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Da enciclopédia e da Wikipédia: uma leitura discursiva

2009, Artefactum Revista De Estudos Em Linguagens E Tecnologia

Da enciclopédia e da Wikipédia: uma leitura discursiva Larissa Scotta ([email protected]) (http://lattes.cnpq.br/3454717412698524) INTRODUÇÃO Neste artigo, buscamos apresentar reflexões desenvolvidas em nossa Dissertação de Mestrado, intitulada Da enciclopédia enquanto um círculo que se fecha à Wikipédia enquanto uma rede que se abre: um gesto interpretativo1, cujo problema de pesquisa tem como foco a passagem que entendemos existir de uma totalidade (ilusória) dos saberes, que seria construída discursivamente nas enciclopédias espacialmente circunscritas (as versões impressa, em cd-rom, dvd-rom e on-line não-colaborativas), para uma impossibilidade de se construir uma totalidade como essa no sítio virtual Wikipédia2, considerado por vários sujeitos a ‘enciclopédia completa’. Colocando-nos em uma posição teórica de entremeio da Análise de Discurso de orientação francesa com a História das Idéias, e partindo de uma leitura da história do enciclopedismo, propusemos conceber a Wikipédia, este “sítio [site] significante” (cf. ORLANDI, 2004) de mais de 10 milhões de verbetes3 cuja principal característica é a escrita colaborativa, não como uma enciclopédia, tal como é apresentada e habitualmente conhecida, mas como uma nova/outra forma do conjunto dos saberes que estaria surgindo na contemporaneidade. Esse ‘deslizamento de sentido’ da designação enciclopédia para Wikipédia, metaforicamente representada por nós como a passagem da figura geométrica do círculo à noção de rede, derivou da interpretação que fizemos acerca de como as enciclopédias limitadas espacialmente e a Wikipédia são configuradas e de como os sujeitos concebem 1 Dissertação apresentada no ano de 2008 ao PPGL da Universidade Federal de Santa Maria e orientada pela profª Dr. Amanda Eloina Scherer. 2 Site em Língua Portuguesa http://pt.wikipedia.org. 3 Fonte: Página da Wikipédia em Língua Inglesa. Endereço eletrônico: http://en.wikipedia.org/wiki/Wikipedia. Acesso em 15 out. 2008. ARTEFACTUM – REVISTA DE ESTUDOS EM LINGUAGEM E TECNOLOGIA ANO 2 – N° 2 – FEVEREIRO 2009 71 e põem em circulação ‘as coisas a saber’ (cf. PÊCHEUX, 1997) em distintos momentos históricos, onde encontramos diferentes tecnologias de escrita e de linguagem. A PASSAGEM DO CÍRCULO QUE SE FECHA À REDE QUE SE ABRE O ponto de partida da reflexão por nós realizada foi o entendimento de que estaria circulando um discurso sobre a Wikipédia, em sua própria versão em Língua Portuguesa, em reportagens e matérias midiáticas, em blogs e portais eletrônicos, entre outros, o qual a estaria significando como a enciclopédia que poderia 'solucionar o problema’ até então incontornável da não-apreensão de todos os saberes em um só lugar, isto é, como a enciclopédia em que a totalidade numérica dos saberes poderia ser abarcada. A fim de exemplificar tal discurso, trazemos alguns enunciados em que este estaria se fazendo presente: A Wikipédia contém uma vasta quantidade de informação sobre os mais variados assuntos, para não dizer todos. (presente na Página de boasvindas da versão em Língua Portuguesa da Wikipédia) Imagine um mundo onde é dada a qualquer pessoa a possibilidade de ter livre acesso ao somatório de todo o conhecimento humano. É isto que estamos a fazer. (presente na página do usuário Alessandro Soares, que edita a Wikipédia) Dois mil e trezentos anos depois do sonho de reunir todo o conhecimento humano na Biblioteca de Alexandria, o século XXI parece estar perto de chegar lá. Criou no meio digital o maior fenômeno editorial dos tempos modernos, a maior fonte de referência do mundo e o repositório de informações que mais se aproxima da visão grandiosa dos filósofos enciclopedistas franceses de 250 anos atrás. (extraído da reportagem “A enciclopédia pop”, veiculada na Revista Época de 23 jan. 2006) Nesses enunciados, e em outros encontrados, estaria sendo alimentado o imaginário de que a Wikipédia poderia conter não um conjunto limitado de saberes, mas sim, em uma “accumulations sans manque, sans lacune, tous les savoirs constitués” (CHARTIER, 2006, p.3). Como se o desejo de ‘tudo abarcar’, que vem inquietando gerações desde o desaparecimento da mítica Biblioteca de Alexandria, pudesse ARTEFACTUM – REVISTA DE ESTUDOS EM LINGUAGEM E TECNOLOGIA ANO 2 – N° 2 – FEVEREIRO 2009 72 finalmente se concretizar neste momento em que as novas tecnologias de informação e comunicação nos colocam frente a uma multitude de ‘coisas a saber’ nunca antes vista. Partindo da afirmação de Orlandi (2004, p. 71) de que “toda fala resulta de um efeito de sustentação no já dito” e de que todo discurso não é um sistema fechado em si mesmo, mas sim “uma junção de fragmentos de dizeres outros que o atravessam” (DIAS, 2006, p. 89), entendemos que esse discurso sobre a Wikipédia traria em si uma memória de discursos outros, que também apontariam para este desejo do ‘saber total’ nas enciclopédias. Para nós, haveria em todo sujeito, novamente nos apoiando em Orlandi (2005), a vontade, a necessidade de saber. E essa vontade, essa necessidade, que faz com que os sujeitos estejam sempre em busca do “completo, do todo, do um” (ORLANDI, 2004, p. 137), não se faria presente somente nesse discurso que vimos destacando. Esse desejo também deixou suas marcas em outros momentos da história do enciclopedismo. Nesse sentido, poderíamos afirmar que o discurso em questão teria suas raízes no passado, na Biblioteca de Alexandria e no próprio enciclopedismo ocidental, que também seria atravessado pelo ideal da totalização dos saberes. O que entendemos ser preciso destacar, não obstante, é o que estaria levando os sujeitos a terem esse gesto de interpretação na atualidade. Para nós, seriam a capacidade de memória praticamente ilimitada da Web e a abertura à edição colaborativa da Wikipédia que alimentariam o imaginário da ‘enciclopédia completa’. O que estaria se delineando, em nossa concepção, seria o entendimento, por parte de alguns sujeitos, de que os avanços tecnológicos e a conseqüente mudança na materialidade da enciclopédia, das versões limitadas espacialmente para a versão da Wikipédia, poderiam superar a necessidade deste instrumento tecnológico de conciliar a ambição à exaustividade com a exigência da seletividade, imposta, num certo sentido, por seu espaço circunscrito. Em relação a essa questão, faz-se necessário considerar que as enciclopédias até então existentes, embora herdeiras da utopia de poder ‘tudo abarcar’, não podem conter em seu escopo a totalidade dos saberes, de modo que caberia ao enciclopedista selecionar, recortar em meio à infinidade de ‘coisas a saber’, algumas destas. ARTEFACTUM – REVISTA DE ESTUDOS EM LINGUAGEM E TECNOLOGIA ANO 2 – N° 2 – FEVEREIRO 2009 73 Este gesto de ‘seleção’4, de ‘delimitação’ do que poderia ou não fazer parte da enciclopédia pode ser explicitado, segundo nosso entendimento, a partir do que Pêcheux e Fuchs (1997) afirmam sobre a enunciação em geral. Segundo os autores, (...) os processos de enunciação consistem em uma série de determinações sucessivas pelas quais o enunciado se constitui pouco a pouco e que têm por característica colocar o ‘dito’ e em conseqüência rejeitar o ‘não-dito’. A enunciação equivale pois a colocar fronteiras entre o que é ‘selecionado’ e tornado preciso aos poucos (através do que se constitui o ‘universo do discurso’), e o que é rejeitado. Desse modo se acha, pois, desenhado num espaço vazio o campo de ‘tudo o que teria sido possível ao sujeito dizer (mas que não diz)’ ou o campo de ‘tudo a que se opõe o que o sujeito disse’. Esta zona do ‘rejeitado’ pode estar mais ou menos próxima da consciência e há questões do interlocutor que o fazem reformular as fronteiras e re-investigar esta zona. (p. 175176). Por ela ser circunscrita, quando o sujeito autor da enciclopédia afirma X e não Y, quando ele apresenta determinados verbetes e não outros, quando aborda um saber sobre um prisma e não outro, ele constrói discursivamente na enciclopédia um fechamento imaginário dos sentidos, que faz com que os saberes nela expostos sejam tomados em uma “relação de evidência entre e sobre si mesmos”, conforme entende Morello (2003, p.122). E que faz também com que se produza a ilusão de que todas as ‘coisas a saber’ se encontram nos verbetes das enciclopédias. Embora a totalidade numérica dos saberes seja almejada, sabemos que isto não é possível. O que o enciclopedista apresentaria, portanto, seria um universo de ‘coisas a saber’ que projetaria no espaço uma leitura do mundo. Tal como o cartógrafo, o enciclopedista delinearia um mapa, um mapa-múndi de saberes. Por conseguinte, não haveria na enciclopédia a apreensão de todos os saberes já formulados, mas sim a construção discursiva de um ‘todo’. A enciclopédia seria, pois, um conjunto fechado, delimitado e estruturado de saberes, como um ‘todo circular’, que se fecha sobre si mesmo. 4 É preciso salientar que, além deste processo de seleção relativo ao que Pêcheux denomina ‘esquecimento nº 2’, também está presente, na constituição de todo discurso, o esquecimento nº 1, que faz com que o sujeito tenha a impressão (a ilusão) de que é ele próprio a fonte de sentido, isto é, o sujeito se representa como criador absoluto de seu discurso. Esse apagamento, que seria total, é chamado de inconsciente, ideológico (cf. ORLANDI, 1988). ARTEFACTUM – REVISTA DE ESTUDOS EM LINGUAGEM E TECNOLOGIA ANO 2 – N° 2 – FEVEREIRO 2009 74 Para nós, em última instância, seria a ideologia5 que representaria a saturação, o efeito de completude que, por sua vez, produziria o efeito de evidência (cf. ORLANDI, 2007) de que aquelas ‘coisas a saber’ presentes nas enciclopédias seriam, de fato, todos os saberes existentes. É sob essa perspectiva que poderíamos afirmar que existiria uma totalidade, ainda que ilusória, nas versões limitadas espacialmente das enciclopédias. E é sob esta perspectiva, igualmente, que poderíamos conceber tal instrumento tecnológico a partir da metáfora do ‘círculo que se fecha’, tal como a etimologia da palavra6 enciclopédia nos sugere. Em nossa interpretação, o que o discurso sobre a Wikipédia estaria produzindo seria o efeito de sentido de que, pelo fato desta se apresentar no espaço virtual, seria possível à Wikipédia disponibilizar não um conjunto legitimado e estabilizado de saberes, como se daria nas demais versões de enciclopédia, mas a soma de todos os saberes existentes. Como se quanto maior fosse a quantidade de verbetes na Wikipédia, maior a possibilidade de se chegar ao ‘saber total’. Em outras palavras, se antes os sujeitos concebiam estar diante do ‘saber total’ porque a materialidade da enciclopédia limitava, no espaço e no tempo, sua extensão e seu campo de abrangência, fazendo com que estes tomassem as ‘coisas a saber’ ali apresentadas como a ‘totalidade dos saberes’ existentes, hoje tal interpretação estaria se delineando justamente pelo fato de a Wikipédia possibilitar que mais e mais saberes sejam disponibilizados a todo momento em seu escopo. O que estaríamos presenciando seria uma mudança no modo como este ‘efeito imaginário’ estaria funcionando na atualidade. A ilusão da totalidade não seria mais produzida pelo ‘efeito de fechamento’ (cf. ORLANDI, 2004) da enciclopédia, mas sim pelo permanente ‘alargamento’ da Wikipédia. 5 A partir de Orlandi (2007, p. 96), entendemos ideologia como “um processo de produção de um imaginário, isto é, produção de uma interpretação particular que apareceria no entanto como a interpretação necessária. 6 ‘Enciclopédia’ é um termo latinizado a partir do grego ‘eu-kuklios paideia’, que quer dizer o ‘círculo (kuklios) perfeito (eu) do conhecimento ou da educação (paideia) (POMBO, 2006). ARTEFACTUM – REVISTA DE ESTUDOS EM LINGUAGEM E TECNOLOGIA ANO 2 – N° 2 – FEVEREIRO 2009 75 A compreensão a que chegamos, no entanto, foi oposta a esta que se faz presente neste discurso que brevemente mencionamos. Para nós, ainda que a abertura à edição colaborativa da Wikipédia produza a ilusão da totalidade numérica – como se os números também não tendessem ao infinito – o fato de a Wikipédia se colocar como o sítio virtual cujos contornos estão sempre se refazendo seria a própria afirmação da impossibilidade de ela vir a ser a ‘enciclopédia completa’. Tal como afirma Dias7 (2007), na Wikipédia, de“link em link não há círculo que se feche, mas sentidos que se abrem e se expandem. Cada link é uma cicatriz no sentido: a marca da incompletude”. Por ela se apresentar na rede mundial de computadores e, mais ainda, por ela ser editada por diferentes sujeitos em diferentes momentos e lugares, qualquer interpretação que leve a entender que a Wikipédia é a enciclopédia onde a totalização dos saberes poderia se tornar realidade coloca-se em contradição com a sua própria condição, que é fluida e variável. De acordo com Dias (2005), na Web estamos diante de arquivos que podem ser alimentados diariamente e que se caracterizam pela possibilidade de ser outro. Sublinha a autora (ibid) que tais arquivos, ou seja, o conteúdo dos sites e home pages, os blogs, etc, constituem-se de modo aberto, passíveis de desconstrução, tendo sua natureza definida pela própria estrutura fluida e não-linear da Internet, pela estrutura em teia. Para nós, o que Dias (2005) afirma estaria fortemente relacionado ao que entendemos ocorrer com a Wikipédia. Nesse sentido, compreendemos que, se não haveria a possibilidade de um fechamento imaginário dos sentidos na Wikipédia, ela não poderia ser concebida como um círculo que se fecha, mas sim como uma rede que se abre, indefinidamente. Uma vez que existiria esse ‘deslizamento de sentido’ do círculo à rede, a questão da totalização dos saberes nas enciclopédias, em nossa concepção, colocar-se-ia de outra forma. Para nós, tal como já sublinhamos, se havia a construção discursiva de uma totalidade (ilusória) dos saberes nas enciclopédias limitadas espacialmente, na Wikipédia, diversamente, tal construção não existiria, pois não havendo um ‘fim’ da Wikipédia, um ponto final, não haveria como construir um ‘todo’. 7 Comentário da Profª Dr. Cristiane Dias na argüição de nossa Dissertação. ARTEFACTUM – REVISTA DE ESTUDOS EM LINGUAGEM E TECNOLOGIA ANO 2 – N° 2 – FEVEREIRO 2009 76 Tendo em vista esta distinção primeira, a qual seria, em nossa perspectiva, o principal diferencial da Wikipédia em relação às enciclopédias, entendemos ser necessário, a fim de sustentar essa passagem do circulo à rede, apresentar outros pontos em que tal diferenciação ocorreria. Como não poderíamos deixar de enfatizar, a rapidez, que estaria presente na etimologia do vocábulo8 Wikipédia, seria um dos pontos de distanciamento em relação às enciclopédias. Este foi, aliás, o principal fator que levou a Wikipédia a ser concebida. Analisando o modo como a Wikipédia se configura, podemos entender que a rapidez, a instantaneidade, estariam fortemente presentes em sua constituição. O resultado da procura por um determinado verbete, por exemplo, é apresentado em alguns décimos de segundo. Até mesmo na edição de seus verbetes se textualizaria esta rapidez, pois estes podem ser criados, modificados ou mesmo eliminados em questão de segundos ou minutos. Se atentarmos para a história do enciclopedismo, não encontraremos nenhuma obra que, tendo sido construída em tão pouco tempo, tenha tido tantas ‘coisas a saber’ como a Wikipédia. Ao contrário, a formulação dos saberes, na maior parte dos casos, era um trabalho demorado, que exigia do enciclopedista um tempo para a elaboração e para a reflexão. Durante a Idade Média, por exemplo, onde a maioria das obras enciclopédicas eram elaboradas por um único autor, ainda que atingissem a extensão de alguns volumes, estes não eram concebidos em um curto espaço de tempo, mas sim durante meses, ou mesmo anos. No Iluminismo, quando foi produzida uma das mais célebres enciclopédias de todos os tempos, a Encyclopédie ou dictionnaire raisonné des sciences, des arts et des métiers, a elaboração dos seus vinte e oito volumes e setenta e dois mil artigos prolongou-se por vinte e um anos. 8 A palavra Wikipédia é construída a partir da união da palavra wiki, do havaiano wiki wiki, que quer dizer ‘veloz’, ‘rápido’, e paideia, do grego, que quer dizer ‘conhecimento’. Wikipédia remeteria, portanto, ao ‘conhecimento veloz, rápido’. ARTEFACTUM – REVISTA DE ESTUDOS EM LINGUAGEM E TECNOLOGIA ANO 2 – N° 2 – FEVEREIRO 2009 77 Ainda hoje encontramo-nos frente a uma elaboração dos saberes que não é a mesma da Wikipédia. Embora enciclopédias como a Britannica e a Universalis, por exemplo, atualizem seus conteúdos com mais freqüência, o que geralmente ocorre são atualizações a cada um ou vários anos, e o número de novos verbetes ou de alterações é bastante reduzido. Juntamente com esta primeira característica, estaria uma outra, também central: a autoria colaborativa. Para nós, por possibilitar que um número maior de sujeitos faça parte da escritura de seus verbetes, com a Wikipédia estaríamos diante do que Pêcheux (1997a) denominou de “re-organização social do trabalho intelectual”. Não é mais o monge ou o teólogo da Idade Média, o humanista do século XVI, o filósofo iluminista, ou ainda uma equipe de especialistas que elaboram as ‘coisas a saber’. Neste ‘sítio significante’, os saberes são postos em circulação por diferentes sujeitos que se encontram em diferentes lugares e momentos. Essa reorganização, que faria com que o ‘controle do dizer’ em uma enciclopédia se desse de uma outra forma, ou seja, que faria com que o que pode ou não ser dito em um instrumento tecnológico como este obedecesse a outros critérios que não os que comumente permeariam a elaboração de tal obra, levaria, por conseguinte, a uma redefinição do que é ou não relevante de ser apresentado em uma enciclopédia, pois, conforme entendemos, a relevância dos saberes na Wikipédia seria de outra ordem. Embora entendamos que o que é considerado um ‘saber enciclopédico’ passou por transformações ao longo da história do enciclopedismo, em função, por exemplo, das mudanças na forma como os sujeitos concebiam o mundo e os saberes, o fato de a enciclopédia ser circunscrita fazia com que o enciclopedista delegasse a alguns saberes uma importância, uma pertinência, o que era, então o fator que levava tais saberes a fazerem ou não parte da enciclopédia. Na Wikipédia, não havendo esta limitação, verbetes como ‘Daniela Ciccarelli’, ‘Dança dos famosos’ e ‘Pokémon’, que abordam, respectivamente, uma famosa artista brasileira, um quadro do programa televisivo Faustão, veiculado na Rede globo, e um desenho animado que se transformou em uma série de produtos, estariam ao lado de verbetes como ‘Emmanuel Kant’, ‘Revolução Industrial’ e ‘Análise de Discurso’. InstaurarARTEFACTUM – REVISTA DE ESTUDOS EM LINGUAGEM E TECNOLOGIA ANO 2 – N° 2 – FEVEREIRO 2009 78 se-ia uma equivalência destes saberes, o que, consequentemente, levaria a uma outra/nova forma de se compreender o que é considerado um ‘saber enciclopédico’. E esta outra/nova compreensão seria, em nosso entendimento, uma terceira diferença envolvendo a Wikipédia e as enciclopédias então existentes. Serres (2005, p. 141) afirma que “quando uma coisa muda de escala, ela frequentemente muda também de natureza”. Para nós, a configuração da Wikipédia, a qual possibilita que inúmeros saberes, que já faziam ou não parte de uma enciclopédia sejam apresentados em seu escopo, faz com que haja uma modificação não somente no modo como estes saberes são postos em circulação, mas também em relação à natureza destes saberes. Isto é, a própria definição do que pode ser um ‘saber enciclopédico’ estaria sendo (re)significada com a Wikipédia. Uma outra característica da Wikipédia, que também a diferenciaria das enciclopédias, é a que concerne à organização e à classificação dos saberes. Ao contrário, por exemplo, das enciclopédias medievais, que seguiam uma ordenação disciplinar, ou da enciclopédia iluminista, que trazia os saberes ordenados alfabeticamente, ou ainda das versões lançadas no século XX, que apresentam, além das duas formas anteriores, também uma organização temática, a Wikipédia não adota um sistema de ordenação dos saberes. Na Wikipédia, os saberes estão todos, conforme já sublinhamos, em equivalência. Não há um esforço, por parte de seus editores, como há nas outras versões, visando a classificar, a hierarquizar o saber (Rey, 2007). Essa inexistência de um princípio classificador estaria relacionada a esta mudança que entendemos ocorrer na concepção do que é um ‘saber enciclopédico’, uma vez que, neste sítio virtual, conforme afirma Assouline (2007), o verbete ‘Pokémon’ poderia ter a mesma extensão ou ser maior do que o verbete sobre o filósofo alemão Kant9, por exemplo. Essas quatro diferenças por nós apontadas traduziriam, de certa forma, alguns dos pontos de distanciamento da Wikipédia em relação às enciclopédias então existentes e, em nossa concepção, estariam intrinsecamente ligadas à transformação que a abertura 9 Em uma busca realizada no dia 12 de fevereiro de 2008 na versão em Língua Portuguesa da Wikipédia, o verbete ‘Pokémon’ era, de fato, bem mais extenso do que o verbete ‘Emmanuel Kant’. ARTEFACTUM – REVISTA DE ESTUDOS EM LINGUAGEM E TECNOLOGIA ANO 2 – N° 2 – FEVEREIRO 2009 79 à edição colaborativa da Wikipédia produziria na forma de conceber e de pôr em circulação os saberes. CONCLUSÃO Diante do que vimos afirmando, é possível entender, portanto, que a Wikipédia não deixa incólume o que é um ‘saber enciclopédico’ e tampouco a própria memória de enciclopédia. Ela desloca sentidos, reformula toda uma maneira de conceber e de pôr em circulação os saberes e nos coloca diante do ‘muito cheio’, do excesso, que seria representado por seus vários milhões de verbetes que não cessam de aumentar. A Wikipédia seria, pois, uma criação que estaria intrinsecamente relacionada ao momento histórico em que vivemos, um momento onde a lógica do mundo estaria se modificando devido, de um lado, à presença cada vez mais incisiva das novas tecnologias de informação e comunicação nos diversos âmbitos da sociedade e, de outro, à prática então dominante da dinâmica de mercado, que traria consigo a velocidade e a aceleração, características tão presentes na configuração deste sítio virtual e da Web como um todo. Para nós, em última instância, seria possível entender que com a Wikipédia estaríamos diante de uma outra/nova forma do conjunto dos saberes que se delinearia na contemporaneidade. Forma esta que não poderia ser compreendida como um ‘todo circular’, que se fecha sobre si mesmo, mas como uma rede que está sendo tecida por milhares de sujeitos em diversos lugares do globo. No início de nossa dissertação, tomando como referência as mudanças na forma como se daria a formulação e a circulação dos saberes na atualidade, propomo-nos a responder à questão ‘O que eu posso saber?’, colocada por Kant no século XVIII e retomada por Serres (2005) no início do século XXI. A resposta a que chegamos foi: uma imensidão de saberes que brotam daqui e dali, um universo de ‘coisas a saber’ que não pára de se alargar. Ao final da reflexão por nós realizada, entendemos ser possível retomarmos esta indagação, (re)significando-a. É então que perguntamos: o que seria possível sabermos a partir do que nos apresenta a Wikipédia? ARTEFACTUM – REVISTA DE ESTUDOS EM LINGUAGEM E TECNOLOGIA ANO 2 – N° 2 – FEVEREIRO 2009 80 Esta é, para nós, uma questão emblemática, que nos levou a pensar sobre o que é uma enciclopédia, o que é um ‘saber enciclopédico’, e de que modo os sujeitos, atravessados pelo desejo de completude, de totalidade, de unicidade, vem construindo significações acerca do que são as ‘coisas a saber’. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ASSOULINE, P. Prefácio. In: GOURDAIN, P., O’KELLY, F., ROMAN-AMAT, B. et al. La révolution Wikipédia: Les encyclopédies vont-elles mourir? Mille et une nuit, 2007. CHARTIER, R. Lecteurs et lectures à l’âge de la textualité életronique. Disponível em: http://www.text-e.org/conf/index.cfm?fa=texte&ConfText_ID=5. Acesso em 02 dez. 2006. DIAS, C. Arquivos digitais: da des-ordem narrativa à rede de sentidos. In: GUIMARÃES, E. e BRUM DE PAULA, M.R. (orgs.). Sentido e Memória. Campinas: Pontes, 2005. _____. O falar de si como marca constitutiva de alteridade. In: SCHERER, A. E. 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