PEDAGÓGICAS | PEDAGOGIES
NARRAR A DOR
Participação social e violência obstétrica
em um projeto de extensão no Ensino
Médio (Porto Seguro, Bahia)
NARRATING PAIN
Social participation and obstetric violence in a high school
extension project (Porto Seguro, Bahia)
Ana Carneiro
Universidade Federal do Sul da Bahia
Programa de Pós-Graduação em Estado e Sociedade | Porto Seguro, Brasil
[email protected] | ORCID iD: 0000-0003-1756-9730
Caroline Castanho Duarte
Universidade Federal do Sul da Bahia
Programa de Pós-Graduação em Estado e Sociedade | Porto Seguro, Brasil
[email protected] | ORCID iD: 0000-0001-8348-3586
Milena Oliveira Silva
Universidade Federal do Sul da Bahia
Bacharelado Interdisciplinar em Humanidades | Porto Seguro, Brasil
[email protected] | ORCID iD: 0000-0002-9244-5036
Resumo
Como abordar a ‘violência obstétrica’ em uma
escola pública no mesmo momento em que o
Ministério da Saúde despacha sobre a inadequação
do termo? Exploraremos este problema de fundo a
partir da descrição de um projeto de extensão
realizado em uma escola estadual em Porto Seguro
(BA), envolvendo a Universidade Federal do Sul da
Bahia e o Coletivo Parto Seguro: pelo fim da
violência obstétrica. Por fim, as conversas entre a
antropóloga coordenadora do projeto, as ativistas
do Coletivo e jovens estudantes da rede de ensino
estadual levam-nos a apontar brevemente para um
possível caminho de abordagem da violência
obstétrica no debate público.
Palavras-chave
Violência Obstétrica; Participação social; Ensino
Médio; Narrativas; Porto Seguro-BA.
Abstract
How to speak about ‘obstetric violence’ in a public
school at the same time that the Ministry of Health
deffends the inadequacy of the term? We will
reflect about an extension project carried out at a
public school in Porto Seguro (BA), involving the
Federal University of Southern Bahia and the Parto
Seguro Collective: for the end of obstetric violence.
Finally,
the
conversations
between
the
anthropologist, the Collective activists, and young
students from high school lead us to briefly point
out an approach of obstetric violence in public
debate.
Keywords
Obstetric violence; Social participation;
School; Narratives; Porto Seguro-BA.
NOVOS DEBATES, 7(1): E7120, 2021
DOI: 10.48006/2358-0097-7120
High
2 | ANA CARNEIRO, CAROLINE C. DUARTE, MILENA O. SILVA
Introdução
E
ste ensaio reflete sobre um projeto de extensão que
realizamos entre 2019 e 2020, nos termos de uma
parceria entre a Universidade Federal do Sul da
Bahia (UFSB) e o Coletivo Parto Seguro: contra a violência obstétrica1.
O projeto intitulava-se “Coletivo Parto Seguro: cuidados e
mulheres em diálogos que disparam ações”, e nosso objetivo
geral era o de criar, a partir de conversas entre mulheres
pesquisadoras da UFSB e militantes do Coletivo, ações que
ampliassem os espaços de diálogo e participação social já
construídos por este último. Desde 2017, ano de sua criação, o
Coletivo Parto Seguro existe através das ações voluntárias de
suas integrantes em prol do parto humanizado e dos direitos
reprodutivos, buscando combater práticas de violência
obstétrica em Porto Seguro, extremo sul da Bahia, e demais
municípios da região. O grupo entende a violência obstétrica
como um problema de saúde pública, e , sobretudo nos espaços
de participação e controle social da sociedade civil, previstos na
estrutura do Sistema Único de Saúde (SUS), se realiza a maior
parte da atuação dessas mulheres. A luta do Coletivo é
entendida pelo próprio como uma luta por direitos humanos,
uma vez que a violência obstétrica infringe os direitos à
dignidade da pessoa humana, à vida, à igualdade, à saúde, ao
princípio da legalidade e à proteção à maternidade e à infância
(Silva e Serra 2017)2. Essa era a perspectiva que gostaríamos de
fazer repercutir através das atividades do projeto e, para tanto,
realizamos uma ação de extensão junto a estudantes do último
ano do Ensino Médio em uma escola pública estadual
localizada no município de Porto Seguro3. Por este caminho,
1
Uma versão inicial e reduzida deste texto foi apresentada no 44o
Encontro Anual da Anpocs, em dezembro de 2020, no GT 19 “Gênero
e sexualidade pelo interior do Brasil: fronteiras e cartografias”,
coordenado por Silvana Nascimento e Elisete Schwade, que também foi
debatedora de nosso trabalho. Agradecemos a ambas e a todos os e as
presentes que contribuíram de forma inspiradora na ocasião.
2
Neste contexto, é importante lembrar que existem duas leis que
garantem direitos importantes para a mulher no Brasil: a Lei Federal
11.108 de 2005, que garante o direito ao acompanhante de sua escolha
para o parto; e a Lei Federal 11.634 de 2007, que garante que a mulher
precisa conhecer e ser vinculada previamente ao lugar do parto, ou seja,
ao serviço de saúde de referência para o parto/nascimento. (Brasil 2005;
2007).
3
Para resguardar todas e todos as e os envolvidas/os na ação, e em
consonância com o Código de Ética da Associação Brasileira de
Antropologia (ABA), não identificaremos aqui o nome da escola e
NOVOS DEBATES, 7(1): E7120, 2021
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ao refletir sobre nosso esforço de comunicação diante de
adolescentes na escola, questionamos, em última análise, sobre
a dinâmica constitutiva de um sujeito coletivo reivindicador de
direitos, tendo como ponto de partida, ou ‘problema’, sua
heterogeneidade interna. Note-se que uma breve apresentação
do Coletivo Parto Seguro pode dar a impressão de se tratar de
um grupo coeso, com fronteiras bem delimitadas, mas se
lançássemos foco sobre suas ações no decorrer do tempo, seria
possível perceber a variação numérica e relacional de sua
conformação. Não é nosso intuito traçar esses movimentos em
uma duração determinada, mas sim descrever uma ação
pontual que se inscreve em uma configuração chave para
perceber a variação constante dessa formação coletiva. O caso
descrito aqui reflete um dos momentos contingentes nos quais o
grupo abrange um número amplificado de pessoas, engajando
não apenas as mulheres reconhecidas como integrantes do
Coletivo e que rotineiramente se empenham em suas demais
ações. Apresentaremos, portanto, uma espécie de retrato
instantâneo dessa forma coletiva dinâmica em sua constituição
como sujeito político, mas notamos que ela deve ser pensada
em sua singularidade e articulada ao próprio território escolar.
Ao problematizar os métodos de pesquisa mobilizados
por um projeto de extensão sobre formação em gênero e
sexualidade em escolas da Baixada Santista, São Paulo, Silva e
Borba (2020) nos lembram que o próprio contexto escolar é
feito de singularidades e produção de distintividade,
constituindo, neste sentido, um ‘território’. Ou seja:
“A escola, considerando os aprendizados de nossa
experiência, pode ser tomada enquanto território, ou seja, a
partir de uma perspectiva juvenil, que atribui sentidos e faz
ocupações do espaço escolar, rompendo com a rígida rotina,
burlando as regras disciplinares e colocando em xeque a
cultura escolar. No “chão da escola”, pudemos perceber
como os afetos, os interesses, os desejos e as práticas culturais
de jovens estudantes são também constitutivos do espaço
escolar, assim como as subjetividades dos sujeitos, que alteram
a dinâmica permanentemente” (Silva e Borba 2020: 2).
Como mostraremos, tais dinâmicas de subjetivação
foram por certo afetadas pela ação do projeto de extensão do
Coletivo Parto Seguro, promovendo efeitos dos quais não
teremos conhecimento, mas que em um dado momento foi
tampouco forneceremos quaisquer informações que possam expor o
público-alvo do projeto.
NOVOS DEBATES, 7(1): E7120, 2021
4 | ANA CARNEIRO, CAROLINE C. DUARTE, MILENA O. SILVA
agenciada por nossa ação, ampliando seu poder de repercussão.
A coautoria deste artigo também é exemplar de um momento
contingente dessas formas de ampliação coletivizante, à medida
que reúne, em uma mesma “voz”, a cofundadora do Coletivo,
Caroline Duarte e duas mulheres que não integram o grupo, a
coordenadora do projeto de extensão e docente do
PPGES/UFSB, Ana Carneiro, e a pesquisadora de Iniciação
Científica, graduanda no Bacharelado de Humanidades da
UFSB, Milena Oliveira Silva. Cada uma de nós, originária de
uma região diferente e com trajetórias pessoais distintas.
Alertamos, portanto, que, em alguns momentos deste texto,
uma de nós poderá ser referida na terceira pessoa do singular
ou do plural, destacando-se neste sentido o estranhamento
produtivo causado pela heterogeneidade interna à nossa
autoria coletiva. Assim, quando os depoimentos de uma de nós
estiverem marcados por aspas, trata-se de explicitar um
contexto de enunciação específico e exterior à escrita deste
artigo.
Coletivo Parto Seguro
O Coletivo Parto Seguro vem desempenhando
ativamente a função de controle social prevista pelo Sistema
Único de Saúde (SUS), criando canais de diálogo e parceria
com secretarias de saúde e da área social, sobretudo através de
sua participação no Fórum Regional Rede Cegonha de Porto
Seguro, que tem funcionado como um espaço de cogestão. As
mulheres do Coletivo tiveram papel importante desde a
formação desse fórum, em 2018, sob coordenação de Eduarda
Motta Santos, técnica da Secretaria de Saúde do Estado da
Bahia, responsável pelas ações de saúde da mulher na região de
Porto Seguro e então mestranda no Programa de PósGraduação em Estado e Sociedade (PPGES) da UFSB4. Foi ela
quem sugeriu a parceria entre duas das autoras ora
mencionadas, a professora de antropologia no PPGES e a
cofundadora do Coletivo Parto Seguro e doutoranda no mesmo
programa. Outras três mulheres participaram da ação tendo
duplo vínculo de estudantes da UFSB e membros do Coletivo,
de modo que nossa abordagem nasce de um imbricamento
4
Eduarda Motta Santos defendeu sua dissertação de mestrado no
PPGES/UFSB em maio de 2021, sob orientação do prof. Rafael Andrés
Patiño Orozco. O trabalho dialoga com e enriquece o que expusemos
neste artigo (cf. Santos 2021).
NOVOS DEBATES, 7(1): E7120, 2021
NARRAR A DOR | 5
entre a perspectiva antropológica e a prática militante que
desembocou em uma pesquisa de doutorado interdisciplinar na
área de humanidades. Sustentamo-nos em um ponto de
interface entre a primeira e outras áreas de conhecimento e
atuação dentro e fora da universidade (mas, afinal, não seria
este mesmo o exercício da antropologia?). Assim, vale lembrar
que a militância por direitos reprodutivos e as práticas de
atuação na saúde pública interferiram nos nossos métodos de
interação com a sociedade investigada assim como nos
objetivos de nossa investigação. O grupo que elaborou e
participou diretamente da ação na escola foi formado por 14
mulheres, incluindo membras do Coletivo, pesquisadoras da
UFSB e a professora da escola responsável pela atividade.
Assim, reunimos mulheres de diferentes origens geográficas e
sociais, sendo a maioria baiana (sete mulheres) e outra boa
parte oriunda da classe-média urbana do sudeste e sul do país
(cinco mulheres) que vieram morar em Porto Seguro por
motivos variados. Havia entre nós cinco enfermeiras e uma
obstetriz, as outras se distribuíam entre antropóloga, socióloga,
pedagoga, terapeuta, diarista ou educadora. Dentre estas,
algumas acumulavam ainda o ofício de doula. A maioria era de
mães, mas não todas.
Violência multifacetada: silêncio, conversa e escuta
Além das fronteiras do grupo problematizadas mais
acima, há ainda que se problematizar os limites entre a
violência obstétrica e as práticas institucionalizadas de
medicalização do corpo. Trata-se, afinal, de uma violência de
gênero que se atualiza sobretudo na forma de violência
institucional. Em 2010, um levantamento nacional mostrou que
uma em cada quatro mulheres sofriam violência obstétrica
(Leal et al 2015). O Brasil tornou-se destaque mundial nas taxas
em cirurgias cesarianas que muitas vezes são realizadas sem
indicação técnica (Lansky 2014). O nascimento, que num
passado não tão distante, era então um evento muito feminino,
natural, doméstico e íntimo, tornou-se excessivamente
medicalizado (Sena 2016). Nem sempre são claros, para as
mulheres que sofrem a violência, os limites entre uma violação
do seu corpo e uma violação considerada ‘normal’ no contexto
da sempre invasiva prática médica. A própria forma de
execução da violência obstétrica é variável, podendo se
manifestar como violência física, verbal, psicológica, moral,
NOVOS DEBATES, 7(1): E7120, 2021
6 | ANA CARNEIRO, CAROLINE C. DUARTE, MILENA O. SILVA
sexual, negligência médica e daí por diante. Da mesma forma,
seus danos também são amplos e variados, podendo ser físicos,
psicológicos e/ou sexuais.
De acordo com a Organização Mundial da Saúde
(OMS), a violência se dá prioritariamente no parto, mas
também acontece durante a gestação e no momento que vem
depois do parto, o puerpério. É uma violência que se dá contra
a mulher, mas também contra o recém-nascido (OMS 2014).
Porém, no Brasil ressalta-se ainda uma controvérsia em torno
da definição técnica do termo. Quando as mulheres falam em
“violência obstétrica”, parte das entidades médicas entendem
que, necessariamente, trata-se de uma acusação contra o
médico obstetra. Em 2018, o Conselho Federal de Medicina
(CFM) emitiu parecer no qual classificou a expressão como
uma “agressão” contra a especialidade médica de ginecologia e
obstetrícia e que estaria causando conflitos entre pacientes e
médicos nos serviços de saúde (CFM 32/2018). Embora seja
um posicionamento quase restrito à categoria médica, torna-se
realmente importante no contexto desta temática pois,
dependendo de como cada instituição funciona, o poder do
médico no comando da equipe de atendimento pode ser total.
É um poder muito grande do ponto de vista da tomada de
decisão sobre o corpo da mulher (Sena 2016).
A palavra obstetrícia, entretanto, é entendida a partir de
sua origem no latim, refere-se à pessoa que está ao lado da
mulher que vai parir. Por essa abordagem, devemos incluir
entre os possíveis agressores a própria parteira, a enfermeira, as
obstetrizes, as doulas, a equipe de enfermagem, os vigilantes do
hospital, os funcionários da limpeza e, enfim, um conjunto de
profissões que não só da área da medicina (Faria 2015). Rita
Santana, uma integrante do Coletivo, afirma que “se a gente
for observar o parto, ele começa na cabeça. Nas Unidades
Básicas de Saúde da Família, existem falas ou gestos, atitudes
do profissional da saúde que ocasionam desfechos muito
negativos na hora do parto […]. Muitas vezes a violência
obstétrica começa na família”5, diz Rita, levando-nos a pensar
5
Além da ação de extensão em uma escola estadual em Porto Seguro, a
ser descrita neste artigo, outra ação semelhante chegou a ser planejada,
mas não executada, devido à pandemia da Covid-19. A primeira ação,
contudo, rendeu alguns desdobramentos frutíferos, como a inclusão do
Projeto Coletivo Parto Seguro no Programa Permanente de Extensão
em Direitos Humanos (PExDH) da UFSB. Esta inserção ocasionou a
participação da equipe em novos fóruns de discussão, nos quais o tema
da violência obstétrica foi abordado a partir da experiência de nossa
NOVOS DEBATES, 7(1): E7120, 2021
NARRAR A DOR | 7
em situações em geral classificadas como violência doméstica.
Perante a polêmica do termo, o Coletivo Parto Seguro reafirma
seu lema Pelo fim da violência obstétrica e entende que a obstetrícia
envolve um processo mais amplo e complexo, iniciando-se bem
antes do momento da expulsão do bebê e se estendendo ao
período do puerpério. Trata-se de defender a vida por meio dos
direitos reprodutivos da mulher, pois a forma como se cuida da
gestação, as escolhas do tipo de parto e os cuidados que a
mulher recebe nesse processo todo, incluindo o pós-parto, são
determinantes para mortalidade materno-infantil (Barbosa
2016)6. Por isso, a atenção das mulheres do Coletivo volta-se
para toda a linha de cuidado materno-infantil, que diz respeito a
como a mulher vem sendo tratada no seu percurso de
atendimento no SUS. Isso leva o Coletivo a monitorar, por
exemplo, como está acontecendo o pré-natal nas unidades
básicas de saúde; como os hospitais estão atendendo a mulher
no parto e no puerpério; e como a mulher e a criança estão
tendo acesso aos atendimentos necessários a uma fase muito
específica, que vai do parto até os dois anos de vida do nascido.
Nesse contexto, o Coletivo lança foco sobre a violência
obstétrica que ocorre nas instituições de saúde, especialmente a
hospitalar7.
Pesquisa realizada por Barbosa (2016) identificou como
principais problemas nessa linha de cuidado: o
desconhecimento dos direitos por parte das gestantes e a
deficiência das habilidades comunicacionais que os profissionais
ação de extensão. As falas de Rita Santana e Carolina C. Duarte
transcritas neste ensaio foram extraídas de um contexto desses, o 1o
Ciclo de debates em direitos humanos da UFSB, coordenado por
Carolina Bessa, também coordenadora do Pexdh.
6
O Ministério da Saúde mostra que 92% das mortes maternas, durante
a gestação, parto ou na sequência, são mortes evitáveis. “A grande
maioria desses óbitos poderia ser evitada se as condições de saúde locais
fossem semelhantes às dos países desenvolvidos. Em alguns países com
situação econômica desfavorável, como Cuba e Costa Rica, as razões de
mortalidade materna são substancialmente inferiores, demonstrando que
a morte materna pode ser um indicador da decisão política de garantir a
saúde a esta parcela da população” (Brasil 2009: 7).
7
Um exemplo conhecido de prática que já foi condenada pela OMS
mas continua ocorrendo na hora do parto é a manobra de Kristeler,
pela qual o profissional empurra a barriga da gestante como se fosse um
tubo de pasta de dente para o neném sair. É uma noção completamente
equivocada sobre o corpo da mulher, sobre como funciona o corpo da
mulher, é uma manobra que foi ensinada nas faculdades de medicina.
Hoje em dia espera-se que não mais o seja, porém há ainda muitos
médicos e enfermeiras que aprenderam assim e continuam fazendo isso
porque acham que é isso que vai resolver.
NOVOS DEBATES, 7(1): E7120, 2021
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da saúde têm demonstrado. Iniciativas de mais de 30 anos,
reunindo movimentos de mulheres, formuladores de políticas
públicas e novas legislações partem da ideia de que quanto mais
informadas as mulheres estiverem sobre seus direitos, melhor
elas vão poder reivindicar e receber os devidos cuidados. Assim,
a militância do Coletivo engaja-se intensamente na difusão de
informação, objetivo que se defronta com o silêncio que marca
a postura daquelas que sofreram esse tipo de violência. No 1o
Ciclo de debates em direitos humanos da UFSB, Rita Santana
lembra que:
“A primeira vez que a gente foi falar de violência obstétrica no
hospital, a diretora trucou a gente, ela falou assim: cadê,
quantos casos você tem? A gente não tinha números, a gente
tinha casos e cada caso que a gente tinha era de fazer a gente
chorar, a gente achava um absurdo perguntar se tinha
números” (Santana 2020).
Existem vários canais de denúncia, mas todos são
trabalhosos, exigem acesso a Internet, conta de e-mail e um
acompanhamento ativo e paciente, sabendo-se que a queixa
não gerará muito efeito para além da produção estatística. Ou
melhor, poderá sim gerar certos efeitos, aqueles que reforçam a
violência contra as vítimas denunciantes. O medo, portanto, é
uma das principais causas da ausência de denúncia. As
mulheres demonstram ter medo de represálias, porque há casos
de pessoas que foram negligenciadas por reclamarem do
atendimento; punidas por que falaram “olha, eu não gostei
disso”. O Coletivo já acompanhou relatos, por exemplo, em
que o anestesista “apaga a mulher”, dando-lhe uma dose
excessiva de anestesia como forma de punição. Como Porto
Seguro e região possuem apenas um hospital de grande porte,
as represálias podem ir além da situação do parto, atingindo
qualquer tipo de serviço médico que aquela mulher e seus
familiares vierem a precisar.
Mas a dificuldade em falar sobre o próprio sofrimento
envolve nesses casos também uma dimensão subjetiva
importante. Como aponta Pulhez (2013), nesses casos “cria-se
um ressentimento, um trauma, uma vontade de falar. Mas a
vocalização dessas dores choca, pois ainda não se entende esses
atos como algo violento, que possa traumatizar, que possa
causar dor” (: 557). A dificuldade em falar sobre o próprio
sofrimento envolve nesses casos também uma dimensão
subjetiva importante. A violência obstétrica é uma experiência
da intimidade do corpo; há uma relação direta com a
NOVOS DEBATES, 7(1): E7120, 2021
NARRAR A DOR | 9
sexualidade, e neste sentido falar de violência obstétrica evoca,
para a mulher vitimada, um repertório de sentimentos similar
ao da violência sexual: o constrangimento, a culpa, a
responsabilização o trauma. “O bebê está bem, isto é o que
importa”, dizem algumas.
“O trauma nos faz não ter vontade de falar, cria-se um nó […]
Funciona como um bloqueio na vida da mulher porque ela
não quer falar sobre isso, porque quando ela começa a falar
abre-se uma ferida muito forte dentro da pessoa. Eu sofri
violência obstétrica e eu não falava sobre isso, eu não falava
por medo e por causa da dor, a dor ela arrebenta com a gente,
a gente não consegue falar porque se cria um nó, é uma coisa
que não dá pra descrever, é insuportável falar do que você
sofreu. Por causa dessa dor, cria esse bloqueio, então você
prefere não falar nunca mais disso e prefere não reviver”.
(Santana 2020)
Poucas pessoas se colocam para escutar essas mulheres,
como observou na mesma ocasião uma de nós (a cofundadora
do Coletivo):
“É muito difícil falar e não basta perguntar, você tem que
abordar a mulher várias vezes para ela topar relatar aquilo,
para ela ter a coragem de falar tudo que ela pensou. Em geral,
ela acha que aquilo que ela tem na cabeça dela é uma coisa
que ela está criando, é uma coisa que ela está aumentando,
tem sempre essa sensação complicada em torno dos
depoimentos das mulheres” (Duarte 2020).
O Coletivo tem percebido no cenário nacional que
muitas mulheres curam sua ferida enfrentando a violência
obstétrica para impedir que outras sofram o mesmo. Essa
percepção leva à valorização do acolhimento com uma escuta
qualificada, o que significa um investimento na relação de
interlocução, ou seja, em modos de despertar a conversa e lhe
dar as condições de desenlace.
“Toda roda que a gente abre com mulheres que já pariram e
pergunta inicialmente ‘quem já sofreu violência obstétrica?’,
talvez uma, duas, três levantem a mão. Depois que se começa
a ouvir o relato uma da outra, que uma vai se identificando
com a outra, vai compreendendo do quê que é mesmo que a
gente está falando, acessando aquela memória, aí os relatos
começam a vir. E são inúmeros e são desde coisas mais
simples, como uma fala verbal, até coisas muito agressivas”
(Duarte 2020).
Deste modo, a violência obstétrica é uma pauta
constante nas reuniões mensais do Fórum Regional da Rede
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Cegonha de Porto Seguro. Não apenas em decorrência do
ativismo das mulheres do Coletivo, mas também pela maneira
intensa com que o assunto costuma repercutir nos encontros
mensais do fórum. Além dessas conversas em espaços de debate
público e participação social, as mulheres do Coletivo
realizaram um vídeo muito impactante a partir de narrativas
anônimas, do qual ainda falaremos adiante. A exibição do
vídeo funciona como um dispositivo, algo bom para fazer-falar
(Duarte, Moncau e Azevedo 2019). De toda forma, como
veremos, nem sempre esse efeito acontece, há um equilíbrio
delicado na realização dessa conversa. Neste sentido, o papel de
Rita Santana (2020) parece indicar uma importante inflexão na
atuação do Coletivo:
“Como eu já sofri violência e sofro racismo diariamente, eu
sei que a dor é insuportável, então eu falo sobre isso e
exponho essa minha dor, só depois que eu exponho a minha
dor e falo que eu entendo essa pessoa e que comigo ela pode
se abrir porque eu vou saber o que ela está falando é que ela
consegue falar sobre isso. […]. Então é uma desconstrução
que a gente tem que fazer disso aí, precisa de informação e de
conversa” (Santana 2020).
Na escola
Ao elaborarmos uma ação voltada a estudantes do
último ano do Ensino Médio, a ideia de falar sobre o tema da
violência obstétrica no ambiente escolar trazia desafios
próprios. O “chão da escola” nos parecia mais vulnerável ao
contexto político nacional, que não era nada favorável à
discussão dessa pauta8. Além disso, não tínhamos experiência
na interlocução com adolescentes; outra geração, outras
linguagens e referências, outras formas de lidar com a
sexualidade, desconhecidas de nós. Dentre as preocupações
desta fase de planejamento, foram destacadas as discussões
sobre como lidaríamos com as estudantes grávidas e com os
adolescentes cuja memória de partos e nascimentos familiares
fosse complexa demais para resgatar, como em situações que
pudessem envolver morte materna, abandono parental ou
8
Em maio de 2019, dois meses antes de iniciarmos o projeto, o
Ministério da Saúde havia lançado um Despacho com seu
posicionamento oficial contra o termo “violência obstétrica”, classificado
pelo governo como sendo de “conotação inadequada”. Posicionamento
“descabido” (Katz 2020) que foi posteriormente revisto, devido à pressão
das instituições e dos movimentos sociais que se envolvem com esta
pauta.
NOVOS DEBATES, 7(1): E7120, 2021
NARRAR A DOR | 11
adoção, por exemplo. Mesmo sem clareza dos métodos a serem
aplicados a situações como essas, as preocupações, em si,
serviram para orientar o que fazer ou deixar de fazer em cada
etapa prática do projeto.
Sabe-se, por exemplo, que as adolescentes grávidas são
muito discriminadas no hospital. O julgamento em cima de
uma adolescente grávida dá-se durante a gestação, no parto e
depois do parto. A mulher adolescente que passa pelo processo
gravídico-puerperal sofre violência verbal de forma corriqueira,
sofre no jeito com que a unidade de atendimento a recebe com
o olhar. Se no parto elas gritam de dor, refuta-se: “na hora de
fazer você não reclamou…”. Chistes como este são conhecidos
e recorrentes.
Como construir uma conscientização do que é essa
violência? Como narrar a dor a jovens adolescentes de modo a
torná-la objeto de suas atenções? Essas foram questões
colocadas em nossas reuniões de elaboração da atividade, junto
com a professora de sociologia da escola que, no relatório do
projeto, teceu o seguinte comentário:
“Na disciplina de Sociologia, o debate sobre gênero,
sexualidades e identidades é abordado em uma perspectiva
que busca desconstruir esses conceitos (que de forma geral
são tratados como categorias naturais), levando as/os
estudantes a refletir e compreender que são conceitos social e
historicamente construídos. Conectados a estes temas, são
abordadas também as situações de desigualdade e violência de
gênero, os padrões de comportamento e o papel das
instituições e dos movimentos sociais nesses processos. […] A
ideia de colocar em contato as/os estudantes com o coletivo
de mulheres possibilitava uma aproximação com uma
experiência concreta de luta e mudança da realidade local,
tornando possível conhecer a atuação dessa experiencia
coletiva como parte do movimento de luta das mulheres pela
conquista de direitos. Discutir a violência obstétrica como
uma das formas de violência contra a mulher, articulando o
debate à violência de gênero, também foi uma motivação
central, pois permitia ultrapassar o plano teórico para abordar
o tema a partir de um caso concreto e palpável para muitos.
Além disso, a aproximação com o coletivo permitia relacionar
a lutas das mulheres com as politicas públicas e o Estado,
temas de relevância para a discussão proposta”.
Antes de nossa ida à escola, os estudantes foram
instruídos pela professora a pesquisar em casa, a partir de um
roteiro prévio de perguntas, sobre o parto que os gerou (ou seja,
NOVOS DEBATES, 7(1): E7120, 2021
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a experiência de sua mãe parturiente) e o parto que gerou sua
própria mãe (ou seja, o parto da avó), assim como o puerpério
de ambas. Chamamos essa atividade de Memorial do parto.
Para responder à questão Como foi o seu próprio parto?,
elaboramos um roteiro de cinco perguntas (cada uma
desmembrada em outras): como foi a gestação? Como foi o
parto/nascimento? Como se deu o cuidado com o umbigo do recém-nascido?
Como foi o puerpério ou resguardo nos primeiros 40 dias de vida pós-parto?
Como foi a amamentação? Foi entregue a cada estudante uma folha
impressa com essas perguntas para guiar a pesquisa em casa
por parte dos estudantes. Depois de respondidas as perguntas,
eles deveriam trazer oralmente seus relatos pessoais na semana
seguinte, quando ocorreria a visita do Coletivo. As e Os
estudantes não eram obrigados a fazer o memorial. Aqueles
que não quisessem, por qualquer motivo, estariam liberados da
atividade. De um total de 45 alunos, apenas dois não o fizeram.
As respostas eram bem sucintas. No entanto, muitas
informações não constantes na atividade escrita seriam
verbalizadas nas rodas de conversa com o Coletivo.
Ao chegarmos na escola, encontramos o grupo de
jovens reunidos em uma sala na qual apresentamos e
contextualizamos o projeto de extensão, indicando sua relação
com a pesquisa desenvolvida na Universidade Federal do Sul
da Bahia, e definindo a abordagem antropológica dessa
pesquisa como um exercício de perceber e dar sentido às
distintas formas de se viver e conceber as relações de gênero. A
cofundadora do Coletivo Parto Seguro apresentou alguns slides
com fotos e registros do histórico de atuação do Coletivo,
mostrando como as mulheres se uniram para realizar a
transformação que queriam ver nos serviços de saúde do
município e da região. Dentro das diretrizes de atuação do
Coletivo, disse ela, estava também a ação com a escola, visando
a formação dos adolescentes e jovens para ampliar o acesso às
informações e aos serviços que abrangem os direitos e a saúde
sexual e reprodutiva. Em seguida, exibimos o documentário
audiovisual ao qual já nos referimos, realizado pelo Coletivo
com depoimentos em off de três mulheres que sofreram e
testemunharam práticas de violência no principal hospital
público da região9. A seguir, alguns trechos dos testemunhos
gravados para o documentário:
9
Coletivo Parto Seguro 2018:3’28”
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“Eles faziam um toque em mim que doía na alma […] Aí elas
vêm, toda hora faz o toque, toda hora faz o toque, faz o toque
[…] Quando eu questionei, teve uma enfermeira que falou pra
mim: ‘é com dedinho você tá sentindo dor, mas na hora de
fazer você não sentiu…’ [...] ‘… teve uma enfermeira que virou
pra outra e falou assim ‘ah essa aí não vai aguentar o parto
não, olha a idade dela, corre o perigo de morrer a filha e a
mãe no parto’ […]. Minha bolsa estourou e quem me ajudou
foi um acompanhante de outra grávida. Eu tava sem ninguém,
literalmente sozinha com 17 anos, sem saber o que fazer.
Depois que o bebê saiu eu chorava de dor, minha barriga
estava toda roxa, porque em nenhum momento eles quiseram
me ouvir, foi um fato que marcou muito a minha vida.” (Parto
Coletivo 2018).
Após a exibição, abrimos a palavra ao público de
jovens, mas o documentário que costuma instigar manifestações
e testemunhos pessoais daquela vez teve sua exibição seguida
de silêncio. Então encaminhamos todos até o gramado no
quintal da escola, onde se desenrolou o restante da atividade.
Na área externa, dividimos os 45 estudantes em rodas menores,
cada qual monitorada por duas integrantes do projeto.
Ouvimos os estudantes relatarem o que haviam apurado no
Memorial realizado em casa e, após a rodada de depoimentos,
as monitoras buscaram conectar os relatos à discussão sobre
direitos reprodutivos, cuidados de saúde feminina, violência
institucional e de gênero. Nesta oportunidade, as mulheres do
Coletivo também relataram suas experiências pessoais e/ou
profissionais sobre parto e nascimento.
Os relatos de memória do parto foram variados. Em
uma das rodas formadas, o primeiro a falar iniciou seu
testemunho dizendo que sua mãe morreu no parto. Noutra
roda, poucos quiseram falar. Já em outra, os relatos traziam
cenas já identificadas na fala dos próprios estudantes como
violentas e evitáveis. De modo geral, o conjunto dos relatos
narrados de forma quase burocrática pelos estudantes
apresentou, entretanto, algumas menções à violência obstétrica
e à violência doméstica, muitas vezes narradas com
distanciamento e sem detalhes. Chamam-nos atenção alguns
pontos recorrentes nas narrativas: 1 – A avó deu à luz com
parteira e a mãe, no hospital. E, apesar do desejo expresso em
parir no hospital, havia entre as adolescentes presentes o
comentário compartilhado sobre o medo que tinham do
hospital regional. 2 – A gravidez da avó, como a da mãe, não
foi planejada. Como atestamos na conversa subsequente, este
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14 | ANA CARNEIRO, CAROLINE C. DUARTE, MILENA O. SILVA
era também o caso de três estudantes gestantes presentes na
atividade. 3 - A presença constante das avós e das mães e
eventualmente das madrinhas expunha uma rede de apoio
feminina e contrastava com as poucas menções aos avôs e aos
pais.
A partir dos relatos orais e das trocas em roda com as
monitoras, propusemos aos estudantes que escrevessem
palavras associadas ao recém-narrado. As que traziam
sentimentos positivos, a serem escritas em tiras de papel cor-derosa, e negativos, em tiras amarelas. Entre os sentimentos
identificados pelos adolescentes, as palavras positivas mais
citadas foram AMOR e FELICIDADE, enquanto as palavras
negativas mais citadas foram MEDO e DOR. Instigamos então
os estudantes a fazerem perguntas e considerações sobre esses
sentimentos, mas poucos se manifestaram. Por outro lado,
muitos participaram quando propusemos que escrevessem um
bilhete anônimo no qual poderiam expor, por escrito, dúvidas e
comentários que por ventura os deixassem envergonhados.
Essas “perguntas secretas” foram depositadas em uma
urna e, no encontro da semana seguinte, fizemos novas rodas e
as voluntárias do Coletivo buscaram respondê-las. Para essa 2a
ida à escola, dividimos as “perguntas secretas” em dois grandes
temas, o Tema 1, que intitulamos Saúde Sexual e Reprodutiva,
reunia as seguintes questões:
“Pão de batata engravida? É possível engravidar sendo
virgem? É possível fazer sexo menstruada? É normal atrasar (a
menstruação)? Como lidar com uma doença que não tem
cura que é transmitida sexualmente? Por que quando um
casal tem relação eles tomam a pílula do dia seguinte, pra que
serve isso? Aborto. Como é feito o tratamento para as
mulheres que tentam engravidar mas não conseguem?”
O Tema 2, que chamamos Gravidez, Parto e Puerpério,
respondia às indagações:
“O comportamento do parceiro, ao saber que vai virar pai, a
depender do qual, pode afetar a gestação da parceira? O parto
normal é seguro? No dia do meu parto eu posso escolher
fazer parto normal ou cesárea? Tem algum perigo ter o parto
em casa? Quais fatores podem fazer um parto ser considerado
de risco? Qual a causa que leva a mãe a ter eclâmpsia?
Quando a mulher não está conseguindo dar à luz é
obrigatório fazer cesárea? Essas violências influenciam a
mulher entrar em depressão pós-parto? Qual é a importância
de tomar o leite materno?”
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NARRAR A DOR | 15
Como observado em outros contextos (Garcia, Silva e
Novais 2020), os limites do que configura um ato sexual são
postos em questão da mesma forma em que se confundem os
limites entre a autonomia individual e a formação de casal (i.é.,
de família). “As preliminares configuram ato sexual?” “Até
onde se pode experimentar sem engravidar?” Durante essa
segunda ocasião de encontro entre estudantes do Ensino Médio
e mulheres do Coletivo Parto Seguro, o humor foi o tom
predominante, tanto nas perguntas quanto nos comentários
que surgiam paralelamente às explicações do coletivo. “Pão de
batata engravida?” O primeiro bilhete anônimo lido em voz
alta pela monitora da atividade provocou gargalhada geral e as
risadas mostravam que a conversa renderia, como realmente
ocorreu. Na avaliação que as/os estudantes fizeram e
entregaram à professora de sociologia, o comentário mais
generalizado foi a reclamação pelo pouco tempo destinado à
atividade. De fato, é preciso tempo para que uma conversa se
inicie e se desenrole. É preciso esquentar os ânimos, cozinhar os
silêncios e deixá-los remoer até se tornarem indagações bem
humoradas. Boas discussões sobre alimentos e substâncias
abortivas foram sendo tecidas entre comentários abafados e
gargalhadas escancaradas; boa parte das informações foram
trazidas pelas próprias estudantes. Entre risos e sussurros, as/os
adolescentes engataram uma conversa que nos deixava entrever
seus projetos de formação de casamento e família, associados às
experiências de sexualidade, e à preocupação com a saúde das
relações e dos corpos.
Os desdobramentos do projeto foram além dos muros
escolares. Nossa atividade acabou gerando um grupo de apoio
entre as três estudantes gestantes e duas integrantes do
Coletivo, sendo uma enfermeira obstétrica e uma doula, que
seguiu desse momento até o pós-parto. Ainda que este tipo de
ação tenha sido pensado durante o planejamento do projeto de
extensão, sua execução na prática se deu de maneira
espontânea, por iniciativa das envolvidas após o primeiro
contato na escola. Elas criaram um grupo no aplicativo de
conversas do celular e também realizaram encontros onde
puderam trocar experiências, informações e, sobretudo,
experimentar um cuidado em saúde imbuído deste vínculo
constituído. Essa ação, por si só, extrapolou os limites da
própria atividade, reafirmando o caráter de rede e de relações
solidárias que se estabelece entre as mulheres do Coletivo que
desenvolvem voluntariamente as ações no território.
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Considerações finais
O Coletivo Parto Seguro já propôs em diversas ocasiões
que fossem implementadas pesquisas no hospital e nas unidades
de saúde, nas quais se perguntasse às puérperas,
anonimamente: como foi seu parto? Como foi o seu
atendimento? Como você foi tratada? Se houvesse esse
interesse em transformar a assistência, reflete a cofundadora do
Coletivo, certamente as mulheres estariam falando mais.
Ao buscar expor aqui nossa forma de colocar as
mulheres para falar através do Memorial conduzido por seus
filhos, nossa experiência trouxe, entretanto, um outro
agenciamento de enunciação. As múltiplas vozes em diálogo
parecem ter engajado formulações sobre direitos, gênero e
sexualidade. Às vezes, formulações que julgaríamos
“meramente” cômicas mostram-se potencialmente ricas em
criar vínculo e gerar a continuidade dessas conversas para além
da atividade proposta, como bem nos relatou uma das
mulheres do Coletivo que vive e atua na comunidade onde se
encontra a escola envolvida no projeto.
O objetivo deste artigo, vale lembrar, confunde-se com
a própria ação do Coletivo: a de fazer repercutir processos de
conscientização da violência obstétrica como categorização
política, isto é, como sofrimento imposto a grupos sociais
atravessados por relações de opressão de gênero, raça e classe.
Curiosamente, o humor mostrou-se uma ferramenta a esta
proposta de debate público, como nos ensinaram as/os
adolescentes de Porto Seguro. Retomamos aqui diferentes
formas com que os temas da violência e do cuidado propostos
por nós foram conectados, pelos estudantes, a questões de
gênero e sexualidade, o que nos levou a uma dimensão
cotidiana e lábil dos efeitos da violência. Parece-nos possível
explorar por aí uma pista lançada pelo que Veena Das (1999:
32) chamou de “operação complexa que se torna evidente [...]
não necessariamente no momento da violência, mas nos anos
de trabalho paciente”, nos quais a experiência indizível da dor
consegue ser expressa (mas não representada) nos termos da
linguagem corrente do parentesco. A tristeza expressa no
registro audiovisual não apareceu de forma explicitada nas
narrativas orais, mas pudemos vislumbrar, nestas últimas, os
efeitos que acontecimentos violentos geraram nas configurações
familiares e nos desejos do presente projetados no futuro.
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O riso, e a contradição de sentidos que lhe é inerente
(Bergson 1959 [1900]), surgiu assim como uma espécie de
comentário sobre os movimentos pessoais entre o passado
narrado e as possibilidades de futuro. Entre as redes de apoio e
os casos de abandono dos relatos, as memórias familiares
construídas naquela ação deixaram-nos entrever algumas
expectativas de futuro expostas através das perguntas sobre a
doença e a saúde das relações sexuais e reprodutivas. Diferentes
modelos de família parecem informar os sentidos das
expectativas e experiências de sexualidade e afetividade. O
deslocamento entre a família onde nasceram e a família que
construirão para si leva-nos a ver uma posição “entremundos”,
nos termos de Patrícia Hill Collins (1990 [2019]: 294): uma
busca por autodefinição onde a individualidade se constrói em
continuidade à família e à comunidade. Esses deslocamentos
emergem então como chave de leitura sobre a maneira pela
qual tais adolescentes lidam com a memória da dor. Assim, a
ação transformadora das narrativas parece estar nas próprias
operações de deslocamento, mais do que na identificação de
subjetividades já dadas.
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Enviado: 30 de abril de 2021
Aceito: 9 de junho de 2021
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