Homenagem ao Professor José de Oliveira Ascensão
Ano LXIV
2023
Número 1 | TOMO 3
REVISTA DA FACULDADE DE DIREITO
DA UNIVERSIDADE DE LISBOA
Periodicidade Semestral
Vol. LXIV (2023) 1
LISBON LAW REVIEW
COMISSÃO CIENTÍFICA
Alfredo Calderale (Professor da Universidade de Foggia)
Christian Baldus (Professor da Universidade de Heidelberg)
Dinah Shelton (Professora da Universidade de Georgetown)
Ingo Wolfgang Sarlet (Professor da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul)
Jean-Louis Halpérin (Professor da Escola Normal Superior de Paris)
José Luis Díez Ripollés (Professor da Universidade de Málaga)
José Luís García-Pita y Lastres (Professor da Universidade da Corunha)
Judith Martins-Costa (Ex-Professora da Universidade Federal do Rio Grande do Sul)
Ken Pennington (Professor da Universidade Católica da América)
Marc Bungenberg (Professor da Universidade do Sarre)
Marco Antonio Marques da Silva (Professor da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo)
Miodrag Jovanovic (Professor da Universidade de Belgrado)
Pedro Ortego Gil (Professor da Universidade de Santiago de Compostela)
Pierluigi Chiassoni (Professor da Universidade de Génova)
DIRETOR
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COMISSÃO DE REDAÇÃO
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Catarina Monteiro Pires
Rui Tavares Lanceiro
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SECRETÁRIO DE REDAÇÃO
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PROPRIEDADE E SECRETARIADO
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Alameda da Universidade – 1649-014 Lisboa – Portugal
EDIÇÃO, EXECUÇÃO GRÁFICA E DISTRIBUIÇÃO
LISBON LAW EDITIONS
Alameda da Universidade – Cidade Universitária – 1649-014 Lisboa – Portugal
ISSN 0870-3116
Data: Julho, 2023
Depósito Legal n.º 75611/95
A proteção jurídica da memória do morto e a titularidade
do interesse tutelado
The legal protection of the deceased memory and the ownership
of the protected interest
Renata Oliveira Almeida Menezes*
Resumo: O presente artigo científico tem
como objetivo analisar a quem cabe a titularidade do interesse defendido pelo direito
da memória do morto. O tema é atual e relevante, dado ter suscitado múltiplas opiniões
divergentes na doutrina. Considerando que
a proteção da memória do morto é uma
situação jurídica, no presente trabalho é
analisada a tese do interesse do morto e a de
que os herdeiros têm legitimidade processual,
defendida pelo Professor Oliveira Ascensão,
efetuando-se uma comparação com os demais
posicionamentos sobre o tema.
Abstract: This scientific paper aims to analyse
who is entitled to the deceased memory
rights. This is a relevant current topic that
unleashed multiple divergent doctrinal perspectives. Considering that the deceased
memory is a legal status, this paper analysis
the hypothesis of the deceased rights and
the procedural legitimacy of its heirs, supported by Professor Oliveira Ascensão, comparing other points of view about the topic.
Keywords: Personality rights. Legal status.
Ownership of rights. Deceased memory
right.
Palavras-chave: Direitos da personalidade.
Situação jurídica. Titularidade de direitos.
Direito à memória do morto.
Sumário: 1. Introdução. 2. A morte como fato jurídico. 3. Contribuições do Professor José de
Oliveira Ascensão sobre as situações jurídicas decorrentes da morte. 4. Justificativas para a proteção
da memória do morto. 5. A tutela da memória do morto segundo Ascensão: a tese do interesse
do morto. 6. Outras teses acerca da proteção jurídica da memória do morto. 6.1 Tese do
interesse dos herdeiros/familiares (direitos próprios). 6.2 Tese do interesse do morto e dos herdeiros.
6.3 Tese do interesse direto morto e indireto dos herdeiros. 6.4 Tese da proteção objetiva de bens
jurídicos. 6.5 Tese do direito objetivo do morto e do direito subjetivo dos herdeiros. 7. Conclusões.
*
Professora Adjunta da Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Doutora em Direito Privado
pela Universidade Federal de Pernambuco. Doutora em Ciências Jurídicas e Sociais pela Universidade
Federal de Campina Grande e Universidad del Museo Social Argentino. E-mail:
[email protected].
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Renata Oliveira Almeida Menezes
1. Introdução
O fecundo aprofundamento acerca do que é o sentido da consciência para a
pessoa não se cega para o fato de que cada indivíduo corresponde a um homem e
o suporte corpóreo é a base necessária da existência humana. É o homem, histórica
e realisticamente, que é pessoa, mostrando-se injustificável fragmentar e seccionar
tais categorias, já que “homem” e “pessoa” são uma realidade só. A referência à
pessoa, em vez de homem, apenas varia conforme o ponto de vista, por aquela
acentuar a manifestação do espírito que habita cada homem1.
É sob a perspectiva de proteger a pessoa, em sua esfera espiritual e corporal,
em sua completude e individualidade, que o desenvolvimento da teoria dos direitos
da personalidade passa por grandes desafios hermenêuticos, com o intuito de
garantir a eficácia social dos seus preceitos em face das novas demandas da realidade
constantemente mutável.
As pessoas mudam, a sociedade muda, e motivam a atualização do Direito,
mas uma verdade permanece imutável: a inevitabilidade da morte. Quando se diz
que “não há absolutos no Direito, a vida também não o é”2, pode-se, em contraponto,
acrescentar quão absoluta é a morte.
A finitude da vida deve ser estudada não somente sob a perspectiva do ser que
morre, há que considerar que seus reflexos ultrapassam a individualidade; por mais
repercussões particulares que sejam causadas, a morte deve ser examinada também
como acontecimento social. Além disso, é necessário que se tome a morte em seu
caráter simbólico-cultural, e, principalmente, como um fato jurídico, especialmente
considerando as suas repercussões em sede de direitos da personalidade.
Ao mesmo tempo em que há a constante atualização do âmbito de abrangência
dos direitos da personalidade, desafiando a obediência ao mínimo dogmático que
funda essa classe de direitos, aplicações já amplamente sedimentadas – na doutrina,
jurisprudência e em âmbito legislativo – como a proteção da memória do morto,
são revisitadas, e o embate de posicionamentos conflitantes a despeito do tema
evidenciam a riqueza científica e a permanente atualidade da temática.
Envolve desde a diferenciação entre proteção do cadáver e tutela da memória
do falecido, até debates mais aprofundados, como o questionamento sobre qual
lapso temporal deve durar a proteção da memória pós morte, ou, se a tutela da
memória se confundiria com uma eficácia póstuma do direito à honra ou à
JOSÉ DE OLIVEIRA ASCENSÃO, Prefácio, In: DIOGO COSTA GONÇALVES, “Pessoa e direitos da personalidade:
fundamentação ontológica da tutela”, Coimbra, Almedina, 2008, p. 11.
2
JOSÉ DE OLIVEIRA ASCENSÃO, A terminalidade da vida, In: JUDITH MARTINS-COSTA / LETÍCIA
LUDWIG MÖLLER (Orgs.), “Bioética e responsabilidade”, Rio de Janeiro, Forense, 2009, p. 424.
1
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A proteção jurídica da memória do morto e a titularidade do interesse tutelado
intimidade, ou, ainda, o dilema acerca da titularidade do interesse que é defendido
pelo direito à proteção à memória post mortem. Este último é o problema científico
sobre o qual se ocupa o presente artigo.
A partir do marco teórico do Professor José de Oliveira Ascensão, que apresenta
rica produção acerca das consequências jurídicas da morte, será estudada a tese defensora
de que o interesse do morto é tutelado pelo direito à proteção da memória.
O posicionamento do autor será comparado com as principais outras teses
que tratam do assunto – especialmente dos autores Heinrich Hörster, António
Menezes de Cordeiro, Capelo de Sousa, Leite de Campos, Pedro Pais de Vasconcelos
e Dias Pereira – a fim de verificar se alguma delas responde adequadamente ao
questionamento proposto acerca da titularidade dos interesses envolvidos na tutela
do morto e sobre a legitimação processual dos herdeiros e familiares do falecido,
e avaliar a relevância da contribuição teórica de Ascensão para a temática.
2. A morte como fato jurídico
A relação jurídica é resultado de uma simbiose da lei que, em abstrato, a regula,
com um fato que em concreto o realiza3. Para que uma relação obrigacional passe
de mero arquétipo ou modelo e adentre a realidade efetiva, ou seja, deixe de ser
abstrata e se concretize, é indispensável a existência de um fato jurídico que sirva
de fonte4. Desse modo, fato jurídico é todo fato da vida que é juridicamente
relevante5. É aquele ao qual a lei atribui como consequência a criação, modificação
ou extinção da relação jurídica6.
O fato jurídico é fruto da incidência de uma regra jurídica, e o que é por ela
previsto, a saber, os fatos sobre os quais ela incide, são chamados de suporte-fático,
quais sejam todos os fatos ou circunstâncias aos quais a lei atribui consequências
jurídicas7. Tais consequências não encontram sua base na vontade dos indivíduos;
ocorrem, portanto, sendo queridas ou não. Podem originar ou extinguir obrigações
e direitos, assim como podem modificá-los ou transmiti-los8.
MARGARIDA PIMENTEL SARAIVA / ORLANDO GARCÍA-BLANCO COURRÈGE, Direito Civil: conclusão
do estudo da teoria geral da relação jurídica, Lisboa, Faculdade de Direito de Lisboa, 1938, p. 6.
4
MÁRIO JÚLIO DE ALMEIDA COSTA, Noções fundamentais de Direito Civil, Coimbra, Almedina,
2018, p. 32.
5
MANUEL A. DOMINGUES DE ANDRADE, Teoria geral da relação jurídica: facto jurídico, em especial
negócio jurídico, volume II, Coimbra, Coimbra Editora, 1960, p. 2.
6
MARGARIDA SARAIVA / ORLANDO COURRÈGE, Direito Civil, cit., p. 6.
7
PONTES DE MIRANDA, Tratado de Direito Privado: parte geral, Tomo I, São Paulo, Revista dos Tribunais,
1983, p. 3.
8
BORIS STARCK, Droit Civil: Introduction, Paris, Librairies Techniques, 1972, p. 1523.
3
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Renata Oliveira Almeida Menezes
O suporte fático faz referência, pois, a algo – fato evento ou conduta – que
poderá ocorrer no mundo e, por ter sido considerado relevante, figurou como
objeto da normatividade jurídica9. Desse modo, para que os fatos sejam jurídicos
é preciso que regras jurídicas – isto é, normas abstratas – sobre eles incidam, desçam
e encontrem os fatos, colorindo-os, fazendo-os jurídicos e determinando-lhes os
efeitos10. A alegoria de cores proposta por Pontes de Miranda serve para ressaltar
que quando há o encontro entre o mundo fático e as normas, se vislumbra, com
maior clareza, o propósito para o qual os princípios e regras foram criados.
É essencial a todo estudo sério do Direito considerar, em ordem, a elaboração
da regra jurídica (fato político), a regra jurídica (fato criador do mundo jurídico),
o suporte fático (abstrato) a que ela se refere, a incidência quando o suporte fático
(concreto) ocorre, o fato jurídico que daí resulta e, por fim, a eficácia do fato jurídico,
isto é, as relações jurídicas e mais efeitos dos fatos jurídicos11. As relações jurídicas
estão prefiguradas em abstrato na lei, e passam a existir como ideia, mas não pode
haver nenhuma relação jurídica concreta, efetiva e real sem a intervenção de um
fato jurídico, o qual é responsável por retirar a relação do limbo das possibilidades,
para surgir como realidade concreta e tornar-se de potencial para atual12.
Fala-se, então, que ocorre a concreção do suporte fático quando passam a ser
realidades os fatos descritos nos suportes fáticos hipotéticos, ou seja, quando são
materializados todos os elementos que caracterizam o suporte fático; a incidência é o
efeito que se configura quando a norma jurídica transforma em fato jurídico a parte do
suporte fático que foi tido como relevante para ingressar no mundo jurídico, ao passo
que o plano da eficácia representa a parte do mundo jurídico na qual os fatos jurídicos
produzem efeitos, dando origem às situações jurídicas e às relações jurídicas13.
Enquadrando a morte na teoria dos fatos jurídicos14, elaborada por Pontes de
Miranda15, é possível afirmar que:
i.
A morte é um fato jurídico entendido como todo acontecimento, natural
ou humano, que determina a ocorrência de efeitos constitutivos,
modificativos ou extintivos de direitos e obrigações;
MARCOS BERNARDES DE MELLO, Teoria do fato jurídico: Plano da existência, São Paulo, Saraiva,
2011, p. 73.
10
PONTES DE MIRANDA, Tratado de Direito Privado, cit., p. 4.
11
PONTES DE MIRANDA, Tratado de Direito Privado, cit., p. 6.
12
MANUEL A. DOMINGUES DE ANDRADE, Teoria geral da relação jurídica: sujeitos e objecto, volume
I, Coimbra, Coimbra Editora, 1960, p. 22.
13
MARCOS BERNARDES DE MELLO, Teoria do fato jurídico: Plano da existência, cit., pp. 108, 120 e 136.
14
Apesar de a teoria ter sido elaborada por Pontes de Miranda, a nomenclatura “teoria dos fatos
jurídicos” foi atribuída por Marcos Bernardes de Mello, grande estudioso das teorias “Ponteanas”.
15
PONTES DE MIRANDA, Tratado de Direito Privado, cit.
9
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A proteção jurídica da memória do morto e a titularidade do interesse tutelado
ii.
Na classificação dos fatos jurídicos, a morte é enquadrada como um fato
jurídico em sentido estrito, porque decorre de acontecimento natural,
determinante de efeitos na esfera jurídica;
iii. Na classificação dos fatos jurídicos estritos, a morte insere-se na modalidade
de fato jurídico ordinário, por ser fato de natureza de ocorrência comum,
cotidiana, não extraordinária;
iv. A morte gera situações jurídicas, ou seja, efeitos na ordem civil, manifestando-se nas relações jurídicas, podendo extingui-las ou modificá-las;
v.
São exemplos de situações jurídicas decorrentes do fato morte: extinção da
personalidade e de direitos personalíssimos; cessação das relações jurídicas
inabilitadas para sobreviverem à morte do titular; abertura da sucessão;
proteção à memória do morto, ao cadáver, transmissibilidade dos aspectos
patrimoniais do direito à imagem e dos direitos autorais do de cujus; extinção
de certos direitos patrimoniais, como o usufruto vitalício, entre outros.
Ademais, os fatos jurídicos podem ser constitutivos, modificativos ou causar
extinção das relações jurídicas. Os fatos jurídicos constitutivos são aqueles que dão
origem à novas relações jurídicas, que são condição indispensável para que surja
qualquer relação jurídica concreta. A morte extingue certas relações jurídicas, mas
também é marco constitutivo para que se formem ou modifiquem outras.
3. Contribuições do Professor José de Oliveira Ascensão sobre as situações
jurídicas decorrentes da morte
O Professor Ascensão afirma que “a morte tem necessariamente o efeito de extinguir
a personalidade e de fazer cessar a titularidade, ativa e passiva, de quaisquer situações
jurídicas. Naquelas em que pode haver continuidade, a morte provoca a abertura da
sucessão”16. Em crítica ao posicionamento de Diogo Leite de Campos, acerca do dano
morte, o autor afirma que, de vez em quando, são emitidas afirmações paradoxais em
sentido contrário, com base no artigo 71.º, número 1, do Código Civil português17.
Ao mesmo tempo que os direitos atribuídos ao homem em decorrência da
dignidade da pessoa humana representam um mínimo espaço para o desenvolvimento
da personalidade, representam, também, um máximo, devido a intensidade da
tutela que recebem18.
16
JOSÉ DE OLIVEIRA ASCENSÃO, Direito Civil: Teoria Geral, introdução, as pessoas, os bens, volume
1, São Paulo, Saraiva, 2010, p. 47.
17
JOSÉ DE OLIVEIRA ASCENSÃO, Direito Civil: Teoria Geral, introdução, as pessoas, os bens, cit., p. 47.
18
JOSÉ DE OLIVEIRA ASCENSÃO, Direito Civil: Teoria Geral, introdução, as pessoas, os bens, cit., p. 59.
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Renata Oliveira Almeida Menezes
“O fulcro de tudo está na concepção e aceitação da morte como componente
natural da condição humana; mas que, como tal, participa de toda a dignidade
dessa condição. Merece-nos, naturalmente, respeito”19. O fato de com a morte se
findar a personalidade, não determina a extinção de direitos e vinculações que lhe
eram atribuídas em vida; a regra é que tais direitos sejam transmitidos aos herdeiros,
mas há certas categorias de direitos que pela sua natureza ou por negócio jurídico,
se extinguem após a morte do titular20.
É verdade que as lições do Professor Oliveira Ascensão resultam em grande contribuição para a análise das consequências de a morte ser categorizada como fato
jurídico. Sob esse prisma, para além do estudo do posicionamento do autor acerca
da proteção da memória do morto – que será abordado, especificamente, a partir do
próximo capítulo – a título de exemplificação é válido ressaltar como as situações
jurídicas decorrentes da morte restam expressas em dois temas sobre os quais o Professor
se debruçou em especial: direito sucessório e transmissão de direitos autorais.
O direito das sucessões refere-se à morte de uma forma não dramática, já que
ela, numa perspectiva civilista, não é um final – independentemente de ter sido
feliz ou infeliz –, é um fato jurídico que pode gerar obrigação de indenizar, e que
pode ter a continuidade dos seus efeitos por meio do direito das sucessões21/22.
É essencial frisar que o esquema do direito das sucessões não é o único possível
para regular o destino dos bens deixados pelas pessoas falecidas, posto que seria
admissível, por exemplo, uma solução que atribuísse o patrimônio ao Estado.
A opção dos legisladores, brasileiro e português, pelo regime sucessório, torna
evidente a exaltação da propriedade privada e do estímulo à acumulação de riquezas,
uma vez que, quando o patrimônio particular não é consumido em vida, forma
o legado e a herança a serem destinados aos seus descendentes, fator que, de certa
forma, tende a estimular o giro capitalista – diferentemente do que se estima que
pudesse ocorrer caso a regra previsse a atribuição de patrimônio para o Estado,
após a morte do titular do patrimônio privado. Trata-se, pois, de uma preocupação
com a transcendência da vida, de cunho econômico-financeiro.
Nesse sentido, Oliveira Ascensão expressa que o reconhecimento do elo entre
a garantia do direito da propriedade e a sua transmissão, em vida ou por morte, fica
JOSÉ DE OLIVEIRA ASCENSÃO, A terminalidade da vida, cit., p. 445.
LUÍS A. CARVALHO FERNANDES, Teoria geral do direito civil, volume I, Lisboa, Universidade
Católica Editora, 2009, p. 209.
21
JORGE DUARTE PINHEIRO, O direito das sucessões, Lisboa, AAFDL, 2010, p. 22.
22
Vale salientar que o princípio “mors omnia solvit” é invocado para resolver questões relacionadas
a direitos personalíssimos.
19
20
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A proteção jurídica da memória do morto e a titularidade do interesse tutelado
evidente no artigo 62.º, n. 123, da Constituição portuguesa, comprovando que a
admissão da sucessão post mortem é consequência do reconhecimento de uma propriedade
privada. Decorre, também, da exegese de tal dispositivo a admissão da diversificação
de patrimônios, já que seria ilógico que o Estado absorvesse tudo de cada um, após
a morte, para, em seguida, efetuar a redistribuição, posto que tal atitude seria capaz
de gerar instabilidade nas relações patrimoniais24, e alargaria os trâmites burocráticos
sucessórios, que já não são poucos, nem no Brasil, nem em Portugal.
Ao passo que o legado é toda atribuição mortis causa a título particular, a
herança apresenta uma diferença fundamental no que tange à responsabilidade,
já que unicamente os herdeiros respondem pelas dívidas do de cujus, e pelas cargas
impostas no testamento25.
Dessa forma, a sucessão é caracterizada pelo ingresso de um sujeito na posição
dantes ocupada por outro, é a transmissão de situações jurídicas de um para outro.
Pode-se salientar, então, que há nitidez de fronteiras do Direito das sucessões, pois
mesmo sendo difícil fazer a determinação conceitual do que é sucessão por morte,
raros são os casos em que é preciso discutir se certa matéria está situada ou não
dentro dos muros desse ramo do Direito26. A sucessão tange as situações jurídicas
das quais era titular uma pessoa singular, de modo que são chamadas à titularidade
das relações de um falecido um ou mais indivíduos27: os herdeiros.
Na verdade, o que é realmente imprescindível é que, no caso concreto, seja
verificado quem são os herdeiros, pois são eles que, na forma da lei, constituem a
verdadeira estirpe, posto que é a partir da transferência do patrimônio para os
herdeiros, devidamente regulamentada em sede de Direito Civil, que intrinsecamente
ocorre também o deslocamento de traços da personalidade do de cujus, sem que
tal transição implique em transmissibilidade da personalidade propriamente dita.
Em síntese, conforme esclarece Ascensão, a admissão de sucessão por morte
é capaz de satisfazer às aspirações pessoais intensas, pois apoia o desejo de que
uma obra se prolongue depois da morte, de que ocorra uma persistência da personalidade. A possibilidade de marcar ou de dominar o destino dos seus bens
exerce um papel de forte estímulo da atividade individual, e raramente é tratada
Artigo 62.º, 1. A todos é garantido o direito à propriedade privada e à sua transmissão em vida
ou por morte, nos termos da Constituição.
24
JOSÉ DE OLIVEIRA ASCENSÃO, Direito Civil: Sucessões, Coimbra, Coimbra Editora, 1989, p. 25.
25
ALBERTO TRABUCCHI, Instituciones de Derecho Civil, Madrid, volume II, Madrid, Editorial Revista
de Derecho Privado, 1967, p. 416.
26
JOSÉ DE OLIVEIRA ASCENSÃO, Direito Civil: Sucessões, cit., pp. 18 e 36.
27
JORGE DUARTE PINHEIRO, O direito das sucessões, Lisboa, AAFDL, 2010, p. 20.
23
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Renata Oliveira Almeida Menezes
com descaso pelas pessoas que acumularam patrimônio, tangível ou intangível28,
ao longo da existência.
A preocupação com os fatos posteriores à morte, especialmente no tocante
aos herdeiros e os assuntos correlatos ao corpo do defunto, não é situação tão
esdrúxula quanto em uma primeira abordagem pode aparentar. Pode-se, na
verdade, asseverar que essa consternação, em certa medida, evidencia que uma
antecipação sobre os efeitos post mortem pode ser de grande valia para evitar lides
futuras entre herdeiros ou até entre estes e terceiros, e é justamente sob esse prisma
que resta evidente a contribuição precisa e técnica do Professor Oliveira Ascensão
para a disciplina.
Caso não houvesse disciplina sobre a sucessão, em regra seriam consideradas
extintas, automaticamente, todas as relações jurídicas após a morte do titular de
um direito ou obrigação, o que resultaria em grande incerteza jurídica sobre o
cumprimento do objeto das relações-jurídicas: devedores ficariam isentos de arcarem
com seus débitos, seria extinto, imediatamente, o domínio sobre as coisas suscetíveis
de apropriação, correr-se-ia o risco de deixar aqueles que hoje são tidos como
herdeiros ou legatários desabrigados e desassistidos financeiramente após a morte
dos detentores do poder familiar, dentre outras consequências.
Em relação aos direitos morais do autor, no Brasil, na Lei 9.610 de 1998,
dispõe no parágrafo segundo do artigo 24, que serão transmitidos aos sucessores
os direitos de reivindicar a autoria da obra; o de ter seu nome, pseudônimo ou
sinal convencional indicado ou anunciado, como sendo o do autor, na utilização
de sua obra; o de conservar a obra inédita; o de assegurar a integridade da obra,
opondo-se a quaisquer modificações ou à prática de atos que, de qualquer forma,
possam prejudicá-la ou atingi-lo, como autor, em sua reputação ou honra29.
JOSÉ DE OLIVEIRA ASCENSÃO, Direito Civil: Sucessões, cit., p. 25.
Artigo 24. São direitos morais do autor: I – o de reivindicar, a qualquer tempo, a autoria da
obra; II – o de ter seu nome, pseudônimo ou sinal convencional indicado ou anunciado, como
sendo o do autor, na utilização de sua obra; III – o de conservar a obra inédita; IV – o de assegurar
a integridade da obra, opondo-se a quaisquer modificações ou à prática de atos que, de qualquer
forma, possam prejudicá-la ou atingi-lo, como autor, em sua reputação ou honra; V – o de modificar
a obra, antes ou depois de utilizada; VI – o de retirar de circulação a obra ou de suspender qualquer
forma de utilização já autorizada, quando a circulação ou utilização implicarem afronta à sua
reputação e imagem; VII – o de ter acesso a exemplar único e raro da obra, quando se encontre
legitimamente em poder de outrem, para o fim de, por meio de processo fotográfico ou assemelhado,
ou audiovisual, preservar sua memória, de forma que cause o menor inconveniente possível a seu
detentor, que, em todo caso, será indenizado de qualquer dano ou prejuízo que lhe seja causado.
§ 1º Por morte do autor, transmitem-se a seus sucessores os direitos a que se referem os incisos I
a IV.
28
29
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A proteção jurídica da memória do morto e a titularidade do interesse tutelado
Constata-se que há imprecisão técnica no artigo em comento, já que os direitos
morais do autor são, na verdade, direitos da personalidade e, como tais, não são
passíveis de transmissão causa mortis, havendo apenas a legitimidade de representação
aos sucessores para promoverem a defesa dos direitos especificados nos incisos de
I ao IV do artigo 24. Entretanto, é louvável o fato de o dispositivo evidenciar uma
preocupação com as repercussões da obra após a morte do autor, para além dos
efeitos patrimoniais da criação intelectual. Em relação aos direitos patrimoniais
do autor, estes sim, são corretamente transmissíveis via sucessão, por força do artigo
4130, da Lei de Direitos Autorais.
No direito português, o Código do Direito do Autor e dos Direitos Conexos,
no artigo 57.º31, prevê que caberá aos sucessores o exercício dos direitos autorais
após a morte do autor, e mostra preocupação com a obra em si, para que seja
mantida sua autenticidade e “dignidade cultural” além do curso de vida do seu
criador.
Da análise sistemática dos artigos 9.º32 e 56.º33, pode-se atestar, conforme
Ascensão34, que existem mais direitos pessoais do autor que podem ser exercidos
pelos sucessores, apesar de a lei especificar apenas dois: o direito de reivindicar a
paternidade e o direito de assegurar a genuinidade e integridade da obra. Acresce,
ainda, que os direitos dos adquirentes por sucessão de publicar ou não a obra, é
Artigo 41. Os direitos patrimoniais do autor perduram por setenta anos contados de 1° de janeiro
do ano subsequente ao de seu falecimento, obedecida a ordem sucessória da lei civil.
31
Artigo 57.º, 1 – Por morte do autor, enquanto a obra não cair no domínio público, o exercício
destes direitos compete aos seus sucessores. (...) 3 – Falecido o autor, pode o Ministério da
Cultura avocar a si, e assegurá-la pelos meios adequados, a defesa das obras ainda não caídas no
domínio público que se encontrem ameaçadas na sua autenticidade ou dignidade cultural,
quando os titulares do direito de autor, notificados para o exercer, se tiverem abstido sem motivo
atendível.
32
Artigo 9.º, 1 – O direito de autor abrange direitos de carácter patrimonial e direitos de natureza
pessoal, denominados direitos morais. [...] 3 – Independentemente dos direitos patrimoniais, e
mesmo depois da transmissão ou extinção destes, o autor goza de direitos morais sobre a sua obra,
designadamente o direito de reivindicar a respectiva paternidade e assegurar a sua genuinidade e
integridade.
33
Artigo 56.º, 1 – Independentemente dos direitos de carácter patrimonial e ainda que os tenha
alienado ou onerado, o autor goza durante toda a vida do direito de reivindicar a paternidade da
obra e de assegurar a genuinidade e integridade desta, opondo-se à sua destruição, a toda e qualquer
mutilação, deformação ou outra modificação da mesma e, de um modo geral, a todo e qualquer acto
que a desvirtue e possa afectar a honra e reputação do autor. 2 – Este direito é inalienável, irrenunciável
e imprescritível, perpetuando-se, após a morte do autor, nos termos do artigo seguinte.
34
JOSÉ DE OLIVEIRA ASCENSÃO, Direito de Autor e Direitos Conexos, Coimbra, Coimbra Editora,
1992, p. 168.
30
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Renata Oliveira Almeida Menezes
patrimonial, e surge como condição para exploração dos direitos, não se tratando
de direito pessoal.
4. Justificativas para a proteção da memória do morto
Há uma relação íntima entre memória e identidade; à medida que se vai
experimentando a existência, o ser humano vai acumulando lembranças e versões
dessas memórias, que vão sendo guardadas em seus foros íntimos. Vão sendo
construídas as suas respectivas identidades, suas versões de si, em distinção dos
demais seres humanos – é o que a Psicologia e a Neurociência chamam de self
autobiográfico35, remetendo a uma ideia de autodefinição, de processamento de
vivências, experiências e memórias subjetivas do ser humano. Essa acepção de
memória que, apesar de ser concernente às pessoas vivas, tem vistas ao pretérito
delas, relaciona-se à autoestima da pessoa e à proteção da honra subjetiva, apresentada
pelo Direito Civil, em sede de direitos da personalidade.
Quando a memória diz respeito a um falecido, no caso, também é voltada ao
passado, mas difere-se da proteção que é endereçada à proteção da personalidade
dos vivos, posto que se destina aos reflexos de uma vida que se esvaiu e suas causas
na sociedade vivente correlacionam-se com a boa fama, assim como a honra objetiva
que foi construída antes da morte.
Apesar de ser praticamente uníssona, na doutrina civilística, a utilização da
designação “memória do morto” para nomear tal âmbito de proteção, deve-se
ponderar que é passível de críticas, até porque, no senso comum, pode vir a
ensejar absurdamente a ideia de inferir que o morto vai preservar lembranças
após a existência se esvair do seu corpo físico. Ademais, distante, ainda, de uma
comprovação científica, no âmbito da ficção, pode-se chegar à hipótese de que
é possível acessar os últimos registros de memória, possibilitando a recuperação,
António Damásio defende que o cérebro constrói a consciência gerando um processo do self, em
uma mente em estado de vigília, e explica que que o self é justamente o elemento distintivo, é a
autoconsciência, o enfoque da mente sobre o organismo material em que ela habita. O autor explica
que a construção da mente consciente é feita em três estágios: a) protosself – a descrição neural de
aspectos relativamente estáveis do organismo; self central – resultado da relação entre o organismo
(como ele é representado pelo protosself ) e qualquer parte do cérebro que represente um objeto a
ser conhecido; e o self autobiográfico – estágio da mente que permite que múltiplos objetos,
registrados previamente como experiência vivida ou futuro antevisto, interajam com o protosself
(instinto), é uma autobiografia que se tornou consciente, baseada no somatório das vivências,
recentes e remotas. ANTÓNIO DAMÁSIO, E o cérebro criou o homem, São Paulo, Companhia das
Letras, 2011, pp. 224-226, p. 259.
35
1922
A proteção jurídica da memória do morto e a titularidade do interesse tutelado
inclusive, da última imagem da retina do cadáver – conforme ilustrado no seriado
de televisão Fringe36.
Seguindo essa mesma linha de pensamento, Elias salienta que:
“Até o modo como é utilizada a expressão “os mortos” é curioso e revelador. Dá
a impressão de que as pessoas mortas em certo sentido ainda existem não só na
memória dos vivos, mas independentemente deles. Os mortos, porém, não existem.
Ou só existem na memória dos vivos, presentes e futuros. É especialmente para as
desconhecidas gerações futuras que aqueles que estão agora vivos se voltam com tudo
o que é significativo em suas realizações e criações. Mas nem sempre se dão conta
disso”37.
A morte marca a supressão da pessoa singular, do centro autônomo de imputação
de normas jurídicas38, porém o direito civil não percebe a morte de uma pessoa
apenas como o desaparecimento de um “dono-devedor”, ou seja, um suporte de
herança simples, o homem não é reduzido apenas a um devedor-proprietário, nem
em vida, nem após a sua morte39. Os reflexos jurídicos causados pelo evento morte,
em âmbito cível, ultrapassam o direito obrigacional. Remanesce uma preocupação
com os traços da sua personalidade que permanecem a influir no curso social,
mesmo após a morte, ou seja, que transcendem o lapso temporal da existência da
pessoa titular dos direitos da personalidade.
Uma grande evidência dessa afirmação é a da memória do falecido, que apesar
de qualquer ofensa já não poder atingir, por obviedade, o de cujus, são protegidos
os reflexos sociais da honra dele que, por meio de qualquer agressão, poderia vir
a lesionar, de forma reflexa, a dignidade dos seus herdeiros e de outras pessoas que
a ele eram socialmente ligadas.
Seriado da televisão norte-americana, lançado em 2008, criado por J. J. Abrams. No segundo
capítulo da primeira temporada, com o objetivo de descobrir o local onde uma pessoa se encontrava,
e com o objetivo de prevenir uma nova morte, o Walter, um dos protagonistas, utiliza de uma técnica
pouco convencional, que é de restaurar a última imagem que um morto enxergou em vida, pressupondo
que ela ficaria permanentemente gravada na retina do olho. THE SAME OLD STORY. (Temporada 1,
ep. 2). Fringe [Seriado]. Direção: Paul A. Edwards, Produção: Alex Kurtzman, Roberto Orci, J.J.
Abrams, Jeff Pinkner, Bryan Burk, Distribuidora: Warner. DVD (50 min), son., color.
37
NORBERT ELIAS, A solidão dos moribundos: seguido de “envelhecer e morrer”, Rio de Janeiro, Jorge
Zahar, 2001, p. 10.
38
ANTÓNIO MENEZES CORDEIRO, Tratado de Direito Civil: Pessoas, Vol. IV, Coimbra, Almedina,
2011, p. 513.
39
GÉNÉROSA BRAS MIRANDA, La protection posthume des droits de la personnalité, In: “Les Cahiers
de propriété intellectuelle”, volume 19, número 3, Éditions Yvon Blais, Montréal, 2007, p. 798.
36
RFDUL-LLR, LXIV (2023) 1, 1913-1934
1923
Renata Oliveira Almeida Menezes
Então, o direito civil, no fiel espelho da realidade social, permite a proteção da
memória do morto, apesar do desaparecimento da personalidade jurídica do falecido,
apoio que por muito tempo se considerou necessário para a concessão de uma proteção
legal40. Esse direito de conservar protegida a memória do morto não pode ser confundido
com eficácia póstuma, pós-eficácia ou transeficácia de direitos da personalidade41/42, por
ser reflexo na origem. Nesse sentido, “além da própria morte, como bem da personalidade
indenizável, a memória do falecido construída no decorrer de sua vida merece ser
preservada, recebendo os sucessores legitimidade para tutelar esta proteção”43.
Desse modo, caso haja ofensa contra pessoa viva, e no curso processual ocorra
o óbito da parte ativa, a continuidade do processo será efetuada por meio da
substituição processual, por parte dos herdeiros – nesses casos ocorre a tutela
comum de direitos. Já quando a violação é concretizada após a morte do titular
de direitos, incide a proteção à memória do falecido, e são os herdeiros que desde
o início da lide têm legitimidade para exercer o poder de ação.
5. A tutela da memória do morto segundo Ascensão: a tese do interesse
do morto
Com precisão, Professor Ascensão expressa que, embora certos direitos de
personalidade tenham como pressuposto que o sujeito esteja vivo, com a violação
só ocorrendo durante a vida do seu titular, há certos casos em que uma ofensa é
dirigida, aparentemente, a uma pessoa morta44.
Comparando com o uso de cartas-missivas de pessoas mortas, o autor alega
que um fato desonroso pode ser imputado tanto a um falecido, quanto a um vivo.
Salienta que negar a relevância jurídica do prolongamento do ato ofensivo seria
contrário ao respeito pelos mortos, que em uma análise ética, teria o respeito
destinado aos falecidos valor maior que o respeito pelos vivos45. O respeito em
GÉNÉROSA BRAS MIRANDA, La protection posthume des droits de la personnalité, cit., p. 819.
“Há alguns direitos da personalidade que são pós-eficazes, são as espécies que compõem o direito
à privacidade, quais sejam, direito à intimidade, à vida privada, ao sigilo e à imagem, acrescidos do
direito à integridade moral”. RENATA OLIVEIRA ALMEIDA MENEZES, Direito ao sigilo médico após a
morte do paciente, Curitiba, Editora Juruá, 2022, pp. 81-82.
42
“Os direitos da personalidade extinguem-se com a pessoa; pode haver a transeficácia deles, post
mortem”. PAULO LÔBO, Direito Civil: Parte geral, volume I, São Paulo, Saraiva, 2020, p. 21.
43
SILVIO ROMERO BELTRÃO, Direitos da personalidade, São Paulo, Atlas, 2014, pp. 14-15.
44
JOSÉ DE OLIVEIRA ASCENSÃO, Direito Civil: Teoria Geral, introdução, as pessoas, os bens, cit., p.
81.
45
JOSÉ DE OLIVEIRA ASCENSÃO, Direito Civil: Teoria Geral, introdução, as pessoas, os bens, cit., p.
81.
40
41
1924
A proteção jurídica da memória do morto e a titularidade do interesse tutelado
relação à pessoa que morre deve marcar todo o acompanhamento pessoal e
comunitário desse momento único46.
É justamente nesse sentido que o número 1, do artigo 71.º47, ao apresentar
o que ele chama de “fórmula imprudentemente ampla”, preconiza que os direitos
de personalidade gozam de igual proteção depois da morte do respectivo titular48.
Segue a análise para o número 2, do artigo 71.º, e aborda a questão das dificuldades
de enfrentamento da questão da outorga da legitimidade, questionando quem
seria o sujeito passivo na hipótese em questão: se seria o falecido, ou seriam os
herdeiros ou familiares, ou, se haveria uma outra possibilidade49.
Vale salientar que o Código Civil brasileiro também apresenta dispositivo para
abordar a matéria, e prevê que a legitimação para requerer reparação contra a ofensa
da memória falecida cabe ao cônjuge sobrevivente, ou qualquer parente em linha
reta, ou colateral até o quarto grau50.
Oliveira Ascensão preconiza que “o que está em causa não é carta-missiva do
familiar ou herdeiro. Nem se pergunta se a honra deste fica afetada pelo ato violador.
Como não releva que ao requerente seja historicamente indiferente a violação ou
desrespeito trazido ao falecido”. Dessa forma, não é requisito a demonstração de
que a personalidade do requerente foi atingida, mas, a comprovação de que houve,
de fato, lesão à memória do morto51.
Extrai, pois, do artigo 71.º, números 1 e 2, do Código Civil português, a conclusão
de que a personalidade do falecido é o valor tutelado, e de que os herdeiros ou
familiares não têm titularidade dos interesses em causa, mas, na verdade, uma mera
legitimação processual. Logo, para Ascensão52, o bem jurídico em questão passa a
ser a memória do falecido, passa-se, com a extinção da personalidade, ao regime
JOSÉ DE OLIVEIRA ASCENSÃO, A terminalidade da vida, cit, p. 445.
Artigo 71.º, 1. Os direitos de personalidade gozam igualmente de protecção depois da morte do
respectivo titular. 2. Tem legitimidade, neste caso, para requerer as providências previstas no n.º 2
do artigo anterior o cônjuge sobrevivo ou qualquer descendente, ascendente, irmão, sobrinho ou
herdeiro do falecido. 3. Se a ilicitude da ofensa resultar de falta de consentimento, só as pessoas
que o deveriam prestar têm legitimidade, conjunta ou separadamente, para requerer providências
a que o número anterior se refere.
48
JOSÉ DE OLIVEIRA ASCENSÃO, Direito Civil: Teoria Geral, introdução, as pessoas, os bens, cit., p. 81.
49
JOSÉ DE OLIVEIRA ASCENSÃO, Direito Civil: Teoria Geral, introdução, as pessoas, os bens, cit., p. 82.
50
Artigo 12. Pode-se exigir que cesse a ameaça, ou a lesão, a direito da personalidade, e reclamar
perdas e danos, sem prejuízo de outras sanções previstas em lei. Parágrafo único. Em se tratando
de morto, terá legitimação para requerer a medida prevista neste artigo o cônjuge sobrevivente, ou
qualquer parente em linha reta, ou colateral até o quarto grau.
51
JOSÉ DE OLIVEIRA ASCENSÃO, Direito Civil: Teoria Geral, introdução, as pessoas, os bens, cit., p.
82.
52
JOSÉ DE OLIVEIRA ASCENSÃO, Direito Civil: Teoria Geral, cit., pp. 90-91.
46
47
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Renata Oliveira Almeida Menezes
jurídico da proteção da memória do falecido, e já não se pode mais falar em direitos
de personalidade. Nesse sentido, a esse caso não se aplica globalmente a tutela dos
direitos da personalidade, pois é preciso tomar algumas providências restritas para
a proteção da memória do defunto, não se aplicando o regime de responsabilidade
civil previsto no artigo 70.º, 1, do Código Civil português53.
Os herdeiros não atuam em defesa de interesse próprio, defendem interesse do
defunto, de modo que a personalidade jurídica se prolonga para depois da morte, ela
é “empurrada” para além do falecimento54. Desta feita, pode-se ressaltar que a pessoa
sobrevive após a morte como centro de interesse, com base no princípio da continuidade
familiar, segundo o qual os herdeiros legalmente dão continuidade à pessoa do falecido55.
Protegem-se os instintos, impulsos e aspirações concretas do falecido, no que
tange à sua sobrevivência, continuação de si mesmo e sua ultrapassagem da morte,
ou até mesmo, a sua perpetuação abrange contributos objetivados para o desenvolvimento
da espécie humana e que autonomamente podem se mostrar como legados para
a posteridade56. Fala-se de uma noção de legado excepcionalmente de natureza
extrapatrimonial, subjetiva e que pode chegar a apresentar valor superior ao patrimonial,
tendendo até a ter valor inestimável, de tão caro.
Hörster alega ser duvidosa, em termos jurídico-políticos, a legitimidade do
cônjuge sobrevivo ou qualquer descendente, ascendente, irmão, sobrinho ou
herdeiro do falecido, para tomarem as providências adequadas em caso de ofensa
a pessoas já falecidas. Afirma que as ofensas post mortem estão atreladas às sanções
mais leves, com o fito de evitar que as pessoas legitimadas possam fazer um “negócio”
à custa da personalidade de um falecido, e dispõe que a lei podia ter previsto uma
indenização para uma instituição de solidariedade social no sentido de evitar a
situação privilegiada de quem procede as ofensas aos que já faleceram57.
Entretanto, o pensamento de que vai haver um intuito lucrativo e não reparatório
nas ações de responsabilidade civil que têm como objeto a proteção da memória
O autor faz referência ao Código Civil português, o qual dispõe: Artigo 70.º, (Tutela geral da
personalidade), 1. A lei protege os indivíduos contra qualquer ofensa ilícita ou ameaça de ofensa à
sua personalidade física ou moral.
54
DIOGO LEITE DE CAMPOS, Lições de Direitos da Personalidade, “Boletim da Faculdade de Direito
da Universidade de Coimbra”, volume. 67, Coimbra, 1991, pp. 163-164.
55
CHRISTIAN ATIAS, Les personnes. Les incapacités, Collection Droit Fondamental, Paris, Press
Universitaires de France, 1985, p. 33.
56
RABINDRANATH V. A. CAPELO DE SOUSA, O direito geral de personalidade, Coimbra, Coimbra
Editora, 1995, p. 193.
57
HEINRICH EWALD HÖRSTER, A parte geral do Código Civil Português: Teoria geral do direito civil,
cit., p. 161.
53
1926
A proteção jurídica da memória do morto e a titularidade do interesse tutelado
do morto, demonstra, na verdade, um preconceito sobre a sua finalidade e ignora
a proporção que pode chegar a ter o ato ilícito, assim como menospreza a capacidade
lesiva que tais condutas podem causar nos familiares vivos. Não é justificável de
pronto asseverar que tais casos estão sujeitos às sanções mais brandas, pois é
plenamente possível que um ato, comissivo ou omissivo, ocorrido após a morte
de alguém seja bem mais grave que um outro ocorrido em sua vida58.
A ideia de que o reconhecimento da legitimidade dos herdeiros para a proteção
contra a ofensa de pessoas falecidas teria fins mercantis se assemelha aos argumentos
que foram suscitados nos primórdios da teoria do dano moral, quando se negava
o seu reconhecimento alegando que iria gerar um enriquecimento indevido para
quem suscitasse ter sofrido um dano que não poderia enxergar ou, a priori, provar
ou quantificar59.
Luís Fernandes60 critica a atribuição de indenização para os casos de ofensas
após a morte; defende que a tutela a ser feita pelos herdeiros deve ser limitada às
providências cautelares, expressa que o fato de o interesse dos familiares ser decorrência
da dignidade moral do defunto retira o fundamento a uma indenização.
No entanto, o referente posicionamento não deve prosperar, pois resultaria
na redução do âmbito de abrangência da responsabilidade civil que, quando não
logra êxito na atividade preventiva, mostra-se punitiva e educativa, para evitar que
as transgressões se repitam, desestimulando condutas civilmente ilícitas. Conforme
verificado, o Código Civil brasileiro, no artigo 12, parágrafo único, prevê expressamente
a possibilidade de indenização. No Código Civil português, o artigo 70.º, n. 261,
interpretado sistematicamente em conjunto com o artigo 71.º, números 1 e 2, do
mesmo diploma, resulta em previsão semelhante.
Como visto, a partir dos pressupostos de que o valor protegido é a personalidade
do falecido, e de que legitimação conferida pelo artigo 71.º, item 2, é meramente
A exemplo da disputa sucessória, de intensa atenção midiática, pelo espólio do apresentador da
televisão brasileira, Gugu Liberato.
59
Após o Direito ter reconhecido que seria melhor tentar quantificar a subjetividade da integridade
moral, para não se deixar reparar uma violação que é de difícil comprovação – se comparada com
o dano material – mas de fácil percepção pela vítima, após todos os esforços teóricos e jurisprudenciais
para diferenciar o mero aborrecimento do dano moral depois das alterações ocorridas no Código
de Processo Civil brasileiro para evitar o que pejorativamente se chamou de “loteria do dano moral”
ou “indústria do dano moral. Na atualidade, tem-se praticamente pacificada a importância do
instituto para a preservação da dignidade.
60
LUÍS A. CARVALHO FERNANDES, Teoria geral do direito civil, cit., p. 211.
61
Artigo 70.º, 2. Independentemente da responsabilidade civil a que haja lugar, a pessoa ameaçada
ou ofendida pode requerer as providências adequadas às circunstâncias do caso, com o fim de evitar
a consumação da ameaça ou atenuar os efeitos da ofensa já cometida.
58
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1927
Renata Oliveira Almeida Menezes
processual62, não se pode confundir tais direitos com os interesses das pessoas a
quem a lei atribui capacidade para exercício, com base na relação que a pessoa teve
com o morto e seus valores63/64/65.
Rabindranath de Sousa66, ao interpretar o mesmo dispositivo em enfoque,
entende ser possível e eficaz, em relação à tutela da personalidade, a fixação de
indenização ou a compensação por perdas e danos, posto que se dirigirem ao dano
ocasionado no bem jurídico constituído pela personalidade física e moral do falecido,
enquadrável no artigo 483.º67 do Código Civil português, apesar da ausência de personalidade jurídica do defunto. Contra essa tese, André Dias Pereira68 argumenta
que implicaria defender a existência de direitos sem sujeito, o que causaria perplexidade,
pois o cadáver, contrariamente ao caso do nascituro, não virá a ser sujeito, e que seus
direitos vão se extinguindo pelo decurso do tempo e pelo apagamento da memória.
6. Outras teses acerca da proteção jurídica da memória do morto
A partir da análise da tese defendida por Oliveira Ascensão acerca da proteção
da memória do morto, verifica-se que a questão controversa colocada em pauta é se
a tutela feita pelos sucessores é efetuada em nome próprio ou em representação ao
falecido. Bigot69 alerta que há uma grande incerteza no direito positivo, já que há
JOSÉ DE OLIVEIRA ASCENSÃO, Direito Civil: Teoria Geral, volume I, Coimbra, Coimbra Editora,
1997, p. 90.
63
RABINDRANATH V. A. CAPELO DE SOUSA, O direito geral de personalidade, cit., p. 193.
64
Na perspectiva do direito brasileiro, Silvio Beltrão esclarece que a proteção da personalidade que
ocorre após a morte da pessoa concerne a interesses dessa própria pessoa, que se prolonga após a
morte, já que buscam seus aspectos pessoais enquanto tinha vida. A previsão do Código Civil
brasileiro atribui aos herdeiros legitimidade para requerer as providências necessárias para a proteção
do morto, considerando a sua personalidade em vida, já que há a intransmissibilidade dos direitos
da personalidade. SILVIO ROMERO BELTRÃO, Direitos da personalidade, cit., p. 14.
65
Nesse sentido, é possível afirmar que aqueles a quem o falecido deu vida, devolvem um pouco
em troca: eles cuidam de seus interesses post-mortem. GÉNÉROSA BRAS MIRANDA, La protection
posthume des droits de la personnalité, cit, p. 820.
66
RABINDRANATH V. A. CAPELO DE SOUSA, O direito geral de personalidade, cit., p. 196.
67
Artigo 483.º, 1. Aquele que, com dolo ou mera culpa, violar ilicitamente o direito de outrem ou
qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios fica obrigado a indemnizar o lesado
pelos danos resultantes da violação. 2. Só existe obrigação de indemnizar independentemente de
culpa nos casos especificados na lei.
68
ANDRÉ GONÇALO DIAS PEREIRA, Direitos do paciente e responsabilidade médica, Dissertação de
Doutoramento em Ciências Jurídico-civilísticas apresentada à Faculdade de Direito da Universidade
de Coimbra, Coimbra, 2012, pp. 274-275.
69
CHRISTOPHE BIGOT, La protection de l’image des personnes et les droits des héritiers, In: “Legicom”,
volume 10, número 4, Victoires Éditions, p. 35.
62
1928
A proteção jurídica da memória do morto e a titularidade do interesse tutelado
uma parte da doutrina que sustenta os direitos da personalidade, e, especialmente, o
direito à imagem, não sendo transmitidos aos herdeiros, por serem direitos pessoais
do falecido. Além disso, outra corrente doutrinária admite a transmissão da ação, para
que seja susceptível a obtenção de reparação por uma violação do direito à imagem.
Desta feita, em relação à titularidade do interesse que é defendido pelo direito
à proteção à memória do morto, além da tese do interesse do morto, preconizada
por Oliveira Ascensão, serão elencadas, em seguida, as demais principais correntes
doutrinárias de pensamento sobre o assunto.
6.1 Tese do interesse dos herdeiros/familiares (direitos próprios)
Na verdade, a reverência pelos mortos é exigida pelos vivos, dentre as razões
para tanto, pode-se citar: o medo da morte e dos mortos70. Ora, “se na ordem das
coisas humanas só os vivos têm direitos ou podem ser sujeitos deles, conclusão
lógica é que eles deixarão de os ter e de ser sujeitos de direitos, ou pessoas, desde
que abandonem a vida”71. Logo, ao se tornarem mortos, estarão impedidos de permanecerem como sujeitos de direitos. Seguindo essa acepção, pode-se salientar
que a proteção da memória do morto, na verdade, tem como objeto a tutela do
interesse dos vivos que interagiram com o falecido, quando este tinha vida, e que
são esses vivos que passam a ser titulares de direitos a partir do evento morte, em
decorrência dos vínculos sociais e/ou sanguíneos previamente estabelecidos.
Desta feita, seguindo essa corrente doutrinária, tem-se que na redação do artigo
72
71.º ocorreu uma infelicidade, embora se fundem na defesa da dignidade do falecido
as posições jurídicas ativas exercidas. Conforme o artigo 71.º, não correspondem ao
defunto, mas às pessoas referidas no número 2 do mesmo dispositivo. Com isso, caso
ocorra a responsabilidade civil e a correspondente indenização dos danos morais e patrimoniais, corresponderão aos danos sofridos por essas pessoas, e não pelo falecido73/74/75.
NORBERT ELIAS, A solidão dos moribundos, cit., p. 9.
LUÍS CABRAL DE MONCADA, Lições de Direito Civil, Coimbra: Almedina, 1995, p. 257.
72
Do Código Civil português.
73
JOÃO DE CASTRO MENDES, Direito Civil: Teoria geral, Lisboa, Faculdade de Direito de Lisboa,
1978, pp. 231-234.
74
Em acréscimo, “a tutela post mortem é, necessariamente, uma defesa de vivos. Não se trata de
evitar atribuir indenizações ao falecido: antes, iure proprio, aos familiares legitimados para agir”.
ANTÓNIO MENEZES CORDEIRO, Tratado de Direito Civil: Pessoas, cit., pp. 540.
75
Trata-se de proteção de interesses e direitos das pessoas vivas, indicadas no dispositivo. CARLOS
ALBERTO DA MOTA PINTO, Teoria geral do Direito Civil, Coimbra, Coimbra Editora, 2005, pp.
205-206.
70
71
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1929
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Apesar de reconhecer a manifesta impropriedade da redação do preceito em
análise, tal corrente sustenta que, ao analisar sistematicamente o artigo 71, n. 2,
com o artigo 68.º do Código Civil português (que expressa o fim da personalidade
com a morte), verifica-se que não há previsão de exceções para a extinção da
personalidade com a morte76. O grande argumento suscitado pelos doutrinadores
defensores de tal tese é o de que inexistem direitos sem sujeitos, pois quando a
pessoa natural é extinta com a morte, não é preciso falar em direitos remanescentes
após o fim da vida do seu antigo titular.
6.2 Tese do interesse do morto e dos herdeiros
Sobre a defesa da memória do morto, Diogo Leite de Campos77 expressa que,
quando é reclamada por filhos, ocorre tanto no interesse do morto quanto em
termos de poder funcional no interesse deles próprios, com o intuito de guardar
o bom nome e a reputação. Nesses casos, o interesse do filho deixa de estar consumido
juridicamente pelo interesse do pai enquanto vivo; podendo autonomizar-se
daquele. Pode-se constatar que esse posicionamento do autor, datado de 2016,
demonstra uma evolução da tese do interesse do morto, defendida em 199178, evidenciando ter havido uma ponderação mais aprofundada, no sentido de reconhecer
que é possível haver o desmembramento de interesses exclusivos dos herdeiros.
6.3 Tese do interesse direto morto e indireto dos herdeiros
A proteção dos direitos da personalidade depois da morte tem como primeiro
objetivo defender o falecido e, apenas de forma indireta, contempla também os interesses
dos familiares. A atuação dos familiares contra uma ofensa às pessoas falecidas configura
o exercício de um direito próprio, no interesse de outrem79. Constata-se que essa teoria
obedece à mesma lógica dos danos morais reflexos, indiretos ou em ricochete, reconhecidos
quando a ofensa a direitos da personalidade, apesar de ter sido originalmente dirigida
a uma pessoa, tem os efeitos sentidos, indiretamente, por outra.
LUÍS A. CARVALHO FERNANDES, Teoria geral do direito civil, cit., p. 211.
DIOGO LEITE DE CAMPOS, O estatuto jurídico da pessoa depois da morte, “Revista Jurídica Luso
Brasileira”, Ano 2, número 4, Lisboa, 2016, p. 484.
78
DIOGO LEITE DE CAMPOS, Lições de Direitos da Personalidade, cit.
79
HEINRICH EWALD HÖRSTER, A parte geral do Código Civil Português: Teoria geral do direito civil,
Coimbra, Almedina, 2003, p. 261.
76
77
1930
A proteção jurídica da memória do morto e a titularidade do interesse tutelado
6.4 Tese da proteção objetiva de bens jurídicos
Segundo essa teoria, a vida em sociedade pode ser regulada por duas formas:
por meio da atribuição de direitos subjetivos ou por via da proteção objetiva de
bens jurídicos, e é justamente em relação à essa segunda possibilidade que ocorre
a tutela dos interesses, valores e dimensões espirituais – bens jurídicos – que dizem
respeito ao cadáver e à memória dos defuntos. Sob esse prisma, com a cessação da
personalidade após a morte, restam algumas dimensões do respeito aos mortos e
à sua memória que permanecem protegidas pela ordem jurídica, que encontram
legitimidade processual nos familiares e em outras pessoas próximas do falecido,
para garantir esse respeito80.
Para sustentar tal tese, faz-se uma análise integrada do Direito que se vale dos
tipos penais que tocam o assunto para defender a ordem jurídica e tutelar o bem
jurídico supraindividual “respeito devido aos mortos” de forma intensa, já prevendo
o tipo legal do crime e sua pena. Desconsidera, então, a possibilidade de compreender
que há uma titularidade de direitos subjetivos após a morte; prefere, então, defender
a tutela objetiva destes interesses e valores socialmente relevantes e solidificados
normativamente. Defende que tal tutela não se encontra no domínio dos direitos
fundamentais ou dos direitos de personalidade, mas no âmbito de proteção de
bens jurídicos radicados na dignidade humana, no campo da objetividade e não
da subjetividade81.
É pelo direito objetivo que são protegidos tanto o cadáver quanto à memória
do morto, não se trata de extensão da personalidade ou de do direito geral de
personalidade. A proteção ocorre no domínio dos direitos fundamentais ou dos
direitos da personalidade, no âmbito da proteção de bens jurídicos radicados na
dignidade, mas no campo da objetividade e não da subjetividade82.
6.5 Tese do direito objetivo do morto e do direito subjetivo dos herdeiros
Há a proteção do respeito pelos mortos, como valor ético, e de modo subjetivo
ocorre a defesa da inviolabilidade moral dos seus familiares e herdeiros, sem implicar
ANDRÉ GONÇALO DIAS PEREIRA, Direitos do paciente e responsabilidade médica, Dissertação de
Doutoramento em Ciências Jurídico-civilísticas apresentada à Faculdade de Direito da Universidade
de Coimbra, Coimbra, 2012, pp. 276-279.
81
ANDRÉ GONÇALO DIAS PEREIRA, Direitos do paciente e responsabilidade médica, cit., pp. 276-279.
82
ANDRÉ GONÇALO DIAS PEREIRA, Da possibilidade de realização de autópsias ou outros exames post
mortem a requerimento de particulares – estudo jurídico, In. “Lex Medicinae: Revista Portuguesa de
Direito da Saúde”, Ano 8, número 15, Coimbra, Coimbra Editora, 2011, p. 69.
80
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1931
Renata Oliveira Almeida Menezes
reconhecer ou tutelar a personalidade dos mortos que não a têm, mas sim de
defender, em sede de direito subjetivo de personalidade, o direito que assiste aos
vivos de que sejam respeitados os seus mortos, de modo que a injúria ou difamação
de parentes constitui causa de sofrimento e de gravame83.
Tendo em vista que direito objetivo e direito subjetivo não são duas entidades
diversas em oposição, mas sim aspectos de um conceito único, que figura com
formulações diversas84, afirma-se que nos artigos 70.º e 81.º há uma simbiose do
direito objetivo e do direito subjetivo de personalidade. Assim, enquanto o direito
objetivo tutela o respeito pelos mortos, como valor ético com raízes na Moral, o
direito subjetivo de personalidade está na titularidade de pessoas vivas e tem no
seu conteúdo a tutela do respeito devido aos seus mortos, cônjuge, ascendentes,
descendentes, tios ou aqueles de quem se herdou85.
Retomando algumas bases legislativas, tem-se que o Código Civil brasileiro,
no capítulo concernente aos direitos da personalidade, no artigo 12, parágrafo
único86, expressa que a legitimação para requerer que cesse a ameaça, ou a lesão a
direito da personalidade, bem como reclamar perdas e danos, sem prejuízo de
outras sanções previstas em lei, cabe ao cônjuge sobrevivente, ou a qualquer parente
em linha reta, ou colateral até o quarto grau.
De acordo com o que se verificou, o Código Civil Português dedica artigo
próprio para tratar das ofensas às pessoas falecidas. O artigo 71.º destaca que
os direitos de personalidade gozam igualmente de proteção depois da morte do
respectivo titular, bem como nomeia como titulares da legitimidade para tomar
providências com o fim de evitar a consumação da ameaça ou atenuar os efeitos
da ofensa já cometida, o cônjuge sobrevivo ou qualquer descendente, ascendente,
irmão, sobrinho ou herdeiro do falecido. Ademais, expressa que se a ilicitude
da ofensa resultar de falta de consentimento, só as pessoas que o deveriam
prestar têm legitimidade, conjunta ou separadamente, para requerer providências
pertinentes.
PEDRO PAIS DE VASCONCELOS, Teoria Geral do Direito Civil, Coimbra, Almedina, 2015, p. 51.
R. BADENES GASSET, Conceptos fundamentales del derecho: las relaciones jurídicas patrimoniales,
Barcelona, Boixareu Editores, 1972, p. 18.
85
PEDRO PAIS DE VASCONCELOS, Teoria Geral do Direito Civil, cit, p. 51.
86
Artigo 12. Pode-se exigir que cesse a ameaça, ou a lesão, a direito da personalidade, e reclamar
perdas e danos, sem prejuízo de outras sanções previstas em lei.
Parágrafo único. Em se tratando de morto, terá legitimação para requerer a medida prevista neste
artigo o cônjuge sobrevivente, ou qualquer parente em linha reta, ou colateral até o quarto grau.
83
84
1932
A proteção jurídica da memória do morto e a titularidade do interesse tutelado
7. Conclusões
i.
É indubitável preconizar o reconhecimento da importância que os escritos
do Professor José de Oliveira Ascensão têm, na seara jurídica, em relação
aos reflexos da morte. A morte como fato jurídico desafia, há muito
tempo, o Direito, e quanto mais se caminha em direção à certeza, mais
as dúvidas, discordâncias, tornam-se visíveis.
ii. A morte é um fato jurídico, em sentido estrito, ordinário; ela gera
situações jurídicas, como a proteção da memória do morto.
iii. O Professor Oliveira Ascensão apresentou grande contribuição doutrinária
acerca do direito sucessório e da transmissão de direitos autorais, como
exemplos de situações jurídicas decorrentes do fato jurídico morte.
iv. A supressão da pessoa singular a partir da morte tem efeitos para além
do campo cível obrigacional, principalmente devido ao fato de reflexos da
personalidade continuarem a ser sentidos no âmbito social, transcendendo
o lapso da existência do titular de direitos da personalidade.
v.
Em que pese haver com a morte a extinção da personalidade civil, o
Direito Civil possibilita a proteção da memória do morto, como uma
tutela post mortem. Embora qualquer ofensa já não poder atingir, por
obviedade, o falecido, são protegidos os reflexos sociais.
vi. Há a proteção jurídica do respeito pelos mortos, como direito objetivo,
também como evidência da proteção de bens jurídicos radicados na dignidade. Apresenta-se de forma autônoma em relação aos direitos da personalidade, não se confundindo com o direito à honra;
vii. Há embasamento legal expresso para a tutela da memória do morto
tanto no Código Civil português, quanto no diploma brasileiro.
viii. Protege-se a memória de um falecido com o qual pelo menos uma pessoa
viva teve algum tipo de vínculo, especialmente de cunho familiar;
ix. A tutela objetiva desse bem jurídico resulta em um direito subjetivo autônomo, que exige para a concreção do suporte-fático a morte;
x.
Apesar da aparente complexidade argumentativa sobre a titularidade
dos interesses protegidos com a tutela da memória do morto, já se tem
pacificada na doutrina e na legislação a questão da legitimidade processual
dos herdeiros, tendo inclusive permeado o senso comum. Esse posicionamento é defendido também pelo Professor Oliveira Ascensão.
xi. Ainda assim, o grande questionamento restante é se a tutela feita pelos
sucessores, em relação à proteção da memória póstuma, é efetuada em
nome próprio ou em representação ao falecido.
RFDUL-LLR, LXIV (2023) 1, 1913-1934
1933
Renata Oliveira Almeida Menezes
xii.
xiii.
xiv.
xv.
xvi.
xvii.
xviii.
1934
Conforme foi verificado, o posicionamento de Ascensão é de grande
importância histórica para o desenvolvimento do tema, que defende a
tese de que o interesse tutelado pela proteção à memória do de cujus é
do próprio morto. A personalidade do falecido é o valor tutelado, passa-se,
com a extinção da personalidade, ao regime jurídico da proteção da
memória do falecido.
Em confronto ou complementariedade à tese apresentada pelo autor,
marco teórico principal do presente trabalho, foram analisadas as teses
do interesse dos herdeiros/familiares (direitos próprios); do interesse do
morto e dos herdeiros; interesse direto morto e indireto dos herdeiros;
da proteção objetiva de bens jurídicos; e tese do direito objetivo do
morto e do direito subjetivo dos herdeiros.
A teoria que mais se mostra plausível e atual para tratar a problemática,
é a que defende que, em regra, são titulares dos direitos referentes à
memória do falecido os seus herdeiros.
Cumpre salientar que a sua titularidade pode ser alargada para abranger
além destes, outras pessoas que tinham algum vínculo social com o de
cujus, e que por ainda nutrirem grande apreço por ele, ou por ainda
serem a eles vinculados socialmente, podem vir a sofrer danos psíquicos
e morais decorrentes de qualquer conduta que macule a memória do
falecido, a exemplo de um melhor amigo.
No que tange o direito de conservar protegida a memória do morto,
não há que se falar em eficácia póstuma, pós-eficácia ou transeficácia
de direitos da personalidade, por ser direito que na sua própria concepção
já é reflexo, ou seja, já foi criado para que protegesse os que indiretamente
podem, de fato, sofrer danos quando se atenta contra a memória de
uma pessoa já falecida.
Em caso de transgressão será dado lugar à responsabilidade civil,
com os propósitos que são inerentes ao instituto, e não com objetivos
mercantilistas.
É valido concordar com Oliveira Ascensão no sentido de entender que
há a sobrevivência da pessoa após a morte como centro de interesse,
porém não se conclui que essa sobrevivência se concretize por meio do
instituto que se destina a proteger a memória do morto, seria o caso se
analisar a possibilidade de alguns direitos da personalidade terem eficácia
após a morte.