REDE INTERNACIONAL LYRACOMPOETICS
Artigos
Nathaly Felipe Ferreira Alves*
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), CNPq
A poesia especular de Orides Fontela: por um
lirismo objetivo
Resumo: A poesia de Orides Fontela (1940 – 1998), ao estabelecer imbricações entre o sujeito e
o real em seus poemas, reivindica uma concepção de lirismo que congrega de forma exemplar uma
aparente oposição entre emoção (geralmente ligada à lírica) e matéria (comumente relacionada à objetividade). Como uma espécie de “conflito tácito”, ou ainda inserido em um sistema de diferenças, o
lirismo objetivo permitiria que tais eixos travassem um constante jogo de forças em que se reformula o
estatuto da subjetividade lírica, por meio de um movimento que a lança ao fora de si. O sujeito é, portanto, deslocado de sua interioridade, descobrindo o mundo como alteridade, tornando-se também
outro para si mesmo.
Palavras-chave: Orides Fontela, lirismo, objetividade, subjetividade, alteridade, lirismo objetivo
Abstract: Orides Fontela’s poetry, when establishing intertwined relationships between the
subject and the real, asks for a conception of lyricism that brings together, in an exemplary manner,
an apparent opposition between emotion (usually linked to lyrical poetry) and matter (commonly
related to objectivity). A kind of “tacit conflict”, found in a system of differences, objective lyricism would
allow for such axes to engage in a constant game of forces, in which the notion of lyrical subjectivity is
reformulated by a movement that throws it out, to an out-of-itself position, thus displacing it from its
inwardness, leading it to discover the world as alterity and to becoming an Other to itself.
Keywords: Orides Fontela, lyricism, objectivity, subjectivity, alterity, objective lyricism
Iniciamos nossas reflexões explicitando que a dinâmica pela qual nos aproximamos
à poética oridiana é expressão de “imaginação crítica”. Gesto que busca a leitura dos
poemas como encontro e que especula a instauração de contundente poética da
escritura, sugerida a partir da emergência do que chamamos, na esteira de Michel Collot
(1997/1998), de possível lirismo objetivo agenciador da relação entre subjetividade e
objetividade no projeto poético de Orides Fontela.
Nos termos do lirismo objetivo, os objetos não são necessariamente “subjetivados”
ou “humanizados”, mas assumem seu lirismo, isto é, transfiguram-se em campo de
relação com o sujeito lírico. Fundam-se enquanto imagem especular e reversível (mas
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não idêntica) da subjetividade. Mundo e coisas acontecem na mancha do papel: tornamse espaço poético por excelência. Tanto retrato dissoluto do “eu” aparece quase como
aquarela (em misto de transparência e opacidade), quanto novas tintas pincelam objetos
que despontam na cena lírica, sempre transformados, mas, paradoxalmente, irredutíveis,
como coisas que são. A irredutibilidade dos objetos (ou matéria, se preferirmos) imbrincada
ao desassossego que causa à subjetividade lírica (sua emoção) alicerça a fatura verbal
dos poemas oridianos, espaço em que o experimento de linguagem poético da autora se
manifesta, como lemos em “O espelho” (poema publicado em Rosácea, 1986):
O
espelho: atra
vés
de seu líquido nada
me des
dobro.
Ser quem me
olha
e olhar seus
olhos
nada de
nada
duplo
mistério.
Não amo
o espelho: temo-o. (Fontela 2015: 238)
Sincronicamente, vemos tanto o “autorretrato velado” (ao leitor e a si próprio):
“duplo / mistério” do sujeito lírico observador de seu reflexo (sobretudo de seu avesso, de
seu alter), quanto a aparição pungente do objeto-espelho com capacidade repercussiva.
O espelho e sua imagem dissolvem o “eu”, fazendo-o “des /dobrar”. Mas a imagem do
sujeito também contamina, por assim dizer, o “nada” que o espelho, sem objeto que
possa refletir, à primeira vista, oferece. Além disso, a figura especular, em “nada” (vazio)
líquido ou ainda como espécie de “habilidade de nadar” (em sentido alongado à noção de
flutuação) em superfície líquida e transparente, desmembra-se: faz-se espéculo d’água,
gerando uma imagem outra, similar, mas não idêntica a si.
O espelho é o referente poético fundamental, objeto que marca o poema em sua
dramaticidade, em sua capacidade afetiva convergente à reflexão de ordem existencial da
subjetividade lírica e em seu elemento plástico. As duas primeiras estrofes amalgamam,
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a partir da reversibilidade de olhares entre sujeito/objeto – ambos simultaneamente
vistos e videntes –, imagens complementares dessas instâncias poéticas transbordantes
entre si. Tal derramamento recíproco é acompanhado pelo ritmo sintático dos versos
analogamente “líquidos” refratados em enjambements, formando espécie de moldura
especular sempre provisória, porque movente, “líquida”, em certa medida, desdobrada,
da especulação do sujeito (sobre si) e do próprio objeto (sobre o sujeito e sobre si mesmo).
O espelho pode ser tomado como coisa do mundo e, neste caso, trata-se de elo afetivo do
sujeito com o real. Porém, o espelho é também “duplo” de si e opera tanto no campo da
objetividade, quanto na esfera simbólica da vida emocional da subjetividade.
A imagem especular é assumida como princípio organizador do poema, condição
meio metafórica, meio metonímica, que questiona quem o olha (e a quem olha): “Ser /
quem me / olha”. Alegoriza o sujeito poético e inverte seu “papel” com ele na cena lírica.
A reflexão recíproca estabelecida entre sujeito/objeto, já espelhos intercambiáveis, fazse de forma fluida, esgarçando fronteiras corpóreas postas em diálogo, em movência de
zonas de indeterminações, sempre em afecção. O espelho funciona como objeto lírico,
porque instaura relação de copertencimento e de reciprocidade entre sujeito e mundo.
Mais que isso: o lirismo da matéria, da coisa que é o espelho, preenche vazios do “eu” que
salta de si e se redefine na estrutura de horizonte do poema. De acordo com Collot (2005:
7), tal estrutura, de inspiração fenomenológica, “[...] régit non seulement la perception des
choses dans l’espace mais la conscience intime du temps et leur rapport à autrui” – “[...]
rege não apenas a percepção das coisas no espaço, mas a consciência íntima do tempo e
a relação com o outro” (tradução nossa).
O sujeito lírico tem seu estatuto transformado. O mundo das coisas coloca em
xeque qualquer possibilidade de “unicidade subjetiva”, já que sua carne é espaço de
interlocução e de descoberta em que o sujeito descobre, no seio da alteridade, insólita
“identidade em partilha”. Como a concepção merleau-pontyana de carne perpassa nossas
reflexões amparadas pelo pensamento de Michel Collot, convém aproximarmo-nos dela
conceitualmente, já a reelaborando a partir de uma “perspectiva lírica”, uma vez que
compreendemos o experimento poético de linguagem dos poemas oridianos exatamente
como enovelamento afetivo, deflagrador de simultaneidades e repercussões infinitas a
vibrar no corpo material da língua:
[...] a carne de que falamos não é a matéria. Consiste no enovelamento do visível sobre o corpo
vidente, do tangível sobre o corpo tangente, atestado sobretudo quando o corpo se vê, se toca
e tocando as coisas, de forma que simultaneamente, como tangível, desce entre elas, como
tangente, domina-as todas extraindo de si próprio essa relação, e mesmo essa dupla relação,
por deiscência ou fissão de sua massa. Essa concentração dos visíveis em torno de um deles,
ou esta explosão da massa do corpo em direção às coisas, que faz com que uma vibração de
minha pele venha a ser o liso ou o rugoso, que eu seja olhos, os movimentos e os contornos das
próprias coisas [...]. (Merleau-Ponty 2003: 141, grifos nossos )
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Ao testemunhar o “eu” sentindo-pensando o mundo, a expressão lírica fundamenta
suas “próprias verdades” (ou, nas palavras de Nancy, experimenta a “verdade” como
“une ouverture du sens”) e revela, como outro, a subjetividade lírica a si mesma. JeanLuc Nancy esclarece que a própria noção de verdade se distende, apresentando uma
“diferença interna” intrínseca:
[…] Ainsi, la vérité laisse donc entrevoir le sens comme sa propre différence interne: l’être en tant
que tel diffère de l’être en tant qu’être, ou l’essentia diffère de l’esse, dont elle est, cependant,
la vérité́. De cette manière, le sens est nécessairement présenté différé par la vérité : différé de
[…] – […] Assim a verdade, portanto, deixa entrever o sentido como sua própria dimensão
interna: o ser como tal difere do ser como ser, ou a essência difere do esse, de que é, contudo,
a verdade. Dessa maneira, o sentido é necessariamente apresentado diferido pela verdade:
diferido de [...] (Nancy 1993: 27, tradução nossa).
A movimentação do sujeito lírico pelo mundo, entendido como “abertura do
sentido”, parece pressupor intrincado relacionamento do “eu” com as coisas, seja para
aproximá-las ao plano subjetivo, seja para sublinhar radical diferença, ao reconhecer-se a
alteridade manifestada pela “lucidez breve / do movimento / acontecido.” (Fontela 2015:
70) de um “Voo” (poema de Transposição, 1969). Nos termos do lirismo objetivo oridiano,
a associação de sujeito/objeto – encarnados na linguagem e na textura do real – atravessa
a escritura, dadas infindas e simultâneas transcrições que a habitam. É exatamente nesse
campo também transcriativo que a emoção, costumeiramente associada à perspectiva
subjetiva, inscrita em horizonte excedente à subjetividade lírica (ao, paradoxalmente,
permiti-la expressar-se em sua estrutura), revela afecções provocadas pelo encontro
“eu”/mundo. A emoção, ao se tornar elo entre subjetividade e objetividade pelas vias da
escritura, isto é, ao congregar no corpo dos poemas os simultâneos cruzamentos entre
parcela afetiva da subjetividade lírica e espessura material organizadora do mundo, faz-se
constitutiva da experiência poética (Collot 2018). A emoção se torna também matéria ou
matéria-emoção (idem): encarna-se no sujeito que sente-pensa, no mundo e na linguagem
que possibilitam a enunciação de uma voz que inaugura o ato poético engendrado por
“impulso puro” que “corta o instante / e faz-se a vida”, no já mencionado poema “Voo”.
A concepção de lirismo objetivo é discutida por Michel Collot, acerca do fazer poético
de Francis Ponge, no livro La matière-émotion (1997) e em “Lyrisme et réalité” (1998),
ensaio no qual o crítico, ao analisar também os poemas dos poetas franceses relacionados
ao “novo lirismo”, observa:
[...] la conscience n’est pas une pure intériorité, et ne se saisit qu’à travers sa relation au
monde ; et celui-ci ne se donne jamais en soi, mais toujours pour un sujet qui le perçoit. Si le
réel peut émouvoir, c’est qu’il est ‘mouvant’ : se présentant comme l’horizon d’une conscience
située dans l’espace et dans le temps [...] – [...] a consciência não é uma pura interioridade
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e se assegura somente por meio de sua relação com o mundo; este não se dá jamais em si,
mas sempre por um sujeito que o percebe. Se o real pode sensibilizar, é porque é ‘movediço’:
apresenta-se como o horizonte de uma consciência situada no espaço e no tempo [...] (Collot
1998: 39, tradução nossa)
Se concordarmos com o crítico francês, levando-se sempre em consideração as
diferenças entre as poéticas de Ponge, dos “novos líricos” franceses e de Fontela, o
que está em jogo no lirismo objetivo, sobretudo, no oridiano, não é cisão de categorias
subjetivas e objetivas, mas sua análise em termos relacionais. Ao encarnar diálogo
seminal entre emoção e matéria, a poética oridiana solicita reflexão que leve em conta
o convívio de seu projeto escritural com certa tradição lírica. Seja aquela por meio da
qual Collot se norteia para pensar a questão do lirismo objetivo na França (localizando
geográfica e culturalmente sua discussão), seja para observarmos como tal concepção,
por assim dizer, aclimata-se no espaço da crítica de poesia moderna e contemporânea no
Brasil. Para além da aclimatação do discurso crítico collotiano, no que respeita à poesia
de Orides, importa também refletir sobre como o lirismo objetivo desdobra-se frente ao
que se convencionou denominar como “lirismo” e, particularmente, “antilirismo”, no
âmbito da crítica brasileira de poesia.
No Brasil, tal perspectiva de leitura relaciona-se à maneira como a lírica é interpretada
e posicionada em oposição à modernidade poética genericamente ampla, oposta,
sobretudo, ao romantismo. A poesia lírica, desde a experiência modernista, é confrontada
tanto pela estética construtivista, fincada no “realismo de linguagem” (Costa Lima 1995
), quanto pelas experimentações do “núcleo duro” da Poesia Concreta. Principalmente
nas décadas de 70, 80 e 90 do século XX, a poesia de Cabral e também a dos poetas
concretos cristalizam-se como “tradição”: espécie de legado que, a depender do juízo
crítico, reverencia-se ou se combate. À produção de poetas como Ferreira Gullar, Hilda
Hilst, Armando Freitas Filho, Ana Cristina Cesar, Sebastião Uchoa Leite, Paulo Henriques
Britto e Donizete Galvão, por exemplo – cujos projetos são muito particulares (inclusos em
“gerações” e “geografias” distintas) – resta ainda lidar com a lírica como questão crítica.
Surgem discussões sobre subjetividade e objetividade desatadas, entre outras demandas,
pela avaliação da incontornável obra de Cabral (dadas as devidas proporções, espécie
de “poeta das coisas” brasileiro, expressão alusiva ao fazer poético de Francis Ponge)
principalmente levando-se em consideração suas consequências poéticas.
Assim como outros poetas mencionados, Orides Fontela, em entrevistas concedidas
e em raras, mas contundentes “prosas críticas”, tem leitura própria da poesia que antecede
ao seu fazer poético e à escrita de seus contemporâneos. A poeta se inscreve em regime
de legibilidade muito particular, “às voltas” com o legado construtivista cuja força motriz
modula-se inequivocamente por meio do desejo de objetividade. Ao ser questionada
por Riaudel sobre a aproximação ao fazer poético cabralino, devido à “racionalidade”,
característica da “poesia objetiva”, presente na obra de ambos, Orides responde:
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Pode ser, mas eu, quando comecei a escrever, ainda não tinha lido João Cabral, fui lê-lo
depois. Uma vez eu briguei com um professor de filosofia que dizia que eu estava imitando
Cabral. (risos) Não imitei coisa nenhuma. Eu tinha feito meu texto por conta própria e tinha lido
só pouquíssima coisa de Cabral. Fiquei doida. O fato de ser um pouco analítica não quer dizer...
há coincidências, não? (Riaudel 1998: 148)
Se buscamos compreender como o lirismo objetivo encarna-se na obra oridiana,
refletindo-se sobre como instâncias subjetivas e objetivas se desdobram em seus poemas,
é preciso mencionar: no plano da superfície, de fato, a poesia de Cabral e de Fontela
realmente parecem se encontrar, como podemos ler em “Núcleo”, originalmente publicado
em Transposição (1969): “Aprender a ser terra / e, mais que terra, pedra / nuclear diamante
/ cristalizando a palavra. // A palavra definitiva. A palavra áspera e não plástica.” (Fontela
2015: 38). O caráter substancial e sóbrio dos versos permitiria breve aproximação, se não
levássemos em consideração minimamente a dicção poética de cada autor, a construção
de suas cenas enunciativas e, de forma decisiva, o funcionamento distinto das imagens
em seus poemas.
A relação estabelecida, embora muito sucintamente, entre a obra de Fontela e
a de Cabral é fortuita e necessária para nossa reflexão. O autor de Uma faca só lâmina
(1955) é divisor de águas no desdobrar e no entendimento do discurso lírico no Brasil,
baseado, supomos, em dicotomia indiscutível entre o que se compreende criticamente
como subjetividade e objetividade. Exatamente por isso nos aproximamos à sua
marcante presença na história da poesia brasileira: para refletirmos sobre relações entre
subjetividade e objetividade, tratadas pelo poeta-crítico também como questão de
comunicação e de inserção da poesia no espaço público, bem como as prosas críticas de
Cabral atestam, particularmente em “Poesia e Composição” e em “Da função moderna da
poesia” dispostas em Obra Completa (1994).
É interessante também acompanharmos a recepção crítica de João Cabral de Melo
Neto, ainda que sucintamente, por meio de estudos dos mais respeitáveis no âmbito
da crítica brasileira de poesia. Benedito Nunes defende que o poeta rompe com “a
atitude expressiva do Eu lírico” (Nunes 1974: 153), apesar de sublinhar que rompimento
não significa “nem liquidação nem superação do lirismo” (ibidem), já que “ruptura,
transformada num estado permanente, mobiliza, no sentido da construtividade, a
reação pela qual essa poesia enfrentou a própria crise histórica da lírica moderna”
(idem: 160), principalmente a partir de O Engenheiro (1942-1945). Ao pensar a lógica de
composição cabralina como “cirurgia verbal, que recompõe ou desdobra palavras-coisas,
dissecadas ou reduzidas” (ibidem), o crítico paraense salienta como a fase final da obra
de Cabral (representada pelos livros A escola das facas [1975-1980], Agrestes [1981-1985]
e Crime na calle Relator [1985-1987]) afirmaria muito discretamente o retorno do “eu”:
“descobria o poeta crítico que o seu fazer ‘poesia com coisas’ era um modo desviado,
negativo, de dizer-se” (Nunes 2000: 43), citando o poema “Dúvidas apócrifas de Marianne
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Moore”, de Agrestes: “Sempre evitei falar de mim, / falar-me. Quis falar de coisas. / Mas
na seleção dessas coisas / não haverá um falar de mim?” (Melo Neto 2020: 636). Nunes
(1974/2000) relaciona tal “postura lírica” ao “surto memorialístico” (relembremos o termo
“recordação” como elemento nuclear para a definição tradicionalíssima de poesia lírica
presente em Conceitos fundamentais de poética, publicado em 1946, por Emil Staiger, por
exemplo). Benedito Nunes percebe acertadamente que a relação entre subjetividade e
objetividade reside em jogo de tensões e de intenções poéticas, por que não éticas, que
mobilizam a inserção da poesia no espaço público e que extrapolam mais a simples
oposição entre subjetivo e objetivo. Ainda assim, seu juízo crítico se limita a compreender
a subjetividade lírica como espécie de entidade psíquica autocrática, que projeta estados
de alma no mundo e que guarda distanciamento em relação ao real.
Pensando sobre como noções de lirismo e de objetividade são mobilizadas ao longo
de leituras canônicas sobre um autor igualmente canônico e canonizador, como é o caso
de Cabral, indicamos que alguns críticos da obra oridiana conferem certo parentesco
de seus livros em relação ao projeto poético do poeta pernambucano. Ivan Marques, ao
comentar o último livro de Orides, afirma:
[...] a teia de Orides pode ser vista como um simulacro da oficina poética cabralina – teia não
puramente racional, mas “sensitiva, vivente”, símbolo da “vida que se desdobra / em mais
vida”, ideia recorrente em diversas passagens da obra de João Cabral a partir de O cão sem
plumas”. (Marques 2019: 07)
Para além de Teia (1996), Rosácea (penúltima obra da poeta, publicada em 1986) é
também comumente associada à obra cabralina, no que respeita a certas imagens poéticas
e a determinadas operações formais, como concisão e retraimento da expressividade
livre e plena do “eu”, embora a imagem da pedra, o “teor analítico” de seus poemas e a
aparição do “eu em eclipse” despontem desde Transposição (seu livro de estreia em 1969).
Mesmo assim, parte da crítica, como constatamos anteriormente na pergunta de Riaudel
e na citação de Marques, confere caráter “mais realista” às duas últimas obras de Orides
Fontela. Esse movimento de leitura endossa a leitura que a própria poeta tem de seus
livros, conforme observamos no trecho a seguir da já mencionada entrevista concedida a
Michel Riaudel. O crítico sugere “Desde o início, no entanto, sua poesia é muito meditativa
(...)”, ao que Orides responde:
Pelo menos era. Agora estou tentando sair disso. Tentando chegar a algo mais concreto,
entende? Eu me cansei um pouco porque ficava uma poesia contrabaixando sobre nada,
muito lá em cima. Eu estou querendo uma coisa concreta. Quer dizer, eu estou querendo
mudar o meu estilo. Esse estilo assim muito lá em cima, estava muito bom até Alba. E a gente
também cansa dos assuntos, como cansa da vida também, das coisas, né? (Riaudel 1998: 149)
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Tal entendimento sobre poesia aponta para dicotômica e aparentemente irresolúvel
relação entre subjetividade e objetividade poéticas. Subjetividade (lida no seio da “lírica”)
e objetividade (arquitetura da “antilírica”) permanecem em polos completamente
contrários e sem qualquer possibilidade de diálogo. A “antilira” parece se destacar não por
ser “o disfarçado canto do foro íntimo ou o enganoso encanto do seu leitor” (Costa Lima
1995: 25), como se entende a “lira”, mas por ser “resposta em linguagem, [...] constituída
em sua estrutura própria, resposta-constituinte e não simples resposta-reflexo, ainda que
organizante do que reflete” (ibidem). Como se a “poesia objetiva” fosse a única capaz de
ser “(auto)reflexiva”, concomitantemente crítica do mundo e de si mesma.
Se tomarmos como inegociável tal modo de ler, o choque entre as referidas esferas
poéticas parecerá “natural”. Contudo, compreendemos o lirismo, nos termos de uma
relação (algo que configuraria também uma ética da escrita) entre sujeito/poema. De
modo que a poesia lírica se celebra como experiência poética (fincada nos jogos de
linguagem, tal como se apregoa em relação à “poesia objetiva”), como maneira de ser, de
escrever e de ler, conforme Maulpoix (2002). Percebemos, portanto, que o afastamento
entre campos subjetivos e objetivos implica, em larga medida, não exatamente rechaço
à lírica, mas a um tipo de entendimento sobre o lirismo (já muito sedimentado na
tradição crítica como fenômeno poético estanque) e sobre a própria objetividade. Sem
persistirmos em leitura que amplamente defenda “apagamento de sujeito” e estereótipos
de poesia subjetiva ou objetiva, podemos, à luz de desdobramentos do sujeito poético
oridiano, reposicionar a discussão sobre a poesia lírico-objetiva da autora. Não se trata
de colocar o sujeito “em questão”, mas de pensá-lo “como questão”, matéria que deve
ser lida desde a própria poesia, a partir e através (em dinâmica de atravessamento) da
experiência poética engendrada no seio da matéria-emoção como matriz criativa.
A obra oridiana instaura visão ricamente lírica e muito singular do real, justamente
ao se apropriar da objetividade, nos termos de implicação do sujeito no e com o mundo.
Promove tanto a reconstrução do eu lírico, quanto a própria renovação do lirismo (de
certa forma também ativado em suas imagens tradicionais, tais como o pássaro, a flor, a
estrela etc.). O corpo de seus poemas é suporte material da relação imbrincada de sujeito/
mundo, além de constituir o campo de horizonte da subjetividade lírica viabilizado pelo
jogo escritural. O lirismo, portanto, acontece como movimento de (re)encontro do sujeito
consigo, com o mundo e com as palavras. O “eu” lírico sempre comparece nos poemas,
ainda que deslocado, descentralizado... não expresso diretamente, porque sua aparição é
mediada pela linguagem. Não é raro encontrar, à primeira vista, nos livros da poeta, certa
visada impessoal relacionada ao plano de enunciação dos poemas, já que “eu” ou “nós”
– em indicação direta ou em elipse – parece ceder espaço ao protagonismo das coisas do
mundo. No entanto, notamos também como a noção de humanidade, no circuito afetivo
“eu”/mundo pode ser sinônimo de anonimato e de indiferenciação, que, sobretudo, alocam-se na construção de uma espécie de coletividade humana (subjetividade da humanidade
como conjunto), mas também “mundana”, geral e acopladora de heterogeneidades
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provindas do mundo (suas coisas, seus seres). Em detrimento de pretensa subjetividade
autônoma, o que se coloca em jogo no projeto oridiano é a possibilidade de instituição de
uma subjetividade lírica em partilha, que comunga sua experiência afetiva com o mundo
e com outras subjetividades. A carga afetiva (de imbricação também de sujeito/mundo)
dos poemas é intensa e se inscreve em enunciação lírica marcante, ainda que destoante
(aparentemente “apagada” dos enunciados, mas aberta à escuta do outro), como é o caso
de “Mensagens” (poema de Rosácea, 1986):
A cor
alada: borboleta
ou pétala?
Fresca asa per
passa
as mãos
abertas.
Sussurro
orelha
caramujo
antena
os cabelos ao
vento. (Fontela 2015: 257)
Os três versos iniciais trazem uma pergunta que diz respeito à observação de alguém.
A segunda estrofe, no entanto, não indica resposta direta à primeira, tão pouco explica
exatamente o que é a “cor alada” percebida anteriormente (“Fresca asa” pode se relacionar
metonimicamente à borboleta ou ser desdobramento da metáfora inauguradora da
questão: trata-se de pétala ou de borboleta?). A atmosfera de indeterminação do plano
semântico é indicada na sintaxe nominal das estrofes sugestivas da suspensão de sentidos
ou de um ato por vir. Essa ação livre de julgamentos atravessa a segunda estrofe, por meio
do verbo “per / passa”, também atravessado materialmente, isto é, cindido, suspenso,
perpassado, em certa medida, como a própria definição do fenômeno observado, ou
ainda, a exposição da própria subjetividade lírica.
Atentando aos núcleos nominais e a seus termos acessórios, percebemos o
tom metafórico da composição: os adjetivos “alada”, “fresca” e “abertas” somam-se tanto às “asas”, quanto às “mãos” (análogas), indicando sentido de abertura e,
concomitantemente, de não resolução da questão que inicia o poema. A rima assonante,
recaída majoritariamente nas vogais /a/ e /e/, confere equivalência sonora aos versos
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das primeiras estrofes e causa sensação de leveza similar à do voo da coisa quimérica
(meio flor, meio inseto, mas impasse: áporo, por excelência, para não nos esquecermos
de Drummond, cuja poesia foi assiduamente frequentada por Orides, conforme seus
depoimentos e alguns de seus poemas confirmam): chama atenção do “eu”, confundindo-se com suas mãos, ao atravessá-las. A própria materialidade do poema exprime certa
tonalidade afetiva, ainda que se trate de sentimento indefinido e refém da impossibilidade
de se atribuir a um sujeito uno, individual e preciso. No entanto, a ambiência emocional
instaurada em “Mensagens” imbrica-se às cores do mundo, à ressonância das palavras
que se colocam como dispositivo de comunicação do sujeito e, sobretudo, como recriação
de novo mundo possível, liricamente instituído. Todo o poder afetivo da coisa vista
concentra-se nos substantivos isolados nos versos da terceira estrofe, síntese metonímica
do acontecimento que constrói o sujeito e o destina a ser campo de experimentação do
mundo. A potência imagética contida nessa estrofe faz com que os dados percebidos,
agora pelo ouvido (note-se diferença de modulação rítmica, neste ponto, mergulhada
em tônicas de vogais fechadas do ponto de vista de articulação, como /o/ e /u/), sejam
também dotados de ação: a orelha e o sussurro apresentam-se como elementos em
reversibilidade afetiva, “captam(-se)” como “antena” simultaneamente.
Se a aparição da subjetividade lírica se dava fragmentariamente, a partir das “mãos
abertas” ou da “orelha”, nas segunda e terceira estrofes, a sinédoque do corpo, destinado
à indeterminação (espécie de vaso intercomunicante do rizoma que compõe o mundo),
ressurge com destaque nas últimas estrofes: “os cabelos ao / vento”. É importante
mencionar que o conceito de rizoma é discutido por Deleuze e Guattari em Mille plateaux
(1980). A imagem rizomática remete a um tipo de movimento sem centro ou hierarquias
e instiga novo conceito de tempo, relacionado ao acontecimento e à irrupção do futuro,
em que sempre novas conexões são criadas a todo momento, sem que exista imagem
referencial preexistente ou transcendente, tal como os “cabelos ao / vento” indicados
no poema. Os autores, para conceituar o rizoma, valem-se de imagens botânicas várias,
dentre as quais uma nos interessa em particular, por ser análoga à imagem capilar
presente em “Mensagens”: a erva-daninha. Apesar de não termos ciência da identidade
do “eu”, sabemos que ele é, antes de tudo, corpo pertencente ao mundo e mais: campo
e ação no e com o mundo. Sua corporeidade recebe, inclusive – por meio da metáfora
dos “cabelos ao / vento” – a leveza da “cor alada”, indiferenciada na primeira estrofe,
tornando-se mais uma variação da questão fundante que inaugura o poema.
Certa lógica sinestésica modaliza a aparição da subjetividade lírica convertida em
espécie de cifras jogadas ao vento, como a “cor alada”. O “voo”, análogo ao “sussurro”, é
dispositivo agenciador da única ação (“per / passa”) central para compreendermos qual
seria, se não o sentido “original” – pensando-se em possível gênese – das mensagens
e seus desdobramentos. “Voo”/“sussurro” não pertencem exatamente ao sujeito
ou ao mundo, mas circulam entre tais instâncias, afetando-as simultaneamente em
ambivalência contraditória, já que diferentes os corpos não coincidem totalmente, mas
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A poesia especular de Orides Fontela: por um lirismo objetivo
comungam de interação afetiva profunda. Tal ambiguidade, regada no copertencimento
do sujeito com relação ao mundo, promove matéria-emoção insurgente no poema. Esse
estatuto poético é ativado por meio de acontecimento dos mais banais: ver um objeto
voando, perguntar-se sobre o que isto poderia ser. Ao fazer-se simples pergunta, o sujeito
lírico abre-se à especulação lírico-filosófica sobre a realidade e, consequentemente, sobre
si mesmo. Efeito afetivo inédito insurge: o sentir-pensar cria conhecimento organizador
de emoção, ou melhor, de matéria-emoção poética.
O que poderia ser tomado como sensação ou sentimento pessoal, da ordem,
portanto, de uma lógica patética (Collot 1997), passa para domínio de lógica poética
(idem): o poema torna-se gênese de emoção estética em perpétua fruição. À poeta,
cabe a partilha desta emoção profunda, de certa maneira, de fatura potencialmente
cósmica, universal e intersubjetiva. Parece haver uma noção de mistério subterrânea ao
gesto de escritura, algo mais ou menos aproximado à premissa mallarmaica que aposta
na poesia como sugestão. Mas, ao sugerir, ou apresentar, como defende Octavio Paz, o
poema de Orides Fontela se concentra na busca de sobriedade potente, de depuração
formal, de “mot juste” que pincela o universo poético apresentado ao longo dos versos.
Suas tintas produzem matéria-emoção de uma linguagem poética reveladora de afecções
profundas. Sejam colhidas a partir de imagens líricas tradicionais como a “estrela”,
sejam trabalhadas por meio das coisas mais banais e, por vezes, imperceptíveis, como
“asas”/“pétalas” perdidas ao vento (que também não deixam de ser figuras, em alguma
medida, já cristalizadas na tradição poética ocidental), tais elementos poéticos dispersam
a experiência da subjetividade lírica, deslocando-a de pretenso centro narcísico.
Ao assumirmos a concepção do lirismo objetivo como traço basilar da obra de Orides
Fontela, indicamos também a necessidade de observarmos a movimentação de sua voz
poética que encontra a nossa própria, já que estamos sempre em relação com os textos.
Tal “comportamento de leitura” não deixa, de alguma maneira, de portar um lirismo
em si, se entendermos como “lírica” a relação entre poema e sujeito. Poderíamos ler o
lirismo como expressão de pertença reversível, operada em afetividade da subjetividade
e de seu corpo, em imbricação com a espessura do mundo, com as coisas e com a
matéria verbal. Assim, baseamo-nos em uma noção lírica que se doa ao atravessamento
produzido pela interação texto/sujeito na tessitura poética. À guisa de tal relacionamento,
compreendemos não a reivindicação de lirismo “derramado”, aos moldes da expressão
de interioridade invasora de todos os elementos formais e semânticos que compõem um
poema (procedimento que a própria poeta denominaria como “romântico”, ainda que
de maneira muito genérica, no momento em que associa certa noção “sentimentalista”
ao romantismo), mas a instituição de um lirismo feito das/nas entranhas da linguagem
poética, em suas formas e desdobramentos, em sua singularidade enunciativa.
Destacamos tal “relacionamento lírico” com os poemas, uma vez que, ao relatar sua
compreensão acerca do fazer poético, explicando também os motivos de sua poesia, a
própria poeta flerta com diferentes “acepções” para o que ela entende como romantismo,
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além de demarcar o (não)espaço do poeta do mundo sem “ideário romântico”, de acordo
com o seu ponto de vista:
[...] A verdade poética pode mas não precisa ser racional, mas tem que cantar, que ser vital.
É algo que podemos amar (outra palavra gasta...) e usar como ar e alimento. Por mais que a
sociedade mercantil e técnica desvalorize a poesia e os poetas, por mais que elitizem a poesia
e, pior, não a paguem, não dá para elidir a essencial verdade poética. Pois não vivemos só de
pão. [...] Mas não estou fazendo teoria, não sou crítica – sou poeta. Exprimo minhas verdades...
poéticas. Minhas crenças, se quiserem, e este papo, por aí, se aproxima de uma confidência.
Tomem por aí, e tudo entrará no seu lugar. Romantismo? Bem, nem tudo no romantismo é
ultrapassado, há uma raiz muito verdadeira... e poética. É ela que invoco, não o sentimentalismo
inútil, óbvio. (Fontela 1997: 121, grifos nossos)
Diferentemente de um éthos romântico que desdobra o real dentro dos domínios da
subjetividade ou que o transfere à esfera de contemplação, refletir sobre o lirismo objetivo
em Orides Fontela é entendê-lo como categoria escritural capaz de criar seus próprios
objetos poéticos encarnados nos poemas. Isso ocorre porque a poética oridiana imbrica a
experiência da subjetividade (transformando seu estatuto, suas formas de se desdobrar)
aos objetos existentes no mundo, como lemos em “Ode” (poema de Helianto, 1973):
“E enquanto mordemos / frutos vivos / declina a tarde. // E enquanto fixamos / claros
signos / flui o silêncio. // E enquanto sofremos / a hora intensa // lentamente o tempo
/ perde-nos.” (Fontela 2015: 154). Os poemas tornam-se, por meio de sua co-moção
(tanto por promover uma “comoção afetiva”, quanto por indiciar um mover-se “ao fora
de si” deflagrador de um deslocamento de caráter ontológico da subjetividade lírica, mas
também de locomobilidade espacial no horizonte poético), espécie de alegoria que funda
“[…] objet et sujet lyrique dans une entité nouvelle” – “[...] objeto e sujeito lírico numa
entidade nova” (Maulpoix 2002 : 259, tradução nossa).
Pensando em como desdobrar-se é, antes de tudo, deslocar-se, movimentar-se,
mobilizar-se, a noção de deslocamento imprime uma ação que se realiza conforme
há experimentação de espacialidade, geralmente ofertada pelos dados objetivos do
mundo. A interação com as coisas que habitam a paisagem do olhar e que o co-move,
ao serem perspectivadas pela percepção da subjetividade, particulariza o sentido
poético estabelecido a partir da concepção de lirismo objetivo oridiano. Aparentemente
contraditória, tal noção visa aproximar dados tradicionalmente dicotômicos (reiteramos:
não se trata de igualar, mas de aproximar campos, por assim dizer, diferenciais), analisandoos sob seguinte visada crítica: a poesia de Orides Fontela não necessariamente objetifica o
“eu”, apagando-o, no seio da cotidianidade, porém o desloca, espraiando-o na experiência
do mundo; não para destruí-lo, senão para reconstruí-lo. Ao mobilizarmos a concepção do
“sujeito lírico fora de si” (Collot 2018), entendemos que os poemas oridianos se instituem
por meio de um dispositivo de diferenciação e deslocamento da subjetividade lírica. Sua
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A poesia especular de Orides Fontela: por um lirismo objetivo
experiência enquanto consciência/corpo sensível se realiza justamente no momento em
que o corpo que fala/canta/silencia, torna-se também corpo dizível/cantante/silente,
justamente porque emprega a fala (de si/sobre si/do outro/sobre o outro) sem sair da
linguagem em que habita e que o institui. Tal voz poética lança-se ao fora de possível
personalíssima interioridade e encontra as coisas, acotovelando-as, em dobra existencial
disseminada na exterioridade. Sob tal perspectiva, a experiência artístico-poética é força
que concebe diferenças no mundo, disseminando afetos, ao sentir-pensar no e com o real,
produzindo matéria-emoção.
As palavras, bem como sua virtual ausência (já que o silêncio, na poesia oridiana,
parece ser forro que atapeta a palavra lírica), matérias-primas dos poemas, não
apenas aludem às coisas, mas as instituem ao “apresentá-las”, convocando presença,
evidência concreta e espessura. Não mais “veículos conceituais” ditados pelo uso da
língua corrente e por gramática prescritiva, são convocadas poeticamente: o uso dos
vocábulos se converte em jogo de forças, transfigurador de uma escritura concentrada
pela afirmatividade da linguagem (enquanto dispositivo de potência criativa), derivada,
por sua vez, da emergência de um estado (po)ético intersubjetivo, materializado pelo
experimento poético de linguagem oridiano.
A linguagem poética, em sua dinâmica original e originária, institui também a
enunciação da subjetividade lírica nos poemas de Orides Fontela. Dados seus termos de
imbricação com o mundo, a linguagem não objetiva reconstituir o “eu” como expressão
máxima de interioridade integral, mas observá-lo por meio de uma lógica de deslocamento
constitutiva. O nó reflexivo estabelecido em torno de sua existência diz respeito muito mais
à condição como “fora de si”. Atravessada pela experiência do mundo, inclusive do “mundo
da linguagem”, a subjetividade lírica não se extingue; está aberta à “escuta do mundo” e
ao “lirismo da matéria”, em que mesmo as coisas mais triviais, justamente por seu caráter
“prosaico” e cotidiano, ganham novas significações (passando à esfera dos símbolos e dos
ícones poéticos), uma vez que estão intrinsicamente ligadas à vida afetiva do sujeito lírico.
A questão da objetividade poética amplia-se: concede lugar à relação, ao encontro do
sujeito com as coisas do mundo e vice-versa, em dinâmica poética fundacional (de certa
forma, mítica), inscrita nos poemas, que inaugura tanto a subjetividade lírica quanto o
mundo em que ela se institui (as coisas, os seres com os quais interage), como lemos em
“O Gato” (poema de Helianto, 1973): “Na casa / inefavelmente / circulam olhos / de ouro
// [...] vulto do deus sutil / indecifrado // na casa / o imperecível mito / se aconchega // [...]
visitante de um tempo sacro (ou de um não tempo)” (Fontela 2015: 146).
Ressaltamos que a expressão “o lirismo da matéria” [le lyrisme de la matière],
conforme Maulpoix (2002), tem relação com o “lirismo do objeto”, isto é, com a capacidade
que os objetos têm de afetar o sujeito, porque lhe afloram sentimentos, sensações e
reflexões. Os objetos se expõem ao sujeito, despertam sua percepção, mas também, de
alguma maneira, opõem-se a ele, já que, aparentemente, promovem senso de realidade,
por vezes, distante da, genericamente falando, “esfera subjetiva”. O “objeto lírico” causa
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sentido de reencontro (em diferimento) à subjetividade: busca paradoxal de si, busca
do outro. Pensar no “lirismo da matéria” ou ainda, em possível estatuto do objeto lírico,
é interrogar temática que se realiza como “[…] économie de rapports, de traitements
et d’influences réciproques. C’est poser, par exemple, la question du regard du poète, et
envisager le poème lui-même comme une écriture du regard […]” – “[...] economia de
relações, tratamentos e influências recíprocas. Isto significa perguntar, por exemplo,
a questão do olhar do poeta e considerar o próprio poema como uma escrita do olhar
[...]” (Maulpoix 2002: 253, tradução nossa). A economia afetiva estabelecida entre sujeito
e objetos não questiona se o poeta “vê mais ou vê melhor” (o poeta “apenas vê”), como
afirma Maulpoix (2002), mas confirma a poesia como espaço que extrapola o real, não por
se afastar dele: por convocar sua aparição liricamente transformada nos poemas.
A saída de si enquanto ponto crítico de relação/fruição com e no mundo faz a
subjetividade lírica emocionar-se pelo sentir as/das coisas. O mundo torna-se campo de
alteridade, já que ao interagir com sua “concretude”, ao anunciar certo protagonismo
das coisas, o “eu” se comunica com o real, partilhando sua “voz tácita”, inscrita no
lirismo da matéria. Por isso, entendemos a poética oridiana nos termos de imbricação
lírica: o mundo como outrem para o sujeito poético pode fazê-lo colocar-se também em
perspectiva e vice-versa. Ao retomar seu campo de experimentação e de (re)criação,
isto é, o plano da enunciação lírica – à primeira vista voltada à interioridade –, o “eu”
carrega o traçado do percurso pelo real já “gravado em sua pele” (na derme linguística
transubstanciada em voz clamante) e já “marcado em seu coração”, de tal forma que a voz
subjetiva abre espaço à do mundo (genérica e costumeiramente entendida em termos
objetivos). Pensamos particularmente em “Che cos’è la poesia?” de Derrida (2001) para
indicarmos tanto a concretude da subjetividade lírica que – instituída pela enunciação
– ancora-se na escritura poética, quanto o “coração” entendido em sentido figurado,
assim como órgão do corpo associado à definição poética que leva em conta a brevidade,
a memória e o ritmo dos poemas enovelados por demanda partilhadora de paixões
metamorfoseadas, no fazer poético oridiano, pelo estatuto do lirismo objetivo. Em outros
termos, a imagem coronária encarna um processo poético desejante e sem decifração;
desejo de uma espécie de “destinação” (Siscar 2016), que, sobretudo, deseja ser encontro
com o outro como outrem absoluto, mas também como outro para si. Tais movimentos
ocorrem, especialmente o último, porque enunciar-se, paradoxalmente, o sujeito lírico
oridiano manifesta a experiência de “outro para si em si mesmo”: “Je est un autre”
(Rimbaud 2009: 340). De modo que o outro passa a ser intimidade devassado, aberto
ao mundo. A expressão “eu é um outro” funciona como síntese do que o jovem poeta
Arthur Rimbaud buscava em sua criação poética e aparece na segunda Cartas do Vidente
[Lettres du voyant], endereçada a Paul Demeny, em 1871. Ao mencioná-la, nossa intenção
não é aproximar de maneira superficial dois projetos poéticos tão distintos quanto os de
Fontela e de Rimbaud, mas indicar que a tendência da “saída de si”, com desdobramentos
particulares em diferentes poetas, épocas e tradições distintas, como os dois citados,
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A poesia especular de Orides Fontela: por um lirismo objetivo
possui lastro crítico desenvolvido na modernidade, sobretudo, a de matriz francesa,
prolongando-se no que se costuma denominar didaticamente como pós-modernidade.
Portanto, lemos a escritura lírica de Orides Fontela à luz de certo sentido como
gesto expressado, nos termos de relação do sujeito com o mundo, já que a matéria do
alheio, transformada por e transformadora da subjetividade lírica, institui espaço gerativo
da experiência poética. O real sensível pode ser partilhado pelo sujeito lírico (ao ser ele
mesmo instância fragmentária), pois o que se coloca em jogo nesta partilha, que não deixa
ser espécie de “política da escrita”, aos moldes da reflexão proposta por Rancière (1995),
é o entretecer da emoção e da materialidade do poema, tal como lemos em “Espelho (II)”,
poema de Alba (1983):
I
Fita-nos o cristal, vácuo
de onde emergem rosas
pássaros.
Fita-nos o tempo. Viva
a infância nos rememora.
II
Aves
disparam no espelho
vívidas
aves
lucidamente navegam
no puro cristal
do tempo. (Fontela 2015: 200)
Devido à inversão do olhar entre “eu”/ “mundo”, as coisas (“cristal”, “pássaros”
e “flores”) são mobilizadoras da cena poética estabelecida. Soma-se a importância
da linguagem que especula e redefine o caráter ontológico dos seres e das coisas, no
momento em que nos dedicamos à reflexão lírico-objetiva do poema. É justamente no
espelho-já-imagem que as imagens-objetos, “rosas” e “pássaros”, dinamizam-se, ainda
que paradoxalmente cristalizadas e temporariamente refratadas pelo cristal depurado,
em plano análogo, relacionado ao espelho, agente responsável por capturar a ação
das coisas e a contemplação do sujeito lírico. Tão enigmática nos poemas de Orides, a
imagem especular também se transubstancia em catalisador espaço-temporal em que
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diversas experiências são possíveis. Na medida em que o espelho capta as imagens
descritas nos poemas, abre-se uma dobra de sensações entre “eu”/mundo e a memória se
estende em poética extremamente lúcida (porque estética e conscientemente refletida,
em que mente/corpo atuam como aparelhos de conhecimento e, sobretudo, de fruição
estética): a infância retorna, em virada talvez lúdica, que retoma a “primeiridade” do
olhar (reiterando, inclusive, a possibilidade de sua inversão, como em um jogo). O
espelho distende-se figurativamente no próprio mundo, nos seres que aí habitam e que
se configuram justamente como elemento de alteridade ao sujeito lírico. Isto é possível
devido à variedade de metáforas relativas ao objeto (falsamente ilusório, porque ao
alcançar a ficção de experiência de “vida viva”, aporeticamente, ou por isso mesmo, cria
“verdades poéticas”) e em sua relação com outrem.
A metamorfose imagética apresenta-se como problematização ou questionamento
interno do próprio plano expressivo dos poemas em que se desdobra a matériaemoção nos termos do lirismo objetivo de Orides Fontela. Se o lirismo objetivo investe na
imbricação entre sentir e pensar, entre emoção e matéria, a formulação da subjetividade
lírica converge invariavelmente para “inversão de olhares” (em que certa “noção
especular”, em vários sentidos, importa, inclusive, em dimensão crítica) que se refratam,
atravessando-se, para que a experiência poética aconteça, já que a noção de inversão
converte-se em transformação mediada também pelo estatuto imagético da escritura
poética. “Eu”/mundo tornam-se agências recíprocas e a matéria do mundo é (a)colhida
tanto passiva, quanto ativamente. Torna-se materialidade poética em que o sujeito lírico
se insinua e hospeda o “outro absoluto” (Derrida 2001: 28 ), devir-animal encarnado em
imagem lírica, como ocorre em “Touro” (publicado em Alba, 1983). No poema, o foco de
experimentação visual concentra-se na estrutura de horizonte de um campo terrestre
transmutado em campo de afecções. Ao permanecer escamoteado na paisagem que o
assombra e simultaneamente torna-lhe assombro do espaço, espécie de voz fantasmática,
a subjetividade lírica localiza-se na alteridade e no convívio tenso de corpos distintos e
atuantes como voz coletiva indefinida, enovelada por um “nós” elíptico:
I
No verde campo
o touro
qual noite exposta
em claro
dia
no verde chão
da irrealidade
a violência:
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A poesia especular de Orides Fontela: por um lirismo objetivo
o sangue contido
(ainda).
II
No verde dia
(fábula)
a morte? A
VIDA
– tão brutalmente
VIDA
que a tememos. (Fontela 2015: 181)
A visão do touro, alteridade radical transposta à imagem do animal, possibilita que o
encontro com o outro seja também indissociável descoberta do mundo: trata-se do modo
por meio do qual a subjetividade lírica se apresenta diante da fera, diante dos olhos do
mundo, ao passo em que simultaneamente o mundo está diante de si, dos seus próprios
olhos. Há, portanto, demanda mútua de presença. Contudo, tal abertura é abissal, posta
em curso a partir de um ponto de invisibilidade e de infinidade (o touro destaca-se na
paisagem campestre exatamente por isso: é contrastante na amena “paleta de cores” de
cores do poema, nos verdes e claros do dia). Ao instaurar-se como contraponto e mesmo
infiltração de “noite exposta” metaforicamente, o animal inscreve-se como diferença que,
contraditoriamente, complementa e mobiliza um quadro, aparentemente, estático. O
“touro”, também espécie de devir do sujeito lírico, não é necessariamente esboço fixo e
cuidadosamente delimitado do mundo traçado pelo limite do olhar: demarca o próprio
horizonte visual que é o espaço em que a experiência lírica irá fluir.
O encontro com a animalidade, traço imagético de fissura, “ponto cego” potente
que, no entanto, inaugura um acontecimento – o encontro assustador com o outro –,
revela um mundo sempre em estado de nascimento de algo, de experiência mobilizada
e mobilizadora tanto da matéria das coisas, quanto da emoção por meio das quais verte.
O animal aparece como instituição de uma espécie de caos enraizado (e necessário) à
ordenação do campo idílico (e inerte) apresentado: encarna o próprio desvio como
condição de existência. Materializando-se na tessitura do poema como ponto de inflexão,
de não retorno, de instauração de vida insólita, que nasce pelo contraste e, de alguma
maneira, instaura no mundo zonas de “tonalidades distintas”, de luzes e de sombras, em
esquema mais ou menos básico de oposição complementar, a presença do touro faz a
vida acontecer. Percebê-lo é ato mobilizador da subjetividade lírica e da concepção de
vida possível. A relação, ainda que problemática com o outro, adere à própria experiência
lírica do espaço que nega o aparecimento das coisas como forma fixa. Sujeito e imagem
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poética modelam-se no atravessar de pontos desviantes, erráticos, em certa medida, de
fundo invisível (“noite exposta / em claro / dia”): contradição imanente, nascedouro de
sentidos e de matérias na interseção entre o visível e o invisível, entre o dizível e o indizível.
A figura taurina permite à subjetividade lírica ver o mundo até perder-se a vista e
de vista (no negrume e na obscuridade, misto de assombro e alumbramento suscitados
pela imagem). A alteridade abre o mundo ao “eu” e, simultaneamente, interdita-o a
qualquer ensaio de inspeção analítica. Justamente por vislumbrar aquela aparição, tal
qual fantasma, o sujeito poético perde a faculdade de ver claramente (o que esclareceria
o “mistério”). Contudo, mais do que ver, em postura contemplativa, o “eu” experimenta
a visão do touro; descobre-se também como elemento inter-relacional em aparição no
“claro-escuro” do mundo.
O campo verde, em que a “irrealidade” (a vida do “touro”) se materializa também
espectralmente, carrega em sua própria aparição – símile à criação, à fabulação de
algo, à condição de uma origem, portanto – a “violência” de um acontecimento que
simplesmente surge, sem prévio aviso. Desestabiliza-se a harmonia, à primeira vista,
estática da paisagem, imprimindo-a como realidade insolitamente possível, que persiste
e que resiste a qualquer tentativa de domesticação do pensamento. O “touro” surge e
confere, concomitantemente, caos e liberdade aos campos, ainda que isto signifique
insurgência de ato violento, relacionado, inclusive, às novas tintas destacadas no poema.
A cor do sangue, por exemplo: análoga à imbricação das noções de vida e de morte
que, aliás, dependem uma da outra para existir, as metáforas (compreendidas a partir
da concepção de “transportes de liberdade”, na esteira de Rancière, em suas Políticas da
escrita, de 1995) relacionadas à cor e ao animal inscrevem violência instauradora de certa
dobra poético-filosófica no poema, ao trazer implicitamente as questões: o que é a vida?
O que é a morte?
Graças à alteridade encarnada no devir-animal, o “eu” vislumbra, ainda que
precariamente, o infinito e mais: entrevê a própria finitude como condição contraditória
para existência de vida. Acesso e imbricação ao/no outro são modos pelos quais a
subjetividade lírica visualiza infinidade de perspectivas possíveis, mas, exatamente
por isto, chega a ponto impossível de visão, limite instransponível em que se concentra
o cerne de sua existência. A alteridade (mundo e touro como outrem) é tanto ponto
de encontro, quanto de divergência da experiência. Ao “escapar do olhar”, o invisível
do mundo não é excluído pelo plano visível, mas permanece como alicerce da própria
experiência perceptiva. Fundamenta-a, na medida em que visível e invisível organizam
o mundo, fazendo da alteridade horizonte insuperável, mas necessário para instituição
da subjetividade lírica, agora figura quimérica, em (im)possível entrelaçamento com a
alteridade animal.
O outro não se configura como algo/alguém que coincide com o “eu”, mas
como elemento que permite a capacidade que o sujeito tem para “sair de si”, para
descobrir-se como abertura do mundo, seja para reconhecer-se, seja para marcar sua
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A poesia especular de Orides Fontela: por um lirismo objetivo
diferença. Isto acontece já na parte “I” do poema que concebe a micronarrativa de
desenvolvimento da vida, pincelada pelo gênero fabular (ainda que desconstruído, assim
como são desconstruídos os versos infiltradores sempre uns dos outros pelo recurso
do enjambement) que atua como som de fundo: narra-se acontecimento episódico,
com personagens animais, teoricamente ilustrando-se preceitos morais, geralmente
vinculados ao final da composição. Já a segunda parte de “Touro” concentra toda a trama
partilhada na primeira estrofe e destaca, no isolamento parentético do termo “fábula”,
tanto a relação com o gênero textual homônimo, quanto a ideia de que a vida é criação,
espécie de “fabulação” instigada pelo pensar-sentir disseminado pela linguagem poética.
O que parece tomar curso na segunda estrofe é a reiteração, a transposição simbólica da
narrativa curta e intrincada exposta na primeira.
O verde campo cede espaço à noção de “verde dia”, mantendo relação entre claridade
e visão, ao que é possível alcançar com a visão ou criar, nas retinas mentais, ambiente
campestre propício ao desenrolar da vida, análogo, portanto, ao “verde campo” e “verde
chão”. Vale mencionar que a indagação quanto à condição real do espaço já havia sido
semeada na primeira estrofe, visto que a cena acontece em “verde chão / da irrealidade”.
O poema coloca em xeque a natureza da realidade, que se contempla e que se sente,
abrindo-se para outra indagação de cunho existencial, que repercute a interpelação
sobre o que é a vida: a realidade é o que é ou é o que criamos, inclusive a partir do
intermédio da palavra poética? Basta lembrarmo-nos do instigante “Da metafísica (ou da
metalinguagem)” (publicado em Rosácea, 1986): “O que é / o que / é?” (Fontela 2015: 246).
Contemplar e sentir algo justifica presença concreta das coisas ou nossas sensações e o
período em que somos autorizados a senti-las no mundo (entendendo-se o “verde dia”
como noção que atravessa o espaço e se finca também no tempo) fabulam espécie de
vontade da realidade? Forjamos o real ou isto nos forja?
Poderíamos sugerir que a concepção de realidade, à qual o poema se filia, regula-se
segundo o horizonte de visão da subjetividade. A noção de real transforma-se e precisa
ser pensada nos termos de articulação sujeito/mundo. É necessário, portanto, que a
coloquemos em jogo a partir da ideia de elaboração (construto, estrutura, mas também
semântica, ou, para retomarmos Nancy, “abertura do sentido”) para a indeterminação
como princípio constitutivo. A partir da “indeterminação determinada” pela experiência
poética, a realidade passa também pelo crivo da possibilidade criativa. Nessa experiêncialimite, o real mesmo se torna perspectiva mutável abraçada pela escritura lírica.
A imagem do touro, dramaticamente relacionada às noções de vida e de realidade
(ainda que problematizadas) se redefine: por tratar-se de ficção (miragem postulada no
campo perceptivo da subjetividade lírica), isto é, de “(fábula)”, ou ainda de tipo muito
singular de “segredo ostentado”, em perspectiva derridiana, fruto da imaginação,
configura-se como verdade poética. Seu caráter afirmativo, que diz sim à vida como
acontecimento, impõe-se nas segunda e terceira estrofes, por meio do uso letras
maiúsculas para destacar exatamente o termo em destaque “A VIDA”, grande personagem
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que o poema dramatiza. “A VIDA”, capacidade nuclear e repercussiva de toda a existência,
repercute o vislumbre da figura taurina na primeira estrofe, ao imbricar, simultaneamente,
toda manifestação de si na composição poética. Campo, animal e subjetividade lírica
tornam-se entidade quimérica que diz, com voz de assombro, fruto de lucidez pungente:
“A / VIDA // – tão brutalmente / VIDA / que a tememos”.
A partir dos dados objetivos do real, encarnados pelo “touro” (metáfora, mas também
“palavra-coisa”), o poema cria uma teia que se autoalimenta, conectando o ser-autor e o
ser-leitor em tempo elíptico, quase mítico, por ser reiterativo e por evocar a materialidade
das coisas, em movimento que repensa o dado metafórico e aproxima a objetividade –
ou o tratamento objetivo que se dá às coisas – ao plano subjetivo da escritura poética
de Orides Fontela. Em outras palavras, insurge uma diversa categoria poética: o lirismo
objetivo. Tal visada lírico-objetiva permite, para além da questão do deslocamento da
subjetividade lírica (ou exatamente devido a isto), também o protagonismo dos objetos.
Ao lermos poemas que privilegiam a presença dos dados objetivos do real (mesmo que
nos termos contraditórios de uma aparição), como é o caso do “Touro” poético de Orides,
podemos problematizar a mobilização do sujeito lírico frente à realidade e à linguagem.
Nosso ponto de interesse é também refletir sobre como o lirismo objetivo delineia-se
na obra poética de Orides Fontela tanto no que diz respeito ao seu conteúdo, quanto por
sua materialização linguística nos poemas. Notemos como certos vocábulos (convertidos
em recorrentes constelações imagéticas, tais como “pássaro”, “flor”, “espelho”, “touro”,
“luz”, “peixe”, “sangue”, “água”, “estrela”, “pedra” etc.) contemplados na tessitura lírica
oridiana ganham corpo e se mobilizam enquanto objetos viventes do universo poético.
Dito de outro modo: confere-se a tais objetos (não mais “meros signos linguísticos”)
certa noção de liberdade, ao serem liricamente encarnados ou tecidos e vivenciados pela
palavra poética, abalizada pela experiência do “eu” (corpo sensível/lógos clivado pela
“carne do mundo”) .
Renovada em seu estatuto, a subjetividade lírica habita uma poética cuja operação
criativa se manifesta via pensamento/mundo. O mundo entendido em seu “próprio
sentido” (instância material que cria significação por meio da própria existência; não sendo,
portanto, “receptáculo” de significados que a ela aderem) e como nascente de sentidos,
instituídos pela linguagem poética, apresenta-se como campo de experimentação ao
sujeito. Movimentando-se como “vórtice de subjetividades”, a espessura (em certa
medida também estrutura) do mundo enreda-se às fibras de um “eu” originariamente
destinado (por temporalidades feitas a partir de tramas de impasses associadas, por
sua vez, a espacialidades contingentes) à dissolução e ao consecutivo retorno de certa
“concentração descentralizada” da subjetividade lírica.
Tal rearticulação subjetiva ocorre justamente no momento em que o “eu” se atomiza
no mundo, acontecendo junto com esse mesmo mundo, portando/coletando/partilhando
vestígios de fragmentação cuja fonte explosiva não se pode “documentar” e da qual não
se permite retroagir à gênese específica, por não possuir “Habitat” (poema de Rosácea,
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A poesia especular de Orides Fontela: por um lirismo objetivo
1986) definido, visto que “não é / daquém / e nem de além / e nem” (Fontela 2015: 243).
O sujeito lírico extrapola seus limites, porque permanece à margem (ou fora) de sua
pura interioridade. Torna-se campo de ação, de força, de afeto e, sobretudo, institui-se
como fronteira, dobra de si (sobre si/sobre o outro) como outro. Reencontra-se em/com
o mundo, no qual (re)faz sentidos virtualmente inaugurais no plano poético: estranha,
familiar e “trágica” intimidade.
NOTA
* Nathaly Felipe Ferreira Alves (1988) é professora, pesquisadora, crítica literária e poeta brasileira sempre em
formação. Mestra pelo Programa de Estudos Pós-graduados em Literatura e Crítica Literária da Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), bolsista CAPES. Doutora em Teoria e História Literária pelo
Instituto de Estudos da Linguagem (IEL) da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), bolsista FAPESP.
Autora de Poemas dissonantes (coedição: Reformatório e Patuá, 2020), livro ganhador do Prêmio Maraã de
Poesia. Atualmente desenvolve pesquisa de pós-doutorado, na área de poesia, na PUC-SP, com bolsa do
CNPq. O presente ensaio é fruto de pesquisa desenvolvida durante o doutorado, derivando-se da tese O
lirismo objetivo de Orides Fontela (IEL, Unicamp, 2022).
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