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ENTRE A FANTASIA E A ILUSÃO: O DESAMPARO
Gessé Duque Ferreira de Oliveira
Psicólogo e Psicanalista. Especialista em Gestão em Saúde. Mestre e Doutorando em Psicologia pela
Universidade Federal do Pará (UFPA). E-mail:
[email protected].
Paulo Roberto Ceccarelli
Psicólogo e Psicanalista. Professor da Pontifícia Universidade Católica (PUC-MG), da Universidade Federal do
Pará (UFPA) e da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Doutor em Psicopatologia Fundamental e
Psicanálise - Paris 7/Diderot. Pós-doutor - Paris 7/Diderot. E-mail:
[email protected].
Resumo: Recordando que o conceito de fantasia em Formulações sobre os dois princípios do acontecer psíquico
se equipara ao conceito de ilusão, utilizado em O futuro de uma ilusão, procurou-se realizar uma interlocução entre
fantasia e desamparo. Primeiramente, é feita uma digressão sobre o conceito de ilusão, tal como trabalhado na obra
freudiana, bem como da condição de desamparo, principalmente, psíquico. Além disso, realizou-se um resgate do
conceito de fantasia, para enfim estabelecer as possibilidades de interlocução entre desamparo, ilusão e fantasia.
Após essa análise, foi percebido que, embora tanto na fantasia quanto na ilusão o teste de realidade não exerce
influência, fantasia e ilusão ocupam lugares diferentes na topologia psíquica.
Palavras-chave: Desamparo. Fantasia. Ilusão.
BETWEEN FANTASY AND ILLUSION: HELPLESSNESS
Abstract: Reminding that the concept of fantasy in Formulations on the two principles of psychic happening
matches the concept of illusion, used in The Future of an Illusion, it was sought to make an interlocution between
fantasy and helplessness. Firstly, a digression was made about the concept of illusion, as worked in Freud's work,
as well as the condition of helplessness, especially psychic. In addition, the concept of fantasy was rescued to
finally establish the possibilities of interlocution between helplessness, illusion and fantasy. After this analysis, it
was realized that even though the reality test has no influence in both fantasy and illusion, they occupy different
places in psychic topology.
Keywords: Helplessness. Fantasy. Illusion.
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Introdução
Para Freud, o aparelho mental é patológico em sua origem: ele se constituiu como uma
defesa contra o excesso pulsional, contra o excesso de paixões (patos = paixões); trata-se de
uma organização que se desenvolveu para proteger o ser humano contra os ataques internos
(pulsionais, passionais) e externos (mudanças ambientais, perdas diversas), que punham sua
vida em perigo. Freud procura responder, e não excluir, conflitos e aspectos obscuros da vida
mental. Dessa forma, podemos perceber que a obra freudiana aprecia o silêncio, a sombra, o
negativo (PENNA, 1994).
Para Gay (1992), foi na condição de ateu que Freud pôde desenvolver a psicanálise e
decretar a futilidade de uma base comum entre fé e descrença, podendo realizar suas
descobertas singulares. Freud, acima de tudo, foi subversivo com suas ideias sobre o
inconsciente, sobre a etiologia das neuroses e a concepção da sexualidade infantil.
Ao manter e assegurar o conflito, a psicanálise não teria intenção de apresentar uma
visão de mundo, ao contrário da religião, por exemplo (FREUD, 1933 [1932]/1996). A questão
de saber qual o sentido da vida, a Psicanálise não se proporia responder, muito menos depois
de sua virada teórica em Além do princípio do prazer (FREUD, 1920/1996), em que cada pessoa
deveria descobrir por si mesma como ser feliz (FREUD, 1930 [1929)/1996]. Já a religião, por
sua vez, apresentaria uma resposta, impondo um modelo de vida a ser seguido; uma promessa
de vida após a morte, na qual só haveria prazer, sem frustrações (FREUD, 1927/2011).
Três conceitos freudianos instigaram para a construção desse artigo justamente pela sutil
proximidade entre eles: ilusão, fantasia e desamparo. Em O futuro de uma ilusão, Freud
(1927/2011) define que a força da ilusão está no desejo infantil de proteção. As ilusões surgem
como defesa contra o desamparo e se “originam na imaginação, no espaço em que o teste da
realidade não tem autoridade” (FREUD, 1927/2011, p. 53). Por outro lado, dezesseis anos antes,
em Formulações sobre os dois princípios do acontecer psíquico, Freud (1911/2004, p. 67)
define o espaço da fantasia:
Um determinado tipo de atividade do pensar foi apartado do teste de realidade,
permaneceu livre deste e ficou submetido apenas ao princípio do prazer. É ele o
fantasiar, que já se inicia com o brincar das crianças e mais tarde prossegue com o
devanear, deixando então de sustentar-se em objetos reais (FREUD, 1911/2004, p.
67).
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O objetivo deste trabalho é realizar uma aproximação entre fantasia, ilusão e desamparo,
conceitos importantes na obra freudiana. Assim como Freud (1927/2011) escreve que com a
ilusão seria menos difícil suportar o desamparo, procurou-se, neste artigo, entender a relação
que a fantasia estabeleceria com o desamparo. Para tanto, será feita uma digressão teórica nas
principais obras de Freud que tratam da fantasia, da ilusão e do desamparo. As principais obras
a serem analisadas serão O futuro de uma ilusão (FREUD, 1927/2011) e Formulações sobre os
dois princípios do acontecer psíquico (FREUD, 1911/2004). Entretanto, outras obras surgirão
como complementares.
Desamparo e ilusão
Em O Futuro de uma ilusão, Freud (1927/2011) fez uma análise psicológica a respeito
do desamparo e da religião, enriquecendo sua obra ao dialogar com um opositor fictício. Nesse
ensaio, são abordadas várias questões a respeito da cultura (ou civilização) em contraponto com
a religião como ideia ilusória, como algo que ajudaria a suportar o desamparo humano. O que
interessa desse texto, principalmente, é a concepção de Freud sobre o desamparo e a
necessidade de proteção. Dessa forma, realizaremos alguns resgates a respeito das experiências
infantis e adultas de desamparo e a forma de tentar dissimulá-lo.
Para Freud (1927/2011), nosso desamparo, antes de tudo, é o desamparo frente à força
da natureza: são ciclones, tsunamis, furacões, tempestades, vulcões que destroem tudo o que
construímos com o processo de cultura. A terra se abre, o céu se fecha nos fazendo perceber
que somos nada mais que pontos no universo. Além da força da natureza, temos de salientar a
relação do desamparo com a desprotegida infância, da qual cremos que nossos pais, heróis e
deuses nos protegem.
O sujeito já tem, antes de seu nascimento biológico, seu lugar no discurso do Outro. O
sujeito nasce antes de qualquer questão biológica. Muito antes dos filhos virem ao mundo, é
comum, e esperado, que os pais planejem como eles serão; já prepararam um lugar para seus
filhos na ordem simbólica (PACHECO, 2012). “O Outro é o lugar em que se situa a cadeia do
significante que comanda tudo que vai poder presentificar-se do sujeito, é o campo desse vivo
onde o sujeito tem de aparecer” (LACAN, 1964/2008, p. 200).
Ao chegar ao mundo em dependência total do Outro, os pais, ou quem acolhe a criança,
são os responsáveis pela alimentação, proteção, afeto e outras necessidades infantis
(CECCARELLI; LINDENMEYER, 2012). Para o bebê, a falta do Outro traz, sobretudo, a
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morte ontológica, sendo a função do Outro primordial, inicialmente, “introduzir a criança no
mundo da metáfora onde os objetos secundários substituem os primordiais” (CECCARELLI,
2001, p. 96).
A primeira relação da criança com o Outro é de dependência, encarnado inicialmente na
mãe. A criança acredita que esse Outro é onipotente, que a protegerá de todos os imprevistos
do destino. Pensando que é amada incondicionalmente, a criança faz tudo para não perder essa
proteção. Que fique bem claro: ser amada é ser protegida. Essa relação é muito importante para
que a criança lide com a sua condição antropológica fundamental de desamparo, no qual o
Outro fornecerá à criança os representantes ideativos das pulsões.
Inicialmente, a criança passa por um desamparo orgânico: faz-se necessário que a
limpem, alimentem, nutram. Quando surge novamente a fome, a criança cria sua primeira ilusão
alucinatória do desejo com os traços da primeira experiência de satisfação, que torna suportável
a espera do alimento.
Juntamente com o desamparo orgânico, surge o desamparo psíquico, pois que o bebê
não possui um aparelho mental que consiga lidar com as exigências pulsionais. Essa situação
exige um novo alimento: amor, carinho, palavras, olhares, afetos, atenção (CECCARELLI,
2012). À medida que as relações vão se estabelecendo com os outros significativos, pressupõese que haja um acolhimento e amparo frente às adversidades da vida.
Em um momento, estamos felizes; no outro, nos acontece uma catástrofe, em outros a
natureza nos assola com total crueldade, ou nosso corpo adoece, ou um amor nos faz sofrer.
Não há formas seguras de viver, tudo o que criamos são ilusões para enfrentar a dureza,
intempestividade e o sofrimento que é a vida. “Não existe uma regra de ouro que se aplique a
todos: todo homem tem de descobrir por si mesmo de que modo específico ele pode ser salvo”
(FREUD, 1930 [1929]/1996, p. 91).
Para Freud (1927/2011), as ideias religiosas seriam um trabalho de cultura, uma solução
para lidar com o desamparo. Essas ideias não teriam vindas ao acaso, mas seriam construídas e
perpassadas pela própria cultura. A cultura – e nessa ocasião Freud (1927/2011) não se
preocupa em diferenciá-la de civilização –, na concepção freudiana, entende “tudo aquilo em
que a vida humana se elevou acima de suas condições animais e se distingue da vida dos bichos"
(FREUD, 1927/2011, p. 36). A cultura cerca todo saber humano com o fim de dominar e se
proteger das forças da natureza e também abarca todas as instituições capazes de mediar a
relação entre os homens.
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Para Freud (1927/2011), como já apresentado, a principal forma que a cultura tenta se
proteger do desamparo é pela religião: as ideias religiosas proporcionam algum prazer aos
homens, promovem a organização social e dão um sentido de proteção às pessoas. Freud
(1927/2011) ainda nos assegura que os valores morais dos membros da sociedade não são os
únicos fatores a serem analisados numa cultura: ainda há os patrimônios de ideias, criações
artísticas, que não passam de ilusões que oferecem satisfações substitutas às renúncias
pulsionais, amenizando o desamparo.
Freud (1927/2011) salienta que a criança frente a seus pais, sobretudo ao pai, tinha razão
para temê-lo. Contudo, a criança, embora o temesse, se sentia segura e protegida por ele, segura
em relação ao desamparo, contra todos os imprevistos da vida. Da mesma forma para lidar com
as forças da natureza, quando cresce, o homem as humaniza: transforma as forças da natureza
em divindades e lhes veste com um ar paterno do qual teve proteção na infância, seguindo seus
modelos infantis.
Segundo Freud (1927/2011), o adolescente ou adulto sempre será uma criança e
precisará por toda a vida de uma proteção. Dessa forma, deslocará sua relação com seu pai para
os deuses, dos quais tem medo, mas com os quais se sente protegido e amado. “A religião seria
a neurose obsessiva universal da humanidade e, tal como a da criança, teria sua origem no
complexo de Édipo, na relação com o pai” (FREUD, 1927/2011, p. 109).
A derivação das necessidades religiosas, a partir do desamparo do bebê e do anseio
pelo pai que aquela necessidade desperta, parece-me incontrovertível, desde que, em
particular, o sentimento não seja simplesmente prolongado a partir dos dias da
infância, mas permanentemente sustentado pelo medo do poder superior do Destino.
Não consigo pensar em nenhuma necessidade da infância tão intensa quanto a da
proteção de um pai (FREUD, 1930 [(1929]/2010 p. 81).
Dessa forma, constrói-se uma ilusão destinada a suportar o desamparo humano, uma
ilusão com material de lembranças relativas ao desamparo da própria infância. A relação do
homem com Deus seria o reflexo da relação da criança com seus pais.
Não é difícil encontrar essas ligações. Elas consistem nas relações entre o desamparo
da criança e o desamparo adulto, que é continuação daquele, de modo que, como seria
de se esperar, a motivação psicanalítica para a formação da religião se transforma na
contribuição infantil à motivação manifesta dessa formação (FREUD, 1921/2011, p.
70).
E se realizássemos um paralelo entre os tipos de sofrimento e o desamparo, bem como
as formas de suportar o sofrimento e as ilusões?
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Enfim, as considerações freudianas nos deixam encurralados: com efeito, somos seres
de crença, capazes de acreditar em qualquer coisa. Tudo é bom, desde que o nosso
narcisismo seja assegurado, a ilusão da proteção mantida, e o desamparo evitado, por
mais que a realidade nos mostre o contrário. Não é a realidade que une os homens,
mas os sonhos: vemos o que queremos ver; acreditamos na Providência Divina, nas
promessas sociais, na ajuda dos amigos e dos parentes, na loteria... enfim, em tudo
que, ilusoriamente, nos conforta, seja o objeto de nossa crença real ou imaginário;
visível ou invisível: Credo quia absurdum (CECCARELLI, 2012, p. 102).
Como já ressaltado em Freud (1930/1996), a adicção é uma forma de suportar o
desamparo constitucional, e não deve ser entendida apenas a de tóxicos, mas também disfarçada
de condutas socialmente aceitas, sendo reveladas por meio da economia psíquica, por uma
organização com excesso de pathos.
Para fugir desse estado gerador de angústia, a adicção surge como amortecedor, que
possibilita se afastar da realidade e procurar calmaria no mundo interno, procurar uma economia
sexual no modo narcísico de satisfação: “A falta de relações objetais tranquilizantes para
acolher o recém-nascido em seu desamparo cria ‘espaços vazios’ que exigem respostas
narcísicas imediatas para suportar a intensa angústia aí gerada” (CECCARELLI, 2012, p. 113).
E a fantasia se fez carne
Pode-se dizer que os espasmos corporais, as paralisias, as cegueiras, entre muitos outros
sintomas histéricos, foram fatores que levaram Freud a ter as histéricas como objeto de pesquisa
e tratamento. Freud (1906 [1905]/1996), ao escutá-las, com Breuer percebeu que o discurso de
suas pacientes se dirigia a reminiscências de vivências sexuais infantis de sedução por um
adulto.
Esse fato fez com que Freud relacionasse os sintomas histéricos e obsessivos às
experiências sexuais que teriam ocorrido na infância e que haviam sido recalcadas por suas
pacientes. O retorno dessas lembranças, na época da puberdade, causaria os sintomas e não as
vivências propriamente ditas: “[…] tais traumas sexuais devem ter ocorrido em tenra infância,
antes da puberdade, e seu conteúdo deve consistir numa irritação real dos órgãos genitais (por
processos semelhantes à copulação)" (FREUD, 1896/1996a, p. 164).
É necessário ressaltar que, nesse período, o que mais nos importa é que Freud
(1896/1996b) acreditava que a histérica e o obsessivo haviam vivenciado realmente uma
experiência sexual. Essa primeira teoria do trauma ficou conhecida como Teoria da sedução.
A ênfase dada a essa teoria fazia do sujeito histérico alguém passivo frente à sexualidade que
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seria externa a ele; diferente do obsessivo que era ativo. O pai se torna o personagem principal
dessa teoria, a mãe aparecerá só mais tarde; ele é o acusado de perversão e histerização de suas
filhas – de forma geral a sedução ocorria com as mulheres.
Entretanto, Freud (1896/1996c) passou a não mais acreditar em sua neurótica,
apresentando vários motivos, entre os principais, encontramos: 1) o fato de que sua teoria da
sedução não teria mais base sólida, pois deveria haver muito mais pais pervertidos que histéricas
e 2) o de que no inconsciente não haveria indicações de realidade, de modo que não se
conseguiria distinguir entre a verdade e a ficção que é investida com afeto, havendo a
possibilidade de os pais serem tema da fantasia sexual. Esse foi um dos primeiros momentos
no qual Freud passou a conceber a fantasia.
Estes [os sintomas] já não apareciam como derivados diretos das lembranças
recalcadas das experiências infantis, havendo antes, entre os sintomas e as impressões
infantis, a interposição das fantasias (ficções mnêmicas) do paciente (produzidas, em
sua maior parte, durante os anos da puberdade), que, de um lado, tinham-se construído
a partir das lembranças infantis e com base nelas, e, de outro, eram diretamente
transformadas nos sintomas (FREUD, 1905/1996, p. 261).
Essa nova perspetiva levou Freud a rever o mecanismo dos sintomas histéricos. Esses
sintomas não seriam derivados das lembranças recalcadas das experiências infantis, existindo a
fantasia do sujeito entre os sintomas e as impressões infantis, que havia sido construída a partir
das lembranças infantis e eram diretamente convertidas em sintomas.
Freud (1896/1996c) tentava se afastar da justificativa de que a neurose seria causada por
fatores constitucionais e hereditários. Mas, no momento em que ele percebeu que sua Teoria
da sedução havia sucumbido, ele se viu em uma encruzilhada: se a sedução como fator caiu por
terra, os fatores constitucionais e hereditários teriam de voltar. Contudo, ele resolve esse dilema
numa torção da “disposição neuropática geral” para a “constituição sexual”. Essa concepção
teórica de descartar o trauma sexual infantil e conceber o infantilismo da sexualidade foi de
grande importância, porque o sexual na infância é sempre traumático e se é tido como
traumático, a própria noção de trauma é excluída (JORGE, 1988).
Em Formulações sobre os dois princípios do acontecer psíquico, Freud (1911/2004) ao
contextualizar a passagem do Princípio de prazer ao Princípio de realidade, revela que um tipo
de atividade não se deixou dominar pelo Princípio de realidade e ficou submetido apenas ao
Princípio do prazer: o fantasiar, que já começara com o brincar das crianças e mais tarde
prosseguira para o devanear adulto, destacando ainda que é muito estranho que o teste da
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realidade não tenha nenhuma influência nos processos inconscientes. “Nos processos
inconscientes, a realidade do pensar torna-se equivalente à realidade exterior e o mero desejar
já equivale à realização de desejo ou equipara-se até mesmo à ocorrência do evento desejado"
(FREUD, 1911/2004, p. 69-70).
Freud percebe que o mundo da fantasia parece estar no quadro entre o mundo interno,
que busca a satisfação plena pela ilusão, e o mundo externo, que impõe o princípio da realidade;
assim entendemos que nós nos movemos no imaginário, no subjetivo (LAPLANCHE;
PONTALIS, 1990).
Essa reviravolta em sua teoria é mencionada em Um estudo autobiográfico, no qual
Freud (1924/1996) alega que esse erro poderia ter-lhe consequências fatais para o trabalho.
Segundo ele, a maioria de seus pacientes reproduziam cenas de sua infância de serem seduzidos
sexualmente por um adulto e, naquele momento, ele acreditara nessas histórias como fatos reais.
Contudo se viu na obrigação de reconhecer que essas cenas jamais haviam existido, que eram
fantasias de seus pacientes.
Dessa reviravolta em sua teoria, percebera que os sintomas não possuíam ligação com
fatos reais, mas com as fantasias: “no tocante à neurose, a realidade psíquica era de maior
importância que a realidade material" (FREUD, 1924/1996, p. 40). Dessa forma, “gradualmente
aprendemos a entender que, no mundo das neuroses, a realidade psíquica é a realidade decisiva”
(FREUD, 1917/1996, p. 370).
As fantasias inconscientes estão na origem dos sintomas histéricos, e as fantasias
conscientes seriam os sonhos e devaneios diurnos. No entanto, as conscientes podem se tornar
inconscientes ou vice-versa, não sendo irredutíveis a um único registro. Algumas recordações
raramente estão ausentes da história da infância neurótica. Freud lhes dá o nome de fantasias
originárias ou universais que são as fantasias da cena primária, da castração e sedução: almejam
responder ao enigma da origem, respectivamente, do indivíduo, da diferença sexual e da
sexualidade, embora a base de todas elas tente resolver o enigma da sexualidade (CABAS,
2005).
A fantasia, segundo Laplanche e Pontalis (2001), é entendida como um:
Roteiro imaginário em que o sujeito está presente, e que representa, de modo mais ou
menos deformado pelos processos defensivos, a realização de um desejo e, em última
análise, de um desejo inconsciente.
A fantasia apresenta-se sob diversas modalidades: fantasias conscientes ou sonhos
diurnos; fantasias inconscientes como as que a psicanálise revela, como estruturas
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subjacentes a um conteúdo manifesto; fantasias originárias (LAPLANCHE;
PONTALIS, 2001, p. 169).
Freud, em seu artigo Escritores criativos e devaneios (1908/1996), acredita que os
primeiros traços do fantasiar já se encontram na infância. Sendo a atividade predileta da criança
o brincar, já poderíamos compará-la a um escritor, pois ela cria um mundo próprio, reajustando
os elementos de seu mundo de forma que lhe agrade. O escritor faz o mesmo que a criança: cria
um mundo de fantasias, no qual investe bastante, mas conseguindo diferenciá-lo da realidade.
As motivações das fantasias são sempre os desejos insatisfeitos, sendo toda fantasia a realização
de uma vontade, uma correção da realidade insatisfatória.
A fantasia, ou melhor, a fantasmática de um indivíduo seria responsável pelos sonhos,
pelos sintomas, pelo agir, pelos comportamentos repetitivos, por todo o dinamismo
do indivíduo. Ela modela e estrutura o conjunto da vida do indivíduo (PORCHAT,
2005, p. 25).
Fantasia e desamparo
Depois de apresentarmos um panorama sobre ilusão, desamparo e fantasia, nos
perguntamos: poderia a fantasia ser também uma defesa contra o desamparo, conforme a ilusão
representa? Para responder a essa questão, faremos algumas elucubrações. Primeiramente,
compararemos a noção de Deus em O futuro de uma ilusão (FREUD, 1927/2011) com a ideia
de enaltecimento dos pais em Romances familiares (FREUD, 1909 [1908]/1996) depois, as
origens da fantasia em Formulações sobre os dois princípios do acontecer psíquico (FREUD,
1911/2004) com a ilusão, também em O futuro de uma ilusão (FREUD, 1927/2011).
Interessante constatar que, em Romances familiares, Freud (1909 [1908]/1996) relata
que os pais representam as maiores autoridades para os filhos (como apresentado em O futuro
de uma ilusão (FREUD, 1927/2011), o desejo dos filhos é de se igualarem aos pais, ser grande
como eles). Entretanto, com o desenvolvimento, as crianças percebem que seus pais não são
seres extraordinários. O estado de afastamento do neurótico dos seus pais pode ser descrito
como “o romance familiar” que não é consciente, bem como a divinização do pai.
Quando a criança percebe que seus pais não são seres onipotentes, a imaginação da
criança se volta para libertar-se deles e tenta substitui-los por outros com mais estima. Mas,
quando a criança compreende a relação sexual e os papéis nela do pai e da mãe, passa a colocar
a mãe em situações infiéis como forma de substituir seu pai por figuras mais importantes
(FREUD, 1909 [1908]/1996).
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Segundo Freud (FREUD, 1909 [1908]/1996), não podemos ver maldade nessas
fantasias. Essas fantasias retornam das recordações originais enaltecidas dos pais. A criança dá
as costas à realidade e se volta para o pai da infância, sua fantasia é um lamento pelos dias
felizes que tivera, são formas de as crianças enaltecerem os pais e de conservar no inconsciente
a onipotência dos pais.
Todo esse esforço para substituir o pai verdadeiro por um que lhe é superior nada mais
é do que a expressão da saudade que a criança tem dos dias felizes do passado, quando
o pai lhe parecia o mais nobre e o mais forte dos homens, e a mãe a mais linda e
amável das mulheres (FREUD, 1909 [1908]/1996, p. 222).
Essa conservação do pai onipotente, nobre e extraordinário no inconsciente não teria
ligação com a elevação do pai ao estatuto de Deus? Embora, conscientemente, a criança
menospreze e tente colocar seus pais em situações que descaracterizem sua filiação,
inconscientemente ela guarda suas primeiras impressões e as transporta para maiores figuras.
Acreditamos que poderíamos ver nessa fantasia, também, uma relação com o desamparo.
Conclusões
Como pudemos perceber em O futuro de uma ilusão, Freud (1927/2011) define que o
segredo da ilusão está na força do desejo infantil de necessidade de proteção. Essas ilusões se
originam na vida da imaginação, no espaço em que o teste da realidade não tem autoridade. Da
mesma forma, percebemos, em Formulações sobre os dois princípios do acontecer psíquico,
que Freud (1911/2004) define o espaço da fantasia como um terreno que não é dominado pelo
Princípio de realidade, submetido apenas ao Princípio de prazer, ressaltando que no
inconsciente, o pensar se iguala à realidade exterior e o desejo, à sua realização: “O âmbito de
que se originam tais ilusões é aquele da vida da fantasia; quando ocorreu o desenvolvimento do
sentido da realidade, ele foi expressamente poupado do teste da realidade e ficou destinado à
satisfação de desejos dificilmente concretizáveis”(FREUD, 1930/2010, p. 37).
A ilusão nada mais é que uma crença motivada pela realização de um desejo infantil –
como na fantasia. Entretanto a ilusão é calcada num desejo infantil de necessidade de proteção.
Já na fantasia, o fator preponderante é a correção de uma realidade insatisfatória (percebemos
nela, também, uma forma de satisfação pulsional e, ao mesmo tempo, uma defesa contra o
desejo como podemos ver na cena de sedução das histéricas). Embora tanto na fantasia quanto
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na ilusão o teste de realidade não exerça influência, devemos ressaltar que fantasia e ilusão
ocupam lugares diferentes na topologia psíquica.
As fantasias se adequam ao contexto da vida, mas manteriam a sua marca. A fantasia
oscila em três tempos: alguma situação presente desencadeou o desejo principal do sujeito,
desse ponto ele volta a uma experiência passada (infância), na qual esse desejo foi realizado,
criando uma situação no futuro que represente a realização. Na fantasia, o “passado, presente e
futuro são entrelaçados pelo fio do desejo que os une" (FREUD, 1908/1996, p. 138).
Devemos nos lembrar de que o berço da ilusão é a imaginação, ou seja, a fantasia – lugar
em que o teste da realidade não exerce influência, sendo a responsável por enquadrar toda a
realidade psíquica do sujeito. Assim, inferimos que a ilusão e a fantasia estão entrelaçadas, já
que a ilusão se constrói nas próprias fantasias do sujeito.
Dessa forma, acreditamos que a fantasia também poderia ser entendida como uma
defesa ao desamparo, numa tentativa de corrigir a realidade insatisfatória. Diante das
dificuldades, o sujeito procura um momento infantil mítico perfeito e cria uma situação no
futuro na qual ele possa fantasiar, aplacando sua angústia e lhe gerando um maior conforto
psíquico.
Referências
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Recebido em: 30/03/2019.
Aceito em: 30/05/2019.