa da fome. No outro dia falou pra velha:
_ Mãe, quem leva nossa casa pra outra banda do rio lá no teso, quem
leva? Fecha os olhos um bocadinho, velha, e pergunta assim.
A velha fez. Macunaíma pediu pra ela ficar mais tempo com os olhos
fechados e carregou tejupar marombas flechas piguás sapiqás corotes
uruoelá no teso do outro lado do rio. Quando a velha abriu os olhos
estava lá e tinha caça peixes, bananeiras dando, tinha comida por
demais(...)
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O folclore é uma constante, tanto no livro de Mário de Andrade, quanto no filme
homônimo de Joaquim Pedro de Andrade. O nascimento, o encontro com o currupira, a
luta com o gigante pela posse do muiraquitã, e a morte quando de seu encontro com a
Uiara.
No filme, a morte da mãe é uma ruptura, pois Macunaíma junto com seus irmãos
partem para a cidade grande, em um determinado momento Macunaíma se depara com
uma fonte, e molhando-se em suas águas se transforma em homem branco, temos aqui
uma crítica ao preconceito racial, a sociedade é preconceituosa, o Brasil serve-se do
trabalho escravo a mais de 500 anos. A tivemos no Brasil Colônia (1500-1822), escravidão
primeira dos nativos da terra e depois do negro africano, a tivemos no Império (18221889), onde a mão-de-obra e a economia girava exclusivamente sobre a escravidão, e a
temos na República. A promulgação de Leis emancipacionistas e principalmente da Lei
Áurea, assinada pela Princesa Isabel, então regente do Brasil em 1888, não aboliu a
escravidão, apenas a escondeu, não houve integração do negro na sociedade, ele foi
colocado a sua margem, ele, o negro, o imigrante, o analfabeto, são escravizados pela
sociedade, vivem a margem dela, vivem nos morros, nos cortiços, nas malocas, nas favelas.
Este “racismo velado” fica evidente na obra cinematográfica, a exclusão social fica
evidente na cena do “pau de arara” trazendo os migrantes para a cidade, e o motorista do
caminhão manda todos descerem e avisa que a partir daquele ponto é cada um por si.
A sobrevivência depende da adaptabilidade, o poder de Macunaíma, e ele se adapta.
Na cidade, Macunaíma continua sua trajetória pela vida e pela sobrevivência.
Temos a partir deste ponto no filme de Joaquim Pedro um distanciamento da obra literária,
de Mário de Andrade, sem perder o ‘fantástico’, o folclórico original do livro.
Ele vê sua chance quando da perseguição da guerrilheira conhecida por “Ci”. Ela
perseguida por policiais consegue eliminar alguns, e se esconde em uma grande garagem,
Macunaíma presencia a “cena” e quando indagado por um policial sobre o rumo que a
guerrilheira tomou, ele informa um caminho contrario e entra atrás dela, após uma luta, Ci
fica inconsciente e ele “brinca” com ela e se apaixona. O que temos neste momento do
filme é a inserção do momento histórico pelo qual passava o Brasil, representado pela
guerrilheira urbana.
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A passagem da guerrilheira pela “história” e rápida e humaniza a luta armada no
Brasil, demonstrando o lado familiar desses que pegaram em armas para lutar pela
democracia. Ci, a guerrilheira, morre a caminho de uma ação juntamente com o filho que
teve em seu relacionamento com Macunaíma. Foi uma inserção ousada pois levou ao
grande público a certeza de que algo não estava bem no regime imposto pelo golpe de 64.
Após a morte de Ci, Macunaíma, se empenha para conseguir o muiraquitã, que esta em
poder do ‘gigante’ Venceslau Pietro Pietra, conhecido como Paimã, o gigante comedor de
gente.
Em uma primeira tentativa se veste de mulher e tenta seduzi-lo. Não consegue e
foge, uma cena caricata e carnavalesca.
Em uma segunda tentativa procura ajuda em um terreiro de candomblé, e através
de um Exu que incorpora no “gigante”, lhe dá uma surra. Mas não consegue seu intento.
Venceslau, o “gigante”, com o intento de derrotar e comer Macunaíma, o convida
para banquete onde será servida feijoada, feita na própria piscina da residência e onde os
convidados servem como ‘ingredientes’. Macunaíma consegue jogar o ‘gigante’ na piscina e
recupera o amuleto.
Em sua última jornada Macunaíma e seus irmãos voltam ao sertão onde moravam,
levando da cidade apenas aquilo que tinha agradado a eles, vários eletrodomésticos, que
representam o consumimos da sociedade capitalista.
Após desavenças, Macunaíma fica sozinho e passa contar suas aventuras a um
papagaio.
A morte de nosso herói é trágica. Devorado por Uiara, entidade das águas,
comedora de gente.
A cena final do filme de Joaquim Pedro é acima de tudo uma provocação à
Ditadura Militar. Após ser levado para o fundo da lagoa, a “jaqueta” modelo militar que
Macunaíma usava emerge junto a uma grande mancha de sangue, simbolizando não apenas,
as mortes provocadas pela Ditadura, assim como a morte do próprio Regime Militar, no
futuro, consumido por suas ações.
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3. Conclusão
Representação de uma nação em busca de seu próprio caminho, Macunaíma é uma
síntese do Brasil, de seus costumes, de seu folclore, de sua natureza, de suas contradições.
Mostra o homem simples, que migra para as metrópoles em busca de sua própria
sobrevivência, mas que não esquece suas raízes. Mostra as mazelas de um sistema políticoeconômico que devora o próprio homem, que o transforma em máquina, que o
desumaniza.
Macunaíma é o Brasil.
BIBLIOGRAFIA
ANDRADE, Mário. Macunaíma, o herói sem nenhum caráter. São Paulo: Circulo do Livro,
1992.
203 p.
CASCUDO, Luís da Câmara. Dicionário do Folclore Brasileiro. 10.ed. São Paulo: Global
Editora, 2001.
ELIADE, Mircea. Mito e Realidade. São Paulo: Perspectiva, 1998.
RIDENTI, Marcelo. Em Busca do Povo Brasileiro, artistas da revolução, do CPC à era da tv. Rio de
Janeiro: Editora Record, 2000.
DIVALTE, Garcia Figueira. História: Série Novo Ensino Médio. São Paulo: Editora Ática,
2002.
YAKHNI, Saray. Macunaíma, um herói sem causa.. in www.mnemocine.com.br. Acesso em
10/05/2005
MARTINS, Ana Lúcia Lucas. Joaquim Pedro de Andrade, Macunaíma e a Industria Cultural.
in
www.achegas.net/numero/quinze/ana_martins. Acesso em 12/05/2005.
FILMOGRAFIA
MACUNAIMA; (1969). dir. Joaquim Pedro de Andrade.
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