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CONHECIMENTOS TRADICIONAIS NA PESCA ARTESANAL

2011, Ateliê Geográfico

O artigo apresenta e discute saberes pautados pela tradiçãocompreendidos como saberes construídos ao longo das gerações, transmitidos a partir da oralidade e das experiências do cotidiano -frutos de um conhecimento não-científico que tem por base a observação e as orientações das gerações mais experientes. O ícone de referência usado para tecer a discussão é a pesca. Ressaltamos os conhecimentos que permitem ao pescador, entre outros domínios: descobrir os hábitos alimentares dos peixes e de outros animais; orientar-se através dos astros durante a navegação noturna e conhecer o fluxo das marés orientadas pelo ciclo lunar. A pesquisa foi organizada a partir de um levantamento bibliográfico e pesquisa de campo sobre diversas formas de pescarias nas regiões Norte e Nordeste. A ênfase nos saberes tradicionais faz um paralelo com os conhecimentos científicos a fim de deixar em evidência que é possível no mundo moderno uma complementaridade entre ciência e tradição. Palavras-chave: Conhecimentos tradicionais, pesca artesanal, técnica e educação.

CONHECIMENTOS TRADICIONAIS NA PESCA ARTESANAL SAVOIRS TRADITIONNELS DANS LA PÊCHE ARTISANALE TRADITIONAL KNOWLEDGE IN ARTISAN FISHING Sérgio Cardoso de Moraes Sociólogo, Doutor em Educação Núcleo de Meio Ambiente / Universidade Federal do Pará Programa de Pós-graduação em Gestão de Recursos Naturais e Desenvolvimento Local na Amazônia/ PPGEDAM Programa de Pós-graduação em Geografia / PPGEO E-mail: [email protected] Resumo O artigo apresenta e discute saberes pautados pela tradição – compreendidos como saberes construídos ao longo das gerações, transmitidos a partir da oralidade e das experiências do cotidiano - frutos de um conhecimento não-científico que tem por base a observação e as orientações das gerações mais experientes. O ícone de referência usado para tecer a discussão é a pesca. Ressaltamos os conhecimentos que permitem ao pescador, entre outros domínios: descobrir os hábitos alimentares dos peixes e de outros animais; orientar-se através dos astros durante a navegação noturna e conhecer o fluxo das marés orientadas pelo ciclo lunar. A pesquisa foi organizada a partir de um levantamento bibliográfico e pesquisa de campo sobre diversas formas de pescarias nas regiões Norte e Nordeste. A ênfase nos saberes tradicionais faz um paralelo com os conhecimentos científicos a fim de deixar em evidência que é possível no mundo moderno uma complementaridade entre ciência e tradição. Palavras-chave: Conhecimentos tradicionais, pesca artesanal, técnica e educação. Résumé L'article présente et discute les savoirs réglés par la tradition -y compris comme des savoirs accumulés au fil des générations, transmis a partir de l’ oralité et des expériences de la vie quotidienne - fruits d'un savoir non scientifique basé sur l'observation et les orientations de générations avec plus d'expérience . La référence icône utilisée pour tisser la discussion est la pêche. Nous insistons sur les compétences qui permettent aux pêcheurs, entre d’autres domaines: découvrir les habitudes alimentaires des poissons et des autres animaux , être guidés par les étoiles au cours de la navigation nocturne et apprendre sur le flux des marées guidées par le cycle lunaire. L'enquête a été organisée à partir d'un relèvement bibliographique et d’une recherche sur le terrain sur plusieurs formes de pêche dans le Nord et le Nord-est. L'accent mis sur les savoirs traditionnels fait un parallèle avec les savoirs scientifiques afin de faire comprendre qu'il est possible dans le monde moderne une complémentarité entre la science et la tradition. Mots-clés: savoirs traditionnels, pêche artisanale, technique et éducation. Ateliê Geográfico Goiânia-GO v. 5, n. 2 agos/2011 p. 88-105 Página 88 Abstract This essay presents e discusses the knowledge based on traditon - understood as the knowledge constructed over the generations, transmitted through oral means and everyday experiences - as a result of a non-scientifical knowledge based on the observation e guiding of the more experient ancestors. The reference icon used in order to proceed the debate is the fishing activity. We emphasize the knowledge which allows the fishermen, among other abilities, discover the food habits of fish and other animals; guide by the stars during night navigation and learn the tide flows guided by the moon. This work was organized based on a bibliographic study and a field research about the several ways of fishing in the Northern and Northeastern regions of Brazil. The emphasis on the traditional knowledge compares fishing to scientifical knowledge in order to show that it is possible a relation of complementarity between science and tradition in the modern world. Key-words: Tradition knowledge, fishing, artisan fishing, technique and education. Introdução A sistematização de produção da ciência remete ao século XVII, porém num período anterior, outras formas de produção de conhecimento se faziam presente nas sociedades. A construção e sistematização de conhecimentos se dispersam por vários segmentos da sociedade e, se expressa através de variadas formas. Uma dessas formas diz respeito aos saberes não científicos, em especial o que chamamos aqui de saberes da tradição, conforme Almeida (2001). Enfatizamos aqueles saberes que são repassados de geração a geração pela oralidade e experimentação. “Trata-se de saberes que, respaldados por quadros de referência distintos, estabelecem estratégias distintas de leitura do mundo” (ALMEIDA, 2001, p. 53). Esta forma de compreensão diz respeito a saberes “desenvolvidos às margens do conhecimento escolar e da ciência, esses saberes da tradição são, ao longo da história, repassados de pai para filho de forma oral e experimental” (ALMEIDA, 2002, p. 2). Dentre as numerosas populações que se valem dessa maneira de compreensão e comunicação, destacamos os pescadores artesanais e nos reportamos, em especial, às populações situadas na Amazônia e no nordeste brasileiro. Aqui a pesca é caracterizada mais do que uma singular atividade humana entre tantas outras. Destacamos a complexidade de relações envolvendo homens, peixes, ciclos lunares, astros, mitos e outros fenômenos que podem influenciar nas pescarias, enfocando o meio onde os pescadores realizam suas atividades cotidianas. Ateliê Geográfico Goiânia-GO v. 5, n. 2 agos/2011 p. 88-105 Página 89 O princípio metodológico da pesquisa tem como ponto de partida e de chegada técnicas de pesca desenvolvidas por populações tradicionais. Tais técnicas funcionam como operadores cognitivos num processo de construção de conhecimento no âmbito dessas populações. A partir dessas técnicas, analisamos os saberes que os pescadores utilizam para modificar, comparar, diluir e reatualizar seus conhecimentos a fim de obter êxito nas pescarias, ou seja, discutimos como é pensada e processada a arte de capturar peixes. A realização da pesquisa obedeceu a várias etapas. Num primeiro momento, realizamos um levantamento bibliográfico sobre a pesca, percorrendo uma vasta literatura que trata dos mais variados enfoques sobre esta atividade. Valemo-nos de livros, teses, dissertações e monografias que descrevem diversos tipos de pescarias em espaços distintos. Nessa investida, nossos principais interlocutores não foram eleitos ao acaso. Pescadores de duas regiões, distantes e distintas, que têm nas águas suas semelhanças e proximidades, foram também nossos parceiros de outra pesquisa desenvolvida em nível de mestrado (MORAES, S., 2002). Nossa familiaridade, tanto com as pessoas quanto com os distintos lugares, foi fator de extrema importância para o bom desempenho do estudo. Esta aproximação facilitou nossa inserção junto às comunidades de pescadores sem maiores impedimentos, onde muitas vezes os pescadores que já conhecíamos atuaram como facilitadores para nosso acesso em outras localidades. Atemo-nos nesse artigo aos saberes que dizem respeito à arte da captura de peixes e procuramos uma aproximação entre as duas regiões citadas, que localmente possuem especificidades, mas no contexto mais geral do conhecimento apresentam similaridades em relação ao comportamento humano diante da natureza. O percurso teórico-metodológico traçado nos argumentos deste artigo, advoga por uma complementaridade entre conhecimentos científicos e conhecimentos não-científcos, tratados aqui como saberes da tradição. As pescarias e os saberes Só é possível a realização das pescarias devido à sistematização de técnicas. As técnicas, no grego techné, tanto na Antigüidade como também na Idade Média, Ateliê Geográfico Goiânia-GO v. 5, n. 2 agos/2011 p. 88-105 Página 90 compreendem ars = “arte”, “habilidade”, toda a realização de coisas sensorialmente perceptíveis a serviço de uma necessidade ou de uma idéia que denota, por conseguinte, a habilidade ou a destreza, tanto para o necessário, quanto para o belo - tornar visível uma idéia. O desenvolvimento das técnicas é uma confluência entre aquelas manuseadas por nossos antepassados e outras que foram surgindo ao longo da História. Nenhuma delas deve ser deixada de lado. As mais humildes técnicas dos chamados primitivos fazem apelo a operações manuais e intelectuais de uma grande complexidade que é preciso ter compreendido e aprendido e que, de cada vez que se executam, reclamam inteligência, iniciativa e gosto. Não é qualquer árvore que é própria para fazer um arco, nem mesmo qualquer parte da árvore; a exposição do tronco, o momento do ano ou do mês em que a abatem tão-pouco são indiferentes. (LÉVI-STRAUSS, 1986, p. 383) As afirmações de Lévi-Strauss permitem-nos discutir as atividades humanas realizadas hoje, tendo como parâmetros os conhecimentos acerca da natureza e seu comportamento diante do homem. Dentre as atividades humanas, a pesca como uma daquelas em que há uma relação muito próxima com a natureza, uma vez que, ... quanto mais ajustado é o pescador ao seu ambiente, mais condições cognitivas tem ele para desvendar e se apropriar da natureza. É por aí que ele tem acesso objetivo ao conhecimento das relações existentes entre sua atividade e as faunas aquática e terrestre; a flora; os ventos e os mares; as nuvens e a chuva, e assim por diante, cujos sinais são decodificados com sabedoria. (FURTADO, 1993, p. 206). Esta assertiva de Furtado acerca do ajuste do pescador ao meio ambiente remete à compreensão de um conhecimento que tem como base de pensamento os saberes da tradição (ALMEIDA, 2001). Em meio às várias técnicas e grande diversificação de instrumentos utilizados na pesca, tomamos como referencial na Amazônia, a pesca com o “espinhel”. Trata-se de um instrumento que se constitui de uma linha principal à qual são conectados inúmeros anzóis que pode ser posicionado na posição horizontal ou vertical com a coluna d’água. A distância dos anzóis varia em torno de um metro entre eles. Veremos alguns deles. Ateliê Geográfico Goiânia-GO v. 5, n. 2 agos/2011 p. 88-105 Página 91 Num primeiro tipo de espinhel, uma corda é amarrada entre duas árvores na várzea ou entre duas varas num lago. A linha é mantida esticada entre 20 e 30 centímetros acima do nível d’água, de modo que os anzóis ficam pendurados logo abaixo da superfície do rio. Pequenos sapos, abundantes nas áreas de vegetação flutuante, são utilizados como iscas, presos aos anzóis de aproximadamente quatro centímetros. Este tipo de pescaria se destina a captura de espécies como aruanã (OskoglossumBicirrhosum), carauaçu (Dioscorea alata), matrinxã (Brycon sp), e piranha caju (Serrassalmus nattereri). O segundo tipo de pesca com o espinhel acondiciona anzóis maiores, com cerca de seis centímetros e tem como atrativo para os peixes não mais sapos, mas frutos, especialmente de árvores cuprea,Sapotaceae), araçá de várzea, (Myrcia tais como abiurana fallax,Myrtaceae), (Neolobatia seringa (Havea brasiliensis,Euphorbiaceae) ou socoró (Mouriria cf.ulei, Melastomaceae). Este tipo de espinhel iscado com frutas é usado para capturar tambaqui (Colossoma macropomum) durante a enchente de março a agosto na Amazônia. O espinhel de tambaqui é colocado comumente perto da borda da mata de várzea e cada extremidade é amarrada a um feixe de capim flutuante. O terceiro tipo destina-se a captura de tracajá (Podocnemis unifilis), um quelônio, semelhante a uma pequena tartaruga. O espinhel fica suspenso à superfície da água de modo que os anzóis toquem sobre ela. Desta vez a isca utilizada é o fruto do caiembé (Sorocea duckei, Moraceae). Essa fruta, preto-azulada, além do tracajá atrai outros peixes. Finalmente, o quarto tipo de utilização do espinhel é destinado à captura do pirarucu. (Sudis gigas, Vastres gigas). Consiste em um único e grande anzol de aproximadamente 12 centímetros, preso na extremidade por uma forte corda amarrada em um galho na mata de várzea. O anzol, que fica logo abaixo da superfície, é iscado com jiju (Ageneiosus brevifilis) ou tamuatá (Calichthys calichthys) vivos, os quais são capturados com caniço ou tarrafa. O anzol é inserido na região dorsal do peixe para evitar danos aos órgãos vitais. Desta forma, o peixe permanece vivo e móvel durante várias horas, tornando-se assim mais atrativo ao pirarucu (SMITH, 1979, p. 60-63). As diversas formas de utilização de um mesmo instrumento denotam que o conhecimento construído ao longo das gerações sistematiza um conjunto de saberes sobre o modo de vida animal, vegetal e o meio ambiente. Talvez se possa falar de uma Ateliê Geográfico Goiânia-GO v. 5, n. 2 agos/2011 p. 88-105 Página 92 zoologia, uma botânica e uma ecologia da tradição. Isso porque o uso de sapos e frutos na condição de iscas para capturar determinados peixes, revela um prévio conhecimento acerca dos hábitos alimentares das espécies. Os pescadores da Amazônia sabem que o tambaqui (Colossoma macropomum) e a Pirapitinga (Colossoma bidens), comem sementes de palmeiras com casca dura. Os Aracus (Leporinus spp) têm no seu cardápio folhas e raízes de vegetação aquática, enquanto outras espécies sugam o limo composto de fungos, algas e pequenos animais, como o Jaraqui (Semaprochilodus spp) e o Curimatá (Prochilodus nigricaus). Tais conhecimentos têm como base de pensamento o que o antropólogo LéviStrauss (2002, p.24) denomina de “pensamento selvagem”, ou seja, não um pensamento do selvagem, mas uma estratégia de conhecimento em estado selvagem, livre das categorizações do conhecimento científico, que para o autor, é o conhecimento domesticado. O conhecimento em estado selvagem está pautado numa ordem que “constitui a base do pensamento que denominamos primitivo” (Idem, p. 25). Ora, seu objeto primeiro não se reduz a uma ordem prática, mas efetivamente à exigência intelectual que transcende qualquer plano prático. Dessa forma, as classificações obedecem a um estilo de vida e a uma compreensão da natureza pelas populações tradicionais. Segundo Almeida (2002, p. 4), “a originalidade do conhecimento da tradição se enraíza em modelos mais holísticos de pensar, não sendo esses modelos inferiores ou superiores aos da ciência”. Trata-se de estratégias de pensamento que dispõem de referenciais próprios de leitura do mundo. Essas leituras operam em consonância com o estilo de vida dessas populações. Na Amazônia, Furtado (1993) apresenta uma das maneiras de como os pescadores se empenham na busca de novos pontos piscosos na região, uma vez que o esforço de pesca aumenta diretamente em relação à diminuição do estoque pesqueiro. Para descobrir um novo ponto de pesca em seu circuito de trabalho, o pescador precisa ter um aguçado senso de observação a fim de notar alguns sinais que denunciam a presença de peixes em determinados locais, que recebem este nome. Tais sinais, que se conjugam na mente do indivíduo para denunciar a presença de fauna ictiológica, capaz de proporcionar um considerado nível de captura para os fins desejados, podem estar associados à água e/ou a terra, ou as duas, ao mesmo tempo. (FURTADO, 1993, p. 206). Os conhecimentos sobre os sinais que indicam a presença de peixes são resultados de uma intensa e obstinada observação do comportamento da natureza. Trata- Ateliê Geográfico Goiânia-GO v. 5, n. 2 agos/2011 p. 88-105 Página 93 se de um aprendizado contínuo que populações tradicionais desenvolvem desde crianças. “Fomos ensinados a prestar atenção a tudo o que vemos”, assim registra um pensador indígena a A. C. Fletcher, citado por Lévi-Strauss (2002, p .25). Para este autor, o conhecimento não denota somente utilidade prática, ou seja, conhecer somente em função de uma finalidade, mas, sobretudo, o conhecimento transcende a instrumentalização, conhece-se pelo puro prazer em conhecer. Desse modo é possível compreender que “espécies animais e vegetais não são conhecidas porque são úteis; elas são consideradas úteis ou interessantes porque são primeiro conhecidas”. (Idem, p. 26) Na múltipla observação acerca do comportamento da natureza, os seres das águas, assim como os do ar podem ser indicadores para a localização de cardumes. Ao observar o vôo de aves, que geralmente fazem em bando, o pescador é alertado da presença de peixes. São aves que capturam peixes próximos à superfície da água ou mesmo mergulhando, como é o caso dos mergulhões (Mergus octosenceus) e mauaris (Couratari Lecythida). O sobrevôo delas sobre certos lagos, rios ou paranás, ou a simples passagem pelas margens dos cursos d’água, denunciam a presença de peixe. Por outro lado, “o conhecimento que os pescadores têm dos hábitos alimentares dessas aves e, que em seu cardápio entram alguns peixes é o bastante para avaliarem a qualidade (espécie) de peixes que ocorrem naquelas paragens ou pesqueiro” (FURTADO, 1993, p. 209). O conhecimento do meio ambiente e a habilidade para utilizar esse meio, na medida em que vão sendo transmitidos e absorvidos pelas gerações transformam práticas, hábitos de vida, modos de apreensão da natureza pelo contato íntimo com a água, a floresta, e a terra. Edgar Morin (1999) ao tratar do processo de construção dos conhecimentos apresenta as múltiplas faces enfatizando que o conhecimento é multidimensional: O conhecimento não é insular, mas peninsular, e , para conhecê-lo, temos de ligá-lo ao continente do qual faz parte. O ato de conhecimento, ao mesmo tempo biológico, cerebral, espiritual, lógico, linguístico, cultural, social, histórico, faz com que o conhecimento não possa ser dissociado da vida humana e da relação social. Os fenômenos cognitivos dependem de processos infracognitivos e exercem efeitos e influências metacognitivos. (MORIN, 1999, p. 29) Trata-se de uma rede de domínios que emerge em todos os aspectos relacionados à vida e ao trabalho na pesca. O conhecimento condensado e modificado pelo pescador é uma síntese desse processo que ao mesmo tempo ele está Ateliê Geográfico Goiânia-GO v. 5, n. 2 agos/2011 p. 88-105 Página 94 em construção. Somente a experiência adquirida ao longo de sua vida possibilita a construção cotidiana, uma vez que: A cultura favorece ao pensamento as suas condições de formação, de concepção, de conceptualização [sic]. Ela impregna, modela, e eventualmente dirige os conhecimentos individuais. Trata-se aqui, não tanto de um determinismo sociológico exterior, mas sim de uma estruturação interna. a cultura e, via cultura, a sociedade, estão no interior do conhecimento humano (...) O conhecimento está na cultura, e a cultura está no conhecimento. Um ato cognitivo individual é, ipso facto, um fenômeno cultural e todos os elementos do complexo cultural coletivo se atualizam num ato cognitivo individual (MORIN, 1991, p, 20). A cultura enquanto conhecimento e, o conhecimento enquanto cultura são a dialética que movimenta, interage e dá sentido a vida e as práticas na pesca, que por sua vez reflete-se em saberes que permitem ao pescador se relacionar com o meio onde estão inseridos de maneira íntima, proporcionando a criatividade e a sabedoria. “Temos, pois, de considerar a cultura como um sistema que faz comunicar – dialetizando – uma experiência existencial e um saber construído” (MORIN, 1998, p, 126). Este conhecimento cultural ultrapassa a observação, permite uma interação entre as populações tradicionais com o meio ambiente. Assim exemplifica Furtado: O ronco do peixe é outro fato curioso que, só quem vive num cotidiano íntimo, pode reconhecer o ruído, entre outros que se pode ouvir, quando se está num lago, rio ou igarapé. Certos peixes fazem ruídos característicos quando vêm à superfície, para buscar oxigênio ou para pegar alimentos (frutos, insetos, folhas). O som característico que produzem nessa hora alerta o pescador para a existência de grande ou pequena quantidade de peixe e/ou dos que o acompanham. (FURTADO, 1993, p . 211). Ao observar os sinais do peixe, ocorre uma associação entre o comportamento e a classificação das espécies, “peixe que pula fora d’água, peixe que nada na beira d’água, peixe que ronca, peixe que vem buscar comida em cima d’água, peixe que anda pelo fundo, peixe que anda pelo meio do rio, peixe que se esconde nas tronqueiras, peixe que come fruta, peixe que come inseto, peixe que come flor” (FURTADO, 1993, p, 212). Acrescenta-se ainda que: os peixes predadores como a piranha (Serrasalmus ssp) e, sobretudo todos os bagres indicam ao pescador a presença de outros peixes que são comidos por estas espécies. O pescador conhece quais são os peixes preferidos por elas. Piranhas e candirus (Vandellia), na concepção regional, atacam não só peixes como gente também.(FURTADO, 1993, p . 209). Ateliê Geográfico Goiânia-GO v. 5, n. 2 agos/2011 p. 88-105 Página 95 É a sensibilidade aguçada e direcionada para a pesca que permite ao pescador identificar o cardume, um dos saberes importante na arte de pescar. Também os pescadores da Lagoa Piató, no Rio Grande do Norte, identificam o ronco dos peixes quando se encontram em cardume. Assim descreve o pescador Antônio Carvalho, conhecido como “Galo” na Comunidade de Areia Branca, localizada às margens da Lagoa do Piató: “A pescada, que a gente chama aqui, aquela pequenina, quanto tem, a gente escuta o roncado dela. Agora não tem aqui ela, mas perto da barragem, tem um cabra que mergulha bem no meio do lago. Se tiver peixe lá, ele sabe...” Além da audição apurada para identificar sons provenientes de peixes, os pescadores da Lagoa do Piató se valem de outro sentido, desta vez o olfato. Segundo o pescador José Lucas: “a sardinha tem um cheiro de melancia verde. Quando você corta uma melancia verde, ela tem aquele cheirinho. Quando você põe os olhos dentro d’água e sentir aquele cheiro de melancia verde, já sabe que ali tem sardinha”. Um conhecimento apurado sobre os elementos da natureza, num complexo que envolve águas, animais, astros e ventos, permite aos saberes da tradição ter a mesma eficiência que o conhecimento científico, ainda que este possa não reconhecê-lo como confiável, ou mesmo depreciá-lo com menor importância, uma vez que: Esses povos que consideramos estarem dominados pela necessidade de não morrerem de fome, de se manterem num nível mínimo de subsistência, em condições materiais muito brutas, são perfeitamente capazes de pensamento desinteressado; ou seja, são movidos por uma necessidade ou um desejo de compreender o mundo que os envolve, sua natureza e a sociedade em que vivem. Por outro lado, para atingir esse objetivo, agem por meios intelectuais exactamente [sic] como faz um filósofo ou até, em certa medida, como pode fazer e fará um cientista (LÉVI-STRAUSS, 1987, p. 31). É o saber desinteressado, a que se refere Lévi-Strauss que permite aos pescadores classificar, ordenar e diferenciar os variados tipos de pescarias e de instrumentos, pois eles têm características próprias, geridas num contexto multidimensional que, proporciona a partir da criação e recriação, novas técnicas, novas ordenações, novos saberes, uma vez que ...aprender não é somente reconhecer o que, virtualmente, já era conhecido; não é apenas transformar o desconhecido em conhecimento. É a conjunção do reconhecimento e da descoberta. Aprender comporta a união do conhecido e do desconhecido (MORIN, 1999, p. 77) Ateliê Geográfico Goiânia-GO v. 5, n. 2 agos/2011 p. 88-105 Página 96 Formas descontínuas de aprendizagem não somente em função da finalidade prática, mas principalmente pelo prazer em conhecer são também aguçadas pela curiosidade. O pescador Chico Lucas, da Lagoa do Piató, no Rio Grande do Norte, relata com detalhes como foi a introdução de peixes de outras regiões no semi-árido nordestino: De todos os peixes que temos hoje aqui na lagoa, o tucunaré foi o primeiro que apareceu aqui. Ele veio do açude Itans lá de Caicó, lá começaram a fazer um criatório e colocaram o tucunaré. Quando o açude sangrou pro rio, veio essa produção pra lagoa. Era um peixe estranho pra gente, a gente não conhecia na época, mas depois a gente se adaptou e, eu sei que pra melhor dizer, fazem quarenta anos que eu conheço o tucunaré aqui na lagoa do Piató. E outra coisa, é o melhor peixe comercial da região. Os pescadores do Piató, ao se depararem com uma espécie nunca vista anteriormente, o tucunaré, que por diversos motivos foi introduzido naquela região e espalhou-se por vários rios e lagoas, provocou uma reação de desconhecimento que ao mesmo tempo projeta uma busca em saber, uma resposta de como funciona, de onde vem, pois refere-se a um peixe “estranho” àquele ecossistema e aos pescadores. A reação de Chico Lucas quando afirma que: “depois a gente se adaptou ..”, ou seja, a capacidade de condensar ensinamentos que são processados e repassados de geração a geração, são características de populações que têm na tradição estilos de se relacionar com a natureza. Estes conhecimentos permitem que na Amazônia os pescadores utilizem estratégias de localização de peixes. Segundo Furtado (1993, p. 213), na região do Baixo-Amazonas do Estado do Pará, quando os pescadores encontram cardumes, utilizam o método da “triangulação visual”, isto é, o pescador, ao detectar um pesqueiro, escolhe ou marca logo algum sinal ou acidente físico ao qual possa associar a presença do pesqueiro. A referência escolhida pelos pescadores pode ser um igarapé, uma ilha, uma árvore, uma pedra, uma enseada, cuja localização permita, sem erro, orientá-lo em futuras excursões. Os pescadores em geral procuram manter em segredo, só revelando em casos especiais ou de interesses comerciais exclusivistas. Trata-se de olhares angulares acerca do comportamento do ambiente. O primeiro olhar angular refere-se ao local de partida (primeiro vértice). O segundo olhar angular diz respeito ao local do pesqueiro, ou seja, o acidente físico anunciado por uma determinada marca (segundo Ateliê Geográfico Goiânia-GO v. 5, n. 2 agos/2011 p. 88-105 Página 97 vértice). O terceiro olhar angular comporta as diferentes posições em que o próprio pescador se encontra. Ele procura se deslocar até encontrar o vértice marcado pelo acidente físico (FURTADO, Op. cit. p, 13). Esses olhares angulares sempre foram utilizados na navegação de rios e mares em toda a tradição marítima para localizar e marcar os canais de rios; os bancos de areia, os corais e outros obstáculos fixos da navegação. Os faróis foram construídos para favorecer a memorização desses mapas mentais. O comportamento dos pescadores mediante à localização dos pontos de pesca assemelha-se ao bricoleur, metáfora criada por Claude Lévi-Strauss que expressa um estilo de pensamento que se faz valer do material existente à sua volta para rearranjá-lo numa nova configuração. Para LéviStrauss: O bricoleur está apto a executar grande número de tarefas diferentes; mas, diferentemente do engenheiro, ele não subordina cada uma delas à obtenção de matérias-primas e de ferramentas, concebidas e procuradas na medida de seu projeto: seu universo instrumental é fechado e a regra de seu jogo é a de arranjar-se sempre com os meios-limites, isto é, um conjunto, continuamente restrito, de utensílios e de materiais, heteróclitos, além do mais, porque a composição do conjunto não está em relação com o projeto do momento, nem, aliás, com qualquer, mas é o resultado contingente de todas as ocasiões que se apresentam para renovar e enriquecer o estoque, ou para conservá-lo, com os resíduos de construções e de destruições anteriores” (LÉVISTRAUSS, 2002, p. 38). Ao agir como um bricoleur, os pescadores se valem de conhecimentos que fazem parte do seu cotidiano, diferentemente do conhecimento do “engenheiro”, imagem oposta ao bricoleur para Lévi-Strauss, uma vez que o “engenheiro” prefigura um modelo mental que projeta sua obra e necessita, para executá-la, de peças predefinidas e especificamente construídas para o projeto. Os “meios-limites” de que se valem para localizar pontos piscosos, tanto no mar quanto nos rios, são oriundos de sua meticulosa observação do contexto em que vivem e trabalham; não se valem de bússola ou de outros equipamentos que pudessem orientá-los nas suas pescarias. Os mapas mentais e esquemas matemáticos apresentados para as marcações dos pontos de pesca revelam que o conhecimento empírico e seus métodos de localização só são possíveis graças a uma associação de elementos de ordem da natureza que fazem parte do meio em que vivem e de onde os pescadores também são partes integrantes. Segundo Morin, essa operação ocorre porque: Ateliê Geográfico Goiânia-GO v. 5, n. 2 agos/2011 p. 88-105 Página 98 O cérebro dispõe de uma memória hereditária, bem como de princípios inatos organizadores do conhecimento. Mas, desde as primeiras experiências do mundo, o espírito/cérebro adquire uma memória pessoal e integra em si princípios sócio-culturais de organização do conhecimento. Desde o seu nascimento, o ser humano conhece por si, para si, em função de si, mas também pela sua família, pela sua tribo, pela sua cultura, pela sua sociedade, para elas, em função delas (MORIN, 1991, p. 18). São essas aptidões mentais que proporcionam aos pescadores o desenvolvimento da criatividade no âmbito de suas pescarias. No litoral paraense quando os pescadores chegam a um ponto tido como ideal para lançar as redes, realizam uma operação para identificar a profundidade e o tipo de solo. Os pescadores lançam na água o prumo (fio com um peso na extremidade). Tal medida é importante porque não só constitui um dos indicadores da presença provável de espécies, como também em função da segurança da rede na água, passível de se engatar em pedras porventura existentes no leito. Na utilização da rede de fundo, a profundidade determina a altura das cordas de bóia. Com o prumo, os pescadores fazem uma “sondagem” pela qual adquirem progressivamente o conhecimento do relevo e da constituição do fundo do mar. Com efeito, o tipo de atrito do prumo identifica a sua composição, que pode ser de pedra, de areia, de cascalho, de barro ou de outro tipo. Esta informação é importante para os pescadores, tanto no que tange à segurança da rede, como também porque determinadas espécies se encontram mais freqüentemente em determinados tipos de fundo (MANESCHY, 1995, p. 78). Uma descrição minuciosa dessa técnica foi feita por Alex Fiúza de Mello, no município de Vigia, localizado na região banhada pelo oceano Atlântico, na costa do Estado do Pará. A medição da profundidade é feita através de uma corda à prumo. Ao longo dessa corda existem ‘nós’ cujos segmentos intervalares correspondem a um determinado número de ‘braças’ [cada ‘braça’ (...) é equivalente ao tamanho de dois braços abertos], medida tradicionalmente usada pelas comunidades pesqueiras. A profundidade pode ser, por exemplo, de 6 ou 7 ‘braças’, ou seja, a metragem correspondente a seis ou sete vezes o tamanho de dois braços abertos. O primeiro ‘nó’ geralmente equivale a não menos que 5 ou 6 ‘braças’; enquanto a água não atingir o mesmo significa que a profundidade é inferior à metragem representada pelo nó. Já o segundo nó pode equivaler a 10 ‘braças’; assim, o intervalo compreendido entre 6 a 10 ‘braças’ é calculado aproximativamente pelo pescador, de acordo com o local até onde a corda foi molhada. Confirmada a profundidade desejada, resta ancorar o barco e lançar a rede (MELLO, 1985, p, 114) Ateliê Geográfico Goiânia-GO v. 5, n. 2 agos/2011 p. 88-105 Página 99 A descrição desta técnica apresenta, principalmente, elementos de ordem métrica, que adaptados à prática de pesca oferecem condições de aferição em águas piscosas na busca de boas pescarias. O conhecimento humano é, na origem e nos desenvolvimentos, inseparável da ação; como todo conhecimento cerebral, elabora e utiliza estratégias para resolver os problemas postos pela incerteza e pela falta de completude do saber (MORIN, 1999, p. 248). Nessa perspectiva, identificamos conhecimentos que proporcionam a navegação noturna, seja ela destinada a pescarias como também para viagens de outra natureza. A observação dos astros serve de referencial de orientação. Segundo Furtado (1993), durante a navegação noturna os astros têm um lugar especial no esquema de orientação. Nesse caso, as estrelas têm importância maior que a lua pelo fato de serem mais presentes no cotidiano, dada à periodicidade e fases da lua em suas aparições. De um ponto qualquer em que o pescador esteja mirando uma estrela ou uma constelação conhecida, ele associa a posição de seu destino. Então, ele poderá viajar no sentido norte e sul, leste ou oeste da estrela e chegará ao lugar desejado, considerando com referência sua própria posição em relação à estrela pela qual está se orientando. Em região distinta, Oliveira Júnior (2003) descreve a prática de orientação espacial aplicada por pescadores do estado do Ceará: Mirando o céu e o brilho das estrelas, os pescadores traçam o caminho da terra. O olhar atento persegue o Cruzeiro do Sul, enquanto o movimento dos ventos é cuidadosamente observado durante todo o percurso. Controlando o leme e tentando manter a vela sempre na mesma posição, percebem quando as forças eólicas mudam de direção e impulsionam a embarcação para longe de sua rota (OLIVEIRA JÚNIOR, 2003, p. 91). As orientações pelos astros se ampliam para outros domínios além da navegação noturna. Nesta ótica, Barros (2004) descreve como as populações indígenas da tribo Tembé-Tenetehara na Amazônia observam o comportamento dos astros: As constelações, compostas por grupos de estrelas e/ou partes claras escuras da Via-Láctea, em geral, representam figuras da fauna que está relacionada a cada ciclo sazonal. Os fenômenos celestes passam, assim, a estarem associados às atividades cotidianas, sendo perpetuados por meio de transmissão oral, mitologia, incorporando-se às tradições dos TembéTenetehara. Assim, seria possível saber qual o melhor período de plantio ou de colheita, assim como para as festividades de iniciação dos jovens e cerimoniais religiosos (BARROS, 2004, p. 12). Ateliê Geográfico Goiânia-GO v. 5, n. 2 agos/2011 p. 88-105 Página 100 Os fenômenos físicos e outros comportamentos da natureza constituem-se na base de conhecimentos entre os índios Desâna no alto rio Negro, no Estado do Amazonas. Segundo Ribeiro (1991, p. 94), pelo modo de entender desses índios, as constelações determinam a intermitência de períodos de chuvas e estiagens. A derrubada e queima das roças, as piracemas, a periodicidade da subida de cardumes e as safras de certos frutos associam-se estritamente a essas mudanças climáticas. Nas idas e vindas em embarcações à vela, e, portanto propulsionada à força eólica, é indispensável aos pescadores um bom grau de familiaridade com esse fenômeno, o qual determinará inclusive a maior ou menor intensidade de trabalho pesqueiro ao longo do ciclo anual, pois: Os pescadores sabem precisar com relativa precisão a direção dos ventos. Consideram durante o ano mais propícios aos ventos “leste” e “nordeste”, chamados assim pelos pescadores ou também pelo termo largo (“o largo está soprando”). Em seguida, os ventos “sul” ou “suleste” também chamado “o terral”. Os mais “desconfortáveis” e por eles temidos são os ventos “noroeste”, “norte” e “sudoeste” (MENDES-CHAVES, 1975, p. 18) A observação cuidadosa dos astros, dos fenômenos físicos e do comportamento dos peixes faz parte de uma maneira de se relacionar com a natureza que é própria de determinadas populações. Dessa maneira, a destreza com a natureza permite ao pescador identificar os cardumes, assim exemplifica Furtado: O ronco do peixe é outro fato curioso que só quem vive num cotidiano íntimo pode reconhecer o ruído, entre outros que se podem ouvir, quando se está num lago, rio ou igarapé. Certos peixes fazem ruídos característicos quando vêm à superfície, para buscar oxigênio ou para pegar alimentos (frutos, insetos, folhas). O som característico que produzem nessa hora alerta o pescador para a existência de grande ou pequena quantidade de peixe e/ou dos que o acompanham. (FURTADO, 1993, p . 211). De modo semelhante aos pescadores da Amazônia, também os da Lagoa do Piató, no Rio Grande do Norte, identificam os peixes quando se encontram em cardume. Segundo o pescador José Lucas: ... a sardinha tem um cheiro de melancia verde. Quando você corta uma melancia verde, ela tem aquele cheirinho. Quando você põe os olhos dentro d’água e sente aquele cheiro de melancia verde, já sabe que ali tem sardinha. Ateliê Geográfico Goiânia-GO v. 5, n. 2 agos/2011 p. 88-105 Página 101 Além da audição apurada para identificar sons provenientes de peixes, os pescadores da Lagoa do Piató se valem de outro sentido, desta vez, o olfato. Somente a experiência adquirida ao longo da vida possibilita aos pescadores uma intervenção dessa natureza. A busca de respostas aos problemas propostos pelas circunstâncias do dia-adia envolve estratégias que são construídas em consonância com a cultura dessas populações. Para a filósofa e matemática portuguesa Teresa Vergani: A cultura é a expressão temporal sobre o mundo. O homem não capacidades cognitivas, mas sensibilidade, do seu sentido (VERGANI, 1995, p. 24) de um ponto de vista singular e irredutível vive só do seu pensamento ou das suas também do desenvolvimento da sua crítico, das suas faculdades criativas Tais considerações de Vergani contribuem para melhor compreendermos a pesca como uma atividade altamente criativa que propicia um saber, um manejo do homem em relação à natureza, permeado por suas práticas cotidianas. Considerações finais A pesca é um eterno aprendizado. O mundo que rodeia os pescadores é composto de elementos de ordens diversas. Os saberes da tradição, que são acúmulos de experiências vividas condensadas com outras tantas que se apresentam no cotidiano dessas populações, representam maneiras de se relacionar e de interpretar a natureza, num processo educativo calcado pela observação e pelos ensinamentos de gerações mais experientes. Assim, os jovens pescadores recém ingressados na atividade têm um amplo caminho a desbravar, seja no campo produtivo da pesca quanto na sua própria vida cotidiana. Trata-se de uma educação não formal que Maria da Glória Gohn (1999) aborda enquanto uma... ...forma de ensino/aprendizagem adquirida ao longo da vida dos cidadãos; pela leitura, interpretação e assimilação dos fatos, eventos e acontecimentos que os indivíduos fazem, de forma isolada ou em contato com grupos e organizações. (GOHN,1999, p. 98) Todos os modelos de pensar e produzir conhecimento podem e devem ser utilizados pela educação formal, escolar. A abordagem dos saberes da tradição em sala de aula, além de promover e valorizar conhecimentos das variadas culturas envolvidas Ateliê Geográfico Goiânia-GO v. 5, n. 2 agos/2011 p. 88-105 Página 102 no processo educativo, resgata a importância de saberes seculares, que muitas vezes são eles que dão suporte para o desenvolvimento do conhecimento científico. O compromisso com a educação deve ultrapassar as fronteiras políticas, sociais, culturais e econômicas, trata-se de uma questão do cotidiano e de nosso futuro que envolve relações mais amplas no contexto global da sociedade, pois: A educação encontra-se no âmago de todas as estratégias de construção do futuro. Trata-se de uma questão mundial, um dos desafios mais importantes do terceiro milênio. Um processo primordial de sobrevivência, adaptação e evolução da espécie humana que o homem deverá conduzir no respeito pelas diversidades e liberdades (ROSNAY, 1997, p, 354). Em sintonia com as assertivas de Rosnay, o papel social da educação é frisado por Morin que ressalta a importância para a vida, pois: O ensino tem de deixar de ser apenas uma função, uma especialização, uma profissão e voltar a se tornar uma tarefa política por excelência, uma missão de transmissão de estratégias para a vida. A transmissão necessita, evidentemente, da competência, mas, além disso, requer uma técnica e uma arte (MORIN et al, 2003). Este autor refere-se ao compromisso de cada um de nós na era planetária. O processo educativo escolar deve ultrapassar a mera mecanicidade de repasse de conhecimentos. A técnica e arte a que se refere Morin, podem muito bem ser expressas pelos conhecimentos locais, aplicados no âmbito escolar, num universo de saberes que podem proporcionar melhor compreensão e consequentemente maior compromisso com o mundo que nos rodeia. Assumir e adotar os saberes da tradição como estratégia de conhecimento em sala de aula, introduz outros elementos que podem contribuir no processo de ensino aprendizagem, assim como pode ampliar o conceito de educação. Referências bibliográficas ALMEIDA, Maria da Conceição de. Complexidade e cosmologias da tradição. Belém: EDUEPA, 2001. 156p. _______________. Previsões do tempo: ecossistema e tradição. In: Galante: Fundação Hélio Galvão. Natal, n. 14, vol. 2, ago/2002. BARROS, Osvaldo dos Santos. Astronomia indígena dos Tembé-Tenetehara. Editor Geral, Bernadete Barbosa Morey. Natal-RN, 2004 (Coleção Introdução à Etnomatemática; v.6) Ateliê Geográfico Goiânia-GO v. 5, n. 2 agos/2011 p. 88-105 Página 103 FURTADO, Lourdes G. Pescadores do rio Amazonas: um estudo antropológico da pesca ribeirinha numa área amazônica. Belém: Museu Paraense Emilio Goeldi, 1993. 486p. GOHN, Maria da Glória. Educação não formal e cultura política: impactos sobre o associativismo no terceiro setor. 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