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A proteção jurídica da memória do morto

2023, Revista da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa

A proteção jurídica da memória do morto e a titularidade do interesse tutelado The legal protection of the deceased memory and the ownership of the protected interest Renata Oliveira Almeida Menezes * Sumário: 1. introdução. 2. a morte como fato jurídico. 3. contribuições do Professor José de oliveira ascensão sobre as situações jurídicas decorrentes da morte. 4. Justificativas para a proteção da memória do morto. 5. a tutela da memória do morto segundo ascensão: a tese do interesse do morto. 6. outras teses acerca da proteção jurídica da memória do morto. 6.1 Tese do interesse dos herdeiros/familiares (direitos próprios). 6.2 Tese do interesse do morto e dos herdeiros. 6.3 Tese do interesse direto morto e indireto dos herdeiros. 6.4 Tese da proteção objetiva de bens jurídicos. 6.5 Tese do direito objetivo do morto e do direito subjetivo dos herdeiros. 7. conclusões. * Professora adjunta da universidade Federal do Rio Grande do norte. doutora em direito Privado pela universidade Federal de Pernambuco. doutora em ciências Jurídicas e sociais pela universidade Federal de campina Grande e universidad del Museo social argentino.

Homenagem ao Professor José de Oliveira Ascensão Ano LXIV 2023 Número 1 | TOMO 3 REVISTA DA FACULDADE DE DIREITO DA UNIVERSIDADE DE LISBOA Periodicidade Semestral Vol. LXIV (2023) 1 LISBON LAW REVIEW COMISSÃO CIENTÍFICA Alfredo Calderale (Professor da Universidade de Foggia) Christian Baldus (Professor da Universidade de Heidelberg) Dinah Shelton (Professora da Universidade de Georgetown) Ingo Wolfgang Sarlet (Professor da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul) Jean-Louis Halpérin (Professor da Escola Normal Superior de Paris) José Luis Díez Ripollés (Professor da Universidade de Málaga) José Luís García-Pita y Lastres (Professor da Universidade da Corunha) Judith Martins-Costa (Ex-Professora da Universidade Federal do Rio Grande do Sul) Ken Pennington (Professor da Universidade Católica da América) Marc Bungenberg (Professor da Universidade do Sarre) Marco Antonio Marques da Silva (Professor da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo) Miodrag Jovanovic (Professor da Universidade de Belgrado) Pedro Ortego Gil (Professor da Universidade de Santiago de Compostela) Pierluigi Chiassoni (Professor da Universidade de Génova) DIRETOR M. Januário da Costa Gomes COMISSÃO DE REDAÇÃO Paula Rosado Pereira Catarina Monteiro Pires Rui Tavares Lanceiro Francisco Rodrigues Rocha SECRETÁRIO DE REDAÇÃO Guilherme Grillo PROPRIEDADE E SECRETARIADO Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa Alameda da Universidade – 1649-014 Lisboa – Portugal EDIÇÃO, EXECUÇÃO GRÁFICA E DISTRIBUIÇÃO LISBON LAW EDITIONS Alameda da Universidade – Cidade Universitária – 1649-014 Lisboa – Portugal ISSN 0870-3116 Data: Julho, 2023 Depósito Legal n.º 75611/95 A proteção jurídica da memória do morto e a titularidade do interesse tutelado The legal protection of the deceased memory and the ownership of the protected interest Renata Oliveira Almeida Menezes* Resumo: O presente artigo científico tem como objetivo analisar a quem cabe a titularidade do interesse defendido pelo direito da memória do morto. O tema é atual e relevante, dado ter suscitado múltiplas opiniões divergentes na doutrina. Considerando que a proteção da memória do morto é uma situação jurídica, no presente trabalho é analisada a tese do interesse do morto e a de que os herdeiros têm legitimidade processual, defendida pelo Professor Oliveira Ascensão, efetuando-se uma comparação com os demais posicionamentos sobre o tema. Abstract: This scientific paper aims to analyse who is entitled to the deceased memory rights. This is a relevant current topic that unleashed multiple divergent doctrinal perspectives. Considering that the deceased memory is a legal status, this paper analysis the hypothesis of the deceased rights and the procedural legitimacy of its heirs, supported by Professor Oliveira Ascensão, comparing other points of view about the topic. Keywords: Personality rights. Legal status. Ownership of rights. Deceased memory right. Palavras-chave: Direitos da personalidade. Situação jurídica. Titularidade de direitos. Direito à memória do morto. Sumário: 1. Introdução. 2. A morte como fato jurídico. 3. Contribuições do Professor José de Oliveira Ascensão sobre as situações jurídicas decorrentes da morte. 4. Justificativas para a proteção da memória do morto. 5. A tutela da memória do morto segundo Ascensão: a tese do interesse do morto. 6. Outras teses acerca da proteção jurídica da memória do morto. 6.1 Tese do interesse dos herdeiros/familiares (direitos próprios). 6.2 Tese do interesse do morto e dos herdeiros. 6.3 Tese do interesse direto morto e indireto dos herdeiros. 6.4 Tese da proteção objetiva de bens jurídicos. 6.5 Tese do direito objetivo do morto e do direito subjetivo dos herdeiros. 7. Conclusões. * Professora Adjunta da Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Doutora em Direito Privado pela Universidade Federal de Pernambuco. Doutora em Ciências Jurídicas e Sociais pela Universidade Federal de Campina Grande e Universidad del Museo Social Argentino. E-mail: [email protected]. RFDUL-LLR, LXIV (2023) 1, 1913-1934 1913 Renata Oliveira Almeida Menezes 1. Introdução O fecundo aprofundamento acerca do que é o sentido da consciência para a pessoa não se cega para o fato de que cada indivíduo corresponde a um homem e o suporte corpóreo é a base necessária da existência humana. É o homem, histórica e realisticamente, que é pessoa, mostrando-se injustificável fragmentar e seccionar tais categorias, já que “homem” e “pessoa” são uma realidade só. A referência à pessoa, em vez de homem, apenas varia conforme o ponto de vista, por aquela acentuar a manifestação do espírito que habita cada homem1. É sob a perspectiva de proteger a pessoa, em sua esfera espiritual e corporal, em sua completude e individualidade, que o desenvolvimento da teoria dos direitos da personalidade passa por grandes desafios hermenêuticos, com o intuito de garantir a eficácia social dos seus preceitos em face das novas demandas da realidade constantemente mutável. As pessoas mudam, a sociedade muda, e motivam a atualização do Direito, mas uma verdade permanece imutável: a inevitabilidade da morte. Quando se diz que “não há absolutos no Direito, a vida também não o é”2, pode-se, em contraponto, acrescentar quão absoluta é a morte. A finitude da vida deve ser estudada não somente sob a perspectiva do ser que morre, há que considerar que seus reflexos ultrapassam a individualidade; por mais repercussões particulares que sejam causadas, a morte deve ser examinada também como acontecimento social. Além disso, é necessário que se tome a morte em seu caráter simbólico-cultural, e, principalmente, como um fato jurídico, especialmente considerando as suas repercussões em sede de direitos da personalidade. Ao mesmo tempo em que há a constante atualização do âmbito de abrangência dos direitos da personalidade, desafiando a obediência ao mínimo dogmático que funda essa classe de direitos, aplicações já amplamente sedimentadas – na doutrina, jurisprudência e em âmbito legislativo – como a proteção da memória do morto, são revisitadas, e o embate de posicionamentos conflitantes a despeito do tema evidenciam a riqueza científica e a permanente atualidade da temática. Envolve desde a diferenciação entre proteção do cadáver e tutela da memória do falecido, até debates mais aprofundados, como o questionamento sobre qual lapso temporal deve durar a proteção da memória pós morte, ou, se a tutela da memória se confundiria com uma eficácia póstuma do direito à honra ou à JOSÉ DE OLIVEIRA ASCENSÃO, Prefácio, In: DIOGO COSTA GONÇALVES, “Pessoa e direitos da personalidade: fundamentação ontológica da tutela”, Coimbra, Almedina, 2008, p. 11. 2 JOSÉ DE OLIVEIRA ASCENSÃO, A terminalidade da vida, In: JUDITH MARTINS-COSTA / LETÍCIA LUDWIG MÖLLER (Orgs.), “Bioética e responsabilidade”, Rio de Janeiro, Forense, 2009, p. 424. 1 1914 A proteção jurídica da memória do morto e a titularidade do interesse tutelado intimidade, ou, ainda, o dilema acerca da titularidade do interesse que é defendido pelo direito à proteção à memória post mortem. Este último é o problema científico sobre o qual se ocupa o presente artigo. A partir do marco teórico do Professor José de Oliveira Ascensão, que apresenta rica produção acerca das consequências jurídicas da morte, será estudada a tese defensora de que o interesse do morto é tutelado pelo direito à proteção da memória. O posicionamento do autor será comparado com as principais outras teses que tratam do assunto – especialmente dos autores Heinrich Hörster, António Menezes de Cordeiro, Capelo de Sousa, Leite de Campos, Pedro Pais de Vasconcelos e Dias Pereira – a fim de verificar se alguma delas responde adequadamente ao questionamento proposto acerca da titularidade dos interesses envolvidos na tutela do morto e sobre a legitimação processual dos herdeiros e familiares do falecido, e avaliar a relevância da contribuição teórica de Ascensão para a temática. 2. A morte como fato jurídico A relação jurídica é resultado de uma simbiose da lei que, em abstrato, a regula, com um fato que em concreto o realiza3. Para que uma relação obrigacional passe de mero arquétipo ou modelo e adentre a realidade efetiva, ou seja, deixe de ser abstrata e se concretize, é indispensável a existência de um fato jurídico que sirva de fonte4. Desse modo, fato jurídico é todo fato da vida que é juridicamente relevante5. É aquele ao qual a lei atribui como consequência a criação, modificação ou extinção da relação jurídica6. O fato jurídico é fruto da incidência de uma regra jurídica, e o que é por ela previsto, a saber, os fatos sobre os quais ela incide, são chamados de suporte-fático, quais sejam todos os fatos ou circunstâncias aos quais a lei atribui consequências jurídicas7. Tais consequências não encontram sua base na vontade dos indivíduos; ocorrem, portanto, sendo queridas ou não. Podem originar ou extinguir obrigações e direitos, assim como podem modificá-los ou transmiti-los8. MARGARIDA PIMENTEL SARAIVA / ORLANDO GARCÍA-BLANCO COURRÈGE, Direito Civil: conclusão do estudo da teoria geral da relação jurídica, Lisboa, Faculdade de Direito de Lisboa, 1938, p. 6. 4 MÁRIO JÚLIO DE ALMEIDA COSTA, Noções fundamentais de Direito Civil, Coimbra, Almedina, 2018, p. 32. 5 MANUEL A. DOMINGUES DE ANDRADE, Teoria geral da relação jurídica: facto jurídico, em especial negócio jurídico, volume II, Coimbra, Coimbra Editora, 1960, p. 2. 6 MARGARIDA SARAIVA / ORLANDO COURRÈGE, Direito Civil, cit., p. 6. 7 PONTES DE MIRANDA, Tratado de Direito Privado: parte geral, Tomo I, São Paulo, Revista dos Tribunais, 1983, p. 3. 8 BORIS STARCK, Droit Civil: Introduction, Paris, Librairies Techniques, 1972, p. 1523. 3 RFDUL-LLR, LXIV (2023) 1, 1913-1934 1915 Renata Oliveira Almeida Menezes O suporte fático faz referência, pois, a algo – fato evento ou conduta – que poderá ocorrer no mundo e, por ter sido considerado relevante, figurou como objeto da normatividade jurídica9. Desse modo, para que os fatos sejam jurídicos é preciso que regras jurídicas – isto é, normas abstratas – sobre eles incidam, desçam e encontrem os fatos, colorindo-os, fazendo-os jurídicos e determinando-lhes os efeitos10. A alegoria de cores proposta por Pontes de Miranda serve para ressaltar que quando há o encontro entre o mundo fático e as normas, se vislumbra, com maior clareza, o propósito para o qual os princípios e regras foram criados. É essencial a todo estudo sério do Direito considerar, em ordem, a elaboração da regra jurídica (fato político), a regra jurídica (fato criador do mundo jurídico), o suporte fático (abstrato) a que ela se refere, a incidência quando o suporte fático (concreto) ocorre, o fato jurídico que daí resulta e, por fim, a eficácia do fato jurídico, isto é, as relações jurídicas e mais efeitos dos fatos jurídicos11. As relações jurídicas estão prefiguradas em abstrato na lei, e passam a existir como ideia, mas não pode haver nenhuma relação jurídica concreta, efetiva e real sem a intervenção de um fato jurídico, o qual é responsável por retirar a relação do limbo das possibilidades, para surgir como realidade concreta e tornar-se de potencial para atual12. Fala-se, então, que ocorre a concreção do suporte fático quando passam a ser realidades os fatos descritos nos suportes fáticos hipotéticos, ou seja, quando são materializados todos os elementos que caracterizam o suporte fático; a incidência é o efeito que se configura quando a norma jurídica transforma em fato jurídico a parte do suporte fático que foi tido como relevante para ingressar no mundo jurídico, ao passo que o plano da eficácia representa a parte do mundo jurídico na qual os fatos jurídicos produzem efeitos, dando origem às situações jurídicas e às relações jurídicas13. Enquadrando a morte na teoria dos fatos jurídicos14, elaborada por Pontes de Miranda15, é possível afirmar que: i. A morte é um fato jurídico entendido como todo acontecimento, natural ou humano, que determina a ocorrência de efeitos constitutivos, modificativos ou extintivos de direitos e obrigações; MARCOS BERNARDES DE MELLO, Teoria do fato jurídico: Plano da existência, São Paulo, Saraiva, 2011, p. 73. 10 PONTES DE MIRANDA, Tratado de Direito Privado, cit., p. 4. 11 PONTES DE MIRANDA, Tratado de Direito Privado, cit., p. 6. 12 MANUEL A. DOMINGUES DE ANDRADE, Teoria geral da relação jurídica: sujeitos e objecto, volume I, Coimbra, Coimbra Editora, 1960, p. 22. 13 MARCOS BERNARDES DE MELLO, Teoria do fato jurídico: Plano da existência, cit., pp. 108, 120 e 136. 14 Apesar de a teoria ter sido elaborada por Pontes de Miranda, a nomenclatura “teoria dos fatos jurídicos” foi atribuída por Marcos Bernardes de Mello, grande estudioso das teorias “Ponteanas”. 15 PONTES DE MIRANDA, Tratado de Direito Privado, cit. 9 1916 A proteção jurídica da memória do morto e a titularidade do interesse tutelado ii. Na classificação dos fatos jurídicos, a morte é enquadrada como um fato jurídico em sentido estrito, porque decorre de acontecimento natural, determinante de efeitos na esfera jurídica; iii. Na classificação dos fatos jurídicos estritos, a morte insere-se na modalidade de fato jurídico ordinário, por ser fato de natureza de ocorrência comum, cotidiana, não extraordinária; iv. A morte gera situações jurídicas, ou seja, efeitos na ordem civil, manifestando-se nas relações jurídicas, podendo extingui-las ou modificá-las; v. São exemplos de situações jurídicas decorrentes do fato morte: extinção da personalidade e de direitos personalíssimos; cessação das relações jurídicas inabilitadas para sobreviverem à morte do titular; abertura da sucessão; proteção à memória do morto, ao cadáver, transmissibilidade dos aspectos patrimoniais do direito à imagem e dos direitos autorais do de cujus; extinção de certos direitos patrimoniais, como o usufruto vitalício, entre outros. Ademais, os fatos jurídicos podem ser constitutivos, modificativos ou causar extinção das relações jurídicas. Os fatos jurídicos constitutivos são aqueles que dão origem à novas relações jurídicas, que são condição indispensável para que surja qualquer relação jurídica concreta. A morte extingue certas relações jurídicas, mas também é marco constitutivo para que se formem ou modifiquem outras. 3. Contribuições do Professor José de Oliveira Ascensão sobre as situações jurídicas decorrentes da morte O Professor Ascensão afirma que “a morte tem necessariamente o efeito de extinguir a personalidade e de fazer cessar a titularidade, ativa e passiva, de quaisquer situações jurídicas. Naquelas em que pode haver continuidade, a morte provoca a abertura da sucessão”16. Em crítica ao posicionamento de Diogo Leite de Campos, acerca do dano morte, o autor afirma que, de vez em quando, são emitidas afirmações paradoxais em sentido contrário, com base no artigo 71.º, número 1, do Código Civil português17. Ao mesmo tempo que os direitos atribuídos ao homem em decorrência da dignidade da pessoa humana representam um mínimo espaço para o desenvolvimento da personalidade, representam, também, um máximo, devido a intensidade da tutela que recebem18. 16 JOSÉ DE OLIVEIRA ASCENSÃO, Direito Civil: Teoria Geral, introdução, as pessoas, os bens, volume 1, São Paulo, Saraiva, 2010, p. 47. 17 JOSÉ DE OLIVEIRA ASCENSÃO, Direito Civil: Teoria Geral, introdução, as pessoas, os bens, cit., p. 47. 18 JOSÉ DE OLIVEIRA ASCENSÃO, Direito Civil: Teoria Geral, introdução, as pessoas, os bens, cit., p. 59. RFDUL-LLR, LXIV (2023) 1, 1913-1934 1917 Renata Oliveira Almeida Menezes “O fulcro de tudo está na concepção e aceitação da morte como componente natural da condição humana; mas que, como tal, participa de toda a dignidade dessa condição. Merece-nos, naturalmente, respeito”19. O fato de com a morte se findar a personalidade, não determina a extinção de direitos e vinculações que lhe eram atribuídas em vida; a regra é que tais direitos sejam transmitidos aos herdeiros, mas há certas categorias de direitos que pela sua natureza ou por negócio jurídico, se extinguem após a morte do titular20. É verdade que as lições do Professor Oliveira Ascensão resultam em grande contribuição para a análise das consequências de a morte ser categorizada como fato jurídico. Sob esse prisma, para além do estudo do posicionamento do autor acerca da proteção da memória do morto – que será abordado, especificamente, a partir do próximo capítulo – a título de exemplificação é válido ressaltar como as situações jurídicas decorrentes da morte restam expressas em dois temas sobre os quais o Professor se debruçou em especial: direito sucessório e transmissão de direitos autorais. O direito das sucessões refere-se à morte de uma forma não dramática, já que ela, numa perspectiva civilista, não é um final – independentemente de ter sido feliz ou infeliz –, é um fato jurídico que pode gerar obrigação de indenizar, e que pode ter a continuidade dos seus efeitos por meio do direito das sucessões21/22. É essencial frisar que o esquema do direito das sucessões não é o único possível para regular o destino dos bens deixados pelas pessoas falecidas, posto que seria admissível, por exemplo, uma solução que atribuísse o patrimônio ao Estado. A opção dos legisladores, brasileiro e português, pelo regime sucessório, torna evidente a exaltação da propriedade privada e do estímulo à acumulação de riquezas, uma vez que, quando o patrimônio particular não é consumido em vida, forma o legado e a herança a serem destinados aos seus descendentes, fator que, de certa forma, tende a estimular o giro capitalista – diferentemente do que se estima que pudesse ocorrer caso a regra previsse a atribuição de patrimônio para o Estado, após a morte do titular do patrimônio privado. Trata-se, pois, de uma preocupação com a transcendência da vida, de cunho econômico-financeiro. Nesse sentido, Oliveira Ascensão expressa que o reconhecimento do elo entre a garantia do direito da propriedade e a sua transmissão, em vida ou por morte, fica JOSÉ DE OLIVEIRA ASCENSÃO, A terminalidade da vida, cit., p. 445. LUÍS A. CARVALHO FERNANDES, Teoria geral do direito civil, volume I, Lisboa, Universidade Católica Editora, 2009, p. 209. 21 JORGE DUARTE PINHEIRO, O direito das sucessões, Lisboa, AAFDL, 2010, p. 22. 22 Vale salientar que o princípio “mors omnia solvit” é invocado para resolver questões relacionadas a direitos personalíssimos. 19 20 1918 A proteção jurídica da memória do morto e a titularidade do interesse tutelado evidente no artigo 62.º, n. 123, da Constituição portuguesa, comprovando que a admissão da sucessão post mortem é consequência do reconhecimento de uma propriedade privada. Decorre, também, da exegese de tal dispositivo a admissão da diversificação de patrimônios, já que seria ilógico que o Estado absorvesse tudo de cada um, após a morte, para, em seguida, efetuar a redistribuição, posto que tal atitude seria capaz de gerar instabilidade nas relações patrimoniais24, e alargaria os trâmites burocráticos sucessórios, que já não são poucos, nem no Brasil, nem em Portugal. Ao passo que o legado é toda atribuição mortis causa a título particular, a herança apresenta uma diferença fundamental no que tange à responsabilidade, já que unicamente os herdeiros respondem pelas dívidas do de cujus, e pelas cargas impostas no testamento25. Dessa forma, a sucessão é caracterizada pelo ingresso de um sujeito na posição dantes ocupada por outro, é a transmissão de situações jurídicas de um para outro. Pode-se salientar, então, que há nitidez de fronteiras do Direito das sucessões, pois mesmo sendo difícil fazer a determinação conceitual do que é sucessão por morte, raros são os casos em que é preciso discutir se certa matéria está situada ou não dentro dos muros desse ramo do Direito26. A sucessão tange as situações jurídicas das quais era titular uma pessoa singular, de modo que são chamadas à titularidade das relações de um falecido um ou mais indivíduos27: os herdeiros. Na verdade, o que é realmente imprescindível é que, no caso concreto, seja verificado quem são os herdeiros, pois são eles que, na forma da lei, constituem a verdadeira estirpe, posto que é a partir da transferência do patrimônio para os herdeiros, devidamente regulamentada em sede de Direito Civil, que intrinsecamente ocorre também o deslocamento de traços da personalidade do de cujus, sem que tal transição implique em transmissibilidade da personalidade propriamente dita. Em síntese, conforme esclarece Ascensão, a admissão de sucessão por morte é capaz de satisfazer às aspirações pessoais intensas, pois apoia o desejo de que uma obra se prolongue depois da morte, de que ocorra uma persistência da personalidade. A possibilidade de marcar ou de dominar o destino dos seus bens exerce um papel de forte estímulo da atividade individual, e raramente é tratada Artigo 62.º, 1. A todos é garantido o direito à propriedade privada e à sua transmissão em vida ou por morte, nos termos da Constituição. 24 JOSÉ DE OLIVEIRA ASCENSÃO, Direito Civil: Sucessões, Coimbra, Coimbra Editora, 1989, p. 25. 25 ALBERTO TRABUCCHI, Instituciones de Derecho Civil, Madrid, volume II, Madrid, Editorial Revista de Derecho Privado, 1967, p. 416. 26 JOSÉ DE OLIVEIRA ASCENSÃO, Direito Civil: Sucessões, cit., pp. 18 e 36. 27 JORGE DUARTE PINHEIRO, O direito das sucessões, Lisboa, AAFDL, 2010, p. 20. 23 RFDUL-LLR, LXIV (2023) 1, 1913-1934 1919 Renata Oliveira Almeida Menezes com descaso pelas pessoas que acumularam patrimônio, tangível ou intangível28, ao longo da existência. A preocupação com os fatos posteriores à morte, especialmente no tocante aos herdeiros e os assuntos correlatos ao corpo do defunto, não é situação tão esdrúxula quanto em uma primeira abordagem pode aparentar. Pode-se, na verdade, asseverar que essa consternação, em certa medida, evidencia que uma antecipação sobre os efeitos post mortem pode ser de grande valia para evitar lides futuras entre herdeiros ou até entre estes e terceiros, e é justamente sob esse prisma que resta evidente a contribuição precisa e técnica do Professor Oliveira Ascensão para a disciplina. Caso não houvesse disciplina sobre a sucessão, em regra seriam consideradas extintas, automaticamente, todas as relações jurídicas após a morte do titular de um direito ou obrigação, o que resultaria em grande incerteza jurídica sobre o cumprimento do objeto das relações-jurídicas: devedores ficariam isentos de arcarem com seus débitos, seria extinto, imediatamente, o domínio sobre as coisas suscetíveis de apropriação, correr-se-ia o risco de deixar aqueles que hoje são tidos como herdeiros ou legatários desabrigados e desassistidos financeiramente após a morte dos detentores do poder familiar, dentre outras consequências. Em relação aos direitos morais do autor, no Brasil, na Lei 9.610 de 1998, dispõe no parágrafo segundo do artigo 24, que serão transmitidos aos sucessores os direitos de reivindicar a autoria da obra; o de ter seu nome, pseudônimo ou sinal convencional indicado ou anunciado, como sendo o do autor, na utilização de sua obra; o de conservar a obra inédita; o de assegurar a integridade da obra, opondo-se a quaisquer modificações ou à prática de atos que, de qualquer forma, possam prejudicá-la ou atingi-lo, como autor, em sua reputação ou honra29. JOSÉ DE OLIVEIRA ASCENSÃO, Direito Civil: Sucessões, cit., p. 25. Artigo 24. São direitos morais do autor: I – o de reivindicar, a qualquer tempo, a autoria da obra; II – o de ter seu nome, pseudônimo ou sinal convencional indicado ou anunciado, como sendo o do autor, na utilização de sua obra; III – o de conservar a obra inédita; IV – o de assegurar a integridade da obra, opondo-se a quaisquer modificações ou à prática de atos que, de qualquer forma, possam prejudicá-la ou atingi-lo, como autor, em sua reputação ou honra; V – o de modificar a obra, antes ou depois de utilizada; VI – o de retirar de circulação a obra ou de suspender qualquer forma de utilização já autorizada, quando a circulação ou utilização implicarem afronta à sua reputação e imagem; VII – o de ter acesso a exemplar único e raro da obra, quando se encontre legitimamente em poder de outrem, para o fim de, por meio de processo fotográfico ou assemelhado, ou audiovisual, preservar sua memória, de forma que cause o menor inconveniente possível a seu detentor, que, em todo caso, será indenizado de qualquer dano ou prejuízo que lhe seja causado. § 1º Por morte do autor, transmitem-se a seus sucessores os direitos a que se referem os incisos I a IV. 28 29 1920 A proteção jurídica da memória do morto e a titularidade do interesse tutelado Constata-se que há imprecisão técnica no artigo em comento, já que os direitos morais do autor são, na verdade, direitos da personalidade e, como tais, não são passíveis de transmissão causa mortis, havendo apenas a legitimidade de representação aos sucessores para promoverem a defesa dos direitos especificados nos incisos de I ao IV do artigo 24. Entretanto, é louvável o fato de o dispositivo evidenciar uma preocupação com as repercussões da obra após a morte do autor, para além dos efeitos patrimoniais da criação intelectual. Em relação aos direitos patrimoniais do autor, estes sim, são corretamente transmissíveis via sucessão, por força do artigo 4130, da Lei de Direitos Autorais. No direito português, o Código do Direito do Autor e dos Direitos Conexos, no artigo 57.º31, prevê que caberá aos sucessores o exercício dos direitos autorais após a morte do autor, e mostra preocupação com a obra em si, para que seja mantida sua autenticidade e “dignidade cultural” além do curso de vida do seu criador. Da análise sistemática dos artigos 9.º32 e 56.º33, pode-se atestar, conforme Ascensão34, que existem mais direitos pessoais do autor que podem ser exercidos pelos sucessores, apesar de a lei especificar apenas dois: o direito de reivindicar a paternidade e o direito de assegurar a genuinidade e integridade da obra. Acresce, ainda, que os direitos dos adquirentes por sucessão de publicar ou não a obra, é Artigo 41. Os direitos patrimoniais do autor perduram por setenta anos contados de 1° de janeiro do ano subsequente ao de seu falecimento, obedecida a ordem sucessória da lei civil. 31 Artigo 57.º, 1 – Por morte do autor, enquanto a obra não cair no domínio público, o exercício destes direitos compete aos seus sucessores. (...) 3 – Falecido o autor, pode o Ministério da Cultura avocar a si, e assegurá-la pelos meios adequados, a defesa das obras ainda não caídas no domínio público que se encontrem ameaçadas na sua autenticidade ou dignidade cultural, quando os titulares do direito de autor, notificados para o exercer, se tiverem abstido sem motivo atendível. 32 Artigo 9.º, 1 – O direito de autor abrange direitos de carácter patrimonial e direitos de natureza pessoal, denominados direitos morais. [...] 3 – Independentemente dos direitos patrimoniais, e mesmo depois da transmissão ou extinção destes, o autor goza de direitos morais sobre a sua obra, designadamente o direito de reivindicar a respectiva paternidade e assegurar a sua genuinidade e integridade. 33 Artigo 56.º, 1 – Independentemente dos direitos de carácter patrimonial e ainda que os tenha alienado ou onerado, o autor goza durante toda a vida do direito de reivindicar a paternidade da obra e de assegurar a genuinidade e integridade desta, opondo-se à sua destruição, a toda e qualquer mutilação, deformação ou outra modificação da mesma e, de um modo geral, a todo e qualquer acto que a desvirtue e possa afectar a honra e reputação do autor. 2 – Este direito é inalienável, irrenunciável e imprescritível, perpetuando-se, após a morte do autor, nos termos do artigo seguinte. 34 JOSÉ DE OLIVEIRA ASCENSÃO, Direito de Autor e Direitos Conexos, Coimbra, Coimbra Editora, 1992, p. 168. 30 RFDUL-LLR, LXIV (2023) 1, 1913-1934 1921 Renata Oliveira Almeida Menezes patrimonial, e surge como condição para exploração dos direitos, não se tratando de direito pessoal. 4. Justificativas para a proteção da memória do morto Há uma relação íntima entre memória e identidade; à medida que se vai experimentando a existência, o ser humano vai acumulando lembranças e versões dessas memórias, que vão sendo guardadas em seus foros íntimos. Vão sendo construídas as suas respectivas identidades, suas versões de si, em distinção dos demais seres humanos – é o que a Psicologia e a Neurociência chamam de self autobiográfico35, remetendo a uma ideia de autodefinição, de processamento de vivências, experiências e memórias subjetivas do ser humano. Essa acepção de memória que, apesar de ser concernente às pessoas vivas, tem vistas ao pretérito delas, relaciona-se à autoestima da pessoa e à proteção da honra subjetiva, apresentada pelo Direito Civil, em sede de direitos da personalidade. Quando a memória diz respeito a um falecido, no caso, também é voltada ao passado, mas difere-se da proteção que é endereçada à proteção da personalidade dos vivos, posto que se destina aos reflexos de uma vida que se esvaiu e suas causas na sociedade vivente correlacionam-se com a boa fama, assim como a honra objetiva que foi construída antes da morte. Apesar de ser praticamente uníssona, na doutrina civilística, a utilização da designação “memória do morto” para nomear tal âmbito de proteção, deve-se ponderar que é passível de críticas, até porque, no senso comum, pode vir a ensejar absurdamente a ideia de inferir que o morto vai preservar lembranças após a existência se esvair do seu corpo físico. Ademais, distante, ainda, de uma comprovação científica, no âmbito da ficção, pode-se chegar à hipótese de que é possível acessar os últimos registros de memória, possibilitando a recuperação, António Damásio defende que o cérebro constrói a consciência gerando um processo do self, em uma mente em estado de vigília, e explica que que o self é justamente o elemento distintivo, é a autoconsciência, o enfoque da mente sobre o organismo material em que ela habita. O autor explica que a construção da mente consciente é feita em três estágios: a) protosself – a descrição neural de aspectos relativamente estáveis do organismo; self central – resultado da relação entre o organismo (como ele é representado pelo protosself ) e qualquer parte do cérebro que represente um objeto a ser conhecido; e o self autobiográfico – estágio da mente que permite que múltiplos objetos, registrados previamente como experiência vivida ou futuro antevisto, interajam com o protosself (instinto), é uma autobiografia que se tornou consciente, baseada no somatório das vivências, recentes e remotas. ANTÓNIO DAMÁSIO, E o cérebro criou o homem, São Paulo, Companhia das Letras, 2011, pp. 224-226, p. 259. 35 1922 A proteção jurídica da memória do morto e a titularidade do interesse tutelado inclusive, da última imagem da retina do cadáver – conforme ilustrado no seriado de televisão Fringe36. Seguindo essa mesma linha de pensamento, Elias salienta que: “Até o modo como é utilizada a expressão “os mortos” é curioso e revelador. Dá a impressão de que as pessoas mortas em certo sentido ainda existem não só na memória dos vivos, mas independentemente deles. Os mortos, porém, não existem. Ou só existem na memória dos vivos, presentes e futuros. É especialmente para as desconhecidas gerações futuras que aqueles que estão agora vivos se voltam com tudo o que é significativo em suas realizações e criações. Mas nem sempre se dão conta disso”37. A morte marca a supressão da pessoa singular, do centro autônomo de imputação de normas jurídicas38, porém o direito civil não percebe a morte de uma pessoa apenas como o desaparecimento de um “dono-devedor”, ou seja, um suporte de herança simples, o homem não é reduzido apenas a um devedor-proprietário, nem em vida, nem após a sua morte39. Os reflexos jurídicos causados pelo evento morte, em âmbito cível, ultrapassam o direito obrigacional. Remanesce uma preocupação com os traços da sua personalidade que permanecem a influir no curso social, mesmo após a morte, ou seja, que transcendem o lapso temporal da existência da pessoa titular dos direitos da personalidade. Uma grande evidência dessa afirmação é a da memória do falecido, que apesar de qualquer ofensa já não poder atingir, por obviedade, o de cujus, são protegidos os reflexos sociais da honra dele que, por meio de qualquer agressão, poderia vir a lesionar, de forma reflexa, a dignidade dos seus herdeiros e de outras pessoas que a ele eram socialmente ligadas. Seriado da televisão norte-americana, lançado em 2008, criado por J. J. Abrams. No segundo capítulo da primeira temporada, com o objetivo de descobrir o local onde uma pessoa se encontrava, e com o objetivo de prevenir uma nova morte, o Walter, um dos protagonistas, utiliza de uma técnica pouco convencional, que é de restaurar a última imagem que um morto enxergou em vida, pressupondo que ela ficaria permanentemente gravada na retina do olho. THE SAME OLD STORY. (Temporada 1, ep. 2). Fringe [Seriado]. Direção: Paul A. Edwards, Produção: Alex Kurtzman, Roberto Orci, J.J. Abrams, Jeff Pinkner, Bryan Burk, Distribuidora: Warner. DVD (50 min), son., color. 37 NORBERT ELIAS, A solidão dos moribundos: seguido de “envelhecer e morrer”, Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 2001, p. 10. 38 ANTÓNIO MENEZES CORDEIRO, Tratado de Direito Civil: Pessoas, Vol. IV, Coimbra, Almedina, 2011, p. 513. 39 GÉNÉROSA BRAS MIRANDA, La protection posthume des droits de la personnalité, In: “Les Cahiers de propriété intellectuelle”, volume 19, número 3, Éditions Yvon Blais, Montréal, 2007, p. 798. 36 RFDUL-LLR, LXIV (2023) 1, 1913-1934 1923 Renata Oliveira Almeida Menezes Então, o direito civil, no fiel espelho da realidade social, permite a proteção da memória do morto, apesar do desaparecimento da personalidade jurídica do falecido, apoio que por muito tempo se considerou necessário para a concessão de uma proteção legal40. Esse direito de conservar protegida a memória do morto não pode ser confundido com eficácia póstuma, pós-eficácia ou transeficácia de direitos da personalidade41/42, por ser reflexo na origem. Nesse sentido, “além da própria morte, como bem da personalidade indenizável, a memória do falecido construída no decorrer de sua vida merece ser preservada, recebendo os sucessores legitimidade para tutelar esta proteção”43. Desse modo, caso haja ofensa contra pessoa viva, e no curso processual ocorra o óbito da parte ativa, a continuidade do processo será efetuada por meio da substituição processual, por parte dos herdeiros – nesses casos ocorre a tutela comum de direitos. Já quando a violação é concretizada após a morte do titular de direitos, incide a proteção à memória do falecido, e são os herdeiros que desde o início da lide têm legitimidade para exercer o poder de ação. 5. A tutela da memória do morto segundo Ascensão: a tese do interesse do morto Com precisão, Professor Ascensão expressa que, embora certos direitos de personalidade tenham como pressuposto que o sujeito esteja vivo, com a violação só ocorrendo durante a vida do seu titular, há certos casos em que uma ofensa é dirigida, aparentemente, a uma pessoa morta44. Comparando com o uso de cartas-missivas de pessoas mortas, o autor alega que um fato desonroso pode ser imputado tanto a um falecido, quanto a um vivo. Salienta que negar a relevância jurídica do prolongamento do ato ofensivo seria contrário ao respeito pelos mortos, que em uma análise ética, teria o respeito destinado aos falecidos valor maior que o respeito pelos vivos45. O respeito em GÉNÉROSA BRAS MIRANDA, La protection posthume des droits de la personnalité, cit., p. 819. “Há alguns direitos da personalidade que são pós-eficazes, são as espécies que compõem o direito à privacidade, quais sejam, direito à intimidade, à vida privada, ao sigilo e à imagem, acrescidos do direito à integridade moral”. RENATA OLIVEIRA ALMEIDA MENEZES, Direito ao sigilo médico após a morte do paciente, Curitiba, Editora Juruá, 2022, pp. 81-82. 42 “Os direitos da personalidade extinguem-se com a pessoa; pode haver a transeficácia deles, post mortem”. PAULO LÔBO, Direito Civil: Parte geral, volume I, São Paulo, Saraiva, 2020, p. 21. 43 SILVIO ROMERO BELTRÃO, Direitos da personalidade, São Paulo, Atlas, 2014, pp. 14-15. 44 JOSÉ DE OLIVEIRA ASCENSÃO, Direito Civil: Teoria Geral, introdução, as pessoas, os bens, cit., p. 81. 45 JOSÉ DE OLIVEIRA ASCENSÃO, Direito Civil: Teoria Geral, introdução, as pessoas, os bens, cit., p. 81. 40 41 1924 A proteção jurídica da memória do morto e a titularidade do interesse tutelado relação à pessoa que morre deve marcar todo o acompanhamento pessoal e comunitário desse momento único46. É justamente nesse sentido que o número 1, do artigo 71.º47, ao apresentar o que ele chama de “fórmula imprudentemente ampla”, preconiza que os direitos de personalidade gozam de igual proteção depois da morte do respectivo titular48. Segue a análise para o número 2, do artigo 71.º, e aborda a questão das dificuldades de enfrentamento da questão da outorga da legitimidade, questionando quem seria o sujeito passivo na hipótese em questão: se seria o falecido, ou seriam os herdeiros ou familiares, ou, se haveria uma outra possibilidade49. Vale salientar que o Código Civil brasileiro também apresenta dispositivo para abordar a matéria, e prevê que a legitimação para requerer reparação contra a ofensa da memória falecida cabe ao cônjuge sobrevivente, ou qualquer parente em linha reta, ou colateral até o quarto grau50. Oliveira Ascensão preconiza que “o que está em causa não é carta-missiva do familiar ou herdeiro. Nem se pergunta se a honra deste fica afetada pelo ato violador. Como não releva que ao requerente seja historicamente indiferente a violação ou desrespeito trazido ao falecido”. Dessa forma, não é requisito a demonstração de que a personalidade do requerente foi atingida, mas, a comprovação de que houve, de fato, lesão à memória do morto51. Extrai, pois, do artigo 71.º, números 1 e 2, do Código Civil português, a conclusão de que a personalidade do falecido é o valor tutelado, e de que os herdeiros ou familiares não têm titularidade dos interesses em causa, mas, na verdade, uma mera legitimação processual. Logo, para Ascensão52, o bem jurídico em questão passa a ser a memória do falecido, passa-se, com a extinção da personalidade, ao regime JOSÉ DE OLIVEIRA ASCENSÃO, A terminalidade da vida, cit, p. 445. Artigo 71.º, 1. Os direitos de personalidade gozam igualmente de protecção depois da morte do respectivo titular. 2. Tem legitimidade, neste caso, para requerer as providências previstas no n.º 2 do artigo anterior o cônjuge sobrevivo ou qualquer descendente, ascendente, irmão, sobrinho ou herdeiro do falecido. 3. Se a ilicitude da ofensa resultar de falta de consentimento, só as pessoas que o deveriam prestar têm legitimidade, conjunta ou separadamente, para requerer providências a que o número anterior se refere. 48 JOSÉ DE OLIVEIRA ASCENSÃO, Direito Civil: Teoria Geral, introdução, as pessoas, os bens, cit., p. 81. 49 JOSÉ DE OLIVEIRA ASCENSÃO, Direito Civil: Teoria Geral, introdução, as pessoas, os bens, cit., p. 82. 50 Artigo 12. Pode-se exigir que cesse a ameaça, ou a lesão, a direito da personalidade, e reclamar perdas e danos, sem prejuízo de outras sanções previstas em lei. Parágrafo único. Em se tratando de morto, terá legitimação para requerer a medida prevista neste artigo o cônjuge sobrevivente, ou qualquer parente em linha reta, ou colateral até o quarto grau. 51 JOSÉ DE OLIVEIRA ASCENSÃO, Direito Civil: Teoria Geral, introdução, as pessoas, os bens, cit., p. 82. 52 JOSÉ DE OLIVEIRA ASCENSÃO, Direito Civil: Teoria Geral, cit., pp. 90-91. 46 47 RFDUL-LLR, LXIV (2023) 1, 1913-1934 1925 Renata Oliveira Almeida Menezes jurídico da proteção da memória do falecido, e já não se pode mais falar em direitos de personalidade. Nesse sentido, a esse caso não se aplica globalmente a tutela dos direitos da personalidade, pois é preciso tomar algumas providências restritas para a proteção da memória do defunto, não se aplicando o regime de responsabilidade civil previsto no artigo 70.º, 1, do Código Civil português53. Os herdeiros não atuam em defesa de interesse próprio, defendem interesse do defunto, de modo que a personalidade jurídica se prolonga para depois da morte, ela é “empurrada” para além do falecimento54. Desta feita, pode-se ressaltar que a pessoa sobrevive após a morte como centro de interesse, com base no princípio da continuidade familiar, segundo o qual os herdeiros legalmente dão continuidade à pessoa do falecido55. Protegem-se os instintos, impulsos e aspirações concretas do falecido, no que tange à sua sobrevivência, continuação de si mesmo e sua ultrapassagem da morte, ou até mesmo, a sua perpetuação abrange contributos objetivados para o desenvolvimento da espécie humana e que autonomamente podem se mostrar como legados para a posteridade56. Fala-se de uma noção de legado excepcionalmente de natureza extrapatrimonial, subjetiva e que pode chegar a apresentar valor superior ao patrimonial, tendendo até a ter valor inestimável, de tão caro. Hörster alega ser duvidosa, em termos jurídico-políticos, a legitimidade do cônjuge sobrevivo ou qualquer descendente, ascendente, irmão, sobrinho ou herdeiro do falecido, para tomarem as providências adequadas em caso de ofensa a pessoas já falecidas. Afirma que as ofensas post mortem estão atreladas às sanções mais leves, com o fito de evitar que as pessoas legitimadas possam fazer um “negócio” à custa da personalidade de um falecido, e dispõe que a lei podia ter previsto uma indenização para uma instituição de solidariedade social no sentido de evitar a situação privilegiada de quem procede as ofensas aos que já faleceram57. Entretanto, o pensamento de que vai haver um intuito lucrativo e não reparatório nas ações de responsabilidade civil que têm como objeto a proteção da memória O autor faz referência ao Código Civil português, o qual dispõe: Artigo 70.º, (Tutela geral da personalidade), 1. A lei protege os indivíduos contra qualquer ofensa ilícita ou ameaça de ofensa à sua personalidade física ou moral. 54 DIOGO LEITE DE CAMPOS, Lições de Direitos da Personalidade, “Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra”, volume. 67, Coimbra, 1991, pp. 163-164. 55 CHRISTIAN ATIAS, Les personnes. Les incapacités, Collection Droit Fondamental, Paris, Press Universitaires de France, 1985, p. 33. 56 RABINDRANATH V. A. CAPELO DE SOUSA, O direito geral de personalidade, Coimbra, Coimbra Editora, 1995, p. 193. 57 HEINRICH EWALD HÖRSTER, A parte geral do Código Civil Português: Teoria geral do direito civil, cit., p. 161. 53 1926 A proteção jurídica da memória do morto e a titularidade do interesse tutelado do morto, demonstra, na verdade, um preconceito sobre a sua finalidade e ignora a proporção que pode chegar a ter o ato ilícito, assim como menospreza a capacidade lesiva que tais condutas podem causar nos familiares vivos. Não é justificável de pronto asseverar que tais casos estão sujeitos às sanções mais brandas, pois é plenamente possível que um ato, comissivo ou omissivo, ocorrido após a morte de alguém seja bem mais grave que um outro ocorrido em sua vida58. A ideia de que o reconhecimento da legitimidade dos herdeiros para a proteção contra a ofensa de pessoas falecidas teria fins mercantis se assemelha aos argumentos que foram suscitados nos primórdios da teoria do dano moral, quando se negava o seu reconhecimento alegando que iria gerar um enriquecimento indevido para quem suscitasse ter sofrido um dano que não poderia enxergar ou, a priori, provar ou quantificar59. Luís Fernandes60 critica a atribuição de indenização para os casos de ofensas após a morte; defende que a tutela a ser feita pelos herdeiros deve ser limitada às providências cautelares, expressa que o fato de o interesse dos familiares ser decorrência da dignidade moral do defunto retira o fundamento a uma indenização. No entanto, o referente posicionamento não deve prosperar, pois resultaria na redução do âmbito de abrangência da responsabilidade civil que, quando não logra êxito na atividade preventiva, mostra-se punitiva e educativa, para evitar que as transgressões se repitam, desestimulando condutas civilmente ilícitas. Conforme verificado, o Código Civil brasileiro, no artigo 12, parágrafo único, prevê expressamente a possibilidade de indenização. No Código Civil português, o artigo 70.º, n. 261, interpretado sistematicamente em conjunto com o artigo 71.º, números 1 e 2, do mesmo diploma, resulta em previsão semelhante. Como visto, a partir dos pressupostos de que o valor protegido é a personalidade do falecido, e de que legitimação conferida pelo artigo 71.º, item 2, é meramente A exemplo da disputa sucessória, de intensa atenção midiática, pelo espólio do apresentador da televisão brasileira, Gugu Liberato. 59 Após o Direito ter reconhecido que seria melhor tentar quantificar a subjetividade da integridade moral, para não se deixar reparar uma violação que é de difícil comprovação – se comparada com o dano material – mas de fácil percepção pela vítima, após todos os esforços teóricos e jurisprudenciais para diferenciar o mero aborrecimento do dano moral depois das alterações ocorridas no Código de Processo Civil brasileiro para evitar o que pejorativamente se chamou de “loteria do dano moral” ou “indústria do dano moral. Na atualidade, tem-se praticamente pacificada a importância do instituto para a preservação da dignidade. 60 LUÍS A. CARVALHO FERNANDES, Teoria geral do direito civil, cit., p. 211. 61 Artigo 70.º, 2. Independentemente da responsabilidade civil a que haja lugar, a pessoa ameaçada ou ofendida pode requerer as providências adequadas às circunstâncias do caso, com o fim de evitar a consumação da ameaça ou atenuar os efeitos da ofensa já cometida. 58 RFDUL-LLR, LXIV (2023) 1, 1913-1934 1927 Renata Oliveira Almeida Menezes processual62, não se pode confundir tais direitos com os interesses das pessoas a quem a lei atribui capacidade para exercício, com base na relação que a pessoa teve com o morto e seus valores63/64/65. Rabindranath de Sousa66, ao interpretar o mesmo dispositivo em enfoque, entende ser possível e eficaz, em relação à tutela da personalidade, a fixação de indenização ou a compensação por perdas e danos, posto que se dirigirem ao dano ocasionado no bem jurídico constituído pela personalidade física e moral do falecido, enquadrável no artigo 483.º67 do Código Civil português, apesar da ausência de personalidade jurídica do defunto. Contra essa tese, André Dias Pereira68 argumenta que implicaria defender a existência de direitos sem sujeito, o que causaria perplexidade, pois o cadáver, contrariamente ao caso do nascituro, não virá a ser sujeito, e que seus direitos vão se extinguindo pelo decurso do tempo e pelo apagamento da memória. 6. Outras teses acerca da proteção jurídica da memória do morto A partir da análise da tese defendida por Oliveira Ascensão acerca da proteção da memória do morto, verifica-se que a questão controversa colocada em pauta é se a tutela feita pelos sucessores é efetuada em nome próprio ou em representação ao falecido. Bigot69 alerta que há uma grande incerteza no direito positivo, já que há JOSÉ DE OLIVEIRA ASCENSÃO, Direito Civil: Teoria Geral, volume I, Coimbra, Coimbra Editora, 1997, p. 90. 63 RABINDRANATH V. A. CAPELO DE SOUSA, O direito geral de personalidade, cit., p. 193. 64 Na perspectiva do direito brasileiro, Silvio Beltrão esclarece que a proteção da personalidade que ocorre após a morte da pessoa concerne a interesses dessa própria pessoa, que se prolonga após a morte, já que buscam seus aspectos pessoais enquanto tinha vida. A previsão do Código Civil brasileiro atribui aos herdeiros legitimidade para requerer as providências necessárias para a proteção do morto, considerando a sua personalidade em vida, já que há a intransmissibilidade dos direitos da personalidade. SILVIO ROMERO BELTRÃO, Direitos da personalidade, cit., p. 14. 65 Nesse sentido, é possível afirmar que aqueles a quem o falecido deu vida, devolvem um pouco em troca: eles cuidam de seus interesses post-mortem. GÉNÉROSA BRAS MIRANDA, La protection posthume des droits de la personnalité, cit, p. 820. 66 RABINDRANATH V. A. CAPELO DE SOUSA, O direito geral de personalidade, cit., p. 196. 67 Artigo 483.º, 1. Aquele que, com dolo ou mera culpa, violar ilicitamente o direito de outrem ou qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios fica obrigado a indemnizar o lesado pelos danos resultantes da violação. 2. Só existe obrigação de indemnizar independentemente de culpa nos casos especificados na lei. 68 ANDRÉ GONÇALO DIAS PEREIRA, Direitos do paciente e responsabilidade médica, Dissertação de Doutoramento em Ciências Jurídico-civilísticas apresentada à Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, Coimbra, 2012, pp. 274-275. 69 CHRISTOPHE BIGOT, La protection de l’image des personnes et les droits des héritiers, In: “Legicom”, volume 10, número 4, Victoires Éditions, p. 35. 62 1928 A proteção jurídica da memória do morto e a titularidade do interesse tutelado uma parte da doutrina que sustenta os direitos da personalidade, e, especialmente, o direito à imagem, não sendo transmitidos aos herdeiros, por serem direitos pessoais do falecido. Além disso, outra corrente doutrinária admite a transmissão da ação, para que seja susceptível a obtenção de reparação por uma violação do direito à imagem. Desta feita, em relação à titularidade do interesse que é defendido pelo direito à proteção à memória do morto, além da tese do interesse do morto, preconizada por Oliveira Ascensão, serão elencadas, em seguida, as demais principais correntes doutrinárias de pensamento sobre o assunto. 6.1 Tese do interesse dos herdeiros/familiares (direitos próprios) Na verdade, a reverência pelos mortos é exigida pelos vivos, dentre as razões para tanto, pode-se citar: o medo da morte e dos mortos70. Ora, “se na ordem das coisas humanas só os vivos têm direitos ou podem ser sujeitos deles, conclusão lógica é que eles deixarão de os ter e de ser sujeitos de direitos, ou pessoas, desde que abandonem a vida”71. Logo, ao se tornarem mortos, estarão impedidos de permanecerem como sujeitos de direitos. Seguindo essa acepção, pode-se salientar que a proteção da memória do morto, na verdade, tem como objeto a tutela do interesse dos vivos que interagiram com o falecido, quando este tinha vida, e que são esses vivos que passam a ser titulares de direitos a partir do evento morte, em decorrência dos vínculos sociais e/ou sanguíneos previamente estabelecidos. Desta feita, seguindo essa corrente doutrinária, tem-se que na redação do artigo 72 71.º ocorreu uma infelicidade, embora se fundem na defesa da dignidade do falecido as posições jurídicas ativas exercidas. Conforme o artigo 71.º, não correspondem ao defunto, mas às pessoas referidas no número 2 do mesmo dispositivo. Com isso, caso ocorra a responsabilidade civil e a correspondente indenização dos danos morais e patrimoniais, corresponderão aos danos sofridos por essas pessoas, e não pelo falecido73/74/75. NORBERT ELIAS, A solidão dos moribundos, cit., p. 9. LUÍS CABRAL DE MONCADA, Lições de Direito Civil, Coimbra: Almedina, 1995, p. 257. 72 Do Código Civil português. 73 JOÃO DE CASTRO MENDES, Direito Civil: Teoria geral, Lisboa, Faculdade de Direito de Lisboa, 1978, pp. 231-234. 74 Em acréscimo, “a tutela post mortem é, necessariamente, uma defesa de vivos. Não se trata de evitar atribuir indenizações ao falecido: antes, iure proprio, aos familiares legitimados para agir”. ANTÓNIO MENEZES CORDEIRO, Tratado de Direito Civil: Pessoas, cit., pp. 540. 75 Trata-se de proteção de interesses e direitos das pessoas vivas, indicadas no dispositivo. CARLOS ALBERTO DA MOTA PINTO, Teoria geral do Direito Civil, Coimbra, Coimbra Editora, 2005, pp. 205-206. 70 71 RFDUL-LLR, LXIV (2023) 1, 1913-1934 1929 Renata Oliveira Almeida Menezes Apesar de reconhecer a manifesta impropriedade da redação do preceito em análise, tal corrente sustenta que, ao analisar sistematicamente o artigo 71, n. 2, com o artigo 68.º do Código Civil português (que expressa o fim da personalidade com a morte), verifica-se que não há previsão de exceções para a extinção da personalidade com a morte76. O grande argumento suscitado pelos doutrinadores defensores de tal tese é o de que inexistem direitos sem sujeitos, pois quando a pessoa natural é extinta com a morte, não é preciso falar em direitos remanescentes após o fim da vida do seu antigo titular. 6.2 Tese do interesse do morto e dos herdeiros Sobre a defesa da memória do morto, Diogo Leite de Campos77 expressa que, quando é reclamada por filhos, ocorre tanto no interesse do morto quanto em termos de poder funcional no interesse deles próprios, com o intuito de guardar o bom nome e a reputação. Nesses casos, o interesse do filho deixa de estar consumido juridicamente pelo interesse do pai enquanto vivo; podendo autonomizar-se daquele. Pode-se constatar que esse posicionamento do autor, datado de 2016, demonstra uma evolução da tese do interesse do morto, defendida em 199178, evidenciando ter havido uma ponderação mais aprofundada, no sentido de reconhecer que é possível haver o desmembramento de interesses exclusivos dos herdeiros. 6.3 Tese do interesse direto morto e indireto dos herdeiros A proteção dos direitos da personalidade depois da morte tem como primeiro objetivo defender o falecido e, apenas de forma indireta, contempla também os interesses dos familiares. A atuação dos familiares contra uma ofensa às pessoas falecidas configura o exercício de um direito próprio, no interesse de outrem79. Constata-se que essa teoria obedece à mesma lógica dos danos morais reflexos, indiretos ou em ricochete, reconhecidos quando a ofensa a direitos da personalidade, apesar de ter sido originalmente dirigida a uma pessoa, tem os efeitos sentidos, indiretamente, por outra. LUÍS A. CARVALHO FERNANDES, Teoria geral do direito civil, cit., p. 211. DIOGO LEITE DE CAMPOS, O estatuto jurídico da pessoa depois da morte, “Revista Jurídica Luso Brasileira”, Ano 2, número 4, Lisboa, 2016, p. 484. 78 DIOGO LEITE DE CAMPOS, Lições de Direitos da Personalidade, cit. 79 HEINRICH EWALD HÖRSTER, A parte geral do Código Civil Português: Teoria geral do direito civil, Coimbra, Almedina, 2003, p. 261. 76 77 1930 A proteção jurídica da memória do morto e a titularidade do interesse tutelado 6.4 Tese da proteção objetiva de bens jurídicos Segundo essa teoria, a vida em sociedade pode ser regulada por duas formas: por meio da atribuição de direitos subjetivos ou por via da proteção objetiva de bens jurídicos, e é justamente em relação à essa segunda possibilidade que ocorre a tutela dos interesses, valores e dimensões espirituais – bens jurídicos – que dizem respeito ao cadáver e à memória dos defuntos. Sob esse prisma, com a cessação da personalidade após a morte, restam algumas dimensões do respeito aos mortos e à sua memória que permanecem protegidas pela ordem jurídica, que encontram legitimidade processual nos familiares e em outras pessoas próximas do falecido, para garantir esse respeito80. Para sustentar tal tese, faz-se uma análise integrada do Direito que se vale dos tipos penais que tocam o assunto para defender a ordem jurídica e tutelar o bem jurídico supraindividual “respeito devido aos mortos” de forma intensa, já prevendo o tipo legal do crime e sua pena. Desconsidera, então, a possibilidade de compreender que há uma titularidade de direitos subjetivos após a morte; prefere, então, defender a tutela objetiva destes interesses e valores socialmente relevantes e solidificados normativamente. Defende que tal tutela não se encontra no domínio dos direitos fundamentais ou dos direitos de personalidade, mas no âmbito de proteção de bens jurídicos radicados na dignidade humana, no campo da objetividade e não da subjetividade81. É pelo direito objetivo que são protegidos tanto o cadáver quanto à memória do morto, não se trata de extensão da personalidade ou de do direito geral de personalidade. A proteção ocorre no domínio dos direitos fundamentais ou dos direitos da personalidade, no âmbito da proteção de bens jurídicos radicados na dignidade, mas no campo da objetividade e não da subjetividade82. 6.5 Tese do direito objetivo do morto e do direito subjetivo dos herdeiros Há a proteção do respeito pelos mortos, como valor ético, e de modo subjetivo ocorre a defesa da inviolabilidade moral dos seus familiares e herdeiros, sem implicar ANDRÉ GONÇALO DIAS PEREIRA, Direitos do paciente e responsabilidade médica, Dissertação de Doutoramento em Ciências Jurídico-civilísticas apresentada à Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, Coimbra, 2012, pp. 276-279. 81 ANDRÉ GONÇALO DIAS PEREIRA, Direitos do paciente e responsabilidade médica, cit., pp. 276-279. 82 ANDRÉ GONÇALO DIAS PEREIRA, Da possibilidade de realização de autópsias ou outros exames post mortem a requerimento de particulares – estudo jurídico, In. “Lex Medicinae: Revista Portuguesa de Direito da Saúde”, Ano 8, número 15, Coimbra, Coimbra Editora, 2011, p. 69. 80 RFDUL-LLR, LXIV (2023) 1, 1913-1934 1931 Renata Oliveira Almeida Menezes reconhecer ou tutelar a personalidade dos mortos que não a têm, mas sim de defender, em sede de direito subjetivo de personalidade, o direito que assiste aos vivos de que sejam respeitados os seus mortos, de modo que a injúria ou difamação de parentes constitui causa de sofrimento e de gravame83. Tendo em vista que direito objetivo e direito subjetivo não são duas entidades diversas em oposição, mas sim aspectos de um conceito único, que figura com formulações diversas84, afirma-se que nos artigos 70.º e 81.º há uma simbiose do direito objetivo e do direito subjetivo de personalidade. Assim, enquanto o direito objetivo tutela o respeito pelos mortos, como valor ético com raízes na Moral, o direito subjetivo de personalidade está na titularidade de pessoas vivas e tem no seu conteúdo a tutela do respeito devido aos seus mortos, cônjuge, ascendentes, descendentes, tios ou aqueles de quem se herdou85. Retomando algumas bases legislativas, tem-se que o Código Civil brasileiro, no capítulo concernente aos direitos da personalidade, no artigo 12, parágrafo único86, expressa que a legitimação para requerer que cesse a ameaça, ou a lesão a direito da personalidade, bem como reclamar perdas e danos, sem prejuízo de outras sanções previstas em lei, cabe ao cônjuge sobrevivente, ou a qualquer parente em linha reta, ou colateral até o quarto grau. De acordo com o que se verificou, o Código Civil Português dedica artigo próprio para tratar das ofensas às pessoas falecidas. O artigo 71.º destaca que os direitos de personalidade gozam igualmente de proteção depois da morte do respectivo titular, bem como nomeia como titulares da legitimidade para tomar providências com o fim de evitar a consumação da ameaça ou atenuar os efeitos da ofensa já cometida, o cônjuge sobrevivo ou qualquer descendente, ascendente, irmão, sobrinho ou herdeiro do falecido. Ademais, expressa que se a ilicitude da ofensa resultar de falta de consentimento, só as pessoas que o deveriam prestar têm legitimidade, conjunta ou separadamente, para requerer providências pertinentes. PEDRO PAIS DE VASCONCELOS, Teoria Geral do Direito Civil, Coimbra, Almedina, 2015, p. 51. R. BADENES GASSET, Conceptos fundamentales del derecho: las relaciones jurídicas patrimoniales, Barcelona, Boixareu Editores, 1972, p. 18. 85 PEDRO PAIS DE VASCONCELOS, Teoria Geral do Direito Civil, cit, p. 51. 86 Artigo 12. Pode-se exigir que cesse a ameaça, ou a lesão, a direito da personalidade, e reclamar perdas e danos, sem prejuízo de outras sanções previstas em lei. Parágrafo único. Em se tratando de morto, terá legitimação para requerer a medida prevista neste artigo o cônjuge sobrevivente, ou qualquer parente em linha reta, ou colateral até o quarto grau. 83 84 1932 A proteção jurídica da memória do morto e a titularidade do interesse tutelado 7. Conclusões i. É indubitável preconizar o reconhecimento da importância que os escritos do Professor José de Oliveira Ascensão têm, na seara jurídica, em relação aos reflexos da morte. A morte como fato jurídico desafia, há muito tempo, o Direito, e quanto mais se caminha em direção à certeza, mais as dúvidas, discordâncias, tornam-se visíveis. ii. A morte é um fato jurídico, em sentido estrito, ordinário; ela gera situações jurídicas, como a proteção da memória do morto. iii. O Professor Oliveira Ascensão apresentou grande contribuição doutrinária acerca do direito sucessório e da transmissão de direitos autorais, como exemplos de situações jurídicas decorrentes do fato jurídico morte. iv. A supressão da pessoa singular a partir da morte tem efeitos para além do campo cível obrigacional, principalmente devido ao fato de reflexos da personalidade continuarem a ser sentidos no âmbito social, transcendendo o lapso da existência do titular de direitos da personalidade. v. Em que pese haver com a morte a extinção da personalidade civil, o Direito Civil possibilita a proteção da memória do morto, como uma tutela post mortem. Embora qualquer ofensa já não poder atingir, por obviedade, o falecido, são protegidos os reflexos sociais. vi. Há a proteção jurídica do respeito pelos mortos, como direito objetivo, também como evidência da proteção de bens jurídicos radicados na dignidade. Apresenta-se de forma autônoma em relação aos direitos da personalidade, não se confundindo com o direito à honra; vii. Há embasamento legal expresso para a tutela da memória do morto tanto no Código Civil português, quanto no diploma brasileiro. viii. Protege-se a memória de um falecido com o qual pelo menos uma pessoa viva teve algum tipo de vínculo, especialmente de cunho familiar; ix. A tutela objetiva desse bem jurídico resulta em um direito subjetivo autônomo, que exige para a concreção do suporte-fático a morte; x. Apesar da aparente complexidade argumentativa sobre a titularidade dos interesses protegidos com a tutela da memória do morto, já se tem pacificada na doutrina e na legislação a questão da legitimidade processual dos herdeiros, tendo inclusive permeado o senso comum. Esse posicionamento é defendido também pelo Professor Oliveira Ascensão. xi. Ainda assim, o grande questionamento restante é se a tutela feita pelos sucessores, em relação à proteção da memória póstuma, é efetuada em nome próprio ou em representação ao falecido. RFDUL-LLR, LXIV (2023) 1, 1913-1934 1933 Renata Oliveira Almeida Menezes xii. xiii. xiv. xv. xvi. xvii. xviii. 1934 Conforme foi verificado, o posicionamento de Ascensão é de grande importância histórica para o desenvolvimento do tema, que defende a tese de que o interesse tutelado pela proteção à memória do de cujus é do próprio morto. A personalidade do falecido é o valor tutelado, passa-se, com a extinção da personalidade, ao regime jurídico da proteção da memória do falecido. Em confronto ou complementariedade à tese apresentada pelo autor, marco teórico principal do presente trabalho, foram analisadas as teses do interesse dos herdeiros/familiares (direitos próprios); do interesse do morto e dos herdeiros; interesse direto morto e indireto dos herdeiros; da proteção objetiva de bens jurídicos; e tese do direito objetivo do morto e do direito subjetivo dos herdeiros. A teoria que mais se mostra plausível e atual para tratar a problemática, é a que defende que, em regra, são titulares dos direitos referentes à memória do falecido os seus herdeiros. Cumpre salientar que a sua titularidade pode ser alargada para abranger além destes, outras pessoas que tinham algum vínculo social com o de cujus, e que por ainda nutrirem grande apreço por ele, ou por ainda serem a eles vinculados socialmente, podem vir a sofrer danos psíquicos e morais decorrentes de qualquer conduta que macule a memória do falecido, a exemplo de um melhor amigo. No que tange o direito de conservar protegida a memória do morto, não há que se falar em eficácia póstuma, pós-eficácia ou transeficácia de direitos da personalidade, por ser direito que na sua própria concepção já é reflexo, ou seja, já foi criado para que protegesse os que indiretamente podem, de fato, sofrer danos quando se atenta contra a memória de uma pessoa já falecida. Em caso de transgressão será dado lugar à responsabilidade civil, com os propósitos que são inerentes ao instituto, e não com objetivos mercantilistas. É valido concordar com Oliveira Ascensão no sentido de entender que há a sobrevivência da pessoa após a morte como centro de interesse, porém não se conclui que essa sobrevivência se concretize por meio do instituto que se destina a proteger a memória do morto, seria o caso se analisar a possibilidade de alguns direitos da personalidade terem eficácia após a morte.