Da enciclopédia e da Wikipédia: uma leitura discursiva
Larissa Scotta (
[email protected])
(http://lattes.cnpq.br/3454717412698524)
INTRODUÇÃO
Neste artigo, buscamos apresentar reflexões desenvolvidas em nossa Dissertação
de Mestrado, intitulada Da enciclopédia enquanto um círculo que se fecha à Wikipédia
enquanto uma rede que se abre: um gesto interpretativo1, cujo problema de pesquisa
tem como foco a passagem que entendemos existir de uma totalidade (ilusória) dos
saberes, que seria construída discursivamente nas enciclopédias espacialmente
circunscritas (as versões impressa, em cd-rom, dvd-rom e on-line não-colaborativas), para
uma impossibilidade de se construir uma totalidade como essa no sítio virtual Wikipédia2,
considerado por vários sujeitos a ‘enciclopédia completa’.
Colocando-nos em uma posição teórica de entremeio da Análise de Discurso de
orientação francesa com a História das Idéias, e partindo de uma leitura da história do
enciclopedismo, propusemos conceber a Wikipédia, este “sítio [site] significante” (cf.
ORLANDI, 2004) de mais de 10 milhões de verbetes3 cuja principal característica é a
escrita colaborativa, não como uma enciclopédia, tal como é apresentada e habitualmente
conhecida, mas como uma nova/outra forma do conjunto dos saberes que estaria surgindo
na contemporaneidade.
Esse ‘deslizamento de sentido’ da designação enciclopédia para Wikipédia,
metaforicamente representada por nós como a passagem da figura geométrica do círculo
à noção de rede, derivou da interpretação que fizemos acerca de como as enciclopédias
limitadas espacialmente e a Wikipédia são configuradas e de como os sujeitos concebem
1 Dissertação apresentada no ano de 2008 ao PPGL da Universidade Federal de Santa Maria e orientada
pela profª Dr. Amanda Eloina Scherer.
2 Site em Língua Portuguesa http://pt.wikipedia.org.
3 Fonte: Página da Wikipédia em Língua Inglesa. Endereço eletrônico: http://en.wikipedia.org/wiki/Wikipedia.
Acesso em 15 out. 2008.
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e põem em circulação ‘as coisas a saber’ (cf. PÊCHEUX, 1997) em distintos momentos
históricos, onde encontramos diferentes tecnologias de escrita e de linguagem.
A PASSAGEM DO CÍRCULO QUE SE FECHA À REDE QUE SE ABRE
O ponto de partida da reflexão por nós realizada foi o entendimento de que estaria
circulando um discurso sobre a Wikipédia, em sua própria versão em Língua Portuguesa,
em reportagens e matérias midiáticas, em blogs e portais eletrônicos, entre outros, o qual
a estaria significando como a enciclopédia que poderia 'solucionar o problema’ até então
incontornável da não-apreensão de todos os saberes em um só lugar, isto é, como a
enciclopédia em que a totalidade numérica dos saberes poderia ser abarcada.
A fim de exemplificar tal discurso, trazemos alguns enunciados em que este
estaria se fazendo presente:
A Wikipédia contém uma vasta quantidade de informação sobre os mais
variados assuntos, para não dizer todos. (presente na Página de boasvindas da versão em Língua Portuguesa da Wikipédia)
Imagine um mundo onde é dada a qualquer pessoa a possibilidade de
ter livre acesso ao somatório de todo o conhecimento humano. É isto
que estamos a fazer. (presente na página do usuário Alessandro Soares,
que edita a Wikipédia)
Dois mil e trezentos anos depois do sonho de reunir todo o
conhecimento humano na Biblioteca de Alexandria, o século XXI parece
estar perto de chegar lá. Criou no meio digital o maior fenômeno editorial
dos tempos modernos, a maior fonte de referência do mundo e o
repositório de informações que mais se aproxima da visão grandiosa dos
filósofos enciclopedistas franceses de 250 anos atrás. (extraído da
reportagem “A enciclopédia pop”, veiculada na Revista Época de 23 jan.
2006)
Nesses enunciados, e em outros encontrados, estaria sendo alimentado o
imaginário de que a Wikipédia poderia conter não um conjunto limitado de saberes, mas
sim, em uma “accumulations sans manque, sans lacune, tous les savoirs constitués”
(CHARTIER, 2006, p.3). Como se o desejo de ‘tudo abarcar’, que vem inquietando
gerações desde o desaparecimento da mítica Biblioteca de Alexandria, pudesse
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finalmente se concretizar neste momento em que as novas tecnologias de informação e
comunicação nos colocam frente a uma multitude de ‘coisas a saber’ nunca antes vista.
Partindo da afirmação de Orlandi (2004, p. 71) de que “toda fala resulta de um
efeito de sustentação no já dito” e de que todo discurso não é um sistema fechado em si
mesmo, mas sim “uma junção de fragmentos de dizeres outros que o atravessam” (DIAS,
2006, p. 89), entendemos que esse discurso sobre a Wikipédia traria em si uma memória
de discursos outros, que também apontariam para este desejo do ‘saber total’ nas
enciclopédias.
Para nós, haveria em todo sujeito, novamente nos apoiando em Orlandi (2005), a
vontade, a necessidade de saber. E essa vontade, essa necessidade, que faz com que os
sujeitos estejam sempre em busca do “completo, do todo, do um” (ORLANDI, 2004, p.
137), não se faria presente somente nesse discurso que vimos destacando. Esse desejo
também deixou suas marcas em outros momentos da história do enciclopedismo. Nesse
sentido, poderíamos afirmar que o discurso em questão teria suas raízes no passado, na
Biblioteca de Alexandria e no próprio enciclopedismo ocidental, que também seria
atravessado pelo ideal da totalização dos saberes.
O que entendemos ser preciso destacar, não obstante, é o que estaria levando os
sujeitos a terem esse gesto de interpretação na atualidade. Para nós, seriam a capacidade
de memória praticamente ilimitada da Web e a abertura à edição colaborativa da
Wikipédia que alimentariam o imaginário da ‘enciclopédia completa’.
O que estaria se delineando, em nossa concepção, seria o entendimento, por
parte de alguns sujeitos, de que os avanços tecnológicos e a conseqüente mudança na
materialidade da enciclopédia, das versões limitadas espacialmente para a versão da
Wikipédia, poderiam superar a necessidade deste instrumento tecnológico de conciliar a
ambição à exaustividade com a exigência da seletividade, imposta, num certo sentido, por
seu espaço circunscrito.
Em relação a essa questão, faz-se necessário considerar que as enciclopédias até
então existentes, embora herdeiras da utopia de poder ‘tudo abarcar’, não podem conter
em seu escopo a totalidade dos saberes, de modo que caberia ao enciclopedista
selecionar, recortar em meio à infinidade de ‘coisas a saber’, algumas destas.
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Este gesto de ‘seleção’4, de ‘delimitação’ do que poderia ou não fazer parte da
enciclopédia pode ser explicitado, segundo nosso entendimento, a partir do que Pêcheux
e Fuchs (1997) afirmam sobre a enunciação em geral. Segundo os autores,
(...) os processos de enunciação consistem em uma série de
determinações sucessivas pelas quais o enunciado se constitui pouco a
pouco e que têm por característica colocar o ‘dito’ e em conseqüência
rejeitar o ‘não-dito’. A enunciação equivale pois a colocar fronteiras entre
o que é ‘selecionado’ e tornado preciso aos poucos (através do que se
constitui o ‘universo do discurso’), e o que é rejeitado. Desse modo se
acha, pois, desenhado num espaço vazio o campo de ‘tudo o que teria
sido possível ao sujeito dizer (mas que não diz)’ ou o campo de ‘tudo a
que se opõe o que o sujeito disse’. Esta zona do ‘rejeitado’ pode estar
mais ou menos próxima da consciência e há questões do interlocutor
que o fazem reformular as fronteiras e re-investigar esta zona. (p. 175176).
Por ela ser circunscrita, quando o sujeito autor da enciclopédia afirma X e não Y,
quando ele apresenta determinados verbetes e não outros, quando aborda um saber
sobre um prisma e não outro, ele constrói discursivamente na enciclopédia um
fechamento imaginário dos sentidos, que faz com que os saberes nela expostos sejam
tomados em uma “relação de evidência entre e sobre si mesmos”, conforme entende
Morello (2003, p.122). E que faz também com que se produza a ilusão de que todas as
‘coisas a saber’ se encontram nos verbetes das enciclopédias.
Embora a totalidade numérica dos saberes seja almejada, sabemos que isto não é
possível. O que o enciclopedista apresentaria, portanto, seria um universo de ‘coisas a
saber’ que projetaria no espaço uma leitura do mundo. Tal como o cartógrafo, o
enciclopedista delinearia um mapa, um mapa-múndi de saberes.
Por conseguinte, não haveria na enciclopédia a apreensão de todos os saberes já
formulados, mas sim a construção discursiva de um ‘todo’. A enciclopédia seria, pois, um
conjunto fechado, delimitado e estruturado de saberes, como um ‘todo circular’, que se
fecha sobre si mesmo.
4 É preciso salientar que, além deste processo de seleção relativo ao que Pêcheux denomina
‘esquecimento nº 2’, também está presente, na constituição de todo discurso, o esquecimento nº 1, que faz
com que o sujeito tenha a impressão (a ilusão) de que é ele próprio a fonte de sentido, isto é, o sujeito se
representa como criador absoluto de seu discurso. Esse apagamento, que seria total, é chamado de
inconsciente, ideológico (cf. ORLANDI, 1988).
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Para nós, em última instância, seria a ideologia5 que representaria a saturação, o
efeito de completude que, por sua vez, produziria o efeito de evidência (cf. ORLANDI,
2007) de que aquelas ‘coisas a saber’ presentes nas enciclopédias seriam, de fato, todos
os saberes existentes.
É sob essa perspectiva que poderíamos afirmar que existiria uma totalidade, ainda
que ilusória, nas versões limitadas espacialmente das enciclopédias. E é sob esta
perspectiva, igualmente, que poderíamos conceber tal instrumento tecnológico a partir da
metáfora do ‘círculo que se fecha’, tal como a etimologia da palavra6 enciclopédia nos
sugere.
Em nossa interpretação, o que o discurso sobre a Wikipédia estaria produzindo
seria o efeito de sentido de que, pelo fato desta se apresentar no espaço virtual, seria
possível à Wikipédia disponibilizar não um conjunto legitimado e estabilizado de saberes,
como se daria nas demais versões de enciclopédia, mas a soma de todos os saberes
existentes. Como se quanto maior fosse a quantidade de verbetes na Wikipédia, maior a
possibilidade de se chegar ao ‘saber total’.
Em outras palavras, se antes os sujeitos concebiam estar diante do ‘saber total’
porque a materialidade da enciclopédia limitava, no espaço e no tempo, sua extensão e
seu campo de abrangência, fazendo com que estes tomassem as ‘coisas a saber’ ali
apresentadas como a ‘totalidade dos saberes’ existentes, hoje tal interpretação estaria se
delineando justamente pelo fato de a Wikipédia possibilitar que mais e mais saberes
sejam disponibilizados a todo momento em seu escopo.
O que estaríamos presenciando seria uma mudança no modo como este ‘efeito
imaginário’ estaria funcionando na atualidade. A ilusão da totalidade não seria mais
produzida pelo ‘efeito de fechamento’ (cf. ORLANDI, 2004) da enciclopédia, mas sim pelo
permanente ‘alargamento’ da Wikipédia.
5 A partir de Orlandi (2007, p. 96), entendemos ideologia como “um processo de produção de um
imaginário, isto é, produção de uma interpretação particular que apareceria no entanto como a interpretação
necessária.
6 ‘Enciclopédia’ é um termo latinizado a partir do grego ‘eu-kuklios paideia’, que quer dizer o ‘círculo
(kuklios) perfeito (eu) do conhecimento ou da educação (paideia) (POMBO, 2006).
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A compreensão a que chegamos, no entanto, foi oposta a esta que se faz
presente neste discurso que brevemente mencionamos. Para nós, ainda que a abertura à
edição colaborativa da Wikipédia produza a ilusão da totalidade numérica – como se os
números também não tendessem ao infinito – o fato de a Wikipédia se colocar como o
sítio virtual cujos contornos estão sempre se refazendo seria a própria afirmação da
impossibilidade de ela vir a ser a ‘enciclopédia completa’. Tal como afirma Dias7 (2007),
na Wikipédia, de“link em link não há círculo que se feche, mas sentidos que se abrem e se
expandem. Cada link é uma cicatriz no sentido: a marca da incompletude”.
Por ela se apresentar na rede mundial de computadores e, mais ainda, por ela ser
editada por diferentes sujeitos em diferentes momentos e lugares, qualquer interpretação
que leve a entender que a Wikipédia é a enciclopédia onde a totalização dos saberes
poderia se tornar realidade coloca-se em contradição com a sua própria condição, que é
fluida e variável.
De acordo com Dias (2005), na Web estamos diante de arquivos que podem ser
alimentados diariamente e que se caracterizam pela possibilidade de ser outro. Sublinha a
autora (ibid) que tais arquivos, ou seja, o conteúdo dos sites e home pages, os blogs, etc,
constituem-se de modo aberto, passíveis de desconstrução, tendo sua natureza definida
pela própria estrutura fluida e não-linear da Internet, pela estrutura em teia.
Para nós, o que Dias (2005) afirma estaria fortemente relacionado ao que
entendemos ocorrer com a Wikipédia. Nesse sentido, compreendemos que, se não
haveria a possibilidade de um fechamento imaginário dos sentidos na Wikipédia, ela não
poderia ser concebida como um círculo que se fecha, mas sim como uma rede que se
abre, indefinidamente.
Uma vez que existiria esse ‘deslizamento de sentido’ do círculo à rede, a questão
da totalização dos saberes nas enciclopédias, em nossa concepção, colocar-se-ia de
outra forma. Para nós, tal como já sublinhamos, se havia a construção discursiva de uma
totalidade (ilusória) dos saberes nas enciclopédias limitadas espacialmente, na Wikipédia,
diversamente, tal construção não existiria, pois não havendo um ‘fim’ da Wikipédia, um
ponto final, não haveria como construir um ‘todo’.
7 Comentário da Profª Dr. Cristiane Dias na argüição de nossa Dissertação.
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Tendo em vista esta distinção primeira, a qual seria, em nossa perspectiva, o
principal diferencial da Wikipédia em relação às enciclopédias, entendemos ser
necessário, a fim de sustentar essa passagem do circulo à rede, apresentar outros pontos
em que tal diferenciação ocorreria.
Como não poderíamos deixar de enfatizar, a rapidez, que estaria presente na
etimologia do vocábulo8 Wikipédia, seria um dos pontos de distanciamento em relação às
enciclopédias. Este foi, aliás, o principal fator que levou a Wikipédia a ser concebida.
Analisando o modo como a Wikipédia se configura, podemos entender que a
rapidez, a instantaneidade, estariam fortemente presentes em sua constituição. O
resultado da procura por um determinado verbete, por exemplo, é apresentado em alguns
décimos de segundo. Até mesmo na edição de seus verbetes se textualizaria esta rapidez,
pois estes podem ser criados, modificados ou mesmo eliminados em questão de
segundos ou minutos.
Se atentarmos para a história do enciclopedismo, não encontraremos nenhuma
obra que, tendo sido construída em tão pouco tempo, tenha tido tantas ‘coisas a saber’
como a Wikipédia. Ao contrário, a formulação dos saberes, na maior parte dos casos, era
um trabalho demorado, que exigia do enciclopedista um tempo para a elaboração e para a
reflexão.
Durante a Idade Média, por exemplo, onde a maioria das obras enciclopédicas
eram elaboradas por um único autor, ainda que atingissem a extensão de alguns volumes,
estes não eram concebidos em um curto espaço de tempo, mas sim durante meses, ou
mesmo anos.
No Iluminismo, quando foi produzida uma das mais célebres enciclopédias de
todos os tempos, a Encyclopédie ou dictionnaire raisonné des sciences, des arts et
des métiers, a elaboração dos seus vinte e oito volumes e setenta e dois mil artigos
prolongou-se por vinte e um anos.
8 A palavra Wikipédia é construída a partir da união da palavra wiki, do havaiano wiki wiki, que quer dizer
‘veloz’, ‘rápido’, e paideia, do grego, que quer dizer ‘conhecimento’. Wikipédia remeteria, portanto, ao
‘conhecimento veloz, rápido’.
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Ainda hoje encontramo-nos frente a uma elaboração dos saberes que não é a
mesma da Wikipédia. Embora enciclopédias como a Britannica e a Universalis, por
exemplo, atualizem seus conteúdos com mais freqüência, o que geralmente ocorre são
atualizações a cada um ou vários anos, e o número de novos verbetes ou de alterações é
bastante reduzido.
Juntamente com esta primeira característica, estaria uma outra, também central: a
autoria colaborativa. Para nós, por possibilitar que um número maior de sujeitos faça parte
da escritura de seus verbetes, com a Wikipédia estaríamos diante do que Pêcheux
(1997a) denominou de “re-organização social do trabalho intelectual”.
Não é mais o monge ou o teólogo da Idade Média, o humanista do século XVI, o
filósofo iluminista, ou ainda uma equipe de especialistas que elaboram as ‘coisas a saber’.
Neste ‘sítio significante’, os saberes são postos em circulação por diferentes sujeitos que
se encontram em diferentes lugares e momentos.
Essa reorganização, que faria com que o ‘controle do dizer’ em uma enciclopédia
se desse de uma outra forma, ou seja, que faria com que o que pode ou não ser dito em
um instrumento tecnológico como este obedecesse a outros critérios que não os que
comumente permeariam a elaboração de tal obra, levaria, por conseguinte, a uma
redefinição do que é ou não relevante de ser apresentado em uma enciclopédia, pois,
conforme entendemos, a relevância dos saberes na Wikipédia seria de outra ordem.
Embora entendamos que o que é considerado um ‘saber enciclopédico’ passou
por transformações ao longo da história do enciclopedismo, em função, por exemplo, das
mudanças na forma como os sujeitos concebiam o mundo e os saberes, o fato de a
enciclopédia ser circunscrita fazia com que o enciclopedista delegasse a alguns saberes
uma importância, uma pertinência, o que era, então o fator que levava tais saberes a
fazerem ou não parte da enciclopédia.
Na Wikipédia, não havendo esta limitação, verbetes como ‘Daniela Ciccarelli’,
‘Dança dos famosos’ e ‘Pokémon’, que abordam, respectivamente, uma famosa artista
brasileira, um quadro do programa televisivo Faustão, veiculado na Rede globo, e um
desenho animado que se transformou em uma série de produtos, estariam ao lado de
verbetes como ‘Emmanuel Kant’, ‘Revolução Industrial’ e ‘Análise de Discurso’. InstaurarARTEFACTUM – REVISTA DE ESTUDOS EM LINGUAGEM E TECNOLOGIA
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se-ia uma equivalência destes saberes, o que, consequentemente, levaria a uma
outra/nova forma de se compreender o que é considerado um ‘saber enciclopédico’. E
esta outra/nova compreensão seria, em nosso entendimento, uma terceira diferença
envolvendo a Wikipédia e as enciclopédias então existentes.
Serres (2005, p. 141) afirma que “quando uma coisa muda de escala, ela
frequentemente muda também de natureza”. Para nós, a configuração da Wikipédia, a
qual possibilita que inúmeros saberes, que já faziam ou não parte de uma enciclopédia
sejam apresentados em seu escopo, faz com que haja uma modificação não somente no
modo como estes saberes são postos em circulação, mas também em relação à natureza
destes saberes. Isto é, a própria definição do que pode ser um ‘saber enciclopédico’
estaria sendo (re)significada com a Wikipédia.
Uma outra característica da Wikipédia, que também a diferenciaria das
enciclopédias, é a que concerne à organização e à classificação dos saberes. Ao
contrário, por exemplo, das enciclopédias medievais, que seguiam uma ordenação
disciplinar,
ou
da
enciclopédia
iluminista,
que
trazia
os
saberes
ordenados
alfabeticamente, ou ainda das versões lançadas no século XX, que apresentam, além das
duas formas anteriores, também uma organização temática, a Wikipédia não adota um
sistema de ordenação dos saberes.
Na Wikipédia, os saberes estão todos, conforme já sublinhamos, em equivalência.
Não há um esforço, por parte de seus editores, como há nas outras versões, visando a
classificar, a hierarquizar o saber (Rey, 2007). Essa inexistência de um princípio
classificador estaria relacionada a esta mudança que entendemos ocorrer na concepção
do que é um ‘saber enciclopédico’, uma vez que, neste sítio virtual, conforme afirma
Assouline (2007), o verbete ‘Pokémon’ poderia ter a mesma extensão ou ser maior do que
o verbete sobre o filósofo alemão Kant9, por exemplo.
Essas quatro diferenças por nós apontadas traduziriam, de certa forma, alguns
dos pontos de distanciamento da Wikipédia em relação às enciclopédias então existentes
e, em nossa concepção, estariam intrinsecamente ligadas à transformação que a abertura
9 Em uma busca realizada no dia 12 de fevereiro de 2008 na versão em Língua Portuguesa da Wikipédia, o
verbete ‘Pokémon’ era, de fato, bem mais extenso do que o verbete ‘Emmanuel Kant’.
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à edição colaborativa da Wikipédia produziria na forma de conceber e de pôr em
circulação os saberes.
CONCLUSÃO
Diante do que vimos afirmando, é possível entender, portanto, que a Wikipédia não
deixa incólume o que é um ‘saber enciclopédico’ e tampouco a própria memória de
enciclopédia. Ela desloca sentidos, reformula toda uma maneira de conceber e de pôr em
circulação os saberes e nos coloca diante do ‘muito cheio’, do excesso, que seria
representado por seus vários milhões de verbetes que não cessam de aumentar.
A Wikipédia seria, pois, uma criação que estaria intrinsecamente relacionada ao
momento histórico em que vivemos, um momento onde a lógica do mundo estaria se
modificando devido, de um lado, à presença cada vez mais incisiva das novas tecnologias
de informação e comunicação nos diversos âmbitos da sociedade e, de outro, à prática
então dominante da dinâmica de mercado, que traria consigo a velocidade e a aceleração,
características tão presentes na configuração deste sítio virtual e da Web como um todo.
Para nós, em última instância, seria possível entender que com a Wikipédia
estaríamos diante de uma outra/nova forma do conjunto dos saberes que se delinearia na
contemporaneidade. Forma esta que não poderia ser compreendida como um ‘todo
circular’, que se fecha sobre si mesmo, mas como uma rede que está sendo tecida por
milhares de sujeitos em diversos lugares do globo.
No início de nossa dissertação, tomando como referência as mudanças na forma
como se daria a formulação e a circulação dos saberes na atualidade, propomo-nos a
responder à questão ‘O que eu posso saber?’, colocada por Kant no século XVIII e
retomada por Serres (2005) no início do século XXI. A resposta a que chegamos foi: uma
imensidão de saberes que brotam daqui e dali, um universo de ‘coisas a saber’ que não
pára de se alargar.
Ao final da reflexão por nós realizada, entendemos ser possível retomarmos esta
indagação, (re)significando-a. É então que perguntamos: o que seria possível sabermos a
partir do que nos apresenta a Wikipédia?
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Esta é, para nós, uma questão emblemática, que nos levou a pensar sobre o que é
uma enciclopédia, o que é um ‘saber enciclopédico’, e de que modo os sujeitos,
atravessados pelo desejo de completude, de totalidade, de unicidade, vem construindo
significações acerca do que são as ‘coisas a saber’.
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SERRES, M. O incandescente. Trad. Edgar de Assis Carvalho, Mariza Perassi Bosco.
Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2005.
SOBRE A AUTORA
Possui graduação em Letras pela Universidade Federal de Santa Maria (2005) e é Mestre em
Letras – Estudos Lingüísticos pela mesma instituição (2008). Desenvolve trabalhos na área de
Análise de Discurso de vertente francesa em cotejo com a História das Idéias Lingüísticas,
atuando também na área de Revisão de Textos.
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